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REVISTA DO CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE

VOLUME 41, NÚMERO 112


RIO DE JANEIRO, JAN-MAR 2017
ISSN 0103-1104
CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE (CEBES) SAÚDE EM DEBATE
A revista Saúde em Debate é uma publicação
do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
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NATIONAL BOARD OF DIRECTORS (YEARS 2015–2017)
EDITORA CIENTÍFICA | SCIENTIFIC EDITOR
Presidente: Cornelis Johannes van Stralen
Vice–Presidente: Carmen Fontes de Souza Teixeira Maria Lucia Frizon Rizzotto - Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Cascavel
Diretora Administrativa: Ana Tereza da Silva Pereira Camargo (PR), Brasil
Diretora de Política Editorial: Maria Lucia Frizon Rizzotto
Diretores Executivos: Ana Maria Costa EDITORES ASSOCIADOS | ASSOCIATE EDITORS
Isabela Soares Santos
Liz Duque Magno Amélia Cohn – Universidade de São Paulo, São Paulo (SP), Brasil
Lucia Regina Fiorentino Souto Ana Maria Costa – Escola Superior de Ciências da Saúde, Brasília (DF), Brasil
Thiago Henrique dos Santos Silva Greice Maria de Souza Menezes – Universidade Federal da Bahia, Salvador (BA), Brasil
Diretores Ad–hoc: Ary Carvalho de Miranda Heleno Rodrigues Corrêa Filho – Universidade Estadual de Campinas, Campinas (SP), Brasil
José Carvalho de Noronha Lenaura de Vasconcelos Costa Lobato – Universidade Federal Fluminense, Niterói (RJ),
Brasil
Paulo Duarte de Carvalho Amarante – Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro (RJ), Brasil
CONSELHO FISCAL | FISCAL COUNCIL
Carlos Leonardo Figueiredo Cunha CONSELHO EDITORIAL | PUBLISHING COUNCIL
Claudimar Amaro de Andrade Rodrigues
David Soeiro Barbosa Alicia Stolkiner – Universidad de Buenos Aires, Buenos Aires, Argentina
Luisa Regina Pessôa Angel Martinez Hernaez – Universidad Rovira i Virgili, Tarragona, Espanha
Maria Gabriela Monteiro Breno Augusto Souto Maior Fonte – Universidade Federal de Pernambuco,
Nilton Pereira Júnior Recife (PE), Brasil
Carlos Botazzo – Universidade de São Paulo, São Paulo (SP), Brasil
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Cristiane Lopes Simão Lemos Cornelis Johannes van Stralen – Unversidade Federal de Minas Gerais,
Grazielle Custódio David Belo Horizonte (MG), Brasil
Heleno Rodrigues Corrêa Filho Diana Mauri – Università degli Studi di Milano, Milão, Itália
Jairnilson Silva Paim Eduardo Luis Menéndez Spina – Centro de Investigaciones y Estudios Superiores en
José Carvalho de Noronha Antropologia Social, Mexico (DF), México
José Ruben de Alcântara Bonfim Elias Kondilis - Queen Mary University of London, Londres, Inglaterra
Lenaura de Vasconcelos Costa Lobato Eduardo Maia Freese de Carvalho – Fundação Oswaldo Cruz, Recife (PE), Brasil
Ligia Giovanella Hugo Spinelli – Universidad Nacional de Lanús, Lanús, Argentina
Nelson Rodrigues dos Santos Jean Pierre Unger - Institut de Médicine Tropicale, Antuérpia, Bélgica
Paulo Duarte de Carvalho Amarante José Carlos Braga – Universidade Estadual de Campinas, Campinas (SP), Brasil
Paulo Henrique de Almeida Rodrigues José da Rocha Carvalheiro – Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro (RJ), Brasil
Roberto Passos Nogueira Luiz Augusto Facchini – Universidade Federal de Pelotas, Pelotas (RS), Brasil
Sarah Maria Escorel de Moraes Luiz Odorico Monteiro de Andrade – Universidade Federal do Ceará,
Sonia Maria Fleury Teixeira Fortaleza (CE), Brasil
Maria Salete Bessa Jorge – Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza (CE), Brasil
Paulo Marchiori Buss – Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro (RJ), Brasil
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Paulo de Tarso Ribeiro de Oliveira – Universidade Federal do Pará, Belém (PA), Brasil
Cristina Santos Rubens de Camargo Ferreira Adorno – Universidade de São Paulo,
São Paulo (SP), Brasil
Sonia Maria Fleury Teixeira – Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro (RJ), Brasil
ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA
Sulamis Dain – Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro (RJ), Brasil
Avenida Brasil, 4036 – sala 802 – Manguinhos Walter Ferreira de Oliveira – Universidade Federal de Santa Catarina,
21040–361 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil Florianópolis (SC), Brasil
Tel.: (21) 3882–9140 | 3882–9141 Fax.: (21) 2260-3782
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SECRETARIA EDITORIAL | EDITORIAL SECRETARY


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Mariana Acorse
A revista Saúde em Debate é
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Apoio
el Caribe, España y Portugal (Latindex)
Sumários de Revistas Brasileiras (Sumários)
REVISTA DO CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE
VOLUME 41, NÚMERO 112
RIO DE JANEIRO, JAN-MAR 2017

ÓRGÃO OFICIAL DO CEBES


Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
ISSN 0103-1104
REVISTA DO CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE
VOLUME 41, NÚMERO 112
RIO DE JANEIRO, JAN-MAR 2017

5 EDITORIAL | EDITORIAL 63 Da noção de determinação social à de


determinantes sociais da saúde
From the notion of social determination to
ARTIGO DE OPINIÃO | OPINION ARTICLE one of social determinants of health
Júlia Arêas Garbois, Francis Sodré, Maristela
13  revolta contra os pobres: saúde é
A Dalbello-Araujo
para poucos
The revolt against the poor: health is for a
few ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE
José Carvalho de Noronha, Gustavo Souto de
Noronha, Ana Maria Costa 77 
Explotación minera y sus impactos
ambientales y en salud. El caso de Potosí
20 Golpe contra a ética e o direito dos en Bogotá
pacientes trabalhadores Mining and its health and environmental
Strike against the ethics and the right of impacts. The case of Potosí in Bogotá
working class patients Ángela Marcela La Rotta Latorre, Mauricio
Heleno Rodrigues Corrêa Filho Hernando Torres Tovar

92 Por que morreu VMS? Sentinelas


ENSAIO | ESSAY do des-envolvimento sob o enfoque
socioambiental crítico da determinação
23 Diálogo Aberto: a experiência social da saúde
finlandesa e suas contribuições Why did VMS die? Sentinels of the
Open Dialogue: the finnish experience and de-velopment under the critical social
its contributions environmental approach of the social
Luciane Prado Kantorski, Mario Cardano determination of health
Raquel Maria Rigotto, Ada Cristina Pontes
33 Subsídios para a construção de Aguiar
projetos em pesquisa social: reflexões
epistemológicas e metodológicas Planos de carreira, cargos e salários
110
Input and concepts for building social no âmbito do Sistema Único de
research projects: Reflections through Saúde: além dos limites e testando
epistemology and methodology possibilidades
Fernando Manuel Bessa Fernandes, Marcelo Career plans, positions and salaries in the
Rasga Moreira, Pablo Dias Fortes scope of the Unified Health System: beyond
the limits and testing possibilities
49 Exposição ambiental e ocupacional a Swheelen de Paula Vieira, Celia Regina
agrotóxicos e o linfoma não Hodgkin Pierantoni, Carinne Magnago, Tania França,
Environmental and occupational exposure to Rômulo Gonçalves de Miranda
pesticides and the non-Hodgkin lymphoma
Vanessa Indio do Brasil da Costa, Márcia Sarpa
de Campos de Mello, Karen Friedrich
SUMÁRIO | CONTENTS

Modelos de gestão pública da Secretaria


122 Dor lombar, flexibilidade muscular e
183
de Saúde de Pernambuco: implicações relação com o nível de atividade física
na gestão do trabalho de trabalhadores rurais
Public management models of Pernambuco Low back pain, muscle flexibility and
Health Department: implications for labor relationship with the level of physical activity
management of rural workers
Vanessa Gabrielle Diniz Santana, Pedro Miguel Marcia Regina da Silva, Fátima Ferretti, Junir
dos Santos Neto Antonio Lutinski

Bombeiros militares: um olhar sobre a


133 Nem sempre sim, nem sempre não:
195
saúde e violência relacionados com o os encontros entre trabalhadores e
trabalho usuários em uma unidade de saúde
Military firefighters: a gaze at the health and Not always yes, not always no: encounters
the violence related to work between workers and users at a health unit
Natália Teixeira Mata, Luiz Antonio de Almeida Sonia Maria de Melo, Luiz Carlos de Oliveira
Pires, Renato José Bonfatti Cecílio, Rosemarie Andreazza

As condições de saúde dos


142 Disseminação e uso dos resultados de
208
trabalhadores a partir dos exames pesquisas financiadas pela Secretaria
periódicos de saúde de Ciência, Tecnologia e Insumos
The health conditions of workers from Estratégicos do Ministério da Saúde,
periodic health examinations Brasil, 2004 a 2007
Eliane de Assis Mendes, Liliane Reis Teixeira, Dissemination and use of the research
Renato José Bonfatti results funded by the Department of Science,
Technology and Strategic Inputs of the
Reestruturação produtiva na saúde:
155 Ministry of Health, Brazil, 2004 to 2007
atuação e desafios do Núcleo de Apoio à Daniela Alba Nickel, Sonia Natal, Ana Cláudia
Saúde da Família Figueiró, Marly Marques da Cruz, Zulmira Maria
Productive restructuring in health: de Araújo Hartz
performance and challenges of the Family
Health Support Center 221 
Representações sociais de estudantes
Mirvaine Panizzi, Josimari Telino de Lacerda, de escolas públicas sobre as pessoas
Sonia Natal, Túlio Batista Franco que vivem com HIV/Aids
Social representations of public school
Estresse e qualidade de vida do
171 students about people living with HIV/Aids
cuidador familiar de idoso portador da Rebeca Coelho de Moura Angelim, Verônica
doença de Alzheimer Mirelle Alves Oliveira Pereira, Daniela de
Stress and quality of life of the family Aquino Freire, Brígida Maria Gonçalves de
caregivers of elderly with Alzheimer’s disease Melo Brandão, Fátima Maria da Silva Abrão
Vanovya Alves Claudino Cesário, Márcia
Carréra Campos Leal, Ana Paula de Oliveira
Marques, Karolyny Alves Claudino
SUMÁRIO | CONTENTS

REVISTA DO CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE


VOLUME 37, NÚMERO 98
RIO DE JANEIRO, JAN-FEV 2014

230 
Hanseníase e Atenção Primária à Saúde: A experiência de formação (em) comum
298
uma avaliação de estrutura do programa de nutricionistas na Unifesp, campus
Leprosy and Primary Health Care: program Baixada Santista
structure assessment The training experience (in) common of
Gutembergue Santos de Sousa, Rodrigo Luis nutritionists at Unifesp, Baixada Santista
Ferreira da Silva, Marília Brasil Xavier campus
Maria Fernanda Petroli Frutuoso, Virginia
Centro de Trauma: modelo alternativo
243 Junqueira, Ângela Aparecida Capozzolo
de atendimento às causas externas no
estado do Rio de Janeiro
Trauma Center: alternative model of trauma
care in the state of Rio de Janeiro REVISÃO | REVIEW
Elvis da Silva Silveira, Gisele O’Dwyer
Revisão sistemática da literatura sobre
311
255 
Políticas de saúde mental, álcool e crack: análise do seu uso prejudicial nas
outras drogas e de criança e adolescente dimensões individual e contextual
no Legislativo Systematic review of the literature on crack:
Mental health, alcohol and other drugs, analysis of its harmful use in the individual
and child and adolescent policies in the and contextual dimensions
Legislative Mirna Barros Teixeira, Elyne Montenegro
Daniel Adolpho Daltin Assis, Alyne Alvarez Engstrom, José Mendes Ribeiro
Silva, Ticiana Torres

Loucos/as, pacientes, usuários/as,


273 RELATO DE EXPERIÊNCIA | CASE STUDY
experientes: o estatuto dos sujeitos
no contexto da reforma psiquiátrica Abordagem na rua às pessoas usuárias
331
brasileira de substâncias psicoativas: um relato de
Crazies, patients, users, experienced: the experiência
statute of the subjects in the context of the Street approach to people who use
brazilian psychiatric reform psychoactive substances: an experience
Ana Paula Müller de Andrade, Sônia Weidner report
Maluf Satila Evely Figuereido de Souza, Cleiana
Francisca Bezerra Mesquita, Fernando Sérgio
Efeitos danosos do processo de trabalho
285 Pereira de Sousa
em um Centro de Atenção Psicossocial
Álcool e Drogas
Harmful effects of the work process in an
Alcohol and Drugs Psychosocial Care Center
Kallen Dettmann Wandekoken, Maristela
Dalbello-Araujo, Luiz Henrique Borges
EDITORIAL | EDITORIAL 5

A saúde em tempos de golpe

AO COMPLETAR UM ANO DO GOLPE ULTRALIBERAL que destituiu o voto popular e conduziu


à desmoralização política do Brasil, o que ressalta no cenário são o declínio da economia e o
massacre dos direitos sociais com acirramento das desigualdades sociais.
A direita ultraliberal tem se alastrado no mundo e imposto aos países políticas de austeridade
econômica com graves repercussões e consequências. Impondo poder e manipulando as classes
políticas, os ultraliberais também usam a estratégia do ‘think tank’, organizações disseminadoras
do ideário. América Latina e Brasil abrigam diversas dessas organizações com perfil de formu-
ladoras, como o Instituto Millenium, ou voltadas à formação de lideranças e ativismo, como é o
caso do Movimento Brasil Livre (MBL) que liderou as manifestações populares pró-golpe.
O termo ultraliberalismo é usado aqui para ressaltar a distinção do liberalismo que esteve
na base dos estados keynesianos vinculados à matriz do bem-estar social do período entre
guerras. O neoliberalismo cunhado nas últimas décadas do século vinte diz respeito ao es-
vaziamento das funções do Estado de suas obrigações com direitos sociais, com desregula-
mentação e livre mercado quando então a resistência à esquerda incorpora as bandeiras por
proteção social e direitos sociais. O ultraliberalismo está associado à globalização financeira
com supremacia e mando do sistema financeiro.
A direita ultraliberal nos EUA que retorna com Trump já havia mostrado sua face com
Reagan, que radicalizou seu ideário promovendo o livre mercado, desregulamentação da eco-
nomia, cortes de impostos e redução dos orçamentos dos programas sociais, excluindo o or-
çamento militar. Justamente são as multinacionais petroleiras e da indústria bélica as grandes
financiadoras das organizações do think tank, e seus interesses estão associados diretamente
às guerras e genocídios que o planeta estarrecido assiste no Oriente Médio. O expansionismo
norte-americano tem a América Latina sob constante mira.
A cada dia, surgem mais evidências quanto à real natureza do golpe no Brasil que instituiu
grupos de poder – mesmo que descartáveis ao longo do processo – a serviço do sistema finan-
ceiro apátrida. Esse projeto mobilizou setores nacionais que, ainda que de forma secundária,
são beneficiados pelo corolário do golpe. Contudo é o povo a sua grande vítima.
Os que patrocinaram o golpe manipularam os três poderes, desde os operadores do
Judiciário à classe política aliando a mídia e parcela da população incomodada pelo pouco que
a sociedade brasileira se moveu nos chamados governos populares. Mesmo sem barrar os inte-
resses do liberalismo e do capital, tais governos sustentaram projetos políticos que, com todas
as suas insuficiências e fragilidades, apresentavam intenções e compromissos com equidade
e justiça social. Com a democracia, foi derrotado um ciclo que, mesmo ambíguo no segundo
mandato Dilma, mostrou-se incompatível à radicalização vigente na globalização financeira
Está claro que a ascensão ao poder do grupo que executou o golpe seguiu a arquitetura e
comando dos banqueiros, rentistas e das grandes multinacionais. São os que hoje auferem para
si os maiores lucros e vantagens. Nessa hierarquia de poder, outros grupos econômicos hoje
tensionam o cenário político por seus interesses específicos, ameaçados pela voracidade dos
ultraliberais do sistema financeiro.

DOI: 10.1590/0103-1104201711200 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 5-12, JAN-MAR 2017
6 EDITORIAL | EDITORIAL

E o que o sistema financeiro está levando? O Banco Central anuncia em seu Relatório
Mensal sobre a Política Fiscal que, em fevereiro de 2017, o valor dos juros pagos pelo governo
atingiu o montante de 30,7 bilhões que, extrapolado aos últimos 12 meses, acumularia um
pagamento de 388 bilhões pelo cardápio amplo de transações de títulos da dívida pública.
Vale mencionar que, desde os tempos do Plano Real, em 1994, o sistema financeiro vem
contando com a fidelidade ao compromisso de todos os governos que mantiveram nos seus
respectivos orçamentos o chamado superávit primário, que garante o pagamento de juros da
dívida pública. Na prática, esse superávit refere-se ao que é subtraído dos gastos primários dos
governos com saúde, educação e outras obrigações constitucionais.
A existência de um ‘sistema da dívida’ é hoje um consenso no qual ocorre sistematicamente
desvio de recursos públicos em direção ao sistema financeiro. Trata-se de um perverso ciclo de
corrupção oficializado e manipulado por grandes bancos, exclusivos beneficiários do esquema.
Os juros dessa dívida não param de crescer levando quase metade do Orçamento, sem con-
trapartida real e sem transparência quanto ao destino e forma de aplicação desse dinheiro. O
que é certo é que não retorna em benefícios para o povo.
As políticas econômicas baseadas no ajuste fiscal, maquiadas sob o conceito da austeridade,
têm como objetivo reduzir a relação dívida pública com o Produto Interno Bruto (PIB) por
meio do congelamento das despesas primarias justamente para produzir volume crescente
de superávit primário destinado ao pagamento dos encargos financeiros da dívida interna,
ou seja, amortização, mas, sobretudo, juros. Experiências em outros países que, falidos, apli-
caram política de austeridade tiveram prolongamento da recessão uma vez que economia e
arrecadação não crescem.
Ha uma relação direta entre produção de superávit primário e redução do investimento
público. Isso significa que a sociedade que paga os tributos que compõem o orçamento e que
deveria receber o retorno sob a forma de bens e serviços públicos para a qualidade de vida
está sendo saqueada. Assim, fica explicito que os gastos primários estão abaixo das receitas
primárias, e isso significa dizer que o Brasil está gastando muito pouco nas políticas públicas
que garantem direitos sociais previstos na Constituição Federal.
A grave crise contemporânea é mais uma que o capitalismo cria, alimenta e acumula para se
fortalecer. O Brasil vive uma profunda recessão, com altas taxas de desemprego, juros elevados
e redução do poder de compra do salário mínimo. Quando a população é submetida às consequ-
ências da queda do consumo e das condições de sobrevivência, o papel esperado do Estado seria
o de proteger os seus cidadãos, o que implicaria ampliar investimentos públicos, produzindo
empregos e ampliando políticas sociais com estancamento da sangria dos juros da dívida.
Entretanto, a política econômica vigente prioriza o sistema financeiro mantendo suas ga-
rantias preservadas, mesmo considerando a profunda recessão que o País está mergulhado e
as enormes necessidades do povo.
O governo, sob o jugo do sistema financeiro, promove os cortes de gastos públicos incidindo
na retração das políticas sociais. A política econômica praticada radicalizou no estabeleci-
mento da meta do superávit primário a partir de cortes de verbas públicas e contingenciando
o orçamento nas áreas sociais.
A austeridade é celebrada pela grande mídia como se fosse destinada a estancar a gastança
do governo além de plantar a falsa ideia de combate à corrupção associada à gestão das verbas
públicas. Essa mesma mídia que corrompe a informação, omite à sociedade as consequên-
cias do sacrifício do financiamento das políticas sociais para bem-estar cotidiano das pessoas.
Assim, submete a opinião pública a valorar o cumprimento das obrigações de pagamentos de
juros da dívida pública do País impostas por seu algoz, o sistema financeiro.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 5-12, JAN-MAR 2017 DOI: 10.1590/0103-1104201711200
EDITORIAL | EDITORIAL 7

Na vida real das pessoas, a saúde está entre as primeiras queixas da população manifes-
tando as consequências dos sucessivos cortes ao seu financiamento. É preciso reafirmar que
o nível de investimento em saúde é insuficiente, seja comparando com outras experiências
internacionais, seja observando o gasto privado per capita e a renda média brasileira.
O subfinanciamento crônico do Sistema Único de Saúde (SUS) tem impedido a consecução
de seus objetivos e princípios constitucionais. A falsa polêmica frequente nas declarações do
atual ministro da saúde relativiza a falta de recursos financeiros para depositar as responsabi-
lidades das mazelas do SUS a problemas da gestão. Essa falácia exige reafirmar que a ausência
de financiamento suficiente pode ser responsável, inclusive, pelos conhecidos e reais proble-
mas de gestão presentes no SUS.
Para além da condição crônica de subfinanciado, o futuro próximo do SUS já está sob as
sombras da Emenda Constitucional (EC) 95, que estabelece teto para os gastos públicos sem
afetar a polpuda fatia do Orçamento destinada ao superávit primário. Na prática, significa a
impossibilidade de o SUS cumprir seus desígnios constitucionais para garantia da saúde como
direito universal. Estima-se que a aplicação dessa EC retira do SUS aproximadamente R$ 400
bilhões em 20 anos se for considerado o crescimento anual do PIB a 2,0% e a taxa de variação
do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) em 4,5%.
Apesar do PIB setorial da saúde ter aumentado nos últimos anos, esse crescimento não
ocorreu às custas do gasto público que contribui com menos de 50% sobre o seu percentual.
As famílias estão gastando mais que o Estado para cuidados da saúde. O que é fato é que o
atendimento universal e de qualidade que a Constituição promete e que a população espera
exigiria um maior comparecimento do gasto público, hoje abaixo de países em condição eco-
nômica pior e que não dispõem de sistemas universais nos moldes do SUS.
Outro aspecto relevante é a queda da participação federal no financiamento do SUS ocorrida
nos últimos 25 anos, que não acompanhou o crescimento observado nos investimentos munici-
pal e estadual, reais responsáveis pelo aumento do gasto público total em saúde nesse período.
Não se trata aqui de desconsiderar a importância da melhoria da qualidade e da lisura com
os gastos e a gestão da saúde, mas insistir quanto à necessidade de mais recursos, especial-
mente na conjuntura atual de desemprego massivo que remete ao SUS um importante contin-
gente populacional antes vinculado a planos de saúde associado ao vínculo do emprego.
O governo tem fortalecido o mercado dos planos privados de saúde que já contam com
crescentes subsídios fiscais e na pratica não oferecem o que prometem na venda além de ex-
pulsarem os grupos populacionais mais vulneráveis e necessitados de assistência médica. São
empresas movidas pelo risco e pelo lucro, tal como qualquer outra do ramo das seguradoras.
Grandes financiadoras de campanhas eleitorais, as empresas de seguros e planos de saúde
recebem o retorno do que investiram no golpe à democracia com a proposta atual de criação
de planos privados ‘populares’ ou ‘acessíveis’, diga-se, desregulados e limitados em termos de
cobertura de serviços. Está para ser escancarado e chancelado pelo governo um estelionato
oficial dos planos populares às classes média e pobre.
É o projeto ultraliberal que organizações think tanks já vêm disseminando e infiltrando em
diversos países e organismos internacionais que foi denominado Cobertura Universal, distor-
cendo maliciosamente um conceito caro e virtuoso da saúde. Esse projeto para sistemas de
saúde é fundamentado no subsídio público e na compra de serviços do mercado para ações de
saúde parciais, está bem distante da garantia de direitos, mais se prestando à fragmentação e
financeirização da assistência à saúde.
Não menos importante e preocupante é a reforma da Previdência Social prevista no Projeto
de Emenda Constitucional (PEC) 283 que parece fomentar o desejo pela sua implosão. De

DOI: 10.1590/0103-1104201711200 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 5-12, JAN-MAR 2017
8 EDITORIAL | EDITORIAL

um Sistema de Seguridade Social contributivo e solidário, o Brasil pode passar ao regime de


previdência privada como alternativa única que restará aos trabalhadores. O argumento do
desequilíbrio das contas públicas não se sustenta nem mesmo se fosse comprovado o déficit.
Essa retórica oferecida cotidianamente pelos noticiários da mídia subserviente amortece
consciências e conduz à desconstrução da Previdência. Mais um sentido para o golpe, pois
somente em situações políticas tão impositivas, beirando aos regimes de exceção, é possível
promover mudanças tão radicalmente desfavoráveis ao povo e às classes trabalhadoras.
O discurso da inevitabilidade da reforma da Previdência Social é falacioso não apenas do
ponto de vista fiscal por ausência de riscos de explosão da necessidade de financiamento como
também pelo lado de que a necessidade de financiamento gere impacto no déficit público.
Estimulo pela ampliação da entrada no sistema ou melhoria dos seus mecanismos de gestão
constituem medidas necessárias ao aperfeiçoamento da Previdência. Ao lado dessas medidas,
uma reforma deveria prioritariamente garantir destinação constitucional dos recursos da segu-
ridade social, eliminar a Desvinculação de Receitas da União (DRU) e saldar a contas dos grandes
devedores que há décadas caloteiam a Previdência protegidos pela vista grossa de governos.
Concluindo, é importante reafirmar a necessidade do financiamento estável e adequado
como condição imprescindível à consolidação do direito universal à saúde e do SUS admitin-
do que a forma como tem sido tratada a questão tem ficado restrita a uma visão setorial. A pro-
posta constitucional que vincula o financiamento do SUS ao Orçamento da Seguridade Social
(OSS) precisa ser retomada. Como bem demonstrado por diversos estudos, esse orçamento é
superavitário desde a sua origem, crescendo sempre acima do PIB que é vulnerável aos ciclos
da economia. Lembrando ainda que um grande avanço da Constituição foi a definição das
múltiplas fontes de financiamento para o OSS incluindo as contribuições sobre o capital, ou
seja, o lucro e faturamento das empresas, e não apenas sobre o trabalho e do caráter contribu-
tivo fiscal. A Carta também propôs que o financiamento da saúde e do SUS integrasse o OSS.
O Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) tem registrado nas suas teses e posicionamen-
tos que as soluções para o financiamento do SUS têm sido paliativas, insuficientes e instáveis. O
Movimento da Reforma Sanitária carrega 30 anos de consternações com os seguidos desastres
e consequências do subfinanciamento, acoplados à construção de um sistema cada vez menos
público, único e não universalista distanciado da base constitucional dos direitos de cidadania.
Talvez seja o momento para que o Cebes retome a defesa da garantia do percentual da segurida-
de. Essa tese foi abandonada desde os anos 1990 quando o setor saúde perdeu recursos da segurida-
de, provocando a brutal queda em termos reais do orçamento da saúde, que passou a contar apenas
com fontes setoriais, vulneráveis às crises e políticas econômicas e à entrada e saída de novos tribu-
tos, como foi o caso da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF).
A resistência às reformas da Previdência é também momento oportuno para retomar essa
proposta e, quem sabe, por esse caminho, refundar a unificação e o fortalecimento das lutas
integradas da saúde, da Previdência e da assistência social, hoje fragmentadas. A crise política e
o comando dos retrocessos dos direitos sociais exigem unidade para o seu enfrentamento assim
como no combate aos subsídios públicos concedidos aos planos e seguros privados, a presença
do capital estrangeiro, a reforma trabalhista e a terceirização do trabalho, todas estas condições
convergentes para a piora da qualidade e crescente precarização dos serviços de saúde.

Ana Maria Costa


Diretora do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e editora associada da Saúde em Debate

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 5-12, JAN-MAR 2017 DOI: 10.1590/0103-1104201711200
EDITORIAL | EDITORIAL 9

Health in Times of Coup

ON THE ANNIVERSARY OF THE ULTRALIBERAL COUP that sacked the popular vote and led to
the political demoralization of Brazil, what stands out in the scenario are the decline of the
economy and the massacre of social rights with intensification of social inequalities.
The ultraliberal right has spread around the world and imposed on countries policies of eco-
nomic austerity with severe repercussions and consequences. Imposing power and manipulating
the political classes, the ultraliberals also use think tank strategy, organizations which disseminate
the ideology. Latin America and Brazil are home to a number of those organizations with formula-
tors profile, such as the Millennium Institute, or focused on leadership and activism, such as the
Free Brazil Movement (MBL), which led the popular pro-coup manifestations.
The term ultraliberalism is used here to emphasize the distinction from the liberalism that
was at the base of the Keynesian states linked to the matrix of social welfare of the inter-
war period. Th neoliberalism coined in the last decades of the twentieth century refers to
the emptying of State functions from their obligations to social rights, with deregulation and
free market while the resistance to the left incorporates the flags for social protection and
social rights. Ultraliberalism is associated with financial globalization with supremacy and
command of the financial system.
The ultraliberal right in the US which comes back with Trump had already shown its face with
Reagan, who radicalized his ideas by promoting free market, deregulation of the economy, tax cuts,
and cuts in social program budgets, excluding the military budget. It is precisely the oil supermajors
and the war industry that are the big funders of think tank organizations, and their interests are
directly associated with the wars and genocides that the planet witnesses terrified in the Middle
East. The expansionism of the US has Latin America constantly in sight.
Each day, more and more evidence emerges as to the real nature of the coup in Brazil, which in-
stituted groups of power – even if they turn to be disposable throughout the process – at the service
of the stateless financial system. That project mobilized national sectors that, although in a second-
ary way, benefit from the corollary of the coup. Yet, it is the people who are its great victims.
Those who sponsored the coup have manipulated the three powers, from the Judiciary
operators to the political class, allying the media and a portion of the population who was
bothered by the little that Brazilian society has moved in the so-called popular governments.
Even without prejudice to the interests of liberalism and the capital, those governments sup-
ported political projects that, with all their weaknesses and frailties, presented intentions and
commitments with equity and social justice. With democracy, a cycle was defeated which,
even with ambiguity in Dilma’s second term, proved to be incompatible with the current radi-
calization of the financial globalization.
It is clear that the rise to power of the group that carried out the coup followed the architec-
ture and command of the bankers, rentiers and the big multinationals. They are the ones who
now reap the greatest profits and advantages for themselves. In this hierarchy of power, other
economic groups today stress the political scenario for their specific interests, threatened by
the voracity of the ultraliberals of the financial system.

DOI: 10.1590/0103-1104201711200 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 5-12, JAN-MAR 2017
10 EDITORIAL | EDITORIAL

And what is the financial system taking? The Central Bank announces in its Monthly
Report on Fiscal Policy that in February 2017, the amount of interest paid by the government
reached the total of 30.7 billion which, extrapolated over the last 12 months, would accumu-
late a payment of 388 billion for the wide menu of public debt securities transactions.
It is worth mentioning that, since the time of the Real Plan in 1994, the financial system has
relied on the loyalty to the commitment of all the governments that have maintained in their
respective budgets the so-called primary surplus, which guarantees the payment of interest
on the public debt. In practice, this surplus refers to what is subtracted from government
primary spending on health, education and other constitutional obligations.
The existence of a ‘debt system’ is now a consensus in which there is a systematic deviation
of public resources towards the financial system. It is a perverse cycle of corruption made of-
ficial and manipulated by large banks, the exclusive beneficiaries of the scheme.
The interest on such debt does not stop growing, taking almost half of the Budget, with
no real counterpart and no transparency as to the destination and form of application of that
money. What is certain is that it does not return in the form of benefits to the people.
Economic policies based on fiscal adjustment, masked under the concept of austerity, aim
to reduce the ratio of public debt to Gross Domestic Product (GDP) through the freezing of
primary expenditures precisely to produce a growing volume of primary surplus destined to
the payment of the internal debt, that is, amortization, but above all, interest. Experiences in
other countries which, broken, applied austerity policies and faced prolongation of the reces-
sion, since economy and collections do not grow.
There is a direct relationship between production of primary surplus and reduction of
public investment. This means that a society that pays the taxes that make up the budget and
that should receive the return in the form of public goods and services for a quality of life is
being looted. Thus, it is evident that primary expenditures are below primary revenues, which
is to say that Brazil is spending very little on the public policies that guarantee social rights
provided by the Federal Constitution.
The severe contemporary crisis is yet another one that capitalism creates, feeds and ac-
cumulates to strengthen itself. Brazil is experiencing a profound recession, with high rates of
unemployment, high interest rates and reduction in the purchasing power of the minimum
wage. When the population is submitted to the consequences of the drop in consumption and
conditions of survival, the expected role of the State would be that of protecting its citizens,
which would imply expanding public investments, producing jobs and expanding social poli-
cies with the staunching of the bleeding of debt interest.
However, a current economic policy prioritizes the financial system keeping its guarantees
preserved, even considering the deep recession in which the country is plunged and how huge
people’s needs are.
The government, under the yoke of the financial system, promotes cuts in public spending by
reducing social policies. The economic policy practiced has radicalized in the establishment of the
primary surplus goal from cuts in the public fund and impounding the budget in the social areas
Austerity is celebrated by the mass media as if it were meant to stall government spending,
as well as to plant the false idea of fighting corruption associated with the management of
public funds. This same media that corrupts information omits to society the consequences of
sacrificing the financing of social policies for people’s daily well-being. Thus, it subjects public
opinion to valuing the fulfillment of the obligations of payments of interest of the public debt
of the Country imposed by its tormentor, the financial system.
In people’s real lives, health is among the first complaints of the population expressing the

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consequences of successive cuts to its funding. It is necessary to reaffirm that the level of in-
vestment in health is insufficient, whether comparing it with other international experiences,
or observing private expenditure per capita and the Brazilian average income.
The chronic underfunding of the Unified Health System (SUS) has been preventing the
achievement of its constitutional objectives and principles. The false polemic frequently ex-
pressed in the statements of the current health minister relativizes the lack of financial re-
sources to place the responsibilities of the SUS problems on management issues. This fallacy
requires that we reaffirm that the absence of financing may even be responsible for the known
and real problems of management in the SUS.
In addition to the chronic condition of underfunding, the near future of the SUS is already
under the shadows of the Constitutional Amendment (CA) 95, which sets the ceiling for public
expenditure without affecting the juicy share of the Budget destined to the primary surplus.
In practice, it means that it is impossible for the SUS to fulfill its constitutional designations
to guarantee health as a universal right. It is estimated that the application of this CA removes
from the SUS approximately R$ 400 billion in 20 years if annual GDP growth is considered at
2.0% and the National Consumer Price Index (IPCA) in 4,5%.
Although the sectoral GDP of health has increased in recent years, that growth did not
occur at the expense of the public spending which contributes with less than 50% over its
percentage. Families are spending more than the State for health care. What is certain is that
universal and quality care that the Constitution promises and that the population expects
would require a greater attendance of public spending, today below countries in a worse eco-
nomic condition and that do not have universal systems in the mold of SUS.
Another relevant aspect is the decrease of the federal participation in the SUS financing that
occurred in the last 25 years, which did not accompany the growth observed in municipal and state
investments, the real responsibles for the increase in total public health expenditure in that period.
It is not a matter of disregarding here the importance of the improvement of quality and the
candor with health spendings and management, but insisting on the need for more resources,
especially in the current scenario of massive unemployment that remits to the SUS an impor-
tant contingent of the population previously related to health insurance plans associated with
employment relationships.
The government has been strengthening the market of private health plans that already
have increasing fiscal subsidies and in practice do not offer what they promise in the sale,
besides expelling the population groups most vulnerable and in need of medical assistance.
They are companies driven by risk and profit, just like any other in the insurance business.
Major electoral campaign funders, insurance companies and health plans receive the return
of what they invested in the coup to democracy with the current proposal to create ‘popular’
or ‘affordable’ private plans, that is, deregulated and limited in terms of service coverage. It is
about to be wide opened and chancelled by the government an official larceny of the popular
plans to the middle and poor classes.
It is the ultraliberal project that think tanks organizations have already been disseminating
and infiltrating in several countries and international organizations that has been denomi-
nated Universal Coverage, maliciously distorting a dear and virtuous concept of health. This
project for health systems is based on public subsidy and on the purchase of market services
for partial health actions, is very far from guaranteeing rights, lending itself to the fragmenta-
tion and financialization of health care.
Not less important and worrying is the Social Security reform envisaged in the Constitutional
Amendment Proposal (PEC) 283 which seems to foment the desire for its implosion. From

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a contributory and solidary Social Security System, Brazil may pass to the private pension
scheme as a single alternative that will remain for the workers. The argument of the imbal-
ance of the public accounts can not be sustained even if the deficit were proved. This rhetoric
offered on a daily basis by subservient news media dampens consciousness and leads to the
deconstruction of Social Security. One more reason for the coup, for it is only in such impos-
ing political situations, bordering on regimes of exception, that it is possible to bring about
changes so radically unfavorable to the people and to the working classes.
The discourse of the inevitability of the Social Security reform is fallacious not only from
the fiscal point of view due to the absence of risks of an explosion in the need for financ-
ing, but also because the need for financing has an impact on the public deficit. Stimulus for
the expansion of the entrance in the system or improvement of its management mechanisms
are measures necessary for the improvement of Social Security. Alongside those measures, a
reform should primarily guarantee constitutional allocation of social security resources, elim-
inate Union Revenue Unbundling (DRU), and pay off the accounts of the large debtors who
have been defaulting the Social Security for decades protected by overlooking of governments.
In conclusion, it is important to reaffirm the need for stable and adequate financing as an
essential condition for the consolidation of the universal right to health and the SUS, admit-
ting that the way the issue has been addressed has been restricted to a sectoral view. The
Constitutional Proposal that links the funding of the SUS to the Social Security Budget (OSS)
must be retaken. As it has been well demonstrated by several studies, this budget has surplus
since its origin, always rising above the GDP that is vulnerable to the cycles of the economy.
Let us remember that another great advancement of the Constitution was the definition of the
multiple sources of funding for the OSS, including contributions on capital, that is, corporate
profits and revenues, and not just on labor and tax contributions. The Charter also proposed
that health financing and the SUS integrate the OSS.
The Brazilian Center for Health Studies (Cebes) has registered in its theses and positions that the
solutions for the financing of the SUS have been palliative, insufficient and unstable. The Sanitary
Reform Movement has had 30 years of dismay over the ensuing disasters and consequences of un-
derfunding coupled with the construction of a system that is increasingly less public, unified and
non-universalist, distanced from the constitutional basis of citizenship rights.
Perhaps it is time for the Cebes to resume the defense of the security percentage. Such
thesis has been abandoned since the 1990s when the health sector lost security resources,
causing the brutal fall in real terms of the health budget, which started to rely only on sectoral
sources, vulnerable to economic crises and policies, and to the entry and exit of new taxes, as
was the case of the Provisional Contribution on Financial Transactions (CPMF).
Resistance to Social Security reforms is also an opportune moment to return to that pro-
posal and, perhaps, through this path, to refund the unification and the strengthening of the
integrated fights of health, Social Security and social assistance, which are now fragmented.
The political crisis and the control of the setbacks of social rights demand unity for their
confrontation as well as in the battle against public subsidies granted to private plans and
insurance, the presence of foreign capital, tha labor reform and the outsourcing of labor, all
of these converging conditions for the worsening of quality and the growing precariousness
of health services.

Ana Maria Costa


Director of the Brazilian Center for Health Studies (Cebes) and associate editor of Saúde em Debate

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ARTIGO DE OPINIÃO | OPINION ARTICLE 13

A revolta contra os pobres: saúde é para


poucos*
The revolt against the poor: health is for a few

José Carvalho de Noronha1, Gustavo Souto de Noronha2, Ana Maria Costa3

Cerca de 60 mil brasileiros e brasileiras foram assassinados em 2016. Nos últimos 10 anos, essa
cifra equivale a mais de meio milhão de vítimas, número equivalente às vítimas da Guerra do
1 Fundação
Iraque. A maior parte delas jovens, pobres, pardas ou negras e vivendo em periferias urbanas.
Oswaldo Cruz
(Fiocruz), Instituto de Uma cifra um pouco menor correspondeu às crianças menores de 4 anos que morreram de
Comunicação e Informação causas evitáveis. Um morador de Alagoas vive em média quase 8 anos menos que quem vive
Científica e Tecnológica em
Saúde (Icict), Laboratório em Santa Catarina (BRASIL, 2017). No Rio de Janeiro, quem nasce na Cidade de Deus, região con-
de Informações em Saúde tígua à Barra da Tijuca, tem uma probabilidade seis vezes menor de comemorar seu primeiro
(LIS) – Rio de Janeiro (RJ),
Brasil. Centro Brasileiro de aniversário comparado com seu vizinho (RIO DE JANEIRO, 2017). Não custa recordar que o Brasil,
Estudos de Saúde (Cebes) nona maior economia do mundo, em 2015, ocupava o 12º lugar entre os países mais desiguais
– Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
noronhajc@gmail.com do planeta (THE WORLD BANK, 2017).
2 Instituto Nacional de
Levantamento recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a partir de dados do
Colonização e Reforma Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF), revelou que 71.440 declarantes com renda superior a 160
Agrária (Incra) – Rio de salários mínimos (0,3% das pessoas que prestaram informações à Receita Federal) detinham 23%
Janeiro (RJ), Brasil.
noronha.gustavo@gmail.com do patrimônio líquido total declarado e 14% da renda total (GOBETTI; ORAIR, 2016).
3 Escola
No que diz respeito aos cuidados de saúde, essa brutal estratificação social se repete. Dos
Superior de
Ciências da Saúde (ESCS) 200 milhões de brasileiros, um quarto está coberto por planos de saúde. Como seria de esperar,
– Brasília (DF), Brasília. as classes de maior renda apresentam maior cobertura do que as de menor renda. Entre os que
Centro Brasileiro de
Estudos de Saúde (Cebes) ganham mais de 20 salários mínimos mensais, a cobertura alcança mais de 80%. A maior parte
– Rio de Janeiro (RJ), Brasil. dos planos é contratada por empregadores. A contribuição patronal evidentemente é repassada
dotorana@gmail.com
ao preço final do produto ou serviço e, portanto, paga pelo consumidor final, e tampouco, por ser
benefício, não é tributada como rendimento pelo trabalhador. A parte paga por este, bem como
para os planos contratados diretamente pelos indivíduos, é deduzida da renda bruta para efeitos
* Partes deste artigo de tributação. Há, portanto, simultaneamente, uma renúncia de arrecadação e um ‘imposto’ ao
foram publicadas em: consumo oculto. Para que se tenha uma ideia do tamanho dos benefícios, a receita total das
NORONHA, J. C.;
NORONHA, G. S.; COSTA, operadoras de planos de saúde, em 2015, foi de R$ 143 bilhões (BRASIL, 2017), 1,4 vez superior ao
A. M. A revolta contra orçamento executado pelo Ministério da Saúde.
os pobres: o desmonte
do SUS fomentado pelo Os valores pagos pelas operadoras de planos de saúde aos prestadores também são for-
atual governo trará custos temente estratificados. Por exemplo, o valor médio pago por episódio de internação é cinco
sociais elevados a muito
curto prazo. Brasileiros, São vezes superior aos que o SUS paga. Contudo os planos para as classes de renda maior chegam
Paulo, fev. 2017. Disponível a pagar três vezes mais que a média dos planos e dezoito vezes mais que o Sistema Único
em: <http://brasileiros.
com.br/2017/02/a-revolta- de Saúde (SUS) (ANS, 2017). As diferenças de hotelaria não justificam tamanha discrepância. É
contra-os-pobres-sem- impossível imaginar que se preste o mesmo cuidado necessário nos hospitais de ponta de São
saude-e-direitos/>. Acesso
em: 3 abr. 2017. Paulo e em um hospital de Serra Talhada em Pernambuco ou mesmo de Teresina.

DOI: 10.1590/0103-1104201711201 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 13-19, JAN-MAR 2017
14 NORONHA, J. C.; NORONHA, G. S.; COSTA, A. M.

Já não é de hoje que se ouve a ladainha Constituição de 1988, congelando os gastos


que se gasta muito em saúde por mais que se chamados ‘primários’ do governo federal por
repita à náusea que o Produto Interno Bruto 20 anos (BRASIL, 2016B).
(PIB) per capita não é do tamanho dos países Enquanto os gastos com a dívida pública
desenvolvidos além da forte desigualdade seguirão sem limites, os dispêndios com
de renda, riqueza e acesso a bens e serviços. saúde, educação, previdência e assistência
Esquecem ainda que o gasto em saúde não social, infraestrutura, defesa, cultura e todas
diminui no longo prazo: uma pessoa que as demais despesas da gestão pública serão
morre aos 65 anos, por infarto agudo do mio- corrigidas apenas pela inflação medida pelo
cárdio, por exemplo, consome bem menos Índice Nacional de Preços ao Consumidor
serviços e produtos de saúde do que se so- Amplo (IPCA). Os juros e encargos da dívida
breviver ao infarto e vier a falecer de câncer consumiram, até 19 de dezembro de 2016, de
aos 90 anos. O debate sobre o financiamento acordo com o jurômetro da Federação das
da saúde deve partir, portanto, da premissa Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp),
de que quanto mais saúde um povo tem, mais quase R$ 400 bilhões ao longo do ano (FIESP;
assistência médica ele precisa. Como coro- CIESP, 2016) – uma fatia maior que os orçamen-
lário, quanto maior o gasto em saúde hoje, tos da educação, saúde, defesa e desenvolvi-
maior ele será amanhã. As medidas preventi- mento social somados (BRASIL, 2016A).
vas são necessárias e boas porque permitem Isso decorre de uma verdade imposta no
viver mais e melhor, não porque barateiam debate econômico brasileiro, não tanto pelo
os gastos globais do sistema. Além disso, com consenso entre as mais diversas escolas de
a mudança do perfil demográfico, a previsão economia do País, mas pela força política de
é de que as necessidades de financiamento seus defensores que lhes garante voz única
de cuidados de saúde necessitariam de um nos noticiários dos principais grupos de
aporte adicional de cerca de 37% nos próxi- mídia. Inventam uma crise fiscal e tentam
mos 20 anos (BRASIL, 2017). convencer de que uma economia nacional de
Parece, todavia, que as elites são insaciá- uma nação emissora de sua própria moeda,
veis. Não faz muito tempo, davam-se alguns com território continental, deve-se ater às
míseros passos para reduzir essas diferenças. mesmas curvas de restrição orçamentária de
O máximo que a coalizão política liderada uma família ou de uma firma.
pelo Partido dos Trabalhadores (PT) fez, Alegam um endividamento insustentável
desde que assumiu o governo em 2003, foi que inclusive corroboraria a estratosférica taxa
implementar fortes políticas de transferência de juros. Desconsideram exemplos como o do
de renda e valorização do salário mínimo, mas Japão que possui justamente a maior relação
sem reformas estruturantes. Desse modo, os dívida/PIB do mundo (TRADING ECONOMICS, 2016A)
governos do PT introduziram o melhorismo e a menor taxa de juros do planeta (TRADING
que, embora insuficiente, propiciou um salto ECONOMICS, 2016B). Sustentam que o endividamen-
de qualidade nas condições de vida da maioria to em cerca de 70% do PIB comprometeria o
dos trabalhadores do Brasil. Entretanto, essa crescimento econômico. Não contam que não
tímida melhora se esvai com a invasão bárbara apenas o estudo (de Reinhart e Rogoff ) que
capitaneada pelas hostes golpistas. sustentava essa retórica demonstrou-se um dos
No dia 13 de dezembro de 2016, em uma grandes erros da economia moderna. Ainda
espécie de comemoração macabra do 48º que se considerassem válidas as conclusões
aniversário do Ato Institucional nº 5 que do estudo, o patamar de endividamento não
institucionalizou o golpe dentro do golpe alcança o limite no qual haveria impacto ne-
militar de 1964, o Senado Federal aprovou, gativo no crescimento (CASSIDY, 2013; O’BRIEN, 2013;
em segunda votação, uma emenda à HERNDON ET AL., 2013).

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A revolta contra os pobres: saúde é para poucos 15

Até a crise de 2008, todos aqueles que cri- O que Romer não aborda é justamente a
ticavam as verdades estabelecidas no para- questão ideológica por trás da defesa de de-
digma dominante na macroeconomia eram terminados conceitos teóricos. Talvez, o po-
vistos com bastante desconfiança. Desde sicionamento que ele critica em diversos de
então, sucessivas autocríticas têm sido feitas seus amigos e que estes não veem em outros
por economistas do chamado mainstream amigos seja porque estão contaminados por
econômico. Autocríticas estas que são pro- certas crenças. Dos resultados da gestão de
positalmente ignoradas pelos economistas política econômica, sempre há ganhadores
ouvidos pela mídia no Brasil. e perdedores, a grande mentira que contam
Nesse sentido, contribui para o debate é que seria uma decisão técnica; não é, é
a leitura do texto de Paul Romer (2016) ‘The política.
Trouble With Macroeconomics’. Nele, o Nos anos 40, quando havia certo consenso
autor argumenta que a falta de espírito cien- de que a intervenção estatal por meio de uma
tífico dos economistas fez com que um ma- política fiscal ativa poderia garantir o pleno
croeconomista médio de hoje saiba menos emprego, o economista polonês Kalecki (2015)
que seu equivalente de 30 anos atrás. mostrou que a oposição a essas ideias vinha
Romer coloca nesse texto algumas de “proeminentes e autointitulados ‘especia-
questões que deveriam fazer refletir: o listas econômicos’ estreitamente ligados à
problema não seria o fato de os macroe- banca e à indústria”, de forma que se tratava
conomistas dizerem coisas inconsistentes de um posicionamento político e não funda-
com os fatos, o verdadeiro problema seria mentado na teoria econômica.
que outros economistas não se importa- Um ajuste fiscal na maior recessão da
riam de os macroeconomistas não se pre- história do Brasil com os indicadores de
ocuparem com os fatos. Nas palavras de emprego piorando sistematicamente não faz
Romer (2016, P. 22), em tradução livre: “uma sentido. Eventualmente, poder-se-ia argu-
tolerância indiferente ao erro óbvio é mentar sobre um risco inflacionário, igual-
ainda mais corrosiva para a ciência do que mente sem sentido em uma depressão. É
a defesa comprometida do erro”. importante frisar que os gastos públicos não
Ele prossegue afirmando que a ciência e são inflacionários se houver oferta suficien-
o espírito da iluminação são as realizações te de trabalho, plantas e matérias-primas
humanas mais importantes e que importam estrangeiras, nesse caso, todo aumento da
mais do que os sentimentos de qualquer um. demanda será atendido por um aumento na
Romer (2016, P. 22) coloca, mais uma vez em tra- produção – dependendo da sua direção, o
dução livre: dispêndio público pode até mesmo ser de-
sinflacionários. Apenas quando não houver
Você não pode compartilhar meu compromis- mais capacidade ociosa, os preços subirão de
so com a ciência, mas pergunte a si mesmo: modo a equilibrar a demanda e a oferta de
Você quer que seu filho seja tratado por um bens e serviços.
médico mais comprometido com seu amigo Em realidade, qualquer risco inflacioná-
antivacinação e seu outro amigo homeopata rio no cenário atual certamente não decorre
do que com a ciência médica? Se não, por que de um suposto excesso de demanda. Poder-
você deve esperar que as pessoas que querem se-ia, nesse caso, listar possíveis causas da
respostas continuem prestando atenção aos inflação na atual conjuntura: a indexação
economistas depois de aprenderem que esta- de alguns preços na economia, que o novo
mos mais comprometidos com os amigos do regime fiscal inclusive reforça; os preços ad-
que com os fatos? ministrados; problemas específicos de oferta
em determinados mercados onde a demanda

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16 NORONHA, J. C.; NORONHA, G. S.; COSTA, A. M.

é inelástica, como por exemplo, os alimentos; (2015) alerta que a oposição a esse tipo de
ou ainda, uma estratégia sutil e eficiente de gasto costuma ser mais violenta que ao in-
reação a uma maior participação do trabalho vestimento público, pois, nesse caso, está em
na distribuição funcional da renda. jogo um dos princípios morais basilares do
Torna-se evidente que as razões de na- sistema capitalista, “você deve ganhar o seu
tureza política prevalecem na defesa de pão no suor”.
políticas de ajuste fiscal como a emenda Por fim, a terceira e última razão para os
constitucional do teto de gastos. Usando a ar- capitalistas se oporem a qualquer política de
gumentação do Kalecki , haveria três razões pleno emprego são as eventuais mudanças
de ordem política para que o governo não políticas e sociais dele decorrentes: o natural
atue na direção do pleno emprego. Primeiro, empoderamento da classe trabalhadora em
a argumentação de que em um sistema de um regime no qual a demissão não teria
livre mercado o nível de emprego depende mais o seu caráter disciplinador. O poder de
sobretudo da confiança dos agentes. “Isso dá barganha e a consciência de classe do tra-
aos capitalistas”, segundo Kalecki (2015), balhador aumentariam, seriam naturais o
aumento das greves e do tensionamento po-
um poderoso controle indireto sobre a políti- lítico. Ainda que com maiores rendimentos,
ca governamental: tudo o que pode abalar o Kalecki (2015) coloca que
estado de confiança deve ser evitado porque
isso causaria uma crise econômica. [...] a ‘disciplina nas fábricas’ e a ‘estabilidade
política’ são mais apreciadas do que os lucros
Desse modo, a doutrina que hoje se pelos líderes empresariais. Seu instinto de
conhece como da responsabilidade fiscal classe lhes diz que um pleno emprego dura-
(segundo seus autores) ou austericídio (de douro é inaceitável a partir do seu ponto de
acordo com os críticos) tem a função de ga- vista, e que o desemprego é uma parte inte-
rantir que o nível de emprego dependa do grante do sistema capitalista ‘normal’.
estado de confiança de forma a manter o
estado refém dos capitalistas. Em outras palavras, é preciso desempre-
A segunda razão das oposições políticas go para colocar a classe trabalhadora no seu
advém da direção do gasto público. Primeiro, devido lugar.
se o investimento público ocorre em qual- A crise econômica de 2008 e a adoção de
quer direção na qual o capital possa com- políticas contracíclicas pelo governo empur-
petir com o Estado, ele não será bem-vindo, raram gradativamente o Brasil na direção
ou, na melhor das hipóteses, será aceito de do pleno emprego, mas pela via do consumo
forma precária. Um sistema público de saúde sem políticas estruturantes. Notadamente, a
eficiente e funcional elimina, por exemplo, estratégia aproximou o País da desejável si-
o mercado de planos de saúde, o mesmo se tuação do pleno emprego que naturalmente
aplica à educação pública em contraponto ao despertaram forte oposição dos capitalistas.
ensino privado ou à existência de empresas Não seria equivocado afirmar que, antes de
estatais. sua captura pela grande mídia, as manifesta-
Ainda na direção do dispêndio público, ções de junho de 2013 tiveram parte de sua
mesmo os subsídios ao consumo de massa força decorrente da sensação de empodera-
(transferências às famílias, subsídios a mento dos jovens trabalhadores diante de
bens de primeira necessidade etc.) não são uma situação de pleno emprego.
bem-vistos. Mesmo não embarcando em As organizações da mídia comandaram as
qualquer tipo de empreendimento e ainda reações de ordem política que constrange-
aumentando o lucro das empresas, Kalecki ram o governo do PT a uma radical inflexão

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A revolta contra os pobres: saúde é para poucos 17

na condução da economia e demonstram à era Vargas. A guerra dos endinheirados


claramente uma submissão aos interesses contra os pobres se acentuará.
do capital e a uma agenda social liberal com O golpe de Estado não foi apenas para
maior ênfase no seu aspecto liberal. A base retirar o PT do governo, mas para devolver
social petista e os setores de oposição à es- o Brasil a uma condição subalterna no jogo
querda pressionavam pela retomada das pro- internacional. A cooperação do Ministério
postas apresentadas na disputa presidencial Público Federal, no âmbito da Lava Jato, di-
de 2014. O golpe não apenas derrotou essa retamente com as autoridades estaduniden-
pressão como também impôs a agenda neoli- ses sem intermediação do poder executivo
beral puro-sangue. brasileiro teve como consequência direta
A emenda constitucional do teto de gastos o desmonte da cadeia do petróleo e gás
desconstrói qualquer tipo de investimento no País e o enfraquecimento do programa
público que aponte para a construção de um nuclear brasileiro. A inflexão nas relações
verdadeiro sistema de segurança social, com internacionais do Brasil pós-golpe, com es-
educação e saúde públicas gratuitas e uni- vaziamento do BRICS e do Mercosul e rea-
versais. Essa proposta foi qualificada pelo linhamento automático com os EUA, deixa
relator especial para extrema pobreza e di- claro: o Brasil foi derrotado em uma guerra
reitos humanos da ONU, Philip Alston. como não convencional.
O que talvez não esteja sendo levado em
uma medida ‘radical’ e sem ‘compaixão’, que conta pelas elites é que as tímidas mudanças
vai atar as mãos dos futuros governantes e promovidas pela era PT no governo trouxe-
que terá impactos severos sobre os brasileiros ram à maioria do povo uma experiência de
mais vulneráveis, além de constituir uma vio- que a miséria não é condição natural, que a
lação de obrigações internacionais do Brasil pobreza não é inexorável. A maioria das re-
(ONUBRASIL, 2016). formas necessárias de fato não foi feita, mas
a houve uma sensação de melhora experi-
O discurso propagado de que os gastos pú- mentada pelas pessoas. Após o golpe, tem-se
blicos devem ser contidos obviamente não se seguido, e acentuar-se-á, uma deterioração
restringe ao congelamento apresentado na das condições de vida, some-se a isto a imi-
emenda do teto dos gastos. Sob uma retórica, nência da retirada de direitos históricos dos
normalmente restrita aos debates acadêmicos, trabalhadores brasileiros e perceber-se-á
de que a previdência social seria muito genero- que inevitavelmente ocorrerá uma convul-
sa, faz-se dos gastos previdenciários o grande são social.
vilão das contas públicas e tenta-se impor uma O caldo de cultura para revolta popular
reforma em que uma aposentadoria integral só tende a se acentuar com a megadelação
será obtida em idade acima da expectativa de da Odebrecht que aumentará o descrédito
vida de diversos estados brasileiros. geral da política. Figuras proeminentes de
A invasão bárbara conservadora não irá todas as agremiações políticas aparecem na
se restringir a esses pontos. Já foram anun- denúncia – à exceção, diga-se, da Presidenta
ciadas modificações na legislação trabalhista afastada, Dilma Rousseff. As redes sociais e
e, mais recentemente, um novo Programa a mídia alternativa tendem a desconstruir a
de Recuperação Fiscal (Refis) perdoando as imagem dos caçadores de corruptos que fe-
empresas sonegadoras (e ainda há cínicos charam os olhos ao escândalo mãe da Lava
que dizem que era preciso afastar o PT para Jato – o caso do Banestado –, que recebem
acabar com a corrupção). O pacote de malda- salários nababescos acima do teto permi-
des pretende devolver a maioria da popula- tido ao serviço público e confraternizam
ção trabalhadora para condições anteriores sorridentes ao lado de ex-presidenciáveis

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 13-19, JAN-MAR 2017


18 NORONHA, J. C.; NORONHA, G. S.; COSTA, A. M.

e outros políticos do Partido da Social (Cacá) Diegues (2008) em uma crônica


Democracia Brasileira (PSDB). publicada na revista Piauí em que os evo-
O desmonte proposto pelos golpistas só luídos endinheirados literalmente caçam
se sustenta no tacape. Serão necessários os primitivos 99,9%. Os endinheirados já
bantustões ou campos de concentração lustram suas armas para a caçada. Não
para acomodar as classes subalternas. Ou haverá alternativa que não passe por uma
ainda, de forma mais dramática, alcançar- ampla articulação liderada pelas classes
-se-á o homo ricus proposto por Carlos subalternas. s

Referências

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 13-19, JAN-MAR 2017


A revolta contra os pobres: saúde é para poucos 19

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 13-19, JAN-MAR 2017


20 ARTIGO DE OPINIÃO | OPINION ARTICLE

Golpe contra a ética e o direito dos pacientes


trabalhadores
Strike against the ethics and the right of working class patients

Heleno Rodrigues Corrêa Filho1

O Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou em sua página de Internet um parecer sobre
pergunta de médicos contratados por empresas em seus Serviços de Segurança e Medicina
do Trabalho (SESMTs). Os autores da pergunta desejavam saber se podem informar os seus
colegas médicos peritos do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) sobre casos em que a
empresa declara não ser responsável pelo adoecimento de seus empregados.
Esse interesse é fundamentado nos casos em que as doenças teriam seus vínculos reco-
nhecidos pelos peritos governamentais mesmo na ausência de notificação comum ou de
Comunicação de Acidentes de Trabalho (CAT) por parte do SESMT das empresas. Trata-se,
portanto, de interesse dos empresários em contestar a estabilidade no emprego, o imposto
pago por adoecer maior número de pessoas e mesmo consequências legais de tratar um bene-
fício por acidente ou doença como sendo vinculado ao trabalho.
O CFM expôs como proposta de norma que ‘acha’ (é um parecer) que o médico da empresa
pode oficiar ao INSS informando ‘dados de prontuário na empresa’ (do trabalhador) para
contestar nexo entre o trabalho e o acidente ou doença ‘sem’ que isso represente ofensa aos
direitos de privacidade, intimidade ou infração ética (CMF, 2017B).
O mesmo CFM ‘acha’ que os dados de prontuários de trabalhadores são, a partir desse
parecer de 2017, ‘liberados’ para divulgação independentemente dos desejos manifestados por
escrito pelos pacientes.
Deve-se fazer uma ressalva sobre o que ‘acha’ o CFM. Nos últimos anos, muito do que o
grupo de médicos que se elegeu para o CFM ‘acha’ tem como alvo atacar os direitos da po-
pulação, dos trabalhadores e dos pacientes. Não é por acaso que o CFM se alinhou desde a
primeira hora com os deputados e senadores golpistas que implantaram a Ditadura Temer
com apoio do judiciário.
Agora apoiam a investida contra direitos de privacidade dos prontuários de trabalhadores
e seu conteúdo, cujo acesso seria restrito aos ditames do segredo ético até mesmo quando
intimados em juízo. O ‘parecer’ da câmara técnica denominado 3/2017 é muito bem-vindo por
áreas patronais que decidem não cumprir a legislação trabalhista.
Segundo o CFM, a partir de janeiro de 2017, se o paciente tiver doença prévia registrada em
prontuário, o médico de empresa pode lançar mão de informações privativas para prejudicar o
1 Universidade de Brasília
acesso do mesmo paciente a direitos previdenciários e trabalhistas, sem a autorização, e mesmo
(UnB) – Brasília (DF),
Brasil. Centro Brasileiro de contra a manifestação de seu desejo em contrário. Uma joia rara da ética médica (CFM, 2017B).
Estudos de Saúde (Cebes)
Não satisfeitos com a repercussão negativa entre trabalhadores e a sociedade, ameaçam os
– Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
helenocorrea@uol.com.br discordantes ‘desprovidos de razão’ por manifestar-se e escrevem no portal do CFM contra o

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 20-22, JAN-MAR 2017 DOI: 10.1590/0103-1104201711202
Golpe contra a ética e o direito dos pacientes trabalhadores 21

direito de opinião. O Brasil regressa ao O sistema político e judiciário brasileiro


direito de santidade, em que a voz do poder é fértil em mudanças de jurisprudência. O
está acima de críticas. O CFM está no poder que serve aos adversários, não serve aos
de acordo com as afirmativas contidas na amigos. Vê-se estes acontecimentos quando
nota de conteúdo ameaçador contra os que convém à imprensa do poder diariamen-
se manifestarem em sentido contrário ao te, e quando não convém, assiste-se pela
entendimento de suas santidades éticas Internet e pelos meios alternativos de co-
por serem ‘em princípio ‘desprovidos de municação não oficiosa.
razão’(CFM, 2017A). No caso do ‘parecer 3’ do CFM, toma-se
Os médicos dirigentes do CFM se de- conhecimento pelas críticas de movimentos
clararam anteriormente contrários às pro- sociais e de trabalhadores, que se sentiram
vidências do Ministério do Trabalho e do atingidos em direitos supostamente pétreos
antigo e destruído Ministério da Previdência (CENTRAIS SINDICAIS, 2017). ‘Dados de prontuário
Social, quando no CFM foi questionado o só podem ser liberados mediante autoriza-
Perfil Profissiográfico Previdenciário (PPP), ção expressa do paciente e em seu benefício’.
porque o laudo dos trabalhadores demitidos A liberação contra sua vontade só pode ser
passaria a conter dados sobre as exposições feita quando dados sobre sua saúde colo-
que o trabalhador teria sofrido em ambien- carem em perigo terceiros, pessoas vulne-
tes de trabalho (CFM, 2004A; CFM, 2004B). ráveis e situações de interesse público em
Era ‘segredo’ e não poderia ser revelado epidemias e contágios. Assim mesmo, em
para as autoridades sanitárias, previdenci- tais condições, é imposto o segredo dos pro-
árias e trabalhistas o conjunto histórico das fissionais de saúde que manuseiam a infor-
exposições de risco a que as empresas sub- mação para fins de vigilância epidemiológica
metem seus trabalhadores. O ‘segredo’ era e para impedir crimes vinculados à doença e
supostamente, descaradamente, ‘do traba- ameaças à saúde pública.
lhador’ e naquele momento favorecia os em- Sem segredo, vale a disposição do ‘facul-
pregadores que decidem expor ou não expor tativo’ que está à mão do empregador para
quem contratam. A exposição era segredo abrir prontuários, informar terceiros, regis-
para o CFM, ainda que se acreditasse ple- trar informações, e, quem sabe, adicionar in-
namente em documentos autodeclarados de formações que não existem, para satisfazer
preenchimento patronal (CFM, 2004B; SILVA, 2004). interesses empresariais.
Agora, em tempos de golpe que o CFM Já é tempo de separar as funções de
gostosamente apoiou e aderiu precocemen- médicos que podem ler e escrever em
te, o mesmo ‘segredo’ não existe em relação a prontuários de trabalhadores, além de
dados pessoais de prontuário que os médicos examiná-los pessoalmente, distinguindo-as
do trabalho das empresas teriam registrado. das funções de médicos que fazem assesso-
Liberou geral. O CFM deu ‘o salve’ para as ria patronal. Podem coexistir as duas ocu-
informações íntimas, sanitárias, pessoais e pações de médicos: um assessora a empresa
de exames físicos e auxiliares servirem ao para reduzir custos decorrentes de doenças
patrão para não pagar direitos trabalhistas. e acidentes; outro tem o contato com os tra-
A mesma medida que defendeu o segredo balhadores, examina, pede exames e guarda
patronal em 2004 serve agora para rasgar o segredo em prontuários invioláveis.
direito individual à inviolabilidade do prontuá- Assessor patronal não transcreve pron-
rio médico sem razões de ordem epidemiológi- tuários para o patrão, não faz toque retal ou
ca sanitária grave ou potencial de crime em que ginecológico na(no) trabalhadora(or) para
esteja envolvido o paciente. O segredo protege o patrão, não tira sangue dos outros para o
o patrão e deixa nu o paciente do CFM. patrão. Assessor patronal lê os relatórios

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 20-22, JAN-MAR 2017


22 CORRÊA FILHO, H. R.

resumidos de ‘outros’ médicos nos quais os apenas o dever de fiel depositário.


trabalhadores confiam, porque vendem sua Enquanto essas duas ocupações médicas
força de trabalho, e não seus corpos, seus não forem definitivamente separadas, o
fluidos corporais, suas vergonhas e sua inti- CFM poderá continuar juntando seus dois
midade para uso empresarial. São dois tipos pesos para as mesmas medidas e ‘parecendo’
diferentes de ocupação médica. São duas que defende interesses públicos e coletivos
éticas na mesma linha. O prontuário só pode quando, na verdade, age meramente como
ser usado em benefício do paciente, que órgão da longa manus de organizações pa-
dele é o proprietário, sendo dado ao SESMT tronais e políticas antitrabalhistas. s

Referências

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 20-22, JAN-MAR 2017


ENSAIO | ESSAY 23

Diálogo Aberto: a experiência finlandesa e


suas contribuições
Open Dialogue: the finnish experience and its contributions

Luciane Prado Kantorski1, Mario Cardano2

RESUMO O Diálogo Aberto é um método desenvolvido na década de 1980, na Finlândia, para


o enfrentamento da crise psicótica. Este artigo é um ensaio teórico que tem como objetivo
apresentar o Diálogo Aberto em seus princípios e enquanto prática de saúde mental desins-
titucionalizante, enfatizando seu potencial terapêutico, seus resultados e suas contribuições
para outros países. Conclui-se que, para a implementação do Diálogo Aberto em outros con-
textos, é necessária uma mudança organizativa na estruturação dos serviços e uma substanti-
va mudança cultural no interior da equipe e da comunidade.

PALAVRAS-CHAVE Saúde mental. Transtornos psicóticos. Família.

ABSTRACT The Open Dialogue is a method developed in the 80’s, in Finland, to the confrontation
of the psychotic crisis. This article is a theoretical essay that aims to present the Open Dialogue
in its principles and as a deinstitutionalizing mental health practice, emphasizing its therapeutic
potency, results and contributions for other countries. It is concluded that, for the implemen-
tation of the Open Dialogue in other contexts, it is necessary an organizational change in the
structuring of services and a substantive cultural change within the team and the community.

KEYWORDS Mental health. Psychotic disorders. Family.

1Universidade Federal de
Pelotas (UFPel), Faculdade
de Enfermagem – Pelotas
(RS), Brasil.
kantorski@pq.cnpq.br

2 Università Degli Studi di

Torino, Dipartimento di
Culture, Politica e Società –
Torino, Itália.
mario.cardano@unito.it

DOI: 10.1590/0103-1104201711203 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 23-32, JAN-MAR 2017
24 KANTORSKI, L. P.; CARDANO, M.

Introdução reuniões, valorizando a construção conjunta


de entendimentos e saídas (SEIKKULA; ALAKARE;
O método do Diálogo Aberto foi desenvolvi- AALTONEN, 2001).
do por Jaakko Seikkula e sua equipe, no início O Diálogo Aberto ganhou atenção inter-
da década de 1980, na Finlândia, na região nacional porque seu uso no tratamento de
oeste da Lapônia, para o enfrentamento da pessoas com primeiro episódio de psicose é
crise psicótica. O Diálogo Aberto engloba associado, na literatura científica, à redução
uma filosofia e um conjunto de práticas que da incidência do desenvolvimento de sinto-
se diferem radicalmente das convencionais, mas crônicos e de incapacidades decorrentes
contribuindo significativamente para o pro- da psicose e ao uso mínimo de medicação psi-
cesso de desinstitucionalização naquele país cotrópica (SEIKKULA ET AL., 2003; SEIKKULA ET AL., 2006;
e que podem vir a contribuir em outros con- AALTONEN; SEIKKULA; LEHTINEN, 2011; SEIKKULA; ALAKARE;
textos (SEIKKULA; ALAKARE; AALTONEN, 2001; SEIKKULA, AALTONEN, 2011; THOMAS, 2011). Ainda, são encontra-
2011; SEIKKULA, 2014). dos os estudos de Skalli e Nicole (2011), Gromer
O Diálogo Aberto é baseado em sete prin- (2012) e Lakeman (2014), que são os três estudos
cípios. O primeiro consiste na ‘ajuda imedia- de revisão de literatura sobre o Diálogo
ta’, que pressupõe que haja uma equipe de Aberto, que enfocam, particularmente, os
atenção à crise à disposição, de modo que o êxitos obtidos no tratamento de pessoas com
primeiro atendimento ocorra nas primeiras diagnósticos de crises psicóticas.
24 horas após o primeiro contato, prefe- Extrapolando a especificidade do mundo
rencialmente no domicílio do usuário, com acadêmico, os movimentos de usuários e as
o objetivo de prevenir a hospitalização. O redes de saúde mental, que, mundialmente,
segundo princípio trata da ‘inclusão da rede fazem a crítica ao uso abusivo de psicofár-
social do usuário’, como a família, os amigos macos e apontam seus malefícios, também
e vínculos significativos em todas as reuniões contribuíram de modo determinante para
de tratamento, sem que nenhuma decisão que os olhares se voltassem para o Diálogo
seja tomada fora delas. O terceiro princípio Aberto como alternativa a tal realidade.
está relacionado com a ‘flexibilidade’, que Robert Whitaker, em seu livro que se
deve ser garantida através da adaptação do tornou um best seller, ‘Anatomy of an epi-
tratamento às necessidades específicas de demic: Magic bullets, psychiatric drugs,
cada caso. O quarto princípio é a ‘respon- and the astonishing rise of mental illness in
sabilidade’, considerando que o técnico que America’, fala dos danos que foram produzi-
atende primeiramente o usuário organizará dos na América do Norte pelo uso massivo de
as reuniões sucessivas. O quinto princípio é o psicofármacos em resposta a situações de es-
da ‘tolerância à incerteza’, que pressupõe en- tresse. Whitaker passou um ano e meio pes-
contros iniciais frequentes (até diários) nos quisando para a escrita do livro. Ele mantém
primeiros 10-12 dias de tratamento, como um um site na internet listando alguns estudos
empenho para evitar decisões precipitadas. relevantes sobre o tema. Essas pesquisas na
Por exemplo, o uso de neurolépticos não é literatura apoiaram a escrita do livro, que
iniciado na primeira reunião. Em vez disso, tem um caráter de jornalismo investigati-
a sua pertinência deve ser discutida em, pelo vo, tendo sido premiado nessa categoria em
menos, três reuniões antes da introdução. O 2010. O autor faz uma crítica contundente ao
sexto princípio é o da ‘continuidade psicoló- uso inadequado de psicofármacos, eviden-
gica’, que é garantida em todas as etapas do ciando, além dos danos e perturbações que
tratamento. O sétimo princípio é o dialogis- eles podem causar no cérebro, o aumento
mo, sendo garantido como foco do tratamen- de gastos do Estado com pagamento de
to a geração de diálogo entre as pessoas nas auxílio por incapacidade produzida pelo uso

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 23-32, JAN-MAR 2017


Diálogo Aberto: a experiência finlandesa e suas contribuições 25

abusivo dessas drogas. Em contraposição, desinstitucionalizante, enfatizando seu po-


o autor apresenta a experiência finlande- tencial terapêutico, seus resultados e suas
sa do Diálogo Aberto como um tratamento contribuições para outros países.
eficaz, que reduz o uso de psicofármacos e
produz ótimos resultados no enfrentamento
das psicoses, questionando os motivos de O Diálogo Aberto e seu
sua escassa replicação em outros contex- potencial terapêutico
tos. O autor conheceu a experiência in loco,
pois teve a oportunidade de acompanhar O Diálogo Aberto surge como uma prática
um grupo da Lapônia. Em seu best seller, de saúde mental em que o cuidado à crise
Whitaker faz uma descrição das bases do é organizado durante as 24 horas sucessi-
método e apresenta alguns resultados das vas ao primeiro contato, e o paciente e sua
pesquisas do grupo de Seikkula, que com- família são convidados a participar não só do
provam a eficácia do mesmo (WHITAKER, 2010). primeiro encontro, mas de todas as reuniões
Sem dúvida, a repercussão do livro de Robert de tratamento. Como mencionado anterior-
Whitaker promove uma ampliação da divul- mente, o seu idealizador é Jaakko Seikkula,
gação da experiência do grupo de Seikkula na psicólogo clínico que começou a trabalhar
Finlândia e fortalece o questionamento acerca no hospital de Keropudas, em Tornio, em
da necessidade de aprofundamento científico 1981 (SEIKKULA, 2011; SEIKKULA, 2014).
dos conhecimentos sobre as potencialidades e Na Finlândia, a prática psicoterápica vem
os limites do Diálogo Aberto e de sua replicabi- sendo uma parte da saúde pública importan-
lidade em outros contextos. te desde o final dos anos 60, com o trabalho
O contato mais efetivo com o tema do do professor Yrjö Alanen e sua equipe, ini-
Diálogo Aberto se iniciou no ano de 2015, ciando com a psicoterapia psicodinâmica
durante o estágio sênior de um dos autores individual. A equipe de Turku já enfatizava,
acompanhando o projeto ‘Il dialogo aperto no final de 1970, que cada processo de tra-
un approccio innovativo nel trattamento tamento é único e deveria ser adaptado às
delle crisi psichiatriche d’esordio – defini- diferentes necessidades de cada paciente. O
zione e valutazione degli strumenti ed or- Diálogo Aberto consiste numa modificação
ganizzativi per la trasferibilità del Dialogo da ‘Need-Adapted Treatment of Psychosis’,
Aperto’, coordenado pela Dra. Maria desenvolvida por Alanen (BORCHERS, 2014).
Chiara Rossi e Dr. Giuseppe Salamina do A filosofia do Diálogo Aberto é o desen-
Departamento de Prevenção (ASL TO1 volvimento de relações entre as pessoas que
– Azienda Sanitaria Locale di Torino 1), estão enfrentando problemas, a família e a
que envolve oito Departamentos de Saúde rede social envolvida e a oferta de apoio à
Mental da Itália (2 em Turim, 1 em Savona, pessoa em casa, em vez de instituições ou
1 em Trieste, 1 em Modena, 1 na Catania e locais de reabilitação. São mais valorizadas
2 em Roma). A integração ao projeto de ca- as habilidades dos envolvidos de gerar diá-
pacitação e pesquisa permitiu a realização logos em reuniões conjuntas, mantendo a
de seminários e cursos, inclusive com Jaako comunicação aberta entre as partes, respei-
Seikkula, professor de psicoterapia do tando as vozes de todos os participantes, a
Departamento de Psicologia da University paciência de ouvir e de não tomar decisões
of Jyväskylä, que consistiu em uma aproxi- precipitadas, a capacidade de constantemen-
mação muito rica com o Diálogo Aberto. te enfatizar a situação familiar e as questões
Este artigo tem como objetivo apre- da vida cotidiana (SEIKKULA, 2003; BORG ET AL., 2009;
sentar o Diálogo Aberto em seus princí- ARNKIL; SEIKKULA, 2012).
pios e enquanto prática de saúde mental Nas primeiras iniciativas de reuniões

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 23-32, JAN-MAR 2017


26 KANTORSKI, L. P.; CARDANO, M.

abertas na Lapônia, esse espaço era simples- diálogo precisa criar uma linguagem em que
mente um fórum para organizar o tratamen- todas as vozes possam ser ouvidas, tanto a do
to, em vez de baseá-lo em ideias dialógicas. paciente quanto daqueles mais próximos a
No entanto, a partir do contato com os escri- ele (SEIKKULA, 2002; SEIKKULA; ARNKIL; ERIKSSON, 2003;
tos de Bakhtin, os profissionais perceberam SEIKKULA, 2008).
que o autor parecia descrever a mesma ex- Alguns estudos (SEIKKULA; ARNKIL; ERIKSSON,
periência em romances de Dostoiévski que 2003; SEIKKULA, 2008; HOLMESLAND ET AL., 2010; OLSON
aquelas vivenciadas nas reuniões polifôni- ET AL., 2012; SEIKKULA; LAITILA; ROBER, 2012; BORCHERS,
cas com os pacientes, as famílias e a equipe. 2014)ressaltam a importância da polifonia de
Havia sempre muitas vozes presentes nas vozes em abordagens dialógicas e terapias
reuniões, e, como evidencia Bakhtin, em uma familiares, no sentido de evidenciar a eficá-
reunião polifônica, a posição de cada partici- cia do dialogismo no tratamento de proble-
pante, especialmente do autor, muda radical- mas psicóticos, na depressão, e destacam
mente. O Diálogo Aberto reforça que a única a mudança do monólogo para o diálogo em
maneira de proceder é gerar o diálogo entre situações diversas. Reiteram que, no sistema
todas as vozes dos participantes, e, nessa po- psicossocial finlandês, essa questão implica a
lifonia, nenhuma voz pode ser mais impor- transformação dos papéis profissionais, além
tante do que a outra (BAKHTIN, 1997). do que, a equipe deve trabalhar com todos os
Conforme afirma Bakhtin (1997), o autor casos, incluindo os mais difíceis. Essa nova
de um romance polifônico não pode contro- situação aumenta nos profissionais o inte-
lar a ação dos personagens, e a única maneira resse por métodos que contribuam para a
de sobreviver é estar em diálogo com eles. Os resolução de situações complexas, incluindo
profissionais tinham um papel importante no a busca de cooperação ao longo das frontei-
tratamento, mas não podiam mais definir os ras e convidando pessoas da rede pessoal do
passos, os métodos, as intervenções para supri- paciente para participar da resolução de pro-
mir sintomas ou mudar o sistema familiar. Eles blemas, contribuindo para uma mudança de
passaram a integrar as vozes desse diálogo e paradigma.
essa construção conjunta (SEIKKULA, 2011). A partir de uma perspectiva dialógica, a
Na era da medicina baseada em evidên- resposta do terapeuta pode vir no sentido
cias, tudo isso soa muito radical, porque de um esforço para alargar a zona de desen-
desafia a ideia de que os terapeutas devem volvimento proximal (SEIKKULA; TRIMBLE, 2005).
escolher o método correto de tratamento A ideia de Vygotsky de zona de desenvol-
e centra-se na ideia de que o diagnóstico vimento proximal consiste no espaço me-
emerge do diálogo que ocorre em reuniões tafórico entre o estudante, que se esforça
conjuntas. O processo de entendimento, ou para aprender novas habilidades um pouco
seja, chegar a uma compreensão prática de além dos limites de sua capacidade atual, e
uma forma dialógica por todos os interessa- o professor, que, já tendo dominado as habi-
dos do que o paciente tem, do que aconteceu, lidades, oferece-se para apoiar o desenvol-
por si só, pode ser um processo muito tera- vimento das habilidades no aluno. No caso
pêutico (SEIKKULA, 2011). do Diálogo Aberto, a experiência da equipe
A abordagem dialógica visa a um processo oferece segurança ao paciente e aos membros
em que o paciente começa a desempenhar da rede para identificar suas habilidades em
um papel mais importante na determina- sustentar a conversa sobre as mais difíceis
ção de como proceder. Evidencia o risco experiências (SEIKKULA; TRIMBLE, 2005). O fato de
de negligenciar a fala da pessoa com um os membros da equipe não terem participa-
transtorno psicótico e não conseguir romper do dos eventos passados, e que moldaram
com seu isolamento, reforça que o próprio a atual crise, torna-os menos vulneráveis,

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Diálogo Aberto: a experiência finlandesa e suas contribuições 27

e isso, somado à experiência acumulada de rede social e equipe envolvida no problema,


outras situações, contribui para ofertar segu- que buscavam gerar o novo entendimen-
rança ao grupo e gerar diálogo. to através do diálogo. Em segundo lugar, o
Na fase inicial de tratamento, as decisões fornecimento dos princípios básicos para a
são adiadas em favor de expandir a conversa, organização de todo o sistema de tratamento
permitindo ao sistema tolerar a ambiguida- psiquiátrico na Lapônia com base no Diálogo
de, o que possibilita o surgimento de novas Aberto (SEIKKULA, 2011).
ideias para resolver o problema. O importan-
te no processo são as trocas emocionais. Um
ou mais membros da equipe podem condu- Estudos de avaliação de
zir a reunião, que deve ser iniciada com uma resultados das práticas de
questão aberta, partindo de informações que
eles podem ter sobre o problema e que devem
Diálogo Aberto
ser expressas em linguagem simples. O líder,
então, oferece uma pergunta aberta a quem Os estudos de resultados da aplicação do
gostaria de falar. A forma das perguntas não Diálogo Aberto em pacientes em primeira
é pré-planejada; cada próxima pergunta crise psicótica e em tratamento com esse
parte da resposta anterior, da repetição da método são estudos de follow up, em dois,
palavra, e se faz lentamente, assegurando o cinco e dez anos, incluindo grupos de con-
ritmo e o lugar de fala de cada participante. A trole (SEIKKULA ET AL., 2003; SEIKKULA ET AL., 2006;
reunião é concluída com uma síntese do que AALTONEN; SEIKKULA; LEHTINEN, 2011; SEIKKULA; ALAKARE;
foi discutido e das decisões tomadas (SEIKKULA; AALTONEN, 2011).
TRIMBLE, 2005). Os estudos demonstram que os pacientes
Para o desenvolvimento da prática dialó- que se utilizaram do Diálogo Aberto ficaram
gica, são elencados doze elementos-chave hospitalizados por menor número de dias,
tomados enquanto critérios de fidelidade que os psicofármacos foram utilizados em
para que se efetive o Diálogo Aberto: par- menor número de casos e que a maioria (82%)
ticipação de dois (ou mais) terapeutas na dos pacientes não tinha sintomas psicóticos
reunião; envolvimento da família e rede residuais em 2 anos (SEIKKULA ET AL., 2003).
social; usar perguntas abertas; responder No seguimento de 5 anos, constatou-se
às coisas ditas pelo paciente; enfatizar o que 86% retomaram os seus estudos ou
momento; solicitar múltiplos pontos de empregos em tempo integral; 17% recaíram
vista; usar o foco relacional no diálogo; res- durante os primeiros 2 anos e 19% durante
ponder aos problemas dialógicos e compor- os três anos seguintes; e que 29% fizeram uso
tamentais com um estilo concreto e atento de medicação neuroléptica durante alguma
aos significados; enfatizar as palavras usadas fase do tratamento (SEIKKULA ET AL., 2006).
pelo paciente e sua história, não os sintomas; Houve uma diminuição da incidência
a conversa entre profissionais (reflexões) anual média da esquizofrenia, sendo que o
deve ocorrer nas reuniões de tratamento; número de novos pacientes esquizofrênicos
ser transparente; tolerar a incerteza (OLSON; de longa permanência caiu para zero no con-
SEIKKULA; ZIEDONIS, 2014). texto estudado (AALTONEN; SEIKKULA; LEHTINEN, 2011).
O nome Diálogo Aberto foi usado pela Durante um período de dez anos, além
primeira vez em 1995, para descrever a abor- de surgirem menos pacientes esquizofrêni-
dagem à crise através do diálogo, engloban- cos, sua idade média foi significativamente
do a família inteira e o tratamento centrado menor, e mais de 70% dos pacientes não
na rede social. Isso incluiu dois aspectos: tiveram nenhum retorno. Esse resultado
primeiro, as reuniões com paciente, família, permaneceu o mesmo por um período de

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 23-32, JAN-MAR 2017


28 KANTORSKI, L. P.; CARDANO, M.

dez anos, envolvendo pacientes diferentes pessoa: as práticas de cuidado centradas na


(SEIKKULA; ALAKARE; AALTONEN, 2011). pessoa, planejadas nos Estados Unidos, e o
Os resultados das pesquisas de avaliação modelo finlandês do Diálogo Aberto, desta-
da experiência desenvolvida ao longo das cando seus resultados exitosos por manter o
últimas décadas na Finlândia comprovam foco no indivíduo (BORG ET AL., 2009).
a necessidade de dedicar tempo, trabalho A partir de uma crítica à falta de acesso
e estudos sobre o Diálogo Aberto. É impor- das pessoas nos Estados Unidos a trata-
tante reconhecer que o Diálogo Aberto tem mentos alternativos à prática padrão de
se mostrado potente no enfrentamento do tratamento da psicose, é feita uma revisão
problema de pessoas em crise psicótica, pro- narrativa do modelo de tratamento da
piciando um manejo mais adequado dos psi- psicose, adaptado às necessidades do pa-
cofármacos e contribuindo para a inserção ciente, e do Diálogo Aberto desenvolvido na
social dessas pessoas. Finlândia. A análise dos resultados de sete
pesquisas mostrou que os resultados do tra-
tamento com o Diálogo Aberto são equiva-
O diálogo aberto e suas lentes ou superiores àqueles do tratamento
contribuições para o mundo padrão. Particularmente, o Diálogo Aberto
foi associado a um melhor funcionamento
O Diálogo Aberto, nascido na Finlândia, e os social, a mais emprego, menos dias de hos-
impressionantes resultados obtidos no trata- pitalização e menos sintomas para pessoas
mento da psicose têm despertado o interes- com primeiro episódio de psicose. Estudos
se de outros países, como Estados Unidos, mais recentes apontam para uma associa-
Reino Unido, Itália, Polônia, Noruega, ção do Diálogo Aberto com poucos dias de
Bélgica, Austrália, entre outros. permanência no hospital, o que mostra uma
Retomam-se, a seguir, alguns estudos e evolução na abordagem e um certo refina-
relatos de experiências de pesquisadores mento dessa prática (GROMER, 2012).
de diversos países que fizeram um acompa- Outra pesquisadora da Bélgica fez um se-
nhamento das atividades do Diálogo Aberto guimento da experiência da Lapônia exami-
na Finlândia e vêm propondo formas de nando, também, a natureza do diálogo (OLSON
adesão a essa prática, reafirmando a efeti- ET AL., 2012). Em um outro estudo autoetnográfi-
vidade desse método e a necessidade de sua co, a pesquisadora descreve as mudanças de
replicabilidade. pensamento ligadas à sua experiência com o
Harlene Anderson, de Houston (Estados Diálogo Aberto, relacionando essa trajetória
Unidos), realizou um acompanhamento da à micropolítica dos Estados Unidos na gestão
experiência da Lapônia e relatou em seu de cuidados de saúde mental; à prática de
artigo que, na prática, esse trabalho represen- dialogicidade no Diálogo Aberto; e às mu-
ta um significativo desafio às crenças e tradi- danças históricas, culturais e científicas que
ções de psicoterapia e abordagens nucleares estão incentivando a adaptação do Diálogo
à psicose. Isso porque ele consiste em uma Aberto nos Estados Unidos. Menciona,
abordagem dialógica na qual o terapeuta deve ainda, a participação de Douglas Ziedonis,
respeitar e aprender sobre os pacientes e suas Jaakko Seikkula e Mary Olson na liderança
experiências e entendimentos, considerando de um projeto de pesquisa subvenciona-
que isto deve ter precedência sobre a compre- do sobre Diálogo Aberto do Departamento
ensão do terapeuta (ANDERSON, 2002). de Psiquiatria da Escola de Medicina da
Também, num estudo de pesquisadores Universidade de Massachusetts. Evidencia
da Noruega e dos Estados Unidos, são des- as iniciativas de treinamento de equipes em
critos dois modelos de cuidado centrados na cuidados comunitários que fazem parte de

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 23-32, JAN-MAR 2017


Diálogo Aberto: a experiência finlandesa e suas contribuições 29

novas iniciativas públicas experimentais, do acompanhamento, foram identificados


estruturadas prevendo avaliação dos resul- cinco programas, todos escandinavos: o
tados, demonstrando um interesse crescen- projeto Paraquedas, na Suécia; o projeto es-
te pelo Diálogo Aberto nos Estados Unidos quizofrenia Danish National, na Dinamarca;
(OLSON, 2015). o projeto Opus, também na Dinamarca;
No Sul da Noruega, entre 1998 e 2008, projeto Soteria Nacka, na Suécia; e o projeto
foram implementados três programas para Diálogo Aberto, na Finlândia. Os programas
a promoção do Diálogo Aberto na região, e mostraram resultados encorajadores em
Jaakko Seikkula participou de todos eles, termos de diminuição de recaídas, dimi-
quais sejam: 1) ensinando a base para abrir nuição do tempo de internação e redução
diálogos; 2) supervisionando clinicamente do uso de antipsicóticos, principalmente na
terapeutas locais e usuários de serviços de fase ativa. Porém, um período de tratamen-
saúde mental; 3) concepção de pesquisa e to de dois anos não é tempo suficiente para
projetos. Segundo a análise desses progra- permitir aos pacientes manter as melhorias
mas, os dez anos de implementação dessas obtidas durante a fase ativa de um tratamen-
práticas dialógicas no sul da Noruega produ- to integrado (SKALLI; NICOLE, 2011).
ziram resultados positivos relativos à execu- O Diálogo Aberto despertou o interesse
ção, à educação e ao aumento de pesquisas e da Austrália, país onde se investiu fortemen-
projetos sobre o tema (ULLAND ET AL., 2014). te em equipes de especialistas para inter-
No Reino Unido, o interesse pelo Diálogo venção na psicose, modelo que vem sendo
Aberto vem crescendo continuamente com questionado considerando-se as altas taxas
conferências e experiências pontuais de de consumo de psicofármacos por pessoas
pequena escala. Um movimento muito sig- diagnosticadas com psicoses e as altas taxas
nificativo começou para intervir nos ser- de mortalidade relacionadas a esse consumo.
viços no sentido de implantar o Diálogo Um artigo de revisão publicado na Austrália,
Aberto. Determinadas cidades, como Leeds em 2014, aponta resultados exitosos do tra-
e Nottingham, possuem grupos de usuários tamento com o Diálogo Aberto para inter-
e serviços capacitados no Diálogo Aberto, venção na crise psiquiátrica com o mínimo
que estão disponíveis para ensinar e esti- de uso de medicação antipsicótica e com
mular as pessoas a tal prática. Além disso, melhores respostas, sugerindo sua adoção
até sete serviços nacionais de saúde mental para realidades que precisam enfrentar tal
da Inglaterra estão estabelecendo equipes- problemática (LAKEMAN, 2014).
-piloto de Diálogo Aberto em cada um dos
seus territórios, a fim de participar conjunta-
mente de um estudo multicêntrico aleatório Conclusões
sobre o tema (RAZZAQUE; WOOD, 2015).
O Diálogo Aberto é apresentado por pes- Na Finlândia, na experiência de mais de
quisadores da Polônia como uma aborda- trinta anos do oeste da Lapônia, algumas es-
gem alternativa que pode contribuir para a colhas estratégicas foram adotadas visando
redução do uso de neurolépticos e consti- a assegurar a continuidade dos cuidados.
tuir-se como recurso complementar aos tra- Foram constituídos serviços de internação
tamentos usuais da esquizofrenia (KŁAPCIŃSKI; com 30 leitos psiquiátricos hospitalares
WOJTYNSKA; RYMASZEWSKA, 2015). de cuidados agudos e 5 clínicas ambulato-
Em um estudo de revisão sistemática des- riais onde o Diálogo Aberto é a filosofia de
crevendo diferentes serviços especializados prática, e, em cada unidade, equipes móveis
de tratamento de primeiro episódio psicóti- para atendimento à crise estão disponíveis.
co e seus resultados em diferentes momentos A maioria dos profissionais foi treinada (por

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30 KANTORSKI, L. P.; CARDANO, M.

cerca de três anos) em terapia familiar sistê- uma consistente mudança organizativa em
mica (BORG ET AL., 2009). termos de estruturação de serviços, com
O questionamento que necessita ser feito equipes para atenção à crise disponíveis 24
consiste nos desafios de colocar em prática em horas, garantia de continuidade psicológi-
outros países uma abordagem desinstituciona- ca, tolerância à incerteza, protelamento do
lizante que tem enfrentado com êxito o grave uso de neurolépticos, um criterioso proces-
problema de pessoas em crise psicótica no so de capacitação das equipes, entre outras
seu domicílio, com o princípio do diálogo e da iniciativas. Além disso, torna-se indispen-
atenção em rede. Ao mesmo tempo, esse novo sável uma substantiva mudança cultural,
método propõe uma mudança significativa, que implica rever seriamente as relações
ao fazê-lo de modo que nenhuma decisão seja de poder entre os profissionais da equipe e
tomada sem a participação do paciente e sua destes com pacientes e familiares. Respostas
rede, reduzindo o consumo de psicofármacos e efetivas a problemas complexos, como é o
obtendo resultados muito promissores. caso de pessoas em crise psicótica, dificil-
Destaca-se que implementar o Diálogo mente podem ser dadas sem que mudanças
Aberto consiste num desafio que requer significativas sejam feitas. s

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Recebido para publicação em outubro de 2016
1998-2008. Adm Policy Ment Health, Nova York, v. 41, p. Versão final em março de 2017
Conflito de interesses: inexistente
410-419, 2014.
Suporte financeiro: Projeto financiado pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – processo nº
6458/2014-09

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ENSAIO | ESSAY 33

Subsídios para a construção de projetos em


pesquisa social: reflexões epistemológicas e
metodológicas
Input and concepts for building social research projects: Reflections
through epistemology and methodology

Fernando Manuel Bessa Fernandes1, Marcelo Rasga Moreira2, Pablo Dias Fortes3

RESUMO O artigo dirige-se a alunos, docentes e pesquisadores. Visa a contribuir para o debate
sobre construção e desenvolvimento de projetos de pesquisa, a partir da experiência profis-
sional dos autores na docência da disciplina Metodologia em Pesquisa Social, do Programa de
Pós-Graduação em Saúde Pública do DCS/Ensp/Fiocruz (Departamento de Ciências Sociais
da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz). Busca-se re-
fletir sobre questões comuns, como: O que são ‘projeto de pesquisa’, ‘metodologia’, ‘método’,
‘objeto’, ‘objetivos’, ‘técnicas’? Como superar a recorrente confusão que se faz entre essas pa-
lavras, que gera problemas na construção de projetos? Como pensar as relações entre tais
conceitos no processo de construção de um projeto de pesquisa e durante a sua execução?

PALAVRAS-CHAVE Conhecimento. Metodologia. Projetos de pesquisa.

ABSTRACT This paper is written to students, university teachers, and researchers. It aims to
contribute to the debate on construction and development of research projects, based on the
1 Fundação Oswaldo authors’ professional experience in teaching the discipline of Methodology in Social Research,
Cruz (Fiocruz), Escola
Nacional de Saúde Pública in the Postgraduate Public Health Program of the Social Sciences Department of the Sergio
Sergio Arouca (Ensp), Arouca National School of Public Health, of the Oswaldo Cruz Foundation (DCS/Ensp/Fiocruz).
Departamento de Ciências
Sociais (DCS) – Rio de The aim is to reflect on common issues, such as: What are ‘research projects’, ‘methodology’,
Janeiro (RJ), Brasil. ‘method’, ‘object’, ‘objectives’, ‘techniques’? How to overcome the recurring confusion that takes
fernando.bessa@ensp.
fiocruz.br place between these words, which creates problems in construction of projects? How to think of
2 Fundação Oswaldo
the relationships between such concepts in the process of construction of a research project and
Cruz (Fiocruz), Escola during its execution?
Nacional de Saúde Pública
Sergio Arouca (Ensp),
Departamento de Ciências KEYWORDS Knowledge. Methodology. Research design.
Sociais (DCS) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.
rasga@ensp.fiocruz.br

3 Fundação Oswaldo
Cruz (Fiocruz), Escola
Nacional de Saúde Pública
Sergio Arouca (Ensp),
Departamento de Ciências
Sociais (DCS) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.
pdiasfortes@gmail.com

DOI: 10.1590/0103-1104201711204 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 33-48, JAN-MAR 2017
34 FERNANDES, F. M. B.; MOREIRA, M. R.; FORTES, P. D.

Introdução GALERA, 2007; GOLDENBERG, 2007; KUHN, 1995; LIMA;


MIOTO, 2007; MANN, 1970; MINAYO, 1998; OLIVEIRA; EPSTEIN,
O real nunca é ‘o que se poderia achar’, 2009; RICHARDSON, 1999; SALOMON, 2006; SANTOS, 2003).
mas é sempre o que se deveria ter Essas, sem dúvida, são questões pertinentes
pensado… e válidas, merecedoras de discussão perma-
Diante do real, aquilo que cremos saber nente, daí o motivo deste artigo.
com clareza
ofusca o que deveríamos saber.
Gaston Bachelard A pesquisa como um
processo – considerações
O artigo dirige-se a alunos, docentes e pes-
quisadores das Ciências Sociais e Humanas,
teóricas sobre a construção
primordialmente, da área da saúde coletiva, de projetos em pesquisa
e tem por objetivo contribuir, com subsídios social
tanto teórico-metodológicos quanto prá-
tico-instrumentais, para a qualificação do Entre os alunos de pós-graduação em saúde
debate sobre construção e desenvolvimento pública com os quais temos trabalhado,
de projetos em pesquisa social, tais como em geral, percebe-se insegurança frente a
monografias de graduação e/ou trabalhos questões de ordem teórica e prática no que
de conclusão de curso, assim como disserta- concerne a elaborarem projetos. O temor ao
ções, teses e projetos de pesquisa em geral. ‘erro’, ‘fracasso’ ou ‘incorreção’ pode gerar
O artigo surge de reflexões epistemo- e, ao mesmo tempo, ser gerado por um sen-
lógicas dos autores, no âmbito das ati- timento de inferioridade e incapacidade ao
vidades de orientação e de docência na idealizarem e operacionalizarem seus pro-
disciplina Metodologia em Pesquisa Social, jetos, se não seguirem à risca um ‘gabarito’,
do Programa de Pós-Graduação em Saúde ‘receita de bolo’, ‘guia’ ou ‘manual’ descre-
Pública do Departamento de Ciências Sociais vendo ações padronizadas sobre como fazer
da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio pesquisa, com chancela científica.
Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz (DCS/ Esse sentimento, muitas vezes, cristaliza-se
Ensp/Fiocruz), nas modalidades stricto e a partir de uma visão sobre a organização,
lato sensu. elaboração, formatação e divulgação de tra-
Nota-se que afloram, com regularidade, balhos de pesquisa que postula e mitifica os
dúvidas e dificuldades de compreensão dos métodos, as técnicas e a própria atividade
alunos sobre questões, tais como: o que se científica como mecanicamente objetivos,
deve articular num projeto de pesquisa? O impessoais e assépticos, ou seja, automatica-
que são ‘metodologia’, ‘método’, ‘objeto’, mente padronizados e ‘neutros’ a priori.
‘objetivos’, ‘técnicas’? Como superar a re- Essa forma de pensamento tende a esva-
corrente confusão que se faz entre essas ziar o caráter político e simbólico-cultural
palavras, que gera problemas na construção inerente aos protagonistas e procedimentos
de projetos? Como pensar as relações entre da ciência, assim como de suas implicações.
esses conceitos no processo de construção Tal caráter passa a ser visto como natu-
de um projeto de pesquisa e durante a sua ralmente estanque e relacionado à passio-
execução? Para dar conta dessas preocu- nalidade, irracionalidade e subjetividade,
pações mais diretas, ao longo do tempo, tomado como indesejado por supostamente
textos têm sido elaborados (BACHELARD, 2002; carecer de precisão, confiabilidade e con-
CONTANDRIOPOULOS ET AL., 1994; DEMO, 1987; ECO, 1986; cretude objetiva, características comumente
QUIVY; COMPENHOUDT, 1992; FERNANDES; MOREIRA, 2013; associadas à prática científica.

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Subsídios para a construção de projetos em pesquisa social: reflexões epistemológicas e metodológicas 35

Tal visão, levada ao extremo, implica mundo, assim como as questões tanto uni-
uma abordagem estruturada com o efeito versais quanto particulares e íntimas que
limitado e limitador de medir e traduzir afligem a todos, enfim, para se conhecer a
em números, equações e relações estatísti- vida em si – individual e coletiva. É possível
cas, em um determinado intervalo espaço- citar: arte, ciência, filosofia, religião, pensa-
-tempo, a polissemia e a plasticidade dos mento mágico e senso comum, basilar em
problemas que povoam as realidades a relação a todas as outras formas. Todas com-
serem estudadas e dos atores que as viven- partilham o fato de serem leituras possíveis
ciam, num movimento de matematização do do que compreendemos por realidade, que,
real. Contingencialmente, nesse movimento, constantemente e ao mesmo tempo, criam,
fica nublado o fato de que a pesquisa social destroem, recriam, modificam e transfor-
lida, em primeira e última instância, com mam realidades.
seres humanos, de carne, osso, emoções e Não entrando no mérito e nas minúcias
sentimentos, plásticos em essência, aparên- de cada uma dessas formas, pode-se afirmar
cia e valor (ALVES, 2005; CRUZ NETO, 1998; FERNANDES; que todas possuem alguma estruturação
MOREIRA, 2013; MINAYO, 1998; MINAYO; SANCHES, 1993). sistêmica e essência especulativa e reflexi-
Por outro lado, também é fato que, com va, o que lhes dá a competência de atribuir
vigor, na área da saúde, a importância e a sentido e significado à chamada realidade. E,
utilidade dos recursos teórico-práticos das mais ainda, todas convivem de maneira nada
ciências sociais têm se destacado, entre os isolada ou indiferente umas com relação às
quais, aqueles oriundos da antropologia, outras (ALVES, 2005; CRUZ NETO, 1998; MINAYO, 1998;
ciência política, história, direito, filosofia, MINAYO; SANCHES, 1993).
administração, economia etc. Daí ser preciso No decorrer do processo histórico, perce-
cada vez mais subsidiar os interessados, no be-se que os adeptos mais aguerridos de uma
sentido de aprofundarem e articularem suas ou outra dessas formas têm buscado alcançar
reflexões acerca da elaboração e da estru- destaque, na tentativa de afirmar e consolidar,
turação de seus projetos de pesquisa, com- para sua visão de mundo, o status de melhor
binando saberes e práticas (ALVES, 2005; COSTA, ou única e correta maneira de lidar com a rea-
2002; DESLANDES, 1997; FERNANDES; MOREIRA, 2013; LIMA; lidade. Tal interação configura uma constante
MIOTO, 2007; MINAYO; SANCHES, 1993; RICHARDSON, 1999; disputa por hegemonia, com afastamentos,
SERAPIONI, 200; TEIXEIRA, 2004). alianças e aproximações. Sabe-se que, muito
Nesse movimento de aprofundamento, embora essa interação possa provocar con-
torna-se, por vezes, pertinente dar um passo frontos retóricos ou mesmo mais diretos,
atrás, a fim de que seja possível avançar dois a disputa por hegemonia não compreende,
passos à frente. Essa frase de Lênin, que tão necessariamente, a aniquilação total de uma
bem ilustra o fluxo não linear de nosso pen- forma de ver o mundo por outra.
samento, adequa-se aos propósitos e ao es- Uma forma de compreender o mundo (e,
pírito deste artigo e traduz a necessidade de portanto, de exercer poder sobre ele e, em
se fazer algumas breves considerações sobre última análise, de controlá-lo) hegemoniza-se
as várias formas de compreensão do mundo quando consegue instaurar uma situação de
produzidas pelos seres humanos e, especifi- aceitação tácita de seus valores, universalizan-
camente, sobre ciência – tão presente na vida do-os e não demandando obrigatoriamente o
cotidiana destes dias que correm. uso da coerção física e da força bruta.
Ao longo da história, várias formas de Entretanto, observa-se que, reiteradas
pensamento humano foram desenvolvi- vezes, ao longo da História, têm sido e são,
das para conhecer, interpretar, entender, mesmo em dias atuais e em sociedades tidas
compreender, assimilar, explicar e definir o como progressistas, recorrentes episódios

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36 FERNANDES, F. M. B.; MOREIRA, M. R.; FORTES, P. D.

tais como perseguições, constrangimentos e natureza/cultura: nas ciências naturais,


atos de intolerância dos mais diversos tipos e objetos concretos e mensuráveis, perten-
gerados pelas mais variadas causas. centes à natureza; nas ciências humanas,
Só que um mesmo indivíduo carrega objetos abstratos, portanto, imponderáveis
em seu arcabouço cognitivo um potencial e subjetivos, relacionados aos seres e às re-
latente de protagonizar cada uma dessas lações humanas. Interessante notar que essa
formas de ver o mundo, dependendo de sua distinção postula que o que é humano estaria
formação – o fato de alguém ser cientista apartado da natureza, como se fossem opos-
não implica unidimensionalidade, podendo tamente estanques ‘naturalmente’...
essa pessoa se expressar, também, por meio Assim como nas ciências ditas naturais,
da arte, por exemplo. As fronteiras entre as nas humanas, mais especificamente, nas ci-
formas são arbitrárias, fluidas, permeáveis. ências sociais, também ocorre disputa por
Isto posto, na intenção de fundamentar as hegemonia, visível pelo embate entre as va-
reflexões e para que se possa pensar sobre a riadas correntes ou escolas de pensamento:
construção de projetos de pesquisa, cabe fo- marxismo ou materialismo histórico/dialéti-
calizar a atenção em alguns aspectos sobre a co, positivismo, fenomenologia etc. e os arti-
discussão envolvendo o que se convenciona fícios procedimentais por elas desenvolvidos
denominar ciência, sem menosprezo pelas para lidar com a realidade.
outras formas de compreender o mundo. Compreende-se, aqui, realidade não como
A ciência – cuja raiz etimológica deriva do sinônimo de real. Na verdade, essa é uma
latim scire, significando conhecimento, saber, questão metafísica e ontológica crucial da
sabedoria – não é a única nem a melhor forma filosofia ao longo dos séculos, e o presente
de compreensão do mundo. Caracteriza-se artigo não poderia ter a pretensão de re-
por propor e enfrentar problemas palpáveis e solvê-la. Mas, para efeito de definição e em
cotidianos e projetar suas soluções, lançando atenção a fins expositivos, real seria tudo que
mão de teorias, métodos e técnicas sistema- compõe o mundo, seja de ordem concreta ou
tizadas para tal. Diferentemente das outras abstrata, cuja compreensão em sua totalida-
formas de compreensão do mundo, a ciência de é vedada ao conhecimento humano, posto
retroalimenta-se ao produzir conhecimento que este está impedido de apresentar o atri-
dinâmico e replicável, gerando concretude buto da onisciência. Assim, para fins deste
em seus resultados voltados para os interes- artigo, a realidade, ou, melhor dizendo, as
ses das sociedades, formando-as, informan- possíveis realidades, seriam aproximações
do-as e re-formando-as por conta de sua ou representações que os seres humanos
capacidade intrínseca de efetuar verdadeiras fazem do real, construídas a partir dos
‘profecias autorrealizáveis’ (ALVES, 2005; COLLET; olhares adotados.
ROZENDO, 2001; KUHN, 1995; OLIVA, 2003; SALOMON, 2006; Esse entendimento auxilia na dessacra-
SANTOS, 2003). lização e desmitificação da ideia clássica
É interessante notar que, mesmo entre de ciência, pois permite perceber que ela
os cientistas – assim como em cada uma das é – como toda produção humana – parcial,
outras formas de ver o mundo –, o proces- limitada, polissêmica; enfim, não está isenta
so de disputa por hegemonia também se faz de historicidade, de cultura, de relações de
presente. Essa disputa aparece, por exemplo, poder, de dominação política e de direciona-
na clássica divisão entre as ciências naturais mento ideológico.
ou da natureza (chamadas de ‘duras’ ou ‘hard Muito pelo contrário, observa-se que
sciences’) e as ciências humanas, (‘leves’ ou mesmo os que advogam e propõem a ob-
‘soft sciences’), divisão que espelha a dis- jetividade e a neutralidade axiológica do
tinção de objetos de estudo e a dicotomia fazer científico não escapam das injunções

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Subsídios para a construção de projetos em pesquisa social: reflexões epistemológicas e metodológicas 37

advindas da natureza humana, plasmada no rígida e mecanicamente seguido: “A ciência


viver em sociedade. Esse é um lembrete por reclama pessoas flexíveis e inventivas e não
vezes negligenciado por todos os que vivem rígidos imitadores de padrões de comporta-
na, da e pela ciência. mento estabelecidos” (FEYERABEND, 2007, P. 221).
Contudo, há de se ter cuidado para não se De fato, no processo da pesquisa, a adoção
adotar posturas maniqueístas e demonizado- de postura simultaneamente cautelosa e
ras da ciência, atribuindo um peso exagerado criativa por parte do pesquisador tende a
a seus problemas, dificuldades, limitações, produzir preciosas narrativas e conhecimen-
incapacidades de explicação e vinculações tos relevantes e inovadores.
político-ideológico-econômicas atuantes Ao anunciar novidade, o pesquisador
em seus usos e abusos. Assim como toda e gera e movimenta debate, posto que outros
qualquer outra visão de mundo, a ciência, na também estão pesquisando, com outros
qualidade de ação humana, demanda ser hu- instrumentais teóricos e práticos, direcio-
manizada e humanizadora. namentos e propósitos. Do debate, surgem
E parece ser acertado notar que a humani- novas demandas, que os obrigam a reiniciar
zação da ciência inexoravelmente passa pela ciclos de pesquisa, buscando conhecer outros
consciência de que suas atividades típicas de aspectos e realidades, e anunciando-os nova-
ensino e pesquisa são expressões da humani- mente, mantendo o ciclo em espiralado movi-
dade, tanto dos que são quanto dos que não mento, indefinidamente.
são cientistas, conforme afirma Paulo Freire Adotar uma ideia dogmática de verdade
(1996, P. 32): tornaria o trabalho do pesquisador nada in-
quietante, admitindo-se a inquietação – apa-
Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem rentada da curiosidade – como a centelha
ensino... Ensino porque busco... Pesquiso para que inflama a vontade de saber. Pistas adi-
constatar, constatando, intervenho, intervin- cionais sobre o papel da inquietação estão
do educo e me educo. Pesquiso para conhe- numa das possíveis definições de pesquisa:
cer o que ainda não conheço e comunicar ou
anunciar a novidade. [...] processo no qual o pesquisador tem uma
atitude e uma prática teórica de constante
Nesse contexto se produz ciência, com o busca que define um processo intrinsecamen-
adendo de que o pesquisador, ao pesquisar, te inacabado e permanente, pois realiza uma
também coloca em xeque o que já conhece: atividade de aproximações sucessivas da rea-
nas palavras de Karl Popper, “A solução con- lidade, sendo que esta apresenta ‘uma carga
siste em perceber que todos podemos errar, histórica’ e reflete posições frente à realidade.
individual ou coletivamente, e que erramos (LIMA; MIOTO, 2007, P. 23).
com frequência...” (1994, P. 51).
A ciência constrói seu caminho, faz-se, E para que o trabalho do pesquisador seja
cresce e afirma-se como uma visão e, satisfatório no desenrolar de seu caminho,
também, como uma explicação de mundo, ações, estratégias e ferramentas demandam
ao infundir e participar do debate entre as ser imaginadas, planejadas, desenvolvidas,
diferentes visões e acerca de seus próprios concretizadas, refletidas, submetidas a teste
procedimentos. Nem melhor, nem pior que o e questionadas. Pesquisar é preciso. Porém,
pensamento religioso, por exemplo. Porém, pesquisar também é impreciso! E pesquisar
diferente, e é nessa diferença que o cientista- é estudar!
-pesquisador deve trabalhar, consciente de Não é gratuito notar que estudo é um si-
que fazer ciência não implica o cumprimento nônimo para investigação e também para
de um percurso pré-formatado que deve ser pesquisa, vocábulo esse que, em inglês, é

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38 FERNANDES, F. M. B.; MOREIRA, M. R.; FORTES, P. D.

research, e, em francês, recherche. Ambos seus pares e com a sociedade em geral por
vêm, respectivamente, das palavras search meio de palavras, ou seja, utilizando-se da
e cherche, significando a ideia de busca. E linguagem como meio e ferramenta, ainda
nessas palavras, identifica-se a raiz france- que limitada pelas barreiras e dificuldades
sa cher – querido, ou seja, algo que se quer. intersubjetivas de expressão e difusão.
Num projeto de pesquisa, portanto, é funda- Talvez uma boa metáfora seja a ideia fi-
mental a estruturação clara acerca do que, do gurativa de um mapa elaborado pelo pes-
por que, do como e do para que se busca. quisador, que pode ajudar a entender tanto
particularidades quanto generalidades, auxi-
liando em direção a um melhor entendimento
A pesquisa como um de um dos múltiplos aspectos da complexida-
processo – considerações de do assim chamado mundo real.
Contudo, tomados todos os cuidados, não
conceituais fundamentais pode ser esquecido que o modelo explica-
para a construção de tivo elaborado não se confunde com aquilo
projetos em pesquisa social que se chama de real nem com o que aqui
se chama realidade. Metáforas podem ser
Marx, tanto em sua análise sobre o cotidia- eficientes, mas são imperfeitas: o mapa não
no quanto em sua reflexão metodológica, é o território (KORZYBSKI, 1994); antes, é uma
afirmava que os indivíduos são capazes de imperfeita tradução do território. Mas con-
construir seus próprios caminhos, a partir figura-se num modelo.
da estrutura econômica, histórica, política e Neste sentido, ‘modelo explicativo’ pode
social em que se encontram, vivem e pesqui- ser entendido como uma tentativa de re-
sam. Daí ser preciso estudar essa estrutura e presentação da realidade, relacionada a um
conhecê-la, para que se possa nela intervir e corpus teórico, ou seja, a uma teoria. Esta
transformá-la. pode ser entendida como sendo um conjunto
Logo, os interessados em efetuar uma de conceitos, definições, categorias e propo-
pesquisa, ao construir seu caminho, devem sições sistematicamente inter-relacionados
buscar evitar o que seria um equívoco: des- para explicar a realidade. A diferenciação
denhar das teorias e reflexões metodológicas ocorre na medida em que a teoria é marcada
existentes ou cair na arrogância de querer pelo caráter eminentemente explicativo, ao
impor seu raciocínio como o melhor ou o passo que o modelo distingue-se, também,
correto. Os caminhos percorridos não serão pelo caráter representativo, podendo tanto
os mesmos, mas as experiências vivenciadas subsidiar a elaboração de uma teoria quanto
por outros podem (e devem) ser aproveita- potencializar o entendimento dos conceitos
das, se não para serem replicadas, para serem de uma teoria.
debatidas. Logo, espera-se que o pesquisador No processo de pesquisa, compreende-se
esteja disposto a investigar, analisar e pro- método pelo caminho traçado e percorrido
mover o debate, fazendo contribuições para pelo pesquisador para se atingir objetivos na
o desenvolvimento do conhecimento com sua prática, e chega-se ao entendimento de
observância de uma postura ética e voltado que o caráter científico de uma atividade in-
para o bem-estar coletivo. vestigativa, entre outros requisitos, não pode
Fundamentalmente, a maneira do pesqui- prescindir da indagação voltada para as pró-
sador observar, captar, compreender, sentir prias ações e pensamentos que engendram o
e explorar o mundo faz com que se estabe- método utilizado. Daí compreende-se meto-
leçam quadros ou modelos explicativos e dologia, ou seja, o estudo do método, consis-
elabore interpretações compartilhadas com tindo em conhecimento de segunda ordem

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Subsídios para a construção de projetos em pesquisa social: reflexões epistemológicas e metodológicas 39

e de natureza epistemológica, um conheci- teoria com a qual se trabalha e que subsidiam o


mento sobre o conhecimento, metaconheci- raciocínio hipotético, a definição do objeto, as
mento nascido e plasmado na reflexão sobre técnicas que operacionalizam o cumprimento
o caminho dos pesquisadores no exercício dos objetivos da pesquisa, o uso da criativida-
de sua forma de visão/explicação do mundo de e a observância dos princípios éticos ins-
(ALVES, 2005; BACHELARD, 2002; MORIN, 2005; OLIVA, 2003; tituídos. A seguir, na figura 1, observa-se um
SALOMON, 2006). esquema que busca ilustrar panoramicamen-
Pode-se dizer que o caminho do pesquisa- te o processo de pesquisa, contextualizando
dor, ou seja, o método, possui dimensões: os os seus elementos componentes no que con-
conceitos e categorias que fundamentam a cebemos como real e realidade:

Figura 1: Esquematização dos componentes do processo de pesquisa

Real

Realidade

Ética Método Criatividade

Objetivo
Campo geral

Situação Raciocínio Metodologia


problema hipotético

Objetivos
Teoria específicos

Fontes Objeto Técnicas

Fonte: Elaboração própria.


Nota: A Situação-Problema, a Teoria e o Raciocínio Hipotético compõem o Modelo Explicativo.

Se toda caminhada começa com um pri- da realidade como uma ‘situação-problema’,


meiro passo, haveria, portanto, um ponto de algo que o afeta, demanda e propicia oportu-
partida para esse caminhar do pesquisador? nidade de realizar um estudo. Os problemas
Onde começaria seu trabalho? Seria a partir que interessam ao pesquisador não estão
da realidade experienciada no seu dia a dia? dados pela natureza, já prontos e acabados
Seria a partir das reflexões, percepções, para serem coletados, sistematizados, inter-
observações, sentimentos, ideias e pré-con- pretados, descritos, analisados, explicados.
ceitos do próprio pesquisador? Ou seria na Eles derivam da correlação entre a concep-
relação entre ambos? ção de mundo e a realidade vivenciada pelo
De fato, é exatamente essa relação que faz pesquisador via pesquisa, e, inclusive, não
com que o pesquisador encare algum aspecto pode ser isenta de prazer:

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40 FERNANDES, F. M. B.; MOREIRA, M. R.; FORTES, P. D.

La investigación tiene que suscitar placer, pesquisador procurar promover o diálogo


tiene que ser placer. Uno no puede entender desses autores entre si e deles consigo, a
que alguien estudie o investigue algo que no fim de formar e enriquecer suas próprias
le gusta o que no le agrada, aunque casos se concepções.
ven. (ROZO, 2007, P. 98). Avançando na busca dos elementos que
serão fundamentais para dar conta dos objeti-
Ter que lidar com uma situação-problema vos e situar o que será estudado, torna-se ne-
significa, também, que o que é considerado cessário procurar, identificar e acessar fontes
problema, para alguns, pode não ser para de informação, divididas em dois tipos, lem-
outros, pois não há garantias de que a mesma brando que se trata de pesquisa social: fontes
situação seja encarada como um problema primárias, constituídas pelas pessoas que
por duas ou mais pessoas diferentes. Só que transmitem a informação para o pesquisador
o modo de se pensar e de se propor tentar en- em primeira mão, ou seja, cuja informação
contrar possíveis soluções para esse proble- ainda não foi transmitida e/ou sistematizada,
ma é fundamental para lhe conferir caráter permanecendo em estado bruto no raciocínio
científico – cientificidade. e na emoção daquele(s) indivíduo(s) que as
A situação-problema está inscrita num veicula(m); e fontes secundárias, constituin-
tema, dentro do contexto profissional e so- do bancos de dados, livros, atas, boletins de
ciocultural do pesquisador, por conta da ocorrência, censos, estatísticas, prontuários
empatia e da ênfase que ele tem com um médicos, registros audiovisuais, textos di-
determinado assunto, e geralmente já ex- gitais ou documentos em geral, nos quais as
plorado por outros autores. O movimento de informações já estão registradas e sistema-
escolha do tema protagonizado pelo pesqui- tizadas. Fala-se em fontes secundárias não
sador equivale a delimitar a grande área do em sentido pejorativo, por fornecerem infor-
conhecimento de interesse a ser pesquisada: mações inferiores, mas, sim, por fornecerem
informações que já foram transmitidas e/ou
Fazer uma tese significa, pois, aprender a por submetidas a um processo de sistematização,
ordem nas próprias idéias e ordenar os dados: mesmo que simples.
é uma experiência de trabalho metódico; quer O pesquisador não tem como se abster,
dizer, construir um ‘objeto’ que, como princí- portanto, de buscar as fontes onde elas
pio, possa também servir aos outros. Assim, estão: no ‘campo de pesquisa’, conceito esse
não importa tanto o tema da tese quanto a pelo qual compreende-se uma construção
experiência de trabalho que ela comporta [...] intelectual do pesquisador, que, partindo
embora seja melhor fazer uma tese sobre um da realidade, situa o objeto, os objetivos, as
tema que nos agrade, ele é secundário com técnicas e os sujeitos a serem investigados,
respeito ao método de trabalho e à experiên- pertencentes ao processo da pesquisa. No
cia daí advinda. Ainda mais: trabalhando-se que tange à pesquisa social:
bem, não existe tema que seja verdadeira-
mente estúpido. Conclusões úteis podem ser Concebemos campo de pesquisa como o re-
extraídas de um tema aparentemente remoto corte que o pesquisador faz em termos de
ou periférico. (ECO, 1986, P. 5). espaço, representando uma realidade empí-
rica a ser estudada a partir das concepções
Toda pesquisa demanda um projeto, e, teóricas que fundamentam o objeto da inves-
nele, quando o pesquisador realiza o levan- tigação [...] Além do recorte espacial, em se
tamento de base teórico-conceitual, está tratando de pesquisa social, o lugar primor-
lidando com as ideias de autores que já dial é ocupado pelas pessoas e grupos con-
trabalharam o tema. Cabe, desta forma, ao vivendo numa dinâmica de interação social.

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Subsídios para a construção de projetos em pesquisa social: reflexões epistemológicas e metodológicas 41

Essas pessoas e esses grupos são os sujeitos de abordagem. É preciso, portanto, adequar
de uma determinada história a ser investiga- a situação-problema às demandas da pesqui-
da, sendo necessária uma construção teórica sa, por intermédio de um exercício metodo-
para transformá-los em objetos de estudo. lógico. Trata-se de um processo chamado de
(CRUZ NETO, 1998, P. 53-54). ‘recorte’ do objeto, compreendido como um
constructo ou uma construção analítica, por-
O campo não é ‘a realidade’: é uma cons- tanto, algo que não se confunde à realidade
trução mental de leitura de uma realidade em si, mas que é essencial para que se possa
elaborada pelo pesquisador no qual ele, ne- estudá-la.
cessariamente, faz um recorte redutor dela, Posto que a situação-problema não está
instruída pela teoria e matizada por seus ob- solta ou descolada de qualquer realidade, ela
jetivos de pesquisa: se insere no campo, o qual corresponde, em
termos empíricos, ao recorte teórico definido
A compreensão desse espaço da pesquisa pelo pesquisador. Assim, o modelo mental de
não se resolve apenas por meio de um domí- leitura da realidade construído, necessaria-
nio técnico. É preciso que tenhamos uma base mente, é um recorte, uma redução, por parte
teórica para podermos olhar os dados dentro do pesquisador, matizada por seus objetivos
de um quadro de referências que nos permite de pesquisa e que se materializa num espaço
ir além do que simplesmente nos está sendo geográfico e numa temporalidade delimita-
mostrado. (CRUZ NETO, 1998, P. 61). dos, mas que também apresenta um plano
abstrato no que tange à delimitação teórica.
Nesse processo, o pesquisador insere-se e O pesquisador elabora e demarca o pro-
lida com três dimensões: 1) o espaço concre- blema, isto é, as relações inerentes à situação
to onde os sujeitos que integram a realidade daquela dada realidade que lhe despertou
da pesquisa travam as relações que interes- a atenção. E, para iniciar a busca de uma
sam aos objetivos da pesquisa; 2) o tempo forma de explicação e análise do problema,
histórico em que os sujeitos convivem nesse formula uma pergunta, por alguns autores
espaço; e 3) as próprias relações sociais que também chamada de ‘questão norteadora’, de
se engendram entre os sujeitos nesse tempo maneira a não se ter respostas simples como
e nesse espaço. ‘sim’ e ‘não’. Isso se justifica pelo fato de que
Imperativos éticos estabelecidos referen- se é formulada uma questão cuja resposta é,
tes ao estudo relacionado a seres humanos de antemão, categórica, a pertinência de um
devem ser seguidos, sendo necessários alguns estudo, nesse caso, ficaria comprometida,
cuidados: o envolvimento compreensivo por pois esse tipo de resposta imediata atende à
parte de todos os envolvidos, incluindo, prin- pergunta, porém, não explica o problema.
cipalmente, o pesquisador; a apresentação da A essa altura, paralelamente à configu-
proposta de estudo aos grupos envolvidos; a ração da situação-problema, cabe indagar:
garantia de que eles não são obrigados a uma o que é relevante para ser demonstrado na
colaboração sob pressão, e outros (CRUZ NETO, pesquisa? O que, na área temática e pro-
1998, P. 55). Os princípios éticos em pesquisa en- fissional, é relevante apresentar? O que se
volvendo seres humanos podem ser acessa- precisa saber sobre aquele tema e aquele
dos no sítio eletrônico da Comissão Nacional objeto específico? E, finalmente, por que se
de Ética em Pesquisa (BRASIL, 2017) do Conselho deve estudar o que se propõe? A esse ‘por
Nacional de Saúde. que’ corresponde a justificativa da pesquisa.
De início, o problema detectado numa O processo de delimitação ou recorte do
determinada situação é geralmente extenso, objeto, portanto, é facilitado e realiza-se
com múltiplas facetas e amplas possibilidades de maneira pragmática, por intermédio do

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42 FERNANDES, F. M. B.; MOREIRA, M. R.; FORTES, P. D.

emprego das locuções ‘por que?’, ‘que?’ e O raciocínio hipotético contém, a partir
‘para que?’. Esse recorte demanda investi- da questão norteadora, a afirmação categóri-
mento teórico, ou seja, o estudo e o domínio ca inicial do pesquisador, também chamada
da teoria acerca do tema no qual a situação- de hipótese, ou seja, uma pré-solução da
-problema se insere. Tanto o pragmatismo situação-problema, que pode vir a ser con-
quanto o investimento teórico estão, conse- firmada ou não, ao ser submetida a teste por
quentemente, em movimento dialético, quer intermédio da pesquisa.
dizer, em constante interação, contraposição Esse conjunto de reflexões (sobre situ-
e composição de ideias. Com o recorte, o ação-problema, objeto, objeto, raciocínio
objeto da pesquisa – ou seja, o que se quer hipotético/hipótese) torna-se o primeiro
estudar – vai tomando contornos nítidos, e o esboço de modelo explicativo e que compele
modelo mental de leitura de um aspecto da o pesquisador a confrontá-lo com a realida-
realidade do pesquisador, paulatinamente, de. Não convém que tal processo seja presi-
institui-se como modelo descritivo, explica- dido por uma atitude que vise a corroborar
tivo e analítico. seu modelo e seus raciocínios hipotéticos a
Há de se atentar para o fato de que ‘objeto’ qualquer custo. Certamente, é um equívoco
é expressão caudatária da terminologia das se o pesquisador busca forçar a realidade ou
ciências naturais. Em situações que envol- os fatos para que respondam às respostas de-
vam diretamente seres humanos, é necessá- sejadas às suas questões. A frase de Francis
ria a atenção do pesquisador para o risco de Bacon, ‘extrair da natureza, sob tortura,
reificação dos sujeitos e das relações por eles todos os seus segredos’, revela um ambicioso
engendradas, o que desvanece a humanidade desejo humano, porém, inexequível, de pre-
intrínseca dos mesmos. tensioso controle absoluto.
Em sua primeira versão, o objeto é enun- A atitude do pesquisador, que mais parece
ciado como se fosse composto de duas coadunar com a consciência de que sua ca-
partes. Uma delas diz respeito diretamente pacidade cognitiva não é absoluta, deve ser
aos sujeitos (que podem ser coletivos ou in- uma atitude de testagem e experimentação,
divíduos e até mesmo processos e procedi- de constante construção, desconstrução e
mentos), e a outra diz respeito às relações e re-construção de seu pensamento. Nesse
ações que eles desempenham e/ou sofrem. processo, ele percebe em que medida e de
Relembrando a maneira pragmática de que modo o seu modelo descreve, explica e
recorte citada, o objeto da pesquisa equiva- analisa a realidade, como explica e de que
leria ao ‘o que’ estudar. modo não a explica, além do que, com isso,
Admitir que sujeitos e relações por eles identifica em quais aspectos seu modelo é
travadas possam ser objeto de estudo é frágil, a fim de buscar aperfeiçoá-lo e, mais
compreender que a pesquisa deve, em seu tarde, novamente, submetê-lo a teste.
caminho, levar em consideração os aspectos Em harmonia com o raciocínio hipoté-
da historicidade e da ideologia inerentes da tico, os procedimentos do pesquisador se
ocorrência de interação e, por conseguinte, desenvolvem atendendo a uma finalidade,
da impossibilidade de neutralidade. consubstanciada nos objetivos da pesqui-
Nesse processo de abordagem, elaborando sa (também chamados de metas), que são o
perguntas em diálogo com a literatura, o pes- que o pesquisador pretende atingir, ou seja,
quisador produz, pari passu, respostas, naquilo ‘para que’ será feita a pesquisa. Usualmente,
que pode ser chamado de ‘raciocínio hipoté- estabelece-se um objetivo geral relacio-
tico’. Inicialmente, são respostas breves, ge- nado à hipótese que informa qual é a in-
neralistas e incompletas, mas que apontam os tenção do pesquisador e alguns objetivos
primeiros passos e rumos do caminho. específicos relacionados aos modos, tarefas,

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Subsídios para a construção de projetos em pesquisa social: reflexões epistemológicas e metodológicas 43

procedimentos, processos ou estratégias sem A Internet, com seus múltiplos recursos


os quais o objetivo geral não pode ser atingido. interativos, constitui um novo e amplo repo-
Definindo ‘por que’ ( justificativa), ‘o que’ sitório de informações a ser explorado pela
(objeto) e ‘para que’ (objetivos) da pesquisa, pesquisa científica. Essas inovações têm se
delineiam-se quais informações precisam configurado, cada vez mais e velozmente,
ser levantadas. Para tanto, precisa-se de em possibilidades de intercâmbio de expe-
técnicas de pesquisa, entendidas como os riências marcadas pela virtualidade, ou seja,
procedimentos sistematizados que o pes- o contato entre indivíduos sem interação
quisador realiza para obter as informações física. A partir dessas inovações, é possível
necessárias, organizá-las, sistematizá-las, se falar em ‘campo virtual de pesquisa’ e,
trabalhá-las e analisá-las, a fim de que possa por conseguinte, em novas possibilidades
atingir seus objetivos, ou seja, ‘como’ será investigativas, sendo o virtual compreendido
operacionalizada a pesquisa. como realidade factual. Não cabe aqui apro-
As técnicas podem ser manejadas de fundar esse tema, porém, ainda assim, é ne-
maneira isolada ou em conjunto, o que cessário ressaltá-lo e reafirmar as inúmeras
confere ao pesquisador a ampliação das potencialidades que essa incorporação do
possibilidades de ter acesso às informações virtual à pesquisa pode trazer para o proces-
que lhe são necessárias. Do ponto de vista so investigativo (FERNANDES; MOREIRA, 2013).
do método, do caminho do pesquisador, O pesquisador deve estar atento para o
as técnicas começam a ser definidas desde fato de que sua presença no campo – seja
o momento em que se recorta o objeto. ela virtual ou não – interfere na rotina e na
Contudo, o momento em que sua definição vida dos sujeitos, o que torna a pesquisa uma
torna-se mais premente é aquele no qual são prática que deve ser revestida de cuidados,
definidos os objetivos da pesquisa. responsabilidade e ética para com todos
Isso significa que as técnicas possuem aqueles que estejam participando.
limitada autonomia metodológica para de- Além disso, se a presença do pesquisador
finirem o objeto e/ou os objetivos de uma no campo é capaz de alterá-lo – por força
pesquisa. Em outras palavras: não se parte das influências que tem nos sujeitos e nas
de uma técnica para se construir um objetivo suas relações, que ocorrem o tempo inteiro
ou um objeto de pesquisa! São os objetivos –, ela também deve ser entendida como um
específicos de uma pesquisa que conduzem dado da pesquisa, pois o pesquisador não vai
a escolha e a aplicação das técnicas. As in- a campo como uma tábula rasa à qual as in-
formações que elas levantam, submetidas formações se inscreverão ou revelarão auto-
à análise, levam o pesquisador a conhecer maticamente. Sua própria bagagem cultural,
seu objeto. Pode até ser que, ao ampliar esse seus pré-conceitos e suas subjetividades, do
conhecimento sobre o objeto, o pesquisador mesmo modo que as dos sujeitos da realidade
reestruture seus objetivos, gerando futuras em tela, devem ser consideradas. Lidando-se
novas necessidades de informações e, por- com questões na área da saúde, não poderia
tanto, a aplicação de novas técnicas. ser diferente:
Nas pesquisas envolvendo fontes primá-
rias, é na dimensão espacial do campo de Como em qualquer processo social, o obje-
pesquisa que se aplicam técnicas para le- to ‘Saúde’ oferece um nível possível de ser
vantar informações – o trabalho de campo quantificado, mas o ultrapassa quando se
–, pois é nele que convivem os sujeitos que trata de compreender dimensões profundas
podem fornecer as informações necessárias e significativas que não conseguem ser apri-
para o pesquisador atingir seus objetivos e é sionadas em variáveis [...] Qualquer ser hu-
nele que as inter-relações ocorrem. mano, qualquer grupo ou classe social é uma

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44 FERNANDES, F. M. B.; MOREIRA, M. R.; FORTES, P. D.

multiplicidade de relações e de relações entre interesse pessoal. O usual é que um pes-


relações. (MINAYO; SANCHES, 1993, P. 251). quisador explore temas que lhe sejam
agradáveis;
Logo, para que o trabalho – tanto de pes-
quisa como um todo quanto o de campo – • O tempo que o pesquisador pode dedicar
flua adequadamente, um bom planejamento para a realização da pesquisa, visto que sua
é indispensável. E no ato de planejar está jus- vida transcende as atividades profissionais
tamente o cerne do sentido que um projeto ou acadêmicas;
de pesquisa contém.
• O limite das capacidades cognitivas do
pesquisador, já que é grande a variabili-
A pesquisa como um dade dos investimentos teóricos a serem
processo – considerações feitos com relação a aspectos da realida-
de passíveis de serem entendidos como
práticas sobre a construção situação-problema.
de projetos em pesquisa
social Como fatores externos, figuram:

Um projeto de pesquisa pode ser entendi- • A significação e a relevância do tema esco-


do como uma ‘carta de intenções’ cuja ela- lhido, o ineditismo e os valores acadêmicos e
boração demanda considerações de ordem sociais inerentes aos resultados do estudo;
prática. A primeira delas diz respeito a ele-
mentos que influem decisivamente na me- • O limite de tempo disponível, determina-
todologia, tanto na elaboração do projeto do pela natureza da demanda institucional.
quanto na execução da pesquisa: as questões Por exemplo, pesquisas encomendadas por
da temporalidade, dos recursos e do investi- uma instituição a um grupo de pesquisado-
mento teórico. Esses são alguns dos fatores res possuem temporalidades diversas de
que, do ponto de vista do pesquisador, inter- um trabalho de conclusão de curso;
ferem na escolha de um tema para o trabalho
de pesquisa e, consequentemente, na estru- • A disponibilidade de material de consulta,
turação do seu projeto (COUTINHO; CUNHA, 2004; dados e fontes necessários para a realização
GIL, 2002; MINAYO, 2004; POPPER, 2007). do trabalho.
Podem ser listados fatores internos e ex-
ternos. Entre os primeiros, destacam-se: A segunda consideração diz respeito à
estruturação lógica que o documento deve
• A dedicação do pesquisador, traduzi- apresentar. Questões fundamentais seriam
da pelo grau de afetividade, empatia e as seguintes:

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 33-48, JAN-MAR 2017


Subsídios para a construção de projetos em pesquisa social: reflexões epistemológicas e metodológicas 45

Figura 2. Estruturação lógica de um projeto de pesquisa

Considerações
metodológicas:
Estabelecimento
definição de
de cronograma
técnicas

Como Quando
pesquisar? pesquisar?

Estabelecimento Delimitação
de objetivos: de recursos
geral e específicos Para que Com quais orcamentários
pesquisar? PROJETO DE recursos
PESQUISA pesquisar?

Justificativa Discriminação da
da pesquisa; equipe de pesquisa;
Resultados esperados Quem e discriminação do
Por que para quem demandante da
pesquisar? pesquisar? pesquisa

O que
pesquisar?

Delimitação do campo; definição da situação-problema;


definição do objeto; estabelecimento de raciocínio hipotético;
levantamento de base teórico-conceitual; identificação de fontes

Fonte: Elaboração própria.

Convém recordar que a estruturação de Como terceira consideração, propõe-se a


projetos de pesquisa varia de instituição para reflexão sobre um exercício utilizado em sala
instituição, mas os elementos fundamentais de aula pelos autores deste artigo, na forma de
são consensuados no País e seguem reco- tópicos a serem contemplados pelos alunos:
mendações da instituição responsável pela
normalização técnica (ABNT, 2005). 1) Discorrer sobre uma situação observada
Especificamente sobre a questão dos re- numa dada realidade, problematizando-a
cursos financeiros, percebe-se que não é dentro de um tema da área da saúde (situa-
uma obrigatoriedade. Somente se a pesquisa ção-problema) e indicando por que ela deve
requerer financiamento, em seu projeto, o ser feita ( justificativa). Discorrer sobre pos-
pesquisador discrimina o orçamento ne- síveis benesses para a coletividade, a comu-
cessário para a execução. Portanto, é tópico nidade científica/Ciência e para os sujeitos
facultativo e geralmente não cabível em pro- da pesquisa;
jetos de monografias, trabalhos de conclusão
de curso, dissertações ou teses. 2) Tomando por base um ‘corpus teórico’
Em se tratando de quem realizará a e a partir da correlação entre a situação-
pesquisa e para quem será realizada, o -problema e a justificativa, discorrer bre-
caráter facultativo novamente se apresen- vemente sobre os conceitos considerados
ta. Dependendo da pesquisa, uma equipe fundamentais para a pesquisa;
será necessária, e, nesse caso, torna-se con-
veniente discriminar as funções. O mesmo 3) Formular uma pergunta ou um conjun-
ocorre se a pesquisa foi demandada por to de perguntas articuladas (questão/ões
alguma instância financiadora ou instituição. norteadora/s) que sintetize(m) o problema

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46 FERNANDES, F. M. B.; MOREIRA, M. R.; FORTES, P. D.

identificado, de modo a não admitir respos- deparam com essa demanda, notadamente,
ta simplista. Dando seguimento, formular os alunos de pós-graduação que constituem
uma resposta com caráter provisório (hipó- a população-alvo do artigo e que ensejaram a
tese) à(s) pergunta(s); elaboração do mesmo.
As reflexões aqui apresentadas não pode-
4) Levando em consideração o ‘raciocínio riam fugir ao desejo de favorecer e fortale-
hipotético’ elaborado, enunciar numa frase cer o debate, no sentido de buscar torná-lo
curta e direta o que se pretende estudar, ou ainda mais prolífico e fazer, assim, com que
seja, recortar o objeto; a elaboração de projetos de pesquisa não
seja um processo sofrido e penoso para os
5) Estabelecer o objetivo geral da pesquisa alunos. Também se espera que seja suscita-
numa frase curta e direta, enunciando para da a continuidade das reflexões que a ati-
que a pesquisa será feita, e, a partir de toda vidade científica demanda, na provocação
essa reflexão, estabelecer os objetivos es- de novas e criativas indagações sobre os
pecíficos, inter-relacionados. Diferenciar o caminhos percorridos, experimentados e
que se gostaria que a pesquisa gerasse com refletidos pelos que cultivam a constante in-
o que se propõe que a pesquisa efetivamen- quietude da busca multifacetada e sem fim
te produza, de modo a não confundir com a do conhecimento.
justificativa nem com atividades e objetivos Os limites, dificuldades, obstáculos e pro-
de gestão, já que monografias, trabalhos de blemas da e na atividade de pesquisa devem,
conclusão de curso, dissertações ou teses portanto, ser compreendidos no âmbito
são documentos acadêmicos; da dinâmica de produção de conhecimen-
to em uma sociedade em constante e veloz
6) Indicar as técnicas de levantamento, siste- transformação. Gaston Bachelard (2002, P. 45)
matização e análise de informações a serem resume o processo científico de forma bas-
utilizadas, a partir dos objetivos específicos. tante sucinta: “O fato científico é conquis-
tado, construído e verificado”; Conquistado
Com isso, espera-se terem sido trazidas sobre Preconceitos; Construído pela Razão;
contribuições para o debate sobre a cons- Verificado nos Fatos.
trução de projetos de pesquisa e fornecidos E complementamos: Temperado pela
insumos teórico-práticos para aqueles que se emoção. s

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Subsídios para a construção de projetos em pesquisa social: reflexões epistemológicas e metodológicas 47

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 33-48, JAN-MAR 2017


ENSAIO | ESSAY 49

Exposição ambiental e ocupacional a


agrotóxicos e o linfoma não Hodgkin
Environmental and occupational exposure to pesticides and the non-
Hodgkin lymphoma

Vanessa Indio do Brasil da Costa1, Márcia Sarpa de Campos de Mello2, Karen Friedrich3

RESUMO Este ensaio versa sobre a exposição a agrotóxicos e o risco de desenvolvimento de


linfoma não Hodgkin (LNH), um tipo de câncer hematológico que teve aumento progressivo
nas últimas décadas no Brasil e no mundo. Foi realizada uma revisão integrativa para avaliar
a associação de agrotóxicos com a indução de LNH. A pesquisa mostrou que os agrotóxicos
ácido diclorofenoxiacético (2,4-D), diazinona, glifosato e malationa estão associados a essa ne-
oplasia e compartilham alguns mecanismos de carcinogenicidade. Essas informações podem
subsidiar medidas regulatórias mais restritivas e que contemplem a realidade da exposição a
1 Fundação Oswaldo misturas de agrotóxicos, amplamente utilizados no meio rural e urbano.
Cruz (Fiocruz), Instituto
Nacional de Controle
de Qualidade em Saúde PALAVRAS-CHAVE Exposição ocupacional. Saúde do trabalhador. Agroquímicos. Linfoma não
(INCQS) – Rio de Janeiro
(RJ), Brasil. Instituto Hodgkin.
Nacional de Câncer José
Alencar Gomes da Silva
(Inca), Coordenação de ABSTRACT This essay deals with the exposure to pesticides and the risk of non-Hodgkin lym-
Prevenção e Vigilância, phoma (NHL) development, a type of hematological cancer that has progressively increased in
Unidade Técnica de
Exposição Ocupacional, recent decades in Brazil and the world. An integrative review was conducted to evaluate the
Ambiental e Câncer – Rio association of pesticides with the induction of NHL. The research showed that the pesticides
de Janeiro (RJ), Brasil.
vicosta@inca.gov.br dichlorophenoxyacetic acid (2,4-D), diazinon, glyphosate and malathion are associated with this
2 Instituto Nacional de
neoplasia and share some mechanisms of carcinogenicity. This information may subsidize more
Câncer José Alencar restrictive regulatory measures and that contemplate the reality of the exposure to mixtures of
Gomes da Silva (Inca), pesticides, widely used in rural and urban environments.
Coordenação de Prevenção
e Vigilância, Unidade
Técnica de Exposição KEYWORDS Occupational exposure. Occupational health. Agrochemicals. Non-Hodgkin
Ocupacional, Ambiental
e Câncer – Rio de Janeiro lymphoma.
(RJ), Brasil. Universidade
Federal do Estado do Rio
de Janeiro (Unirio) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.
mmello@inca.gov.br

3 Fundação Oswaldo Cruz


(Fiocruz) – Rio de Janeiro
(RJ), Brasil. Universidade
Federal do Estado do Rio
de Janeiro (Unirio) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.
karenfriedrich@hotmail.com

DOI: 10.1590/0103-1104201711205 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 49-62, JAN-MAR 2017
50 INDIO-DO-BRASIL, V.; SARPA, M.; FRIEDRICH, K.

Introdução o risco de impactos negativos para o am-


biente e para a saúde humana, levando, por
O uso intensivo de agrotóxicos na agricultura exemplo, à perda da biodiversidade e ao de-
brasileira teve seu marco inicial no período senvolvimento de doenças, como infertilida-
denominado Revolução Verde, caracteri- de, distúrbios hormonais e câncer (CARNEIRO ET
zado pela ampla disseminação e o aumento AL., 2015).
de novas práticas agrícolas após a Segunda Alguns ingredientes ativos de agrotó-
Guerra Mundial, que incluía o uso de agro- xicos apresentam associação positiva com
tóxicos (CARNEIRO ET AL., 2015). Desde a década de a indução de tumores e, por isso, foram
1960, em especial, após a publicação do livro classificados recentemente, pela Agência
‘Primavera silenciosa’, a população mundial Internacional de Pesquisa em Câncer
vem se preocupando com os impactos do uso (International Agency for Research on
indiscriminado desses agentes químicos. Cancer – Iarc), dentro dos grupos 2A (pro-
Ao longo dos anos, os padrões de uso dos vavelmente, carcinogênico para seres
Ingredientes Ativos (IAs) de agrotóxicos humanos) e 2B (possivelmente, carcinogê-
modificaram-se, em especial, nos países em nico para seres humanos), entre eles, desta-
desenvolvimento, devido ao modelo de pro- cam-se os herbicidas 2,4-D e glifosato e os
dução agrícola mais voltado para a produção inseticidas diazinona e a malationa (IARC, 2015A,
de commodities e à fragilidade das estruturas 2015B). Embora outros agrotóxicos ainda não
legislativa e regulatória (CARNEIRO ET AL., 2015). tenham sido classificados quanto à carcino-
O modelo de agricultura hegemônico no genicidade na Iarc, eles demonstram resulta-
Brasil, que tem como base de sustentação o dos positivos em estudos epidemiológicos e
cultivo de grandes extensões de terra, a pul- também têm sido um dos principais alvos de
verização de agrotóxicos e a utilização de investigação na etiologia de diferentes tipos
sementes transgênicas, principalmente, as de câncer, como o LNH (SCHINASI; LEON, 2014).
resistentes a herbicidas, é um modelo insus-
tentável sob vários aspectos, entre os quais:
a) grandes extensões de terra onde se cultiva Câncer e linfoma não
uma única espécie de vegetal (por exemplo, Hodgkin no mundo e no
soja, milho ou algodão) criam o ambiente
propício para a proliferação das espécies que
Brasil: epidemiologia e
têm preferência por essas culturas; b) o uso etiologia
intenso de agrotóxicos leva ao desenvolvi-
mento de resistência dos vetores e plantas O câncer é composto por mais de 100 doenças,
indesejáveis; e c) a liberação comercial de que possuem como característica o cres-
sementes transgênicas resistentes a herbi- cimento desordenado das células, invasão
cidas, como o glifosato e o 2,4-D, é determi- de tecidos adjacentes e perda das funções
nante para o uso dessa classe de agrotóxicos. essenciais. Entre os cânceres hematológi-
Deve-se destacar que os herbicidas estão cos, o LNH é o mais incidente, sendo que as
entre os grupos de agrotóxicos mais utiliza- maiores taxas de incidência dessa neoplasia
dos no Brasil, como a atrazina, o paraquat, o são observadas nos países industrializados,
glifosato e o 2,4-D, que, em 2012, somaram como América do Norte, Austrália, Nova
mais de 200 mil toneladas comercializadas. Zelândia e em algumas partes da Europa. Na
Consequentemente, esses fatores resultam atualidade, estima-se que a cada ano ocorram
tanto no incremento do volume de uso de cerca de 390 mil casos novos (2,7% do total
agrotóxicos por hectare como no uso de mis- de câncer) e 200 mil óbitos (2,4% do total de
turas de ingredientes ativos que aumentam óbitos) por LNH no mundo, com aumento de

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 49-62, JAN-MAR 2017


Exposição ambiental e ocupacional a agrotóxicos e o linfoma não Hodgkin 51

4% ao ano, aproximadamente. Esse tipo de meio ambiente e nos alimentos, sendo um


câncer é observado desde a década de 1970, dos principais alvos de estudo da doença
havendo estabilidade nas taxas de incidência (SCHINASI; LEON, 2014).
em alguns países desenvolvidos a partir de Estimou-se para o biênio 2016-2017 a ocor-
1990 (INCA, 2015). rência de, aproximadamente, 410 mil novos
O aumento da incidência de LNH ao casos de câncer em âmbito nacional (excluin-
longo das últimas décadas pode ser explica- do-se os casos de pele não melanoma) (INCA,
do, pelo menos parcialmente, por melhorias 2015). Estima-se que as taxas de incidência
nas técnicas de diagnóstico, na classifica- variem entre 4,1 e 5,4 casos por 100 mil habi-
ção histopatológica e na captação dos casos tantes, sendo 5.210 casos novos de LNH para
pelos registros de câncer de base populacio- homens e 5.030 para mulheres. Com relação
nal. No caso dos estudos etiológicos, o foco às regiões brasileiras, Sul e Sudeste apresen-
tem sido a exposição a carcinógenos quími- tam as maiores taxas de incidência para o
cos presentes no ambiente de trabalho, no LNH, para ambos os sexos ( figura 1).

Figura 1. Representação das taxas brutas de incidência de linfoma não Hodgkin por 100 mil habitantes, para cada sexo, estimada para o ano de 2016,
por Unidade de Federação

Homens Mulheres
5,22 - 9,83 5,06 - 8,35

4,24 - 5,21 2,76 - 5,05

2,93 - 4,23 2,18 - 2,75

1,90 - 2,92 1,27 - 2,17

Fonte: Adaptado de Inca (2015).

O LNH é composto por 40 subtipos histo- resposta imune e pelo aumento do cresci-
lógicos oriundos do sistema linfático, e seus mento das células B no tecido linfoide (GREER;
mecanismos de formação incluem alterações REDDY; WILLIANS, 2009). Nem todas as causas
nos processos de imunorregulação, particu- da maioria dos casos de LNH estão com-
larmente, dos linfócitos T, resultando em pletamente elucidadas, mas infecção pelo
diminuição das citocinas responsáveis pela HIV e outros agentes infecciosos, doenças

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 49-62, JAN-MAR 2017


52 INDIO-DO-BRASIL, V.; SARPA, M.; FRIEDRICH, K.

autoimunes, imunossupressão, exposição a Pubmed, Scopus, de artigos publicados no


agentes químicos e algumas ocupações têm período de 2011 a julho de 2016, através do
sido associadas a essa neoplasia (GREER; REDDY; sistema de busca, com a combinação dos
WILLIANS, 2009; LUO ET AL., 2016). descritores de agrotóxicos e do linfoma não
Hodgkin (‘Agrochemicals’, ‘Pesticides’, ‘desin-
festing agent’ e ‘Lymphoma non-Hodgkin’).
Linfoma não Hodgkin e A revisão realizada foi abrangente e não
exposição a agrotóxicos incluiu termos relacionados à classificação
dos agrotóxicos quanto à sua aplicação (ex.:
Alguns estudos caso-controle, de coortes herbicidas, inseticidas, fungicidas).
e meta-análises, publicados nos últimos
dez anos, exploraram a associação entre a 3. Estabelecimento dos critérios de seleção
exposição a ingredientes ativos de agrotó- dos estudos: a) escritos e publicados nos
xicos específicos e o desenvolvimento de idiomas português, espanhol, inglês; b)
LNH (SCHINASI; LEON, 2014). Estudos realizados com delineamento do estudo observa-
no Brasil têm apontado correlação entre cional analítico (caso-controle, coorte);
a incidência e mortalidade do LNH com o c) revisões e meta-análises de estudos
consumo per capita de agrotóxicos (sem es- observacionais analíticos (caso-controle,
pecificações de ingredientes ativos), como o coorte); d) com método de obtenção dos
estudo de Boccolini, Boccolini e Meyer (2015). dados de exposição através de entrevis-
Desse modo, conhecer os principais ingre- tas, questionários, matrizes de exposição,
dientes ativos descritos na literatura asso- marcadores biológicos; e) com dados dos
ciados ao desenvolvimento de LNH pode ingredientes ativos (isolados ou misturas)
contribuir para futuras pesquisas e para sub- dos agrotóxicos, grupo químico, classes
sidiar a regulação e as medidas de prevenção (inseticida, herbicida, fungicida etc.),
e controle do linfoma não Hodgkin. associados ao LNH. Foram excluídos os
trabalhos com as seguintes característi-
cas: a) escrito em um idioma diferente de
Metodologia português, espanhol, inglês; b) estudos
observacionais descritivos (ecológico,
Foi realizada uma revisão integrativa em transversal); c) sem descrição dos ingre-
seis etapas, baseada na metodologia de dientes ativos, grupo químico e classes de
Whitemore e Knafl (2005): agrotóxicos associados com LNH (e.g. por
culturas agrícolas ou pecuária); e) dados
1. Seleção do tema: tendo em vista a falta de exposição materna e paterna; f ) dados
de dados atuais sistematizados abordando oriundos de acidentes; g) informações por
aspectos regulatórios e estudos de carci- subgrupos (e.g. asmáticos); h) comentário,
nogenicidade dos principais ingredientes carta ao editor.
ativos de agrotóxicos associados ao LNH,
esta revisão integrativa permitirá sumari- 4. Leitura dos estudos e identificação dos
zar dados relevantes, a fim de promover um critérios: foram encontrados nas bases
maior conhecimento do tema em questão. de dados 46 artigos, dos quais, 19 foram
excluídos após a análise dos títulos e dos
2. Definição das bases de dados e os descri- resumos. Dos 28 artigos elegíveis, 12 foram
tores: o levantamento bibliográfico usado excluídos, pois não atendiam aos demais
para este ensaio foi realizado nas bases de critérios de inclusão, totalizando 16 artigos
dados da Biblioteca Virtual de Saúde (BVS), desta revisão (quadro 1).

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 49-62, JAN-MAR 2017


Exposição ambiental e ocupacional a agrotóxicos e o linfoma não Hodgkin 53

Quadro 1. Descrição dos estudos selecionados na revisão integrativa da exposição ocupacional e ambiental a agrotóxicos e o risco de desenvolvimento
de linfoma não Hodgkin (LNH)

Autores Desenho Exposição a agrotóxicos


Ano País População
principais (período) Mensuração Grupos químicos ou categorias
Carbamato, dicarboximida ditiocarbamato, dimetil
Alavanja Coorte prospecti- 54.306 Agriculto- Questionários autoa-
2014 EUA fosfato, halogenado orgânico, isoftalonitrila, orga-
MCR1 va (1993 – 1997) res e aplicadores dministrados
noclorado, organofosforado, piretroide, xililalanina
205 homens com
Caso-controle Amostra biológica Organoclorado (p, p' diclorodifenoldicloroetileno -
Bertrand KA 2010 EUA diagnóstico de LNH;
aninhado (sangue) p, p'-DDE)
409 controles
Bonner MR1 2010 EUA Coorte prospecti- 57.310 agriculto- Questionários autoa- Organofosforado (terbufós)
va (1993 – 1997) res e aplicadores; dministrados
32.347 cônjuges
Brãuner EV 2012 Dina- Caso-controle 256 pacientes com Concentrações de Organoclorados
marca aninhado (1993 – LNH; 256 controles organoclorados em
1997) amostras biológicas
(tecido adiposo)
Burns C2 2011 EUA Coorte retros- 1.316 homens, Históricos dos traba- Ácido clorofenóxi (2,4-D)
pectiva trabalhadores na lhadores
produção de 2,4-D;
50 mulheres
Goodman JE 2015 _ Meta-análise Agricultores, ho- Sem descrição Ácido clorofenóxi (2,4-D)
mens
Hohenadel K 2011 Canadá Caso-controle de 513 casos de LNH; Questionários autoa- Ácido clorofenóxi, fungicida (sem especificação),
base populacional 1.506 controles dministrados herbicida (sem especificação), inseticida (sem espe-
(1991 – 1994) cificação), organoclorado, organofosforado. Misturas:
organofosforado + ácido clorofenóxi, organofosforado
+ carbamato, organofosforado + organoclorado, orga-
nofosforado + glicina substituída
Lerro CC1 2015 EUA Coorte prospecti- 57.310 agriculto- Questionários autoa- Organofosforados
va (1993 – 1997) res e aplicadores; dministrados
32.347 cônjuges
Luo D 2016 _ Meta-análise _ Amostras biológicas Organoclorados
(sangue e tecidos)
Pahwa M 2012 Canadá Caso-controle de 513 casos de LNH; Questionários autoa- Ácido clorofenóxi, organoclorado, organofosforado
base populacional 1.506 controles dministrados
(1991 – 1994)
Parrón T 2014 Espa- Caso-controle de 34.205 casos com Monitoramento Sem especificação
nha base populacional câncer; 1.832.969 ambiental
(1998 – 2005) controles
Ruder AM e 2011 EUA Coorte prospec- 2.122 agricultores Histórico do traba- Fenol clorado (pentaclorofenol)
Yiin JH tiva lhador na empresa
Schinasi LH e 2014 _ Revisão sistemá- Agricultores Questionários autoa- Ácido clorofenóxis, carbamato, cloroacetanilida,
Leon ME tica, Meta-análise dministrados dicarboximida, ditiocarbamato, glicina substituída,
organoclorado, organofosforado, piretroide triazina,
triazinona, tiocarbamato
Schinasi LH 2015 EUA Coorte 76.493 mulheres Questionários autoa- Inseticidas (sem especificação)
dministrados
Viel J 2011 França Caso-controle 34 casos de LNH; Amostra biológica Organoclorados
34 controles (sangue)
Zakerinia M; 2012 Irã Caso-controle de 200 casos de LNH; Entrevistas e questio- Fungicidas (sem especificação), herbicidas (sem
Namdari M; base hospitalar 200 controles nários especificação)
Amirghofran S (2007 – 2008)
1 Dados oriundos de uma coorte americana intitulada ‘Agricultural Health Study’.
2 Estudo realizado pela empresa Dow Chemical.

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54 INDIO-DO-BRASIL, V.; SARPA, M.; FRIEDRICH, K.

5. Registro dos dados obtidos a partir dos (organofosforado + ácidos fenóxis; organofos-
estudos selecionados. forado + carbamato; organofosforado + glicina
substituída) com o aumento da chance de apre-
6. Análise e interpretação dos resultados. sentar LNH.
Ao total, 35 ingredientes ativos de agrotóxi-
cos (isolados) foram avaliados quanto à associa-
Resultados e discussão ção com o risco de desenvolvimento de LNH
(quadro 2) nos estudos selecionados na revisão.
Entre os 16 estudos selecionados na revisão Desses, 10 apresentam dados de associação
integrativa, estavam incluídas três revisões sis- positiva com a indução de LNH e já foram clas-
temáticas/meta-análises, que descreveram e/ sificados quanto ao potencial carcinogênico
ou analisaram dados de artigos publicados no pela Iarc; como prováveis carcinogênicos para
período anterior ao estipulado para a revisão humanos (grupo 2A): DDT, diazinona, glifo-
(2011). Também, a maioria dos estudos é do sato, malationa; possivelmente carcinogênicos
tipo coorte, sendo que três desses correspon- para humanos (grupo 2B): 2,4-D, clordano,
dem à coorte americana intitulada ‘Agricultural heptacloro, hexaclorobenzeno, lindano, mirex e
Health Study’. Ressalta-se que a Iarc publica pentaclorofenol. Desse modo, através dessas in-
nas avaliações de carcinogenicidade dos agro- formações, agências regulatórias devem avaliar
tóxicos dados específicos dessa coorte. Quanto a restrição de uso ou banimento do registro
aos agrotóxicos avaliados, ácidos clorofenóxis, desses IAs que compõem as formulações de
carbamatos, organoclorados, organofosforados diversos agrotóxicos e medicamentos veteriná-
e glicina substituída (glifosato) foram os mais rios. Além disso, mais de um IA pode estar pre-
explorados quanto à associação com LNH. Isso sente nas formulações comerciais ou ser usado
pode ser explicado porque esses agentes são os de forma concomitante, ou, ainda, misturado
mais comumente utilizados nos meios rural e nos tanques de aplicação. Essas misturas podem
urbano. Ademais, Hohenadel et al. (2011) avalia- favorecer o desencadeamento de efeitos sinér-
ram a exposição a misturas desses agrotóxicos gicos que contribuem para a carcinogênese.

Quadro 2. Relação dos ingredientes ativos de agrotóxicos quanto à associação com a chance ou o risco de desenvolvimento de linfoma não Hodgkin
(LNH) e as classificações da agência internacional, International Agency for Research on Cancer (Iarc), correspondentes a carcinogenicidade

Estudos publicados com associação positiva para LNH


Agrotóxico (n° CAS) Iarc3
Sim1 Não2
Ácidos clorofenóxi
2,4-D (94-75-7) Schinasi e Leon (2014) Burns et al. (2011), Goodman et al. (2015); 2B (2015)
Pahwa et al. (2012), Schinasi e Leon (2014)
MCPA (94-74-6) Schinasi e Leon (2014) Pahwa et al. (2012) NC
MCPP (93-65-2) Pahwa et al. (2012) - NC

Carbamato
Aldicarbe (116-06-3) - Alavanja et al. (2014) 3 (1991)
Carbofurano (1563-66-2) - Alavanja et al. (2014) NC
Carbaril (63-25-2) - Alavanja et al. (2014) 3 (1987)

Organoclorado
Aldrin (309-00-2) - Alavanja et al. (2014) 3 (1987)
Clordano (57-74-9) Luo et al. (2016) Alavanja et al. (2014) 2B (2001)

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Exposição ambiental e ocupacional a agrotóxicos e o linfoma não Hodgkin 55

Quadro 2. (cont.)
DDE (72-55-9) Luo et al. 2016 Viel et al. (2011); Brauner et al. (2012) NC
DDT (50-29-3) Alavanja et al. (2014), Brauner et al. - 2A
(2012); Pahwa et al. (2012);
Dieldrina (60-57-1) - Alavanja et al. (2014), Brauner et al. (2012), 3 (1987)
Heptacloro (76-44-8) - Alavanja et al. (2014) 2B (2001)
Hexaclorobenzeno (HCB) (118-74-1) Luo et al. (2016) Brãuner et al. (2012), Viel et al. (2011) 2B (2001)
β- HCH (319-85-7) - Brãuner et al. (2012), Viel et al. (2011) 2B (1987)
Lindano (HCH) (58-89-9) Alavanja et al. (2014); Luo et al. (2016) Viel et al. (2011) 2B (1987)
Oxiclordano (26880-48-8) Brauner et al. (2012), Hardell et al. (2009) Viel et al. (2011) NC
Toxafeno (8001-35-2) - Alavanja et al. (2014) 2B (2001)

Organofosforado
Clorpirifós (2921-88-2) Alavanja et al. (2014) NC
Coumafos (56-72-4) - Alavanja et al. (2014) NC
Diazinona (333-41-5) Alavanja et al. (2014) 2A
Diclorvós (DDVP) (62-73-7) - Alavanja et al. (2014) NC
Fonofos (944-22-9) - Alavanja et al. (2014) NC
Forato (298-02-2) - Alavanja et al. (2014) NC
Malationa (121-75-5) Hohenadel et al. (2011); Lerro et al. Alavanja et al. (2014) 2A
(2015); Pahwa et al. (2012);
Parationa (56-38-2) - Alavanja et al. (2014) 2B
Terbufós (13071-79-9) Alavanja et al. (2014) - NC

Piretroide
Permetrina (52645-53-1) - Alavanja et al. (2014) 3 (1991)

Outros
Benomil (17804-35-2) (benzimidazol) - Alavanja et al. (2014) NC
Captana (133-06-2) - Alavanja et al. (2014) 3 (1987)
(dicarboximida)
Clorotalonil (1897-45-6) (isoftalonitrila) - Alavanja et al. (2014) 2B (1999)
Mancozebe (8018-01-7) (ditiocarbamato) - Alavanja et al. (2014) NC
Metalaxil (57837-19-1) (xililalanina) - Alavanja et al. (2014) NC
Metil bromida (74-83-9) (Halogenado Alavanja et al. (2014) - 3 (1999)
orgânico)
Glifosato (1071-83-6) Schinasi e Leon (2014) Schinasi e Leon (2014) 2A
(glicina substituída)
pentaclorofenol (87-86-5) (Fenol clorado) Ruder e Yiin, (2011) - 2B (1999)

1correspondem aos estudos selecionados na revisão (caso-controle, coorte, meta-análises, revisões sistemáticas) que apresentam associação positiva entre a exposição
aos ingredientes ativos de agrotóxicos (isolados) com o LNH. A associação positiva é baseada nas medidas de associação (razão de chances, risco relativo) que apresentam
resultados maiores que a unidade, com dados estatisticamente significativos.
2correspondem aos estudos selecionados na revisão (caso-controle, coorte, meta-análises, revisões sistemáticas) que não apresentaram associação positiva entre a
exposição aos ingredientes ativos de agrotóxicos (isolados) com o LNH. A associação negativa é baseada nas medidas de associação (razão de chances, risco relativo) que
apresentam resultados menores que a unidade com dados estatisticamente significativos ou dados de associação não estatisticamente significativos.
3classificação da Iarc e o ano correspondente: grupo 2A (provável carcinogênico para humanos); grupo 2B (possível carcinogênico para humanos); grupo 3 (não
carcinogênico para humanos); NC (sem classificação).

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56 INDIO-DO-BRASIL, V.; SARPA, M.; FRIEDRICH, K.

Segundo dados coletados junto a orga- usados no Brasil, tanto na agricultura quanto
nismos reguladores nacionais (Agência como inseticidas em campanhas de saúde
Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa; pública para o controle de vetores (quadro 3)
Ministério da Agricultura Pecuária e (ABRASCO, 2016). No entanto, deve-se destacar
Abastecimento – Mapa) e internacionais (US que a legislação americana, diferentemen-
Environmental Protection Agency – US EPA; te da brasileira, não restringe o registro de
European Food Safety Authority – EFSA), os produtos com potencial carcinogênico. Já a
herbicidas (2,4-D e glifosato) e os insetici- legislação europeia passou a adotar esse cri-
das (diazinona e malationa) são autorizados tério de restrição do registro de agrotóxicos
nos EUA, na União Europeia e amplamente recentemente (CARNEIRO ET AL., 2015; FRIEDRICH, 2013).

Quadro 3. Dados de regulação junto aos órgãos competentes dos principais ingredientes ativos de agrotóxicos associados ao risco de desenvolvimento
de linfoma não Hodgkin

Grupo Químico/ Agrotóxico Usos no Brasil


Anvisa US EPA EFSA
(n° CAS) Tipo Culturas e uso não agrícola
Ácidos clorofenóxi
2,4-D (94-75-7) Herbicida Arroz, aveia, café, cana-de-açúcar, Autorizado Autorizado Autorizado
centeio, cevada, milho, pastagem, soja,
sorgo, trigo.
Organoclorado
Clordano (57-74-9) - - Não registrado Não autorizado Não autorizado
DDT (50-29-3) - - Excluído Não autorizado Não autorizado
Dieldrina (60-57-1) - - Não registrado Não autorizado Não autorizado
Heptacloro (76-44-8) - - Excluído Não autorizado Não autorizado
Hexaclorobenzeno (HCB) - - Não registrado Não autorizado Não autorizado
(118-74-1)
Lindano (HCH) (58-89-9) - - Excluído Não autorizado Não autorizado

Mirex (2385-85-5) - - Não registrado Não autorizado Não autorizado


Organofosforado
Diaziona (333-41-5) Inseticida e acaricida Citros, maçã Autorizado Autorizado Não autorizado
Domissanitário: líquidos premidos ou
não, jardinagem amadora.
Malationa (121-75-5) Inseticida e acaricida Alface, algodão, arroz, berinjela, bró- Autorizado Autorizado Autorizado
colis, cacau, café, citros, couve, couve-
-flor, feijão, maçã, milho, morango,
orquídeas, pastagens, pepino, pera,
pêssego, repolho, rosa, soja, sorgo,
tomate, trigo. Domissanitário: líquidos
premidos ou não; jardinagem amadora;
campanhas de saúde pública.
Outros
Metil bromida - - Não registrado Autorizado Não autorizado
(Halogenado)

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Exposição ambiental e ocupacional a agrotóxicos e o linfoma não Hodgkin 57

Quadro 3. (cont.)

Glifosato Herbicida Algodão, ameixa, arroz, banana, cacau, Autorizado Autorizado Autorizado
(Glicina substituída) café, cana-de-açúcar, citros, coco,
(1071-83-6) feijão, fumo, maçã, mamão, milho,
nectarina, pastagem, pera, pêssego,
seringueira, soja, trigo e uva. Domissa-
nitário: jardinagem amadora.
Pentaclorofenol (87-86-5) - - Excluído Autorizado Não autorizado

Anvisa: Agência Nacional de Vigilância Sanitária.


US EPA: US Environmental Protection Agency.
EFSA: European Food Safety Authority .

Os efeitos carcinogênicos oriundos dos os resultados de imunossupressão para 2,4-D


agrotóxicos ou de outros agentes podem ser e da diazinona em ensaios in vitro com células
causados por diferentes mecanismos, sendo os humanas, e para o 2,4-D em humanos, também
principais deles: alteração do reparo do DNA associado ao LNH (GREER ET AL., 2009).
ou instabilidade genômica, caráter eletrofíli- Um estudo canadense de seis provín-
co, genotoxicidade (e.g. dano cromossômico), cias, com 513 casos de LNH e 1.506 contro-
alterações epigenéticas, estresse oxidativo, les, avaliou a exposição a misturas e obteve
inflamação crônica, imunossupressão, modula- maiores medidas de associação (OR = razão
ção de efeitos mediados por receptores, imor- de chances) para o uso de malationa + 2,4-D
talização celular, proliferação celular e morte (OR = 2,06 IC95% 1,45 - 2,93) do que desses
celular (IARC, 2015A, 2015B). Esses mecanismos são IAs isolados (malationa: OR = 1,73, IC95%
avaliados pela Iarc durante o processo de clas- 0,81–3,66; 2,4-D: OR = 0,94; IC95% 0,67 - 1,33).
sificação de um agente quanto ao seu potencial O mesmo foi encontrado para malationa +
carcinogênico. Baseado em estudos epidemio- glifosato (OR = 2,10; IC95% 1,31–3,37; malatio-
lógicos com exposição a agrotóxicos e ensaios na: OR = 1,95; IC95% 1,29–2,93; glifosato OR
in vitro e in vivo, os herbicidas (2,4-D e glifo- = 0,92; IC95% 0,54–1,55) (HONENADEL ET AL., 2011).
sato) e os inseticidas (diazinona e malationa) Um dos mecanismos de carcinogenicidade do
atuam através de cinco entre dez mecanismos linfoma não Hodgkin causado por exposição
de carcinogenicidade relevantes (quadro 4) a agrotóxicos, e descrito nos estudos avalia-
(IARC, 2015A; IARC, 2015B). É possível observar que dos, consiste de um tipo de dano genotóxico
alguns ingredientes ativos atuam através dos chamado translocação cromossômica, que
mesmos mecanismos, o que destaca a preocu- consiste no rearranjo de partes dos cromos-
pação sobre a interação entre eles e os possí- somos 14 e 18, [t (14; 18)] (q32; q21). Essa aber-
veis impactos para a exposição humana. Essa ração cromossômica ocorre em 70-90% dos
questão é muito importante para a análise da casos de linfoma folicular, 20-30% de linfoma
problemática em questão, já que esses IAs são difuso de células B grandes e 5-10% de outros
utilizados concomitantemente no meio rural ou subtipos menos comuns. Supõe-se que aber-
urbano e, também, estão autorizados a ser adi- rações cromossômicas possam causar rear-
cionados conjuntamente à formulação de pro- ranjos nas imunoglobulinas das células B ou
dutos comerciais. De maneira geral, os efeitos nos receptores das células T, principalmente
carcinogênicos que mais apresentam dados devido às translocações cromossômicas e,
positivos nas monografias da Iarc são os efeitos também, à superexpressão de oncogenes nas
genotóxicos, que podem resultar em danos cro- células linfoides imaturas da medula óssea ou
mossômicos, sendo esse o principal mecanismo em células maduras dos tecidos linfoides pe-
descrito para o LNH. Outrossim, destacam-se riféricos (CHIU; BLAIR, 2009).

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58 INDIO-DO-BRASIL, V.; SARPA, M.; FRIEDRICH, K.

Quadro 4. Mecanismos de carcinogenicidade dos ingredientes ativos registrados no Brasil e com resultados de associação positiva com linfoma não
Hodgkin (LNH)
Tipos de estudos / ensaios
Mecanismos carcinogênicos1 In vitro In vivo
Epidemiológicos
Células humanas Células não humanas Mamíferos ou outras espécies
Alterações na proliferação celular, morte 2,4-D Diazinona Diazinona Diazinona
celular ou fornecimento de nutrientes Malationa Malationa
Glifosato

Efeitos genotóxicos 2,4-D Diazinona 2,4-D 2,4-D


Diazinona Glifosato Malationa Diazinona
Glifosato Malationa Glifosato Malationa
Malationa

Estresse oxidativo Malationa 2,4-D Diazinona 2,4-D


Diazinona Malationa Diazinona
Glifosato Glifosato
Malationa Malationa

Imunossupressão 2,4-D 2,4-D Malationa 2,4-D


Diazinona Diazinona
Glifosato
Malationa

Inflamação crônica - - Glifosato 2,4-D


Diazinona
Malationa

Modulação de efeitos mediados por receptor 2,4-D 2,4-DGlifosato Glifosato 2,4-D


(incluindo desregulação endócrina) Diazinona
Malationa
Fonte: Iarc (2015a, 2015b).
1Os dados sobre os mecanismos de carcinogenicidade para cada ingrediente ativo foram obtidos a partir das respectivas monografias da Iarc, considerando-se o peso das
evidências dos estudos apresentados.

As informações referentes aos meca- de tempo entre a exposição e a possibilidade


nismos carcinogênicos do 2,4-D, glifosato, de coleta e análise da amostra pode invia-
diazinona e malationa corroboram as asso- bilizar a detecção do agente nas matrizes
ciações positivas encontradas nos estudos biológicas. Além disso, a maioria dos estudos
epidemiológicos selecionados. Apesar disso, encontrados na literatura pesquisada foi
estudos publicados sobre a exposição ocu- centrada na exposição de agricultores e apli-
pacional e ambiental a agrotóxicos e o risco cadores, e as principais limitações estão rela-
de desenvolvimento de LNH apresentam cionadas ao viés de memória, devido ao fato
resultados controversos, sendo que uma das de os trabalhadores nem sempre recordarem
principais limitações apontadas para a de- os IAs ou as misturas utilizadas, e de também
terminação do nexo causal é a dificuldade não registrarem detalhes sobre a duração e
de identificação dos ingredientes ativos em a frequência de aplicação dos agrotóxicos.
amostras clínicas. Essa dificuldade pode se Esses aspectos são superestimados dentro
dar por conta de fatores como metodologias do modelo reducionista adotado pelas agên-
analíticas disponíveis na rede de laborató- cias reguladoras para selecionar os estudos
rio, diversidade de metabólitos e aspectos utilizados para avaliar o risco de um IA de
toxicocinéticos, como meia-vida curta, que agrotóxico durante o processo de autoriza-
resulta na rápida eliminação do agente ção de uso. É importante ressaltar que os
(ALAVANJA ET AL., 2014). Com isso, a curta janela estudos devem ser avaliados em conjunto, ou

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Exposição ambiental e ocupacional a agrotóxicos e o linfoma não Hodgkin 59

seja, mesmo que alguns dados epidemiológi- devem estar informados que o uso concomi-
cos apresentem limitações que são inerentes tante de agrotóxicos pode aumentar o risco
a qualquer pesquisa com seres humanos, os de doenças para o meio ambiente e para as
achados de estudos experimentais, realiza- pessoas que moram, estudam, trabalham ou
dos com animais de laboratório ou sistemas circulam no entorno das lavouras.
in vitro, podem fortalecer as hipóteses de Os dois IAs de agrotóxicos mais usados no
associação de um agente a um efeito tóxico, Brasil (IBGE, 2015) são os herbicidas glifosato e
que, no momento do registro nos órgãos re- 2,4-D, para os quais já vêm sendo identifica-
guladores, dificilmente são observados. Isso das plantas resistentes indesejáveis. Apesar
porque os agrotóxicos têm sua comercializa- disso, foi aprovada a liberação comercial
ção autorizada considerando um cenário de de sementes transgênicas resistentes, ao
exposição distinto da realidade, sem levar em mesmo tempo, a esses dois herbicidas (CIB,
conta o uso conjunto dos IAs e, consequente- 2015). O pacote tecnológico desenvolvido por
mente, os potenciais efeitos gerados, utiliza- uma empresa inclui, além da semente trans-
dos na agricultura, ou mesmo aqueles que já gênica resistente ao glifosato e ao 2,4-D, a
estão presentes nas formulações comerciais formulação de um produto que contém os
(FRIEDRICH, 2013). Por outro lado, do ponto de dois herbicidas. Desse modo, estima-se que a
vista das ações de vigilância em saúde, esses utilização dessa tecnologia leve ao aumento
estudos epidemiológicos realizados com po- do uso desses herbicidas, aumentando,
pulações expostas a misturas apontam a si- assim, o risco dos impactos sobre a saúde e
tuação de extrema vulnerabilidade imposta o ambiente, que podem ser potencializados
pela realidade do uso adotada na agricultura com o uso concomitante desses dois Ias, as-
brasileira e a insuficiência da estrutura regu- sociados à indução de LNH.
latória e das legislações vigentes para evitar A lei brasileira preconiza que os agro-
doenças crônicas, não somente o LNH, mas, tóxicos somente podem ser utilizados no
também, outros tipos de câncer. País se forem registrados em órgão federal
Os ingredientes ativos 2,4-D, glifosato e competente, de acordo com as diretrizes e
malationa estão registrados no Brasil para as exigências dos órgãos responsáveis pelos
culturas de arroz, café, milho, trigo, pastagens setores da saúde, do meio ambiente e da
e soja. Além deles, o 2,4-D e o glifosato estão agricultura (CARNEIRO ET AL., 2015). O registro é
autorizados para as culturas de cana-de- realizado pelo Mapa, mas com a anuência
-açúcar e sorgo; e, para uso domissanitário, do Ministério da Saúde (MS), através da
a diazinona, a malationa e o glifosato estão Anvisa, e do Ministério do Meio Ambiente
permitidos. Como esses agentes apresentam (MMA), por meio do Instituto Brasileiro
mecanismos de carcinogenicidade semelhan- do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
tes e estão autorizados para os mesmos fins, Renováveis (Ibama).
a probabilidade de gerarem efeitos sinérgicos Desde 2006, a Anvisa tem realizado a
é grande, o que pode favorecer o desenvol- reavaliação toxicológica de diversos agro-
vimento do câncer e, mais especificamente, tóxicos, incluindo o 2,4-D (Resolução n°
do LNH. Portanto, as agências reguladoras 124A/2006) e o glifosato (Resolução n°
deveriam adotar diretrizes que restringissem 10/2008). Isso ocorre porque muitos tiveram
a comercialização de formulações com mistu- seus registros realizados décadas atrás,
ras de ingredientes ativos que tenham meca- quando as metodologias científicas eram
nismos de ação tóxica semelhantes para uma pouco avançadas, principalmente no que se
mesma cultura. Para isso, os órgãos respon- refere aos efeitos detectáveis no âmbito ge-
sáveis pela fiscalização e os profissionais que nômico ou de receptores e reguladores ce-
emitem os receituários agronômicos também lulares (ANVISA, 2016). Todavia, a judicialização

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 49-62, JAN-MAR 2017


60 INDIO-DO-BRASIL, V.; SARPA, M.; FRIEDRICH, K.

recorrente do processo de reavaliação toxi- para essa problemática. Este trabalho pro-
cológica realizada pelos fabricantes e a so- curou abordar de maneira interdisciplinar
breposição dos interesses do setor agrícola o tema estudado com o intuito de subsidiar
frente à proteção da vida humana prolongam medidas intersetoriais para controle, pre-
o tempo de permanência desses produtos no venção e vigilância do câncer no Brasil, refe-
mercado nacional. rentes ao uso de agrotóxicos.
A questão abordada neste ensaio
mostra-se, portanto, de extrema relevância
Conclusões para as ações de vigilância, uma vez que as
autoridades regulatórias autorizam o uso
No estudo em questão, foi possível evidenciar concomitante de agrotóxicos que apre-
a existência de ingredientes ativos de agrotó- sentam mecanismos de carcinogenicidade
xicos com associação positiva ao desenvolvi- semelhantes e que aumentam o risco de apa-
mento de LNH e que também já haviam sido recimento de câncer.
classificados recentemente pela Iarc quanto Diante desse cenário de extrema vulnera-
ao potencial carcinogênico: 2,4-D, diazinona, bilidade da população brasileira a doenças
glifosato e malationa. O uso de agrotóxicos e causadas pelos agrotóxicos, diretrizes re-
o aumento das taxas de incidência do LNH gulatórias e legislações mais restritivas são
são temas explorados pela área acadêmica, urgentes, assim como o investimento em
por agências internacionais voltadas para serviços de saúde e a promoção de políticas
o controle e a prevenção do câncer e pelas de prevenção de doenças crônicas não trans-
políticas nacionais e internacionais voltadas missíveis. s

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REVISÃO | REVIEW 63

Da noção de determinação social à de


determinantes sociais da saúde
From the notion of social determination to one of social determinants
of health

Júlia Arêas Garbois1, Francis Sodré2, Maristela Dalbello-Araujo3

RESUMO O ensaio aborda criticamente a noção de determinantes sociais da saúde, veiculada


oficialmente pela Organização Mundial da Saúde, a partir da discussão sobre sua perspec-
tiva conceitual que difere bastante daquela cunhada por volta dos anos 1970, pela corrente
médico-social latino-americana, de determinação social da saúde. A discussão desnuda os
preceitos filosóficos que sustentam a noção de determinantes sociais da saúde, a partir dos
argumentos fundados na sociologia positivista de Émile Durkheim. Conclui-se que essa noção
identifica um ‘social’ fragmentado, trazendo consequências práticas e políticas e mostrando-
-se insuficiente para analisar as mudanças sociais da contemporaneidade.

PALAVRAS-CHAVE Ciências sociais. Medicina social. Saúde pública. Epistemologia. Processo


saúde-doença.

ABSTRACT The article critically discusses the concept of social determinants of health, conveyed
officially by the World Health Organization, from the discussion of its conceptual perspective
that differs greatly from that coined around the 1970’s by Latin American medical-social current,
1 Universidade Federal of social determination of health. The discussion reveals the philosophical principles that
do Espírito Santo (Ufes),
Programa de Pós- underpin the notion of social determinants of health from the arguments based by the positivist
graduação em Saúde sociology of Émile Durkheim. We conclude that such notion identifies a fragmented ‘social’, that
Coletiva – Vitória (ES),
Brasil. reflects practical and political consequences and it is insufficient to analyze the social changes of
juliagarbois@hotmail.com contemporaneity.
2 Universidade Federal

do Espírito Santo (Ufes), KEYWORDS Social sciences. Social medicine. Public health. Knowledge. Health-disease process.
Programa de Pós-
graduação em Saúde
Coletiva – Vitória (ES),
Brasil.
francisodre@uol.com.br

3 Universidade Federal
do Espírito Santo (Ufes),
Programa de Pós-
graduação em Saúde
Coletiva – Vitória (ES),
Brasil. Escola Superior de
Ciências da Santa Casa de
Misericórdia, Programa em
Políticas Públicas – Vitória
(ES), Brasil.
dalbello.araujo@gmail.com

DOI: 10.1590/0103-1104201711206 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 63-76, JAN-MAR 2017
64 GARBOIS, J. A.; SODRÉ, F.; DALBELLO-ARAUJO, M.

Introdução questionamento do paradigma biomédico da


doença, que a conceituava como um fenô-
Este ensaio objetiva discutir, do ponto de meno biológico individual. Esse movimento
vista teórico-científico, a ideia de deter- de crítica se situa em um contexto social
minantes sociais da saúde, procurando de- marcado pela dificuldade da Medicina na
monstrar sua fragilidade e distanciamento produção de um novo conhecimento que
em relação à noção de determinação social, fosse capaz de compreender e explicar a
oriunda da corrente de pensamento da me- causalidade dos principais problemas de
dicina social latino-americana. Noção esta saúde que emergiam nos países industriali-
de grande importância para a demarcação do zados, como as doenças cardiovasculares e
campo de conhecimento da saúde coletiva. os tumores malignos (LAURELL, 1983).
Para isso, entende-se ser pertinente revi- Nesse movimento questionador ao para-
sitar a produção acadêmica latino-americana digma biomédico, a corrente da medicina
da década de 1970 sobre o conceito de saúde, social latino-americana trouxe importantes
marcada por intensas discussões conceituais contribuições para a argumentação teórica
que culminaram na perspectiva da deter- sobre as condições de insuficiência das práti-
minação social do processo saúde-doença. cas médicas em oferecer soluções satisfatórias
Após, será feito um contraponto com as atuais para a melhoria das condições de saúde da
propostas de abordagem desse processo, es- coletividade, demarcando a entrada de cor-
pecialmente a partir da criação da Comissão rentes do pensamento social na área da saúde,
dos Determinantes Sociais da Saúde, pela a partir da realização de uma nova leitura da
Organização Mundial da Saúde (OMS) com a saúde pública (FACCHINI, 1994; LAURELL, 1983; BREILH,
proposta de trabalho erigida sobre uma noção 1991; TAMBELLINI-AROUCA, 1984; AROUCA, 2003).
bastante diferenciada daquela da década de A argumentação partiu especialmente da
1970: a noção de determinantes sociais da crítica à abordagem positivista inscrita no
saúde (TAMBELLINI; SCHÜTZ, 2009; NOGUEIRA, 2009). modelo da história natural da doença, que
Busca-se elucidar o arcabouço teórico sub- interpretava o processo de adoecimento a
jacente à noção de determinantes sociais da partir de uma perspectiva ‘naturalizada’,
saúde, a partir dos argumentos fundados na centrada na causação linear e marcadamen-
sociologia clássica, mais especificamente, na te biologicista. A abordagem sugerida pela
sociologia positivista de Émile Durkheim, no corrente médico-social fundou-se, então,
intuito de desvelar os preceitos filosóficos que na recolocação da problemática da relação
lhe dão sustentação. Finaliza-se, estabelecendo entre o processo social e o processo bioló-
considerações a respeito das implicações ad- gico, a partir da perspectiva da ‘determina-
vindas da adoção da noção de determinantes ção’. Compreendeu a produção das doenças
sociais da saúde e de alguns dos desafios postos no plano da coletividade e construiu uma
pela atualidade que envolve essa problemática, análise científica dos processos que operam
com contribuições de pensamentos de teóricos como determinantes destas, por meio da am-
da sociologia como Latour (2012) e Santos (2008). pliação da explicação do princípio da causa-
lidade (LAURELL, 1983; BREILH, 1991).
Em ‘Saúde e sociedade’, Donnangelo (1979)
Origens da noção de compreendeu as complexas relações sociais
determinação social da existentes no processo de produção da saúde
e da doença, por meio da análise dos vínculos
saúde que existem entre a extensão de cobertura
dos cuidados médicos, os serviços de saúde e
No final dos anos 1970, houve um profundo as necessidades do capitalismo no sentido de

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 63-76, JAN-MAR 2017


Da noção de determinação social à de determinantes sociais da saúde 65

manter e reproduzir a força de trabalho, con- mais profundas das doenças, valorizando a
trolar as tensões e antagonismos sociais e reali- essência dos fatos sociais, e não apenas as
zar a acumulação de capital do setor industrial suas manifestações fenomênicas. Cria-se,
de equipamentos e de insumos médicos. a partir desse intenso debate teórico-con-
A ótica de análise passou a ser estabele- ceitual, a noção de ‘determinação social da
cida pela abordagem da dimensão coletiva saúde’ como categoria analítica, com refe-
como produtora e reprodutora das formas, rencial teórico delimitado, para servir de
tanto de adoecimento, quanto de vitalidade. base conceitual aos estudos desenhados com
Ou seja, se a finalidade era compreender a o propósito de ampliar a discussão sobre a
saúde-doença como um fenômeno coletivo, o produção coletiva da saúde.
objeto de estudo não partia mais do indivíduo, Breilh (1991) propôs o arcabouço teórico-
mas sim do grupo. Dessa maneira, o objeto de -metodológico do materialismo histórico
estudo da corrente médico-social envolvido como uma possibilidade de integrar o ponto
na produção de conhecimento passou a ser o de vista popular e o rigor de um método de
processo saúde-doença coletivo: análise científica, uma ferramenta efetiva
de transformação política. A partir dessa
Por processo saúde-doença da coletividade, perspectiva, Tambellini-Arouca (1984) enfati-
entendemos o modo específico pelo qual za as relações entre o trabalho e o processo
ocorre no grupo o processo biológico de saúde-doença. A partir de então, será essa a
desgaste e reprodução, destacando como principal categoria retirada do pensamento
momentos particulares a presença de um marxista para auxiliar na leitura aos fenôme-
funcionamento biológico diferente com con- nos considerados estritos à saúde, colocando
sequência para o desenvolvimento regular no processo de trabalho a dimensão da de-
das atividades cotidianas, isto é, o surgimento terminação do processo de adoecimento, ao
da doença. (LAURELL, 1983, P. 152). considerá-lo como o mediador das relações
estabelecidas entre o homem e a natureza e
A reformulação da natureza da doença, entre os próprios homens.
que passou a ser vista como um processo
da coletividade – no qual o que interessa é o
estudo do modo como o processo biológico A noção de determinantes
acontece socialmente –, trouxe, como conse- sociais da saúde
quência, a mudança do léxico: ‘de fator para
processo’. Essa visão saúde-doença como Desde a virada do século, a temática da deter-
resultante de um processo social traduziu-se minação social da saúde passou a ocupar uma
na reinterpretação de suas causas: de entida- posição central nos debates internacionais a
des estáticas, passíveis de abstração formal, respeito das relações entre a saúde e a socieda-
ao entendimento de seu caráter dinâmico, de. Entretanto, tal retomada entrou na agenda
como parte integrante do “movimento global política mundial a partir de uma perspectiva
da vida social” (BREILH, 1991, P. 200). teórico-metodológica bastante diferenciada
O deslocamento de uma produção cientí- daquela produzida pela corrente médico-social
fica que migra de um ‘fator social’ para um latino-americana, a epidemiologia social da
‘processo social’ cria o encadeamento de década de 1970 (ALMEIDA-FILHO, 2010).
ideias que sugerem a formação de um novo As discussões reaparecem sob a chancela
campo. Um campo no qual o foco de análise de ‘determinantes sociais da saúde’ (DSS), no
recai sobre a necessidade de observação das sentido de fomentar um intenso debate cujo
leis históricas de produção e organização foco principal de análise incide sobre o tema
das sociedades na explicação das causas ‘desigualdades’, por meio da constatação de

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 63-76, JAN-MAR 2017


66 GARBOIS, J. A.; SODRÉ, F.; DALBELLO-ARAUJO, M.

importantes disparidades nas condições de circunstâncias em que as populações cres-


vida e de trabalho, no acesso diferenciado a cem, vivem, trabalham e envelhecem, bem
serviços assistenciais, na distribuição desi- como os sistemas implementados para lidar
gual de recursos de saúde e nas suas repercus- com a doença,
sões sobre a morbidade e mortalidade entre
os diferentes grupos sociais (ALMEIDA-FILHO, 2010). circunstâncias tais que são moldadas,
Esse contexto de reaparecimento da temáti- por outro lado, por “forças de ordem polí-
ca foi, em grande parte, alavancado pela OMS tica, social e econômica” (COMISSÃO PARA OS
quando, em 2005, criou uma comissão espe- DETERMINANTES SOCIAIS DA SAÚDE, 2010, P. 1). Nesse
cífica para discutir os determinantes sociais sentido, as condições de vida mostram-se
da saúde – Comissão para os Determinantes determinadas pelo lugar que cada um ocupa
Sociais da Saúde (CDSS) – e convocou as auto- na hierarquia social. Esse conceito, tal como
ridades dos países para a necessidade de chegar elaborado pela comissão, foi inspirado no
a uma decisão coletiva de combater as expressi- modelo de Dahlgren e Whitehead (COMISSÃO
vas desigualdades em saúde. PARA OS DETERMINANTES SOCIAIS DA SAÚDE, 2010), e
A CDSS entende os determinantes sociais pode ser resumido conforme a figura 1 a
da saúde como as seguir:

Figura 1. Modelo dos Determinantes Sociais da Saúde proposto por Dahlgren e Whitehead e adotado pela OMS

Condições de Vida
e de Trabalho
Ambiente de
Trabalho Desemprego

Educação Água e Esgoto

Serviços
Sociais
de Saúde
Produção
Agrícola e de
Alimentos IDADE, SEXO
E FATORES Habitação
HEREDITÁRIOS

Fonte: Comissão Nacional sobre os Determinantes Sociais da Saúde (2008).

Nesse modelo, os determinantes sociais Assim, conforme a figura, os indivíduos


da saúde são abordados em camadas, desde encontram-se na base desse modelo, com
aquelas que expressam as características suas características individuais de idade,
individuais, até as que incluem os macro- sexo e fatores genéticos. A camada seguin-
determinantes do processo saúde-doença. te, representada pelos comportamentos e

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 63-76, JAN-MAR 2017


Da noção de determinação social à de determinantes sociais da saúde 67

estilos de vida individuais, encontra-se no acordo com a renda, a educação, a ocupação,


limiar entre aqueles fatores individuais e o gênero, a raça/etnia e outros fatores. Essas
os DSS, já que os comportamentos, além de posições socioeconômicas, por sua vez, de-
serem dependentes de opções individuais, terminam vulnerabilidades e exposições
são também dependentes dos DSS, como diferenciadas nas condições de saúde (deter-
o acesso a informações e alimentos saudá- minantes intermediários) e refletem o lugar
veis, lazer, entre outros. A camada seguinte das pessoas dentro das hierarquias sociais.
é representada pelas redes comunitárias e Entre os fatores contextuais relacionados
de apoio, que conformam redes de solidarie- com a produção e manutenção da hierarquia
dade e expressam, em maior ou menor grau, social, os autores destacam: 1) estruturas de
de acordo com a sua organização, o nível de governança formais e informais relaciona-
coesão social. Logo após, encontram-se os das com mecanismos de participação social
fatores relacionados com as condições de da sociedade; 2) políticas macroeconômicas,
vida e de trabalho dos indivíduos, disponibi- incluindo políticas fiscais, monetárias, polí-
lidade de alimentos, assim como o acesso a ticas de mercado e a estrutura do mercado
serviços essenciais, como saúde e educação, laboral; 3) políticas sociais nas áreas de
indicando os diferenciais de vulnerabilidade emprego, posse de terra e habitação; 4) po-
a que estão expostos os indivíduos que se líticas públicas em áreas como educação,
encontram em condição de pobreza. Por fim, saúde, água e saneamento, assim como a ex-
a última camada expressa os macrodetermi- tensão e a natureza de políticas redistributi-
nantes relacionados com as condições eco- vas, de seguridade social e de proteção social
nômicas, sociais e ambientais em que vive e 5) aspectos relacionados com a cultura e
a sociedade, assim como os determinantes com os valores sociais legitimados pela so-
supranacionais como o processo de globali- ciedade (SOLAR; IRWIN, 2010).
zação (COMISSÃO NACIONAL SOBRE OS DETERMINANTES Os determinantes intermediários refe-
SOCIAS DA SAÚDE, 2008). rem-se ao conjunto de elementos categori-
Em 2010, a OMS estabelece um novo zados em circunstâncias materiais (como
marco conceitual sobre os DSS, sintetiza- condições de moradia, características da vi-
do a partir do modelo proposto por Solar zinhança, condições de trabalho, qualidade
e Irwin (2010), e que foi adotado no ano se- do ar, acesso e disponibilidade a alimentos,
guinte, na Conferência Mundial sobre os água), fatores comportamentais (estilos de
Determinantes Sociais da Saúde de 2011, vida e comportamentos, que se expressam,
sendo incluído no relatório ‘Diminuindo entre outros, nos padrões de consumo de
diferenças: a prática das políticas sobre de- tabaco, álcool e na falta de atividade física),
terminantes sociais da saúde’ (ORGANIZAÇÃO biológicos (fatores genéticos) e psicossociais
MUNDIAL DA SAÚDE, 2011). Nesse modelo ( figura (estressores psicossociais, circunstâncias
2), os determinantes estruturais operam por estressantes, falta de apoio social). Nesse
meio de um conjunto de determinantes in- marco conceitual, o sistema de saúde é con-
termediários para moldar os efeitos na saúde. siderado um determinante intermediário da
A ‘estrutura’ expressa como os mecanismos saúde, reconhecendo principalmente a influ-
sociais, econômicos e políticos dão origem a ência das barreiras de acesso. A coesão social
um conjunto de posições socioeconômicas, e o capital social atravessam as dimensões
em que as populações são estratificadas de estrutural e intermediária (SOLAR; IRWIN, 2010).

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 63-76, JAN-MAR 2017


68 GARBOIS, J. A.; SODRÉ, F.; DALBELLO-ARAUJO, M.

Figura 2. Modelo dos Determinantes Sociais da Saúde proposto por Solar e Irwin

CONTEXTO
SOCIOECONÔMICO
E POLÍTICO

Governança
Posição
Socioeconômica Circunstâncias materiais
Políticas
macroeconômicas (Condições de moradia IMPACTO
e trabalho, disponibilidade
de alimentos etc.) SOBRE A
Políticas sociais EQUIDADE
Classe social EM SAÚDE
Mercado de trabalho Gênero
Habitação, terra Fatores comportamentais EO
Etnia (racismo)
e biológicos BEM-ESTAR
Políticas públicas
Educação, Saúde Fatores psicossociais
Proteção Social Educação
Coesão Social & Capital Social
Cultura e Ocupação
Valores sociais
Renda

Sistema de saúde

DETERMINANTES ESTRUTURAIS
DAS DESIGUALDADES DE SAÚDE DETERMINANTES INTERMEDIÁRIOS
DA SAÚDE

Fonte: Solar e Irwin (2010).

As causas estruturais são projetadas em de vida. Além disso, o desenho de Solar e


ambos os modelos conceituais em formatos Irwin, ao explorar o recurso gráfico da seta,
bastante diferenciados, alcançando posições dá projeção à compreensão das relações e
de relevância e significação distintas. No conexões entre os determinantes estruturais
modelo proposto de Dahlgren e Whitehead e os determinantes intermediários da saúde.
( figura 1) tais causas aparecem muito peri- Breilh (2013) entende que essa abordagem
fericamente (a ‘camada’ mais fina da figura), inscrita no marco conceitual proposto por
sob a denominação de ‘determinantes Solar e Irwin, apesar de representar um pa-
distais, ou macrodeterminantes econômi- radigma de transição crítica que se abre para
cos e sociais’. Entende-se que a projeção a percepção do ‘estrutural’, começa a romper
periférica dada aos determinantes estru- com uma visão mais restritiva da epidemio-
turais nesse desenho esquemático, somada logia convencional, sem que isso represente
à ênfase dada à camada intermediária das uma mudança de paradigma.
‘condições de vida e de trabalho’, assim como Muitas críticas têm sido estabelecidas a
a dos fatores individuais (como idade, sexo e essa abordagem da OMS sobre os determi-
fatores hereditários), traduz a pouca impor- nantes sociais da saúde. Essas críticas têm
tância conceitual que foi atribuída a estes na sido articuladas especialmente por meio de
construção dessa noção de DSS. debates no interior da saúde coletiva e da
Já no modelo de Solar e Irwin ( figura 2) medicina social latino-americana, circulan-
adotado atualmente pela OMS, as causas es- do ao redor da diferenciação entre deter-
truturais assumem uma posição de destaque, minante sociais da saúde e a determinação
mais próxima ao alcance da ideia de ‘raiz’ social do processo saúde-doença (ARELLANO;
ou ‘base’, representando a prioridade causal ESCUDERO; CARMONA, 2008; TAMBELLINI; SCHÜTZ, 2009;
(que foi dada neste marco conceitual) aos NOGUEIRA, 2009; BREILH, 2013; ALBUQUERQUE; SILVA,
fatores estruturais na geração das iniquida- 2014; GARBOIS; SODRÉ; DALBELLO-ARAUJO, 2014, BORDE;
des em saúde e na modulação das condições HERNANDEZ-ALVAREZ; PORTO, 2015).

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Da noção de determinação social à de determinantes sociais da saúde 69

Entendem, em geral, que a OMS aborda os ‘singular’, essas não foram reconhecidas
determinantes sociais da saúde sob o ponto como contribuições latino-americanas origi-
de vista de ‘fatores’ (condições de vida, de nais (BREILH, 2013). Além disso, essas dimensões
trabalho, de moradia, de educação, de trans- foram transformadas em níveis de variáveis
porte etc.), ‘contextos’, ‘circunstâncias’ e ou fatores causais, em modelos que traba-
‘condições’, adotando, assim, uma perspecti- lham com ações de governança limitadas
va reducionista e fragmentada da realidade e funcionalistas, uma vez que acabam por
social. Isso ofusca sobremaneira o entendi- limitar superação das desigualdades sociais
mento dos múltiplos processos socioeconô- em saúde ao plano da ‘melhoria das condi-
micos, culturais, ecobiológicos, psicológicos ções de vida’ e à ideia de ‘repartir recursos’,
que compõem as articulações dinâmicas do limitando a saúde a um bem de justiça distri-
objeto saúde-doença, uma vez que não reco- butiva a cargo do Estado (BREILH, 2013; ARELLANO;
nhece que o perfil patológico é criado e trans- ESCUDERO; CARMONA, 2008). Em outros termos,
formado por cada sociedade em diferentes trata-se de uma abordagem que não reco-
momentos históricos, ao mesmo tempo que nhece a incompatibilidade entre o regime de
converte as estruturas sociais em variáveis e acumulação capitalista e os modos de vida
não em categorias de análise do movimento saudáveis (BREILH, 2013).
de produção e reprodução social (TAMBELLINI; Esse posicionamento foi assumido pela
SCHÜTZ, 2009; ARELLANO; ESCUDERO; CARMONA, 2008; Associação Latino-Americana de Medicina
BREILH, 2013). Social (Alames) – e publicado pelo Centro
Breilh (2013) afirma que essa perspectiva Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) – no
de abordagem é reducionista, pois oculta ca- ano de 2011. Nessa colocação, solicitou-se
tegorias analíticas de peso dentro das ciên- que o conceito de determinantes sociais não
cias sociais (como reprodução social, modos fosse banalizado ou reduzido, mas que fosse
de produção, relações de produção etc.) e lembrado que por trás de todo reducionismo
torna difícil proporcionar um pensamento do conceito estava uma clara ideia de mer-
crítico direto sobre a essência da organi- cantilização da vida. Uma ideia incitada por
zação social da sociedade de mercado e do um poder hegemônico neoliberal que se ex-
regime de acumulação capitalista, por meio pressa em uma propriedade intelectual que
dos processos de geração e reprodução da beneficia a indústria médica, assim como
exploração humana e da natureza e as suas em diferentes estratégias de manipulação do
marcadas consequências na saúde. pensamento coletivo, que possuem a mídia
Conforme Breilh (2013), as ‘causas estru- e os meios de comunicação como veículos
turais’ das desigualdades sociais em saúde, centrais nesse processo (CEBES, 2011).
apesar de assumirem uma posição de maior No plano da epistemologia científica,
relevância no último modelo adotado pela Garbois, Sodré e Dalbello-Araujo (2014)
OMS ( figura 2), ainda aparecem como abs- problematizam a visão sobre o ‘social’ pre-
trações esvaziadas de conteúdo crítico e sente na noção de determinantes sociais da
de movimento. Impossibilitam, também, a saúde. Os autores partem de leituras críti-
análise do processo radical de acumulação cas produzidas por Boaventura de Sousa
econômica-exclusão social como eixo de Santos (2008) e Latour (2012) em relação ao
uma reprodução ampliada das desigualdades modelo de racionalidade científica ela-
sociais (em saúde). borado na modernidade, para colocar em
Muito embora ambos os modelos análise e produzir questionamentos em
assumam ideias-chave da produção crítica relação ao recorte que tal modelo imprime
latino-americana da década de 1970, como aos estudos científicos sobre o social
as dimensões do ‘geral’, do ‘particular’ e do (GARBOIS; SODRÉ; DALBELLO-ARAUJO, 2014).

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70 GARBOIS, J. A.; SODRÉ, F.; DALBELLO-ARAUJO, M.

Nessa análise, esclarecem que o paradig- que sustentam a noção de determinan-


ma que dá base a esse modelo impõe uma tes sociais da saúde. Nesse campo, Émile
separação total entre a natureza e o ser Durkheim (1858-1917) é considerado um dos
humano, exalta a quantificação, a divisão e autores clássicos, aquele que trouxe grande
fragmentação dos elementos componentes influência na sua consolidação enquanto dis-
da realidade a ser investigada, a centralidade ciplina acadêmica, inspirando-lhe rigorosos
da ciência estatística e, principalmente, favo- procedimentos de pesquisa. A partir da de-
rece o rigor enrijecido da objetividade e da limitação e investigação de um considerável
neutralidade científica (GARBOIS; SODRÉ; DALBELLO- número de temáticas, esse autor deu-lhes
ARAUJO, 2014; SANTOS, 2008). Além de fragmentar, definição sociológica própria e uma parcela
essa racionalidade demarca o social como considerável de sua obra foi dedicada à dis-
domínio específico e circunscrito, como algo cussão do método de pesquisa adequado à
distinto dos demais, como biologia, direito, instituição de uma ciência social.
geografia, psicologia etc., e útil apenas para
explicar os aspectos residuais que as outras
disciplinas não contemplam (LATOUR, 2012). A noção positivista de
Nesse sentido, configura-se a visão de um ‘determinantes sociais’
social fragmentado e externo à dimensão
saúde (GARBOIS; SODRÉ; DALBELLO-ARAUJO, 2014). Segundo Löwy (2009), a ciência social po-
Esse modelo foi inicialmente desenvolvi- sitiva de Durkheim possui como preceito
do no âmbito das ciências naturais, a partir central a noção de ‘lei social natural’. Esse
da revolução científica do século XVII, pressuposto considera que os acontecimen-
tendo como atributo necessário a enuncia- tos humanos podem ser explicáveis ‘natural-
ção de leis universais. Apoiava-se no prin- mente’, visto que compartilham a condição
cípio do determinismo, fundado a partir da de constância e regularidade, a mesma com
ideia de ordem e estabilidade do mundo, que se interpretam os fenômenos naturais.
e anunciava que a natureza é regida por A consequência epistemológica decorrente
constantes e regularidades e que caberia à desse pressuposto foi a de que os critérios,
ciência descobri-las. Aplicado ao campo da regras e procedimentos usados para a pes-
investigação científica, esse princípio resul- quisa das sociedades deveriam ser iguais
tou na premência dada à busca das relações aos utilizados pelas ciências naturais. Por
de causalidade entre os fenômenos (SANTOS, mostrarem-se subordinadas aos mesmos
2008). Nos séculos seguintes (XVIII e XIX), métodos das ciências naturais, as ciências
os pressupostos que apoiaram o desenvol- da sociedade deveriam limitar o estudo dos
vimento dos métodos de excelência para a fenômenos sociais à observação e à expli-
investigação dos fenômenos naturais foram cação causal, tornando possível interpretar
considerados como igualmente oportunos os ‘fatos naturais’ que regem as relações
para basearem a investigação dos eventos humanas e sociais (LÖWY, 2009).
sociais, especialmente a partir da corrente Da mesma forma que as ciências naturais
filosófica positivista (SANTOS, 2008). eram reconhecidas como sendo objetivas,
Nessa discussão considera-se pertinen- neutras, livres de juízo de valor, as ciências
te revisitar os argumentos que foram con- sociais também deveriam proceder, usando
cebidos no bojo do desenvolvimento da o mesmo modelo de objetividade científi-
racionalidade científica moderna no campo ca. Assim, a concepção positivista afirmava
da sociologia, mais especificamente, da so- a possibilidade de que as ciências sociais se
ciologia positivista de Émile Durkheim, no desvinculassem de todos e quaisquer tipos de
intuito de desvelar os preceitos filosóficos julgamentos de valor e de ideologias (LÖWY, 2009).

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Da noção de determinação social à de determinantes sociais da saúde 71

Em ‘Regras do método sociológico’, A abordagem científica dos fenômenos


Durkheim (2007) estabeleceu as principais sociais enquanto ‘fatos’ traz como consequ-
regras que considerava necessárias para que ência a primeira regra essencial do método
a sociologia se tornasse uma ciência autô- sociológico: considerá-los como ‘coisas’.
noma, procurando demonstrar que poderia
haver uma ciência sociológica objetiva e É coisa, com efeito, tudo o que é dado, tudo o
científica, tal qual as ciências físico-mate- que se oferece, ou melhor, se impõe à obser-
máticas. Para isso, tal esfera de conheci- vação. Tratar fenômenos como coisas é tratá-
mento precisaria constituir e delimitar o seu -los na qualidade de dados que constituem o
próprio objeto de investigação: o fato social. ponto de partida da ciência. Os fenômenos
sociais apresentam incontestavelmente esse
É fato social toda maneira de fazer, fixada ou caráter. (DURKHEIM, 2007, P. 28).
não, suscetível de exercer sobre o indivíduo
uma coerção exterior; ou ainda, toda manei- O caráter de ‘coisa’ atribuído à análise
ra de fazer que é geral na extensão de uma científica da vida social retira dos indivíduos
sociedade dada e, ao mesmo tempo, possui a ideia ou noção que fazem dos fenômenos
uma existência própria, independente de suas e se foca nas representações estabelecidas
manifestações individuais (DURKHEIM, 2007, P. 13). pela coletividade, materializadas por meio
de normas jurídicas, de valores econômicos
O fato social, como um objeto passível de etc.
observação e explicação científica, precisa- Dessa regra fundamental, Durkheim (2007)
ria apresentar características bem definidas: extraiu as subsequentes. Uma delas diz res-
a exterioridade, ou seja, a capacidade de peito à necessidade de o pesquisador esta-
revelar-se independentemente dos indivídu- belecer um afastamento de suas pré-noções,
os; a coercitividade, mostrando-se capaz de de seus preconceitos, das ideias formadas e
exercer uma imposição sobre os pensamen- cristalizadas pelo senso comum, para que
tos e sentimentos dos indivíduos; a gene- aquele possa realizar a observação dos fatos
ralidade, isto é, a capacidade de mostrar-se sociais. Esse afastamento requer do sociólo-
comum a todos ou à maioria dos indivíduos a go um rompimento com conceitos formados
partir de determinadas maneiras de pensar, em domínios exteriores ao científico e que o
agir e sentir (DURKHEIM, 2007). autor julga como falsas evidências. A ciência
Por apresentarem-se como realidade seria o lócus de um saber neutro, desprovi-
externa, anterior aos indivíduos, em outras do de julgamentos de valor. Dessa maneira,
palavras, elaboradas por gerações anteriores o sociólogo, em uma investigação científica,
às existências atuais, a ‘internalização’ dessas dirigindo-se a um grupo determinado de
maneiras coletivas de agir e pensar se dá por fenômenos, deveria defini-los previamente.
intermédio da educação. Esta, segundo o autor, Essa regra é colocada como a condição pri-
consiste em um contínuo esforço por socializar meira e indispensável para que exista a pos-
o indivíduo no meio em que vive, impondo, sibilidade de prova e verificação dos fatos
desde os primeiros anos de vida, maneiras de (DURKHEIM, 2007).
agir, de sentir e de ver às quais não chegaria Essa definição, segundo o autor, deve ser
de forma espontânea, como comer e dormir a mais objetiva possível, de maneira que seja
em horários regulares, ter hábitos higiênicos, capaz de exprimir os fenômenos por meio
ser obediente e paciente, estudar, trabalhar. de propriedades inerentes a eles próprios, e
Aos poucos, essas maneiras de agir vão dando não daqueles que provenham de uma ideia
lugar a hábitos e tendências que resultam dessa do pesquisador. Isso significa que a inves-
coerção (DURKHEIM, 2007). tigação deve partir das manifestações mais

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72 GARBOIS, J. A.; SODRÉ, F.; DALBELLO-ARAUJO, M.

exteriores de um fenômeno. Definir os fe- o afastamento das pré-noções, crenças e pre-


nômenos sociais a partir de seus caracteres conceitos do pesquisador na observação dos
exteriores requer também que o pesquisador fatos sociais.
os considere naqueles aspectos em que se Essa caracterização e delimitação do
apresentam isolados de suas manifestações social tornou-o passível de ser isolado,
individuais, de forma que sejam represen- fragmentado e classificado pela ciência.
tados da maneira mais objetiva possível Possibilitou decompô-lo em tantos ‘fatores’,
(DURKHEIM, 2007). Isso quer dizer que o que pre- ‘estratos’, ‘camadas’ quanto fossem necessá-
valece é a forma como o fenômeno apresen- rios para que se estudassem e organizassem
ta-se na coletividade, em sua generalidade. as relações de causalidade com fenômenos
da vida, como o processo saúde-doença. A
Fora dos atos individuais que suscitam, os hábi- partir dessas considerações, entende-se ter
tos coletivos se exprimem por meio de formas explanado a maneira pela qual os pressupos-
definidas: regras jurídicas, morais, provérbios tos positivistas se inscrevem na mutação de
populares, fatos de estrutura social, etc. Como léxico entre determinação social e determi-
estas formas existem de maneira permanente, nante social. Então, resta apontar, ainda que
como não mudam com as diversas aplicações incipientemente, as consequências de tal al-
que delas são feitas, constituem um objeto teração, tanto do ponto de vista epistemoló-
fixo, uma medida constante que está sempre gico como para a diminuição das iniquidades
à disposição do observador e que não deixa lu- em saúde.
gar às impressões subjetivas e às observações
pessoais. (DURKHEIM, 2007, P. 45-46).
Considerações finais
Vê-se aí, como a propriedade de ‘coisa’
atribuída ao ‘social’ retira-lhe a dinamici- O estudo teve como ponto chave de discussão
dade e a organicidade inerentes. Para que a noção de determinantes sociais da saúde
os fenômenos sociais possam ser objetiva- veiculada oficialmente pela OMS a partir do
mente abordados, precisam apresentar uma ano de 2005. Nesse sentido, entende-se que
fixidez, uma medida precisa, que se mostre é importante reforçar a diferença entre as
por si mesma e que independa do ponto de noções de ‘determinação social da saúde’ e a
vista do pesquisador, eliminando tudo o que de ‘determinantes sociais da saúde’.
tem de variável e de subjetivo. A noção de determinação social da saúde
As regras estabelecidas pelo positivismo foi construída nas três últimas décadas do
de Durkheim não apenas trouxeram, mas, século XX, a partir de um importante mo-
principalmente, legitimaram, no interior vimento de produção científica da corren-
das Ciências Sociais, os pressupostos da te médico-social latino-americana. Essa
objetividade, fundamentada na reificação corrente empenhou-se em trazer suporte
do social enquanto ‘fato’, a partir de duas teórico para elaboração de um pensamen-
características consideradas indispensáveis to social na área da saúde, na realização de
para a validação científica: a exterioridade, uma nova leitura da Saúde Pública, a partir
ou seja, a capacidade de mostrar-se como de uma perspectiva crítica à abordagem po-
uma realidade independente e externa ao sitivista da história natural da doença. Essa
indivíduo e a generalidade, ser comum a leitura crítica foi intensamente marcada
todos ou à maioria dos indivíduos. Além de por referenciais vinculados ao materialismo
exigir a neutralidade da ciência na análise histórico, com ênfase nos processos de pro-
dos fenômenos sociais, na medida em que dução e reprodução social. Retirou do pensa-
colocou como fundamentalmente necessário mento marxista o ‘trabalho’ como categoria

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Da noção de determinação social à de determinantes sociais da saúde 73

central e assentou no ‘processo de trabalho’ natural, social, biológico. Configuram-se,


uma notável importância sobre a determina- assim, perfis profissionais desmotivados e
ção do processo de adoecimento. despreparados para encarar os desafios que
Anos mais tarde, na entrada do século a atualidade impõe e que se expressam na
XXI, a OMS, por meio da criação da já citada necessidade de conexão de saberes e fazeres.
comissão, retoma a discussão do social na Considera-se que insistir na abordagem
análise e compreensão do processo saúde- de um social fragmentado é escolha de um
-doença, a partir da noção de ‘determinan- caminho que se mostra na contramão dos
tes sociais da saúde’. Essa noção explicita a esforços envidados para a construção da
reificação do social e a necessidade de ca- interdisciplinaridade.
racterizá-lo como um domínio específico e Em outra perspectiva, Ianni (2011) apre-
limitado da realidade, além de tratá-lo como senta os grandes desafios postos na con-
algo externo ao sujeito coletivo/individu- temporaneidade para o avanço do campo
al, algo estabelecido ‘a priori’: uma medida científico, desafios estes que estão ligados às
precisa, estática, fixa, ou, nas palavras de bases históricas sobre as quais se constituiu
Durkheim o pensamento das ciências sociais ‘clássicas’.
Para a autora, as ciências sociais desenvolve-
[...] um objeto fixo, uma medida constante que ram o seu arcabouço teórico-conceitual de
está sempre à disposição do observador e que explicação dos fenômenos sociais recorren-
não deixa lugar às impressões subjetivas e às do exclusivamente à sociedade, partindo da
observações pessoais. (DURKHEIM, 2007, P. 46). pressuposição de que tais fenômenos fossem
explicados apenas por causas sociais, dene-
Assim, uma revisitação às obras de gando o universo biológico e o meio externo
Durkheim, deixa claros os pressupostos posi- natural, assim como o indivíduo, e focando
tivistas presentes na ideia de determinantes apenas nos processos coletivos.
sociais da saúde, na medida em que desvela
os argumentos filosóficos de fragmentação e Nos marcos do pensamento moderno, por-
esquematização dos fenômenos sociais em tanto, as questões que permeiam a saúde-
fatores diversos, passíveis de serem estuda- -doença mantiveram-se polarizadas de forma
dos isoladamente, como ‘fatos sociais’. excludente – o indivíduo e o coletivo, o bio-
A consequência de operar dessa maneira lógico e o social, as diferentes racionalida-
reforça a disciplinarização e a divisão do des (Ciências sociais – Ciências naturais).
conhecimento em ‘setores de saber’ incomu- Ao biológico, esfera das Ciências naturais, o
nicáveis. No campo de produção de conhe- ‘quase imutável’, o mundo das leis fixas. Ao
cimento e formação em saúde, encontra-se social, esfera das ciências sociais, o mundo
um exemplo emblemático ao se analisar dis- em transformação, das crises, das revoluções,
ciplinas da grade curricular dos diversos dos levantes e mudanças históricas, políticas.
cursos que a compõem (a área da saúde), (IANNI, 2011, P. 34).
como a sociologia e a psicologia, na qual, na
grande maioria das vezes, são ofertadas de Os atuais problemas ambientais, tais
modo paralelo e sem relação com as demais como as mudanças climáticas ocorridas
disciplinas, colocando-se o social como uma em decorrência do aquecimento global, as
‘dimensão externa’ ao indivíduo e à saúde e catástrofes naturais, a diminuição dos re-
que podem ser acessados quando se precisa cursos hídricos, a diminuição e extinção de
estabelecer frouxas relações com o processo espécies, o aumento da produção de lixo
saúde-doença; estabelecendo e reforçan- e as contaminações de produtos agríco-
do dicotomias entre indivíduo, coletivo, las por agrotóxicos acabam por desvendar

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74 GARBOIS, J. A.; SODRÉ, F.; DALBELLO-ARAUJO, M.

a aparente e equivocada divisão entre o abordagem ao social, que o compreenda como


natural e o social, uma vez que esses fenô- ponto de chegada, de convergência, e não
menos são “natureza produzida socialmente, como ponto de partida. Abordagem esta capaz
pelas mãos humanas” (IANNI, 2011, P. 35). de afirmar que não há nada de específico na
No entanto, o presente momento de emer- ordem social, que o social não deve ser com-
gência de profundas mudanças sociais vem preendido como uma coisa particular ou como
forçando a teoria social contemporânea uma realidade específica. Tal abordagem trata
a ocupar-se pelos fenômenos e contextos de reagrupar, de redefinir e de restabelecer
sociais de sua atualidade (IANNI, 2011, P. 35). conexões e associações fornecidas por domí-
nios específicos e heterogêneos da realidade
Emergem conceitos como reflexivo, risco, lí- de modo a entender os fenômenos a partir de
quido, mundialização, global, cosmopolítico suas incessantes vinculações. Na perspectiva
etc. Agora os problemas já não são mais da de Santos (2008), trata-se de uma ciência que
afirmação de objetos disciplinares da nature- seja capaz de estudar os fenômenos naturais a
za ou da cultura, do biológico e do social (e partir dos sociais. Isso requer incorporar, para
nem poderiam sê-lo). além de métodos capazes de quantificar a rea-
lidade, aqueles métodos que possam se debru-
Diante desses grandes desafios, entende-se çar na compreensão da realidade subjetiva do
ser urgente abrir um amplo debate sobre os ‘outro’, da vida em coletividade.
caminhos e trajetórias adotados e sua possível Do ponto de vista das políticas públicas
transformação. Um dos pontos é a necessida- de saúde, entende-se que insistir na sepa-
de da superação do paradigma da disjunção, ração entre o social e a saúde significa con-
da redução, da divisão, da fragmentação, que trariar o princípio da integralidade. Reforça
sustenta a ciência moderna (SANTOS, 2008). Isso a fragmentação da vida e constrói atalhos
significa uma reforma radical do pensamen- contrários às diretrizes do Sistema Único de
to, afirmando um paradigma que dê conta da Saúde. Abordar os acidentes e as mais varia-
complexidade, da diversidade, das costuras, das formas de violência como ‘causas exter-
das conexões. nas’ ao setor saúde é reduzir a capacidade
Esse movimento de superação do para- política de todos os atores sociais para agir
digma moderno da racionalidade científica perante essas complexas questões sociais.
que fragmenta e dispersa o social, tem sido Na perspectiva das práticas cotidianas de
realizado de forma sustentada por impor- atenção à saúde, e, tendo como pressuposto
tantes teóricos sociais (LATOUR, 2012; SANTOS, que todo ato em saúde é dotado de significa-
2008). O paradigma emergente se sustenta na ção, adotar a noção de ‘determinantes sociais
condução de uma ciência pós-moderna que da saúde’ reforça a polaridade estabeleci-
ultrapasse a ideia de um mundo controlado da entre o ‘ser biológico’ e o ‘ser social’. É
e manipulado para a de um mundo que deva nessa lógica que o sujeito portador de certas
ser compreendido e contemplado; um para- doenças específicas, além de ser ‘dissecado’
digma que afirme a necessidade de que os pelas diversas especialidades médicas, é des-
pressupostos metafísicos, culturais, os siste- considerado como aquele que sofre violência
mas de crenças e sabedorias diversas sejam familiar, que vive em condições precárias de
parte integrante da explicação científica da vida e de trabalho, que depende das políticas
natureza e da sociedade; um paradigma que de assistência social para viver. Assim, o ser,
supere a dicotomia entre sujeito-objeto, ob- em toda a sua complexidade de existência,
servador-observado, natural-social, mente- é partido em distintas dimensões: o ser
-matéria, coletivo-individual (SANTOS, 2008). biológico – ‘investigado’ por médicos, en-
Latour (2012) sustenta a defesa em uma nova fermeiros, fisioterapeutas, dentistas, entre

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Da noção de determinação social à de determinantes sociais da saúde 75

outros profissionais de saúde; o ser social, ensaio, elaboração do rascunho e da revisão


para os assistentes sociais; e o ser psicoló- crítica e participou da aprovação da versão
gico, para os psicólogos. Cabe perguntar final. Francis Sodré contribuiu substancial-
em que medida essa postura contribui para mente para a concepção, planejamento do
a compreensão dos complexos fenômenos ensaio, elaboração do rascunho e da revisão
humanos e insufla o agir sobre eles. crítica e participou da aprovação da versão
final. Maristela Dalbello-Araujo contribuiu
substancialmente para a concepção, planeja-
Colaboradores mento do ensaio, elaboração do rascunho e
da revisão crítica e participou da aprovação
Júlia Arêas Garbois contribuiu substancial- da versão final. s
mente para a concepção, planejamento do

Referências

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 63-76, JAN-MAR 2017


ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE 77

Explotación minera y sus impactos


ambientales y en salud. El caso de Potosí en
Bogotá
Mining and its health and environmental impacts. The case of Potosí
in Bogotá

Ángela Marcela La Rotta Latorre1, Mauricio Hernando Torres Tovar2

RESUMO Bajo el modelo capitalista global este trabajo explora el vínculo entre la explotación
minera y sus impactos dentro de los campos del medio ambiente y la salud, tomando el caso
de la minería de materiales de construcción en Bogotá. El estudio es de carácter descriptivo
cualitativo y sus fuentes provienen de revisión literaria, observación y percepciones por parte
de los lugareños. Gracias a esta investigación se evidenciaron alteraciones en el estado de
salud física y mental de la población, su tejido social y daños al ambiente; lo que cuestiona
este modelo de desarrollo y sus patrones que ponen en riesgo la supervivencia, que va de la
mano con el surgimiento de serios conflictos medioambientales, evidenciando la relación del
ambiente tanto con la salud como con dinámicas socio-culturales.

PALAVRAS-CHAVE Minería. Salud. Ambiente. Desarrollo económico.

ABSTRACT Under the global capitalist model this paper explores the link between mining and its
environmental and health impacts, taking the case of mining of building materials in Bogotá. The
study is descriptive qualitative and its information comes from literature review, observation
and perceptions of inhabitants. From this search alterations were found in the physical and
mental health of the population, its social net, and environmental damage, questioning the
current development model and its patterns that put at risk the survival and goes together with
the emergence of serious environmental conflicts that show the relationship of the environment
with socio-cultural dynamics and health.

KEYWORDS Mining. Health. Environment. Economic development.

1 UniversidadNacional
de Colombia, Facultad
de Medicina – Bogotá,
Colômbia.
amlal@unal.edu.co

2 Universidad Nacional

de Colombia, Facultad de
Medicina, Departamento
de Salud Pública – Bogotá,
Colômbia.
mhtorrest@unal.edu.co

DOI: 10.1590/0103-1104201711207 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 77-91, JAN-MAR 2017
78 LA ROTTA LATORRE, Á. M.; TORRES TOVAR, M. H.

Introducción ocasionó enormes daños ecológicos y sociales,


esto debido a que ni el Ministerio de Ambiente
Actualmente, las dinámicas globales obe- y Desarrollo Sostenible ni las corporaciones
decen al modelo capitalista de producción autónomas regionales, han definido en su tota-
a gran escala, acumulación, derroche y lidad el régimen de uso de las zonas que les co-
despojo. Éste modelo, a su vez, está sopor- rresponden, desde las reservas forestales hasta
tado en el necesario consumo de productos, los humedales (SALAMANCA, 2013).
bienes y servicios que se ha ido incrementan- Este panorama crea un ambiente de ‘con-
do con el auge de la tecnología, el crecimien- fianza inversionista’ que atrae el capital de di-
to demográfico y las necesidades artificiales versas multinacionales para la explotación de
que crea el sistema productivo. Todos estos los territorios, confrontando los intereses de
productos requieren de diversos recursos las mismas con los del Estado y con los de las
naturales para su producción, y para lograr diversas comunidades que los habitan, comuni-
satisfacer la demanda se ha recurrido a la ex- dades que generan resistencia al defender sus
plotación de múltiples territorios llevando a recursos naturales y la salud de su población.
una destrucción sin precedentes. Estas problemáticas afectan principal-
Obedeciendo a este comportamiento mente a poblaciones vulnerables como los
mundial, el modelo extractivista se ha instau- indígenas o campesinos, al vivir en tierras es-
rado en Colombia como una de las principales tratégicas (INSUASTY; GRISALES; GUTIERREZ LEÓN, 2013).
actividades económicas, sin embargo, las con- Desafortunadamente, a las comunidades
secuencias ambientales, sociales, culturales y o no se les informa acerca de los proyectos
económicas, debidas a la pobre regulación, el mineros o se les informa mal o los intereses
escaso control, la falta de presencia del Estado económicos juegan un papel clave. Esto es
y la protección de intereses particulares pro- claro en el mecanismo de consulta previa
ducidas por estas actividades extractivas prin- según la Contraloría, ya que
cipalmente minero–energéticas han puesto en
evidencia complejos conflictos de carácter so- [...] en el proceso de otorgamiento de los títulos
cioambiental que repercuten profundamente mineros no se tiene en cuenta la consulta previa
en las dinámicas poblacionales y que comien- que es un derecho fundamental de las comuni-
zan a ser motivo de preocupación debido a los dades étnicas, pues se trata de un mecanismo
efectos que se vislumbran en las condiciones de básico para preservar su integridad étnica, so-
vida, salud y el tejido social propio de las pobla- cial, económica y cultural, y para asegurar su
ciones cercanas a los lugares donde se desarro- supervivencia como grupos sociales, tal como la
llan estos proyectos de explotación o de las que Corte Constitucional lo ha expresado en ocasio-
se han visto envueltas, directa o indirectamen- nes reiteradas. (SALAMANCA, 2013, P. 25).
te, en los mismos.
En Colombia, La Ley 685 (Código de Minas) Existen múltiples ejemplos de este
prácticamente coloca al Estado como un ob- modus operandi para el otorgamiento de
servador en cuanto a la actividad minera, títulos mineros en Colombia. El Cerrejón
mientras que incentiva la inversión privada, en la Guajira, Cerro Matoso, el páramo de
lo cual se ratifica en los Planes de Desarrollo Santurbán, Caramanta, Marmato, Cajamarca,
Minero desde el año 2002 hasta la actualidad sólo por mencionar algunos.
(INSUASTY RODRÍGUEZ; GRISALES; GUTIERREZ, 2013). En Evidentemente, estas problemáticas y
cuanto al sector ambiental la situación no es conflictos, unos ya existentes y posterior-
diferente; hasta hace poco menos de 10 años mente exacerbados por la minería, otros
se entregaron cientos de títulos mineros para generados por la presencia de la misma, obe-
la explotación de áreas protegidas, lo que decen a una serie de factores que convergen

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 77-91, JAN-MAR 2017


Explotación minera y sus impactos ambientales y en salud. El caso de Potosí en Bogotá 79

para dar paso a un clima de tensión, incerti- minera en Bogotá, a los impactos generados por
dumbre y vulnerabilidad en las comunidades la misma y al análisis general del estado de la
afectadas que desemboca luego en profun- población de la localidad de Ciudad Bolívar en
dos daños sociales, ambientales, sanitarios y conjunto con datos del último diagnóstico rea-
económicos. Como lo expresa la Contraloría lizado por el Hospital Vista Hermosa, hospital
General de la República de referencia de esta localidad. Igualmente se
analizaron algunos indicadores de la localidad
La presencia de complejos mineros en los te- presentados por los observatorios de ambien-
rritorios puede exacerbar situaciones como te y salud ambiental de la Alcaldía Mayor de
las antes descritas (…pauperización, confina- Bogotá, todo esto con el fin de caracterizar la
miento en el territorio, desplazamiento para población y su entorno.
satisfacción de necesidades básicas) o gene- Luego se recopilaron notas de prensa que
rar nuevos conflictos de pérdida de vigencia permitieron complementar la información
de derechos constitucionales e imposibilida- acerca de los actos de la comunidad y las diná-
des para que las poblaciones puedan disfrutar micas generadas entre los actores del conflic-
de una vida digna. (SALAMANCA, 2013, P. 58). to socioambiental en el territorio de Potosí.
Por último, se realizó una visita al territorio
En el marco de esta dinámica nacional el guiada por integrantes de la Mesa Ambiental
presente trabajo explora los vínculos entre la ‘No le Saque la Piedra a la Montaña’, habi-
explotación minera y sus impactos al ambiente tantes del barrio, quienes han trabajado en la
y a la salud, tomando como ejemplo demostra- construcción de una estrategia para frenar la
tivo el estudio de caso de la minería de materia- minería en el sector, para conocer, a partir de
les de construcción en Bogotá, específicamente testimonios, la percepción de la comunidad
en el barrio Potosí de la localidad de Ciudad frente a esta. Los nombres de los entrevistados
Bolívar, donde la presencia de zonas de explo- fueron alterados para proteger su identidad.
tación minera ha dado paso a conflictos entre
la comunidad, las entidades gubernamentales
y los empresarios ubicados en este territorio, a Resultados
causa de los efectos producidos tanto en el am-
biente como en la salud de la población. La ciudad de Bogotá, territorialmente, está
divida en 20 localidades, y concretamente la
localidad de Ciudad Bolívar se encuentra al
Material y métodos sur de Bogotá, siendo la tercera más extensa
de la ciudad con 13,000.2 hectáreas, de éstas
Este estudio es de carácter cualitativo des- 9,608.4 hectáreas pertenecen a zona rural y
criptivo. Primero se realizó una búsqueda 3,239.8 a zona urbana con aproximadamente
bibliográfica en torno a la temática minera, 713,764 habitantes (BOGOTÁ, 2017; BOGOTÁ, 2011A).
específicamente de los procesos extractivos En esta localidad se encuentra el Relleno
de materiales de construcción y sus efectos en Sanitario Doña Juana y el Parque Minero
el ambiente y la salud, de su legislación y del Industrial Mochuelo que pasa por cuatro
estado de la actividad minera en Colombia, en veredas de la localidad.
la capital y en Ciudad Bolívar, localidad de El barrio Potosí se encuentra localizado
Bogotá, territorio concreto a estudiar. en la parte más alta de uno de los cerros de
Posteriormente se analizaron datos y esta- la localidad, en su costado suroccidental. La
dísticas de informes provenientes de entida- estructura ecológica de la localidad posee
des gubernamentales, tanto nacionales como 8 Áreas Forestales Distritales y el Parque
locales, referentes al estado de la actividad Ecológico Distrital de Montaña (BOGOTÁ, 2013A).

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 77-91, JAN-MAR 2017


80 LA ROTTA LATORRE, Á. M.; TORRES TOVAR, M. H.

Figura 1. Ubicación de Ciudad Bolívar en Bogotá

Suba

Engativa Usaquen

Barrios Unidos
Fontibon

Teusaquillo
Chapinero
Bosa Kennedy
Puente Aranda Los Martires

Santa Fe Antonio Nariño


Tunjuelito

San Cristóbal
Rafael Uribe

Ciudad
Bolivar

Usme

Fuente: MCS en Contacto (2017).

La población de esta localidad es, en Colombia y de sectores obrero-populares. La


general, de bajos recursos económicos según tabla 1 presenta datos que ayudan a su carac-
la estratificación de la ciudad, en tanto his- terización, comparándola con la población
tóricamente esta ha sido una zona a la que general de Bogotá, especialmente en cuanto a
llega población migrante y desplazada en indicadores de pobreza y condiciones de vida.

Tabla 1. Caracterización de la población de Ciudad Bolívar

Parametro Descripción Ciudad Bolívar Bogotá

Inseguridad Alimentaria Porcentaje de Hogares con Inseguridad Leve 35.8% 26.8% 24.3% 18.2%
Alimentaria (Total)
Moderada 8.5% 5.2%
Severa 0.5% 0.9%
Percepción de pobreza Porcentaje de la población que se considera pobre 33.9% 24.3%
Pobreza por ingresos Personas pobres por ingresos 32.2% 17.3%
Personas en indigencia por ingresos 5.9% 4.0%
Necesidades Básicas Insatisfechas (NBI) Pobreza por NBI 9.8%
Miseria por NBI 0.7%
Coeficiente de GINI Miseria por NBI 0.380 0.542
Índice de Pobreza Multidimensional 6.2% 3.2%
Fuente: Bogotá (2011b).

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Explotación minera y sus impactos ambientales y en salud. El caso de Potosí en Bogotá 81

Se observa que en comparación con componentes ambientales propiamente


Bogotá esta localidad se encuentra, en su dichos, recogidos en las 20 localidades de
mayoría, por encima de los valores promedio la ciudad (BOGOTÁ, 2017).
para la ciudad, lo que permite situarla dentro Según el último diagnóstico local del
de las localidades con más segregación, des- Hospital Vista Hermosa, las enfermedades
igualdad y marginación. respiratorias se encuentran dentro de las pri-
Por otra parte, el Observatorio de Salud meras causas de consulta externa y urgencias
Ambiental y el Observatorio Ambiental en todas las edades (BOGOTÁ, 2013B). Teniendo
de Bogotá proporcionan datos de acuerdo en cuenta lo anterior, en la siguiente tabla se
al registro periódico de indicadores de presentan los datos de algunos indicadores
los componentes estudiados en salud correspondientes a la calidad del aire en la
ambiental (aire, ruido, calidad de agua y localidad de Ciudad Bolívar con respecto a
saneamiento básico, entre otros) y de los la de la ciudad.

Tabla 2. Indicadores de salud ambiental relacionados con la calidad del aire en Ciudad Bolívar

2013 2014 2015


Parametro Indicador
CB BOG CB BOG CB BOG

Calidad del Aire Casos salas ERA en menores de 5 años (meses: 1017 9872 1238 11862 722 10099
ene-mar) 10.3% 10.4% 7.1%

Prevalencia de Sibilancias en menores de 5 años Sin datos para la 16.6 13.1 19.0 13.2
posiblemente asociado a Material Particulado PM10 localidad

Prevalencia de ausentismo escolar por enfermedad 11.9 14.7 13.7 17.9 22.0 19.3
respiratoria en menores de 14 años

Quejas atendidas por exposición a contaminación del 12.0 11.0 1.0


aire en la localidad
Fuente: Bogotá (2017).
CB: Ciudad Bolívar; BOG: Bogotá; ERA: Enfermedad Respiratoria Aguda; PM10: Material Particulado con diámetro menor a 10µm.

En la tabla 2 se observa la alta prevalen- Kennedy), recibiendo de 2 a 5 quejas en las


cia de sibilancias en menores de 5 años de la demás localidades.
localidad comparada con los demás menores Esto último concuerda con el prome-
de la ciudad. El porcentaje de los casos totales dio de PM10 (material particulado de
para los meses de enero a marzo correspon- diámetro menor a 10 µm) según el Plan
de en 2013 y 2014 a aproximadamente el 10% Ambiental Local (PAL) de Ciudad Bolívar
del total de la ciudad. Teniendo en cuenta para 2013-2016, donde las mayores concen-
que son 20 localidades se considera un alto traciones en la ciudad, más allá del límite
número de casos aportados por una sola lo- permitido, se encuentran dentro de las lo-
calidad, cifra que disminuye en el último año calidades Ciudad Bolívar, Bosa y Kennedy
sin una causa descrita en los indicadores. La (BOGOTÁ, 2012), como lo muestra la
prevalencia de ausentismo escolar aumenta figura 2. Esto se debe, fundamentalmente,
en el último año por encima de los valores de a la confluencia de varias avenidas de alto
la ciudad y las quejas por exposición a conta- tráfico en estas localidades y la presencia
minación del aire en 2013 y 2014 sólo fueron de industrias contaminantes, entre ellas
superadas por otras dos localidades (Bosa y las de carácter extractivo.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 77-91, JAN-MAR 2017


82 LA ROTTA LATORRE, Á. M.; TORRES TOVAR, M. H.

Figura 2 . Concentración PM10, promedio anual 2011 en Bogotá

Material particulado PM10 (µm/m³) - (Promedio 2011)


CHIA
SOPÓ
TENJO

COTA

FUNZA

LA CALERA

MOSQUERA

BOGOTÁ, DC

CHOACHI

UBAQUE

CHIPAQUE

Fuente: MCS en Contacto (2017).

Igualmente, se reportan valores por encima construcción y uno de sus principales efectos
de los límites para las concentraciones de directos es la contaminación del aire por
PM2.5 (Material Particulado con diámetro emisión de material particulado.
menor a 2.5µm. Límite anual 25 μg/m3, pro- La tabla 3 muestra la situación de los
medio anual encontrado con exceso de 365 μg/ predios en la zona urbana de Bogotá. Los
m3) y para los niveles de partículas suspen- predios mineros registrados en la ciudad
didas totales (PST) (límite anual 100 μg/m3, hasta el año 2013 por la Contraloría de Bogotá
valor encontrado 144 μg/m3) (BOGOTÁ, 2013A). A se dividen en 6 localidades, encontrándose
la luz de estos hallazgos es necesario observar en mayor número en Ciudad Bolívar y Usme.
la situación minera de la ciudad y la localidad Adicionalmente, se observa el estado legal
según los impactos que ésta genera en el am- de estos predios, la existencia o no de Planes
biente y la salud, teniendo en cuenta que en de Manejo Ambiental (PMA) y el estado de
esta zona se realiza extracción de materiales de actividad de las minas.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 77-91, JAN-MAR 2017


Explotación minera y sus impactos ambientales y en salud. El caso de Potosí en Bogotá 83

Tabla 3. Estado de predios mineros en zona urbana de Bogotá

Estado Legal de 108 7 con Contrato de Concesión 3 sin PMA establecido En 2 no se


Predios Mineros encuentra en firme el PMA.
en zona urbana de 1 con Licencia de Exploración y Explotación
Bogotá
2 con Registro Minero

98 predios restantes se consideran ilegales al no contar 95 predios sin medidas de


con ninguno de los tres requisitos anteriores. mitigación.

Actividad en los 108 19 Activos Sólo 3 se encuentran dentro de


predios zonas compatibles con minería.

88 Inactivas

1 sin registro de actividad

Distribución por lo- 39 en Usme


calidades de los 108
28 en Ciudad Bolívar
predios mineros
17 en Rafael Uribe Uribe

13 en San Cristóbal

10 en Usaquén

1 en Santa Fe

La SDA no especifica para ninguno de los 108 predios si se encuentran o no dentro de áreas compatibles con
extracción minera.

Fuente: Salamanca (2013).


PMA: Planes de Manejo Ambiental; PMRRA: Planes de Recuperación y Restauración Morfológica y Ambiental; SDA: Secretaria Distrital de
Ambiente.

Es evidente la escasa regulación hacia esta noroccidente se encuentra el colegio distri-


industria extractiva si se tiene en cuenta que el tal Instituto Cerros del Sur y aproximada-
90% de los predios no cuentan con los requisi- mente a la misma distancia inicia la línea
tos legales para operación, de éstos el 96% no de hogares que componen el barrio. Este
tiene medidas de mitigación y de los legales o predio se encuentra dentro de los enume-
no tienen PMA o se encuentra en construcción. rados como legales por el informe de la
Esta ilegalidad se explica, según la Comisión Contraloría, sin embargo, no se encuentra
Económica para América Latina y el Caribe dentro de zona habilitada para minería por
(Cepal), por predios que han pertenecido a la Resolución 222 de 1994. Este predio no
familias dedicadas a la explotación de estos tenía PMA establecido ni acción frente al re-
materiales y por erróneas u obsoletas interpre- querimiento del mismo y para el año 2013 no
taciones de la ley que amparan hoy a algunos había registro del último concepto técnico,
predios (CEPAL, 2004). Igualmente es notorio que ya sea porque no se registró o porque no se
la cantidad de los predios mineros en la ciudad realizó hasta ese momento. Igualmente, en
converge, en su mayoría, dentro de las localida- este y otros dos predios, la vigencia de los
des de más bajos recursos. contratos de concesión excede los 30 años
En el caso específico de Potosí existe un de ley (de diciembre 26 de 1991 a mayo 9 de
predio de 169 hectáreas con cuatro frentes 2026) (SALAMANCA, 2013).
de explotación minera (HERRERA DURÁN, 2015) Para este predio, la Secretaria Distrital de
dedicados a la extracción de arenas ama- Ambiente (SDA) emitió el Auto Nº. 01052
rillas, roca y recebo. A 200 metros hacia el con fecha del 4 de mayo de 2015. En este

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84 LA ROTTA LATORRE, Á. M.; TORRES TOVAR, M. H.

documento se registran las acciones hacia y solicitud e implementación del Plan de


el predio minero iniciadas desde el año Mitigación Ambiental/Plan de Recuperación
2000 por un oficio enviado a la Corporación y Mitigación Ambiental (PMA/PMRA) (BOGOTÁ,
Autónoma Regional (CAR) por la Junta de 2015). Debido a este concepto y a la presión ejer-
Acción Comunal de Arborizadora Alta Sector cida por la comunidad y los integrantes de la
Sena, barrio aledaño a Potosí, “debido a la Mesa Ambiental, a la fecha, la cantera lleva más
grave contaminación a la población del sector, de un año inactiva y en espera de que se logre su
entre otras afectaciones” (BOGOTÁ, 2015, P. 2). cierre definitivo.
Aquí se documentan los resultados de las Durante el tiempo en que la mina estuvo
visitas técnicas realizadas por la SDA los abierta, y aún hoy en día, la población ma-
días 9, 13 y 18 de marzo de 2015, encontrando nifestó varias quejas en cuanto a su salud y
varios hallazgos: zonas de explotación fuera su entorno. La mayoría debidas al paso de
de las áreas del contrato; zonas de erosión volquetas que subían a la mina y la gran can-
dejando bloques de arenisca con alto riesgo tidad de ruido y polvo que estas generaban
de caída que se encuentran en las áreas no a su paso, polvo originado tanto por el paso
permitidas; acopios de hasta 2 metros de de los vehiculos por calles sin pavimentar
altura de suelo orgánico y recebo, localiza- como por el material de carga (arena), pro-
dos en la parte alta de los taludes favorecien- vocando problemas respiratorios, especial-
do procesos de remoción en masa; afectación mente en los más pequeños: “Los pulmones.
de acuíferos; remoción y disposición inade- Mucha gripa. […] Los niños mantenían muy
cuada de suelos negros en laderas y zona enfermos. El tierrero era demasiado” (Rosa,
de ronda de la quebrada Tibanica; inexis- 34 años. Habitante del barrio Potosí); y de
tencia de manejo de aguas de escorrentía y contaminación auditiva por la llegada de las
sedimentos, que además de contaminación volquetas a tempranas horas de la mañana:
de aguas y suelos puede generar procesos
de remoción en masa; emisión de material El ruido, desde las 3 de la mañana pasando las
particulado por el viento debido a falta de volquetas, dañando nuestras calles. (Teresa, 68
cobertura vegetal, afectando zonas aledañas años. Habitante del barrio Potosí).
(BOGOTÁ, 2015).
Igualmente, se encontró afectación del
ecosistema subxerofítico de la zona, ecosis- Todos los días a las 3:30, 4 de la mañana, afec-
tema que taba mucho, llegaban pitando. Hasta cerraron la
entrada que hay allí y llegaban a pitar. (Pedro,
se ha identificado como estratégico para el 42 años. Habitante del barrio Potosí).
Distrito, debido a sus características únicas
de flora y fauna, los extensos pastizales xeró- También, el daño evidente a la montaña y
filos constituyen un alto potencial para la cap- el componente ambiental que afectó, incluso,
tura de CO2 y por la gran diversidad endémica sus dinámicas de grupo:
que sustenta (BOGOTÁ, 2015, P. 15),
La montaña, pues, tan linda que era. Nosotros
sin hallar planes de reforestación, gene- íbamos a pasear por allá y ¿ahora qué? No, ya no
rando además un impacto visual negativo. podemos ir por allá. (Teresa, 68 años. Habitan-
Dado lo anterior se consideró que las activi- te del barrio Potosí).
dades se estaban realizado fuera de zona com-
patible con minería y además sin instrumentos
de manejo y control ambiental por lo que se En un tiempo incluso también existía la quebra-
procedió al cierre preventivo de la explotación da, y allá íbamos a lavar. Era una caminata hasta

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 77-91, JAN-MAR 2017


Explotación minera y sus impactos ambientales y en salud. El caso de Potosí en Bogotá 85

allá. Y todos con su bultico de ropa al hombro, bien ya se encontraban allí al momento de
iban allá, se hacía almuerzo, y por la tarde vol- iniciar la actividad, o que se han ido constru-
ver. Arriba también había un nacimiento de agua yendo alrededor de la misma. Igualmente,
que era el que repartía el agua para acá. Se cogía en barrios que se han formado, de manera
el agua en tinas. Y también se secó. (Pedro, 42 ilegal, dentro de las canteras abandonadas.
años. Habitante del barrio Potosí). En el caso de Ciudad Bolívar, en los años cua-
renta, los lotes eran comprados a muy bajo
En cuanto a las oportunidades de empleo precio por personas que llegaban a la ciudad
no se consiguió realizar ninguna entrevista a desde el campo desplazadas por la violen-
las personas que trabajaban en la mina ya que cia y con los años se fue concentrando allí
abandonaron el territorio luego del cierre de la población marginada. Con el progresivo
la misma. Sin embargo, los habitantes refie- crecimiento desordenado de la ciudad hacia
ren que fueron muy pocos los que encontra- el sur fueron surgiendo nuevos barrios que
ron esta actividad como un medio de empleo, seguían manteniendo esta particularidad
solo en contados casos eran llamados a económica (BOGOTÁ, 2011B). Consecuentemente
un empleo ocasional o realizaban algunas con este crecimiento poblacional la industria
ventas ambulantes en los alrededores. minera de los materiales de construcción fue
Finalmente, la población habitante de este en aumento, instaurándose en suelos clave
barrio ve a la minería como la causa de las por su composición y su cercanía a la ciudad
distintas problemáticas: (GUZMÁN CASTIBLANCO, 2015), con lo que se distri-
buirían los minerales de manera local.
[...] el problema no eran las volquetas, no era el Como se observó en la tabla 1, la población
polvo, el problema estructural es la minería, que de esta localidad reúne las características de
es la que genera todo el deambular de volquetas las zonas de marginación y pobreza de la
y todo eso. (Integrante de la Mesa Ambiental ciudad. Estas características se han visto en
‘No le saque la piedra a la montaña’) diversas zonas de Sur América y ha conferi-
do a estos sectores toda clase de vulnerabili-
y están generando soluciones como la dades como lo expresan Breilh y sus colegas
concientización de la comunidad con la en el siguiente fragmento:
Escuela Ambiental del sector y el trabajo
desde el colegio Instituto Cerros del Sur, e El proceso histórico que vivió el continente
incluso la propuesta de creación del Parque americano ha promovido un conjunto de vul-
Metropolitano Cerro Seco, que proteja las nerabilidades e inequidades en la región e im-
montañas de la explotación y la expansión puesto un enorme sufrimiento, principalmente
urbana hacia el sur de la ciudad. a las sociedades de Centroamérica, el Caribe
y América del Sur, donde se observa un cre-
cimiento desordenado de las ciudades y una
Discusión facilidad de instalación de industrias contami-
nantes, lo que promueve toda suerte de exclu-
Desde 1995, año en que fue otorgado el título siones, que se manifiestan en el aumento de la
minero en el sector de Potosí, los habitantes violencia, las amenazas a los ecosistemas y a
de la zona han vivido en las cercanías de la la biodiversidad, la contaminación del suelo, el
actividad extractiva al ser el barrio que se aire y las aguas, y la vulnerabilidad regional a
encuentra más próximo a ésta. Este tipo de los cambios climáticos. (BREILH ET AL., 2010, P. 23).
minas dentro de la ciudad tienen una carac-
terística común: están ubicadas en zonas ale- Este escenario desemboca en una serie de
dañas a barrios de estratos bajos, barrios que situaciones que ponen en riesgo el entorno,

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86 LA ROTTA LATORRE, Á. M.; TORRES TOVAR, M. H.

la salud y el mismo modo de vida de la po- su crecimiento debido a la urbanización de


blación, como lo han denunciado reiterada- la región, y reconocen los múltiples efectos
mente los habitantes de Potosí en medios de ambientales y sociales al ser una actividad
comunicación (HERRERA DURÁN, 2015; APONTE, 2015). que se instaura en la periferia de las ciuda-
De acuerdo a los indicadores presentados des, donde se da uso final a los productos
en los resultados del Hospital Vista Hermosa ya que es una industria predominantemen-
y el Observatorio de Salud Ambiental, las te local. Esto hace que la actividad se torne
enfermedades respiratorias son comunes en más ‘cercana’ y deba ser de mayor control,
este sector en individuos de todas las edades exigencia y resistencia por parte de los po-
y constituyen un gran número de consultas a bladores (CEPAL, 2004; PNUMA, 2013).
urgencias y consulta externa. La percepción Por esta ‘cercanía’ de la actividad y por
de la comunidad concuerda con esta visión, la naturaleza de la misma, los efectos que
haciendo énfasis en la afectación a los habi- produce son igualmente notorios. Se elimina
tantes más jóvenes. la capa vegetal y con ella el hábitat de múlti-
Ahora que la cantera lleva un año cerrada ples especies, como lo describe en párrafos
manifiestan mejoría en su percepción de anteriores el concepto técnico de la SDA, o
salud y su vida comunitaria, pero siguen ha- se arboriza el territorio con especies que no
ciendo llamados a una fuerte regulación en son nativas, alterando el equilibrio del eco-
cuanto a esta práctica. Aquí el papel de las sistema; aumenta el material particulado
entidades competentes es fundamental, pero contaminando aire y agua; se produce conta-
insuficiente para atender estas problemá- minación del aire por gases de las chimeneas
ticas. Frente a esta visión la Contraloría de y material particulado por la combustión
Bogotá formula una posición importante. en los hornos; contaminación auditiva por
Cuando se expidió el informe de auditoría a ruido de maquinaria, vehículos y explosio-
la SDA en 2013, se había ordenado el cierre nes, y destrucción de las vías por los mismos
de 11 industrias mineras, 7 años atrás, sin (CEPAL, 2004). Además, un impacto visual nega-
embargo, sin exitoso cumplimiento tivo muy importante (BOGOTÁ, 2010). Sumado
a esto, desde los años 70, en América Latina
Situación que se deriva de la falta de gestión y los ingresos por explotación de recursos pri-
control por parte de la Secretaria Distrital marios han ido en disminución. Y en el caso
de Ambiente, a las actividades mineras de- particular de Bogotá se ha denunciado que
sarrolladas en el Distrito Capital, lo que trae la ciudad no ha recibido regalías por esta ac-
como consecuencia que se sigan realizando tividad, ni siquiera por parte de las grandes
actividades de explotación mineras en zonas empresas, o si se venían pagando, en los
no compatibles para desarrollar la minería y últimos años dejaron de percibirse (HERRERA
que además no se implementen las medidas DURÁN, 2016; GUZMÁN CASTIBLANCO, 2015).
de prevención, mitigación, corrección para la El suelo es un gran motivo de preocupa-
recuperación del terreno, lo que puede conlle- ción con el paso del tiempo y su explotación.
var a que se afecte gravemente el ambiente y Pierde casi en su totalidad la materia orgáni-
la salud de la población. (SALAMANCA, 2013, P. 6). ca, se vuelve inestable, cambia sus propieda-
des físico-químicas, pierde su productividad
El Programa de las Naciones Unidas para e indirectamente contamina el aire y las
el Medio Ambiente (Pnuma) y la Cepal fuentes de agua circundantes por la acumu-
concuerdan en este punto, donde la debi- lación de materiales tóxicos en su substrato
lidad normativa hacia esta industria es una y por el proceso de erosión y desertificación
de las razones que impide que se haga un que le sigue (BECERRIL ET AL., 2007).
buen uso de la misma, teniendo en cuenta En Colombia, varias regiones están en

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Explotación minera y sus impactos ambientales y en salud. El caso de Potosí en Bogotá 87

proceso de desertificación debido a la dismi- o abandonadas que pone en riesgo la salud,


nución de la precipitación por el fenómeno calidad de vida o bienes públicos o privados
del cambio climático que vemos en la ac- (ARANGO ARAMBURO, 2012),
tualidad, entre ellas las más afectadas serán
la Andina y el litoral Caribe, zonas con la definición que se usa en la mayor parte de
mayor demanda de suelos por la alta densi- Suramérica.
dad poblacional. Por lo tanto, preocupa que En teoría, las minas deben tener un
se desarrollen proyectos mineros en estas re- proceso al momento de su cierre o en
giones teniendo en cuenta lo anterior y con- período de inactividad, pero esto en muchos
siderando el impacto en el recurso hídrico ya casos no sucede y no se mitigan o reparan
que, aparte de la contaminación descrita, se los daños ambientales dejando zonas conta-
utilizan grandes cantidades de este líquido minadas y riesgos de salud para la población
en el proceso de obtención del material (ARANGO ARAMBURO, 2012). Esto sucede no solo
(SALAMANCA, 2013) y para mitigar la emisión del por debilidad normativa, sino por falta de
material particulado durante la extracción. compromiso ético, social y ambiental de los
Todas estas preocupaciones anteriores mismos explotadores de las minas (CEPAL, 2014;
son notables y la afectación del paisaje da BOGOTÁ, 2011B).
cuenta de ello. La actividad en estos predios Éstos PAM reúnen todos los componen-
se realiza sin prever un uso futuro para el tes contaminantes, ambientales, paisajís-
mismo y perjudica grandes extensiones de ticos, sociales y económicos que quedan
suelo dejándolas erosionadas y estériles. después de la actividad minera. Sin embargo,
Estas zonas luego quedan excluidas de los se aclara que sólo aquellos impactos que
planes de ordenamiento territorial y son generan un riesgo para la salud o el ambiente
ocupadas posteriormente por asentamientos son considerados PAM, ya que posterior-
informales los cuales quedan ubicados en mente generarán una obligación económica
zonas de alto riesgo al no realizarse una re- debida a ese riesgo; son los mismos ‘sitios
cuperación morfológica del espacio (GUZMÁN huérfanos’ o ‘deudas ambientales’ en otros
CASTIBLANCO, 2015). Esto hace parte de una países del mundo. En Colombia hay mecanis-
percepción se extiende entre la comunidad mos para la reparación de estos pasivos, sin
del barrio Potosí, quienes han manifestado embargo, no hay un control y un seguimiento
un cambio drástico en el paisaje desde que estricto por parte de los entes competentes
comenzó la explotación, dejándolos sin uno (ARANGO ARAMBURO, 2012). Estos pasivos los ter-
de sus principales sitios de actividad cultu- minan asumiendo, al menos en principio,
ral y recreativa, ya que ahora el terreno está las comunidades más vulnerables que están
deteriorado y en manos de terceros, sumán- más próximas al escenario, constituyendo un
dose a esto la desaparición del rio que pasaba claro ejemplo de injusticia ambiental (ARRIAGA
por el sector (APONTE, 2015). LEGARDA; PARDO BUENDÌA, 2011).
En este punto es importante mencionar Teniendo en cuenta todo lo enunciado
los pasivos ambientales mineros (PAM), hasta ahora, el proceso salud-enfermedad en
los cuales, a diferencia de otros países de la esta población tendrá unas características y
región, no están reglamentados como tal en un desarrollo propios, ya que esta dinámica
Colombia, pero hacen referencia a se produce a diferentes niveles (ambiental,
social, económico, político) y sus problemas
un área donde existe la necesidad de res- han sido explicados en un entorno particu-
tauración, mitigación o compensación por lar (CASTELLANOS, 1990) dado por el medio am-
un daño ambiental o impacto no gestionado, biente en el que habitan, sus condiciones
producido por actividades mineras inactivas económicas bajas y la presencia de industria

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88 LA ROTTA LATORRE, Á. M.; TORRES TOVAR, M. H.

extractiva escasamente regulada. Por lo tanto, acelerado ritmo de la economía actual hace
la asociación que hace la comunidad entre pensar que no.
las enfermedades respiratorias, el material
emitido durante el transporte de los produc- El mercado no garantiza que la economía en-
tos de la mina, la perturbación auditiva por caje en la ecología, ya que el mercado infrava-
los vehículos, la falta del lugar para actividad lora las necesidades futuras y no cuenta los
recreativa y el visible deterioro paisajístico perjuicios externos a las transacciones mer-
que genera cierta perturbación emocional, da cantiles. (ALIER, 2008, P. 13).
cuenta de este proceso salud-enfermedad y
de otros similares que se pueden estar vivien- Hacia el otro extremo está entonces la
do en otros barrios de la ciudad. desaparición de la actividad extractiva en la
Si las industrias de minería de materia- ciudad. Como se mencionó antes, la minería
les de construcción están ubicadas en otras de materiales de construcción es una indus-
zonas marginadas de la ciudad, como se tria local, sus productos se distribuyen en las
vio en la distribución por localidades, cabe cercanías del sitio de extracción. Si Bogotá
pensar que las demás comunidades ubicadas aún sigue creciendo, aparentemente sin
en dichas zonas están viviendo una proble- planes para detener la expansión, con qué
mática similar, obedeciendo a un fenómeno materiales se realizarán las construcciones
de reproducción social y a unos procesos de y vías planeadas. Es necesario entonces re-
determinación social que plantear el modelo de ciudad y frenar la ex-
pansión de la capital en pro de mejorar las
no actúan como agentes biológicos-físicos- condiciones ambientales y de salud de los
químicos en la generación de la enfermedad, que habitan en ella, en tanto megaciudades
no tienen especificidad etiológica, ni obede- como Bogotá son ya consideradas inviables
cen a una mecánica de dosis-respuesta. (ARE- tanto desde el punto de vista social como
LLANO; ESCUDERO; MORENO, 2008, P. 324) ambiental. Y si esta expansión es inevitable
es absolutamente necesario encontrar al-
pero que deben ser tenidos muy en cuenta ternativas de materiales que no pongan en
al momento de pasar a la atención de la en- riesgo el medio ambiente ni la salud.
fermedad y al crear estrategias de preven-
ción, ya que
Conclusiones
Estos factores configuran distintos modos de
pensar y de actuar, con una diversidad de sig- El modelo de desarrollo actual global impone
nificaciones que se atribuyen al hecho de es- una serie de patrones que ponen en riesgo la
tar sano o enfermo, donde aspectos como la supervivencia misma de la especie humana.
edad, el sexo y las condiciones materiales de La destrucción de incontables regiones del
vida, tienen una multiplicidad de expresiones. planeta a manos de los procesos de produc-
(SACCHI; HAUSBERGER; PEREYRA, 2007, P. 272) ción intensivos va en conjunto con la emer-
gencia de serios conflictos socioambientales
Entonces, si la industria extractiva está que ponen en evidencia la innegable relación
causando o exacerbando estos escenarios, del ambiente con las dinámicas socio-cultu-
¿cuál debe ser la solución? Es necesario rales y, en particular, con la salud.
plantearse la alternativa de una minería Es necesario cuestionar, entonces, el
sustentable que no afecte o minimice sus modelo de ciudad de nuestra región y el
efectos en el ambiente y, por consiguiente, modelo de desarrollo global, así como el
en la salud, pero ¿es realmente posible? el mismo concepto de desarrollo. ¿Qué es para

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Explotación minera y sus impactos ambientales y en salud. El caso de Potosí en Bogotá 89

nosotros el desarrollo, qué queremos con el en el qué hacer del cuidado, protección y
desarrollo? ¿Estamos dispuestos a cambiar atención a la salud. Esto implica un fuerte
nuestro modo de vida y nuestros patrones de compromiso social que, en últimas, es lo que
consumo para encaminarnos en una direc- caracteriza a la medicina y otras profesiones
ción diferente de un desarrollo ligado más al de la salud, pero además un cambio de para-
vivir saludablemente, visión que le apuesta a digma y la apertura hacia el trabajo con otras
una relación de respeto y equilibrio entre la disciplinas para lograr una intervención in-
sociedad y la naturaleza? tegral y efectiva, entendiendo que desde las
Sin duda, los estrechos vínculos de de- profesiones de la salud se tiene la responsa-
terminación de la salud hacia las condicio- bilidad de ser garantes no sólo del bienestar,
nes ambientales, tal como se evidencian en sino de calidad de vida para las poblaciones.
el caso del barrio Potosí, en la ciudad de
Bogotá, demandan a las ciencias de la salud
fortalecer el campo de conocimiento de la Colaboradores
salud ambiental, para entender plenamen-
te porqué se dan los cambios ambientales, Ángela Marcela La Rotta Latorre: contribu-
cuáles son sus razones estructurales y cómo ción substancial para la concepción, la pla-
estos cambios afectan la salud de grupos po- nificación, para el análisis y la interpretación
blacionales, para plantear estrategias de in- de los datos; participación de la aprobación
tervención de índole normativa, de política de la versión final del manuscrito. Mauricio
pública, de carácter ecológico y epidemioló- Hernando Torres Tovar: contribución sig-
gico y de control ciudadano a partir de una nificativa en la elaboración del rascuño y la
amplia participación social. revi¬sión crítica del contenido; participa-
Al ser el proceso salud-enfermedad una ción en la aprobación de la ver¬sión final del
construcción que se desarrolla dentro de un manuscrito.
contexto sociocultural determinado, fuerte-
mente relacionado con el ambiente y el terri-
torio donde se da, resulta necesario tratarlo y Agradecimientos
entenderlo como un proceso complejo en el
que se deben buscar las causas de un pade- A los integrantes de la Mesa Ambiental ‘No
cimiento más allá del componente biológico. le saque la piedra a la montaña’ y a la comu-
Este concepto es, o debería ser, indispensable nidad del barrio Potosí. s

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90 LA ROTTA LATORRE, Á. M.; TORRES TOVAR, M. H.

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Recebido para publicación en agosto de 2016
14 marzo 2017. Versión final en marzo de 2017
Conflicto de intereses: inexistente
Apoyo financiero: no hubo
INSUASTY RODRÍGUEZ, A.; GRISALES, D.;
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gran minería en Antioquia. Ágora U.S.B, Medellin, v. 13,
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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 77-91, JAN-MAR 2017


92 ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE

Por que morreu VMS? Sentinelas do des-


envolvimento sob o enfoque socioambiental
crítico da determinação social da saúde
Why did VMS die? Sentinels of the de-velopment under the critical
social environmental approach of the social determination of health

Raquel Maria Rigotto1, Ada Cristina Pontes Aguiar2

RESUMO Partiu-se do óbito de trabalhador em empresa transnacional por hepatopatia causada


por agrotóxicos, para debater limites do paradigma biomédico que orienta as ações do Sistema
Único de Saúde. Com base no enfoque socioambiental crítico e transformador, busca-se alargar
a compreensão desta e de outras mortes de trabalhadores, ‘incluídos’ por meio do emprego
precarizado e desigualmente protegidos pelas políticas públicas. Caracteriza-se, então, um
processo de vulnerabilização mediado pelo Estado neoliberal e tensionam-se as bases teórico-
-metodológicas da saúde coletiva para avançar em uma perspectiva crítica e emancipatória,
em diálogo com os saberes de outros sujeitos epistêmicos e políticos.

PALAVRAS-CHAVE Saúde do trabalhador. Saúde e ambiente. Políticas públicas.

ABSTRACT We start from a transnational company worker who died of liver disease caused by
pesticides, to discuss limits of the biomedical paradigm that guides the actions of the Unified
Health System. Based on the critical and transformative social environmental approach, we seek
to expand the understanding of this and other deaths of workers ‘included’ through precarious
jobs and unequally protected by public policies. It features a vulnerability process mediated by
the neo-liberal state and its extrativist policies of development, and enhance the theoretical-
methodological bases of public health to advance critical and emancipatory perspective, in dia-
logue with the knowledges of other epistemic and political subjects.

KEYWORDS Occupational health. Environment health. Public policies.

1Universidade Federal do
Ceará (UFC), Faculdade de
Medicina – Fortaleza (CE),
Brasil.
raquelrigotto@gmail.com

2Universidade Federal do
Cariri (UFCA), Faculdade
de Medicina – Juazeiro do
Norte (CE), Brasil.
adacristinapa@gmail.com

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 92-109, JAN-MAR 2017 DOI: 10.1590/0103-1104201711208
Por que morreu VMS? Sentinelas do des-envolvimento sob o enfoque socioambiental crítico da determinação social da saúde 93

Introdução determinação social do processo saúde-do-


ença, construída a partir da medicina social
VMS era um jovem trabalhador agrícola, latino-americana, nos anos 1970, sobre
que, durante os últimos três anos de sua vida,
trabalhou na empresa de fruticultura Del os marcos do materialismo histórico, adotan-
Monte Fresh Produce Brasil Ltda., situada do categorias de análise como reprodução
no Baixo Vale do rio Jaguaribe (municípios social, classe social, ideologia, produção eco-
de Limoeiro do Norte e Quixeré), no Ceará. nômica, cultura, etnia e gênero. (PORTO; ROCHA;
Ele desenvolveu uma doença hepática que o FINAMORE, 2014, P. 4072).
levou ao óbito aos 31 anos de idade. O laudo
emitido por pesquisadores da Faculdade Ao mesmo tempo, o enfoque proposto re-
de Medicina da Universidade Federal do conhece novos elementos contemporâneos
Ceará (UFC) apontou a ‘hepatopatia grave dos contextos histórico, econômico, políti-
de provável etiologia induzida por substân- co e social que tensionam as bases teórico-
cias tóxicas’ – agrotóxicos, no caso – como a -metodológicas da saúde coletiva: considera
causa mortis (RIGOTTO; LIMA, 2010). especialmente a magnitude e gravidade da
O nexo do agravo com o trabalho foi reco- crise socioambiental desencadeada pela:
nhecido pelo Tribunal Regional do Trabalho
no Ceará, obrigando a empresa ao pagamen- [...] globalização e o crescimento do neoex-
to de danos materiais e morais1. Bochner trativismo na periferia global, [que] intensi-
(2015) toma esse caso como um ‘evento senti- ficam a demanda por novos territórios e re-
nela’ e, a partir dele, propõe: cursos naturais à economia, resultando em
significativos impactos sobre os ecossistemas
[...] um novo modelo de vigilância e captação e a vida das populações vulnerabilizadas. (POR-
de dados, a fim de incentivar e instrumenta- TO; ROCHA; FINAMORE, 2014, P. 4071).
lizar as vigilâncias dos municípios a atuar na
fiscalização das condições de trabalho e, se Busca, então, aportes em diferentes
possível, realizar busca ativa de casos de in- campos do conhecimento e experiências:
toxicação crônica por agrotóxicos. (BOCHNER,
2015, P. 10). – A ‘Ecologia Política’ que, ao estudar os
conflitos ecológicos distributivos (MARTINEZ-
Por concordar com Bochner que o óbito ALIER, 2007) ou conflitos ambientais, lança luz
de VMS é um evento sentinela que demanda sobre as desigualdades e injustiças ambien-
e orienta o desencadeamento de ações pre- tais (COLETIVO BRASILEIRO DE PESQUISADORES SOBRE
ventivas relevantes para um amplo conjunto A DESIGUALDADE AMBIENTAL, 2013) produzidas
de pessoas expostas aos agrotóxicos, objeti- pela assimetria de poder político entre os
va-se, neste texto, aprofundar a leitura desse agentes econômicos e os povos afetados
evento, no intuito de alargar a compreensão nos processos de disputa pela terra e suas
dos diferentes elementos envolvidos na pro- riquezas e consignadas na expansão agríco-
dução social dessa (e de outras) morte e de la, minerária e nas obras de infraestrutura 1 Processo nº

instigar o debate sobre as políticas públicas sobre seus espaços de vida e reprodução AP-0128500-
74.2009.5.07.0026,
responsáveis por garantir o papel constitu- social. movido pela viúva do
cional do Estado na proteção da saúde. trabalhador, com apoio
da Rede Nacional de
Adotou-se, como referencial teórico, o – A ‘Geografia Política e da Saúde’, que Advogados e Advogadas
enfoque socioambiental crítico e transforma- oferece novas possibilidades de ampliar Populares (Renap) (Dr.
Cláudio da Silva Filho e
dor da determinação social da saúde (PORTO; a compreensão da relação (de poder) das Dra. Patrícia de Oliveira
ROCHA; FINAMORE, 2014), que se baseia na teoria da sociedades humanas com o espaço e os Gomes).

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ecossistemas, por meio de conceitos como percorrido, neste texto, o evento sentine-
território, territorialidades, (des)territo- la da morte do trabalhador VMS desde a
rialização (HAESBAERT, 1997), entre outros, per- abordagem da clínica até o contexto social,
mitindo avaliar melhor as consequências econômico e político em que ele acontece.
da imposição da lógica capitalista – com Na primeira parte, será apresentado o caso
seus tempos, racionalidades e riscos tec- clínico, o qual será discutido em diálogo
nológicos relacionados com os processos com as políticas públicas de saúde em vigor.
produtivos – sobre os modos de vida de co- Na segunda parte, será ampliado o leque de
munidades tradicionais, povos indígenas, leitura dos alertas que o caso de VMS traz,
negros e camponeses, entre outros, defini- se analisado no contexto mais amplo de sua
dos a partir de seus ecossistemas e culturas. determinação social.

– O campo da ‘Sociologia’ traz noções como


espaço social e habitus (BOURDIEU, 2007), que Para estabelecer o nexo
abrem horizontes para integrar às análi- entre o agravo e a ocupação
ses a dimensão simbólica e cultural dos
conflitos ambientais e as possibilidades de O caso de VMS foi conhecido não por meio
agência dos afetados, superando a perspec- dos serviços de atenção à saúde do Sistema
tiva economicista e o Único de Saúde (SUS), da vigilância epide-
miológica ou dos sistemas de informação
fosso existente entre o plano macroestrutural sobre agravos à saúde2, mas de um militante
e coletivo, e as condições e potencialidades inserido no movimento sindical dos servi-
dos sujeitos em planos mais pessoais e comu- dores públicos do município de Limoeiro
nitários. (PORTO; ROCHA; FINAMORE, 2014, P. 4073). do Norte. Vizinho de VMS, sabedor de seu
trabalho e atento aos debates públicos sobre
os impactos dos agrotóxicos sobre a saúde, o
– As ‘Teorias Descoloniais’, que denunciam militante considerou suspeito o diagnóstico
a perversa persistência da colonialidade do de hepatite viral realizado pela empresa e
2 “Ao buscar esse óbito
ser, do saber e do poder – mesmo após a in- procurou a equipe da UFC que desenvolve
no Sistema de Informação
sobre Mortalidade dependência política dos povos da América pesquisas na região – em uma atitude que
(SIM)23, verifica-se que Latina, África e Ásia – e suas articulações abre espaço para considerar o papel dos su-
ele se encontra registrado
em 2008, Declaração de com o padrão mundial da dominação ca- jeitos locais na vigilância da saúde (ALVES, 2013).
Óbito número 12.223.395, pitalista e racista, ao tempo que reclamam A metodologia de investigação do caso
na qual consta como
causa básica Insuficiência o reconhecimento da rica diversidade cul- envolveu:
Hepática Aguda e tural desses povos, a valorização de seus
Subaguda (K72.0) e
como causas relacionadas saberes e conhecimentos e de sua condição – Estudo da história clínica a partir dos
Insuficiência Renal de sujeitos epistêmicos por meio de uma prontuários das internações hospitalares
Aguda não Especificada
(N17.9) e Hematêmese ecologia de saberes (SANTOS; MENESES, 2010). de VMS (Hospital São José de Doenças
(K92.0). [...] Nada se Assim, o enfoque socioambiental crítico e infecciosas – HSJ e Hospital Universitário
pode afirmar sobre a
circunstância do evento, transformador se insere em uma epistemo- Walter Cantídio – HUWC, da Universidade
uma vez que as variáveis logia política de natureza pluriepistêmica Federal do Ceará), disponibilizados pela
‘circunstância do óbito’
e ‘acidente de trabalho’ (PORTO, 2011) e assinala a necessidade de ir além viúva de VMS;
não foram preenchidas. dos paradigmas biomédico e epidemiológico,
Chama a atenção o
fato de que, entre as para integrar “questões de saúde e ambiente – Estudo da história ocupacional de VMS
causas apresentadas, os aos direitos humanos, territoriais e sociais” a partir de anamnese realizada com colega
agrotóxicos não foram
sequer mencionados” (PORTO; ROCHA; FINAMORE, 2014, P. 4075). de trabalho que exercia a mesma função e
(BOCHNER, 2015, P. 3). Ao adotar essa perspectiva, será no mesmo período em que VMS trabalhou

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Por que morreu VMS? Sentinelas do des-envolvimento sob o enfoque socioambiental crítico da determinação social da saúde 95

na empresa. A história ocupacional constou descartadas as etiologias infecciosas para


de informações sobre o processo de produ- explicar o quadro. O paciente foi então
ção, a função exercida pelo paciente, as con- transferido para o HUWC, com o intuito de
dições e organização do trabalho, a exposição dar prosseguimento à investigação. Durante
a riscos à saúde e as medidas preventivas exis- período em que esteve nesse serviço, houve
tentes. A entrevista foi gravada, com duração agravamento do quadro de insuficiência
de aproximadamente 2 horas, e foi facilitada hepática, evoluindo para encefalopatia
pela apresentação de fotografias realizadas hepática, culminando com uma síndrome
pela equipe de pesquisa durante visita para hepatorrenal, distúrbios de coagulação, he-
estudo do processo de trabalho e seus riscos morragia digestiva alta (apresentava varizes
na empresa anteriormente ao óbito; esofágicas de médio calibre), choque hipovo-
lêmico e óbito.
– Estudo bibliográfico sobre a toxicologia
dos ingredientes ativos de agrotóxicos e fer-
tilizantes químicos utilizados na empresa, História ocupacional
com base nos dados disponíveis no Estudo
de Impacto Ambiental da empresa e os co- O paciente era agricultor e trabalhou por 3
lhidos em campo pelo grupo de pesquisa anos e 6 meses na Del Monte Fresh Produce
e com auxílio de especialistas da Agência Brasil Ltda., produtora de abacaxi para ex-
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa); portação, tendo apontada em sua Carteira
de Trabalho e Previdência Social a função de
– Análise de dados epidemiológicos relati- Trabalhador Rural. Foi lotado no almoxari-
vos à saúde dos trabalhadores na empresa fado químico, onde permaneceu até o afasta-
com base na pesquisa de Alexandre (2009). mento devido à doença que o levou ao óbito.
Esse almoxarifado químico consistia em
galpão coberto, fechado lateralmente por
História clínica paredes de alvenaria ou por telas metáli-
cas. Parte dele destinava-se ao armazena-
VMS era um paciente do sexo masculino, 31 mento dos fertilizantes e agrotóxicos que a
anos, previamente hígido, negava o uso de empresa utilizava, e outra parte era destina-
medicamentos de rotina, tabagismo, etilis- da ao setor de mistura, onde eram prepara-
mo e o contato com drogas ilícitas. Após três das as caldas tóxicas.
anos de trabalho no almoxarifado químico O fluxograma da produção nesse galpão
de empresa do ramo da fruticultura irrigada, partia de uma guia que orientava os produtos
evoluiu com a agudização de um provável a serem utilizados na preparação das caldas
diagnóstico de hepatopatia crônica, apresen- tóxicas, bem como a quantidade de cada um.
tando os seguintes sinais e sintomas: icterí- O responsável fazia a conferência e a libera-
cia, astenia, anorexia, cefaleia, febre acima ção dos produtos, que então eram separados
de 38°C, vômitos pós-prandiais amarelados, e transportados ao setor de mistura. Lá os
colúria, acolia fecal, perda de aproximada- componentes eram adicionados em tambo-
mente 10 Kg em um mês, prurido intenso em res, misturados e, através de mangueiras,
todo o corpo, episódios de epistaxe, empa- abasteciam o nursey – depósito que acompa-
chamento e pirose. nha o trator em spray-boom para realizar a
Após internamento no HSJ, foram pulverização em campo ( figura 1).

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Figura 1. Trator spray boom e nursey pulverizando o cultivo de abacaxi

Fonte: Acervo de pesquisa.

A tarefa do trabalhador consistia em de sua tarefa guardar no estoque o restante


atender às requisições de fertilizantes e agro- do produto cuja embalagem fora aberta e não
tóxicos. Ele separava os produtos, de acordo totalmente utilizada, assim como receber
com a especificação e a quantidade indicadas devolução de produtos liberados e não uti-
na guia, para repassá-los ao setor de mistura. lizados. O exercício de sua tarefa exigia o
Os produtos manipulados se apresentavam trânsito através do galpão, passando inclusi-
nas formas líquida, gasosa ou em pó. Os lí- ve pelo setor de mistura, onde a contamina-
quidos eram retirados de bombonas equipa- ção do ar era maior. Entretanto, na avaliação
das com torneiras; os sólidos eram pesados; do colega de trabalho entrevistado, todo o
e o gás estava armazenado em cilindros, que galpão apresentava contaminação, tendo em
eram atrelados em trator. Fazia ainda parte vista as divisórias em telas metálicas.

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Por que morreu VMS? Sentinelas do des-envolvimento sob o enfoque socioambiental crítico da determinação social da saúde 97

Figura 2. Tarefa de dosagem de fertilizantes e agrotóxicos, análogas às realizadas pelo trabalhador em estudo

Fonte: Acervo de pesquisa.

Os ingredientes ativos de agrotóxicos utili- período noturno. Entretanto, era pratica-


zados e citados pela empresa, de acordo com mente a regra trabalhar pelo menos mais 2
o Estudo de Impacto Ambiental (EIA), são: horas extras diárias, totalizando 10 horas
Herbicidas – Bromacil e Diuron; Inseticidas: de trabalho por dia e 60 horas semanais.
Carbaryl, Beta-Cyflithrin, Bacillus No início de seu trabalho na empresa, essa
Thuringiensis, Imidacloprid; Fungicidas: jornada pode ter sido maior:
Triadimefon, Thiabendazole, Tebuconazole,
Fosetyl; Desfoliante: Ethephon. Sabe-se, en- Logo no início, quando a gente começou a gente
tretanto, que a prescrição de ingredientes trabalhava mais do que 11 horas, tinha dias que
ativos nesses processos produtivos é bas- a gente entrava na fazenda 5 horas da tarde, às
tante dinâmica, respondendo ao surgimen- vezes nós saia da fazenda era 7 horas da manhã.
to de novas pragas ou novos ingredientes (Colega de trabalho informante).
ativos, ao desenvolvimento de resistência,
preços e disponibilidade no mercado, entre A empresa fornecia Equipamentos de
outros. Há informes dos trabalhadores de Proteção Individual (EPI) com regularidade,
que, além dessas, a empresa utilizava outras embora houvesse algum trâmite burocrático
substâncias que, por restrições no comércio mais lento para o acesso aos mesmos pelos
internacional, não foram informadas no EIA. trabalhadores noturnos.
Pode-se estimar que, a cada noite, eram pre-
parados cerca de 15 tanques de calda tóxica, Mas ele [VMS] nunca deixou de trabalhar com
cada um contendo 5.680 litros, totalizando máscara, ele nunca deixou de trabalhar com EPI,
85.200 litros. nunca! Era um cara que todo mundo se admirou
Sua jornada de trabalho era de 8 horas dele, porque era um cara que sempre se preve-
diárias, de segunda a sábado, sempre no niu. Outra coisa, se ele fosse jantar ou se ele fosse

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98 RIGOTTO, R. M.; AGUIAR, A. C. P.

fazer um lanche, lavava as mãos, era tudo bem hepatomegalia (Diuron), indução de enzimas
direitinho, aquilo ali dele certo. (Colega de tra- cromossomiais hepáticas (Deltamethrin),
balho informante). alteração da função hepática (Deltamethrin
e Bacillus thurigiensis), colestase e danos
A rotina estabelecida pela empresa para no parênquima hepático (Thiabendazole),
a troca de filtros das máscaras respiratórias, congestionamento e edema hepático
de filtro químico, era mensal, independente- (Imidacloprid). Os efeitos crônicos reco-
mente da exposição: “a gente percebia o filtro nhecidos são: hipertrofia dos hepatócitos
todo preto por dentro, principalmente quem (Deltamethrin, Triadimefon), hiperplasia
trabalha fazendo mistura” (colega de traba- hepática, formação de tumores benignos e
lho informante). malignos (Deltamethrin); congestão e hepa-
Os exames médicos eram realizados pe- tomegalia (Bromacil); possível carcinogeni-
riodicamente, constando de exame clínico cidade, carcinoma e adenoma hepatocelular
sumário que, segundo o informante, “não (Tebuconazole); aumento do peso hepático
levava nem um minuto”, e dosagem semes- (Thiabendazole, Triadimefon), adenoma
tral da atividade da acetilcolinesterase e de (Triadimefon).
plaquetas. Ainda de acordo com o colega de No caso em análise, as sorologias para
trabalho: hepatites B e C não revelaram hepatites
virais. Outras etiologias que entrariam no
Eles não te dão nem a cópia [dos resultados dos diagnóstico diferencial seriam: doença
exames] né, pelo menos uma guiazinha! Eu falo: biliar, alcoolismo e esteatose hepática não
rapaz... porque eles não dão um parecer pra gen- alcoólica (NASH). O Ultrassom abdominal
te, aí eles dizem ‘é ordem da empresa, a empresa não mostrou lesões sugestivas de doença
não pode dar nada aqui não’. (Colega de traba- biliar e de NASH. Hepatite alcoólica fica
lho informante). prontamente descartada dos diagnósticos
diferenciais, pois o paciente não apresentava
exposição ao álcool.
Discussão do caso clínico: A hipótese de hepatite autoimune era plau-
o nexo entre o agravo e a sível, mas, de acordo com os critérios interna-
cionais de hepatite autoimune (ALVAREZ ET AL.,
exposição ocupacional 1999), o paciente não atingiu sequer 10 pontos
nesse escore, afastando também essa hipó-
Embora um grande número de produtos tese diagnóstica. O diagnóstico de colangite
químicos industrializados seja reconhe- esclerosante também pode ser descartado,
cido como hepatotoxinas, doença hepá- pois a ultrassonografia realizada não mostrou
tica por exposição ocupacional a eles é alterações das vias biliares. Além disso, os
raramente suspeitada e diagnosticada autoanticorpos relacionados com a colangite
(MALAGUARNERA ET AL., 2012). esclerosante, pANCA, apresentaram resulta-
A consulta às monografias sobre os in- dos negativos, e as enzimas canaliculares não
gredientes ativos com os quais o trabalhador mostraram alterações compatíveis.
teve contato direto, depositadas na Anvisa A apresentação clínica da doença hepá-
– Ministério da Saúde, evidenciou que há tica ocupacional pode ser aguda, subaguda
descrição de hepatotoxicidade para a maior ou crônica, mas é frequentemente insidiosa.
parte deles. Os danos hepáticos são classifi- Sinais e sintomas de hepatite tóxica incluem:
cados como agudos e/ou crônicos. Entre as icterícia, prurido, dor subcostal direita,
alterações agudas, e os respectivos ingre- fadiga, anorexia, náuseas, vômitos, rash,
dientes ativos relativos a elas, pode-se citar: perda de peso e colúria. Na forma aguda da

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Por que morreu VMS? Sentinelas do des-envolvimento sob o enfoque socioambiental crítico da determinação social da saúde 99

doença, o quadro clínico é muito semelhan- agricultor exposto a herbicida paraquat e


te à hepatite viral com rápida deterioração diquat com queixa de dor abdominal e hepa-
clínica, causada por disfunção hepática grave, tomegalia ao exame físico, destaca a mesma
encefalopatia e coagulopatia (MALAGUARNERA ET correlação de aumento de enzimas hepáticas
AL., 2012). Essa descrição em tudo se identifica celulares e canaliculares com colestase intra-
com o caso aqui relatado. -hepática em duas biópsias, sem sinais de
Três critérios devem ser observados para injúria por álcool e sem a presença de autoan-
o diagnóstico de hepatite tóxica ocupacional: ticorpo ou anticorpos para hepatite A, B e C.
1) o dano hepático deve ocorrer após a expo- A Organização Pan-Americana de Saúde
sição ao agente químico, portanto a história (1996) destaca, entre as várias manifestações
ocupacional do paciente é necessária; 2) as crônicas relacionadas com os agrotóxicos, as
enzimas hepáticas devem, no mínimo, dobrar lesões hepáticas com alterações das transa-
o limite superior da normalidade e 3) outras minases e da fosfatase alcalina. Em análise
causas de doença hepática devem ser exclu- do estado de saúde de agricultores que traba-
ídas (MALAGUARNERA ET AL., 2012). Esse paciente lhavam em cultivo de algodão, Jonnalagadda
preenche todos os critérios mencionados. et al. (2010) avaliam 300 trabalhadores que
Estudos na mesma localidade de onde o usavam pesticidas organofosforados e 300
paciente procedia já haviam mostrado alte- indivíduos como caso controle, com base
rações nas enzimas hepáticas na população em parâmetros bioquímicos (alanino amino-
trabalhadora da mesma empresa (ALEXANDRE, transferase/transaminase glutâmico-pirúvi-
2009). No presente relato, esse paciente ca – ALT/TGP e aspartato aminotransferase/
apresentava elevação de todas as provas de transaminase glutâmico-oxalacética – AST/
função hepática. TGO). Na dosagem de AST, houve aumento
Outros trabalhos já haviam demonstrado significativo dos níveis no grupo dos expos-
elevações enzimáticas do fígado com exposi- tos em relação aos não expostos, embora
ção a agrotóxicos. Na avaliação da incidência essas variações estivessem pouco acima dos
de suicídios e sua relação com agrotóxicos valores normais. Na dosagem de ALT, os re-
no município de Luz, Minas Gerais, Meyer e sultados não foram significativamente dife-
Resende (2007) entrevistaram 50 moradores, rentes entre os grupos.
dos quais 98% referiam uso regular de agrotó-
xicos. A dosagem de transaminases apresen-
tou elevação em 33,33%, sendo a maior parte Da clínica à saúde pública
acima de 20% dos valores de normalidade.
Em estudo de caso de um agricultor de No aparato jurídico-institucional que
75 anos com história de exposição ocupa- vem sendo instituído a partir da Reforma
cional a herbicida e sem história de uso de Sanitária, o caso de VMS deveria, formal-
álcool, drogas de abuso ou medicamentos, mente, seguir o seguinte fluxo: Diagnóstico
Elefsiniotis et al. (2007) encontraram aumento da doença do trabalho → tratamento, in-
de enzimas celulares, transaminases e ca- formação do paciente e notificação do caso
naliculares, GGT e FA, sem a presença de → vigilância Epidemiológica/ vigilância
marcadores para hepatites virais (A, B, C, da Saúde dos Trabalhadores/ vigilância da
Epstein Barr, citomegalovírus, herpes simples Saúde Ambiental.
e herpes zoster). Ao exame histopatológico Como evidenciam diversos estudos
do mesmo trabalhador, foi observado coles- (RIGOTTO; AGUIAR, 2015; PONTES, 2012; DIAS; HOEFFEL, 2005),
tase e toxicidade hepatocelular do fígado, sua realização, entretanto, tem sido limitada
compatível com hepatotoxicidade induzida por uma série de dificuldades, algumas delas
por drogas. Peiró (2007), em relato de caso de brevemente apontadas a seguir:

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100 RIGOTTO, R. M.; AGUIAR, A. C. P.

Diagnóstico da doença do trabalho exposição – alimentar, ocupacional, ambien-


tal etc. (FRIEDRICH, 2013); a ausência de registro
Processos de territorialização na Atenção de dados sobre a exposição de cada pessoa ao
Básica à Saúde e na Estratégia Saúde da longo da vida; os limites das informações dis-
Família (ABS/ESF) pouco consideram os poníveis sobre o uso de agrotóxicos nos territó-
processos produtivos em curso no território, rios – à exceção de alguns estados que fizeram
as transformações e os riscos ocupacionais e legislação específica, já que os dados públicos
ambientais que geram, bem como a inserção disponíveis são fornecidos diretamente pelas
dos moradores e moradoras no mundo do empresas fabricantes de agrotóxicos e não in-
trabalho, comprometendo a identificação das formam sobre o consumo (volume e IAs) por
reais necessidades de saúde da população; municípios, distritos ou localidades;
Os programas verticais direcionam a or- A clínica médica, marcada pelo paradigma
ganização da atenção segundo os ciclos de mecanicista de ciência – positivista, linear, frag-
vida e patologias prevalentes, nos quais os mentário, entre outros –, encontra dificuldades
agravos relacionados com o trabalho são para analisar complexamente a etiologia dos
subdiagnosticados, subnotificados e, portan- agravos e estabelecer nexos com a exposição a
to, pouco considerados; riscos ocupacionais e ambientais, colocando-se
A semiologia médica e as ações de assis- na dependência de análises toxicológicas que
tência raramente levam em conta as relações confirmariam o diagnóstico – estas, por sua
saúde-trabalho-ambiente, por limitações na vez, ainda pouco estruturadas no sistema.
formação dos profissionais de saúde, tanto
nas universidades como nas capacitações Notificação do caso
oferecidas aos serviços;
A pressão exercida pelas empresas sobre Os serviços de saúde são pressionados por
os profissionais dos Serviços Especializados demanda frequentemente superior ao que
em Segurança e Medicina do Trabalho nas possibilita o dimensionamento da equipe,
empresas (SESMT) e também do SUS, para gerando sobrecargas que comprometem a
que não estabeleçam o nexo entre o ado- qualidade do atendimento e que comprimem
ecimento e os riscos no trabalho, diante de o tempo que seria dedicado aos procedimen-
contextos perversos de precarização das re- tos de notificação, bem como a qualidade de
lações de trabalho e de violência no campo; seu preenchimento;
A dificuldade de acesso aos serviços de As relações contratuais de trabalho dos
saúde, seja por sua localização, seja pelo profissionais de saúde resultam em rotativi-
horário de atendimento incompatível com dade, a qual compromete a eficácia das capa-
a jornada de trabalho, ou mesmo a baixa ex- citações promovidas pelo sistema de saúde;
pectativa com a resolutividade do serviço, As relações do poder local com os serviços,
que desestimulam os trabalhadores e traba- fortalecidas pela descentralização do SUS,
lhadoras a procurarem atenção; podem impor limites aos profissionais para
A avaliação da exposição aos agrotóxicos é o estabelecimento do nexo entre o agravo e
complexa, tendo em vista o elevado número o trabalho ou a contaminação ambiental, que
de Ingredientes Ativos (IA) autorizados no ‘incriminaria’ empresas, nas quais, inclusive,
País (534) – com toxicidades distintas; a di- algumas vezes, os próprios profissionais do
versidade de formulações comerciais disponí- SUS também trabalham;
veis (mais de 2 mil); o escasso conhecimento Os profissionais consideram que não per-
científico disponível sobre a interação entre cebem os retornos que deveriam ser gerados
os diferentes IAs – já que a maioria das expo- pela realização das notificações aos serviços
sições são múltiplas; a diversidade de fontes de e, assim, desmotivam-se a seguir notificando.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 92-109, JAN-MAR 2017


Por que morreu VMS? Sentinelas do des-envolvimento sob o enfoque socioambiental crítico da determinação social da saúde 101

Vigilâncias Epidemiológica, da Saúde Esta breve análise, que não pretende ser
dos Trabalhadores e das Trabalhado- exaustiva, já permite identificar os limites
ras e da Saúde Ambiental do paradigma biomédico e epidemiológico
que orienta o desenho das ações de saúde
Os profissionais da vigilância no SUS, de no SUS. Isso não significa que elas não sejam
modo geral, precisam enfrentar diversas difi- necessárias ou que não devam ser aperfei-
culdades para acessar as empresas, ambien- çoadas, superando os constrangimentos
tes de trabalho e trabalhadores(as), desde os em suas práticas, pelo contrário, este é um
meios de deslocamento até a ‘permissão’ das esforço necessário no qual muitos(as) estão
empresas para o acesso; também não estão envolvidos(as).
articulados aos SESMT das empresas, que Ao levar em conta, todavia, que o Brasil
funcionam de forma autonomizada; coloca-se como o maior consumidor mundial
As ações de vigilância, especialmente da de agrotóxicos desde 2008, que esse uso in-
Saúde dos(as) Trabalhadores(as) e da Saúde tensivo vem sendo expandido pelos mais
Ambiental, demandam conhecimentos téc- recônditos territórios do País e vem sendo
nicos amplos e diversificados, de acordo com estimulado pela propaganda, pela assistência
o ramo de atividades dos empreendimentos, técnica pública, pelo campo científico e de
exigindo a constituição de equipes multipro- formação dos profissionais de ciências agrá-
fissionais e independentes, em processo de rias, entre outros elementos, torna-se clara
educação permanente e territorializada; a imensa desproporção entre, de um lado,
As ações de vigilância supõem também a geração e a difusão do risco, ampliando
uma infraestrutura técnica de apoio, regio- veloz e enormemente a população exposta e
nalizada, principalmente para a realização a intensidade da exposição aos agrotóxicos,
de análises toxicológicas e de contaminação e, de outro, as possibilidades de resposta
ambiental, a qual não está ainda suficiente- do sistema de saúde, ainda que se consiga
mente estruturada no País, tanto quantitati- superar as dificuldades já identificadas.
va como qualitativamente; No intuito de contribuir para o enfrenta-
As ações de vigilância são ainda limitadas mento desse vultoso desafio, reúnem-se, no
pelo reduzido poder jurídico-institucional item seguinte, alguns elementos trazidos
do SUS para incidir sobre as empresas e efe- pelo enfoque socioambiental crítico e trans-
tivamente exigir modificações das condições formador à análise do problema.
de trabalho ou das práticas ambientais dessas
organizações privadas e pela influência de
políticos sobre a gestão e os profissionais; A morte de VMS em seu
A possibilidade de articulação interseto- contexto: sentinelas do
rial para potencializar as ações das diferen-
tes instituições afetas à saúde ambiental e
desenvolvimento
dos(as) trabalhadores(as), via de regra, ainda
permanece como desafio a ser enfrentado; O modelo de desenvolvimento agrí-
O arcabouço jurídico-institucional que cola no semiárido
dá sustentação às ações de vigilância traz as
marcas do paradigma do uso seguro de agro- Quando VMS completava 10 anos de idade,
tóxicos (ABREU, 2014), baseando-se em Valores o então Departamento Nacional de Obras e
Máximos Residuais (VMR) ou Limites de Saneamento (DNOS) estava iniciando a desa-
Tolerância (LT) e concentrando a prevenção propriação de 13.229,20 hectares na Chapada
no uso de EPI, os quais não protegem efeti- do Apodi, nos municípios de Limoeiro do
vamente a saúde. Norte e Quixeré, para a implantação do

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 92-109, JAN-MAR 2017


102 RIGOTTO, R. M.; AGUIAR, A. C. P.

Perímetro Irrigado Jaguaribe-Apodi (Pija) Estudo epidemiológico entre traba-


(entre outros 38 no semiárido nordestino). lhadores agrícolas da região (n=545) de-
Essa política tinha como objetivos introduzir monstrou que 30,7% deles apresentavam
um novo modelo de produção agrária nessa quadro de provável intoxicação aguda por
região, via modernização da agricultura e agrotóxicos. Para além disso, 23,1% do
incentivo a culturas agrícolas de maior ren- total de trabalhadores relataram três ou
tabilidade, com destaque para a fruticultura mais sintomas de efeitos agudos em pele
irrigada, ao tempo que visava minimizar os e mucosas (provável intoxicação aguda);
conflitos agrários, desviando o debate da 29% apresentaram alterações hematológi-
reforma agrária para os projetos de irrigação. cas e 5 –19%, como VMS – apresentaram
Das 320 famílias agricultoras desapropriadas alterações hepáticas (MACIEL; RIGOTTO; ALVES,
para a implantação do Pija, apenas 19% con- 2011). Na empresa em que trabalhou VMS,
seguiram seguir produzindo no perímetro, 48,0% dos trabalhadores examinados
ao contrário das expectativas geradas (FREITAS, apresentaram alterações laboratoriais das
2010). Inicia-se então um profundo processo provas hepáticas (TGO, TGP, Gama GT, FA,
de desterritorialização, mediado pela expro- bilirrubinas) (ALEXANDRE; RIGOTTO; PESSOA, 2011).
priação da terra e de menor acesso à água, Em relação às neoplasias, Rigotto et al.
que alterou as formas de organização econô- (2013), ao realizarem uma análise dos dados
mica e social das comunidades, incidiu sobre secundários referentes a esse agravo, evi-
sua segurança alimentar e gerou um contin- denciaram um aumento de 38% na taxa de
gente de trabalhadores até então autônomos. mortalidade por câncer nos municípios de
Segundo Teixeira (2011, P. 490): Limoeiro do Norte, Quixeré e Russas, em
comparação com outros 12 municípios em
O trabalhador que tem seu trabalho precariza- que predomina a agricultura familiar, nos
do nas empresas do agronegócio é o mesmo quais não há uma utilização intensiva de
camponês que foi expulso do campo alguns agrotóxicos como nos primeiros.
anos antes para a elas dar espaço e é também Estudo conduzido por Ferreira Filho (2013)
quem, ao chegar em casa, ingere água conta- na mesma região demonstrou alterações cro-
minada com agrotóxicos. mossômicas em células da medula óssea em
25% do grupo de trabalhadores expostos a
Em boa parte, corporações transnacionais agrotóxicos utilizados no cultivo da banana:
voltadas à exportação, tais empresas desen- aneuploidias; deleções dos cromossomos 5,
volvem modelos produtivos baseados no mo- 7 e 11; monossomia; amplificação do gene
nocultivo por meio da mecanização e do uso TP53 –, anormalidades semelhantes às en-
intensivo de fertilizantes químicos e agrotó- contradas nas síndromes mielodisplásicas e
xicos – aplicados inclusive por pulverização nas leucemias mieloides agudas, e importan-
aérea. Disso resulta ampla contaminação dos tes para o prognóstico de doenças malignas.
compartimentos ambientais, dos(as) traba- Estudando o câncer infantojuvenil no Ceará,
lhadores e trabalhadoras e moradores(as) do Barbosa (2016) identificou que, no período
entorno. Avaliação realizada pelo órgão esta- de 2000 a 2011, foram registrados 3.274
dual de gestão de recursos hídricos encon- casos e 2.080 óbitos em menores de 19 anos,
trou 60% das amostras de água do Aquífero sendo que a tendência temporal das taxas
Jandaíra contaminadas (COGERH, 2009), che- de mortalidade para câncer em Camocim/
gando essa proporção a 100% no estudo rea- Acaraú, Baixo Jaguaribe e Cariri apresenta-
lizado pela UFC, em que foram identificados ram aumento na média anual. Na correlação
3 a 10 ingredientes ativos de agrotóxicos em espacial dos casos de câncer com os polos
cada amostra (MARINHO, 2010). de irrigação, as maiores concentrações de

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Por que morreu VMS? Sentinelas do des-envolvimento sob o enfoque socioambiental crítico da determinação social da saúde 103

casos estão nas microrregiões onde estão Precarização do trabalho e resistên-


instalados os polos de irrigação, tendo sido cias dos trabalhadores
verificado nos relatos de casos de crianças e
adolescentes do Baixo Jaguaribe que o fator A Del Monte Fresh Produce Brasil Ltda.,
de risco para câncer mais presente foi o de onde trabalhava VMS, conta com a certifica-
exposição a agrotóxicos. ção internacional privada GlobalGAP (Boas
Apesar de todos esses impactos, ao invés Práticas Agrícolas, em inglês), requisito fun-
de serem sobretaxados como o cigarro e as damental para o acesso ao mercado europeu,
bebidas alcoólicas, os agrotóxicos contam emitida após inspeção de empresas de audi-
com isenção fiscal de 100% dos impos- toria, que examinam 234 pontos, em que
tos no Ceará (Decreto nº 24.569/1997)
– Imposto sobre Operações Relativas 117 são vinculados à segurança alimentar, 50
à Circulação de Mercadorias (ICMS), ao meio ambiente e biodiversidade, 46 ao con-
Imposto sobre Produtos Industrializados trole da rastreabilidade e 21 relacionam-se
(IPI), Contribuição para Financiamento diretamente ao bem-estar dos trabalhadores.
da Seguridade Social (Cofins) e Programas (BEZERRA, 2012, P. 193).
de Integração Social e de Formação do
Patrimônio do Servidor Público (PIS/ Em um imaginário social ainda marcado
Pasep) –, a exemplo do que ocorre em pela colonialidade, essa certificação possi-
outros estados do Brasil (TEIXEIRA, 2011). velmente alimenta a ideia de que grandes
Conforma-se então uma política pública empresas estrangeiras adotam boas práticas,
de desenvolvimento agrícola que promove, respeitam a legislação, têm competência
legitima, financia e apoia um modelo que técnica e são eficientes. Entretanto, regis-
incide negativamente sobre os determi- tros do Ministério Público do Trabalho em
nantes da saúde, ao retirar das famílias Limoeiro do Norte apontam depoimentos
camponesas o acesso aos bens naturais de 27 trabalhadores dessa empresa sobre o
que provêm sua existência, reorganizar a uso de agrotóxicos proibidos no Brasil, os
produção e o trabalho introduzindo riscos quais, durante as auditorias do GlobalGAP,
de elevado impacto sobre a saúde pública, eram armazenados em um “caminhão-baú
especialmente desse segmento social. Sem amarelo e escondido no mato”.
uma avaliação adequada das consequên- Após aprofundado estudo sobre o traba-
cias desse modelo, sua expansão em mais lho nos perímetros irrigados do Nordeste,
193.137 hectares está sendo promovida pelo Bezerra conclui que:
Plano Plurianual 2012-2015 e pela Política
Nacional de Irrigação (Lei nº 12.787/2013), A realidade do trabalho nos espaços da fru-
a qual aponta o aumento da produtivida- ticultura demonstra justamente a persistên-
de e da competitividade do agronegócio cia da precarização. Os principais problemas
entre seus objetivos (PONTES ET AL., 2013). Uma relatados fazem lembrar que, embora possa-
compreensão ampliada do princípio da in- mos testemunhar a modernização do proces-
tersetorialidade do SUS alerta para a ne- so produtivo por meio das técnicas avançadas
cessidade de situar a saúde como direito de de plantio, do uso de sementes geneticamen-
todos e dever do Estado “garantido median- te modificadas etc., quando tratamos das re-
te políticas sociais e econômicas que visem lações de trabalho, todo o empreendimento
à redução do risco de doença e de outros da modernização se desmorona para erigir
agravos” (BRASIL, 1988), como reza o artigo 196 práticas arcaicas de superexploração dos
da Constituição de 1988, e não por políticas trabalhadores mediante: longas jornadas
como essa. de trabalho, estabelecimento de metas de

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produção; persistência do bóia-fria, inexis- prostituição, inclusive infantojuvenil. Além


tência de infraestrutura adequada para a ali- do sofrimento humano e da disseminação
mentação dos trabalhadores; precariedade do de doenças sexualmente transmissíveis, tal
transporte; ambiente de opressão e assédio quadro repercute ainda em um índice de
moral; e riscos para a saúde pela exposição gravidez na adolescência três vezes superior
aos agrotóxicos no espaço de trabalho e de à média nacional, como constatou estudo no
moradia. (BEZERRA, 2012, P. 220). distrito de Lagoinha, município de Quixeré
(PESSOA, 2010). As longas jornadas de traba-
É o que demonstram também outros lho, as precárias condições de trabalho e o
estudos realizados no Baixo Jaguaribe, onde escasso tempo com a família são especial-
vivia VMS. De acordo com Ferreira et al. mente penosos para as trabalhadoras, que
(2011), 71,7% dos trabalhadores do agronegó- ainda têm socialmente a responsabilidade
cio contam com a renda mensal de um a dois por uma segunda jornada de trabalho no
salários mínimos. As empresas não remu- cuidado com a casa e com os filhos.
neram o tempo de deslocamento dos traba- A resistência a essa superexploração não
lhadores ao trabalho (horas in itinere), e as tem passado pelo sindicato dos trabalha-
frequentes horas extra não são opcionais, ao dores: embora 69,4% deles sejam sindica-
contrário do que prevê a legislação, e aqueles lizados – porque a empresa acordou com a
que não aceitam, não têm transporte de volta entidade que realizaria esse procedimento
para casa no horário regular. À extensão da no momento da contratação –, 79,1% nunca
jornada de trabalho, associa-se a imposi- participaram de atividades do sindicato
ção de metas de produtividade, alcançadas (FERREIRA; TEIXEIRA; MARINHO, 2011). Ainda assim,
pela intensificação do trabalho. No caso do os empregados da Del Monte fizeram greve
cultivo da banana, por exemplo, em 2008 e 2012, apoiados por movimentos
sociais e por pastorais sociais, reivindicando:
cada grupo de três trabalhadores tem que,
diariamente, colher e transportar 175 caixas 1 – Pagamento das horas in itinere, Art. 58
com média de 70 Kg cada, totalizando 12.250 da CLT.
Kg, havendo desconto no seu salário caso a
meta não seja atingida. (RENAP, 2012, P. 6). 2 – Fim do assédio moral existente, prin-
cipalmente com a imposição de metas que
Tais metas produzem não só o cansaço e o ultrapassam a capacidade de trabalho do
esgotamento de cada dia, mas também o des- trabalhador e quanto ao ponto, que precisa
gaste do estado geral de saúde e o comprome- de regras de proteção e segurança, pois por
timento do sistema osteomuscular, gerando qualquer aborrecimento, o fiscal corta o
patologias crônicas que vão limitar a vida ponto, mesmo o trabalhador tendo traba-
desses trabalhadores no presente e no futuro. lhado o dia inteiro.
Cultivos sazonais como o do melão im-
plicam contratos de trabalho temporários, 3 – Fim da obrigatoriedade de fazer horas
situação em que estão 45,2% dos trabalha- extras, que estas devem ser eventuais, res-
dores do agronegócio no Perímetro Irrigado peitando a CLT.
Jaguaribe-Apodi – o que não assegura a re-
produção da força de trabalho fora dos pe- 4 – Atendimento à solicitação de mudança de
ríodos em que ela é útil à empresa (FERREIRA; setor de mais de 50 trabalhadores que traba-
TEIXEIRA; MARINHO, 2011). A migração de trabalha- lham na adubação e que já possuem parecer
dores atraídos para essa atividade é acom- do médico da empresa recomendando a
panhada por fluxos de exploração sexual e mudança, mas que o setor de pessoal não

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Por que morreu VMS? Sentinelas do des-envolvimento sob o enfoque socioambiental crítico da determinação social da saúde 105

realiza, estando estes trabalhando doentes, dos agrotóxicos, assassinado em abril de


com doenças adquiridas nesse setor. 2010. A missão do Ceresta, como componen-
te do SUS, foi definida nesse coletivo em
5 – Realização de perícia para determinar o
grau de insalubridade, pois todos estão ex- articular e participar ativamente da constru-
postos a agentes químicos nocivos. ção e desenvolvimento de ações no SUS e
demais políticas públicas, com vistas a contri-
6 – Fornecimento de EPIs, pois estes são buir para o direito à saúde, trabalho decente
insuficientes, caracterizando condições e ambiente saudável aos trabalhadores e às
precárias de trabalho. trabalhadoras rurais. (SESA, 2013, P. 4).

7 – Fim do porte de facões por parte dos Tal serviço poderia responder às novas
fiscais, pois não é necessário ao trabalho necessidades de saúde trazidas pela moder-
dos fiscais e os trabalhadores se sentem in- nização agrícola em curso nem sempre reco-
timidados (Transcrição de panfleto divul- nhecidas pelo SUS. Entretanto, até agora, a
gado pelos trabalhadores em greve, acervo Secretaria Estadual de Saúde apenas alugou
de pesquisa). um imóvel na cidade de Limoeiro do Norte e
A quarta reivindicação relaciona-se criou três cargos de gestão do Ceresta, mas
com o estudo de Ferreira Filho (2013), já não providenciou concurso público para
mencionado, a partir do qual os traba- os profissionais que executariam as ações
lhadores que já apresentavam alterações de saúde, e nem mesmo a seleção pública
citogenômicas não puderam ser abrigados específica foi feita, para agilizar o início do
pela Previdência Social, sob o argumento funcionamento do Centro. Trabalhadores e
de que ainda não apresentavam incapaci- trabalhadoras seguem assim sem a atenção
dade para o trabalho ou ‘m CID’ que justi- adequada a que têm direito, evidenciando o
ficasse o afastamento. A indicação médica desigual empenho do Estado quando se trata
de afastamento do risco também não foi da garantia de direitos da população, se com-
acatada pela empresa, repercutindo em parado à sua eficácia na atração e sustenta-
sofrimento psíquico que inclusive levou ção da expansão agrícola.
um dos trabalhadores à tentativa de sui- Se a promessa de geração de empregos
cídio. A violência simbólica presente nas constitui-se como legitimação social desses
relações hierárquicas de trabalho aparece empreendimentos – mas pode ser lida
também nas segunda e sétima reivindica- também como “meio de obter vantagens lo-
ções, relacionando o facão especialmente cacionais e livre acesso a recursos ambien-
à imposição de horas extra para o cumpri- tais” (ACSELRAD, 2014, P. 94) –, é de questionar as
mento de metas de exportação acordadas consequências desse emprego sobre a saúde
pela empresa com a rede de supermerca- dos trabalhadores e trabalhadoras, sua qua-
dos Walmart na Holanda (BEZERRA, 2012). lidade de vida e suas implicações para o
No que diz respeito à atenção à saúde dos sistema público de seguridade social.
trabalhadores, diversos movimentos sociais
da região se envolveram em um processo
participativo para a criação e elaboração do Considerações finais
Plano de Ação, que veio a ser denominado
Centro de Referência em Saúde, Trabalho Além de alertar a vigilância em saúde sobre
e Ambiente – Ceresta Rural Zé Maria do os óbitos por agrotóxicos, a morte de VMS
Tomé, em homenagem ao líder comunitário, é sentinela de um ‘processo de vulnerabili-
lutador por terra e contra a contaminação zação’ (PORTO, 2011) das populações do campo,

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mediado pelo modelo de desenvolvimento os cânceres, distúrbios endócrinos, mal-


para o campo centrado na modernização da formações congênitas, hepatopatias, entre
agricultura. Nesse contexto, pode ser mais muitos outros. Por outro lado, como sujeitos
amplamente compreendida a sociogênese políticos e históricos, florescem nos territó-
do adoecimento e morte de tantos outros tra- rios movimentos e redes sociais, processos
balhadores e trabalhadoras, ‘incluídos’ por de afirmação e fortalecimento dos modos
intermédio de um emprego precarizado e de- de vida que lhes são próprios, lutas em
sigualmente protegidos pelo Estado. Embora a defesa dos direitos territoriais e da saúde,
leitura do caso de VMS traga especificidades da como a Campanha Permanente contra os
região semiárida, a mesma lógica está em ex- Agrotóxicos e Pela Vida.
pansão nos demais biomas e regiões do Brasil Longe da neutralidade, o campo científico
e na América Latina, na medida em que o con- participa desse processo por meio da produ-
tinente vem sendo subordinado nessa divisão ção de conhecimentos técnico-científicos,
internacional do trabalho, da natureza e dos seja para amparar a modernização agrícola
riscos que configura o neoextrativismo agrícola (produtividade, biotecnologias, agrotóxicos
e mineral (GUDYNAS, 2012). etc.), seja para fomentar alternativas como
Os elementos trazidos nesta breve análise a agroecologia ou para realizar estudos que
se articulam de forma hierarquizada: os subsidiem políticas públicas garantidoras
agentes econômicos do capitalismo avança- de direitos ou que desvelem os impactos
do, movidos pelo rentismo e pela acumula- do modelo de desenvolvimento em curso.
ção por espoliação, forjam e incidem sobre o Ou ainda, ao participar das controvérsias
Estado neoliberal, induzindo políticas de de- científicas entre seus diferentes segmentos,
senvolvimento agrícola que atendem a seus algumas vezes perpassados por sérios confli-
interesses e que incluem o financiamento tos de interesse.
dos empreendimentos, a preparação da in- É este macrocontexto de ameaças à vida
fraestrutura de que necessitam (terra, água, no planeta e de produção de desigualdades
energia, estradas, portos e aeroportos, tecno- e injustiças ambientais que tensiona hoje
logia), a flexibilização e desregulamentação a saúde coletiva a aprofundar a compre-
de direitos, além da legitimação simbólica ensão da determinação social do processo
sob o mito do desenvolvimento. saúde-doença. Acredita-se que a proposta
A essa proatividade do Estado em favor do do enfoque socioambiental crítico e trans-
grande capital, soma-se a construção política da formador pode contribuir em releituras e
ineficácia das políticas sociais (saúde, trabalho, novas elaborações. A partir delas, pode-se
ambiente, entre outras) duramente conquista- aprender mais, por exemplo, com os eventos
das, agravada pelo crônico subfinanciamento, sentinela e, como trabalhadores do campo
os limites do controle social instituído e, mais da saúde coletiva na pesquisa, na formação
recentemente, as próprias ameaças ao sistema e nos serviços, avançar na ‘vigilância do de-
público e universal de saúde. senvolvimento’ (PIGNATI; MACHADO, 2011), em uma
Nesse processo, os territórios de vida no perspectiva crítica e emancipatória, para
campo são desterritorializados e vulnerabi- fomentar as condições históricas e políticas
lizados, e às populações são impostos os im- necessárias à preservação da vida e da saúde.
pactos, que muito se expressam no perfil de Nesse processo, muito se pode aprender
saúde-adoecimento, relacionando-se não só no diálogo com os sujeitos nos territórios,
com acidentes e intoxicações, mas também os movimentos e redes sociais em que se or-
com uma ampla gama de agravos crônicos, ganizam. Os povos originários da América
como distúrbios nutricionais, doenças crôni- Latina, por exemplo, cujos conhecimentos
cas não transmissíveis, transtornos mentais, têm sido invisibilizados e desqualificados,

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Por que morreu VMS? Sentinelas do des-envolvimento sob o enfoque socioambiental crítico da determinação social da saúde 107

trazem em suas cosmovisões uma concepção Colaboradores


bem diversa da relação sociedade-natureza,
que reconhece a interdependência em con- As autoras agradecem a contribuição de
traposição ao des-envolvimento. Com seus Ana Cláudia de Araújo Teixeira, Severino
saberes e experiências, vêm construindo e Alexandre, Terezinha do Menino Jesus, José
afirmando ‘alternativas ao desenvolvimento’, Milton de Castro Lima e Ramon Rawache
em uma perspectiva descolonial, preservando no estudo do caso clínico apresentado.
sementes e apontando pistas para uma vida Agradecem ainda a Reginaldo Araújo pelo
digna (não é à toa, portanto, que esses povos exercício da vigilância popular da saúde que
estão sendo exterminados no neoextrativis- permitiu o desocultamento desta morte em
mo neoliberal contemporâneo). É preciso sua relação com o trabalho. s
aproximar-se deles, como sujeitos epistêmi-
cos e políticos que se é – eles e todos.

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 92-109, JAN-MAR 2017


110 ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE

Planos de carreira, cargos e salários no


âmbito do Sistema Único de Saúde: além dos
limites e testando possibilidades
Career plans, positions and salaries in the scope of the Unified Health
System: beyond the limits and testing possibilities

Swheelen de Paula Vieira1, Celia Regina Pierantoni2, Carinne Magnago3, Tania França4, Rômulo
Gonçalves de Miranda5

RESUMO Este estudo objetivou analisar experiências de planos de carreira, cargos e salários
premiadas pelo Ministério da Saúde. Para tanto, foi realizada pesquisa descritiva e qualitativa,
em 2013, mediante análise documental e entrevistas com gestores de secretarias de saúde com
planos implantados. Dados foram analisados à luz das diretrizes nacionais para a instituição
de planos no Sistema Único de Saúde. Os planos estudados, negociados com os trabalhadores
e baseados nas diretrizes, consideram a avaliação de desempenho e a qualificação profissional
1 Universidade do Estado
para a progressão na carreira. Conclui-se que os planos necessitam incluir os diversos tipos
do Rio de Janeiro (Uerj), de vínculos empregatícios e formas de remuneração compatíveis com as carreiras da saúde.
Instituto de Medicina
Social – Rio de Janeiro (RJ),
Brasil. PALAVRAS-CHAVE Recursos humanos em saúde. Administração de recursos humanos. Salários
helen.nut@gmail.com e benefícios. Avaliação de desempenho profissional.
2 Universidade do Estado

do Rio de Janeiro (Uerj), ABSTRACT This study aimed to analyze the experiences of career plans, positions and salaries
Instituto de Medicina
Social – Rio de Janeiro (RJ), awarded by the Ministry of Health. For this purpose, a descriptive and qualitative research was
Brasil. conducted, in 2013, through documentary analysis and interviews with managers of the health
cpierantoni@gmail.com
secretariats with implanted plans. Data were analyzed in the light of national guidelines for
3 Universidade do Estado the establishment of plans in the Unified Health System. The studied plans, negotiated with
do Rio de Janeiro (Uerj),
Instituto de Medicina the employees and based on the guidelines, consider performance evaluation and professional
Social – Rio de Janeiro (RJ), qualification for career progression. It is concluded that plans need to include the various types
Brasil.
carinne.mag@gmail.com of employment bonds and forms of remuneration compatible with health careers.
4 Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (Uerj), KEYWORDS Health manpower. Personnel management. Salaries and fringe benefits. Employee
Instituto de Medicina performance appraisal.
Social – Rio de Janeiro (RJ),
Brasil.
taniafranca29@gmail.com

5 Universidade do Estado

do Rio de Janeiro (Uerj),


Instituto de Medicina
Social – Rio de Janeiro (RJ),
Brasil.
rnutricao@gmail.com

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 110-121, JAN-MAR 2017 DOI: 10.1590/0103-1104201711209
Planos de carreira, cargos e salários no âmbito do Sistema Único de Saúde: além dos limites e testando possibilidades 111

Introdução Dessa feita, em 2006, foram aprovadas


as Diretrizes do Plano de Carreira, Cargos
O cenário nacional do sistema de saúde bra- e Salários no âmbito do SUS, para apoiar a
sileiro aponta para uma série de desafios, no construção de planos nos âmbitos regionais,
que se refere à gestão do trabalho em saúde. estaduais e municipais, considerando as par-
Alguns nós críticos já vêm sendo debatidos ticularidades dos sistemas locais (BRASIL, 2006).
há anos, como a baixa remuneração, falta de Em 2012, no sentido de valorizar as pro-
motivação dos profissionais, precariedade/ postas de planos estabelecidas pelos siste-
flexibilidade dos vínculos empregatícios e mas locais, mas também impulsionar novas
as dificuldades na implementação de estra- proposituras, o Ministério da Saúde lançou
tégias para a redução da rotatividade dos edital para o projeto InovaSUS, com o tema
trabalhadores. Carreira: Planos de Cargos, Carreiras e
Nesse contexto, segundo as diretrizes Salários (InovaSUS-Carreira), premiando
fixadas para a área de recursos humanos 12 projetos (BRASIL, 2015). Criado em 2011, o
(RH) na Norma Operacional Básica (NOB/ InovaSUS foi o primeiro prêmio de inovação
RH-SUS), o Plano de Carreira, Cargos e relacionada à gestão do trabalho em saúde.
Salários (PCCS) é considerado um instru- A iniciativa tem como objetivo a valorização
mento de ordenação do trabalho, devendo de experiências na área, com a premiação de
ser incorporado em cada nível de gestão do projetos que almejem a excelência, aprimo-
Sistema Único de Saúde (SUS) (BRASIL, 2005). rem a qualidade dos serviços, das condições
O PCCS pode ser definido como um ins- de trabalho e do atendimento aos usuários
trumento de gestão do trabalho, que tem do SUS, e demonstrem possibilidades de re-
como finalidade valorizar o trabalhador e produção (BRASIL, 2015).
instaurar o processo de carreira nas ins- Ante ao exposto, e no sentido de produzir
tituições. Além disso, é um conjunto de evidências que possam subsidiar a estrutu-
normas que orienta e disciplina a trajetória ração e/ou atualização de planos de carreira,
do trabalhador em sua carreira, bem como este estudo objetivou analisar experiências
a respectiva remuneração, promovendo de implantação de PCCS premiadas pelo
oportunidades de qualificação profissional InovaSUS-Carreira, tendo como referencial
(CASTRO, 2012; BRASIL, 2006). as diretrizes nacionais elaboradas e aprova-
Nesse sentido, para além da perspectiva das pela MNNP-SUS.
de direitos, entende-se que o plano de car-
reiras é uma potente ferramenta de gestão,
principalmente quando agregado a outros Material e métodos
subsídios, como a gratificação, a avaliação de
desempenho e a progressão por qualificação Este estudo é um desdobramento da pesqui-
(SEIDL ET AL., 2014). sa ‘Avaliação de políticas e programas nacio-
Apesar de pautados desde 1986 pela nais da gestão do trabalho e da educação em
Comissão da Reforma Sanitária, e, em saúde no SUS’, finalizada em 2014, na qual
seguida, pela Lei Federal nº 8.080/90, os foram entrevistados 519 gestores de secre-
planos de carreira no SUS só começaram tarias estaduais e municipais de saúde (aqui
a ser efetivamente impulsionados após a denominadas SES e SMS, respectivamente),
criação da Secretaria de Gestão do Trabalho com o objetivo de identificar o estágio e a
e da Educação na Saúde (SGTES) e reins- capilaridade das políticas de gestão do traba-
talação da Mesa Nacional de Negociação lho (OBSERVARH-IMS/UERJ, 2014).
Permanente do SUS (MNNP-SUS), em 2003 De posse dos resultados da pesquisa,
(BRASIL, 1986, 1990, 2003). que indicaram deficiência na política de

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 110-121, JAN-MAR 2017


112 VIEIRA, S. P.; PIERANTONI, C. R.; MAGNAGO, C.; FRANÇA, T.; MIRANDA, R. G.

valorização do trabalhador, com poucos As entrevistas, realizadas nos meses de


planos de carreira instituídos no âmbito do agosto e setembro de 2013, foram gravadas
SUS, optou-se por identificar e analisar ex- em equipamento de áudio digital e gravador
periências exitosas de implantação de PCCS. portátil, com posterior transcrição integral
Trata-se de estudo descritivo e analítico, do conteúdo.
de abordagem qualitativa, cujo objeto de Os dados provenientes dos documen-
análise foram algumas experiências de im- tos foram submetidos a uma análise docu-
plantação de PCCS. mental e estatística descritiva, a partir de
Para a determinação das experiências a processamento em banco de dados estru-
serem investigadas em profundidade, con- turado no software Excel. As informações
sideraram-se os resultados da 2ª edição do provenientes das entrevistas foram tratadas
Prêmio InovaSUS-Carreira, que premiou 12 por análise descritiva, confrontadas com as
iniciativas, implantadas ou não, considera- diretrizes nacionais para a instituição de
das de excelência. A coleta de dados se deu PCCS no âmbito do SUS, documentos se-
em duas etapas. Primeiro, foram coletados lecionados e literatura pertinente ao tema.
documentos referentes aos planos das estru- Posteriormente, os resultados da pesquisa
turas premiadas (legislação, instrumentos foram apresentados para discussão e valida-
e projetos apresentados no ato da inscrição ção junto aos atores envolvidos, membros da
para o InovaSUS-Carreira) e dados secun- MNNP-SUS e representantes da SGTES.
dários para a caracterização dos cenários. De acordo com as normas éticas destina-
Na segunda etapa, foram selecionadas oito das a pesquisas envolvendo seres humanos,
secretarias de saúde, por constituírem-se o estudo foi submetido ao Comitê de Ética
enquanto estruturas estaduais ou municipais em Pesquisa do Instituto de Medicina
de grande porte (acima de 500 mil habitan- Social da Universidade do Estado do Rio
tes), e por terem implantado o PCCS premia- de Janeiro, e aprovado sob o Certificado de
do, a saber: secretarias estaduais de Mato Apresentação para Apreciação Ética (CAAE)
Grosso, da Bahia, do Tocantins e das Alagoas; nº 0038.0.259.000-11.
a Fundação Estatal Saúde da Família (Fesf )
da Bahia (Fesf-BA); e as secretarias munici-
pais de Goiânia, Recife e Guarulhos. Resultados
Uma vez selecionadas as estruturas,
procedeu-se ao contato telefônico com os
gestores locais, responsáveis ou participan- Perfil dos entrevistados e caracteri-
tes do processo de implantação dos PCCS, zação das estruturas
para agendamento de entrevista in loco.
Participaram do estudo 13 gestores. Do total de 8 estruturas pesquisadas, partici-
Para essa fase, foi confeccionado um ins- param como respondentes 13 gestores, entre
trumento de coleta de dados semiestruturado, os quais 8 mulheres, correspondentes a 61,5%
com base nas diretrizes nacionais para a insti- da amostra. Quanto à formação, 12 possuem
tuição de PCCS no âmbito do SUS, elaboradas graduação nas mais diversas áreas: serviço
e aprovadas pela MNNP-SUS. O instrumento social (n=3), direito (n=2), administração
contemplou 58 questões estruturadas em 6 (n=2), medicina, ciências contábeis, enferma-
blocos: identificação do respondente; iden- gem, tecnologia da informação e psicologia.
tificação da estrutura pesquisada; processo A maior parte dos gestores (n=7) possui,
e implementação do PCCS; caracterização/ como maior titulação, a Especialização em
estruturação do PCCS; avaliação de desempe- Gestão do Trabalho e Educação na Saúde,
nho; e questões abertas (opinativas). desenvolvida em decorrência da capacitação

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 110-121, JAN-MAR 2017


Planos de carreira, cargos e salários no âmbito do Sistema Único de Saúde: além dos limites e testando possibilidades 113

promovida pela adesão ao Programa de Apenas a SES do Tocantins tem todos os


Qualificação e Estruturação da Gestão do trabalhadores efetivos da saúde – cerca de
Trabalho e da Educação no SUS (ProgeSUS); 11 mil – incluídos no PCCS da saúde, com
cinco possuem mestrado; e um possui for- exceção de alguns servidores administrati-
mação de nível técnico. No que compete ao vos, que optaram por se manter no plano de
tempo dos gestores nos cargos, observou-se carreira do quadro geral do estado. A Fesf
uma média de 3,2 anos. inclui todos os profissionais contratados por
Todas as estruturas pesquisadas possuem ela, porém não há a inclusão dos agentes de
órgãos específicos de recursos humanos, saúde, que são contratados pelos municípios.
criados há pelo menos cinco anos, e encon- Os profissionais de saúde do estado das
tram-se no primeiro ou no segundo escalão Alagoas estão distribuídos em nove planos
da secretaria de saúde. distintos, sendo três deles específicos da
saúde: PCCS dos médicos; PCCS dos profis-
Implantação dos Planos de Carreira, sionais de apoio à saúde, ganhador do Prêmio
Cargos e Salários InovaSUS, que inclui todos os efetivos de
planejamento, administração, transporte, e
Para a propositura dos PCCS premiados, infraestrutura do setor; e PCCS dos técnicos,
todas as estruturas estudadas partiram de assistentes e auxiliares de saúde, que inclui
algum plano já implantado, configurando-o todos os trabalhadores da saúde de nível su-
conforme as diretrizes nacionais, resguar- perior, médio e elementar, exceto aqueles que
dadas as adaptações necessárias para cada estão enquadrados em planos específicos.
local. A exceção foi a SMS de Guarulhos, que As SMS de Recife e de Guarulhos, e a SES da
não apresentava nem mesmo um plano geral Bahia possuem um plano geral para os efetivos
para os servidores municipais. Criaram-se da saúde, que não inclui os administrativos.
comissões específicas com a participação Esta última ainda possui um plano específi-
dos trabalhadores, mas a maior parte das co para os médicos. O plano da SES de Mato
estruturas não fez a discussão em mesas de Grosso inclui apenas parte dos administrati-
negociação, por não tê-las implantadas. vos. A SMS de Goiânia possui dois planos para
O tempo entre a apresentação de uma os trabalhadores da saúde, sendo que o plano
proposta de carreira e a sua implantação foi premiado, implantado em 2012, inclui todos os
de, no mínimo, um ano, e de, no máximo, seis efetivos, mas não os administrativos. O implan-
anos. Para tanto, estudos de impacto finan- tado em 2004 vigora apenas com os profissio-
ceiro foram demandados, em alguns casos, nais de saúde que não quiseram migrar para o
mais de uma vez, com fins de adequação e novo plano, mas não inclui os administrativos e
viabilização do plano. nem os agentes de saúde.
No que tange ao predomínio de profissio-
Características estruturais dos PCCS nais de algum nível de atenção, não se perce-
específicos para o setor saúde bem tantas incongruências, haja vista que os
estados enquadram maior número de profis-
Em termos de abrangência, as maiores difi- sionais do nível terciário, enquanto os muni-
culdades de inclusão se dão para os profissio- cípios enquadram predominantemente os da
nais administrativos, pois há o entendimento, Atenção Primária à Saúde (APS). A surpresa
por parte da gestão superior da secretaria de é a Fesf, que emprega hoje um maior número
administração, que esses profissionais são de profissionais do âmbito hospitalar,
‘sistêmicos’, ou seja, são contratados para quando era de se esperar que possuísse um
atuarem em qualquer um dos setores existen- maior percentual de profissionais da APS, já
tes no âmbito do município/estado. que a proposta inicial para a sua criação era

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 110-121, JAN-MAR 2017


114 VIEIRA, S. P.; PIERANTONI, C. R.; MAGNAGO, C.; FRANÇA, T.; MIRANDA, R. G.

a de viabilizar a expansão e consolidação da para fins de cálculo de horas extras, férias e


Estratégia Saúde da Família (ESF). 13º salário. Isto porque o adicional integra a
Esse cenário é devido, principalmen- remuneração, mas não é incorporado à apo-
te, à não contratualização entre a Fesf e os sentadoria, sendo, portanto, cabível recurso
municípios que a criaram. Do total de 69 do trabalhador, quanto à negação do empre-
municípios que a implantaram, apenas 16 gador em considerá-lo para este fim.
permanecem com contratos ativos. Assim,
a Fesf tem ampliado os serviços para outros Processos de avaliação de
níveis de complexidade, que não a primária. desempenho
Tratando-se dos modos de progressão na
carreira, em sua maioria, os planos conside- Todos os planos preveem processo de ava-
ram o processo de avaliação de desempenho liação de desempenho, contudo, na SES das
e de qualificação. Segundo alguns respon- Alagoas, na SMS de Recife e na Fesf-BA
dentes, a não contabilização do tempo de ainda não há legislação que o regulamente.
serviço na ocasião da adesão ao plano, em Segundo os respondentes da pesquisa, os
certos casos, foi desfavorável a muitos pro- modelos de avaliação de desempenho previs-
fissionais, uma vez que muitos, ao serem tos abrangem todos os servidores da estru-
alocados nas tabelas vencimentais, se encon- tura, com a exceção do modelo das Alagoas
traram no mesmo patamar que outros tantos (restrito aos trabalhadores de apoio à saúde),
profissionais recém-admitidos ou com e foram negociados com os trabalhadores,
menor tempo de serviço. A principal moti- excluindo-se o Tocantins e a Fesf.
vação para a não contabilização do tempo A periodicidade, os requisitos e as formas
de serviço deveu-se, em grande medida, ao de avaliação variam entre os locais, mas se
impacto financeiro que causaria. destaca que a SES da Bahia, por ainda não ter
Uma das maiores questões no processo regulamentado os parâmetros e indicadores,
de discussão e aprovação das propostas dos executa um modelo no qual a avaliação in-
planos diz respeito às gratificações e aos dividual é baseada apenas na assiduidade do
adicionais, com destaque para a não incor- trabalhador.
poração do adicional de insalubridade à apo- Os dados da pesquisa apontam para a
sentadoria. Todas as estruturas pesquisadas grande dificuldade de regulamentar e desen-
oferecem algum adicional, com exceção das volver um processo de avaliação de desem-
Alagoas, onde há, inclusive, um movimento penho que não seja meramente ilustrativo e
de discussão sobre o direito real de recebi- burocrático, e cujos resultados sejam analisa-
mento do adicional de insalubridade. Neste dos para subsidiar melhorias para o serviço e
estado, os profissionais recém-admitidos não para o desenvolvimento de processos de edu-
fazem jus a tal benefício, diferentemente dos cação permanente. Não obstante, em alguns
servidores já atuantes. Este fato tem gerado locais, a avaliação de desempenho garante
disputas judiciais e negociações entre as adicionais importantes à remuneração do tra-
partes envolvidas. balhador, caso da Fesf e da SMS de Recife.
Esse cenário identificado no estado das
Alagoas já é percebido em outras instâncias, Potencialidades e nós críticos dos
talvez porque a própria legislação que a PCCS da saúde
prevê seja frágil em diversos aspectos, per-
mitindo que as empregadoras resolvam os No que tange aos planos de carreira em vi-
impasses em nível local. gência, o quadro 1 apresenta os principais
Outros questionamentos acerca da insa- pontos positivos e negativos dos PCCS da
lubridade referem-se à sua contabilização saúde, segundo a percepção dos gestores.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 110-121, JAN-MAR 2017


Planos de carreira, cargos e salários no âmbito do Sistema Único de Saúde: além dos limites e testando possibilidades 115

Quadro 1. Principais pontos positivos e negativos dos planos de carreiras, cargos e salários da saúde implantados, na
opinião dos gestores das estruturas de saúde – Brasil, 2013.

Estruturas Pontos positivos Pontos negativos

SES de Inclui a política de saúde do trabalhador baseada em Avaliação de desempenho é geral para todos
Mato critérios de gestão do conhecimento. os trabalhadores estaduais, e a autoavaliação
Grosso ainda não está regulamentada.

SES da Aposentados e pensionistas foram beneficiados; Baixos salários.


Bahia prevê duplo vínculo; imprimiu ganho salarial em
comparação a planos anteriores; subsidiou a im-
plantação da política de saúde do trabalhador.

SES das Inclui o pessoal de apoio; exigiu previamente o Existência de vários planos; progressão vertical
Alagoas mapeamento dos servidores da saúde para o enqua- por nível (titularidade) ainda não regulamen-
dramento no plano. tada.

SES do Aumentou a assiduidade dos trabalhadores, os Não indicou ponto negativo.


Tocantins salários e a satisfação dos profissionais.

SMS de Diminuiu a rotatividade; aumentou a satisfação dos Prevê adicional de titulação, formação e aper-
Goiânia profissionais. feiçoamento que não estimula o profissional a
se qualificar constantemente.

SMS de Estágio probatório contabiliza para a carreira; inclui Não inclui os administrativos.
Recife os agentes comunitários e de combate às endemias;
aumentou o percentual de ganho ao fim da carreira;
alterou a nota mínima para progressão na carreira,
por avaliação de desempenho.

SMS de Instituiu o processo de avaliação de desempenho. Progressão vertical não regulamentada (titula-
Guarulhos ridade); não inclui os administrativos.

Fesf-BA Garantiu gratificação de 26% para todos os traba- Não foi negociado com os trabalhadores.
lhadores e de 50% para médicos, por produção e
qualidade.

Fonte: Estação de Trabalho da Rede Observatório de Recursos Humanos em Saúde do Instituto de Medicina Social da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (ObservaRH-IMS/Uerj), 2014.

É válido chamar a atenção para a im- com instrumentos específicos em interface


plantação de uma política de saúde do tra- com a educação permanente, no Tocantins;
balhador nos estados de Mato Grosso e da e dificuldade para contratação de médicos
Bahia. Os gestores exaltaram tal iniciativa, e de auxiliares de enfermagem pela SMS de
fruto de negociação e luta dos trabalhado- Guarulhos.
res, como um passo importante no combate
às más condições de trabalho, às doenças e Comparativo entre os PCCS e as dire-
aos agravos do trabalhador, oriundos de um trizes nacionais da MNNP-SUS
ambiente insalubre, alta carga de trabalho,
escassez de insumos básicos etc. As legislações que implantam e regem os
Ainda como pontos de relevância, desta- planos estão de acordo com o que preveem as
cam-se: movimento de extinção das orga- diretrizes, como já apontado pelos próprios
nizações sociais no estado de Mato Grosso; gestores. Notam-se, contudo, particularida-
proposta de unificação dos inúmeros planos des, já que as próprias diretrizes propõem-se
existentes no âmbito do estado das Alagoas; genéricas para que cada local as adeque à sua
avaliação de desempenho informatizada, realidade.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 110-121, JAN-MAR 2017


116 VIEIRA, S. P.; PIERANTONI, C. R.; MAGNAGO, C.; FRANÇA, T.; MIRANDA, R. G.

Um aspecto a ser destacado é a abran- carreiras paritárias de gestores e trabalha-


gência do plano. As diretrizes indicam que dores, com desdobramento para as mesas
todos os trabalhadores do SUS estejam en- de negociação, apenas a SES das Alagoas e
quadrados em PCCS. Apesar disso, há dis- a SMS de Recife a atendem; a SES da Bahia
paridades entre os locais, tendo em vista o inclui-se na mesa geral de negociação do
entendimento, por parte de alguns gestores/ estado.
governantes, de que alguns cargos são gené- O desenvolvimento na carreira, por pro-
ricos nos âmbitos da prefeitura e do estado, moção e progressão por mérito, determina-
de modo que os profissionais que ocupam do pelas diretrizes, ocorre nas SES de Mato
tais cargos podem atuar em qualquer setor, Grosso, SMS de Guarulhos e de Recife, e na
cabendo-lhes, portanto, enquadramento em SES da Bahia. Nestas duas últimas, também
um plano geral da instância. se utiliza o tempo de serviço. Nas Alagoas, no
Outro ponto a ser discutido é em relação à Tocantins e na Fesf, se utilizam o tempo de
divisão das classes, a qual as diretrizes nacio- serviço e a avaliação de desempenho.
nais propõem que seja realizada de acordo Por fim, o programa institucional de qua-
com o grau de escolaridade, constituindo, por lificação com vistas à valorização e ao desen-
exemplo, uma classe/cargo genérica a todos volvimento profissional só não está previsto
os profissionais de nível superior. Embora nos planos da SMS de Goiânia e da Fesf-BA.
os planos estudados tenham tentado se ater
ao máximo ao que preconizam as diretrizes, Satisfação dos trabalhadores em re-
esse aspecto foi considerado ponto nevrál- lação ao PCCS
gico, dada a dificuldade de negociação com
a categoria médica, que cria impasses para Durante as entrevistas, foi também medida
isto, segundo os respondentes. Sendo assim, a satisfação dos trabalhadores com o PCCS
apenas o plano do estado de Mato Grosso implantado, na percepção dos gestores, por
agrega todos os profissionais de uma mesma meio de uma escala do tipo Likert, com
escolaridade no mesmo cargo. Nos demais, quatro graus, como segue: grau 1 – insatisfei-
os profissionais médicos se encontram se- tos; grau 2 – pouco satisfeitos; grau 3 – satis-
parados em cargos ou planos de carreira feitos; e grau 4 – muito satisfeitos.
específicos. Há, ainda, o caso das Alagoas, As respostas obtidas apontam que, de
que gerenciam nove planos diferentes para modo geral, os profissionais estão satisfei-
profissionais com atuação no SUS. tos (média=3) com os planos implantados.
A diretriz que pressupõe a avaliação de Os respondentes referiram que a maior in-
desempenho como um processo pedagógico satisfação é percebida na categoria médica,
e participativo, abrangendo, de forma inte- sobretudo em razão de eles considerarem os
grada, todas as atividades dos trabalhadores, salários baixos.
quer sejam individuais, coletivas ou institu- As principais reivindicações dos traba-
cionais, foi acolhida por todos os planos estu- lhadores são: regulamentação de proces-
dados, embora este processo ainda não esteja sos previstos no plano, como a avaliação de
em prática em alguns locais. Igualmente, a desempenho; extinção das organizações
premissa de ingresso na carreira por concur- sociais; melhores condições de trabalho e
so público também está prevista nos planos infraestrutura; 30 horas para a categoria de
das oito estruturas. enfermagem; e implementação de processos
No que se refere à gestão partilhada entre de educação permanente.
os trabalhadores, prevista nas diretrizes No que tange à escassez de profissionais
nacionais, apenas a Fesf referiu não corres- de saúde, grande parte dos gestores afirmou
ponder. Quanto à criação de comissões de que ela se dá basicamente com relação aos

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 110-121, JAN-MAR 2017


Planos de carreira, cargos e salários no âmbito do Sistema Único de Saúde: além dos limites e testando possibilidades 117

médicos, tanto para atuação na Atenção que influenciam as relações de trabalho; e


Básica (AB) quanto em outros níveis da da redução de empregos estáveis e diversi-
atenção. Em se tratando de outros profissio- ficação de vínculos empregatícios, que, por
nais, os respondentes relataram a existência consequência, reorganizam as estruturas e
de oferta que excede a incorporação deles concepções de carreira (BLANCH, 2003; SENNETT,
pelo mercado de trabalho. 1998). Passa-se a valorizar as competências
No que compete à rotatividade profissio- e habilidades, e há uma concentração de
nal, os gestores não puderam afirmar que ela postos de trabalho com contratação via
diminuiu após a implantação dos PCCS, que Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)
se constituem como eventos recentes, não (CAMPOS, 2006; ARONI, 2011).
havendo, ainda, dados suficientes que subsi- Não obstante à desvalorização do ideário
diem a avaliação deste indicador. de carreira pública como sonho de todo
trabalhador, ainda vigem as reivindicações
de trabalhadores públicos, sobretudo aloca-
Discussão dos nas áreas consideradas prioritárias dos
estados – saúde, educação e segurança –, por
A carreira é um sistema organizativo e carreiras que possibilitem a valorização sala-
compreensivo da trajetória das atividades rial e do tempo de trabalho, e que garantam
laborais das pessoas; tem função social e benefícios de curto prazo, como adicionais e
administrativa, que orienta a mobilidade no melhores condições de trabalho.
mercado de trabalho e a função psicossocial Em se tratando da saúde, desde a implan-
de dar sentido e motivação às atividades tação do SUS, em 1990, já se propunha a
realizadas pelos trabalhadores. A carreira criação de carreiras para os profissionais do
trabalhista surge, no mundo, no início do sistema, sendo, inclusive, requisito para o re-
século XX, com o objetivo de organizar a cebimento de recursos oriundos da União a
trajetória da vida laboral dos funcionários, a implantação de uma comissão de elaboração
ser percorrida por meio de cargos e funções de PCCS, por parte dos municípios (BRASIL,
a serem desempenhadas ao longo do tempo 1990).
(ARONI, 2011). O relatório final da II Conferência
No Brasil, a carreira tradicional ganha Nacional de Recursos Humanos, realizada
ênfase na década de 1970, em um contexto em 1993, afirmou que as oportunidades de
de repressão dos sindicatos pela ditadura desenvolvimento profissional eram escassas,
militar. Ademais, os investimentos no setor os salários degradantes, e que os planos de
industrial atraíram mão de obra de baixa carreira eram inexistentes. Tal cenário acar-
qualidade, que era treinada apenas para o retaria a desmotivação dos trabalhadores e o
exercício da função, e a valorização do em- descompromisso ético e social com o sistema
pregado se dava basicamente no que concer- de saúde (BRASIL, 1993).
nia ao seu tempo de trabalho. A década de Passados mais de 20 anos do documento
1980 foi marcada por greves empreendidas supramencionado, o cenário relatado já não
pelos sindicatos, tendo em vista a estagna- é o mesmo, mas alguns problemas ainda per-
ção econômica e a consequente redução de sistem, tais como: escassez de profissionais
postos de trabalho e demissões em massa qualificados na gestão do trabalho; diversifi-
que assolaram o País (ARONI, 2011). cadas modalidades de contratos trabalhistas;
Nas últimas décadas, o mercado de tra- ausência de planos de carreiras adequados,
balho tem se reconfigurado, sobretudo em em boa parte das estruturas, ou insatisfação
virtude das profundas mudanças promovi- dos trabalhadores com o plano existente;
das pela tecnologização e pela automação, remuneração insuficiente; dificuldade de

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 110-121, JAN-MAR 2017


118 VIEIRA, S. P.; PIERANTONI, C. R.; MAGNAGO, C.; FRANÇA, T.; MIRANDA, R. G.

fixação de profissionais; limitação da ex- desempenho é considerada como um instru-


pansão de quadro de pessoal imposta pela mento de levantamento de dados, que possi-
Lei de Responsabilidade Fiscal; ausência bilita caracterizar as condições que dificultam
de concursos públicos; deficiência de qua- ou impedem o completo e adequado aprovei-
lificação dos profissionais; e carência de tamento dos trabalhadores da organização.
programas de educação permanente (BRASIL, Porém, ao mesmo tempo em que o tema
2004; PIERANTONI ET AL., 2008; PIERANTONI; GARCIA, 2011; ganha espaço de discussão no setor público,
MAGNAGO; PIERANTONI, 2014; NEY; RODRIGUES, 2012). provoca polêmica entre gestores e trabalha-
Não se pode negar, contudo, que o dores, principalmente porque o avaliar ainda
Ministério da Saúde, por meio da SGTES, suscita, no trabalhador, um imaginário de
vem empregando esforços com o objetivo de repreender, punir. Por outro lado, também,
melhorar todos os aspectos da gestão do tra- os processos de avaliação de desempenho
balho, e se notam melhorias quando se avalia conduzidos por grande parte das organiza-
uma evolução no tempo. Em se tratando de ções ainda trazem, em seu bojo, conotações
PCCS, por exemplo, pesquisa realizada em burocráticas, meramente técnicas e pontuais,
2008 constatou que 47,8% das SES e das SMS que não resultam em melhoria dos processos
não possuíam nenhum modelo instituído; de práticas (PIERANTONI; GARCIA, 2011).
28,9% tinham plano geral para todos os tra- Nesse contexto de entendimento de que a
balhadores; e 20,2% tinham PCCS específico avaliação de desempenho se configura como
para o setor saúde (PIERANTONI; GARCIA, 2011). Em importante instrumento de gestão, as estru-
2012, o percentual daqueles que apontaram a turas estudadas por esta pesquisa já apostam
inexistência de planos diminuiu para 29,1%; nesses processos, de forma a tentar acolher
PCCS gerais foram apontados por 36,6%; e o as exigências dos serviços e a dos profissio-
percentual de respondentes que indicaram nais de saúde, ainda que elas se encontrem
planos específicos para o setor saúde aumen- em desenvolvimento.
tou para 28,7% (OBSERVARH-IMS/UERJ, 2014). É preciso ter em mente que a implantação
Não obstante, a existência de um plano de um PCCS não significa apenas ganhos
não significa dizer que todos os processos em termos remuneratórios. Ela pode cons-
previstos na legislação são, de fato, cumpri- tituir-se como um instrumento poderoso de
dos, caso da avaliação de desempenho, que melhorias das condições de trabalho, capa-
apresenta dificuldades para sua materializa- citação profissional e, mais do que isso, de
ção, de maneira que deixe de ser apenas um reconhecimento do trabalhador.
ato burocrático. Um estudo realizado por É sabido, contudo, que a implantação de
Seidl et al. (2014) evidenciou fragilidade na in- um plano de carreiras, principalmente no
corporação da avaliação de desempenho nos que diz respeito ao setor público, é um pro-
planos de carreira, especialmente em muni- cesso que exige, geralmente, uma longa ne-
cípios de menor porte populacional. gociação entres os atores envolvidos, com
O aperfeiçoamento das práticas de gestão destaque para os trabalhadores, que usu-
do trabalho nos serviços de saúde se constitui fruirão dos benefícios advindos, e para os
como um grande desafio. A avaliação de desem- representantes do estado, que devem sugerir
penho é um dos focos de atenção do processo e/ou aprovar uma proposta para sobrelevar
de gestão, e sua finalidade é identificar o nível o impacto financeiro causado por um PCCS
de capacitação/qualificação profissional, bem aos cofres públicos.
como o potencial dos trabalhadores em relação A participação do trabalhador é, antes de
aos objetivos organizacionais. tudo, essencial para a concretização do sistema
Enquanto ferramenta de auxílio ao pro- nacional de saúde. Ao estimular esta partici-
cesso de tomada de decisão, a avaliação de pação na construção de um sistema público

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 110-121, JAN-MAR 2017


Planos de carreira, cargos e salários no âmbito do Sistema Único de Saúde: além dos limites e testando possibilidades 119

democrático, ratifica-se o compromisso com as por consequência, para a consolidação e me-


proposições do movimento da reforma sanitá- lhoria dos serviços de saúde oferecidos pelo
ria e busca-se efetivar o SUS (BRASIL, 2007). sistema nacional público.
A negociação é um processo fundamental, Entre os principais desafios que se apre-
que exige a pactuação de interesses e priori- sentam, se podem citar o necessário plane-
dades pelos diversos sujeitos envolvidos no jamento do sistema de saúde e a pactuação
contexto do trabalho (SILVA, 2012; BRAGA, 2002), e, de metas; a regulamentação do processo
neste sentido, os interesses de cada categoria de avaliação de desempenho e articulação
profissional, embora legítimos, bem como com a política de educação permanente, de
a relação público-privada, que introduz a acordo com as metas pactuadas; a valoriza-
terceirização de serviços no âmbito do SUS ção do trabalho em equipe como indicador
e produz diversas modalidades contratuais importante do desempenho profissional; e
de trabalho, também acabam por excluir a inserção de todos os profissionais que tra-
grande parte dos trabalhadores do escopo balham na saúde, inclusive administrativos e
das políticas de gestão do trabalho, e obstam, agentes de saúde.
especialmente, a concretização dos projetos Dessarte, o processo de implantação de
de carreira pública no SUS (PAIM, 2013). um plano de carreira não deve ser entendi-
Ademais, o subfinanciamento da saúde, do como uma peça neutra, isto é, passível de
que se constitui como problema crônico, tem ser justificado apenas pela racionalidade ad-
se agravado nos últimos anos, implicando ministrativa. Ele sempre terá, também, um
em cortes expressivos de gastos no setor, so- caráter político, econômico, social e cultural.
bremaneira no âmbito da gestão do trabalho, Sem dúvidas, longe do esgotamento do
área pouco valorizada em toda a história do tema, são necessárias novas aproximações
SUS. Tal cenário aponta perspectivas negati- no sentido de desvelar e mapear as diferentes
vas, especialmente em decorrência da crise experiências em voga, no Brasil e em países
político-econômica pela qual passa o Brasil, com sistemas universais de saúde, questio-
que tem sido usada como justificativa para nando, especialmente, a função do estado na
propostas de modificação constitucional regulação das profissões e do trabalho em
passíveis de congelar as despesas federais saúde, cujas interfaces recaem sobre a gestão
com a saúde pelas próximas décadas (PAIM, do trabalho.
2013; VIERIA, 2016).

Colaboradores
Conclusões
Swheelen de Paula Vieira trabalhou na con-
A análise dos dados coletados, quer seja cepção, coleta e interpretação dos dados, e
mediante os documentos referentes aos na redação do artigo. Celia Regina Pierantoni
planos, quer seja via discursos dos gestores trabalhou na concepção, interpretação dos
entrevistados, apontou diferentes e diversas dados, redação do artigo e na aprovação da
melhorias no âmbito da gestão, emergidas, versão final. Carinne Magnago trabalhou na
sobretudo, após a implantação de um plano concepção, coleta e interpretação dos dados,
de carreira. Apresentaram, ainda, desafios na redação do artigo e aprovação final. Tania
que merecem ser estudados e trabalhados França trabalhou na concepção, coleta e
com maior afinco, uma vez que são funda- interpretação dos dados, e na aprovação da
mentais para o desenvolvimento da área da versão final. Rômulo Gonçalves de Miranda
gestão do trabalho e da educação na saúde, trabalhou na coleta e interpretação dos
para a fixação e valorização profissional e, dados, e na aprovação da versão final. s

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120 VIEIRA, S. P.; PIERANTONI, C. R.; MAGNAGO, C.; FRANÇA, T.; MIRANDA, R. G.

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Conflito de interesses: inexistente
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Suporte financeiro: Projeto financiado pelo Conselho Nacional de
9, n. 12, 2011. Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – processo nº
552745/2011-1

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 110-121, JAN-MAR 2017


122 ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE

Modelos de gestão pública da Secretaria de


Saúde de Pernambuco: implicações na gestão
do trabalho
Public management models of Pernambuco Health Department:
implications for labor management

Vanessa Gabrielle Diniz Santana1, Pedro Miguel dos Santos Neto2

RESUMO Trata-se de um estudo de caso único com enfoque incorporado de base qualitativa,
exploratório e retrospectivo, cujo objetivo foi analisar como a gestão do trabalho em saúde é
praticada em diferentes modelos de gestão pública no estado de Pernambuco, estudando dois
hospitais: um gerenciado por Organização Social de Saúde e o outro sob gestão direta. Foram
realizadas entrevistas semiestruturadas, além de análise documental no período de 2007 a
2013. O estudo apontou que o modelo de gestão pública se deu a partir da necessidade de ex-
pansão da rede de saúde; além de que existe uma Política de Gestão do Trabalho implantada
na Secretaria Estadual de Saúde, com disparidade nos hospitais estudados.

PALAVRAS-CHAVE Organização social. Recursos humanos. Gestão em saúde.

ABSTRACT This is a single case study with a built-in focus of qualitative basis, exploratory and
retrospective, whose aim was to analyze how the health work management is practiced in dif-
ferent models of public management in the State of Pernambuco, studying two hospitals: one
managed by Social Health Organization and the other under direct management. Semi-structured
interviews were conducted, as well as document analysis for the period 2007 to 2013. The study
pointed that the public management model was based on the need of the health network expan-
sion; besides that, there is a Labor Management Policy implemented in the State Department of
Health, with disparity in the hospitals studied.

KEYWORDS Social organization. Human resources. Health management.

1 Fundação Oswaldo
Cruz (Fiocruz), Centro
de Pesquisas Aggeu
Magalhães – Recife (PE),
Brasil.
vgds@hotmail.com

2 Fundação Oswaldo

Cruz (Fiocruz), Centro


de Pesquisas Aggeu
Magalhães – Recife (PE),
Brasil.
pedromiguel@cpqam.
fiocruz.br

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 122-132, JAN-MAR 2017 DOI: 10.1590/0103-1104201711210
Modelos de gestão pública da Secretaria de Saúde de Pernambuco: implicações na gestão do trabalho 123

Introdução gerência, (re)omeando e (res)significando a


gerência de recursos humanos para a gestão
A gestão do trabalho em saúde é uma questão de pessoas no sentido de humanizar a área
que tem merecido relevância em todas as e valorizar o capital humano e, ao mesmo
instituições que buscam a correta adequação tempo, buscar qualidade, produtividade e
entre as necessidades da população usuária competitividade. Ou seja, desenvolver novos
e os seus objetivos institucionais (ARIAS, 2006). estilos gerenciais, visto que as formas tradi-
Pensar em gestão do trabalho, como eixo cionais já não respondem às exigências de
da estrutura organizacional dos serviços de competitividade no mercado. Ao trabalha-
saúde, significa pensar estrategicamente, uma dor, são imputados novos atributos via am-
vez que a produtividade e a qualidade dos pliação de seus conhecimentos e busca pela
serviços oferecidos à sociedade serão, em boa polivalência funcional, para garantir espaços
parte, reflexos da forma e das condições com no mundo cada vez mais restrito de oportu-
que são tratados os que atuam profissional- nidades de emprego (PIERANTONI ET AL., 2008).
mente na organização (MACHADO, 2000). Este estudo foi realizado na Secretaria
Conforme expresso na Norma Operacional Estadual de Saúde do Estado de Pernambuco
Básica de Recursos Humanos do Sistema (SES/PE) que conta com um quadro de
Único de Saúde (NOB/RH-SUS), a área de 25.211 profissionais de saúde, contém 185
gestão do trabalho em saúde passou a ser Municípios, tem uma área de 98.311.616 Km2
considerada como uma das questões mais e possui uma população de 8.796.032 habi-
complexas do Sistema Único de Saúde tantes (PERNAMBUCO, 2014B).
(SUS). A norma enfatiza a centralidade do O estado de Pernambuco é dividido em
trabalho, afirmando a necessidade da valo- 4 macrorregiões de saúde; 12 Gerências
rização profissional e da regulação das rela- Regionais de Saúde (Geres); 23 hospitais da
ções de trabalho para o fortalecimento dos rede própria, 9 hospitais gerenciados por
ideais da Reforma Sanitária, e identifica a Organizações Sociais de Saúde (OSS), sendo
necessidade de um resgate da gestão do tra- 6 que foram passados de gestão direta para
balho em saúde como política pública; além gerenciamento por OSS e 4 novos hospitais
disso, retoma a expectativa de que os traba- metropolitanos inaugurados já com esse tipo
lhadores atuem como agentes de mudança de gerenciamento a partir de 2010; além de
da prática no setor público (BRASIL, 2002). 14 Unidades de Pronto Atendimento (Upas)
A gestão do trabalho em saúde é um tema e 9 Unidades Pernambucana de Atenção
central, pois, a força de trabalho desempe- Especializada (Upae) (PERNAMBUCO, 2013A).
nha um papel fundamental na produção e A partir de 2006, com a gestão do gover-
utilização dos serviços de saúde. Trata-se nador Eduardo Campos, veio a proposta
também de um tema complexo por não de construção de hospitais que fossem ge-
ser uma ciência exata e pelos resultados renciados por OSS. Para a construção e a
serem dependentes de um grande número aquisição dos equipamentos das unidades
de fatores. O sucesso das ações de saúde gerenciadas pelas OSS, foi utilizado recurso
depende, portanto, da organização do traba- do governo estadual. Nesses casos os pro-
lho, ou seja, de definições sobre a quantida- fissionais de saúde também são contratados
de, competências, distribuição, treinamento pelas OSS conforme a Consolidação das Leis
e condições de trabalho dos profissionais da Trabalhistas (CLT).
saúde (DUSSAULT; SOUZA, 1999). Salienta-se que a Política de Gestão do
O mundo contemporâneo vem expe- Trabalho e Educação em Saúde na SES/PE
rimentando inovações nos processos de existe apenas para as unidades sob gestão
gestão, horizontalizando as funções de direta e, nas unidades sob gerenciamento

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 122-132, JAN-MAR 2017


124 SANTANA, V. G. D.; SANTOS NETO, P. M.

das OSS, é de competência da organização unidades ou níveis de análise, que podem


instituí-la ou não. O objetivo deste artigo é ser setores diferentes de uma determinada
analisar como a gestão do trabalho em saúde instituição (setor de vendas e setor de pro-
é praticada nos diferentes modelos de gestão dução, por exemplo), podem ser atividades
pública em dois hospitais que estão sob a res- (processo de planejamento e processo de im-
ponsabilidade da SES/PE. plantação, por exemplo). Cada um dos níveis
de análise ou unidades pode ser feito com
critérios distintos. Neste estudo, foram ana-
Métodos lisadas duas unidades hospitalares a partir
dos seguintes critérios de análise: contexto,
Trata-se de um estudo de caso único com processo, conteúdo e atores.
enfoque incorporado de base qualitativa, Segundo Minayo e Sanches (1993), a abor-
exploratório e retrospectivo. Para o desen- dagem qualitativa expressa a fala cotidiana,
volvimento da análise proposta, foram cole- seja nas relações afetivas e técnicas, seja nos
tados dados referentes ao período de 2007 discursos intelectuais, burocráticos e políti-
a 2013. A opção por esse período coincidiu cos. Aprofunda-se no mundo dos significa-
com a implantação do novo modelo de gestão dos das ações e relações humanas, um lado
no estado de Pernambuco e com o início do não perceptível e não captável em equações,
governo de Eduardo Campos. médias e estatísticas (MINAYO, 2002).
De acordo com Yin (2001), estudo de caso Com o intuito de contemplar as categorias
único é aplicado para testar uma teoria bem de análise e suas variáveis, para obtenção dos
formulada, seja para confirmá-la, seja para objetivos do estudo, foi necessário lançar
contestá-la, seja ainda para entender a teoria. mão de duas formas de análise de dados:
Nesse caso, o estudo deve satisfazer todas as análise documental e análise do conteúdo
condições para testar a teoria. Outra aplica- narrativo das entrevistas.
ção desse estudo é quando o caso único se A análise documental buscou identificar
mostra revelador, quando o pesquisador tem nas fontes utilizadas informações relevantes
a chance de observar um fenômeno anterior- para a compreensão da análise da política de
mente inacessível à investigação científica. gestão do trabalho em saúde, além de enten-
Outra aplicabilidade do estudo é quando ele der como os diferentes modelos de gestão
é utilizado como introdução a um estudo surgiram e estão postos na SES/PE.
mais apurado ou, ainda, como caso-piloto Para a análise do conteúdo das entrevistas
para a investigação. Dessa forma, as três apli- semiestruturadas, que foram aplicadas aos
cações em questão, o estudo de caso único informantes-chave, utilizou-se o método de
foi aplicado neste estudo, já que serviu para análise de políticas de Walt e Gilson (1994) em
testar a teoria de que há diferenciação entre que as categorias de análise estudadas são:
os modelos de gestão implantadas nas unida- contexto (político, econômico, social e servi-
des de saúde sob gestão direta e nas unidades ços de saúde), conteúdo (programas, proje-
sob gestão OSS, além de que serviu também tos, propostas e objetivos), processo (entrada
para entender como está sendo praticada a na agenda, formulação, implantação e avalia-
gestão do trabalho em saúde no estado de ção) e atores (individuais e institucionais).
Pernambuco. Este estudo é revelador já que A partir das entrevistas e dos documen-
não existia um estudo sobre as OSS e gestão tos analisados, foram identificados nos dois
do trabalho no referido estado. hospitais estudados os diferentes modelos
Ainda de acordo com Martins (2008), o de gestão pública e como estes modelos im-
estudo de caso incorporado é aquele no qual plicam a gestão do trabalho em saúde consi-
a situação é avaliada a partir de diferentes derando as fases desenvolvidas no dia a dia

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 122-132, JAN-MAR 2017


Modelos de gestão pública da Secretaria de Saúde de Pernambuco: implicações na gestão do trabalho 125

organizacional, verificando como o recruta- Hospital Otávio de Freitas (HOF), foi esco-
mento e seleção, a aplicação/lotação, o de- lhido o gestor de enfermagem, e no Hospital
senvolvimento e a avaliação são impactados Metropolitano Norte Miguel Arraes de
pelos diferentes modelos administrativos Alencar (HMNMAA), o diretor médico. O se-
adotados pela SES/PE. cretário executivo de atenção à saúde estava
Foram utilizados os quatro elementos de previsto para ser entrevistado, porém ele so-
análise. No ‘contexto’, foram identificadas licitou que a assessora técnica respondesse à
a Política de Saúde e Política de Gestão do entrevista. A escolha pelos profissionais em
Trabalho, a legislação vigente e as unidades questão foi definida com vistas a compre-
de saúde com seus diferentes modelos de ender a Política de Gestão do Trabalho nos
gestão; no ‘processo’, foram identificados diferentes modelos de gestão.
como o modelo de gestão foi viabilizado, É importante destacar que, como as
como os profissionais foram lotados nas uni- entrevistas foram semiestruturadas, foi
dades de saúde, além das formas de desen- possível uma adaptação das perguntas
volvimento dentro das unidades de saúde, conforme a evolução das entrevistas.
a partir do Ciclo utilizado por Malik; no Ressalta-se que apenas uma pessoa entre-
‘conteúdo’, os contratos de gestão, além de o vistou todos os gestores.
que e como a SES/PE cobra dos entes con- Também foi realizada a pesquisa docu-
tratados para gerir as unidades de saúde; nos mental, analisando documentos sobre a po-
‘atores’, foram identificados os implemen- lítica estadual, análise de políticas, modelos
tadores da Política de Gestão do Trabalho de gestão, gestão do trabalho em saúde. Para
na SES/PE e os trabalhadores de saúde das Godoy (1995), a pesquisa documental é aquela
duas unidades pesquisadas. Em relação aos realizada com base em documentos ou com
atores, neste artigo não serão abordados os pessoas, mediante registros, atas, circulares,
resultados encontrados. jornais, revistas, ofícios, entre outros tipos
No Processo da Política, foram utilizadas de documentos. Nessa modalidade de pes-
como indicador as fases do desenvolvimen- quisa, é feito o exame e tratamento analítico
to do dia a dia organizacional proposto por desses documentos escritos.
Malik (1998), observando o Suprimento/re- Este trabalho foi desenvolvido obede-
crutamento, Desenvolvimento e Avaliação. cendo aos preceitos éticos definidos na
No suprimento, foram descritas todas as Resolução do Conselho Nacional de Saúde
formas de inserção nas unidades, formas de nº 466 de 12 de dezembro de 2012 e foi sub-
contratação entrada e saídas dos profissio- metido, e aprovado, pelo Comitê de Ética
nais; no Desenvolvimento, destacaram-se as em Pesquisa (CEP/CPQAM), sob o parecer
iniciativas de capacitação, formação, educa- nº 679.351. A SES/PE forneceu Carta de
ção em saúde realizada pelas unidades; na Anuência para a realização do estudo.
Avaliação, foi estudado como é realizada a
Avaliação de Desempenho (AD) dos profis-
sionais assim como os incentivos ofertados. Resultados e discussão
Foram realizadas seis entrevistas semies-
truturadas individuais com gestores das uni- A Reforma Gerencial no Brasil foi introduzi-
dades pesquisadas, sendo suficientes para a da em 1995, quando foi criado o Ministério
análise qualitativa do estudo. Foi entrevista- da Administração e Reforma do Estado
do o secretário executivo de gestão do traba- (Mare). Seu titular, Luiz Carlos Bresser
lho e educação na saúde, diretores das duas Pereira, estava afinado com o pensamen-
unidades estudadas além de outro gestor que to internacional na área de administra-
foi escolhido pelo diretor da Unidade. No ção pública. Aliado político de Fernando

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126 SANTANA, V. G. D.; SANTOS NETO, P. M.

Henrique Cardoso de longa data, Bresser A SES/PE adotou o modelo de gestão com
teve plena liberdade para montar sua equipe o gerenciamento das unidades hospitala-
ministerial, o que lhe permitiu a formulação res por OSS a partir de vários fatores, entre
de uma proposta inovadora cujos temas da eles, os que mais se destacaram nas entre-
agenda política incluíram: a) ajuste fiscal, vistas foram: decisão política, necessidade
com redução do gasto público; b) reformas de contratação de pessoal para além da Lei
econômicas orientadas para o mercado, com de Responsabilidade Fiscal, superlotação
ênfase na privatização de empresas estatais; dos hospitais em 2006 e necessidade de ex-
c) reforma da previdência social; d) reforma pandir a rede de saúde com contratação de
do aparelho do Estado e maior capacidade pessoal de forma imediata.
de governo ou governança (BRESSSER-PEREIRA; Conforme Correia (2008), a administra-
SPINK, 1998). ção dos serviços públicos de saúde passou
Em Pernambuco, a primeira lei que ins- a se pautar por medidas de flexibilização,
tituiu as OSS e também as Organizações visando maximizar a relação custo/benefí-
da Sociedade Civil de Interesse Público cio, resultando na privatização e na tercei-
(Oscips) foi publicada em 2000, no governo rização dos serviços de saúde, e também no
de Jarbas Vasconcelos, sendo aprovada pela repasse de serviços e recursos públicos para
Assembleia Legislativa. O modelo de geren- OS, Oscips, fundações de apoio e cooperati-
ciamento via OSS adotado pela SES iniciou vas de profissionais de medicina. O resulta-
apenas em 2010, com a inauguração do do foi a ampliação da oferta de serviços de
HMNMAA. Em 2013, foi publicada a Lei nº saúde no setor privado.
15.210 que dispõe sobre as OSS no âmbito do Ressalta-se que, de fato, há a dificuldade
estado de Pernambuco e que rege todo o fun- de contratação de pessoal devido à Lei de
cionamento e monitoramento dos contratos Responsabilidade Fiscal, Lei Complementar
de gestão celebrados entre a SES e a OSS nº 101, de 4 de maio 2000, que prevê que a
(PERNAMBUCO, 2013C). despesa total com pessoal, em cada período
As Organizações Sociais (OS) foram criadas de apuração no Estado, não poderá exceder
por meio da Medida Provisória nº 1.591, de 9 60% da receita corrente líquida (BRASIL, 2000).
de outubro de 1997, reeditada sete vezes, con- Foi observado a partir das entrevistas que
vertida na Lei nº 9.637, de 15 de maio de 1998, a OSS veio como um modelo que atendia a
que dispõe sobre a qualificação de entidades essa necessidade de expansão da rede, sem
como organizações sociais. Poderão ser quali- expandir gasto com folha de pessoal do
ficadas como OS, pessoas jurídicas de direito tesouro; ela respondia a uma possibilidade
privado, sem fins lucrativos, cujas atividades de flexibilizar a contratação.
sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científi- O primeiro contrato de gestão foi celebra-
ca, ao desenvolvimento tecnológico, à prote- do em 25 de novembro de 2009, entre a SES e
ção e preservação do meio ambiente, à cultura a Fundação Professor Martiniano Fernandes
e à saúde (BRASIL, 1997). – Imip Hospitalar, para operacionalizar a
Na condição de entidades de direito gestão hospitalar e executar ações e serviços
privado, as OS tenderão a assimilar carac- de saúde no HMNMAA.
terísticas de gestão cada vez mais próximas Campos (2007) define o contrato de gestão
das praticadas no setor privado, o que repre- como uma modalidade de relação inte-
senta, entre outras características: a contra- rinstitucional com grande potencialidade.
tação de pessoal nas condições de mercado; Primeiro, porque explicita os programas
a adoção de normas próprias para compras e concretos de cada gestor; segundo, introduz
contratos; e ampla flexibilidade na execução em alguma medida uma modalidade real
do seu orçamento (BRASIL, 1997). de cogestão sem diminuir a autonomia e a

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Modelos de gestão pública da Secretaria de Saúde de Pernambuco: implicações na gestão do trabalho 127

responsabilidade do encarregado pela exe- incorporados à remuneração (PERNAMBUCO,


cução da atenção à saúde; terceiro, define 1968; PERNAMBUCO, 2013C).
com clareza a responsabilidade sanitária Na SES/PE, existem oito OSS contra-
de cada ente federado; e, ainda, institui um tualizadas: Imip Hospitalar, Santa Casa
sistema regular de avaliação de resultados de Misericórdia, Hospital Maria Lucinda,
bastante vinculado à dinâmica da própria Hospital do Tricentenário, Fundação Altino
gestão. O autor ainda cita que o contrato Ventura, Hospital do Câncer, Associação
pode ser utilizado tanto entre entes federa- de Proteção à Maternidade e à Infância de
dos como também entre o gestor local e o Surubim (Apami), Instituto Pernambucano
prestador de serviços. de Assistência à Saúde (Ipas). Essas OSS ad-
Ressalta-se que o imóvel e os bens móveis ministram 9 hospitais, 14 Upas, 9 Upae, com
são pertencentes à SES e que compete à OSS um total de recursos investidos, com contra-
assegurar a organização, administração e tos de gestão, no valor de R$ 713.643.307,44
gerenciamento do Hospital, o provimento ao ano em 2014 (PERNAMBUCO, 2014A).
dos insumos (materiais) e medicamentos e De acordo com Campos (2007), esse novo
a garantia do quadro de recursos humanos desenho para a administração direta deveria
qualificados e compatíveis com o porte resolver alguns dos entraves já identificados
da unidade e serviços contratualizados, e decorrentes da atual legislação, que sim-
podendo o estado intervir na administração plesmente estendeu para o SUS o modelo de
da unidade hospitalar, caso haja risco quanto gestão do Estado brasileiro, sem considerar as
à continuidade dos serviços de saúde. especificidades do campo da saúde e do SUS
Na Lei nº 15.210/2013, foi instituído que em particular. Assim, esses hospitais e orga-
o prazo de vigência do contrato de gestão nizações do SUS poderiam incorporar, entre
pode ser estendido em até dez anos, desde outras, as seguintes características: maior
que restem demonstradas as vantagens da autonomia e integração ao sistema, median-
medida e o pleno atendimento das metas te contratos de gestão; financiamento misto
pactuadas, conforme parecer elaborado pela (parte fixa e outra variável); conselho gestor;
Comissão de Avaliação e aprovado pela auto- direção executiva composta mediante crité-
ridade máxima do órgão supervisor do con- rios técnicos e seleção pública, com mandato,
trato de gestão (PERNAMBUCO, 2013C). e não como cargos de confiança; nova políti-
Em relação aos servidores públicos efe- ca de pessoal com a possibilidade de alguma
tivos estaduais, eles poderão ser cedidos modalidade de contratação do tipo emprego
às OSS, sendo mantido o seu vínculo com público, com carreiras e AD (remuneração
o estado, nos termos do estatuto dos servi- mista); políticas de recrutamento e de educa-
dores (Lei nº 6.123, de 20 de julho de 1968), ção continuada estadual e nacional.
computando-se o tempo de serviço pres- Foram estudados dois Hospitais da SES; o
tado para todos os efeitos legais, inclusive HOF e o HMNMAA, pertencentes ao estado
promoção por antiguidade e aposentadoria, de Pernambuco. O HOF sob o gerenciamento
está vinculada ao desconto previdenciário da SES, e o HMNMAA tem a sua administra-
próprio dos servidores públicos do estado. ção gerencial centrada na OSS.
A Lei ainda abrange que o servidor poderá, Ambos os hospitais estudados são de alta
a qualquer tempo, mediante requerimento complexidade e possuem emergências que
ou por manifestação da OSS, ter sua cessão devem ser referenciadas pelas Upas, Central
cancelada. Além de que o servidor público de Regulação e Serviço de Atendimento
cedido poderá receber da OSS estímulo re- Móvel de Urgência (Samu). O HOF perten-
muneratório por resultados, por meio de re- ce à gestão estadual direta, possui 652 leitos,
cursos próprios da entidade, que não serão 1.695 profissionais, sendo referência em

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Urologia e no tratamento de doenças respira- 2013, apenas para médicos e, em 2014, para
tórias, em especial a tuberculose (PERNAMBUCO, os outros profissionais de saúde (BRASIL, 1988;
2013B). O HMNMAA é um grande hospital de PERNAMBUCO, 1968).
trauma e foi o primeiro, na rede pública de As seleções públicas simplificadas são
saúde, a adotar o modelo de gestão via OSS, regidas pela Lei nº 14.547, de 21 de dezembro
possui 180 leitos, 977 profissionais, e é refe- de 2011. Para tanto, os profissionais de saúde
rência estadual em endoscopia digestiva e passam por um processo seletivo simplifica-
traumato-ortopedia (PERNAMBUCO, 2013B). do de provas e currículo ou apenas análise
O modelo atualmente vigente na admi- curricular e, após aprovação, são contratados
nistração direta para a gestão de hospitais para atender às necessidades de excepcional
e serviços especializados se caracteriza por interesse público. Esses profissionais são con-
rigidez na execução orçamentária, emperra- tratados por tempo determinado, podendo as
mento na administração de pessoal, exces- contratações ser prorrogadas por um período
siva interferência político-partidária. Tudo de até seis anos (PERNAMBUCO, 2011).
isso tem levado grande número de serviços Conforme dados da SES, de janeiro de
públicos à burocratização e mesmo à degra- 2011 até dezembro de 2014, foram realiza-
dação organizacional. Ao longo dos anos, ges- das 61 seleções públicas simplificadas para
tores inventaram estratégias para contornar diversos cargos de saúde, sendo contratados
parte dessas dificuldades, uma delas é delegar mais de 5 mil profissionais.
a gestão dos hospitais a entidades civis priva- O plantão extraordinário ainda não está
das, criando-se leis e normas que permitiram amparado em nenhuma legislação, porém
a existência de OSS ou Oscip integradas à rede existe a necessidade de reposição rápida e
do SUS. Esta última linha de mudança indica emergencial dos profissionais nas unida-
uma desistência da administração direta, já des de saúde, pela ausência de servidores
que investe em modalidades de gestão com em plantões críticos. Esse tipo de reposição
base em contratos entre o gestor – restrito ao acontece nas unidades hospitalares, confor-
papel de regulador – e entes privados sem fim me dados das entrevistas realizadas.
lucrativos (CAMPOS, 2007). Morici e Barbosa (2013), estudando hos-
Alguns resultados díspares encontra- pitais de Belo Horizonte, relataram que
dos nos dois hospitais, no que se refere à o ingresso nas instituições administradas
gestão do trabalho em saúde, estão descri- segundo as regras públicas se dá prioritaria-
tos logo abaixo. mente por meio de concursos públicos. Esse
Em relação à ‘contratação/formas de processo seletivo claramente não é capaz de
inserção’ dos profissionais nos serviços suprir a assistência com profissionais capa-
de saúde, destacam-se no HOF: concurso citados com a agilidade necessária, uma vez
público, seleção pública simplificada, coo- que os concursos não são realizados regular-
perativas de anestesiologia e terceirizados. mente e, quando realizados, são processos
Ainda existe outra forma que não é compu- morosos, compostos de várias etapas. Nas
tada como entrada no serviço, e sim como instituições administradas segundo as regras
forma de reposição imediata/rápida de ser- públicas, a falta de provisão de profissionais
vidores que é o plantão extraordinário. aprovados em concurso faz com que seja ne-
O concurso público é amparado pela cessária a contratação de trabalhadores por
Constituição Federal de 1988 em seu Artigo meio de outros vínculos mais flexíveis, ga-
37 e também pelo Estatuto dos Funcionários rantindo assim o número adequado de pro-
Públicos do Estado de Pernambuco, Lei nº fissionais para o atendimento assistencial.
6.123, de 20 de julho de 1968. Os últimos Essa contratação contraria as leis vigentes,
concursos públicos da SES aconteceram, em mas é vista como única alternativa para o

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Modelos de gestão pública da Secretaria de Saúde de Pernambuco: implicações na gestão do trabalho 129

pleno funcionamento das instituições de resultado das ações de capacitação e a men-


saúde pesquisadas. Conclui-se, então, que suração do desempenho, as quais constituem
a tentativa de garantir o ingresso justo diretrizes que reforçam um novo olhar para
de profissionais mediante a realização de o desenvolvimento (BRASIL, 2009).
concursos públicos, por sua própria ine- A educação permanente acontece nos
ficiência, gera uma situação paralela de hospitais e nas clínicas das unidades sob
contratação irregular. gestão direta. Existe o eixo do desenvolvi-
Além das formas acima, no HOF, existe mento profissional, o eixo da educação per-
empresa terceirizada para a contratação de manente que tanto atua numa perspectiva de
pessoal, no regime CLT, na área de limpeza, educação continuada, voltada para as ques-
recepção e administração. tões de habilidades e competências de uma
Em relação à seleção de profissionais para determinada demanda, como também para a
o HMNMAA, todo o Processo Seletivo é re- reorganização do processo de trabalho. Além
alizado pela OSS que convoca e encaminha de que, nas ADs, existem indicadores de in-
para o hospital, contratando por meio do centivo à formação (cursos) e preceptoria
regime CLT. que refletem a educação permanente.
Foi observado que existe uma alta rotati- Em relação à Política de Educação
vidade de profissionais no HMNMAA já que Permanente na gestão do HMNMAA, o que
existe uma maior facilidade no ato de con- se pode interpretar das entrevistas é que
tratar e demitir. Foi constatado também que existem algumas ações de forma incipiente,
existe poder de barganha nos salários oferta- não sistemática, que fica sob a responsabili-
dos, por exemplo, se paga mais aos profissio- dade da OSS, além das atividades dentro da
nais cuja especialidade se encontra escassa própria unidade, não havendo responsabili-
no mercado de trabalho. zação pela SES/PE.
Morici e Barbosa (2013) corroboram o fato A temática da ‘avaliação em saúde’ vem
acima ao citar que a remuneração foi diferen- sendo alvo de considerações constantes,
te nos dois grupos estudados: nos hospitais uma vez que traz implicações em relação ao
administrados segundo as regras públicas os papel do Estado, tanto quanto formulador e
salários estão definidos em tabela negociada gestor de políticas públicas, quanto na res-
com o sindicato ou por lei específica, e nos ponsabilidade pela geração de informações
hospitais administrados segundo as regras sólidas apropriadas à abordagem desse com-
privadas eles são definidos de acordo com o plexo objeto. A política de recursos humanos
mercado. dispensa tratamento diferenciado às ADs,
Para o ‘desenvolvimento’, destacam-se utilizadas até então por grande parte dos
o incentivo às iniciativas de capacitação, gestores como o cumprimento de uma obri-
promovidas pelas próprias instituições, me- gação burocrática desgastante. O que se
diante o aproveitamento de habilidades e busca hoje é tornar a AD um instrumento
de conhecimentos de servidores do quadro de gestão, útil para o gestor, o servidor e a
de pessoal; o apoio ao servidor público em sociedade, a quem se destinam os serviços
iniciativas de capacitação, voltadas para o públicos. O papel da gestão de pessoas é ter
desenvolvimento das competências institu- mecanismos que possibilitem aos servido-
cionais e individuais; a garantia de acesso dos res atingirem suas metas e que elas se co-
servidores a eventos de capacitação interna adunem com as metas da sociedade, objeto
ou externa ao seu local de trabalho; o incen- de serviços (BRASIL, 2009).
tivo à inclusão das atividades de capacitação A AD dos servidores da SES está dividi-
como requisito para a promoção do servidor da em três macrocomponentes: Avaliação
na carreira; e a complementaridade entre o de Desempenho em Estágio Probatório,

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Avaliação de Desempenho para progressão responsabilidade da OSS, sem um direcio-


na carreira no Plano de Cargos Carreiras e namento da SES. Os entrevistados relataram
Vencimentos e Avaliação de Desempenho que há uma dificuldade para o desenvolvi-
para percebimento da Gratificação de mento da Política de Educação Permanente
Desempenho. por causa da rotatividade dos profissionais.
Esses três macrocomponentes acontecem Diante do exposto, percebe-se que existe
dentro do HOF de forma periódica, porém uma Política de Gestão do Trabalho implan-
no HMNMAA não há AD de forma sistemá- tada na SES, porém com disparidade quando
tica e com instrumentos próprios. comparados os dois hospitais estudados.
Finaliza-se com algumas recomenda-
ções a serem realizadas e incorporadas aos
Conclusões contratos de gestão entre a SES e as OSS: a
incorporação de planos de trabalho para os
Observou-se, no modelo de gestão pública trabalhadores bem definidos com a incor-
adotado pelo governo do Estado de poração de progressões baseadas em tempo
Pernambuco, a existência de unidades de de serviço e ADs periódicas; políticas de
saúde sendo gerenciadas diretamente pela recrutamento e de educação permanente;
Administração Pública e de outras por OSS, avaliações que incorporem a valorização e
sendo viabilizado porque existe arcabouço ju- desenvolvimento dos servidores na institui-
rídico no SUS, além de ter recursos financei- ção inclusive com a diminuição da rotativi-
ros instituídos em nível estadual e nacional. dade desses funcionários; salários paritários
Chama a atenção que a maior motivação entre as diversas OSS para não haver disputa
da inserção da OSS na SES foi a contratação de mercado; construção de uma agenda de
dos funcionários por meio do regime CLT, ações de educação permanente e valori-
pois não contam para o limite fiscal imposto zação dos trabalhadores das unidades sob
pela Lei de Responsabilidade Fiscal, visto gestão OSS no planejamento da Secretaria
que eles não são empregados diretos do Executiva de Gestão do Trabalho e Educação
Estado, e sim das OSS contratualizadas. em Saúde; entre outras ações que sejam per-
Em relação à Política de Educação tinentes para os trabalhadores do SUS.
Permanente, esta acontece nas unidades Por fim, entende-se que o tema estudado
sob gestão direta, porém não está instituí- não se esgotou, e sim gerou hipóteses para
da na gestão do HMNMAA, ficando sob a futuras pesquisas. s

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Modelos de gestão pública da Secretaria de Saúde de Pernambuco: implicações na gestão do trabalho 131

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ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE 133

Bombeiros militares: um olhar sobre a saúde


e violência relacionados com o trabalho
Military firefighters: a gaze at the health and the violence related to
work

Natália Teixeira Mata1, Luiz Antonio de Almeida Pires2, Renato José Bonfatti3

RESUMO O presente artigo tem como objetivo refletir acerca da saúde do trabalhador e da
violência relacionada com o trabalho a partir do movimento protagonizado por bombeiros
militares do Estado do Rio de Janeiro em 2011. A pesquisa qualitativa, desenvolvida por meio
dos registros dos atos públicos da categoria, utiliza a técnica de análise de conteúdo para tra-
tamento e interpretação do material. Os resultados apontam que os trabalhadores reivindicam
condições dignas de trabalho. A violação desse direito pode ser considerada uma forma de
violência no ambiente de trabalho e impactar negativamente na saúde, na vida e na própria
ocupação profissional do trabalhador em questão.

PALAVRAS-CHAVE Violência. Bombeiros. Saúde do trabalhador. Violência no trabalho.

ABSTRACT This article aims to reflect about the worker health and work-related violence
from the movement played by military firefighters in the state of Rio de Janeiro in 2011. The
qualitative research, developed through the records of public events of the category, uses content
analysis technique for processing and interpretation of the material. Results show that the
workers demand decent working conditions. The violation of such right can be considered a form
1 Fundação da Oswaldo of violence in the workplace and negatively impact the health, life and the very occupation of the
Cruz (Fiocruz), Escola
Nacional de Saúde Pública worker at stake.
Sergio Arouca (Ensp) – Rio
de Janeiro (RJ), Brasil.
nataliateixeira.psi@gmail. KEYWORDS Violence. Firefighters. Occupational health. Workplace violence.
com

2 Fundação da Oswaldo

Cruz (Fiocruz), Escola


Nacional de Saúde Pública
Sergio Arouca (Ensp) – Rio
de Janeiro (RJ), Brasil.
luizseso@hotmail.com

3 Fundação Oswaldo Cruz


(Fiocruz), Escola Nacional
de Saúde Pública Sergio
Arouca (Ensp), Centro
de Estudos em Saúde do
Trabalhador e Ecologia
Humana (Cesteh) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.
renato.bonfatti@gmail.com

DOI: 10.1590/0103-1104201711211 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 133-141, JAN-MAR 2017
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Introdução As repercussões negativas na saúde dos


bombeiros podem ocorrer em função da vio-
Quem salvaguarda a vida dos bombeiros? lação de direitos no ambiente de trabalho?
Os atos públicos protagonizados por traba- Observa-se que, na série de manifestações e
lhadores dessa categoria que luta pela pre- passeatas públicas, os trabalhadores reivin-
servação da vida constituem-se como objeto dicavam principalmente um direito cons-
principal de análise no presente estudo. O titucional fundamental da pessoa humana,
objetivo central deste artigo é refletir sobre que é a dignidade. Para os bombeiros, isso
a saúde do trabalhador e sobre a violência no está atrelado a melhores condições de tra-
trabalho a partir do movimento dos traba- balho, transcendendo a questão salarial, ou
lhadores do Corpo de Bombeiros Militares seja, abrangendo a saúde e sua relação com o
do Estado do Rio de Janeiro (CBMERJ), exercício da atividade laborativa.
ocorrido em 2011, que almejou melhores
condições de trabalho, saúde e vida desses
profissionais. Metodologia
O movimento surgiu por meio de uma apa-
rente situação de precariedade no ambiente Trata-se de um estudo qualitativo, desenvol-
de trabalho vivenciada por essa categoria de vido a partir da técnica de análise de conteú-
trabalhadores. A precarização do trabalho dos para interpretação do material. Para tal,
cada vez mais se torna um problema social utilizaram-se, como fonte, os registros his-
para diversas áreas, entre elas, a saúde do tóricos das reinvindicações do coletivo or-
trabalhador (EDERHRDT; CARVALHO; MUROFUSE, 2015). ganizado de bombeiros militares do Estado
No contexto brasileiro, a perda e a violação do Rio de Janeiro disponibilizados em duas
de direitos trabalhistas intensificam esse páginas virtuais. Os endereços eletrônicos
cenário que atinge diferentes categorias (SOSBOMBEIROS, 2011; SOSBOMBEIROSRJ, 2012) funcio-
profissionais e pode ser compreendida como nam como instrumento de divulgação do
uma forma de violência. pleito e atos públicos da categoria iniciados
No Brasil, o trabalho está circunscrito en- em 2011.
quanto um direito na Constituição Federal de Ressalta-se que o artigo é fruto de
1988 em seu 6º artigo (BRASIL, 1988). Entretanto um trabalho de conclusão de curso da
não se garante que ele seja realizado em am- Especialização em Saúde do Trabalhador e
bientes salubres ou em condições que res- Ecologia Humana, realizado no ano de 2013.
peitem outros direitos constitucionais, tais A pesquisa desenvolvida não teve qualquer
como a saúde e a dignidade, ambos compo- tipo de suporte financeiro, além disso, não
nentes importantes para o campo da saúde houve conflito de interesse. Por se tratar de
do trabalhador e previstos em lei. dados secundários, não houve a necessidade
No caso dos bombeiros militares, a litera- da avaliação por comitê de ética.
tura científica aponta que um amplo leque No que se refere aos métodos, utilizou-se
de doenças vem se manifestando nessa ca- a análise de conteúdo proposta por Bardin
tegoria em decorrência de suas atividades (2011). O autor afirma que esse tipo de técnica
de trabalho. Segundo Pires (2016), esses tra- é um conjunto de instrumentos metodológi-
balhadores estão desenvolvendo doenças cos cada vez mais sutis em constante aper-
osteomusculares, do aparelho circulatório feiçoamento, que se aplicam a ‘discursos’, e
e transtornos mentais e comportamentais. seu objetivo é a descrição e interpretação dos
Estes últimos, de acordo com Franco, Druck conteúdos das mensagens. Diante dos dados
e Seligmann-Silva (2010), podem ser atribuí- históricos do movimento dos trabalhadores
dos a um ambiente de trabalho precarizado. bombeiros militares que serão apresentados,

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julga-se que tal procedimento metodológico melhor infraestrutura; também pediam o fim
se aplica de forma relevante para a compre- das gratificações, um piso salarial inicial de
ensão e interpretação do material obtido. R$ 3.500,00, plano de carreira único, auxílio
Minayo (2014) ressalta que a análise de transporte de R$ 350,00, auxílio alimenta-
conteúdo é a expressão mais comum usada ção, data base e um código de ética alinhado
para referir-se ao tratamento dos dados de com a Constituição Federal de 1988.
uma pesquisa qualitativa, contudo a autora A pauta da categoria é ampla, seus itens
enfatiza que essa metodologia é muito mais permeiam as esferas individual, coletiva,
do que apenas um procedimento técnico, é estrutural/organizacional/funcional, eco-
parte da trajetória histórica, teórica e prática nômica e social presentes nas instâncias do
do campo das investigações sociais. trabalho dos bombeiros, sugerindo que as
suas atividades ocorrem em um ambien-
te inadequado e propício a danos à saúde.
Resultados e discussão Segundo Franco et al. (2010), o processo de
precarização é multidimensional e, por isso,
atinge a vida dos trabalhadores dentro e fora
Um breve histórico da luta dos do trabalho.
bombeiros No dia 3 de junho de 2011, houve mais
um ato público na frente da Assembleia
De acordo com o Estatuto dos Bombeiros Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), em que
Militares (RIO DE JANEIRO, 1985), são atribuições os trabalhadores mobilizados caminharam
específicas desses profissionais: os serviços até sua Unidade Central. Diante da ausência
de prevenção e extinção de incêndios, os ser- de representante governamental ou institu-
viços de busca e salvamento, a prestação de cional, o coletivo de trabalhadores optou por
socorros nos casos de inundações, desaba- entrar à força na unidade; o local foi cercado
mentos e catástrofes, entre outros. As ativi- por policiais do Batalhão de Operações
dades de trabalho da categoria são essenciais Especiais (Bope), que após uma madruga-
para a manutenção e equilíbrio da vida em da de negociações sem sucesso invadiu o
sociedade. Quartel Central dos Bombeiros. O episódio
A partir de abril de 2011, os trabalhadores culminou com 439 trabalhadores presos,
do CBMERJ protagonizaram inúmeras ma- conforme noticiado em mídia impressa, te-
nifestações públicas em prol de condições levisiva e on-line.
dignas de trabalho. As passeatas ganharam Em fevereiro de 2012, ocorreu um ato na
volume, intensidade e tornaram-se cons- Cinelândia que reuniu bombeiros, policiais
tantes. Os atos públicos também tiveram militares e civis; em assembleia, os traba-
amplo apoio popular, um deles, inclusive, lhadores das três instituições decretaram
contou com um avião que sobrevoava a orla greve. Mais uma vez, os policiais do Bope
de Copacabana carregando uma faixa com o fizeram-se presentes, e o episódio termi-
dizer: “Bombeiros pedem socorro, popula- nou com 12 bombeiros e 3 policiais militares
ção precisamos de vocês!” (SOSBOMBEIROS, 2011). presos e levados para o Presídio Bangu I acu-
O coletivo organizado de trabalhadores sados de serem os líderes do movimento.
da instituição montou uma pauta reivindi- Alguns dias após o fato acima descrito,
catória, na qual solicitavam recursos para uma mudança no regulamento da instituição
a execução de suas atividades, como: equi- agilizou os trâmites internos para a apura-
pamentos de proteção individual, melhores ção de ‘crimes’ cometidos por seus militares,
condições de alimentação nos locais de tra- assim, os 12 bombeiros presos foram ex-
balho e postos para salvamento no mar com pulsos da instituição. A partir desse dia, os

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trabalhadores empenharam-se para revogar inaugurou a Associação de Bombeiros


a punição. Militares do Estado do Rio de Janeiro
O episódio do Quartel Central e da (ABMERJ), que, mesmo recém-criada, luta
Cinelândia tiveram repercussão internacio- pelos direitos não somente dos bombei-
nal. Ao longo de sua trajetória de luta, os ros, mas também de policiais militares. Em
bombeiros conseguiram algumas vitórias no outubro do mesmo ano, a categoria obtém
campo financeiro como o pagamento de au- uma nova conquista: os trabalhadores excluí-
xílio-transporte no valor de R$ 100,00 e uma dos são reintegrados ao Corpo de Bombeiros.
gratificação de R$ 350,00 que até o final de Nas eleições de 2014, a categoria conse-
2017 será incorporada ao salário. No campo guiu eleger um Cabo como deputado federal
funcional, a categoria conseguiu a retirada e um Major como vereador. Estes, por sua
dos militares da instituição das Unidades de vez, têm a missão de lutar pela efetivação de
Pronto Atendimento (UPA) – fato que pro- um ambiente de trabalho mais adequado às
porcionou o seu retorno aos quartéis para especificidades das atividades dos bombei-
exercerem suas atribuições finalísticas – e ros militares. A eleição de tais candidatos
também conseguiu a redução do tempo para pôde proporcionar o fortalecimento da ca-
a progressão profissional, este último pode tegoria e de seu coletivo organizado. Além
gerar um aumento salarial. disso, por meio do controle social, os traba-
Foram criados convênios com outros lhadores puderam participar de forma pro-
órgãos do Estado, e, mediante pagamento positiva do mandato de seus representantes.
de uma gratificação, os bombeiros que se Ante o protagonismo dos bombeiros mi-
voluntariassem poderiam trabalhar como litares na trajetória de seu movimento por
motoristas e brigadistas em hospitais, por melhores condições de trabalho, saúde e
exemplo. Criou-se também um programa vida, os episódios vivenciados pela categoria
de reforço do efetivo em que o bombeiro, caracterizam-se como uma verdadeira luta
de forma voluntária, trabalhasse em uni- pela saúde do trabalhador. Vê-se assim um
dades da instituição com efetivo reduzido, novo capítulo na história dessa instituição
recebendo, para isso, uma gratificação. Tal que possui mais de 160 anos e participa de
fato possibilitou que muitos trabalhadores inúmeros momentos marcantes da constru-
com férias atrasadas pudessem gozar desse ção do País.
direito (SOSBOMBEIROSRJ, 2012). Cabe ressaltar que o breve histórico aqui
As mudanças realizadas pelo Estado apresentado contemplou as informações
trouxeram resultados positivos na relação contidas nos dois sites (SOSBOMBEIROS, 2011;
saúde-trabalho-doença da categoria? Tendo SOSBOMBEIROSRJ, 2012) de divulgação do movi-
em vista que a maioria das medidas adota- mento. Observa-se que as reivindicações
das pelo governo foi na esfera econômica, neles salientadas estão na esfera da relação
pode-se supor que aumentou a segurança saúde-trabalho-doença e constituem-se
financeira e o poder aquisitivo dos trabalha- como objeto importante para as análises do
dores da categoria em questão. Todavia, os campo da saúde do trabalhador.
serviços extras, mesmo que de forma volun-
tária como o acima citado, representam uma Saúde do trabalhador: um campo em
intensificação do trabalho, fato que pode defesa de direitos
proporcionar diversos tipos de adoecimento.
A mobilização dos bombeiros por meio O trabalho, ao longo da história, possuiu inú-
dos atos populares possibilitou diversos meros sentidos. Seu desenvolvimento foi de
acontecimentos históricos para a categoria. fundamental importância para a construção
Em 7 de julho de 2013, o coletivo organizado das sociedades humanas. Para Marx (2008),

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sua relação com o homem é dialética, pois O campo teve como inspiração o Modelo
à medida que o trabalhador transforma a Operário Italiano (MOI) que surgiu na
matéria bruta da natureza em um produto década de 1960 e tinha como característica o
que tem sentido e valor ao mesmo tempo, protagonismo dos operários e dos seus sindi-
transforma-se e dá sentido à sua atividade catos na defesa da saúde, ou seja, a proteção
laborativa. da saúde dos operários não era delegada aos
A relação saúde-trabalho-doença é objeto donos das fábricas.
de estudo do homem desde o século XVII, no
qual tem-se Berdinado Ramazzini como pre- A participação ativa do trabalhador, o conhe-
cursor na temática. Atualmente, podem-se cimento e a sua autonomia possibilitaram,
encontrar estudos dedicados a esse campo pouco a pouco, a construção do conceito de
em Gracino et al. (2016), entre outros; contudo, não delegação, cujo significado implica não
o entendimento do trabalho em condi- delegar à técnica tradicional e instituída e à
ções não degradantes enquanto um direito gestão político-institucional o direito do con-
humano foi algo duramente conquistado. trole das condições do ambiente de trabalho.
Encontra-se o nascedouro do direito (PAIVA; VASCONCELLOS, 2011, P. 387).
trabalhista na Inglaterra no período da re-
volução industrial. Na época, a jornada de No Brasil, é possível citar como fatos mar-
trabalho era muito extensa, as atividades cantes de sua construção que reuniu pro-
penosas e o ambiente fabril insalubre. Essa fissionais da área da saúde, intelectuais da
conjuntura proporcionou diversos acidentes academia e diversos segmentos de trabalha-
e mortes colocando o crescimento da produ- dores: o Movimento da Reforma Sanitária,
ção industrial em risco. É nesse contexto que a I Conferência Nacional de Saúde e os pri-
surge o contrato de trabalho cuja finalidade meiros Programas de Saúde do Trabalhador.
era a preservação do desenvolvimento da Para Mendes e Dias (1991), a saúde do tra-
produção por intermédio do prolongamento balhador supera as práticas da medicina do
da vida dos operários para garantir a força de trabalho e da saúde ocupacional, pois nela
trabalho (VASCONCELLOS, 2011). os trabalhadores não são compreendidos
A saúde do trabalhador é uma área que como objetos das ações de intervenção; eles
segundo Gomez (2011) incorpora disciplinas são formuladores, gestores e protagonistas
de outras áreas de conhecimento, tais como: das intervenções que visam à garantia da
epidemiologia, ergonomia, engenharia, so- atenção, proteção e cuidado de sua saúde.
ciologia, psicologia, administração, entre Para Vasconcellos (2011, P. 409), esse campo
outras, e que por isso se constitui como um de conhecimento
campo de conhecimento.
invoca o direito à saúde no seu espectro irres-
A saúde do trabalhador agrega [...] um am- trito da cidadania plena, típica dos direitos civis,
plo espectro de disciplinas. Como campo de econômicos, sociais e humanos fundamentais,
saber próprio da saúde coletiva, está compos- a que os demais direitos estão subordinados.
ta pelo tripé epidemiologia, administração e
planejamento em saúde e ciências sociais em A saúde para essa área é compreendida
saúde, ao que se somam disciplinas auxilia- como um direito fundamental que vai para
res como demografia, estatística, ecologia, além dos limites existentes nos contratos de
geografia, antropologia, economia, sociologia, trabalho. A saúde do trabalhador está legiti-
história e ciências políticas, toxicologia, enge- mada na Constituição Federal de 1888 e tem
nharia de produção e ergonomia entre outras. o Sistema Único de Saúde (SUS) como palco
(GOMEZ, 2011, P. 25). principal da efetivação de suas ações.

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Ao pensar na trajetória histórica do campo Minayo e Souza (1999), é na década de 1980


da saúde do trabalhador e nas ações protago- que esse tema entra com maior ênfase no
nizadas pelos militares do CBMERJ, nota-se campo da saúde, buscando maior consoli-
que ambos almejam a garantia das condições dação nos anos 1990. No que diz respeito às
necessárias à preservação da saúde no am- causas externas de morbidade e mortalidade
biente de trabalho. Dessa forma, acredita-se que estão na Classificação Internacional de
estar presente na luta desses trabalhadores o Doenças (CID- 10), os acidentes e violência
ideário do MOI: “A saúde não se vende e nem que ocorrem no local de trabalho também são
se delega: se defende” (PAIVA; VASCONCELLOS, 2011, um problema de saúde pública.
P. 388), logo, pode-se caracterizar os episódios A literatura ressalta a importância de
dos bombeiros como um movimento em pensar sobre os agravos decorrentes de aci-
defesa da saúde do trabalhador. dentes e violência no trabalho perante a gra-
vidade deles sobre a população. Machado e
Reflexões sobre a violência relacio- Gomez (1994, P. 74) compreendem o
nada com o trabalho
acidente como uma forma de violência impõe
Há diferentes discussões acerca da termino- à área de saúde do trabalhador novas relações
logia que integra violência e trabalho. Alguns no interior da Saúde Pública, bem como inter-
autores mencionam a categoria de violência faces disciplinares e setoriais.
do trabalho, outros se apropriam da descrição
de violência no trabalho e também da violên- Os autores mencionam a magnitude da
cia relacionada com o trabalho. A principal di- mortalidade em função de violências no
vergência ocorre em função de uma violência trabalho na sociedade, salientando a preca-
ligada ao ambiente de trabalho ou a própria riedade do reconhecimento e registro nos
função do trabalhador. Oliveira e Nunes (2008) sistemas de informação.
consideram a violência relacionada ao traba- Dessa forma, refletir sobre a relação
lho e descrevem da seguinte forma: acidente-violência-trabalho é crucial para
pensar estratégias em defesa da saúde do tra-
[...] como toda ação voluntária de um indiví- balhador. Em relação às manifestações dos
duo ou grupo contra outro indivíduo ou grupo bombeiros militares aqui estudadas, perce-
que venha a causar danos físicos ou psicológi- be-se que a luta era principalmente em prol
cos, ocorrida no ambiente de trabalho, ou que da sua saúde e direitos. Para o movimento
envolva relações estabelecidas no trabalho reivindicatório, a dignidade relaciona-se di-
ou atividades concernentes ao trabalho. Tam- retamente com direitos humanos fundamen-
bém se considerada violência relacionada ao tais, inclusive de um trabalho com condições
trabalho toda forma de privação e infração de que não propiciem impactos negativos sobre
princípios fundamentais e direitos trabalhis- a saúde dos trabalhadores. Tais princípios
tas e previdenciários; a negligência em rela- são consagrados na Constituição Federal de
ção às condições de trabalho; e a omissão de 1988 reforçando o entendimento que esses
cuidados, socorro e solidariedade diante de direitos e condições devem ser garantidos
algum infortúnio, caracterizados pela natura- nos ambientes laborais.
lização da morte e do adoecimento relaciona- Considera-se a definição de violência
dos ao trabalho. (OLIVEIRA; NUNES, 2008, P. 30). abordada pela Organização Mundial da
Saúde, como
A temática violência vem ganhando cada
vez mais visibilidade e trazendo preocupa- uso da força física ou poder, em ameaça ou
ções nas últimas décadas. No Brasil, segundo prática, contra si próprio, outra pessoa ou

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contra um grupo ou comunidade, que resulte transcorrer de suas atividades, mas também
ou possa resultar em sofrimento, morte, dano causar agravos em todas as instâncias que
psicológico, desenvolvimento prejudicado ou envolvem sua saúde e vida conforme men-
privação. (OMS, 2002, P. 5). cionado. Cabe ressaltar que foram abor-
dados os episódios protagonizados pelos
O histórico de idas e vindas dos bombei- bombeiros militares em um determinado
ros militares no movimento em busca de período e local, portanto o fenômeno ob-
melhoria nos recursos de trabalho revela os servado pode não ocorrer ou ser diferente
possíveis dramas da categoria em sua prática em instituições com a mesma finalidade em
laboral que aqui se compreende como sendo outras localidades do País.
um quadro sugestivo de violências relacio- A literatura sobre a situação de saúde da
nadas com o trabalho. categoria relacionada com o trabalho ainda
A segurança, saúde e bem-estar dos pro- é pequena no País. Apesar disso, alguns
fissionais como aspectos que pertencem ao estudos como o realizado por Monteiro et
desenvolvimento da instituição devem ser al. (2013) e Lima, Assunção e Barreto (2015)
considerados na abordagem mais ampla das apontam que os trabalhadores do Corpo
causas de violência relacionada com o traba- de Bombeiros de outros estados enfren-
lho (OMS, 2002). De modo que pensar na me- tam problemas de saúde que podem estar
lhoria e ampliação da saúde do trabalhador é relacionados com suas atividades laborais.
também prevenir a violência no local de tra- Dessa forma, identifica-se a necessidade de
balho, com isso é possível o estabelecimento aprofundamento da temática, ou seja, a re-
de um ambiente laboral que não propicie alização de um estudo exploratório em que
danos à saúde daqueles que realizam suas seja possível ouvir os pontos de vistas desses
atividades de trabalho. profissionais e da instituição.
Os bombeiros militares constituem O contexto de carência de recursos ma-
uma categoria de trabalhadores que luta teriais, estruturais e socioeconômicos no
para salvar vidas, portanto necessitam das cotidiano de diversos segmentos profissio-
melhores condições de trabalho possíveis nais, sejam eles formais ou não, pode afetar
para realizar suas atividades laborais de a saúde física e psicológica dos trabalhado-
forma satisfatória. A escassez ou limita- res, propiciando o surgimento de doenças
ção de recursos básicos para as práticas crônicas, psicossomáticas, além de acidentes
laborais são elementos que podem gerar de trabalho e outros agravos. Esse cenário
impactos negativos na saúde e vida de pro- denota a importância de um olhar sobre as
fissionais em geral, dessa forma tal situa- condições de trabalho e sua interface com a
ção precária nas condições de trabalho se saúde do trabalhador.
estabelece como uma forma de violência O movimento reivindicatório dos pro-
relacionada com o trabalho. fissionais buscou a redução de fatores
que prejudiquem a sua saúde no ambiente
laboral. Tais condições podem caracteri-
Considerações finais zar-se como violências no trabalho e de-
sencadear danos físicos, psicológicos e até
A análise da pauta reivindicatória dos mesmo a morte. O percurso realizado pelos
bombeiros militares sugere que a cate- bombeiros foi em prol da efetivação de um
goria possui condições de trabalho com trabalho que não seja sinônimo de adoe-
problemas estruturais, ambientais e de cimento, sua mobilização foi pela concre-
ordem socioeconômica. Esse quadro pode tização do direito à saúde em seu sentido
produzir efeitos negativos não somente no amplo e irrestrito, a categoria lutou pela

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140 MATA, N. T.; PIRES, L. A. A.; BONFATTI, R. J.

efetivação do direito fundante de todos os Agradecimentos


outros, o da dignidade humana.
Liane Maria Braga da Silveira: pelo apoio e
leitura cuidadosa do artigo em andamento.
Colaboradores Luiz Carlos Fadel de Vasconcellos: pelo
apoio e companheirismo em todas as bata-
Natália Teixeira Mata: Autora da elaboração lhas enfrentadas para a produção do traba-
do manuscrito. Luiz Antonio de Almeida lho de conclusão de curso que deu base para
Pires: Autor da elaboração do manuscrito. este artigo. s
Renato José Bonfatti: Orientador do traba-
lho base e revisor do texto.

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e a crítica de uma trajetória. Rio de Janeiro: Educam,
2011. p. 357-400.
Recebido para publicação em agosto de 2016
Versão final em dezembro de 2016
Conflito de interesses: inexistente
PIRES, L. A. A. A relação saúde-trabalho dos bombeiros
Suporte financeiro: não houve
militares do município do Rio de Janeiro. 2016. 210 f.
Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) – Escola
Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 133-141, JAN-MAR 2017


142 ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE

As condições de saúde dos trabalhadores a


partir dos exames periódicos de saúde
The health conditions of workers from periodic health examinations

Eliane de Assis Mendes1, Liliane Reis Teixeira2, Renato José Bonfatti3

RESUMO Objetivou-se apresentar o perfil de saúde dos trabalhadores de uma unidade federal
que realizaram os exames periódicos de saúde. Trata-se de um estudo descritivo e explorató-
rio, no qual foram analisados 503 prontuários ocupacionais. Houve equilíbrio na participação
por gênero e, proporcionalmente, uma maior participação dos servidores (70,6%). Em relação
às condições de saúde, os celetistas apresentaram maiores queixas referentes a problemas res-
piratórios (52,5%); e os servidores, questões do aparelho circulatório (25,6%). Considera-se
igualar não só os instrumentos, mas a qualidade da avaliação para os trabalhadores celetistas,
melhorando os dados para propor ações de promoção.

PALAVRAS-CHAVE Saúde do trabalhador. Exames médicos. Setor público. Serviços de saúde


do trabalhador.

ABSTRACT The study aims to present the health profile of employees of a federal production unit
that underwent the periodic health examinations. It is a descriptive and exploratory study, which
analyzed 503 occupational medical records. There was balanced participation by gender and,
1 Fundação Oswaldo proportionally, a greater participation of public servants (70.6 %). Regarding health conditions,
Cruz (Fiocruz), Instituto
de Tecnologia em the CLT (Consolidation of Labor Laws) employees had the biggest complaints related to respira-
Imunobiológicos (Bio- tory problems (52.5 %) and the servants, circulatory system issues (25.6%). It is considered to
Manguinhos) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil. match not only the instruments, but the quality of assessment for CLT employees, improving the
lyamendes@gmail.com data to propose promotion actions.
2 Fundação Oswaldo Cruz

(Fiocruz), Escola Nacional KEYWORDS Occupational health. Medical examination. Public sector. Occupational health
de Saúde Pública Sergio
Arouca (Ensp), Centro services.
de Estudos em Saúde do
Trabalhador e Ecologia
Humana (Cesteh) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.
teixeira.liliane@gmail.com

3 Fundação Oswaldo Cruz


(Fiocruz), Escola Nacional
de Saúde Pública Sergio
Arouca (Ensp), Centro
de Estudos em Saúde do
Trabalhador e Ecologia
Humana (Cesteh) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.
renato.bonfatti@gmail.com

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 142-154, JAN-MAR 2017 DOI: 10.1590/0103-1104201711212
As condições de saúde dos trabalhadores a partir dos exames periódicos de saúde 143

Introdução combinado, sem entrar no mérito do entendi-


mento do que seja saúde. (VASCONCELLOS, 2011,
O trabalho é compreendido como uma ati- P. 131).
vidade fundamental do homem. Com a efe-
tivação do modo de produção capitalista, A legislação trabalhista, no ano de
observam-se profundas e constantes trans- 1978, implementou as chamadas Normas
formações sociais, sendo um dos espaços Regulamentadoras (NRs) e, entre elas, a NR
privilegiados dessas mudanças a esfera pro- nº 7, que
dutiva. Assim, o processo da saúde/doença,
por meio da exposição diferenciada aos [...] estabelece a obrigatoriedade de elabora-
riscos à saúde, terá uma associação com a ção e implementação, por parte de todos os
forma de organização social da produção. empregadores e instituições que admitam
Nesse sentido, ao se considerar a cen- trabalhadores como empregados, do Progra-
tralidade do trabalho na vida cotidiana e as ma de Controle Médico de Saúde Ocupacio-
transformações que o chamado ‘mundo do nal (PCMSO). (BRASIL, 1978, P. 1).
trabalho’ vem sofrendo ao longo dos séculos,
com as mudanças conjunturais e avanços O PCMSO apresenta como objetivo a pro-
tecnológicos, pode-se observar que o campo moção e preservação da saúde do conjunto
da saúde também apresentará reflexos desse dos trabalhadores e inclui, entre outras atri-
contexto, em especial devido ao seu papel buições, a realização obrigatória dos Exames
para o controle da força de trabalho. Médicos Periódicos (EMPs). Tais exames
Quando se destaca a realidade brasileira, são compostos de: uma avaliação clínica
Faleiros (1992) pontua que o Estado brasileiro, e exames complementares, realizados de
no que tange à intervenção nas questões de acordo com os termos específicos da NR e
saúde e segurança do trabalhador, traduz-se seus anexos. A periodicidade está relacio-
mais em compensações do desgaste que em nada com a atividade desenvolvida e com
mudança das condições de trabalho. Nesse o risco ocupacional a que os trabalhadores
cenário, os trabalhadores estão submetidos, além de com a idade.
No âmbito do Serviço Público Federal,
[...] não têm o controle de seu corpo, das con- somente em 2009, por meio do Subsistema
dições de trabalho, da definição de doenças Integrado de Assistência ao Servidor Público
profissionais, dos perigos inerentes à produ- Federal (Siass) com algumas características
ção e nem possuem a informação e o saber similares ao proposto pela NR 07 – os exames
sobre os riscos das suas atividades. (CAVALCAN- periódicos tornaram-se obrigatórios e foram
TI, 2011, P. 166). normatizados para os servidores públicos fe-
derais, por intermédio do Decreto nº 6.856,
de 25 de maio de 2009, Art. 2º:
A característica original da doutrina do direito
trabalhista que norteia até hoje o estabele- A realização de exames médicos periódicos
cimento da regra é a prevenção do desgas- tem como objetivo, prioritariamente, a pre-
te da força de trabalho, de modo a evitar a servação da saúde dos servidores, em função
ocorrência de situações capazes de impedir o dos riscos existentes no ambiente de trabalho
trabalho. Embora seja diretamente vinculada e de doenças ocupacionais ou profissionais.
à questão da saúde, na perspectiva da regra (BRASIL, 2009B).
a ideia de desgaste da força de trabalho é a
perda da capacidade, de aptidão, da condição, A prática dos EMPs é intrinsicamente
do vigor, da força, ou da perda de tudo isso vinculada à Saúde Ocupacional (SO); porém

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 142-154, JAN-MAR 2017


144 MENDES, E. A.; TEIXEIRA, L. R., BONFATTI, R. J.

não há impeditivos normativos para que, em humano em sua relação com o trabalho. (GO-
sua execução, outros elementos sejam utili- MEZ-MINAYO; THEDIM-COSTA, 1997, P. 26).
zados visando uma avaliação mais integral do
quadro de saúde dos trabalhadores, tais como Nessas perspectivas, aos serviços que
conceitos do campo da Saúde do Trabalhador cuidam da saúde dos trabalhadores, seja por
(ST), seja ao realizar a intervenção, seja ao intermédio da NR ou do Siass, não há uma
analisar os dados gerados pelos EMP. determinação normativa que deva seguir um
modelo especifico de ficha ocupacional, per-
A saúde do trabalhador busca compreender mitindo que a adequem à realidade laboral
melhor a determinação do processo saúde- de seus trabalhadores.
-doença nos trabalhadores e desenvolver Logo, o objetivo deste artigo é apresen-
alternativas de intervenção que levem a tar o perfil de saúde dos trabalhadores de
transformação da realidade, em direção à unidade federal de produção que realizaram
apropriação pelos trabalhadores da dimensão os EPS, no ciclo 2013/14, por meio da ficha
humana do trabalho. [...] A atuação em saú- ocupacional – elaborada coletivamente
de do trabalhador está baseada na premissa entre os serviços de ST da instituição para a
de que os trabalhadores apresentam um vi- realização dos EPS pela equipe multiprofis-
ver, adoecer e morrer compartilhado com o sional (medicina do trabalho, enfermagem,
conjunto da população, em um dado tempo, psicologia e serviço social).
lugar e inserção social, mas que é, também,
específico, resultante de sua inserção em um
processo de trabalho particular. E esta especi- Métodos
ficidade dever ser contemplada pelos serviços
de saúde. (DIAS, 1996, P. 28). Este artigo resulta de um estudo de caso re-
alizado em uma unidade federal produtora
Assim, partindo de premissas da ST, os de imunobiológicos, cuja força de trabalho,
EMP podem torna-se Exames Periódicos de ao final de 2014, era de 1.547 trabalhadores,
Saúde (EPS), em que a avalição não se res- agregando três vínculos: 18% de servido-
trinja somente à anamnese médica, mais que res públicos federais (regidos pelo RJU –
outros saberes sejam incorporados a essa Regime Jurídico Único), 78% prestadores de
prática de saúde e que possuam um olhar serviços (regidos pela CLT – Consolidação
interprofissional para as questões saúde/ das Leis do Trabalho) e 4% bolsistas.
trabalho; uma vez que a ST traz consigo o Colaborou para essa escolha a inserção
desenvolvimento de alternativas de inter- da unidade no atual modelo flexível de pro-
venção, buscando, portanto, estabelecer dução atuando com metas e indicadores,
causas de agravos à sua saúde, reconhecer além de contar com uma força de trabalho
seus determinantes, estimar riscos, dar a co- diversificada que, conforme necessidade da
nhecer os modos de prevenção e promover demanda, é remanejada de outros setores da
saúde (MENDES; DIAS, 1991). mesma área ou de outras áreas para atender
aos prazos; ou efetua contratações pontuais
A incorporação de conhecimentos da Medi- (por tempo determinado) para auxiliar na
cina do Trabalho e da Saúde Ocupacional, a produção ou efetuar consultorias específicas.
aplicação das normas limitadas da Higiene A unidade é dividida em cinco áreas orga-
e Segurança do Trabalho fazem parte des- nizacionais, duas com atribuições eminente-
se trajeto, numa perspectiva permanente de mente administrativas e três vinculadas às
definição de marcos conceituais e práticas rotinas de produção: a) Desenvolvimento:
que exprimam uma visão totalizante do ser promove o desenvolvimento de vacinas,

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 142-154, JAN-MAR 2017


As condições de saúde dos trabalhadores a partir dos exames periódicos de saúde 145

reativos para diagnóstico e biofármacos; exploratório a respeito do estudo. Segundo


b) Qualidade: realiza os testes, assegura o Tobar e Yalour (2001, P. 69), um estudo descri-
controle de qualidade e liberação de lotes tivo “[...] expõem características de determi-
produzidos, conforme preconizado pelas nada população ou determinado fenômeno”.
normas de boas práticas de fabricação; c) Em relação aos estudos exploratórios, os
Produção: realiza todo processamento final mesmos autores destacam que ocorrem “[...]
das vacinas e reativos, além da rotulagem e em áreas e sobre problemas dos quais há
embalagem destes e dos biofármacos. Possui escasso ou nenhum conhecimento acumula-
trabalho noturno e por plantão, de modo que do e sistematizado”.
essa área funciona 24 horas. A unidade tem sob sua responsabilida-
As áreas de Desenvolvimento, Qualidade de a execução dos EPS para os servidores
e Produção realizam suas atividades em e bolsistas e o monitoramento (conforme
ambiente laboratorial, com temperatura e seu PCMSO) dos EPS para os prestadores
circulação controladas; seguindo normas de serviço. Assim, a definição do grupo de
nacionais e internacionais de boas práticas trabalhadores para elaboração do perfil foi
de fabricação. Assim, são diversos proces- precedida de um levantamento preliminar,
sos que obedecem uma rotina programada mediante informações do banco de dados
e com atividades repetitivas. São áreas cujo sobre os EPS do setor de saúde, a fim de
processo de trabalho mescla interação com verificar quantitativo de trabalhadores – se-
máquinas de alta tecnologia e atividades que parados por vínculos, que compareceram às
ainda remetem ao modelo fordista/taylorista avaliações no ciclo 2013/2014. Nesse sentido,
de organização da produção – como na linha dos 889 trabalhadores elegíveis para realiza-
de montagem dos kits, envase de diluentes rem a avaliação dos EPS, 503 compareceram,
ou embalagem das vacinas. sendo 332 celetistas e 171 servidores.
As demais áreas (Direção e Gestão) apre- Ressalta-se que, neste ciclo (2013/14), o setor
sentam rotinas administrativas realizadas adotou uma nova ficha ocupacional para ava-
em ambiente predominantemente de escri- liação da saúde dos servidores, a qual também
tório; com exceção da área de armazenagem, foi adotada para coleta de dados sobre a saúde
onde há as atividades de carga e descarga dos prestadores de serviço. Foram excluídos da
de produtos, equipamento, insumos, entre pesquisa aqueles trabalhadores sem o período
outros – que requer maior esforço físico por aquisitivo para a realização da avaliação (con-
parte dos trabalhadores. tratados ou empossados a partir de janeiro de
Optou-se pelo estudo de caso, visto que 2013) e os bolsistas (visto que encontraram-se
dados referentes somente ao admissional e
é útil para gerar conhecimento sobre caracte- também devido à temporariedade do vínculo –
rísticas significativas de eventos vivenciados, dois anos).
tais como intervenções e processos de mu- Cabe destacar que, nesse ciclo, o primeiro
dança. (MINAYO, 2014, P. 164). momento da avaliação dos EPS foi similar
para os trabalhadores de todos os víncu-
Utilizou-se como abordagem metodoló- los; ou seja, ao responderem à convocação
gica a pesquisa qualitativa e, complementar- do setor de saúde com a data do exame,
mente, dados quantitativos visto que ambos apresentavam-se ao setor e recebiam a ficha
os dados não se opõem: “Ao contrário, se ocupacional para preenchimento das ques-
complementam, pois, a realidade abrangida tões de saúde e estilo de vida. As etapas se-
por eles interage dinamicamente, excluindo guintes dos EPS são diferenciadas conforme
qualquer dicotomia” (MINAYO, 1999, P. 22). vínculo, por isso não foram consideradas
Também há um caráter descritivo e para a elaboração do perfil; isto é, só foram

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 142-154, JAN-MAR 2017


146 MENDES, E. A.; TEIXEIRA, L. R., BONFATTI, R. J.

utilizados dados informados somente pelos existe um outro bloco no qual o trabalha-
trabalhadores. dor assinala ouras questões que podem
O trabalho de campo iniciou-se após ser associadas à saúde mental (estresse,
avaliação e autorização do Comitê de Ética insônia) e se tem suporte psiquiátrico, seja
em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde por meio de medicação controlada ou acom-
Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), por panhamento médico especializado; além
meio do parecer nº 1.010.308/2015; bem do preenchimento do chamado Self Report
como da unidade onde foi realizado o traba- Questionnaire (SRQ-20), um compilado
lho de campo de acordo com a legislação e de 20 questões com respostas dicotômicas
normativas vigentes. (sim/não) sobre sintomas físicos e psicoe-
mocionais para rastrear transtornos mentais
Instrumento de coleta de dados comuns. O escore para cada resposta afirma-
tiva, pontua-se com o valor 1; e o ponto de
A fim de obter um melhor aproveitamen- corte para suspeição (presença ou ausência)
to da ficha ocupacional, foi elaborada uma dos transtornos mentais não psicóticos utili-
planilha de Excel® com os seguintes eixos e zado é de oito (GOUGET, 2014).
variáveis: Em relação à aferição do desconforto pos-
tural que pode auxiliar no diagnóstico de
1) Identificação: Área; vínculo; idade; sexo; doenças osteomusculares, o setor usa o dia-
tempo de empresa e cargo (em relação à grama proposto por Corllet e Manenica (1980)
escolaridade). que divide o corpo humano em diversos
segmentos, em que o trabalhador assinala
2) Questões de saúde e fatores de risco: na figura que representa o corpo humano os
Hipertensão; problemas cardíacos; pro- segmentos em que sente dores ou desconfor-
blemas respiratórios; problemas renais; to. A escala de intensidade do desconforto/
problemas hepáticos; diabetes; problema dor é classificada em 5 níveis, que variam de
gastrointestinal; problemas de visão; pro- 1, para ‘nenhum desconforto/dor’, até 5, ‘in-
blemas de saúde mental; doença vascu- tolerável desconforto/dor’.
lar; alergia; problemas osteomusculares;
problemas reumatológicos; colesterol e
triglicerídeos alterados; acima do peso; Resultados e discussão
sedentarismo; tabagismo e consumo de
bebida alcoólica. Conforme apresentado na tabela 1, participa-
ram da avaliação 503 trabalhadores: 70,66%
3) Saúde mental: Estresse; insônia; SRQ20 de servidores e 37,34% de terceirizados, que
e suporte (medicação controlada, terapia e/ realizaram a avaliação no setor de saúde da
ou médica). unidade. Havendo um equilíbrio na partici-
pação por gênero – similar à proporção geral
4) Desconforto físico (Diagrama de dos trabalhadores da unidade –, sendo 51,3%
Corllet): Pescoço; cervical; costa superior; do sexo masculino e 48,7% do sexo femini-
costa médio; costa inferior; bacia; ombro; no; porém, ao se verificar por vínculo, a par-
braço; cotovelo; antebraço; punho; mão; ticipação feminina foi maior entre os RJUs
coxa e perna. (59%), enquanto a masculina foi maior entre
os celetistas (57%). Em relação à escolarida-
Salienta-se que, para aferir as questões de de vinculada ao cargo, houve um predomínio
saúde mental, além da pergunta que consta de trabalhadores de nível superior (57,7%)
na primeira folha da ficha ocupacional, no geral e para ambos os vínculos.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 142-154, JAN-MAR 2017


As condições de saúde dos trabalhadores a partir dos exames periódicos de saúde 147

Tabela 1. Características sociofuncionais dos participantes dos EPS conforme vínculo


RJU CLT Ambos
Variáveis
N % N % N %

171 332 503

Gênero
Feminino 101 59,06 144 43,37 245 48,7
Masculino 70 40,94 188 56,63 258 51,3

Cargo por nível de escolaridade


Nível médio 57 33,33 156 46,99 213 42,3
Nível Superior 114 66,67 176 53,01 290 57,7
Faixa etária

De 18 a 30 anos 19 11,11 66 19,88 85 16,90


De 31 a 40 anos 52 30,41 126 37,95 178 35,39
De 41 a 50 anos 55 32,16 91 27,41 146 29,03
De 51 a 60 anos 36 21,05 40 12,05 76 15,11
61 anos ou mais 9 5,26 9 2,71 18 3,58
Tempo de Serviço
De 1 a 3 anos 43 25,15 168 50,60 211 41,95
De 4 a 10 anos 55 32,16 92 27,71 147 29,22
De 11 a 20 anos 42 24,56 70 21,08 112 22,27
De 21 a 30 anos 19 11,11 0 0,00 19 3,78
31 anos ou mais 12 7,02 2 0,60 14 2,78

Fonte: Elaboração própria.

Entre as questões de saúde (tabela 2) as- Segundo a Sociedade Brasileira de


sinaladas pelos trabalhadores que participa- Cardiologia, os principais fatores de risco
ram dos EPS, verificou-se que predominam para DCV são: hipertensão arterial, taba-
os problemas respiratórios (bronquite, asma, gismo, obesidade/sobrepeso; dislipidemia;
rinite, tosse crônica, sinusite) – 49%; seguidos diabetes; síndrome metabólica, fatores psi-
pelos problemas osteomusculares (doenças cossociais e sedentarismo. Todavia, devido
da coluna, dor nas costas, dores nas articula- ao tipo de cage utilizado na ficha ocupacio-
ções) – 43,5% – e problemas na visão – 43%. nal para avaliar as questões vinculadas ao
Compilados dessa maneira, os resultados estilo de vida (sedentarismo, estar acima do
fogem um pouco dos dados da Organização peso, consumo de bebida alcoólica e cigarro),
Mundial da Saúde (OMS), nos quais se optou-se por apresentar somente os dados;
destaca que as Doenças Cardiovasculares pois seriam necessárias outras informações
(DCV) foram responsáveis por 30% de mor- para tratar como fatores de risco associados
talidade nas últimas décadas (SIMÃO ET AL., 2013), para as DCV.
ou dos da previdência social, que citam as Quando se realiza o desmembramen-
DCV, osteomusculares e de saúde mental to por vínculo, observa-se que as questões
como as de maiores causas de afastamentos de saúde entre os trabalhadores celetistas
ou de mortalidade (BRASIL, 2015). são similares ao resultado total; entretanto,

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 142-154, JAN-MAR 2017


148 MENDES, E. A.; TEIXEIRA, L. R., BONFATTI, R. J.

para os servidores públicos, predominam (56%), seguidos dos osteomusculares


os problemas osteomusculares (52,6%), (53%) e dos problemas na visão (44%); já
seguidos dos problemas na visão (52%) e entre os homens, também predominam as
dos problemas respiratórios (45%). Em questões respiratórias (43%), seguidas dos
relação ao gênero, entre as mulheres há o problemas na visão (42%) e osteomuscula-
predomínio dos problemas respiratórios res (34,5%).

Tabela 2. Prevalência de morbidades e questões sobre estilo de vida referida pelos trabalhadores, conforme vínculo e gênero, que participaram dos EPS,
no ciclo 2013-2014

RJU CLT Fem Masc Ambos


Variáveis
N % N % N % N % N %
Questões de Saúde 171 100% 332 100% 245 100% 258 100% 503 100%
Hipertensão 43 25,15 75 22,59 54 22,04 64 24,81 118 23,46
Problemas Cardíacos 25 14,62 30 9,04 33 13,47 22 8,53 55 10,93
Problemas Respiratórios 77 45,03 171 51,51 138 56,33 110 42,64 248 49,3

Problemas Renais 15 8,77 24 7,23 17 6,94 22 8,53 39 7,75


Problemas Hepáticos 12 7,02 13 3,92 12 4,90 13 5,04 25 4,97
Diabetes 13 7,6 7 2,11 5 2,04 15 5,81 20 3,98
Problemas Gastrointestinais 48 28,07 63 18,98 60 24,49 51 19,77 111 22,07

Infecções no Ouvido 8 4,68 11 3,31 10 4,08 9 3,49 19 3,78


Problemas na visão 89 52,05 126 37,95 107 43,67 108 41,86 215 42,74
Questões de Saúde Mental 10 5,85 8 2,41 10 4,08 8 3,10 18 3,58
Doença Vascular 62 36,26 61 18,37 86 35,10 37 14,34 123 24,45
Alergias 45 26,32 93 28,01 89 36,33 49 18,99 138 27,44
Problemas Osteomusculares 90 52,63 129 38,86 130 53,06 89 34,50 219 43,54
Problemas Reumatológicos 16 9,36 11 3,31 15 6,12 12 4,65 27 5,37
Colesterol e Triglicerídeos 32 18,71 65 19,58 43 17,55 54 20,93 97 19,28
elevados
Acima do peso 87 50,88 140 42,17 104 42,45 123 47,67 227 45,13
Sedentarismo 83 48,54 152 45,78 119 48,57 116 44,96 235 46,72
Fuma 14 8,19 15 4,52 11 4,49 18 6,98 29 5,77
Consome bebida Alcoólica 82 47,95 154 46,39 99 40,41 137 53,10 236 46,92

Fonte: Elaboração própria.

Ao agrupar os dados do perfil conforme os licenças médicas da unidade no mesmo


grupos do código internacional de doenças período, nota-se a manutenção das questões
(CID-10), verificou-se que os problemas res- respiratórias (21,5%) como prevalentes, corro-
piratórios (77%) continuam predominando; borando o perfil, assim como as doenças osteo-
porém são seguidos pelas doenças endócri- musculares (18%). Salienta-se que o item XXI,
nas (68%) e do aparelho circulatório (59%). que estaria em primeiro lugar, não foi conside-
Se comparados (tabela 3) os resultados rado por tratar-se de questões sobre o estilo de
dos EPS com o quantitativo de afastamentos/ vida, e não uma morbidade instalada.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 142-154, JAN-MAR 2017


As condições de saúde dos trabalhadores a partir dos exames periódicos de saúde 149

Tabela 3. Comparação entre a prevalência de morbidades aferidas nos EPS e os afastamentos médicos, conforme grupo
de CID, no ano de 2013

EPS Licenças
Variáveis
N % N %

Grupo de CID 503 100% 4.702 100%


IV-Doenças endócrinas, metabólicas (E00-E90) 344 68,39 30 0,64
V-Transtornos mentais e comportamentais (F00- F99) 18 3,58 236 5,02
VI- Doenças do sistema nervoso (G00-G99) 131 26,04 114 2,42

VII- Doenças do Olho e anexos (H00-H59) 215 42,74 153 3,25


VIII- Doenças do Ouvido e da apófise (H60-H95) 18 3,58 95 2,02
IX- Doenças do aparelho circulatório (I00-I99) 295 58,65 213 4,53
X- Doenças do aparelho respiratório (J00-J99) 386 76,74 1010 21,48

XI- Doenças do aparelho digestivo (K00-K93) 136 27,04 389 8,27


XII- Doenças da Pele e tecido subcutâneo (L00-L99) 0 0,00 131 2,79
XIII-Doenças do sistema Osteomuscular (M00-M99) 246 48,91 837 17,80
XIV- Doenças do aparelho Geniturinário (N00-N99) 39 7,75 144 3,06
XXI - Fatores que influenciam o estado de saúde (Z72) 443 88,07 1 0,02

Fonte: Elaboração própria.

Consta da ficha ocupacional do EPS a meio ambiente de forma leve ou grave, tem-
percepção dos riscos informados pelos tra- porária ou permanente, parcial ou total.
balhadores, que além dos riscos previstos na
NR-9, traz algumas questões ergonômicas, Já para Avaliação da Segurança e Saúde
porém sem elementos da organização do tra- Ocupacional – Occupational Health and
balho sugeridos pela NR-17. Safety Assessment Series (OHSAS), risco é:
Assim, quando observados os resultados “Combinação da probabilidade de ocorrên-
quanto à percepção dos trabalhadores sobre cia e da(s) consequência(s) de um determi-
a exposição aos riscos ocupacionais: 65% nado evento perigoso” (OCCUPATIONAL HEALTH
informaram realizarem movimentos repeti- AND SAFETY ASSESSMENT SERIES, 1999, P. 9). Cabe des-
tivos; 53% possuem risco ergonômico; 52% tacar que a NR-9 considera riscos ambientais
teriam exposição ao risco biológico; 50% aos
produtos químicos e 50% ao esforço visual. [...] os agentes físicos, químicos e biológicos
Nesse sentido, comparados aos dados da existentes nos ambientes de trabalho que, em
tabela 3, não se pode afirmar que existe um função de sua natureza, concentração ou in-
nexo direto entre as morbidades apresen- tensidade e tempo de exposição, são capazes
tadas e os riscos ocupacionais; porém tais de causar danos à saúde do trabalhador. (BRA-
elementos não devem ser desconsiderados SIL, 1977, P. 1).
para investigar agravos e propor melhorias
os ambientes laborais. Sivieri (1996) ainda chama a atenção para
Ressalta-se que, segundo Sivieri (1996, P. 81), o fato de que muitas questões do ambiente
industrial e de outros setores produtivos
[...] risco é a probabilidade de ocorrência de não têm sua origem nos tradicionais fatores
um evento causador de dano às pessoas e ao físicos, químicos ou biológicos.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 142-154, JAN-MAR 2017


150 MENDES, E. A.; TEIXEIRA, L. R., BONFATTI, R. J.

Existem devido às contradições originarias Contudo, quando se verificou o SRQ-20


do cotidiano, das relações funcionais, dos (gráfico 1), 41 trabalhadores (8%) tiveram
conflitos e dos processos psicossociais. Na um escore acima ou igual a 8; ou seja,
complexidade da vida social, situações de apresentavam, na ocasião, algum transtor-
trabalho, associadas a sucessivas frustrações no mental leve (com uma predominância
e ataques a autoimagem, progressivamente dos trabalhadores celetistas e em relação
provocam, além do desgaste metafórico da ao gênero a prevalência do sexo femini-
identidade, processos psicossomáticos que no). Já sobre o suporte, 83 trabalhadores
geram quadros clínicos de doenças orgânicas (16,5%) utilizam medicação controlada ou
graves, como úlceras, hipertensão arterial, mantêm tratamento psiquiátrico (havendo
gastrite etc., e também distúrbios de ordem pouca diferença entre os vínculos e um
psicológica como insônia, ansiedade, depres- predomínio do sexo feminino). Ou seja,
são estresse etc., situações consideradas de há uma discrepância nos dados informa-
risco, onde o trabalhador fica mais fragilizado, dos entre a percepção no reconhecimento
e potencialmente mais exposto a acidentes e enquanto portador de alguma patologia
mortes. (SIVIERI, 1996, P. 81). de saúde mental e a utilização de algum
suporte nessa esfera.
As questões de saúde mental são apontadas Ao tratar dos outros fatores associados
em alguns estudos sobre o mundo do trabalho à saúde mental, têm-se 36% (n=179) de tra-
entre as três principais causas de afastamento balhadores considerando-se estressados –
seja no serviço público, seja na esfera privada. ao comparar os vínculos, essa percepção
Ao se observar os dados da tabela 1, somente é maior entre os celetistas e por gênero
4% dos trabalhadores responderam possuir entre as mulheres. Em relação à insônia,
alguma patologia vinculada aos transtornos 26% (n= 131) assinalaram positivamente
mentais (estaria em último lugar entre as para a questão, quase havendo paridade
questões de saúde do perfil). entre os gêneros.

Gráfico 1 . Distribuição das questões associadas à saúde mental relacionada aos trabalhadores participantes dos EPS, por
vínculo, no ciclo 2013-2014

179

131
Quantitativo

100
97
82 83 87
79
69
62
54
46 44
41 37
29 25 29
18 16
10 8 10 8
1
EPS SM ESTRESSE SRQ-20 SUPORTE INSÔNIA

Itens de saúde mental

AMBOS RJU CLT F M

Fonte: Elaboração própria.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 142-154, JAN-MAR 2017


As condições de saúde dos trabalhadores a partir dos exames periódicos de saúde 151

Quando se observa o gráfico 1, não se têm da escala de intensidade igual ou acima de 3


elementos suficientes para informar quais (‘moderado/bastante/intolerável desconfor-
seriam os motivos para a disparidade dos to/dor’), excluindo a escala 1 e 2 (‘ausência/
dados e mesmo aparentando, seja pelas in- algum’) que correspondem, respectivamente, a
formações do EPS, seja pelas informações de 13% e 87% do quantitativo total.
absenteísmo, que a unidade estaria fora dos Observou-se que as maiores queixas são
padrões epidemiológicos no que tange às das áreas superiores (pescoço, cervical e
questões de saúde metal, com baixos índices. costas superiores). Para os celetistas, a maior
Entretanto, os dados que a unidade possui fonte de desconforto é a região das costas su-
sobre a média de dias perdidos com as licen- perior (26%), já para os servidores, é a região
ças coloca as morbidades de saúde mental cervical (12%). Em relação ao gênero, 20 %
entre as três maiores causas de longos afas- das mulheres queixaram-se da região cervi-
tamentos: 2013 – 1.138 dias (3º); 2014 – 1.594 cal, e 13% dos homens da região das costas
dias (3º) e 2015 – 2.306 dias (2º). inferior. A forte presença masculina nas
Em relação ao último bloco, sobre o descon- atividades de carga/descarga de produtos e
forto físico (tabela 4), uma vez que não se trata outros processos de maior exigência física
de um estudo ergonômico, optou-se por apre- pode ter contribuído para essa diferença
sentar os resultados referentes às marcações entre os gêneros.

Tabela 4. Distribuição das queixas dos trabalhadores participantes dos EPS, por vínculo, em relação ao desconforto postural aferido pelo Diagrama de
Corllet, no ciclo 2013-2014

Diagrama de F M RJU CLT Total


Corllet N % N % N % N % N %
Pescoço 88 17,5 40 8,0 51 10,1 77 15,3 128 25,4
Cervical 101 20,1 42 8,3 59 11,7 84 16,7 143 28,4
Costas Superior 50 9,9 22 4,4 26 5,2 132 26,2 158 31,4
Costas Médio 50 9,9 40 8,0 36 7,2 54 10,7 90 17,9

Costas Inferior 77 15,3 64 12,7 46 9,1 95 18,9 141 28,0


Bacia 36 7,2 21 4,2 25 5,0 32 6,4 57 11,3
Ombro 53 10,5 25 5,0 28 5,6 50 9,9 78 15,5
Braço 15 3,0 5 1,0 10 2,0 10 2,0 20 4,0

Cotovelo 15 3,0 6 1,2 8 1,6 13 2,6 21 4,2


Antebraço 15 3,0 5 1,0 7 1,4 13 2,6 20 4,0
Punho 44 8,7 21 4,2 18 3,6 47 9,3 65 12,9
Mão 34 6,8 12 2,4 14 2,8 32 6,4 46 9,1
Coxa 10 2,0 4 0,8 5 1,0 9 1,8 14 2,8
Perna 35 7,0 12 2,4 15 3,0 32 6,4 47 9,3

Fonte: Elaboração própria.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 142-154, JAN-MAR 2017


152 MENDES, E. A.; TEIXEIRA, L. R., BONFATTI, R. J.

Nessas perspectivas, ao se apresentar os e evitem os problemas ou funcionem como


três blocos da ficha ocupacional utilizada contraponto às exigências do capital sobre a
para os EPS, é possível verificar a quantida- força de trabalho, no sentido de estabelecer
de de dados gerados e as possibilidades de melhores condições de vida e de bem-estar.
cruzamentos para refletir sobre os itens que (DIAS; NEHMY 2010, P. 15).
podem ter uma avaliação mais aprofundada.
Por exemplo, selecionar os trabalhadores
que assinalaram queixas osteomusculares e Conclusões
desconforto postural, com o seu tempo de
serviço e a descrição da atividade, pode auxi- O conhecimento sobre as condições de
liar na investigação de doença ocupacional. saúde dos trabalhadores é um importante
indicador para que os empregadores, tanto
Há uma grande quantidade de informações na esfera pública quanto privada, adotem
registradas rotineiramente pelos serviços que medidas de promoção e prevenção para, se
não são utilizadas nem para a análise da situ- não solucionar, ao menos contribuir para a
ação de saúde, nem para a definição de prio- melhoria da condição de saúde de sua força
ridades, nem para a reorientação de práticas. de trabalho; ou mesmo atuar de modo que
Muitas dessas informações obtidas regular- a esfera laboral não agrave os quadros de
mente, se analisadas, podem se constituir em saúde já instaurados e nem crie novos.
matéria-prima para um processo desejável de Nesse sentido, os EPS permitem que pe-
avaliação continuada dos serviços, também riodicamente os empregadores tenham esse
chamada de monitoramento, ou, num estágio mapeamento epidemiológico e com tais in-
mais avançado de organização dos serviços de formações possam realizar ações preventivas
saúde. (SILVA; FORMIGLI, 1994, P. 87). para todos os seus trabalhadores ou grupos
específicos (por atividades, por locais de tra-
Por fim, usar conceitos do campo da ST balho), ou reavaliar processos e condições de
para a análise dos dados dos EPS e para trabalho. Principalmente, se esses dados dos
avaliar os instrumentos como a ficha ocupa- EPS puderem ser trabalhados e comparados
cional e a intervenção como um todo é impor- com outros como absenteísmo interno e de
tante; visto que a ST compreende as relações outras instituições com processos de traba-
trabalho e saúde-doença por meio da análise lho similares.
da “[...] determinação social do processo saú- Em instituições que possuem vínculos
de-doença, privilegiando o trabalho” (LACAZ, diferenciados de contratação, é importan-
2007, P. 759). Apreende o trabalhador como ator te que os trabalhadores tenham os mesmos
histórico, agente de mudanças, que instrumentos de avaliação de sua saúde, uma
vez que estão submetidos às mesmas regras
[...] pode intervir e transformar a realidade de institucionais e aos mesmos processos e con-
trabalho, participando do controle da nocivi- dições de trabalho. Dessa forma, a instituição
dade; da definição consensual de prioridades terá dados mais completos e fidedignos para
de intervenção e da elaboração de estratégias pensar suas ações, em especial, para atuar
transformadoras [...]. (LACAZ, 2007, P. 760). na melhoria dos processos e ambientes de
trabalho que possam trazer prejuízo à saúde
dos trabalhadores.
Sua ação caracteriza-se por permanente vi- Agregar outros elementos (com cages
gilância das condições de trabalho passíveis validados para questões de saúde mental,
de causar agravos ou danos à saúde do tra- ergonomia, questões de estilo de vida,
balhador, por meio de práticas que antecipem DCV, condições de trabalho etc.) e outros

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 142-154, JAN-MAR 2017


As condições de saúde dos trabalhadores a partir dos exames periódicos de saúde 153

profissionais permite que se tenha uma avalia- discuti-los entre si, nos seus setores, com seus
ção mais ampla sobre a ST, além de possibili- representantes (sindicatos, Cipa - Comissão
tar aferir a eficiência das ações de promoção/ Interna de Prevenção de Acidentes, outros)
prevenção que o empregador realiza. e/ou com os técnicos dos serviços de saúde
Por fim, os EPS podem ser também um e segurança; para refletirem não só sobre
canal para efetiva participação dos trabalha- sua situação de saúde, mas também sobre o
dores, especialmente, se os dados consoli- processo e ambiente de trabalho, a fim de au-
dados pelos EPS forem restituídos de forma xiliarem na proposição de melhorias e trans-
coletiva aos trabalhadores para que possam formação de ambiente laboral. s

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 142-154, JAN-MAR 2017


154 MENDES, E. A.; TEIXEIRA, L. R., BONFATTI, R. J.

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Recebido para publicação em agosto de 2016
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Conflito de interesses: inexistente
Suporte financeiro: não houve
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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 142-154, JAN-MAR 2017


ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE 155

Reestruturação produtiva na saúde: atuação


e desafios do Núcleo de Apoio à Saúde da
Família
Productive restructuring in health: performance and challenges of the
Family Health Support Center

Mirvaine Panizzi1, Josimari Telino de Lacerda2, Sonia Natal3, Túlio Batista Franco4

RESUMO Estudo de casos a fim de identificar estratégias para a atuação do Núcleo de Apoio
à Saúde da Família, verificando seu processo de reestruturação produtiva, bem como seus
desafios. Utilizaram-se as técnicas de análise documental, observação direta e entrevistas. Os
resultados apontam que apoio da gestão, planejamento integrado, comunicação ágil, cogestão,
reflexão sobre a prática, qualificação dos profissionais e infraestrutura adequada viabilizam a
atuação compartilhada entre profissionais. Persistem desafios, como a inadequada formação
para a prática do apoio matricial, no entanto, foi identificado um processo de reestruturação
produtiva com potencialidade para ampliar ações e qualificar o cuidado em saúde.

PALAVRAS-CHAVE Saúde da família. Atenção Primária à Saúde. Avaliação de serviços de saúde.


1 Secretaria
Gestão em saúde.
de Estado da
Saúde de Santa Catarina,
Gerência de Atenção ABSTRACT Case studies to identify strategies for the Family Health Support Center, verifying its
Básica – Florianópolis (SC),
Brasil. process of productive restructuring, as well as its challenges. Techniques of documentary analysis,
mirvainepanizzi@gmail.com direct observation and interviews were used. The results show that the support of management,
2 Universidade Federal integrated planning, agile communication, co-management, reflection on practice, qualification of
de Santa Catarina professionals and adequate infrastructure enable the shared performance between professionals.
(UFSC), Programa de
Pós-Graduação em Challenges remain such as inadequate formation for the practice of matrix support, however, a
Saúde Coletiva, Centro productive restructuring process with the potential to expand actions and qualify the health care
de Ciências da Saúde –
Florianópolis (SC), Brasil. was identified.
jtelino@gmail.com

3 Universidade Federal KEYWORDS Family healt. Primary Health Care. Health services evaluation. Health management.
de Santa Catarina
(UFSC), Programa de
Pós-Graduação em
Saúde Coletiva, Centro
de Ciências da Saúde –
Florianópolis (SC), Brasil.
sonianatal2010@gmail.com

4 Universidade Federal
Fluminense (UFF),
Departamento de
Planejamento em Saúde –
Niterói (RJ), Brasil.
tuliofranco@gmail.com

DOI: 10.1590/0103-1104201711213 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 155-170, JAN-MAR 2017
156 PANIZZI, M.; LACERDA, J. T.; NATAL, S.; FRANCO, T. B.

Introdução e as equipes têm um grande protagonismo


e também reorganizam seus processos de
O Ministério da Saúde (MS) criou, em 2008, trabalho, no espaço cotidiano, sua micro-
os Núcleos de Apoio à Saúde da Família política, dando seu conteúdo específico aos
(Nasf ), que têm como diretriz central o dispositivos protocolares e normativos.
apoio matricial em saúde para as equipes Um dos indicadores para verificar um
de referência. Este apoio tem como objetivo processo de reestruturação produtiva é a
impactar o processo de trabalho, agregando análise do processo de trabalho. Para ilus-
conhecimento e práticas à Equipe de Saúde trar esta afirmação: caso ocorra uma in-
da Família (EqSF), aumentando sua resolu- versão no uso das tecnologias de trabalho,
tividade. Por se tratar de um dispositivo que pela EqSF, através da qual haja menor uso
tem como perspectiva a mudança no modo de componentes das tecnologias duras, al-
de produzir o cuidado, potencialmente terando para maior o coeficiente das tec-
dispara um processo de reestruturação pro- nologias relacionais, como recomenda, por
dutiva, pois é capaz de alterar os produtos do exemplo, a diretriz do Acolhimento, inseri-
trabalho da própria equipe. da no Programa Nacional de Humanização
A reestruturação produtiva na saúde, (PNH) (BRASIL, 2010), isto configura um pro-
segundo Pires (1998, 2000), é caracterizada pela cesso de reestruturação. Vários elementos
incorporação de novas tecnologias, mudança podem, também, configurar a reestrutura-
na gestão do trabalho – especialmente, a ter- ção produtiva, como acontece nas relações
ceirização – e na relação entre a organização em rede estabelecidas entre trabalhadores,
do trabalho e o modelo assistencial. Atém-se na intercessão com os usuários, nos modos
aos aspectos macroestruturais que definem de estabelecer e negociar planos de
a mudança no campo do trabalho em saúde. cuidado, enfim, o cenário de produção do
Para Merhy e Franco (2009), a reestrutura- cuidado é sempre complexo, e os processos
ção produtiva é a resultante de mudanças no de trabalho têm uma grande elasticidade,
processo de trabalho, que ocorrem na reor- pois contam com certo grau de liberdade
ganização do modo de produzir o cuidado, a de ação dos trabalhadores. Neste cenário,
partir das próprias equipes, no seu cotidia- o Nasf se apresenta como um dispositivo
no. Ela pode acontecer pela incorporação que pode alterar este processo de trabalho
de novas tecnologias; por mudanças ocasio- e se propõe a uma mudança na produção do
nadas por novas propostas organizacionais, cuidado pela EqSF. A análise acontecerá,
como a ‘implantação do Programa Saúde portanto, dentro desse contexto.
da Família (PSF)’, nos anos 1990; e também Importa registrar que a reestruturação
por estruturação dos Nasf. Estes são dispo- produtiva pode se dar na direção contrária,
sitivos que, além de impactar o ambiente de ou seja, representando um processo de re-
trabalho, provocam mudanças nos processos crudescimento do modelo biomédico em
de trabalho. A reestruturação pode ocorrer, um processo de trabalho mais instrumental,
também, por iniciativas das equipes em pro- com redução dos espaços de escuta e acolhi-
mover mudança nos processos de trabalho, mento ao usuário. Não há, a priori, uma va-
reorganizando rotinas e fluxos assistenciais, loração do processo de reestruturação. Ele é
compartilhando decisões e poder técnico. singular, e vai depender sempre da ação dos
Pode-se perceber que não há uma oposição sujeitos-trabalhadores que operam os pro-
entre macro e micropolítica, o que se verifica cessos de trabalho e produção do cuidado.
é que as normas que definem a macropolí- O estudo relacionado aos efeitos do Nasf
tica interferem nos processos do cotidiano, sobre o cuidado em saúde deve considerar a
no micro. Por outro lado, os trabalhadores potência de reorganização dos processos de

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 155-170, JAN-MAR 2017


Reestruturação produtiva na saúde: atuação e desafios do Núcleo de Apoio à Saúde da Família 157

trabalho e, a partir disto, o grau de mudança objetiva. Um processo pedagógico implica-


conquistado, que sempre pode variar. do com a mudança do trabalho se coloca
Estudos sobre o processo de trabalho em como dispositivo de reorganização da pro-
saúde informam que há uma hegemonia do dução do cuidado, ou seja, pode contribuir
modelo biomédico, centrado na doença, e no para a reestruturação produtiva.
ato prescritivo do médico, caracterizando Outro aspecto importante do apoio ma-
um excessivo consumo de exames e medi- tricial diz respeito à multiprofissionalidade,
camentos. Ao mesmo tempo, as relações de o que implica a construção de projetos tera-
trabalho são hierárquicas, com valoração do pêuticos integrados, quando necessário. A
conhecimento especializado, além de me- sua execução pode contemplar atendimen-
diadas pelo alto consumo de equipamentos tos e intervenções conjuntas, troca de conhe-
e medicamentos. Para produzir mudanças cimentos e orientações com reavaliação ou
neste cenário, e o consequente aumento da reorientação de condutas, mantendo o caso
resolutividade da EqSF, o trabalho do Nasf sob os cuidados da equipe de referência. Os
deve procurar impactar, para além do co- arranjos do apoio matricial e da equipe de
nhecimento, a forma como a própria EqSF referência buscam construir um espaço de
significa o trabalho e o cuidado no cotidiano. interação de saberes e fazeres entre diversos
Sendo assim, é fundamental um processo pe- profissionais, proporcionando uma amplia-
dagógico, que impacte o plano da cognição e ção do campo comum de conhecimento, o
também da subjetivação, isto é, forme novas trabalho em redes, potencializando o traba-
subjetividades, que representam um dos lho e a resolutividade. Este campo comum
fatores de mudança dos sujeitos e, por con- deve possibilitar que a identidade construída
sequência, do processo de trabalho. Novos pelo núcleo de saber de cada profissão possa
sentidos são fundamentais para produzir se abrir para a atuação multiprofissional com
novas práticas de cuidado. interdisciplinaridade (CUNHA; CAMPOS, 2011).
O apoio matricial em saúde é uma me- A criação do Nasf aponta um movimento
todologia de trabalho e um arranjo organi- do Ministério da Saúde para a reestruturação
zacional (CAMPOS; DOMITTTI, 2007) que objetiva produtiva do cuidado na Atenção Primária à
assegurar retaguarda especializada, clíni- Saúde (APS), apostando em processos rela-
co-assistencial e técnico-pedagógica, para cionais, interdisciplinares e de corresponsa-
as equipes de referência. A EqSF, equipe de bilização para um trabalho integrado entre
referência na Estratégia Saúde da Família as equipes, de apoio e referência, associando
(ESF), tem responsabilidade pela condução o trabalho e a educação no cotidiano. Frente
de casos individuais, familiares ou comuni- ao caráter inovador do Nasf, estudos que
tários de forma longitudinal. E este traba- visam ao conhecimento mais aprofunda-
lho nos cenários de práticas entre a EqSF do são necessários, uma vez que as melho-
e o Nasf, que são as Unidades de Produção rias nos processos de produção do cuidado
do Cuidado, se transformam também em poderão ter reflexos significativos na quali-
Unidades de Produção Pedagógica na dade e na resolutividade do atendimento à
medida em que o cotidiano do trabalho população.
envolve um inexorável processo de ensino- O objetivo deste estudo é identificar estra-
-aprendizagem (FRANCO, 2007). Trabalho e tégias utilizadas pela gestão e pelas equipes
educação no campo da saúde são indivisí- para viabilizar e potencializar a atuação do
veis e, por isto, o Nasf deve utilizar as fer- Nasf, verificar o processo de reestruturação
ramentas da educação permanente, que produtiva do cuidado no qual ele se insere,
melhor se adéquam a este tipo de formação e os desafios que persistem para sua integra-
no trabalho, para ativar as mudanças que ele ção à APS.

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158 PANIZZI, M.; LACERDA, J. T.; NATAL, S.; FRANCO, T. B.

Métodos profissionais das EqSF, 60 min para profissionais


do Nasf e 90 min para gestores.
Estudo de casos múltiplos, realizado em um Foi realizada a análise de conteúdo (BARDIN,
estado do Sul do País, no período de março 2011), que considerou o exame de qualidade e per-
a setembro de 2015, com dois casos conside- tinência das respostas em relação à pergunta, a
rados implantados em uma análise prévia de convergência das respostas entre os entrevista-
implantação do Nasf. A análise de implantação dos, o mapeamento e as observações, a extração
envolveu três Nasf, um de cada modalidade, de trechos das respostas e a síntese das observa-
selecionados por critérios de credenciamento, ções. As informações dos documentos, registros,
desempenho e composição da equipe, e envol- entrevistas e diário de campo foram decompos-
veu entrevistas com profissionais das EqSF, do tas e agregadas de acordo com os seguintes eixos
Nasf e seus gestores; análise documental; e ob- temáticos: constituição e institucionalização
servação direta nas Unidades Básicas de Saúde do Nasf; planejamento e articulação; apoio às
(UBS) vinculadas. Nesta análise, dois casos equipes de referência; e resultados da atuação.
foram considerados implantados e um parcial- Procedeu-se à triangulação das entrevistas com
mente implantado. as observações de campo e os documentos anali-
No presente estudo, que envolveu dois Nasf, sados, a fim de contribuir com a validade interna
os procedimentos utilizados para a coleta dos do estudo (MINAYO, 2010).
dados incluíram: i) análise de documentos rela- As secretarias municipais de saúde autoriza-
cionados ao Nasf nos municípios: projeto para ram formalmente a realização da pesquisa. Este
implantação, Planos Municipais de Saúde, pro- trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em
tocolos elaborados, relatórios de planejamento e Pesquisa com Seres Humanos da Secretaria
programação de ações; ii) observação direta nas Estadual de Saúde, com parecer nº 674.338,
UBS, para verificar os aspectos estruturais, orga- de 05/06/2014, de acordo com a Resolução nº
nizacionais e de operacionalização do trabalho 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde.
do Nasf em conjunto com as EqSF, registrados
em diário de campo; e iii) entrevistas com gesto-
res e profissionais do Nasf e das EqSF. Resultados e discussão
As entrevistas ocorreram em lugares reser-
vados, no ambiente de trabalho, de acordo com Os resultados e a discussão estão estrutura-
escolha e disponibilidade dos profissionais, e dos em três blocos: caracterização dos casos;
seguiram roteiro pré-elaborado e testado, com estratégias de atuação; e desafios. Ressalta-se
leitura prévia do Termo de Consentimento que o referencial do apoio matricial perpassa
Livre e Esclarecido. Foi respeitado o anonimato, todos os eixos, pois se constitui em aspecto
nomeando-se os informantes como entrevistado transversal na atuação das equipes do Nasf.
seguido do número da entrevista (En). Foram 21
entrevistas: 2 gestores municipais (secretários Caracterização dos casos
municipais de saúde), 2 coordenadores da APS,
8 profissionais do Nasf – fisioterapeuta (2), psi- O quadro 1 sintetiza as principais caracterís-
cóloga (2), nutricionista (1), fonoaudióloga (1), ticas identificadas nos casos configurados
farmacêutica (1), educador físico (1) – e 9 pro- como de modalidades 1 e 2. O município do
fissionais das EqSF, 1 de cada equipe apoiada, Caso 1 (C1) possui uma UBS com horário
indicados pela gestão – médico (3), enfermeiro estendido e tem referência em municípios
(4), técnico de enfermagem (1), cirurgião-den- próximos para urgências, emergências e in-
tista (1). As entrevistas foram gravadas em áudio, ternações hospitalares. O município do Caso
transcritas e registradas em planilha eletrôni- 2 (C2) conta com Hospital de Pequeno Porte
ca. Tiveram média de duração de 40 min para e pronto atendimento 24h.

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Reestruturação produtiva na saúde: atuação e desafios do Núcleo de Apoio à Saúde da Família 159

Quadro 1. Principais características dos casos estudados, 2015

Caso 1 (C1) Caso 2 (C2)


Característica
Modalidade I Modalidade II
Data da criação do Nasf Março de 2010, na Modalidade II; e em Setembro de 2012
abril de 2014, migração para a Moda-
lidade I
Categorias profissionais Psicólogo (1); fisioterapeuta (1); nutri- Psicólogo (1); fisioterapeuta (1);
cionista (1); e farmacêutico (2) nutricionista (1); educador físico
(1); e fonoaudiólogo (1)
Total de horas semanais dos profis- 200h (todos com 40h semanais) 120h (todos com 20h semanais)
sionais
Faixa etária dos profissionais Entre 24 e 36 anos Entre 23 e 38 anos
Gênero dos profissionais Feminino (4); masculino (1) Feminino (5); masculino(1)
Vínculo contratual dos profissionais Concursados; emprego público (Conso- Concursados; estatutários
lidação das Leis do Trabalho – CLT)
Existência de Plano de Cargos, Car- Não Sim
reiras e Salários incluindo profissio-
nais Nasf
Número de profissionais com pós- 4 (80%) 1 (17%)
-graduação em Saúde Coletiva ou
afim
Número de Equipes de Saúde da 6 3
Família existentes
Número de Equipes de Saúde da 6 3
Família vinculadas ao Nasf
Número de Unidades Básicas de 4 1
Saúde em que atuam as Equipes de
Saúde da Família
Horário de trabalho compatível com Sim Sim
o das Unidades Básicas de Saúde e
Equipes de Saúde da Família
População do município (Instituto 18.827 habitantes 6.366 habitantes
Brasileiro de Geografia e Estatística –
IBGE, 2015)
Índice de Desenvolvimento Humano 0,769 0,700
Municipal (IDH-M)

Nos dois casos, estão disponíveis elemen- à atenção secundária. São disponibilizados
tos organizacionais essenciais, tais como: materiais de apoio e equipamentos para
definição de áreas de abrangência, carro grupos, bem como para atividades coletivas,
oficial para mobilidade entre as UBS e nos educativas e terapêuticas. Os profissionais
territórios, espaço físico exclusivo para a do Nasf são liberados para especialização,
equipe do Nasf, cronograma atualizado de capacitações, eventos e cursos em temas
uso dos espaços físicos nas UBS e nos terri- pertinentes, com auxílio de custo e sem ne-
tórios, internet, rede de serviços de saúde in- cessidade de compensação de horas.
formatizada, prontuário eletrônico, registro Para identificar as estratégias de atuação,
das ações em prontuários comuns, disponi- foram criados quatro eixos temáticos:
bilidade de uso de e-mail e telefone, e acesso constituição e institucionalização do Nasf;

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160 PANIZZI, M.; LACERDA, J. T.; NATAL, S.; FRANCO, T. B.

planejamento e articulação; apoio às equipes Para uma equipe multiprofissional atuar


de referência; e resultados da atuação, apre- de forma interdisciplinar, é preciso o reco-
sentados a seguir. nhecimento do outro, um encontro dialoga-
do, cooperação, valorização do conhecimento
A) CONSTITUIÇÃO E INSTITUCIONALIZAÇÃO técnico, relações mais horizontais e menos
DO NASF desgastantes, e trabalho coeso em torno de
um objeto comum. A identificação com o tra-
Administrativamente, a constituição da balho e o sentido de pertencimento ao grupo
equipe multiprofissional do Nasf deve ser podem gerar maior mobilização de suas ha-
definida pelos gestores municipais, a partir bilidades técnicas e capacidade de interação
das demandas identificadas em conjunto (SILVA; MOREIRA, 2015).
com as EqSF, e varia de acordo com as ne- A integração entre profissionais requer
cessidades do território (BRASIL, 2012, 2014). O tempo e investimento, pois se refere ao
aporte de recurso aos municípios foi o fator campo dos valores e do diálogo entre as
indutor para a criação do Nasf identificado competências e a capacidade de entender
nos casos dos municípios aqui relatados. a autonomia como relação entre os saberes
No C1, os profissionais foram contratados profissionais, na escolha da melhor prática,
para atuar no Nasf, e no C2, foram cadastra- dos limites de sua ação frente à necessidade
dos profissionais que já atuavam na rede. do usuário e no campo comum de atuação
Como a experiência da maioria dos profis- (SILVA; MOREIRA, 2015).
sionais era em atendimentos individuais, No Nasf, momentos de convivência juntos,
foram necessárias mudanças no processo em tempo e espaço, são ainda mais impor-
de trabalho, pois o Nasf opera em equipe. A tantes, tendo em vista que o local de atuação
simples presença do profissional de apoio dos profissionais é o território das EqSF. Em
não é suficiente para o desenvolvimento de ambos os casos, atenta a esses aspectos e
práticas compartilhadas. É necessária uma necessidades, a opção da gestão foi destinar
revisão das práticas em direção ao compar- um espaço físico exclusivo para a equipe do
tilhamento e à construção de novas formas Nasf:
de produção do cuidado, que privilegiem o
conhecimento e a atuação interdisciplinar, Nossa sala é nosso porto seguro. Aqui nos encon-
o que pressupõe a existência de um objetivo tramos, nos apoiamos, trocamos ideias, experi-
comum e a disponibilidade para o diálogo e o ências, demandas e discutimos casos. Aqui, nos
trabalho compartilhado (SILVA ET AL., 2012). sentimos uma equipe, podemos pedir auxílio e
A estratégia de gestão do trabalho utili- aprender com o outro. (E5).
zada nos dois casos foi instituir momentos
de encontro, reflexão, discussão, definição A instituição de uma coordenação para
de prioridades e da forma de atuação. Esses o Nasf conferiu maior autonomia e fortale-
encontros prévios, no início dos trabalhos, ceu o sentido de equipe do grupo de profis-
foram fundamentais para a criação da iden- sionais. Outro aspecto fundamental para o
tidade de equipe: início dos trabalhos foi a decisão de limitar
os atendimentos individuais, destinando a
[…] cada profissional tinha uma forma de condu- maior parte do tempo para apoio pedagógico.
zir seu trabalho. Foi fundamental a gente ter um Nos dois casos, a incorporação do Nasf
tempo para se conhecer, criar vínculo, entender o foi indutora de mudanças na organização
que era Nasf e nossa atuação a partir dali, como do processo de trabalho da APS. No C1, a
grupo que se apoia para poder apoiar. (E4). implantação do Nasf ocorreu no momento
em que a APS estava se reorganizando, com

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Reestruturação produtiva na saúde: atuação e desafios do Núcleo de Apoio à Saúde da Família 161

apoio e condução da gestão. Como exemplo, o Nasf. Nas atividades coletivas, estão presentes
os profissionais do Nasf, percebendo que as prefeito, vice-prefeito, primeira-dama, contem-
enfermeiras das EqSF eram responsáveis plando a parte política. A população passou a
pela condução e organização dos processos participar mais. (E13).
de trabalho, criaram encontros mensais para
trocas de experiências e vinculação. Na organização ou reorganização do modo
de operar o cuidado em saúde, devem estar
As enfermeiras desenvolviam seu trabalho iso- envolvidos aqueles que produzem as neces-
ladas. Percebemos várias coisas legais que elas sidades de saúde, os que dominam certos
faziam, mas ninguém sabia. Iniciamos um encon- saberes e práticas e operam sobre estas
tro mensal, com pauta livre, incentivando a troca. necessidades, mediados por aqueles que
Isso facilitou refletir várias ações que davam cer- ocupam espaços institucionais de governo
to e ajudou a uniformizar a atuação da ESF. (E3). legitimados para conduzir o processo.
A presença do Nasf nos Planos Municipais
No C2, a indução de mudanças ocorreu de Saúde (PMS) e nas pautas dos Conselhos
no momento da troca de gestão, em 2013, de Saúde (CS) contribui para sua institucio-
quando o modelo de atuação para a APS foi nalização e sustentabilidade, e foi identifi-
redesenhado. Até então, a assistência à saúde cada em ambos os casos. No C1, o Nasf tem
prestada à população era centrada na con- espaço de destaque no PMS vigente, ocu-
sulta médica e em prescrições. A nova gestão pando 6 das 30 páginas do corpo do plano.
construiu, com os trabalhadores, uma visão Os protocolos elaborados pelo Nasf foram
para o município: ‘qualidade de vida a partir aprovados no CS:
de uma tríade: alimentação saudável, ativi-
dade física e bem-estar psicológico’. Todas as Os protocolos trazem a forma como o Nasf
ações tiveram esse embasamento e direção. está estruturado, dá a direção. Se amanhã
Uma estratégia para suscitar o sentido de chegar um novo profissional, terá que seguir
responsabilidade, pertencimento e colabo- a orientação. (E6).
ração foi nomear dois profissionais da rede
como coordenadores de cada atividade, com
temas e ações sistemáticas. A resistência de B) PLANEJAMENTO E ARTICULAÇÃO
alguns profissionais foi uma dificuldade que
precisou ser superada: Os espaços coletivos possibilitam encontros
e constroem oportunidades para a análise
De início, houve muitas dificuldades: a mudança e a tomada de decisão coletiva sobre temas
na forma de trabalhar, entender o que era o Nasf, relevantes. A realização de planejamento
por onde começar, criar os programas, o conven- conjunto é importante espaço coletivo e de
cimento dos profissionais, trabalhar e neutralizar cogestão, com a função de também organizar
a resistência dos médicos (houve demissões). Fa- o trabalho compartilhado e criar condições
zer com que todos visualizassem onde queríamos para a colaboração na ESF.
chegar. (E13) Os temas da cogestão e da democracia
organizacional são defendidos por Cunha
A decisão política de que o Nasf seria a e Campos (2011) como fundamentais para a
estratégia para reorganizar o processo de proposta de equipe de referência e apoio
trabalho na Atenção Básica (AB) é destaque matricial. A cogestão implica o exercício
no C2: compartilhado do governo, de um serviço
ou programa, com coparticipação em todas
O prefeito quer que a população entenda o que é as etapas. A democracia organizacional

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162 PANIZZI, M.; LACERDA, J. T.; NATAL, S.; FRANCO, T. B.

depende da instituição de sistemas de co- C2 é destinar parte do incentivo finan-


gestão e da construção de espaços coletivos, ceiro federal e estadual, e todo o recurso
objetivando compartilhar a gestão com as do Programa de Melhoria do Acesso e da
equipes de trabalho. Qualidade (PMAQ) para custear material de
Nos dois casos, foi identificada a reali- apoio às atividades educativas, preventivas
zação de planejamento anual para a APS e para a aquisição de equipamentos e mate-
pactuado em conjunto, entre Nasf, EqSF e riais necessários aos atendimentos específi-
gestão, com reavaliação periódica. Esse pla- cos. “Esse é o diferencial aqui, o recurso fica
nejamento norteava todas as ações e refletia na saúde e temos autonomia para definir seu
um movimento em busca da democracia uso. Prevenção não é caro e funciona” (E17).
organizacional. Nos dois casos, o planejamento é assumi-
No C1, o planejamento incluía todas as do como um processo contínuo e dinâmico:
atividades do Nasf. As ações coletivas e de
grupo foram pactuadas para o município a Estamos sempre planejando: no planejamento
partir de um diagnóstico inicial da situação anual, que tem reavaliação semestral; nas reuni-
de saúde e cada EqSF fez adesão de acordo ões semanais de equipe, do Nasf; e nos encontros
com suas necessidades. Era organizado um informais. (E15).
cronograma anual para atendimentos indi-
viduais e agenda de reuniões com a EqSF. No C2, foram elaborados protocolos de
A programação continha registro detalhado atuação e fluxo nas áreas de fisioterapia e
das ações: objetivos, público-alvo, periodi- saúde mental. Isto também está acontecen-
cidade, responsáveis, atividades, recursos do na nutrição. Os protocolos organizam,
necessários e profissionais participantes. As direcionam e comprometem os diferentes
avaliações ocorriam durante as reuniões do atores para o cuidado e dão visibilidade ao
Nasf com a EqSF ou em encontros para essa processo articulado entre Nasf, EqSF e ser-
finalidade, com inclusão de ações ou adapta- viços especializados.
ções necessárias. O monitoramento faz parte do processo
de trabalho das equipes. Especialmente no
O Nasf faz o elo entre todas as equipes, melho- C1, o PMAQ assumiu importante papel de
rou o planejamento, dando uma linha geral. Há mobilizador na definição de indicadores,
um consenso entre as equipes, hoje: como atuar, informações e condutas. No C2, o sistema
como colaborar, como trabalhar juntos. E isso, o de informação estava organizado de forma
Nasf consolidou [...]. (E2). a gerar indicadores de monitoramento da
produtividade e de encaminhamentos do
No C2, as ações também eram planejadas Nasf. Nos dois casos, o acompanhamento
anualmente, contendo todas as atividades dos grupos e das atividades coletivas era re-
previstas, inclusive as intersetoriais. Foram gistrado, e sua evolução era discutida com a
identificadas 26 atividades, com registro de EqSF. Ambos estavam em processo de mi-
objetivos, público-alvo, indicação de coorde- gração para o software e-SUS, que passará a
nadores e de participantes. Há um programa incorporar o registro das ações do Nasf. Ter
norteador, denominado Meses Coloridos, no uma linha de condução, dada pelo planeja-
qual todo mês um tema diferente associado a mento e monitoramento das ações, foi iden-
uma cor é trabalhado nos espaços de atuação tificado como essencial para o trabalho.
e no acolhimento dos usuários na UBS, que O sucesso na adoção de tecnologias re-
recebe decoração e customização adequada lacionais está ligado à disposição dos pro-
a cada tema e cor. fissionais, à flexibilização de interesses
Uma estratégia adotada pela gestão do compartilhados, à postura de acolher as

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Reestruturação produtiva na saúde: atuação e desafios do Núcleo de Apoio à Saúde da Família 163

solicitações da equipe de referência, bem às EqSF, na discussão de casos, temas, como


como à condução do processo de interação, um processo de educação permanente, de
de modo a evitar conflitos (MATUDA ET AL., 2015). troca de informação, de conhecimentos e até
A reunião de EqSF é um espaço sistemá- mesmo de decisões.
tico recomendado pelas diretrizes para a in-
teração entre a própria EqSF e o Nasf (BRASIL, Conversamos o tempo todo, acabamos discutin-
2014). Sua operacionalização foi observada de do casos, assuntos do trabalho; às vezes, decidin-
forma distinta nos dois casos. do o que fazer, como encaminhar um caso, em
No C1, os profissionais do Nasf participa- conversas na cozinha, nos corredores, no carro.
ram mensalmente das reuniões de EqSF, até (E12).
o início de 2015. Com a mudança de gestão,
essa participação foi condicionada a convite, A articulação com outros serviços e
sob a alegação de excesso de reuniões. Essa setores é uma estratégia amplamente
decisão foi corroborada por alguns médicos, adotada nos casos para responder à comple-
que acham inoportuno discutir casos, nas xidade de demanda dos usuários e da comu-
reuniões de equipe, na presença das Agentes nidade, bem como para estabelecer uma rede
Comunitárias de Saúde (ACS). Observou-se de apoio mútuo. A comunicação é facilitada
uma importante redução da participação do pelas gestões, o que demonstra o processo de
Nasf nas reuniões. consolidação de uma cultura da presença da
ESF nas atividades municipais, muitas vezes,
Está fazendo falta participar das reuniões de a partir do Nasf. Esta articulação amplia o
equipe. Na avaliação do final de ano, vamos de- campo de atuação da ESF, traz maior apro-
fender novamente nossa posição de participar priação do território e facilita o itinerário do
das reuniões. (E3). usuário pelos serviços. Identificar necessi-
dades de outros setores ou serviços facilitou
a articulação e trouxe utilidade para as ações.
Faz falta a discussão e o planejamento em con- Além da assistência social e da educação, que
junto com Nasf, que acontecia nas reuniões de mais tradicionalmente se articulam, tudo
equipe. (E7). isso foi verificado com esportes, turismo e
lazer, obras, agricultura, cultura. Com outros
No C2, não há reunião de equipe em se- serviços de saúde também foi verificada boa
parado. Tanto a EqSF quanto o Nasf parti- comunicação. O uso de espaços e ações já
cipam da reunião geral da UBS, que ocorre existentes potencializa recursos e facilita
semanalmente. Quando identificada alguma proporcionar ao usuário uma atenção mais
necessidade específica, são promovidos en- integral.
contros com o Nasf ou parte dele.
Merhy (2015) chama a atenção para o uso Fizemos um mapeamento das atividades que já
de espaços informais como possibilidade de existem na cidade e nos articulamos para atuar
encontro e processo de educação permanen- em conjunto, ampliando nosso campo de atua-
te, podendo ocorrer como roda de conversa ção. (E20).
no café, no corredor, em qualquer espaço
criado pelo grupo. Estas conversas não Mecanismos ágeis de comunicação fa-
pedem licença para o organograma oficial ou cilitam a integração entre as equipes, bem
para a hierarquia da organização, e ocorrem como apoiam a situações urgentes e im-
no cotidiano. previstas. Observou-se facilidade para a
Nos dois casos, essa prática foi identifi- marcação de reunião específica, conversas
cada e ocupa lugar central no apoio do Nasf informais, contatos por e-mail ou telefone e

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164 PANIZZI, M.; LACERDA, J. T.; NATAL, S.; FRANCO, T. B.

uso do prontuário eletrônico, que tem acesso ou no acolhimento na UBS, com escolha do
e registro de todos os profissionais de nível profissional pelo usuário.
médio e superior. A visita domiciliar conjunta ou individu-
al está na rotina dos casos. É reconhecida e
É muito boa a comunicação com o Nasf. A gente aceita pela população, com destaque para a
chama e já respondem por telefone ou, no máxi- fisioterapia, a fonoaudiologia e a farmácia.
mo, em 24h, por e-mail, se estão em atendimen- “Eles [usuários] dão mais importância para o
to em outra unidade. (E12). que a gente orienta, valorizam a ida até lá, a
atenção recebida, para além da equipe de SF”
A articulação entre os profissionais e (E5).
destes com a gestão é vista como um pro- A cooperação interprofissional, inerente
cesso consolidado. Relatos apontam que os à atuação do Nasf, pode ser definida como o
entrevistados perceberam a inviabilidade do conjunto de relações e interações que acon-
trabalho da AB sem essa articulação e inte- tecem entre profissionais que trabalham
gração com o Nasf. juntos, no âmbito de equipes de saúde. É um
processo complexo, de múltiplos determi-
Não há mais como trabalhar sem esta articu- nantes, voluntário e dinâmico, que implica
lação. (E14). constante negociação (D’AMOUR ET AL., 2005). O
atendimento compartilhado não é um atri-
Nasf vem para auxílio, melhora a atuação em to- buto comum da formação profissional e seu
das as atividades por melhorar a visão da equipe. aprendizado tem sido conduzido no coti-
Teríamos mais dificuldades para resolver deter- diano, demandando tempo e disposição dos
minadas situações. (E12). profissionais.
Campos e Domitti (2007) alertam que, de
alguma forma, compartilhar práticas pode
C) APOIO ÀS EQUIPES DE REFERÊNCIA expor fragilidades individuais, tanto técni-
cas quanto relacionais, o que pode ser um
No escopo de atuação do Nasf estão as ações entrave para a adesão a este tipo de trabalho.
realizadas de forma compartilhada com a Nos dois casos, o atendimento compartilha-
EqSF ou na presença do usuário. O apoio do presencial acontece de forma esporádica,
assistencial se materializa nos atendimentos com a resistência de alguns médicos. A inter-
individuais clínicos e coletivos e na visita do- consulta e a terapia concomitante são mais
miciliar. O apoio técnico pedagógico pode se frequentes e valorizadas pelos profissionais.
dar em discussões de casos, reuniões de ma- “Tem equipe que não consegue pensar em dois
triciamento, projetos terapêuticos, atendi- ou três profissionais dentro do consultório com o
mentos compartilhados, atividades coletivas paciente. Não consegue administrar isso” (E4).
e educativas, qualificações de encaminha- A discussão de casos e a elaboração de pro-
mentos, articulações intersetoriais e com a jetos terapêuticos são finalidades da atuação
rede de atenção à saúde. Todas estas ações compartilhada. Os profissionais entrevista-
devem estar pautadas na interdisciplinarida- dos referiram que o Nasf ampliou a prática
de e na corresponsabilização. de discussão de casos, incorporando-a à
No apoio assistencial, um dispositivo rotina. Oliveira e Campos (2015) referem que o
importante de integração e corresponsabi- usuário deve poder participar da elaboração
lização é a regulação, pela EqSF, dos enca- do seu projeto terapêutico, sendo, para isto,
minhamentos para o Nasf (BRASIL, 2014). No C1, necessária a existência de relações dialógi-
a regulação para o Nasf é feita pela EqSF, e cas e comunicativas entre os atores.
no C2, pode ocorrer por solicitação da EqSF Estudos têm identificado dificuldades na

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Reestruturação produtiva na saúde: atuação e desafios do Núcleo de Apoio à Saúde da Família 165

elaboração do Projeto Terapêutico Singular território. Além disso, os usuários produzem


(PTS) (HORI; NASCIMENTO, 2014; LANCMAN ET AL., 2013), movimentos, elaboram saberes, constroem e
o que foi corroborado nos casos estudados. partilham cuidados, o tempo todo. Franco e
Os profissionais referem dificuldades de Merhy (2007) também discutem a constitui-
compreensão e operacionalização das dire- ção de uma rede que opera com base no tra-
trizes ministeriais neste item. No C1, para balho vivo em ato e nas múltiplas conexões
facilitar a apropriação, um formulário foi possíveis, tratando cada caso como um novo
criado para o registro de todas as etapas do cuidado a ser produzido, de forma singular.
PTS. Com a diminuição da participação do Foi possível identificar, nos casos, a cons-
Nasf nas reuniões de EqSF, essa prática tem tituição de redes singulares de cuidado à
diminuído progressivamente, configurando a saúde. Elas se dão a partir do protagonismo
necessidade de ser incorporada como rotina dos trabalhadores da saúde e são construídas
na ESF. Atualmente, acontece em espaços in- nos cuidados pensados para cada usuário ou
formais de conversas. O C2 elabora PTS em grupo de usuários. Verificou-se uma série
espaços informais, e geralmente envolve um de composições, que estão na dependência
profissional da EqSF e um ou dois do Nasf. da necessidade do usuário e da apropriação
Não está na rotina reunir toda a EqSF para dos serviços existentes pelos profissionais.
este fim, como preconizado pelo MS. Funcionam por conexão e fluxos entre pro-
A oferta de grupos terapêuticos e educa- fissionais, equipes e serviços, embasados ou
tivos foi a ação pedagógica de maior cresci- não em protocolos.
mento após a incorporação do Nasf. Foram
identificados 11 grupos em funcionamento Procuramos, hoje, olhar o que traz a pessoa ao
no C1 e 15 grupos no C2. As categorias fisio- serviço, que outros recursos já usa e acredita. E
terapia e psicologia se destacam nos grupos pensar o melhor cuidado para ela, pois hoje te-
terapêuticos. Os problemas ortopédicos e de mos muito mais a ofertar, para além das consul-
coluna, em sua maioria, são resolvidos pela tas. (E20).
fisioterapia em grupo. A psicologia concentra
sua abordagem em pacientes que necessitam Essas redes geralmente não têm visibili-
de espaços de escuta e conversa, abordando dade nem o reconhecimento dos gestores,
temas como: perda por óbito, separação de mas operam com forte intensidade no dia a
casais, desemprego, uso de álcool e outras dia dos serviços de saúde (FRANCO; MERHY, 2007).
drogas na família, e violência familiar. Os Os modelos de atenção à saúde, nos dois
marcadores de condições crônicas e suas casos, incorporaram aspectos de vários
comorbidades são trabalhados em conjunto modelos, como ações em favor da melhoria
pelos educadores físicos e nutricionistas, com da qualidade de vida dos usuários e o aten-
abordagem de mudança de estilo de vida. dimento a todos, com maior atenção aos que
Espera-se que o Nasf colabore na con- estão em maior risco ou em sofrimento. A
tinuidade do cuidado do usuário e nas vigilância das situações de saúde nos territó-
funções de coordenação e integração dos rios e a preocupação com o processo de tra-
serviços. Merhy et al. (2014) consideram a balho contribuem para atender à complexa
constituição de redes vivas de cuidado, que demanda da AB.
podem emergir em qualquer ponto sem ter
que obedecer a um ordenamento lógico D) RESULTADOS DA ATUAÇÃO
das redes de atenção. A rede formal pode
ser disparadora, mas será atravessada por Na percepção dos profissionais entrevis-
outras redes informais. Existem, também, tados, vários agravos tiveram redução de
as redes intersetoriais, que estão vivas no encaminhamento e estão sendo tratados e

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166 PANIZZI, M.; LACERDA, J. T.; NATAL, S.; FRANCO, T. B.

acompanhados na AB. Apontaram diminui- Com a vinda do Nasf, mudou a percepção do


ção dos encaminhamentos para psiquiatria, que a gente quer e onde quer chegar. Até então,
neurologia, neuropediatria, endocrinologia cada um trabalhava na sua função sem objetivo
e ortopedia. Também relataram redução de comum... Hoje, a equipe está focada no enten-
demandas para aparelhos auditivos, testes dimento da saúde como um todo e em onde se
da orelhinha, exames de ressonância. As in- quer chegar com aquele usuário, incorporando o
ternações são percebidas como em declínio, contexto de vida das pessoas. Antes, vários pro-
na média geral e nas causas sensíveis à APS. fissionais atendiam o mesmo paciente e nunca
O uso de medicamentos para hipertensão, houve troca sobre ele. (E13).
diabetes, controle de colesterol, além dos
ansiolíticos e antidepressivos também foi A satisfação do profissional de saúde com
reduzido, na percepção dos profissionais o trabalho foi identificada em vários relatos.
entrevistados. A existência de boas condições de trabalho,
Os profissionais relatam que as atividades participação no planejamento e nas deci-
de grupo ampliam o cardápio de ofertas da sões, e o reconhecimento da gestão e dos
UBS, possibilitam atenção a maior número usuários facilitam a fixação dos profissionais
de usuários em condições semelhantes, pre- e suscitam disposição para o crescimento
vinem comorbidades, melhoram a qualidade profissional.
de vida, diminuem o uso de medicamentos,
evitam encaminhamentos e diminuem a pre- Fazer um bom trabalho e resolver problemas ‘tá
sença dos usuários na UBS. fazendo diferença na vida dos usuários e nosso
A avaliação das listas de espera para lado profissional. O retorno das ACS e dos usuá-
apoio do Nasf reduziu em 50% a demanda. rios faz diferença. (E21).
Vários casos que precisam de especialistas
continuam na fila de espera, mas algumas
áreas, como a fisioterapia, a psicologia, a Desafios
nutrição e a fonoaudiologia, contam com
o acompanhamento do usuário pelo Nasf A trajetória de integração dos profissionais
enquanto aguardam a consulta especia- do Nasf na ESF, nos casos estudados, foi con-
lizada, minimizando o agravamento da siderada exitosa, mas permanecem desafios
situação, ofertando cuidado e mantendo que merecem destaque. As diretrizes para
a vinculação com o usuário. “Os profissio- o trabalho do Nasf são identificadas como
nais Nasf agregam valor à equipe; os usu- abrangentes e pouco claras, o que dificulta
ários valorizam mais do que só a atenção sua apropriação, por parte dos profissionais
pela equipe” (E6). e gestores. Outros estudos (HORI; NASCIMENTO,
Na percepção dos entrevistados, a assis- 2014; LANCMAN; BARROS, 2011) também levantaram
tência realizada pelo Nasf ampliou a resolu- essa dificuldade, que pode atrapalhar a in-
bilidade da APS. “O atendimento individual serção da lógica da colaboração interprofis-
resolve questões que a equipe não daria conta sional na ESF.
e evita encaminhamentos” (E15). A forma de atuação das equipes do Nasf
Outro reflexo importante da atuação do e da EqSF é definida com diferentes prio-
Nasf foi a reorganização do processo de tra- ridades e tempos previstos para as ativida-
balho, possibilitada pela disponibilidade e des, apontando a necessidade de ajustes na
pelo engajamento dos gestores e profissio- atuação e nas diretrizes nacionais para a
nais da saúde, que estavam voltados à pres- ESF, aspecto também evidenciado em outros
tação de um cuidado integral e de qualidade, estudos (MATUDA ET AL., 2015; HORI; NASCIMENTO, 2014;
conforme sintetiza o relato a seguir: LANCMAN ET AL., 2013).

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Reestruturação produtiva na saúde: atuação e desafios do Núcleo de Apoio à Saúde da Família 167

A discussão de casos foi assimilada e está Conclusões


inserida na rotina, na maioria das vezes por
meio de conversas entre profissionais. Como Este estudo considera a percepção dos en-
demonstrado em estudos (HORI; NASCIMENTO, trevistados gestores e profissionais do Nasf
2014; LANCMAN ET AL., 2013), persistem dificulda- e das EqSF. Para contribuir com a validade
des na elaboração do PTS de acordo com a interna, foram utilizadas múltiplas fontes
forma recomendada pelas diretrizes. de evidência e a triangulação na análise de
A resistência de alguns profissionais dados. Na análise das informações, houve
para uma atuação colaborativa prejudica o poucas divergências, com diferenças de opi-
apoio matricial, evidenciando a necessida- niões pessoais. A dinâmica da leitura, indo
de de mudanças na formação profissional, das informações para as categorias e vice-
de modo a estimular o trabalho em equipe. -versa, também possibilitou melhor compre-
Esse aspecto pode estar relacionado às dife- ensão da intervenção. Foi possível identificar
rentes culturas das profissões. As estratégias um conjunto de estratégias que contribuí-
voltadas à democratização dos processos de ram para uma atuação compartilhada entre
cogestão podem gerar conflitos relacionados o Nasf e a EqSF, bem como alguns desafios
a disputas de poder e diferentes conceitua- que persistem à sua integração com a APS.
ções de saúde-doença, valores e contextos de O Nasf, nos casos estudados, foi partici-
aprendizagem. pante ativo na reorganização dos processos
A demora nas portarias de credencia- de trabalho na ESF. Esse processo decor-
mento do Nasf e no repasse dos recursos, reu da mudança no modo de trabalho dos
por parte do MS, dificulta a gestão do pro- profissionais, caracterizado principalmen-
cesso. Os gestores apontam como desafio te pela qualificação do trabalho em redes,
à APS a insuficiência no financiamento e tanto entre serviços quanto na microrrede
a dificuldade de garantir acesso oportu- entre os trabalhadores da EqSF; pela intera-
no às consultas e aos exames especiali- ção entre saberes e práticas, aumentando a
zados, principalmente em municípios de multiprofissionalidade; e pela maior centra-
pequeno porte. Os casos estudados, além lidade das tecnologias relacionais. O apoio
de especialistas na rede, utilizam consór- no cuidado longitudinal do usuário condu-
cios regionais e contratam institutos pres- zido pelo Nasf, assim como na integração e
tadores de serviço aos municípios. na coordenação entre serviços de saúde, e
na articulação intersetorial fortalece a ESF.
O nosso ponto fraco era a necessidade de espe- E, ainda, potencializa a criação de redes
cialidades. Já reduzimos a fila – que era de 4 mil singulares de cuidado em saúde, pensadas
pessoas – pela metade. Gastamos muito para para cada usuário ou coletivo e operacio-
garantir consultas e exames especializados, pois nalizadas a partir dos projetos terapêuticos
a PPI [Programação Pactuada e Integrada] do integrados, viabilizados pela colaboração
estado não atende à demanda. (E1). interprofissional.
A incorporação de diferentes categorias
Mudanças na gestão podem comprometer profissionais, por meio do Nasf, atuando de
a manutenção de processos essenciais ao tra- forma descentralizada junto às EqSF, aumen-
balho, demandando estratégias de minimi- tou a abrangência e a oferta de ações e facili-
zação de conflitos. A falta de um regulador tou o enfrentamento da complexa demanda
geral para todas as especialidades e exames da APS. O estudo identificou um processo de
no município e a existência de matriciadores reestruturação fecunda no modo de produ-
especialistas foram apontadas como necessi- zir o cuidado.
dades para qualificar a atenção na APS. Na articulação entre o Nasf e a EqSF,

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168 PANIZZI, M.; LACERDA, J. T.; NATAL, S.; FRANCO, T. B.

devem ocorrer tanto ações clínicas, de do Nasf e da EqSF, para atuação comparti-
cuidado especializado aos usuários, por lhada; alinhamento da formação profissional
parte dos profissionais do Nasf, a partir do com as propostas de reorganização da APS
encaminhamento e da coordenação dos pro- para o Brasil; e incorporação no cotidiano
fissionais generalistas da EqSF, quanto ações dos serviços de processos de questionamen-
de suporte técnico pedagógico, quando de- to, discussão e reflexão sobre a prática, con-
mandados pela EqSF. siderando a subjetividade e o protagonismo
Contribuem para a institucionalização e dos atores envolvidos.
a sustentabilidade do Nasf ações voltadas à A proposta do Nasf tem a potencialidade
sua formalização nos espaços institucionais de tensionar o processo de trabalho na APS,
e de deliberação de políticas públicas, bem assumindo as tecnologias relacionais como
como ações de gestão do processo de traba- orientadoras do processo de trabalho, tendo
lho voltadas à democratização das relações as tecnologias duras como subsidiárias. Para
interpessoais e à definição conjunta de obje- esta mudança nos processos de trabalho,
tivos e estratégias de atuação. além da adequação da formação e da incor-
A criação de espaços coletivos e de coges- poração de conhecimento, é necessária uma
tão, e processos ágeis de comunicação viabi- mudança na atitude dos profissionais, e, para
lizam o apoio matricial e a integração entre isto, as estratégias pedagógicas orientadas
o Nasf e a EqSF. O planejamento conjunto, pela educação permanente contribuem fun-
com acompanhamento e avaliação, é estrutu- damentalmente. Paralelamente ao processo
rante na organização dos processos de traba- de reestruturação produtiva verificado, há
lho. Estratégias de gestão do trabalho, como um processo de subjetivação, de mudança na
espaços de discussão de casos, elaboração subjetividade dos trabalhadores implicados
de projetos terapêuticos integrados, sempre com a EqSF e o Nasf, bem como a aprendiza-
que necessário, e a facilitação dos processos gem de novos modos de trabalhar o cuidado.
de educação permanente possibilitam a in- Este conjunto é o que leva, finalmente, às
terdisciplinaridade, o comprometimento e mudanças pretendidas.
a corresponsabilização nos casos estudados. Estudos em diferentes contextos e confi-
Os gestores ocupam papel fundamental gurações do Nasf são essenciais para identifi-
na definição de estratégias de organização car formas de integração da equipe de apoio
e condução de processos de democratização na APS e os resultados desta integração.
institucional, bem como na conformação do
modelo de atenção à saúde. Para isto, além
de competência, informação e comprometi- Colaboradores
mento com a qualidade em saúde, precisam
do apoio da instituição e dos governantes, PANIZZI, M. contribuiu na concepção e no
com autonomia financeira e de decisão. delineamento do estudo, na coleta, análise
Persistem desafios para a integração do e interpretação dos dados e redação do
Nasf na APS, tais como: diretrizes abrangen- manuscrito. LACERDA, J. T. e NATAL, S.
tes e tecnologias de trabalho com os quais colaboraram na concepção e no delineamen-
os profissionais e gestores não estão aproxi- to do estudo, na interpretação dos dados,
mados; necessidade de incorporar o PTS e revisão crítica e aprovação final do manus-
o atendimento compartilhado na rotina das crito. FRANCO, T. B. participou da análise e
EqSF, quando necessário; necessidade de redação, revisão crítica e aprovação final do
ajustes no processo de trabalho das equipes manuscrito. s

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Reestruturação produtiva na saúde: atuação e desafios do Núcleo de Apoio à Saúde da Família 169

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 155-170, JAN-MAR 2017


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PIRES, D. Reestruturação produtiva e trabalho em saúde
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Recebido para publicação em agosto de 2016
Versão final em fevereiro de 2017
Conflito de interesses: inexistente
______. Reestruturação produtiva e conseqüências para
Suporte financeiro: não houve
o trabalho em saúde. Rev. Bras. Enferm., Brasília, DF, v.
53, n. 2, p. 251-263, jun. 2000.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 155-170, JAN-MAR 2017


ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE 171

Estresse e qualidade de vida do cuidador


familiar de idoso portador da doença de
Alzheimer
Stress and quality of life of the family caregivers of elderly with
Alzheimer’s disease

Vanovya Alves Claudino Cesário1, Márcia Carréra Campos Leal2, Ana Paula de Oliveira Marques3,
Karolyny Alves Claudino4

RESUMO Objetivou-se analisar a relação entre o estresse e a qualidade de vida do cuidador


familiar de idosos portadores da doença de Alzheimer. Trata-se de estudo quantitativo do tipo
descritivo, realizado com 43 cuidadores familiares de idosos com Alzheimer. Esses foram sub-
metidos a uma entrevista semiestruturada, à Versão Brasileira do Questionário de Qualidade
de Vida Short-form Health Survey e ao Inventário de Sintomas de Estresse para Adultos Lipp.
Verificou-se que os cuidadores familiares de idosos apresentam condições de saúde profun-
damente afetadas, propiciando um quadro de estresse o qual está relacionado com a sua qua-
lidade de vida, em especial, nos domínios físicos, sociais e emocionais.

PALAVRAS-CHAVE Qualidade de vida. Cuidadores. Doença de Alzheimer. Família.

ABSTRACT This study aimed to analyze the relationship between stress and quality of life of
family caregivers of elderly with Alzheimer’s disease. It is a quantitative study of descriptive
type, conducted with 43 family caregivers of elderly with Alzheimer’s. These were submitted to a
semi-structured interview, the Brazilian Version of the Questionnaire Short-Form Health Survey
of Quality of Life and the Inventory of Symptoms of Stress to Lipp Adults. It was verified that
family caregivers of elderly present deeply affected health conditions, providing a stress frame
1 Universidade Federal de which is related to their quality of life, especially in the physical, social and emotional domains.
Pernambuco (UFPE) –
Recife (PE), Brasil.
vanovya@gmail.com KEYWORDS Quality of life. Caregivers. Alzheimer disease. Family.
2 Universidade Federal

de Pernambuco (UFPE)
– Recife (PE), Brasil.
marciacarrera@hotmail.com

3 Universidade Federal
de Pernambuco (UFPE) –
Recife (PE), Brasil.
marquesap@hotmail.com

4 FaculdadeMaurício
de Nassau de Caruaru –
Caruaru (PE), Brasil.
krol_307@hotmail.com

DOI: 10.1590/0103-1104201711214 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 171-182, JAN-MAR 2017
172 CESÁRIO, V. A. C.; LEAL, M. C. C.; MARQUES, A. P. O.; CLAUDINO, K. A.

Introdução auxiliem no cuidado com o idoso acometi-


do por essa doença e consigo mesmo. Dessa
Os cuidadores familiares do idoso portador maneira, poderá facilitar a orientação dos
da doença de Alzheimer, no Brasil, são sub- cuidadores familiares do paciente idoso por-
metidos a uma jornada diária incessante, tador de Alzheimer, já que o componente
repetitiva e desgastante, que envolve a rea- emocional, associado à qualidade de vida do
lização de atividades domésticas, cuidado cuidador, pode exercer impacto sobre o pro-
contínuo com o idoso, além do cumprimento cesso de cuidado.
de suas atividades empregatícias (GARCES ET AL., Este estudo teve por objetivo analisar a
2012). Esse contexto favorece a fragilização do relação entre o estresse e a qualidade de vida
cuidador e o torna mais susceptível a riscos do cuidador familiar de idosos portadores da
para sua saúde, promovendo estresse, isola- doença de Alzheimer, bem como entre cada
mento, depressão, medo e angústias, além de fase do estresse e os domínios de qualidade
comprometimento de sua qualidade de vida de vida desse cuidador.
(ALMEIDA; LEITE; HILDEBRANDT, 2009).
A literatura ainda não possui uma defi-
nição consensual sobre qualidade de vida, Métodos
pois é um complexo termo que se refere à
percepção do indivíduo sobre sua própria Trata-se de uma pesquisa de abordagem
vida, sendo uma construção subjetiva e mul- quantitativa do tipo descritiva, a qual cons-
tidimensional. Nessa perspectiva, envolve titui parte de uma dissertação apresen-
fatores culturais, necessidades espirituais, tada ao Programa de Pós-Graduação em
materiais, valores de cada indivíduo e sua Saúde Coletiva da Universidade Federal de
experiência de vida, cuja avaliação pode Pernambuco, em 2015.
variar entre bom e ruim (PAULA; ROQUE; ARAÚJO, Os participantes da pesquisa foram todos
2008; PINTO ET AL., 2009). os cuidadores familiares de pessoa idosa com
A indicação de uma má qualidade de vida, Alzheimer que frequentavam os grupos de
por parte do cuidador, pode ser associada ao apoio da Associação Brasileira de Alzheimer
desenvolvimento de um quadro de estresse. (ABRAz), Regional Pernambuco, situados
O termo estresse está relacionado a altera- em Recife, e os cuidadores familiares de
ções, problemas, dificuldades ou efeitos ad- idosos que participavam do grupo de apoio
versos que desencadeiam desajustes físicos e aos cuidadores de idosos portadores de
psicológicos relativos a uma questão especí- Alzheimer realizado no Núcleo de Atenção
fica (GARCES ET AL., 2012). ao Idoso (NAI) da Universidade Federal de
O estresse do cuidador pode afetar negati- Pernambuco, durante o período de janeiro
vamente a sua vida e o cuidado que presta ao a junho de 2014, perfazendo um total de 43
idoso, evidenciando a relevância da compre- cuidadores familiares.
ensão de sua qualidade de vida para que seja Os cuidadores que concordaram em parti-
possível o auxílio na melhora da saúde tanto cipar da pesquisa receberam e assinaram um
de quem cuida como de quem é cuidado Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
(PAULA; ROQUE; ARAÚJO, 2008). contendo informações referentes aos pro-
Portanto, este estudo justifica-se pela cedimentos da pesquisa e seus objetivos.
necessidade de que haja uma aproximação Também foram informados de que o estudo
quanto às repercussões que as variáveis não oferecia riscos, danos ou desconfortos
relacionadas à qualidade de vida podem previsíveis para sua saúde, que sua identi-
gerar sobre o nível de estresse do cuidador dade seria mantida em sigilo por ocasião da
familiar, a fim de fornecer subsídios que o publicação dos resultados da pesquisa e que

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 171-182, JAN-MAR 2017


Estresse e qualidade de vida do cuidador familiar de idoso portador da doença de Alzheimer 173

podiam se recusar a participar e se retirar O SF-36 foi aplicado para aferir a qua-
dela, a qualquer momento, sem nenhum pre- lidade de vida dos cuidadores familiares.
juízo à sua assistência na instituição. O mesmo teve sua licença fornecida pela
Para a caracterização dos investigados, Optum Insight Life Sciences pelo período de
inicialmente, foi realizada uma entrevista vigência de 03/01/2014 a 03/01/2015, sob a
com roteiro semiestruturado, composto por numeração QM023278. Esse questionário,
questões fechadas e semiabertas, organi- validado para o português em 1999, é com-
zado em blocos por conjuntos temáticos. posto por 36 questões de múltipla escolha, as
O roteiro investigou informações referen- quais são distribuídas em oito domínios: ca-
tes ao perfil do cuidador, através de dados pacidade funcional; aspectos físicos; aspec-
sociodemográficos e condição de saúde. tos emocionais; dor; estado geral de saúde;
Em seguida, foi aplicado o Inventário de vitalidade; aspectos sociais; e saúde mental.
Sintomas de Estresse para Adultos de Lipp Além de possuir uma questão de avaliação
(ISSL) e a Versão Brasileira do Questionário comparativa entre as condições de saúde
de Qualidade de Vida Short-form Health atuais e as de um ano atrás.
Survey (SF-36), em português. Os domínios verificam tanto os aspectos
O ISSL tem por finalidade determinar se negativos da saúde (doença ou enfermidade)
o indivíduo tem estresse, a predominância como os positivos (bem-estar ou qualidade de
sintomatológica (física ou psicológica) que vida). Os escores variam de 0 (zero) a 100 (cem),
apresenta e a fase (alerta, resistência, qua- onde 0 indica o pior, e 100 o melhor estado para
se-exaustão e exaustão) em que se encon- cada domínio, de forma que no presente estudo
tra. Esse instrumento torna-se viável por foram considerados piores os escores cujos do-
considerar que o estresse não é somente mínios corresponderam a menos de 50, e me-
indicação de patologias e sensações de- lhores aqueles cujos domínios totalizaram um
sagradáveis, uma vez que considera a sua escore igual ou maior que 50.
fase de alerta como sendo positiva, tra- Esse questionário é sistematizado pelo
tando-se, inclusive, de uma condição vital programa Optum Insight Life Sciences, o
para o ser humano se manter conectado qual, ao serem inseridas as respostas de cada
com o mundo e continuamente motivado. respondente, indica o escore de cada um
Essa é uma característica essencial para com relação aos oito domínios supracitados.
este estudo, já que, conforme a literatura, Os dados foram sistematizados em
alguns indivíduos podem vislumbrar um um banco de dados que, para garantir
sentido maior para sua existência quando sua confiabilidade, teve dupla entrada.
se tornam cuidadores ou ao vivenciarem a Posteriormente, realizou-se a análise
sensação de plenitude que constitui a fase quantitativa das informações, mediante
de alerta do estresse. Dessa forma, esse processo sistematizado em base estatísti-
instrumento permite detectar mais preci- ca, utilizando o programa R Commander
samente quando essa condição é ultrapas- for Windows, versão 2.11.1.
sada e os indivíduos começam a apresentar Inicialmente, realizaram-se as análi-
patologias em virtude do estresse. ses das variáveis, através de frequências
A análise dos resultados do referido ins- absolutas e relativas (variáveis categó-
trumento foi realizada por um psicólogo, ricas), médias e desvio padrão, visando
através de tabelas do próprio manual, trans- à descrição dessas variáveis e a eviden-
formando os dados brutos em porcentagens, ciar a maneira pela qual se encontram
de maneira que a maior porcentagem total distribuídas na população do estudo.
indica, entre os respondentes estressados, a Posteriormente, efetivou-se o cruzamen-
fase em que se encontram. to entre elas com o intuito de verificar

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174 CESÁRIO, V. A. C.; LEAL, M. C. C.; MARQUES, A. P. O.; CLAUDINO, K. A.

a existência de possíveis associações, Resultados


através do teste exato de Fisher, com nível
de significância adotado para os testes es- Os cuidadores familiares de idosos avaliados
tatísticos de 5% (p < 0,05). neste estudo apresentaram média de idade
A pesquisa desenvolvida está vinculada de 56,98 anos (dp=11,39), tempo médio de
ao projeto intitulado ‘Avaliação do conhe- cuidado de 4,64 anos (dp=2,98), com 55,8%
cimento dos cuidadores familiares sobre o exercendo a função de cuidador há mais de 3
processo de envelhecimento e a doença de anos, havendo predominância do sexo femi-
Alzheimer’, registrado no Comitê de Ética nino (n=37; 86%); quanto ao grau de paren-
em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal tesco com o idoso, havia 33 (76,8%) esposas
de Pernambuco (Certificado de apresen- ou filhas; 27 participantes (62,8%) possuíam
tação para Apreciação Ética – CAAE nº vínculo empregatício; e 16 (37,2%) referiram
15131513.0.0000.5208). apresentar alguma morbidade.
Todo o processo de investigação atendeu Neste estudo, verificou-se que, entre os
aos requisitos preestabelecidos na Resolução domínios que expressam fatores relacio-
nº 466/12 do Ministério da Saúde, referente nados à qualidade de vida, destacam-se as
ao desenvolvimento de pesquisa científica reduzidas médias em vitalidade (48,84) e
envolvendo seres humanos. aspectos sociais (56,69), conforme tabela 1.

Tabela 1. Valores médios dos escores do SF-36 dos cuidadores da população normal brasileira, de outro estudo com
cuidadores familiares de idosos com Alzheimer e deste estudo, realizado em Recife (PE), 2014

Domínios de qualidade de vida Estudo* Brasil** Pinto et al.***

Capacidade Funcional 74,30 75,5 82,9

Limitações por aspectos físicos 70,35 77,5 58,1

Dor corporal 58,60 76,7 63,6

Estado geral de saúde 62,60 70,2 71,1

Vitalidade 48,84 71,9 56,8

Aspectos sociais 56,69 83,9 63,6

Aspectos emocionais 64,73 81,7 58,1

Saúde mental 58,95 74,5 60,3

Fonte: *Dados da pesquisa, 2014. **Dados da pesquisa de Laguardia et al. (2013). ***Dados da pesquisa de Pinto et al. (2009).

Ao analisar o estresse, conclui-se que 27 Entre os sintomas predominantes que


(62,8%) participantes da pesquisa apresen- favorecem o quadro de estresse, 16 (59,3%)
tam esse quadro, 22 (51,2%) estão na fase cuidadores familiares apresentaram sinto-
de resistência e 5 (11,6%) estão na de quase matologias psicológicas em detrimento das
exaustão. físicas (tabela 2).

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Estresse e qualidade de vida do cuidador familiar de idoso portador da doença de Alzheimer 175

Tabela 2. Predominância dos sintomas entre os cuidadores familiares de idosos com Alzheimer participantes dos grupos
de apoio do NAI e da ABRAz-PE que evidenciaram estresse. Recife (PE), 2014

Predominância de sintomas Frequência %

Psicológicos 16 59,3

Físicos 7 25,9

Físicos/Psicológicos 4 14,8

Total 27 100,0

Fonte: Dados da pesquisa, 2014.

Na tabela 3, verifica-se associação estatis- a aspectos físicos (p=0,0346), aspectos


ticamente significante entre o estresse e os sociais (p=0,0229) e aspectos emocionais
domínios de qualidade de vida, referentes (p=0,0013).

Tabela 3. Associação entre o estresse e os domínios de qualidade de vida dos cuidadores familiares de idosos com
Alzheimer participantes dos grupos de apoio do NAI e da ABRAz-PE. Recife (PE), 2014
Estresse p-Valor
Variável Classificação Total
Não Sim (Teste Exato de Fisher)
Capacidade Funcional Pior 0 2 2 0,5216

Melhor 16 25 41

Aspectos físicos Pior 0 7 7 0,0346*

Melhor 16 20 36

Dor corporal Pior 3 11 14 0,1865

Melhor 13 16 29

Saúde em geral Pior 3 8 11 0,4942

Melhor 13 19 32

Vitalidade geral Pior 4 16 20 0,0563

Melhor 12 11 23

Aspectos sociais Pior 2 13 15 0,0229*

Melhor 14 14 28

Aspectos emocionais Pior 0 12 12 0,0013*

Melhor 16 15 31

Saúde mental Pior 2 11 13 0,0855

Melhor 14 16 30

Total 16 27 43

Fonte: Dados da pesquisa, 2014.


*p<0,05.

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176 CESÁRIO, V. A. C.; LEAL, M. C. C.; MARQUES, A. P. O.; CLAUDINO, K. A.

A análise estatística entre as variáveis re- capacidade funcional (p=0,0089), aspectos


lativas à qualidade de vida com a fase do físicos (p=0,0245), dor corporal (p=0,0429), vi-
estresse, na tabela 4, demonstra associação talidade (p=0,0477), aspectos sociais (p=0,0123)
estatisticamente significante com os domínios e aspectos emocionais (p=0,0002).

Tabela 4. Associação entre a fase do estresse e os domínios de qualidade de vida dos cuidadores familiares de idosos com
Alzheimer participantes dos grupos de apoio do NAI e da ABRAz-PE. Recife (PE), 2014
Fase estresse
p-Valor
Variável Classificação Quase Não se Total
Resistência (Teste Exato de Fisher)
exaustão aplica
Capacidade Funcional Pior 2 0 0 2 0,0089*

Melhor 3 22 16 41

Aspectos físicos Pior 1 6 0 7 0,0245*

Melhor 4 16 16 36

Dor corporal Pior 4 7 3 14 0,0429*

Melhor 1 15 13 29

Saúde em geral Pior 3 5 3 11 0,2073

Melhor 2 17 13 32

Vitalidade geral Pior 4 12 4 20 0,0477*

Melhor 1 10 12 23

Aspectos sociais Pior 4 9 2 15 0,0123*

Melhor 1 13 14 28

Aspectos emocionais Pior 4 8 0 12 0,0002*

Melhor 1 14 16 31

Saúde mental Pior 3 8 2 13 0,0791

Melhor 2 14 14 30

Total 5 22 16 43

Fonte: Dados da pesquisa, 2014.


*p<0,05.

Discussão (2012) identificaram uma maior frequência de


mulheres cuidadoras (88,7%), entre as quais,
O aumento da incidência e da prevalência destacavam-se as filhas e as esposas, corrobo-
das doenças crônico-degenerativas, a partir rando os achados do presente estudo, no qual
do final do século XX, fez emergir no cenário 76,8% dos cuidadores eram filhas ou esposas.
nacional a figura do cuidador de idosos, O cuidado, na população brasileira, ainda
evidenciando a importância de caracterizá- está intrinsecamente ligado a questões re-
-lo e de compreender suas necessidades. Ao lacionadas ao sexo. Isso se dá porque, cul-
realizar uma pesquisa sobre o perfil de cui- tural e socialmente, ainda é considerada
dadores principais e seus respectivos idosos como sendo uma característica da mulher
familiares com Alzheimer, Matos e Decesaro adaptar-se às exigências dos familiares,

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Estresse e qualidade de vida do cuidador familiar de idoso portador da doença de Alzheimer 177

prover assistência e organização da vida fa- No entanto, Moraes e Silva (2009) observa-
miliar, em virtude de exercer o cuidado dos ram, sob uma ótica distinta, que a realização
filhos, atividades domésticas e familiares e, de outras atividades impede o isolamento
portanto, estar mais preparada para desem- social desses indivíduos, permitindo que
penhar o referido papel, enquanto o homem possam interagir com situações diferentes
deve ser o provedor financeiro da família do cuidado e, portanto, estar e se sentir mais
(LENARDT ET AL., 2010; BORGHI ET AL., 2013). presentes no convívio familiar e profissional.
Cachioni et al. (2011) referem que essa res- No presente estudo, o elevado percentu-
ponsabilidade feminina é acentuada porque, al (55,8%) de cuidadores que exercem essa
na maioria dos países ocidentais, as esposas função há mais de 3 anos é ratificado pela
se destacam por, geralmente, terem uma pesquisa de Seima, Lenardt e Caldas (2014),
maior expectativa de vida do que os cônjuges, que constataram que 61% dos entrevistados
além de serem mais jovens que seus maridos. exerciam esse cuidado há um tempo prolon-
E, quando elas não conseguem exercer esse gado, o que poderia determinar um aumento
cuidado, socialmente, é determinado que ele de sua sobrecarga.
deve ser assumido pelas filhas. A tarefa de cuidar pode propiciar o desen-
No entanto, faz-se necessário ressaltar volvimento de morbidades entre aqueles que
que a população feminina, em detrimento da a desempenham, conforme verificado neste
masculina, também se predispõe muito mais estudo, onde 37,2% dos entrevistados refe-
à participação em grupos de apoio, em que riram alguma morbidade. Ratificando essa
possa compartilhar suas dificuldades e seus realidade, Santos e Gutierrez (2013) puderam
aprendizados, o que pode ter suscitado essa identificar que uma porcentagem signifi-
predominância relacionada ao sexo. cativa (62%) relatou algum tipo de doença,
Lenardt et al. (2011) observaram que um enquanto 32,1% indicaram ter mais de uma
expressivo percentual (91,8%) realiza uma patologia, destacando-se hipertensão, tireoi-
ou mais atividades além do cuidado, con- dopatias, osteoporose e diabetes.
vergindo com os achados deste estudo. O O adoecimento desse familiar pode ser
cuidado contínuo com o idoso, associado à relacionado à intensa convivência com a
realização de outras tarefas, é uma caracte- pessoa com Alzheimer, a qual é permeada
rística presente na realidade dos familiares de situações desgastantes, pois o cuidador
cuidadores, o que propicia uma maior so- tem seu modo de vida desestruturado, visto
brecarga na vida desses indivíduos, uma vez que apresenta conflitos familiares e profis-
que ações cotidianas – como banho, alimen- sionais mais intensos que as pessoas que não
tação, administração de medicações, higie- exercem essa função. Assim, a rotina propi-
nização – tornam-se situações desgastantes cia o aumento das chances dos cuidadores
pela resistência do idoso a realizá-las, devido desenvolverem problemas de saúde física,
aos seus distúrbios comportamentais e de sintomas psiquiátricos e comorbidades, por-
memória, que o induzem a acreditar que são quanto o autocuidado do familiar que realiza
dispensáveis, inadequadas ou imposições essa assistência, diversas vezes, torna-se ine-
repressoras. Dessa forma, em virtude dos xistente (BORGHI ET AL., 2013).
comprometimentos físicos e emocionais, de- O impacto das situações desgastantes sobre
correntes dessa exposição prolongada a situ- a vida dos cuidadores poderia ser minimizado
ações de desgaste, uma maior predisposição mediante uma maior distribuição de atribuições
ao desenvolvimento de quadros de estresse é entre os familiares desse idoso com Alzheimer,
verificada entre os cuidadores, demonstran- evitando a concentração de responsabilidades
do o quanto a saúde desses indivíduos torna- em um único familiar, além de um adequado
-se vulnerável (LENARDT ET AL., 2010). suporte profissional sobre as características da

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178 CESÁRIO, V. A. C.; LEAL, M. C. C.; MARQUES, A. P. O.; CLAUDINO, K. A.

patologia em si e seus reflexos sobre as atitudes A gama de comprometimentos que


e ações do familiar com a patologia, bem como afetam os cuidadores evidencia a necessi-
acerca do autocuidado de cada familiar cuida- dade de que haja uma maior aproximação
dor (LENARDT ET AL., 2010). com suas carências, visto que a qualida-
No processo saúde-doença, deve-se com- de de vida desses familiares gera reflexos
preender que a avaliação de saúde dos in- diretos sobre a qualidade de vida dos idosos
divíduos apresenta aspectos inteiramente demenciados, demonstrando que a família
subjetivos, os quais podem ser contemplados deve ser considerada, além de cuidadora,
com análise de sua qualidade de vida. Ao unidade a ser cuidada.
passo que ela nos aproxima da percepção de Poltroniere, Checchetto e Souza (2011) re-
cada indivíduo sobre si e sua satisfação in- afirmam a importância de que haja especial
dividual e social, é possível compreender os atenção aos cuidadores familiares, em parti-
desejos, carências, expectativas e frustrações cular, pelos profissionais de saúde, para que
de cada ser humano mediante as múltiplas di- seja possível conhecer suas fragilidades e po-
mensões da sua vida (PAULA; ROQUE; ARAÚJO, 2008). tencializar a atuação dos mesmos, haja vista
Os dados referentes à qualidade de vida serem eles os que continuamente exercem a
neste estudo, ao serem comparados com a assistência, evitando o desenvolvimento de
população normal brasileira, investigada complicações e promovendo o bem-estar da
por Laguardia et al. (2013) em um inquérito pessoa com Alzheimer.
domiciliar de base populacional com 12.423 O papel de cuidar possui relação direta
chefes de família e cônjuges residentes em com o estresse, visto que promove impactos
todas as regiões do Brasil, apresentaram na saúde, no equilíbrio familiar e na qualida-
médias menores nos oito domínios (tabela de de vida daqueles que o realizam, ao passo
1). Isso indica que a população estudada que também ocasiona reflexos sobre a acei-
percebe mais desfavoravelmente seu estado tação da condição do paciente e o cuidado a
de saúde em relação à média da população ser desenvolvido. De acordo com Lipp (2011),
brasileira. Enquanto isso, estudo realizado o estresse é uma reação do organismo que
por Pinto et al. (2009) constatou que, apesar pode gerar comprometimentos físicos, psi-
dos valores médios dos domínios de qualida- cológicos e afetar, especialmente, as pessoas
de de vida estarem abaixo dos níveis nacio- que se encontram em situações de potencial
nais, ainda superavam os apresentados pela e constante tensão, tais como os cuidadores.
população investigada neste estudo, exceto Horiguchi e Lipp (2010), ao realizarem
quanto às limitações por aspecto físico e as- um estudo com mulheres que cuidavam
pectos emocionais. de pessoas com o diagnóstico de Doença
Essa pior qualidade de vida entre os cui- de Alzheimer, verificaram que 75% delas
dadores familiares pode estar relacionada à apresentavam estresse, entre as quais, 70%
devastadora experiência de cuidar, que acar- estavam na fase de resistência e 40% apre-
reta preocupações sobre a evolução e o prog- sentavam predominância de sintomas psico-
nóstico da doença, além do estresse diário lógicos, o que converge com os achados do
(PAULA; ROQUE; ARAÚJO, 2008). Vargas-Escobar presente estudo, no qual 62,8% dos entrevis-
(2012) ressalta que o cuidar promove compro- tados estavam estressados, 51,2% na fase de
metimentos nos aspectos físico, emocional, resistência e 59,3% daqueles que apresen-
espiritual e social daqueles que o realizam. taram estresse possuíam predominância de
Isso porque gera desde esgotamento físico, sintomas psicológicos.
baixa autoestima, subvalorização de suas A literatura referencia que, entre aqueles
necessidades, isolamento social até preocu- que realizam a assistência, o estresse pode ter
pações em herdar essa patologia. como fatores causais a falta de informação, o

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Estresse e qualidade de vida do cuidador familiar de idoso portador da doença de Alzheimer 179

sentimento de despreparo para exercer essa na vida desses indivíduos. O cotidiano do


função e a angústia de viver com o sofrimen- cuidador pode ser tão permeado dessas li-
to de outra pessoa, evidenciando que essa mitações que suas necessidades se anulam.
condição apresenta uma íntima relação com Gradativamente, ele vai se privando de sua
questões psicológicas (MIYAZAKI ET AL., 2010). vida social, do lazer e até mesmo da sua in-
A fase de resistência verificada indica que dividualidade, e sua existência torna-se, em
a pessoa está tentando lidar com as situações diversas situações, apenas uma extensão da
estressoras que vivencia, a fim de manter o vida do idoso com demência (GARCES ET AL., 2012).
seu equilíbrio interno. No entanto, eviden- Essa realidade pode se manifestar de forma
cia, também, que o quadro de estresse está concreta no cuidador quando a sua qualidade
instalado, o que torna necessário um esforço de vida, relativa ao domínio físico, é afetada,
mais intenso para que haja o resgate de sua e se torna possível visualizar alterações cor-
homeostase corporal (LIPP, 2011). porais e fisiológicas que são consequências do
Nesse processo de readquirir o seu equilí- trabalho excessivo e estressante que tem pra-
brio, os cuidadores apresentam sintomas de ticado em sua rotina (OLIVEIRA ET AL., 2011).
aspecto psicossocial, os quais, associados a Esses dados demonstram a multidimen-
outros aspectos negativos da sua vida, podem sionalidade de um quadro de estresse, o qual
predispor o desenvolvimento de comorbida- envolve desde as condições físicas e emocionais
des. Ao passo que patologias vão emergindo dos indivíduos até sua relação com a sociedade,
entre os cuidadores, a prevalência da fase de reafirmando a questão da necessidade de um
quase exaustão do estresse se sobressai, con- suporte aos cuidadores, os quais modificam
forme identificado neste estudo, sendo ela toda sua vida em função dessa nova atribuição.
caracterizada pelo início de um processo de Essa necessidade é corroborada pelo artigo
adoecimento, provocando, entre aqueles que 19 da Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003,
realizam o cuidado, a deterioração dos órgãos que dispõe sobre o Estatuto do Idoso, o qual
mais vulneráveis, o que justifica o compro- referencia a obrigatoriedade de a instituição de
metimento dos diversos domínios de quali- saúde prestar atendimento e orientação aos cui-
dade de vida e, portanto, a associação entre dadores familiares e grupos de autoajuda para o
a fase do estresse e a funcionalidade, aspec- cuidado de idosos. No entanto, atualmente, não
tos físicos, dor corporal, vitalidade, aspectos há programas, banco de dados ou instituições
sociais e aspectos emocionais (LIPP, 2011). governamentais que possuam informações
Oliveira et al. (2011) verificaram uma relação sobre os cuidadores familiares em Recife, de-
intrínseca entre internação do idoso em insti- monstrando a fragilidade das políticas públicas
tuições de longa permanência e estresse do cui- vigentes nesse município (BRASIL, 2003).
dador. Para tanto, eles sugerem que a redução Mediante o contexto supracitado, o pre-
da sobrecarga do cuidador poderia contribuir sente estudo apresenta algumas limitações,
para a diminuição de seus níveis de estresse e, tais como: o reduzido número da população,
consequentemente, adiaria ou evitaria a inter- do ponto de vista estatístico, e sua composi-
nação dos idosos dependentes, favorecendo a ção por cuidadores familiares vinculados a
melhora da qualidade de vida de ambos. instituições específicas, o que impossibilita
A associação entre o estresse e os domí- que os achados possam ser expandidos para
nios relativos à qualidade de vida do cuida- a população de cuidadores em geral. Dessa
dor, aspectos sociais, emocionais e físicos, forma, é sugerida a realização de estudos pos-
identificada neste estudo, corrobora a lite- teriores sobre a temática explanada, os quais
ratura, a qual refere que o desgaste prove- possam contemplar uma população mais
niente da atividade de cuidar predispõe um ampla e representativa dos cuidadores fami-
quadro de estresse, além de gerar limitações liares de idosos com Alzheimer no Brasil.

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180 CESÁRIO, V. A. C.; LEAL, M. C. C.; MARQUES, A. P. O.; CLAUDINO, K. A.

Contudo, é notório que a saúde desses indi- família, de forma a estabelecer as atribuições
víduos encontra-se profundamente afetada, a da família, cuidador e equipe para com esse
tal ponto que o quadro de estresse relacionado idoso, os auxiliando, inclusive, no desempe-
ao cuidado pode influenciar a percepção dos nho de atividades de alta complexidade que
cuidadores familiares sobre o seu estado de exijam maiores conhecimentos científicos
saúde, bem como afetar a assistência prestada, para serem executadas (MUNIZ ET AL., 2016).
a continuidade da disponibilidade familiar e a Nesse contexto, a perspectiva é de que os
saúde do idoso com Alzheimer. cuidadores familiares brasileiros tornem-se
potenciais pacientes do sistema de saúde
ou se sintam impotentes a tal ponto que fa-
Conclusões voreça um quadro de institucionalização
de idosos com Alzheimer (LENARDT ET AL., 2011;
O presente estudo evidenciou que a quali- GARCES ET AL., 2012; MARINS; HANSEL; SILVA, 2016). Ambas
dade de vida dos cuidadores familiares está as perspectivas são alarmantes, já que refle-
intrinsecamente relacionada ao estresse, de tem um ciclo de adoecimento dos familiares
maneira que tais condições podem influen- e/ou dessocialização do idoso.
ciar diretamente o cuidado a ser prestado. Essa realidade evidencia a necessidade de
Dessa forma, torna-se preocupante o fato do maiores pesquisas, investigações e estudos
envelhecimento populacional no Brasil estar relacionados aos cuidadores familiares, sua
conduzindo ao aumento de casos da doença realidade, qualidade e condições de vida.
de Alzheimer. Isso ocorre porque, atualmente, Isso para que possam subsidiar os profissio-
os cuidadores sentem-se desassistidos devido nais de saúde no auxílio a estes indivíduos,
à ausência ou ao reduzido apoio governamen- além de direcionar o desenvolvimento de
tal, o que faz com que se sintam inaptos ou políticas públicas que subsidiem o cuidado
esgotados no desempenhar desse cuidado. ao idoso com Alzheimer, favorecendo uma
A participação dos entrevistados em melhor qualidade de vida para o idoso e
grupos de apoio não governamentais, que para o cuidador e, consequentemente, uma
evidencia um suporte social diferenciado, melhor assistência e a continuidade da dis-
poderia ser um dos fatores que atenuassem ponibilidade familiar nessa árdua jornada.
os aspectos negativos do estresse e favore-
cesse os positivos nesta pesquisa. Apesar
disso, o impacto desfavorável do estresse na Colaboradores
vida dos cuidadores pôde ser ratificado com
o significante percentual de indivíduos que Vanovya Alves Claudino Cesário – concep-
estavam nas fases negativas do estresse, o ção, delineamento, análise e interpretação
que demonstra o quão preocupante é a con- dos dados, redação do artigo, revisão crítica e
dição de saúde dos investigados. aprovação da versão a ser publicada. Márcia
Esse achado propicia uma reflexão ainda Carréra Campos Leal – concepção, deline-
mais profunda com relação à sensação de amento, análise e interpretação dos dados,
desassistência daqueles cuidadores que não redação do artigo, revisão crítica e aprova-
têm a oportunidade de participar de grupos ção da versão a ser publicada. Ana Paula de
de apoio e vivem em situações mais adver- Oliveira Marques – análise e interpretação
sas, conjuntura que acentua o risco deles dos dados, redação do artigo, revisão crítica e
desenvolverem quadros mais graves de es- aprovação da versão a ser publicada. Karolyny
tresse, além de outros comprometimentos. Alves Claudino – análise e interpretação dos
Evidenciando a necessidade de orientação dados, redação do artigo, revisão crítica e
desse familiar pelas equipes de saúde da aprovação da versão a ser publicada. s

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 171-182, JAN-MAR 2017


Estresse e qualidade de vida do cuidador familiar de idoso portador da doença de Alzheimer 181

Referências

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 171-182, JAN-MAR 2017


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Recebido para publicação em julho de 2016
em: 14 nov. 2013. Versão final em dezembro de 2016
Conflito de interesses: inexistente
Suporte financeiro: não houve
POLTRONIERE, S.; CECCHETTO, F. H.; SOUZA, E.
N. Doença de Alzheimer e demandas de cuidados: o

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ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE 183

Dor lombar, flexibilidade muscular e


relação com o nível de atividade física de
trabalhadores rurais
Low back pain, muscle flexibility and relationship with the level of
physical activity of rural workers

Marcia Regina da Silva1, Fátima Ferretti2, Junir Antonio Lutinski3

RESUMO O objetivo foi investigar a dor lombar, flexibilidade muscular e relação com o Nível de
Atividade Física (NAF) de trabalhadores rurais. Pesquisa transversal com 184 trabalhadores
rurais, 44,24 (±10,83) anos. Avaliou-se o NAF pelo Questionário Internacional de Atividade
Física (Ipaq); dor e disfunção lombar pela Escala Visual Analógica da dor (EVA) e Índice de
Incapacidade Oswestry (IIO); avaliação da Flexibilidade Toracolombar (FBW) e de isquio-
tibiais (Ângulo Poplíteo – AP – e Teste de Elevação da Perna Retificada – TEPR). Os dados
foram analisados pelos testes Kruskal Wallis, seguido pelo U de Mann-Whitney e correlação
de Spearman. Houve correlação negativa entre a EVA com a FBW, AP e TEPR. A variação da
dor pela EVA foi alta, e indivíduos sedentários possuem menor flexibilidade de isquiotibiais.

PALAVRAS-CHAVE Dor lombar. Amplitude de movimento articular. Esforço físico. População


rural. Fisioterapia.

ABSTRACT The aim was to investigate low back pain, muscle flexibility and relationship with
the Level of Physical Activity (LPA) of rural workers. It is a cross-sectional survey with 184 rural
workers, 44.24 (± 10.83) years. We evaluated the LPA by Ipaq; pain and lumbar dysfunction by
Visual Analog Scale (VAS) and Oswestry disability index (ODI); evaluation of thoracolumbar
1 UniversidadeComunitária flexibility (TF) and hamstrings (PA and SLR). The data were analysed by Kruskal Wallis test
da Região de Chapecó followed by Mann-Whitney test and Spearman correlation. There was a negative correlation
(Unochapecó), Graduação
em Fisioterapia – Chapecó between the VAS with the TF, PA and SLR. The variation of pain by VAS was high and sedentary
(SC), Brasil. individuals have less flexibility of hamstring.
marciaf@unochapeco.edu.br

2 Universidade Comunitária
KEYWORDS Low back pain. Range of motion, articular. Physical exertion. Rural population.
da Região de Chapecó
(Unochapecó), Pós- Physical therapy specialty.
Graduação em Ciências
da Saúde – Chapecó (SC),
Brasil.
ferrettifisio@yahoo.com.br

3 UniversidadeComunitária
da Região de Chapecó
(Unochapecó), Pós-
Graduação em Ciências
da Saúde – Chapecó (SC),
Brasil.
junir@unochapeco.edu.br

DOI: 10.1590/0103-1104201711215 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 183-194, JAN-MAR 2017
184 SILVA, M. R.; FERRETTI, F.; LUTINSKI, J. A.

Introdução vida humana, e por isso necessária, em todas


as faixas etárias. Reforçando essa questão,
A saúde do trabalhador tem-se constituído para manter-se ativo, há que se manter boa
em um tema central de pesquisas no campo flexibilidade, componente essencial da
da saúde pública, investigando as condições aptidão física que, associada a níveis ade-
de trabalho que podem predispor ao adoeci- quados de força, melhora a eficiência do mo-
mento. A pesquisa realizada por Moreira et vimento e reduz a incidência de distensão
al. (2015) buscou analisar a saúde de trabalha- muscular, aspecto fundamental para evitar
dores da atividade agrícola no Brasil, identifi- quadros álgicos (HAMILL; KNUTZEN, 2012). Tanto
cando a percepção de saúde e as morbidades a força quanto a flexibilidade muscular são
referidas no banco da Pesquisa Nacional frequentemente relacionadas com a dor
por Amostra de Domicílios (PNAD), e evi- lombar, especialmente quando há retração
denciou que a ocupação agrícola diminuiu de isquiotibiais, banda iliotibial; fraqueza da
a chance dessa população referir sua saúde musculatura abdominal e eretores espinhais
como boa e aumentou a chance de referir (HAMILL; KNUTZEN, 2012), o que pode predispor a
doenças na coluna vertebral, enfermidade uma maior incidência de quadros dolorosos.
que geralmente traz a dor como sintoma O trabalho no ambiente rural envolve ati-
associado. vidades físicas como caminhadas frequen-
As causas mais comuns de adoecimentos tes, transportes de materiais e produtos,
nos trabalhadores rurais estão relacionadas levantamento de peso e o contato direto
com as excessivas demandas físicas do traba- com agentes físicos, químicos e biológicos
lho, sendo que as Doenças Osteomusculares de diferentes naturezas. Assim, o desen-
(Dort) são as que mais afetam os traba- volvimento de agravos à saúde, como dores
lhadores, ocasionando dor lombar (ALVES; lombares e a perda da flexibilidade, podem
GUIMARÃES, 2012). A elevação e transporte de estar associadas à sobrecarga de atividades
cargas pesadas, flexão e extensão prolon- relacionadas com o trabalho e com a falta de
gada e repetida da coluna e movimentos atividades preventivas ou compensatórias.
repetitivos estão entre os fatores de risco Diante do contexto em que o trabalhador
para o desenvolvimento de lesões e quadros rural se encontra exposto, o presente estudo
álgicos (FATHALLAH, 2010). Entre os processos de buscou investigar a dor lombar, flexibilidade
dor, destacam-se as lombalgias, em função da de isquiotibiais e toracolombar e sua relação
alta incidência, pois se estima que entre 60% com o Nível de Atividade Física (NAF) de
e 80% dos indivíduos, em geral, sofrem de trabalhadores rurais de um município ca-
sintoma de dor lombar em algum momento tarinense, bem como correlacionar a dor
da vida, sendo mais comum entre os 25 e 60 lombar com a flexibilidade de isquiotibiais
anos de idade (HAMILL; KNUTZEN, 2012). Estudo na e toracolombar e dor lombar com o tempo
região sul do Brasil identificou prevalência de de atividade agrícola no período e fora do
63,1% de dor nas costas, sendo a região lombar período de safra.
a mais referida (40%) (FERREIRA ET AL., 2011).
Estudos apontam que a adoção de uma
vida ativa se constitui em fator de proteção Material e métodos
para uma vida saudável, sendo que quanto
mais ativo um indivíduo for, menor será o Pesquisa de caráter quantitativo-observa-
número de enfermidades (VIDMAR; POTULSKI; cional, com o delineamento de um estudo de
SACHETTI, 2011; MATSUDO; MATSUDO; BARROS NETO, 2011). corte transversal, desenvolvida em um mu-
Esses autores entendem que a atividade nicípio do Extremo Oeste catarinense que
física é um fator de proteção funcional para a possuí aproximadamente 4.400 habitantes,

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 183-194, JAN-MAR 2017


Dor lombar, flexibilidade muscular e relação com o nível de atividade física de trabalhadores rurais 185

com característica demográfica predomi- 40 pontos) e severo (acima de 41 pontos)


nantemente rural. A amostra do estudo foi (MASSELI; LOPES; SERILLO, 2003).
composta por trabalhadores rurais de ambos A EVA consiste de uma escala graduada
os sexos, na faixa etária de 20 a 59 anos, que com linha horizontal de 10 centímetros de
se encontravam em plena atividade. Para comprimento, sendo que na extremidade à
cálculo amostral, considerou-se a população esquerda possui um número correspondente
na faixa etária da amostra pretendida, regis- a zero, com a expressão ‘sem dor’, e à direita,
trada no Censo Demográfico de 2010, tota- o número 10, com a expressão ‘dor insu-
lizando 1.316 indivíduos (IBGE, 2016). Com base portável’. A dor pode ser classificada como
na população, estimou-se a amostra em 298 leve quando a escala for de 1 a 3; moderada,
indivíduos, adotando como nível de confian- de 4 a 6 e forte, de 7 a 9. A dor zero repre-
ça 95% e erro amostral de 5%. senta a ausência de dor e que os indivíduos
Foram excluídos do estudo os traba- não têm problemas para desempenhar suas
lhadores que estavam fora da faixa etária atividades; na dor leve, é possível desempe-
estipulada, que não trabalhavam no ramo nhar as atividades, embora tenha dor; a dor
agropecuário, que não foram encontrados moderada atrapalha parcial ou totalmente as
no domicílio em nenhuma de três tentativas atividades e há prejuízo no desempenho e a
consecutivas ou que não concordaram em dor forte impede a realização das atividades
participar do estudo. De acordo com os cri- (CARVALHO; KOVACS, 2006).
térios de inclusão e exclusão, a amostra foi O questionário Ipaq foi utilizado para
composta por 174 trabalhadores rurais. quantificar o NAF dos trabalhadores. Ele
Para a coleta de dados, foi utilizado um ques- é composto por 5 seções, sendo: atividade
tionário com perguntas sobre o perfil e carac- física no trabalho; atividade física como
terização ocupacional dos trabalhadores rurais. meio de transporte; atividade física em
Em seguida, foram aplicados outros dois instru- casa (trabalho, tarefas domésticas e cuidar
mentos para verificação da dor lombar: Índice da família); atividade física de recreação,
de incapacidade Oswestry (IIO) e Escala Visual esporte, exercício e de lazer e tempo gasto
Analógica (EVA) da dor, além da verificação sentado (MATSUDO ET AL., 2001). O questionário é
do NAF (Ipaq – Questionário Internacional de classificado em: sedentário, irregularmente
Atividade Física). ativo, ativo ou muito ativo, considerando a
O IIO é composto de 10 seções que des- pontuação obtida pela soma da quantidade
crevem dor ou limitações resultantes da de dias e minutos ou horas das atividades
lombalgia. Cada seção possui seis itens que realizadas com base nos critérios: frequên-
descrevem um grau crescente de severida- cia, intensidade e duração das atividades
de, sendo zero o indicativo de pequena ou (ZANCHETTA ET AL., 2010).
nenhuma dor e/ou limitação funcional e o Posteriormente, foi realizado o teste de
escore de cinco, que indica dor e/ou limita- Flexibilidade Toracolombar (FBW) e de is-
ção extrema. A pontuação total foi obtida so- quiotibiais. A flexibilidade toracolombar foi
mando-se o número de pontos de cada seção, obtida por meio da flexão anterior de tronco
sendo que a pontuação máxima correspon- sentado, utilizando o Banco de Wells Sanny®.
de ao escore de 50. O percentual de dor e/ A partir da posição sentada sobre os ísquios
ou limitação foi obtido multiplicando-se a com os joelhos em completa extensão, tor-
pontuação atingida por 2, sendo este o maior nozelos em dorsiflexão com as plantas dos
grau de limitação percebido pelo paciente. pés apoiadas no banco, os sujeitos flexiona-
Por meio dessa pontuação, o grau de disfun- vam o tronco até o limite da sua Amplitude
ção do paciente foi classificado em: mínimo de Movimento (ADM), deslizando os dedos
(de zero a 20 pontos), moderado (de 21 a sobre a régua do banco de Wells, mantendo os

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 183-194, JAN-MAR 2017


186 SILVA, M. R.; FERRETTI, F.; LUTINSKI, J. A.

joelhos estendidos. A distância total alcança- trabalhadores, por meio do teste de Kruskal
da representou o valor total da flexibilidade Wallis seguido de comparações múltiplas
adquirida, considerando a média de três ten- com o teste U de Mann-Whitney. Os mesmos
tativas (GAYA; SILVA, 2009; BERTOLLA ET AL., 2007). testes foram utilizados separadamente para
A flexibilidade de isquiotibiais foi obtida comparar os grupos compostos por homens
pelos testes de comprimento muscular uti- e mulheres. A correlação entre a dor pela
lizando goniômetro Carci®, por meio da escala EVA e a flexibilidade de isquiotibiais e
medida do Ângulo Poplíteo (AP) e Teste toracolombar, e dor com o número de horas
de Elevação da Perna Retificada (TEPR). relatadas pelos agricultores no período de
A medida do AP foi obtida com o sujeito safra e fora do período de safra, foi realizada
posicionado em decúbito dorsal horizon- pelo teste de correlação de Spearman. Foi
tal, o quadril e joelho do membro inferior a considerado como valor de significância es-
ser testado eram mantidos fletidos a 90°, o tatística: p<0,05.
membro inferior contralateral em extensão A pesquisa foi apreciada e aprovada pelo
completa sobre o solo ou mesa de exame, não Comitê de Ética em Pesquisa com Seres
sendo permitida a flexão de joelho e quadril. Humanos da Instituição de Ensino, sob pro-
A seguir, o joelho do membro a ser testado tocolo nº 156/14, com base na Resolução nº
era estendido ativamente, com o tornozelo 466/12 do Conselho Nacional de Saúde.
e pé em abandono, até o ponto máximo em
que o sujeito não apresentasse compensa-
ções com a coluna ou membro contralateral Resultados
(AFFONSO FILHO; NAVARRO, 2002). A medida foi re-
alizada três vezes, obtendo-se a média final Dos 174 trabalhadores rurais avaliados,
entre elas. A medida era considerada normal 44,3% (n = 77) eram homens, e 55,7% (n = 97)
quando estivesse entre 165° e 180° de ADM. eram mulheres; 93,7% (n = 163) de descen-
O TEPR foi realizado com o sujeito posi- dência italiana, 90,8% (n = 158) casados. A
cionado em decúbito dorsal, com membros média de anos de estudo foi de 7,22 (± 3,11)
inferiores estendidos, coluna lombar e sacro anos, variando entre 1 e 16 anos, e a média de
contra a mesa/maca. Mantendo a posição tempo em que moravam no ambiente rural
inicial, o participante realizou uma flexão de foi de 29,39 (±14,27) anos.
quadril com o joelho em extensão (elevação Quanto às tarefas realizadas na proprieda-
da perna) ao seu máximo, sem haver compen- de, destacou-se: lidar com animais (47,7%),
sações. Um ângulo de aproximadamente 80° citado tanto pelos homens (41,6%) quanto
entre a mesa e o quadril fletido foi conside- pelas mulheres (52,6%), seguido de cuidar
rado amplitude normal de comprimento dos da horta (20,1%) e múltiplas tarefas (14,9%).
isquiotibiais (KENDALL; MCCREARY; PROVANCE, 2007). A média de tempo que os trabalhadores
A análise de dados foi realizada pelo relataram utilizar para a realização de ati-
programa SPSS versão 20.0. Inicialmente, vidades agrícolas no período de safra foi de
obteve-se estatística descritiva das variá- 11,63 (± 2,5) horas, e fora do período da safra
veis estudadas. Após, foi realizado o teste de foi 6,75 (± 1,84) horas.
Shapiro-Wilk para verificação da normalida- Quanto à dor lombar, quase a totalidade
de das variáveis de idade, dor, flexibilidade dos agricultores (98,3%) relataram ter algum
e número de horas de atividades agrícolas. sintoma de dor lombar, sendo que 100% das
Os valores medianos da dor e flexibilida- mulheres e 96,1% dos homens acusaram a
de de isquiotibiais e toracolombar foram presença de dor. Quanto ao grau de disfun-
comparados nos três grupos, formados a ção de Oswestry, 78,2% (n=136) foram clas-
partir da classificação do Ipaq, no total de sificados com disfunção leve, e apenas 6,9%

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 183-194, JAN-MAR 2017


Dor lombar, flexibilidade muscular e relação com o nível de atividade física de trabalhadores rurais 187

com disfunção severa (n=12), sendo que os homens (5,56 ± 2,51).


resultados são similares entre homens e mu- A tabela 1 demonstra as características
lheres. A média da intensidade da dor classi- da ocorrência da dor conforme a EVA e sua
ficada pela EVA foi 5,89 (±2,49), sendo mais classificação nos trabalhadores em geral, se-
alta nas mulheres (6,14 ± 2,45) do que nos parados por gênero.

Tabela 1. Ocorrência da dor conforme classificação pela Escala Visual Analógica (EVA)

Total (n=174) Masculino (n=77) Feminino (n=97)


Variável
n(%) n(%) n(%)
Sem dor (0) 3 (1,7) 3 (3,9) -
Dor leve (1 a 3) 36 (20,7) 16 (20,8) 20 (20,6)
Moderada (4 a 6) 50 (28,7) 23 (29,9) 27 (27,8)
Forte (7 a 9) 77 (44,3) 32 (41,6) 45 (46,4)
Insuportável (10) 8 (4,6) 3 (3,9) 5 (5,2)

A tabela 2 destaca as medianas e o inter- testes Oswestry e EVA, bem como flexibi-
valo interquartil das variáveis de dor lombar lidade toracolombar e de isquiotibiais, de
autorreferida pelos trabalhadores rurais nos acordo com a classificação do NAF – Ipaq.

Tabela 2. Dor lombar, flexibilidade toracolombar e de isquiotibiais em trabalhadores rurais de acordo com o nível de
atividade física
Total AMA IA SED
Variável p
n=174 n=62 n=54 n=58
Idade 47 (42 – 52,5) 48 (42 – 53) 46 (40 – 52) 45 (42 – 53) 0,438
Oswestry 5 (1 – 10) 4,5 (2 – 9) 6 (2 – 9,25) 4 (0 – 11) 0,590
EVA 6 (4 – 8) 6,5 (5 – 8) 6,5 (4 – 8) 6 (4– 7) 0,441
AP 120 (110 – 130) 125 (115 – 135) 120 (115 – 130) 120 (110 – 125) 0,005*
TEPR 65 (60 – 70) 70 (60 – 76,25) 65 (60 – 70) 60 (60 – 70) 0,144
FBW 22 (20 – 25) 22,3 (20 – 25) 22,65 (20 – 25) 22 (20,5 – 23) 0,434
AMA: Ativos ou Muito Ativos. IA: Insuficientemente Ativos. SED: Sedentários. EVA: Escala Visual Analógica da dor. AP: Ângulo Poplíteo.
TEPR: Teste de Elevação da Perna Retificada. FBW: Flexibilidade pelo Banco de Wells. p: Estatística de Kruskall Wallis.
* Nível de Significância: p<0,05.

Quando comparados os dados multi- flexibilidade de isquiotibiais do que indiví-


plamente (U de Mann-Whitney) entre os duos que realizam atividades físicas.
grupos, verificou-se diferença estatisti- Não houve diferenças significativas nas
camente significativa entre os indivídu- demais comparações de flexibilidade e ou
os sedentários e insuficientemente ativos dor entre os grupos.
(p=0,032) e sedentários e ativos ou muito A tabela 3 apresenta os dados compa-
ativos (p=0,002). Dessa forma, indivíduos rativos das variáveis entre trabalhadores
sedentários possuem menores valores de homens e mulheres.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 183-194, JAN-MAR 2017


188 SILVA, M. R.; FERRETTI, F.; LUTINSKI, J. A.

Tabela 3. Dor lombar, flexibilidade toracolombar e de isquiotibiais em trabalhadores rurais homens e mulheres de acordo
com o nível de atividade física
Total AMA IA SED
Variável p
n=77 n=20 n=18 n=39
Idade 48 (42-52,75) 48 (47-55,5) 48 (39- 51) 45 (42-52) 0,160
Masculino Oswestry 4 (0-9) 5 (2-8) 5,5 (2- 9) 4 (0 -10) 0,596
EVA 6 (3,5-7) 6 (3,5-7,5) 5 (4- 8) 6 (3- 7) 0,982
AP 120 (115-130) 125 (120-135) 126,5 (120- 130) 120 (110-125) 0,007*
TEPR 65 (60-72,5) 70 (60-70) 65 (60-80) 65 (60-75) 0,659
FBW 22 (20,25-24,25) 22,65 (21- 25,5) 22 (20- 23) 21,75 (20,5-24,5) 0,625
Total AMA IA SED
Variável p
n=97 n=42 n=36 n=19
Idade 46 (40,5-52,5) 46,5 (41-52) 46 (40-52) 46 (42-53) 0,943
Oswestry 6 (2-11) 4,5 (1-10) 6,5 (2-12) 6 (2,5-15) 0,754
Feminino

EVA 7 (4-8) 7 (5-8) 7 (4,5-8) 6 (4-7) 0,427


AP 120 (110-130) 125 (110-130) 120 (110-127,5) 120 (110-122,5) 0,062
TEPR 65 (60-70) 70 (60-80) 67,5 (60-70) 60 (57,5-60) 0,071
FBW 22,3 (20-25) 22,15 (19,3-25) 23,5 (20-25,5) 22 (20,5-23) 0,288
AMA: Ativos ou Muito Ativos. IA: Insuficientemente Ativos. SED: Sedentários. EVA: Escala Visual Analógica da dor. AP: Ângulo Poplíteo.
TEPR: Teste de Elevação da Perna Retificada. FBW: Flexibilidade pelo Banco de Wells. p: Estatística de Kruskall Wallis.
* Nível de Significância: p<0,05.

Na comparação dos dados entre os grupos flexibilidade de isquiotibiais do que as


(U de Mann-Whitney), verificou-se dife- ativas ou muito ativas tanto no teste de AP
rença estatisticamente significativa entre (p=0,024) quanto no TEPR (p=0,039).
os homens sedentários e insuficientemente Não houve diferenças significativas nas
ativos (p=0,007) e sedentários e ativos ou demais comparações de flexibilidade e/ou
muito ativos (p=0,013), sendo que os seden- dor entre os grupos.
tários possuem menores valores de flexi- Observou-se correlação negativa nas
bilidade de isquiotibiais dos trabalhadores medidas de flexibilidade toracolombar e de
que realizam atividades físicas. Mulheres isquiotibiais pelo AP, TEPR e FBW com a dor
sedentárias possuem menores valores de pela EVA, conforme figura 1.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 183-194, JAN-MAR 2017


Dor lombar, flexibilidade muscular e relação com o nível de atividade física de trabalhadores rurais 189

Figura 1. Correlação entre a flexibilidade toracolombar e de isquiotibiais com o grau de dor pela EVA

190

Flexibilidade isquiotibial pelo ângulo poplíteo (graus)

170

150

130

110

90
0 2 4 6 8 10 12
Escala visual analógica de dor

100
Flexibilidade isquiotibial pelo teste de
elevação da perna retificada (graus)

80

60

40

20
0 2 4 6 8 10 12
Escala visual analógica de dor

30
Flexibilidade toracolombar pelo banco de Wells (cm)

25

20

15
0 2 4 6 8 10 12
Escala visual analógica de dor
r(s)= -0,42; p=0,0001

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 183-194, JAN-MAR 2017


190 SILVA, M. R.; FERRETTI, F.; LUTINSKI, J. A.

Não se observou correlações estatistica- mais comuns é a dor lombar, principalmente


mente significativas entre a escala da dor no período pós-menopausa, já que nessa fase
(EVA) com o número de horas relatadas há alteração na composição corporal, com
pelos trabalhadores durante o período da maior presença de gordura e menor massa
safra (r= -0,06; p= 0,956) e fora do período de magra, o que pode contribuir para a intensi-
safra (r= 0,08; p= 0,442). dade dos quadros álgicos (MARASCHIN ET AL., 2010).
O avanço da idade, associado a uma atividade
que exige esforço físico, de forma contínua,
Discussão pode predispor essas mulheres a maior pre-
valência de dor, como no caso deste estudo. O
A prevalência de dor lombar foi alta entre os envelhecimento é uma tendência que envolve
agricultores pesquisados (98,3%), e nas mu- a população rural no estado de Santa Catarina
lheres foi de 100%. A média de dor pela EVA dada a migração dos jovens para as cidades.
foi de 5,89 (±2,49) e mais alta nas mulheres Essa realidade pode explicar os valores mais
(6,14 ± 2,45), em relação aos homens (5,56 ± elevados da escala de dor em trabalhadores
2,51). Carvalho e Kovacs (2006) classificam rurais em relação a outros estudos.
o sintoma de dor como moderada, ou seja, A classificação de Oswestry indicou dis-
pode interferir parcial ou totalmente no de- função leve na maioria dos trabalhadores
sempenho das atividades. (78,2%), no entanto pela classificação da
Os resultados são superiores aos de EVA há predomínio de dor forte (entre sete
O’Sullivan, Cunningham e Blake (2009) e nove na EVA) tanto na população em geral
que identificaram 74% de prevalência de (44,3%) quanto em homens (41,6%) e mulhe-
dor lombar em 104 agricultores irlande- res (46,4%), o que impediria o desempenho
ses; Birabi, Dienye e Ndukwu (2012), com das atividades (CARVALHO; KOVACS, 2006). Esse
67,10%, em um estudo com 310 agricultores fator pode ser considerado como contradi-
saudáveis no sul da Nigéria. tório entre os instrumentos de medidas para
Dos trabalhadores que experimentaram verificação da dor lombar, ou demonstrar a
dor lombar, 72% afirmaram que a agricultura necessidade de execução das tarefas labo-
contribuiu com seu problema e interferiu na rais, mesmo com dores elevadas.
realização do trabalho diário dos indivíduos. Estudo de Liu et al. (2012) investigou a pre-
Atividades que incluem o levantamento de valência de dor nas costas autorrelatadas e
objetos pesados foi o fator limitante mais as associações entre potenciais fatores de
citado, seguido da condução de máquinas, risco e dor nas costas com 2.045 agricultores
do trabalho com gado e dosagem dos animais chineses selecionados a partir de 800 famí-
(O’SULLIVAN; CUNNINGHAM; BLAKE, 2009). lias. As associações entre dor nas costas e
O presente estudo não encontrou corre- potenciais fatores de risco foram realizadas
lação entre a intensidade da dor lombar e por regressão logística e incluíram idade,
número de horas em atividades agrícolas, sexo, nível de educação, estresse percebido,
no entanto Birabi, Dienye e Ndukwu (2012) principais atividades agrícolas, tabagismo
relatam que a dor lombar é mais prevalente e hábito de beber. Da população estudada,
naqueles que exercem atividade agrícola de 786 (38,4%) agricultores relataram dor nas
longa duração. Os autores complementam costas. Dois terços das pessoas com dor nas
ainda que existe alta prevalência de dor costas (66,0%) relataram que a dor afeta a
lombar na faixa etária de 31-40 anos (49,04%) quantidade e qualidade do trabalho. O relato
e no sexo feminino (50,96%). de dor aumenta com a idade, e mulheres e
Sabe-se que entre as enfermidades crô- agricultores que sofreram algum estresse
nicas que acometem as mulheres, uma das regular eram mais propensos a relatar dor

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 183-194, JAN-MAR 2017


Dor lombar, flexibilidade muscular e relação com o nível de atividade física de trabalhadores rurais 191

nas costas. Ainda, a dor nas costas autorrela- observou correlações significativas entre a
tada foi mais frequentemente entre os fuman- flexibilidade dessa musculatura e a intensi-
tes e os que consumiam bebidas alcoólicas. dade de dor lombar.
Pesquisa de Silva et al. (2013) observou que Halbertsma et al. (2001) investigaram a ex-
há déficit de conhecimento dos agricultores tensibilidade e rigidez dos isquiotibiais em
quanto à exposição aos riscos em função do pacientes com dor lombar não específica em
seu trabalho, fator que preocupa, visto que, 40 indivíduos, sendo 20 pacientes com dor
para assumir uma postura de cuidado, o lombar não específica e 20 indivíduos saudá-
sujeito precisa reconhecer os aspectos que veis. O grupo de pacientes com dor lombar
o colocam em condição vulnerável perante apresentou restrição significativa na ADM e
as questões ocupacionais. No caso de dor extensibilidade dos isquiotibiais em compa-
lombar, programas como escola postural e ração com o grupo controle e não houve di-
grupos de algia para agricultores podem se ferença significativa na rigidez muscular dos
constituir em estratégias eficazes para di- isquiotibiais entre os grupos. Dessa forma, a
minuir os índices de dor lombar, mas, ini- diminuição da ADM e extensibilidade dessa
cialmente há que se mobilizar esforços para musculatura não está relacionada com a
sensibilizar os trabalhadores quanto aos rigidez, mas sim com a tolerância ao alonga-
riscos a fim de promover adesão destes aos mento dos pacientes.
grupos de apoio e tratamento. O estudo encontrou correlações negativas
Soysal, Kara e Arda (2013), ao investigar o NAF significativas na flexibilidade toracolombar
pelo Ipaq em pacientes com lombalgia crônica e de isquiotibiais em todas as medidas ana-
e dor cervical em 96 pacientes, divididos igua- lisadas. Destaca-se a correlação observada
litariamente em três grupos – pacientes com na avaliação da flexibilidade toracolombar,
dor lombar ou cervical no pré-operatório, am- medida pelo Banco de Wells no teste de
bulatoriais e controles saudáveis –, observaram sentar e alcançar, que foi considerada mo-
que houve modificação de atividade física em derada (r= -0,422, p<0,001), sendo que as
pacientes com lombalgia crônica e dor cervical medidas do AP e TEPR foram considera-
e que os pacientes pré-operatórios com lom- das fracas (r= -0,153, p=0,044; r= -0,238,
balgia são mais afetados do que aqueles com p=0,002).
problemas cervicais. Pacientes com dor lombar possuem menor
Manter-se ativo, com bons níveis de fun- ADM, alterações na rigidez muscular e déficit
cionalidade, são fatores que protegem a nos níveis de razão de força concêntrico/
saúde do ser humano, desde que as ativida- excêntrica. A diminuição da extensibilidade
des físicas não gerem sobrecarga e que sejam dos isquiotibiais foi associada ao aumento da
realizadas com orientações para evitar a so- rigidez passiva durante a ADM comum de
brecarga e posicionamento inadequado. movimento (20° a 50°), e a tolerância ao alon-
Pesquisa de Johnson e Thomas (2010) relata gamento está associada à restrição mecânica,
que indivíduos com lombalgia ou história de e não a medidas comportamentais autorrefe-
dor lombar crônica não apresentaram corre- ridas que indicam aumento da dor ou medo.
lação significativa entre a flexibilidade dos Não há clareza no estudo se a diminuição
isquiotibiais medida pelo TEPR e a excur- da extensibilidade dos isquiotibiais é causa
são de flexão lombar em tarefas de flexão de ou efeito na dor lombar crônica (MARSHAL;
tronco, sendo razoável supor que o aumento MANNION; MURPHY, 2009).
do comprimento dos isquiotibiais não afe- Os quadros de dor lombar, sejam eles crô-
taria a mobilidade lombar em tarefas que nicos ou agudos, geram sofrimento e limita-
exijam flexão de tronco em indivíduos com ções ao trabalhador rural. Conforme estudo
lombalgia. No entanto, o presente estudo de Medina et al. (2014), são poucas as ações de

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 183-194, JAN-MAR 2017


192 SILVA, M. R.; FERRETTI, F.; LUTINSKI, J. A.

promoção da saúde e prevenção de doenças indicando que indivíduos sedentários


crônicas organizadas pelas equipes de possuem grau significativamente menor
atenção primária no País, principalmente no de AP do que os insuficientemente ativos
meio rural, o que, por si só, é suficiente para e ativos ou muito ativos. O mesmo resulta-
colocar como premente a adoção de medidas do ocorre entre os homens; e as mulheres
que minimizem essa realidade. A Fisioterapia sedentárias possuem menor flexibilidade
pode contribuir atuando no tratamento das nos testes de AP e TEPR do que as ativas e
algias, com programas de reabilitação ou de muito ativas.
educação em saúde e prevenção, com vistas a Observou-se correlação negativa mode-
minimizar o sofrimento gerado por essa con- rada entre a intensidade da dor e a flexibi-
dição. A população rural e trabalhadora, que lidade toracolombar pelo FBW e fraca de
apresenta um quadro tão prevalente de dor, isquiotibiais pelo AP e TEPR.
carece de orientações e assistência de uma Resultados contraditórios de associação
equipe multiprofissional para minimizar a entre a dor lombar e flexibilidade demons-
realidade encontrada neste estudo. tram que novos estudos explorem essas va-
Para que as ações sejam efetivas, há que se riáveis, bem como a verificação da ADM da
considerar os determinantes sociais do con- coluna vertebral com atividades realizadas
texto rural e a concepção ampliada de saúde, em trabalhadores e a adoção de programas
bem como reconhecer o protagonismo dos de exercícios educativos e preventivos com
sujeitos na construção da sua saúde. Por trabalhadores rurais.
outro lado, é preciso reforçar a responsabi- Dada a quantidade e a diversidade de ati-
lidade do Estado na produção de condições vidades físicas realizadas pelos agricultores,
de vida condizentes com as necessidades da os resultados deste estudo também indicam
população, para não afirmar uma tendência a necessidade de estudos adicionais de ava-
de culpabilizar e responsabilizar o indivíduo liação da atuação das equipes multiprofissio-
pela sua saúde (SILVA; BAPTISTA, 2015). Residir em nais de saúde da Estratégia Saúde da Família
meio rural, em algumas regiões, restringe o e do Núcleo de Apoio à Saúde da Família,
acesso dos sujeitos aos programas de saúde, tendo como foco esta população.
o que, de fato, interfere nas condições de vida
dessa população, aspecto que precisa ser
modificado mediante políticas que atentem Colaboradores
para as especificidades desse segmento.
Marcia Regina da Silva contribuiu substan-
cialmente em todas as etapas do manuscrito;
Conclusões Fátima Ferretti contribuiu com a Concepção
e interpretação dos dados, produção e
Dos agricultores pesquisados, 98,3% rela- revisão crítica do artigo e seu conteúdo inte-
taram algum sintoma de dor lombar, sendo lectual, aprovação final da versão a ser publi-
presente em 100% das mulheres. cada; Junir Antonio Lutinski contribuiu com
Houve relação estatisticamente signifi- a análise e interpretação dos dados; revisão
cativa entre a flexibilidade de isquiotibiais crítica do conteúdo intelectual e aprovação
medida pelo AP e o NAF dos trabalhadores, final da versão a ser publicada. s

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Dor lombar, flexibilidade muscular e relação com o nível de atividade física de trabalhadores rurais 193

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 183-194, JAN-MAR 2017


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Conflito de interesses: inexistente
debate, Rio de Janeiro, v. 37, n. 97, p. 347-353, jun. 2013.
Suporte financeiro: Bolsa de auxílio à pesquisa pela modalidade
art. 170 da Constituição Estadual para Núcleos de Iniciação
Científica

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ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE 195

Nem sempre sim, nem sempre não: os


encontros entre trabalhadores e usuários em
uma unidade de saúde
Not always yes, not always no: encounters between workers and users
at a health unit

Sonia Maria de Melo1, Luiz Carlos de Oliveira Cecílio2, Rosemarie Andreazza3

RESUMO Uma peculiaridade do trabalho em saúde é sua característica de trabalho vivo em


ato, dimensão micropolítica dificilmente captada pelos instrumentos de avaliação tradicio-
nais. Assim, o estudo teve como objetivo caracterizar como os trabalhadores lidam com as de-
mandas trazidas pelos usuários a uma Unidade Básica de Saúde (UBS), através da observação
participante, em UBS ‘tradicional’ do município de São Paulo. As respostas dos trabalhadores
foram classificadas em demandas atendidas, demandas não atendidas e respostas múltiplas
para situações complexas. Constatou-se que, perante as restrições do serviço, os trabalhado-
res apresentam marcado autogoverno para (re)criar regras de funcionamento da unidade.

PALAVRAS-CHAVE Atenção Primária à Saúde. Acesso aos serviços de saúde. Necessidades e


demandas de serviços de saúde. Centros de saúde.

ABSTRACT A peculiarity of working with health is its characteristics of living work in the act, a
micropolitical dimension hardly perceived by traditional evaluation instruments. Therefore, the
study aimed to characterize how workers deal with the demands brought by users to a Primary
Health Care Unit (PHC), through the participant observation, at a ‘traditional’ PHC of the
1 Universidade Federal de municipality of São Paulo. The workers’ responses were classified in demands met, demands no
São Paulo (Unifesp), Escola
Paulista de Medicina, met and multiple answers to complex situations. It was found that, before the restrictions of the
Departamento de work, workers present a marked self-government to (re)create operating rules of functioning of
Medicina Preventiva – São
Paulo (SP), Brasil. the unity.
soniam.melo2012@gmail.
com
KEYWORDS Primary Health Care. Health services accessibility. Health services needs and
2 Universidade Federal de demand. Health centers.
São Paulo (Unifesp), Escola
Paulista de Medicina,
Departamento de
Medicina Preventiva – São
Paulo (SP), Brasil.
luizcecilio60@gmail.com

3 Universidade Federal de
São Paulo (Unifesp), Escola
Paulista de Medicina,
Departamento de
Medicina Preventiva – São
Paulo (SP), Brasil.
rbac48@gmail.com

DOI: 10.1590/0103-1104201711216 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 195-207, JAN-MAR 2017
196 MELO, S. M.; CECÍLIO, L. C. O.; ANDREAZZA, R.

Introdução qualitativo de caráter etnográfico em uma


UBS do município de São Paulo.
A atenção básica tem sido pensada como a
principal porta de entrada para o Sistema Por método etnográfico entende-se uma ativi-
Único de Saúde (SUS) e a coordenadora do dade de pesquisa no terreno, por prolongados
cuidado a ser realizado nas redes de atenção períodos de tempo, com contato direto com o
à saúde, conforme recomendado pela polí- objeto de estudo, seguido pela sistematização
tica nacional de saúde (BRASIL, 2012; OMS, 2008). em formato de texto da experiência [...] essa
Nesse sentido, são necessários estudos que vivência só é assegurada pela observação
consigam caracterizar melhor se, e como, as participante ‘estando lá’ – passa a ser evoca-
Unidades Básicas de Saúde (UBS) garantem da durante toda a interpretação do material
o ‘acesso’ dos usuários aos cuidados primá- etnográfico [...]. (CAPRARA; LANDIM, 2008, P. 366).
rios de saúde e, como desdobramento, aos
demais níveis do sistema de saúde. Portanto, pelas características do pro-
O ‘problema’ tomado como ponto de blema de pesquisa – a dificuldade de carac-
partida da pesquisa foi o fato bem conhecido terizar melhor o que se passa no encontro
de o trabalho em saúde, por sua caracterís- entre trabalhadores e usuários dos serviços
tica de trabalho vivo em ato, mobilizador de –, o emprego da abordagem etnográfica
tecnologias relacionais (MERHY; FRANCO, 2005), justifica-se por permitir uma melhor aproxi-
resultar em uma dimensão micropolítica mação com a micropolítica dos serviços de
dificilmente captada pelos instrumentos de saúde.
avaliação tradicionais. Fazem-se necessários Entre os métodos utilizados em etnogra-
estudos que produzam informações mais re- fia, a observação participante é a técnica fun-
finadas sobre os modos como o cuidado vem damental (LAPASSADE, 2005), caracterizando-se
sendo produzido nos serviços de saúde, em pela presença do pesquisador em campo por
particular, o que ocorre nos encontros entre tempo prolongado. Esse método foi escolhi-
as equipes de saúde e os usuários. do por permitir o mapeamento dos proces-
A pesquisa trabalhou com o universo das sos em curso na unidade de saúde estudada,
demandas apresentadas pelo usuário para a dando visibilidade a aspectos de sua micro-
equipe de uma UBS, ou seja, tudo aquilo que política, tentando caracterizar os sentidos
ele traz como solicitação ou expectativa. Cabe que os trabalhadores dão para seu trabalho,
ao trabalhador, no momento do encontro com no caso, como se posicionam ou que respos-
o usuário, lidar com suas demandas, tentando tas produzem quando se veem diante dos
dar a melhor resposta possível a elas. usuários que, dos mais diferentes modos,
expressam suas demandas.
A pesquisadora permaneceu na UBS de
Metodologia oito a doze horas semanais, pelo período de
doze meses, observando e registrando em
Do ponto de vista metodológico optou-se em caderno de campo cenas do seu cotidiano,
trabalhar com as ‘demandas’ apresentadas sem um foco de observação em particular.
pelo usuário, entendidas como um pedido de A UBS estudada foi sugerida pela gestão
se consumir algo, de obter algo que o usuário regional da Secretaria Municipal de Saúde
julga precisar em determinado momento de São Paulo. Não houve um roteiro prévio
(consulta médica, exames, procedimentos, de observação durante a permanência na
encaminhamentos, curativos, atestados etc.). unidade, pois o presente estudo é parte de
Para caracterizar como a equipe de saúde uma pesquisa mais ampla (CECÍLIO, 2016), que
lida com tais demandas, foi realizado estudo buscava conhecer melhor o cotidiano de

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Nem sempre sim, nem sempre não: os encontros entre trabalhadores e usuários em uma unidade de saúde 197

UBSs em seus múltiplos aspectos (a prática nítido, a criatividade do trabalhador, inclusi-


médica, os processos microrregulatórios, a ve no manejo das regras, embora isso esteja
prática dos agentes comunitários de saúde presente nas outras categorias também.
etc.), desenhando uma ‘cartografia’ a partir A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de
de seus fluxos, encontros e processos de tra- Ética em Pesquisa da Universidade Federal
balho (PASSOS; KASTRUP; TEDESCO, 2014). O artigo de São Paulo, através do parecer nº 655.842.
apresenta o resultado de uma dissertação de
mestrado (MELO, 2015) que, tendo tomado, espe-
cificamente, como problema a invisibilidade A unidade de saúde
do encontro entre trabalhador e usuário para estudada: quando os
o gestor, fez uma seleção de registros de cenas
nas quais era possível identificar o usuário
parâmetros oficiais não
apresentando alguma demanda (consulta captam as dificuldades de
médica, fornecimento de medicamentos, atendimento vividas pela
algum tipo de procedimento etc.) no seu en- população
contro com o trabalhador. Interessava ver em
tais registros ‘como’ o trabalhador lidou com Em São Paulo, várias UBSs seguem operan-
as demandas, em particular, o quanto ele con- do no modelo denominado UBS ‘tradicional’,
seguiu produzir um encontro mais ou menos que compreende unidades organizadas sob
cuidador, objetivo maior do estudo. o modelo da Ação Programática em Saúde,
Não houve a pretensão de realizar um priorizando os programas de saúde da
estudo quantitativo de tipos de respostas, criança, saúde da mulher, saúde do adulto,
tendo em vista o conjunto das cenas sele- saúde mental, saúde bucal e programas es-
cionadas. Todo o manejo de ‘quantidades’ peciais para o atendimento à tuberculose e à
e ‘números’ apresentados no artigo serviu hanseníase, com foco na promoção e na pre-
apenas para compor uma espécie de painel venção à saúde (MARSIGLIA, 2008).
panorâmico do funcionamento da UBS. Não Mesmo após a definição pelo Ministério
foi realizada nenhuma análise estatística ou da Saúde da Estratégia Saúde da Família
qualquer outro tratamento de caráter quan- (ESF) como sua opção preferencial de or-
titativo dos dados produzidos, pois não era ganização da atenção básica, em 2014, o
esse o objetivo do estudo. município de São Paulo ainda mantinha 169
Para análise do material selecionado, das suas 451 UBSs operando no modelo dito
vários enquadramentos foram testados, até ‘tradicional’ (SÃO PAULO, 2015).
se obter a seguinte categorização: ‘Demanda Além dos diferentes modelos assisten-
não atendida’ (quando havia uma nega- ciais atuando no município de São Paulo, co-
tiva pura e simples); ‘Demanda atendida’ existem diferentes modelos de gestão, sendo
(quando a demanda foi atendida tal como possível encontrar unidades geridas pela ad-
apresentada, ou se foi feita alguma ‘pro- ministração direta e outras geridas em par-
posta alternativa’ para responder àquela ceria com diferentes instituições privadas.
demanda); ‘Respostas múltiplas para de- Na área da atenção básica paulistana, foi
mandas complexas’ (aquelas situações de criada, em 2005, a AMA (Assistência Médica
demandas múltiplas, complexas, nas quais Ambulatorial), com foco nos atendimentos
o trabalhador buscou dar resposta para de urgência de baixa e média complexidades.
algumas delas, negou outras, fez a ‘gestão das No ano de 2013, havia 116 AMAs no municí-
regras’, adotando certas flexibilizações em pio. Alguns estudos apontam a fragmentação
algumas situações etc.). Nesta última cate- criada no atendimento da atenção básica
goria é que é possível revelar, de modo mais com a implantação da AMA e defendem a

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 195-207, JAN-MAR 2017


198 MELO, S. M.; CECÍLIO, L. C. O.; ANDREAZZA, R.

prática de atendimento à demanda espontâ- A unidade buscou alternativas para re-


nea nas próprias UBSs, conforme já acontece solver o problema das filas, como aumentar
na prática cotidiana das unidades, inclusive o quantitativo de pessoal para realizar os
na UBS estudada (SÃO PAULO, 2015; PUCCINI, 2006; agendamentos, trocar o dia da agenda, mas,
BRASIL, 2013): A UBS estudada opera no ‘modelo como o problema estava vinculado à baixa
de UBS tradicional’, ou seja, não possui ESF. oferta de atendimento médico da unidade, as
A gestão é feita de forma direta pelo muni- estratégias nunca surtiam o efeito desejado.
cípio, embora a unidade abrigue um NIR Como não foi possível solucionar o problema
(Núcleo Integrado de Reabilitação) gerido do excesso de demandas para agendamento
pela Supervisão Regional de Saúde Sudeste, das consultas médicas, a agenda passou a não
onde trabalham psicólogos, terapeuta ocu- ter dia certo para abrir, transformando-se
pacional, fonoaudióloga e fisioterapeuta, em uma loteria para os usuários. Os usuários
contratados por uma entidade parceira. que desejam agendar consultas médicas pre-
A porta de entrada para o NIR é feita por cisam ‘ficar passando’ para verificar o dia em
meio da regulação municipal. As demandas que a agenda estará aberta.
de atendimento no NIR geradas na própria Durante o período de observação,
unidade seguem a mesma regra. pudemos constatar que a unidade ficou sem
O atendimento ao público é realizado de pediatra ou com apenas uma pediatra às
segunda à sexta-feira, das 7h às 19h. A equipe é terças-feiras; o psiquiatra saiu da unidade
composta por uma gerente, dois clínicos gerais, e nunca foi reposto; o grande gargalo da
três pediatras, dois ginecologistas, um psicólo- unidade era a falta de clínico geral, pois
go, duas enfermeiras, dois fisioterapeutas, duas contava apenas com um médico, que atendia
fonoaudiólogas, uma terapeuta ocupacional, de 2ª a 6ª pela manhã, e com a uma médica,
uma farmacêutica, três odontólogos, uma edu- que atendia apenas às sextas-feiras pela
cadora e uma assistente social. A equipe técnica manhã, ‘cedida’ por uma unidade vizinha.
de enfermagem é composta por oito profissio- A equipe conseguiu uma composição mais
nais, sendo três técnicos em saúde, dois técni- favorável, conforme pudemos consta-
cos em farmácia e três profissionais de apoio tar em visita à unidade após o termino da
ao consultório odontológico. Catorze profissio- investigação.
nais atuam na área administrativa. A unidade Se utilizados os dados da Portaria nº 1.101/
conta com dois vigilantes e dois auxiliares de GM, de 12 de junho de 2002, em vigência no
serviços gerais. período do estudo, havia um déficit aproxi-
Sua área de cobertura abrange cerca de mado de 54% de oferta de consultas (BRASIL,
vinte e dois mil habitantes, sendo que há 2002). Se utilizados os parâmetros estabeleci-
uma evidente insuficiência de profissionais dos pela recente Portaria GM/MS nº 1.631/
para atender às demandas da população, em GM, de 1 de outubro de 2015, a capacidade
particular, por consultas médicas. da unidade também estava abaixo do reco-
No início da pesquisa no campo, o prazo mendado quando da realização da pesqui-
médio do agendamento para consulta nas sa. A aplicação de parâmetros oficiais não
clínicas básicas (pediatria, gineco-obste- consegue captar as variações constantes da
trícia e clínica médica) era de noventa dias. composição da equipe (demissões sem repo-
Esse tempo, no entanto, camuflava as idas e sições ou a inesperada chegada de um novo
vindas dos usuários para conseguir realizar, profissional, por exemplo). De fato, não há
de fato, o agendamento. Nos dias de agenda- parâmetro com sensibilidade suficiente para
mento, a fila dobrava a esquina, e havia usu- captar ou revelar os dramas dos usuários no
ários chegando antes das 5h da manhã para dia a dia, que ficaram mais visíveis no correr
garantir a marcação de sua consulta. da observação de campo.

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Nem sempre sim, nem sempre não: os encontros entre trabalhadores e usuários em uma unidade de saúde 199

Resultados e discussão [o recepcionista] me explica a política do encai-


xe: ‘está vendo esta agenda? É do clínico geral.
Foram selecionadas 128 cenas que registram Ele atende dezesseis pacientes, mas como muitos
encontros entre trabalhadores e usuários, faltam, deixamos as pessoas que querem passar
tendo como critério de inclusão aquelas no médico aguardando, caso haja vaga para en-
cenas nas quais era posto, de maneira clara, caixe. Espera-se quinze minutos do horário agen-
algum tipo de demanda. Dessas, 77 são re- dado. Se o paciente não chegar, perde a vaga.’
gistradas na recepção central ou no ‘balcão Há seis pacientes esperando pelo encaixe. Caso
de regulação’, sendo que as demais ocorre- a caso, é explicado que só passarão se algum pa-
ram nos diversos espaços da UBS, o que já ciente faltar, ‘mas sempre falta’. Há um acordo
permite afirmar que os usuários se utilizam com o médico quando há casos mais graves. Eles
de vários ‘pontos’ para expressar suas de- colocam, às vezes, até dezoito pacientes, mas ‘fi-
mandas, além da recepção. cam devendo pra ele’, e no dia seguinte ele aten-
A maior procura ainda é por consultas de apenas catorze. Quando a fila do encaixe já
médicas. Foram registradas 55 demandas de está grande, sugere que o paciente chegue mais
consultas para os médicos da atenção básica cedo amanhã para ‘tentar o encaixe’.
(pediatra, clínico geral e ginecologista) e mais
10 para médicos especialistas, totalizando 65 Na unidade, a equipe da recepção fun-
das 128 demandas registradas. Vê-se, aqui, ciona como um ‘filtro’ entre a demanda da
como se aplicam as considerações de Cecílio população e a sua capacidade de atendimen-
(2001) sobre a ‘tradução’ mais frequente que to real. O protagonismo dos trabalhadores
os usuários fazem de suas necessidades de da recepção tem grande peso na definição
saúde em demandas por consultas médicas. sobre o acesso ou não à UBS. Esse papel de
Com um quadro de oferta de atendimento gatekeeper é fonte de muito sofrimento para
médico sempre inferior à demanda, pacien- os trabalhadores. Essa defasagem entre a
tes que não conseguem marcar as consultas demanda e a capacidade de oferta da unidade
desejadas (o que acontece de modo frequen- é a moldura da categorização que se adota
te) são orientados a tentar os ‘encaixes’ para organizar o material empírico produ-
diários. Isso significa chegarem cada vez zido na observação participante: ‘demanda
mais cedo à unidade para colocar o nome atendida’, ‘demanda não atendida’ e ‘respos-
na fila de espera e aguardarem vagas decor- tas múltiplas para demandas complexas’.
rentes de pacientes que faltam às consultas
agendadas. Uma luta diária. Demanda atendida
Na recepção, há um ‘calendário extra para
agendamento dos pacientes’. Além da agenda O usuário que se dirige a uma UBS espera
oficial no computador, foi criada uma agenda encontrar a solução para o problema de
paralela com os encaixes do dia e com ‘encai- saúde que o incomoda. Mesmo quando uma
xes pré-agendados’ pela própria unidade, o demanda trazida pelo usuário é atendida,
que é uma contradição, em termos. como na cena abaixo, pode estar esconden-
A equipe da recepção trabalha com alguns do as idas e vindas dos usuários em busca de
critérios para fazer os encaixes. Para as gi- atendimento:
necologistas, por exemplo, são agendadas
preferencialmente as gestantes ou casos ur- Senhora tem intenção de marcar consulta com o
gentes. Já para o clínico geral, são agenda- clínico geral, já tinha ficado na fila na quarta-fei-
dos os casos em que os exames dos pacientes ra passada, mas a agenda não abriu. Desta vez,
estão alterados e os casos que são considera- dormiu na casa da irmã, que é na rua da unidade,
dos urgentes. e chegou às 4h40.

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200 MELO, S. M.; CECÍLIO, L. C. O.; ANDREAZZA, R.

O protagonismo do trabalhador é, em achando que tem direito a encaixar. Não é bem


algumas situações, primordial para o atendi- assim. Os médicos reclamam. Muitos não são
mento das demandas, como na intervenção urgências, mas querem encaixe para pegar ates-
da recepcionista na cena abaixo: tado, mostrar exame, autorização para cirurgia,
trocar receita. Eles não querem ir na AMA, prefe-
Tem um senhor bem magro aguardando encaixe rem passar aqui, fala que lá não é bem um aten-
para o clínico geral, e a recepcionista fica pre- dimento... é claro que é.
ocupada, pois não sabe se faltará gente o sufi-
ciente para conseguir encaixá-lo. Ela vai à sala A cena seguinte mostra duas questões.
do médico, e ele autoriza o encaixe. Ela dá pulos A primeira é a insegurança do trabalhador
de alegria! sobre sua possibilidade de dar uma resposta
ao que o usuário demanda, como se fosse um
Na cena a seguir, podem ser notados três ‘jogo de final aberto’, enfrentado diariamen-
elementos recorrentes nesses encontros: te. A segunda mostra o vínculo estabelecido
(1) a influência do médico no trabalho dos entre o usuário e a médica, corroborando
demais membros da equipe ao limitar o que o usuário deseja ser atendido pelo pro-
número de consultas; (2) o caráter subjeti- fissional de sua confiança, que já conhece
vo na busca de soluções para as demandas o seu histórico clínico. Assim, nos momen-
trazidas pelos usuários, como no caso da tos de agravamento do seu quadro, ele não
recepcionista Marcília, que opta por seguir a deseja ser encaminhado para outro serviço.
regra de forma mais rígida, enquanto a outra
recepcionista flexibiliza a mesma regra para A paciente quer passar com a ginecologista, mas
promover o atendimento que julga neces- a recepcionista avisa que já tem muito encaixe
sário; (3) a frequente tensão na recepção, para hoje, que ela irá colocar o nome da paciente
provocada pela utilização do mecanismo de na lista, mas não pode garantir, pois as priori-
encaixe. Nesta cena, ainda merece destaque dades são as gestantes. A paciente questiona o
o comentário da recepcionista sobre a forma critério, está com uma infecção e não aguenta de
de utilização dos serviços pelo usuário, tra- dor. Poderia ir ao Pronto atendimento, mas faz
zendo à tona a ‘confusão’ de papéis entre o acompanhamento com a Dra. Vania e, inclusive,
uso da UBS e da AMA. tem resultados dos exames para mostrar para
médica, portanto, acredita que o melhor é passar
O paciente insiste em passar no clínico geral, pois com ela, que já vem acompanhando.
está com os exames alterados. Depois de muita
insistência, a recepcionista pede que ele converse A cena acima, assim como várias outras,
com a enfermeira. São cerca de 07h30min, e já mostra bem como o protagonismo do usuário
são dezesseis pacientes aguardando para passar parece ser elemento decisivo na construção
com o clínico. Desses, apenas quatro foram agen- de soluções, mesmo que, para que sua solici-
dados no sistema, e os demais são encaixes. Ela tação seja atendida, tenha que pressionar o
explica que alguns pacientes foram pré-agenda- trabalhador. Poderia ser dito que os usuários,
dos pela própria unidade por terem exames al- através de sua presença e de suas pressões,
terados. Com a permissão para o encaixe, ficam modelam, em boa medida, o funcionamento
dezessete. A permissão foi dada por outra recep- dos serviços de saúde, e isso fica bastante
cionista, e não pela enfermeira. claro, em mais de uma situação, no correr da
observação participante.
Na cena registrada na farmácia, é possível
A recepcionista Marcília comenta que vai aca- observar como o excesso de regras criadas
bar esta política do encaixe. O paciente já chega para o melhor controle de insumos pode ser

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Nem sempre sim, nem sempre não: os encontros entre trabalhadores e usuários em uma unidade de saúde 201

um impeditivo para o bom cuidado, embora, trabalhadores, principalmente os da recepção.


por vezes, o trabalhador opte por quebrar a A falta de médicos é o principal motivo
regra para garantir que o paciente receba a para o não atendimento das demandas dos
medicação de que necessita. usuários, como visto antes. É frequente o vai
e vem dos usuários para conseguir acesso à
[terça-feira] Chega um senhor que os 30 dias consulta médica desejada.
da última retirada do medicamento vence na
segunda-feira, ela pede para ele retornar na sex- Senhora diz que está vindo pela terceira vez
ta e argumenta: ‘na sexta vou fazer hemodiálise, tentar encaixe com o clínico geral ou mesmo
na segunda também não posso’. Ela entrega a agendar uma consulta, e comenta: ‘mas nunca a
medicação e comenta: ‘não posso deixar ele sem agenda está aberta’.
os remédios, ele vai realizar hemodiálise. E se os
remédios acabarem?’. Devido à centralidade do médico nos pro-
cedimentos de saúde, ele torna-se o profis-
Do que foi visto até agora, é possível afirmar sional essencial para o andamento de várias
que, mesmo nas cenas consideradas como atividades na unidade, já que há a exigência
‘Demanda Atendida’, há um grau de incerte- formal da prescrição médica para retirada de
za, de acaso, que traz muita insegurança para medicações, realização de exames e encami-
o trabalhador e insatisfação para o usuário. nhamentos para outros profissionais. A falta
Pode-se verificar que para a demanda ser da prescrição gera o não atendimento de di-
atendida é fundamental haver oferta para versas demandas na unidade.
tanto. O estudo permite caracterizar situa-
ções nas quais o trabalhador vai viabilizando Senhora pergunta se tem fisioterapeuta na uni-
‘ofertas alternativas’ para, de algum modo, dade, explica que a sogra sofreu uma queda e
responder às demandas dos usuários, evi- quebrou o pulso. Por enquanto, ela tem feito os
tando dizer um simples ‘não’. Essas ofertas procedimentos com médico particular, mas está
podem estar na própria unidade, por meio do ficando muito caro. A recepcionista diz que sim e
melhor aproveitamento dos recursos exis- explica o procedimento para conseguir vaga. Pri-
tentes, ou podem ser encontradas na rede de meiro passa com o clínico (mas não está agen-
saúde pública, como no caso dos encaminha- dando, por enquanto. Caso ela queira tentar en-
mentos para as unidades da AMA. caixe, deve chegar cedo), ele encaminha para o
Às vezes, o trabalhador opta por quebrar ortopedista, que, então, a direcionaria para fazer
fluxos formais do sistema de saúde para pro- fisioterapia. E que, se tivesse sorte, poderia ser na
porcionar cuidado ao usuário, de modo que unidade (ou não).
muitas soluções são encontradas ad hoc.
A ‘politica de encaixe’ tem a intenção de
Demanda não atendida aliviar o sofrimento da população causado
pela falta de atendimento médico, procuran-
Nesse bloco, são mostradas cenas nas quais o do um melhor aproveitamento dos profis-
usuário, além de ter sua demanda negada por sionais presentes. Essa política, no entanto,
vários motivos, vai embora sem ter nenhuma gera uma grande ansiedade e insatisfação
alternativa oferecida além da resposta ‘vai nos usuários.
passando para verificar quando a agenda
abre’. Essa incerteza quanto ao atendimento A paciente chegou às 6h para tentar encaixe com a
é, sem dúvida, um grande problema enfren- ginecologista, ficou com o nome na lista de espera,
tado pelos moradores da área de referência porém, após as 10h horas, sem sucesso, desistiu.
da UBS estudada. E fonte de tensão para os Nesse dia, poucas pacientes faltaram à consulta.

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202 MELO, S. M.; CECÍLIO, L. C. O.; ANDREAZZA, R.

Essa incerteza sobre o atendimento gera o marido (eu não consegui entender o motivo).
momentos de tensão entre os usuários e a Após a insistência do marido, o recepcionis-
equipe da recepção. ta orienta a aguardarem na frente da sala da
enfermeira.
A recepcionista fala da dificuldade em trabalhar
sob tanta pressão dos usuários e que tem medo
de ser agredida fisicamente. Comenta que agora O marido reclama que já foi três vezes na UBS e
os encaixes estão difíceis, pois, como os usuários não é atendido, o recepcionista explica ao marido
não conseguem novas consultas, não têm faltado ‘que foi atendido, sim, eu atendi! Só não resolveu
às consultas agendadas. Nesta tarde havia sete o problema dele’.
pessoas para encaixe com a ginecologista, e so-
mente três ausências, assim, os demais tiveram Mesmo considerando a recepção como
que ir embora sem conseguir atendimento. um espaço de escuta e criação de alternati-
vas, há limites para a autonomia dos traba-
lhadores, considerando que ele deverá seguir
Uma paciente jovem reclama. Diz que falaram um conjunto de normas e procedimentos
para ela esperar que seria atendida. Ela chegou à preestabelecidos.
unidade às 11h e já eram 15h40 quando avisaram
que ela não conseguiria. Percebo, novamente, a presença de uma senhora
que já esteve lá pela manhã. Após, fico sabendo
que é um encaixe para a filha com a ginecologis-
A recepcionista é incisiva em dizer que todos fo- ta. Mais uma vez, é explicado que é encaixe, que
ram alertados que era encaixe, portanto podiam deve aguardar surgir vaga e que a prioridade são
ou não conseguir o atendimento médico. A pa- as gestantes.
ciente afirma que não, que para ela estaria certo
que passaria.
A recepcionista (Bete) vai verificar se as ges-
tantes já estão aguardando em frente à sala da
O recepcionista comenta: ‘não dá para deixar o ginecologista e demora um pouco. Neste ínterim,
pessoal esperando sem saber se será atendido. A a filha da senhora chega e descobre que é um
partir de um número de pessoas já temos que dis- encaixe e que tem que aguardar, sem a certeza
pensar. Hoje mesmo eu dispensei várias... a gente de que será atendida. Fica muito nervosa e pede
explica que não podemos dar certeza do atendi- para tirar o nome dela da lista. A mãe tenta ame-
mento, mas eles não entendem ou não querem nizar a situação: ‘a recepcionista falou de manhã
entender’. que era certeza que atendia, o caso da minha
filha é uma urgência, ela está com um nódulo
Cabe à recepção um papel importante na e precisa ver isto’. A recepcionista (Bernadete)
‘triagem’ dos usuários, muitas vezes, sendo ouve e observa, mas não se pronuncia, assim, a
decisiva para definir quem tem acesso ou filha decide: ‘pode tirar o meu nome da lista, eu
não ao atendimento. A falta de conhecimen- tenho que ir trabalhar’.
to técnico pelas recepcionistas pode ser um
problema para os usuários que necessitam O fato de o usuário ser de outra área de co-
de um atendimento diferenciado. bertura é um dos motivos para a negativa do
atendimento. A territorialização (BRASIL, 2012),
Chama minha atenção um casal boliviano. A quando trabalhada de forma muito rígida,
esposa grávida de sete meses está com dor. O impede que o usuário seja atendido pelo pro-
diálogo é bem truncado entre o recepcionista e fissional de sua escolha.

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Nem sempre sim, nem sempre não: os encontros entre trabalhadores e usuários em uma unidade de saúde 203

Mãe deseja marcar consulta com o Pedia- quando a unidade não tem como atender à(s)
tra. Diante da oferta da vaga com o Dr. Valter, demanda(s) dos usuários, a ‘solução’ possível
questiona: é que ele se desloque até outro ponto da rede.
Assim, muitas vezes, os usuários são orien-
Mãe – não tem outro pediatra? tados a procurar a AMA por falta de atendi-
mento médico na unidade. Vale ressaltar que
Recepcionista – Quantos anos tem a criança? esses ‘encaminhamentos’ são realizados de
maneira informal, o que contraria a proposta
Mãe – Cinco meses. original do serviço, como disposto nas dire-
trizes da AMA (SÃO PAULO, 2015).
Recepcionista – então, é somente ele (a mãe fica Como resumo desse item, pode-se dizer
confusa, então, a recepcionista esclarece): tem a que o não atendimento da demanda trazida
Dra. Aline, que é Hebiatra, atende os jovens de 12 pelo usuário pode ter várias causas: 1. A
a 17 anos. Pode marcar com o pediatra? demanda por serviços, especialmente por
consultas médicas, é sempre maior que a
Mae – Não, com ele não, vou marcar em outra disponibilidade de recursos; 2. O despre-
unidade. paro técnico do pessoal da recepção, inclu-
sive o desconhecimento de possibilidades
A Recepcionista informa – Se a referência da mo- de ofertas dentro da própria unidade; 3. A
radia da senhora é esta unidade, não vai conse- falta de ofertas alternativas de atendimento,
guir agendar em outra. ainda muito centrado na figura do médico;
4. A rigidez do processo de territorializa-
Pergunto a mãe como ela irá fazer para acompa- ção; 5. O posicionamento e o protagonismo
nhar o bebê? dos usuários quando recusam a oferta que
é feita, se avaliam que ela não coincide com
Mãe – eu pego o endereço das minhas irmãs e sua demanda de atendimento por algum
marco em outra unidade, me viro..., mas com ele profissional específico; 6. A existência de
eu não passo. uma lógica programática (TEIXEIRA; SOLLA, 2006;
BRASIL, 2012; SÃO PAULO, 2010) que dificulta o acesso
As regras que visam a um maior controle de pacientes que não se encaixam nas prio-
de insumos também são motivos para o não ridades estabelecidas pelo programa; 7. A
atendimento das demandas, principalmente existência de regras para entrega de medica-
na farmácia. mentos e insumos (SÃO PAULO, 2010); 8. A falta de
alguns insumos.
Mãe com o bebê, que toma medicação controla-
da, não tem como checar e, portanto, não pode Respostas múltiplas para demandas
fornecer a medicação. A mãe alega que o bebê complexas
não pode ficar sem a medicação, e ela não tem
mais remédio em casa. A atendente fica preocu- Nesse bloco estão as cenas que, por apre-
pada e tenta resolver. A mãe fala que tem a últi- sentarem demandas múltiplas e complexas,
ma receita em casa com a data do recebimento. resultam em desfechos ambíguos, sendo
A atendente pede para ela buscar em casa, pois o que algumas demandas são atendidas e
posto fica aberto até as sete. outras não, e, em algumas situações, uma
oferta diferente é apresentada pelo traba-
Diante da demora e da incerteza, muitos lhador. São situações bastante frequentes
pacientes saem da unidade sem ao menos e que permitem observar aspectos impor-
enunciar suas demandas. Percebe-se que, tantes da micropolítica da unidade (CECCIM;

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204 MELO, S. M.; CECÍLIO, L. C. O.; ANDREAZZA, R.

MERHY, 2009; MERHY; FRANCO, 2005),


especialmente Em várias situações cotidianas, nas quais
as construções realizadas por trabalhadores o trabalhador se vê diante de casos com-
e usuários. plexos, caracterizados por um conjunto de
Há situações tipo ‘escolha de Sofia’, nas várias demandas trazidas simultaneamente
quais o próprio usuário, trazendo demanda pelo usuário, observam-se duas possibilida-
de três pessoas diferentes, deverá decidir des mais comuns de desfechos: ou o traba-
quem mais precisa de atendimento médico. lhador faz um recorte (seleciona) de uma
determinada demanda para a qual tem uma
Uma senhora com idade bastante avançada resposta factível e, de certa forma, ‘despre-
aguarda para agendar consulta para uma irmã de za’ as demais, ou usa sua capacidade criativa
fé, mesmo com dificuldade em ficar muito tempo para atender, pelo menos parcialmente, ao
em pé porque está doente. Ela se compadeceu da conjunto de demandas apresentadas. Essas
vizinha que cuida de duas irmãs, uma na cadeira cenas são captadas em espaços que propi-
de rodas e a outra com depressão. A ‘moça’ já ciam a escuta, ou seja, de um modo geral,
veio marcar a consulta na UBS, mas não con- não são realizadas na recepção, já que esse
seguiu e fica muito difícil sair de casa, pois não é um ambiente de pressão, alta rotatividade
pode deixar as irmãs sozinhas. A senhora espera de atendimentos (pressa) e de falta de pri-
agendar consulta para as três, já que a ‘moça’, vacidade. E, também, são cenas reveladoras
mais um informe, ‘Não vai poder agendar para sobre as escolhas do usuário, que pode rejei-
mais de uma pessoa. Cada pessoa só terá direito tar as saídas oferecidas pelo trabalhador se
a um agendamento’. A recepcionista Nelma me não forem exatamente o que ele deseja.
explica: ‘é um agendamento por família. Eles têm
que escolher quem precisa mais’.
Conclusões
Cecílio (2012) já havia apontado para o que
seria uma disjunção dos tempos do gestor, do Vivenciar o cotidiano das equipes revelou-se
trabalhador e do usuário, ressaltando como muito produtivo. Mesmo reconhecendo que
o tempo assume dimensões diferentes para demanda em saúde não é a mesma coisa que
os vários atores, em particular, o quanto a necessidade de saúde, a reflexão propiciada
vivência da doença resulta numa vivência do por um olhar mais cuidadoso sobre as de-
tempo, que é da ordem da urgência, do ‘aqui mandas dos usuários, especialmente como
e agora’, que quase nunca pode ser contem- elas são ‘manejadas’ pelo trabalhador, reve-
plada pelos serviços de saúde. lou-se um poderoso analisador das relações
micropolíticas da unidade de saúde, aquilo
[21 de maio] Encontro uma moça com um bebê que ocorre no ponto mais capilarizado do
no colo. Acompanhei a consulta dela ainda ges- sistema de saúde, no ‘espaço intercessor’ em
tante com a enfermeira. Ela conta que a crian- que se dá o encontro trabalhador-usuário,
ça nasceu de parto normal e foi tudo bem, mas independentemente do modelo assistencial
a criança teve infecção no coto umbilical e ficou adotado. Essa poderia ser considerada a
internada por 15 dias tomando antibióticos. Co- maior contribuição do estudo.
menta que, por causa da internação, perderam a Talvez seja possível afirmar que, ao operar
consulta, que é pré-agendada quando sai da ma- um modelo de atenção ‘tradicional’, de certa
ternidade, e, por isso, veio remarcar hoje. ‘Liguei forma, ‘ultrapassado’ quando comparado à
avisando que não poderia comparecer’. Agora abertura propiciada pela ESF, haveria uma
está com dor no local dos pontos, acredita que perda de qualidade de atendimento para os
podem ter infeccionado, mas a consulta com a usuários do território, o que pode ser um in-
ginecologista é somente para junho. dicativo de inequidade no sistema, já que um

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 195-207, JAN-MAR 2017


Nem sempre sim, nem sempre não: os encontros entre trabalhadores e usuários em uma unidade de saúde 205

percentual importante de unidades do mu- de utilização dos serviços delimitando forte-


nicípio opera com a ESF. Nesse sentido, uma mente o campo de ação (e de ‘possíveis’) do
das conclusões do estudo é a recomendação trabalhador, incluindo-se, aqui, a rigidez na
da mudança do modelo assistencial adotado definição da regionalização e a consequente
na UBS, para, entre outras coisas, haver adscrição de clientela, e uma forte valori-
uma ampliação do cardápio de ofertas para zação dos princípios da Programação em
os usuários, na perspectiva de se reduzir a Saúde do Ministério da Saúde; as condições
demanda por consultas médicas e se alcançar materiais de trabalho, que circunscrevem os
um atendimento mais integral. Sem dúvida, limites do trabalhador para fazer frente às
o ‘modelo tradicional’, ainda operado pela demandas apresentadas.
UBS, muito centrado na figura do médico, O artigo aponta elementos para uma
em boa medida, agrava o problema da falta melhor compreensão de como é intensa e
de recursos. Por exemplo, a utilização da contraditória a vida cotidiana de uma UBS
estratégia de acolhimento poderia ser uma para fazer frente às demandas dos usuários.
saída viável para a unidade estudada, ofe- Mostra como os trabalhadores operam com
recendo um cardápio mais amplo de ofertas os limites impostos pelas condições objeti-
para os usuários, a partir de uma escuta mais vas de trabalho, mas, também, com elemen-
qualificada das demandas apresentadas. As tos não tão facilmente identificáveis que são
cenas alocadas na categoria ‘respostas múlti- da ordem da subjetividade e do sentido ético
plas para demandas complexas’ são aquelas dado ao trabalho. Como disse a recepcionista
que mostram melhor os limites da unidade e para a pesquisadora: “Quem sabe você vendo
as estratégias da equipe e dos usuários para e anotando...”, acreditando que dar visibili-
enfrentá-las. É nesse espaço que se pode dade para esse cotidiano tão duro em outros
observar a potência do espaço intercessor espaços talvez possa contribuir para promo-
trabalhador-usuário, mostrando a capaci- ver alguma mudança. Trazer o cotidiano da
dade de mobilização da equipe, os arranjos unidade de saúde para um trabalho acadê-
realizados etc. Um espaço que, muitas vezes, mico poderá, em alguma medida, contribuir
é, de modo surpreendente, de invenção e para dar visibilidade ao que ocorre de modo
cuidado. Ali é possível reconhecer a ação silencioso e anônimo na unidade? O título do
cuidadora da equipe para a resolução dos trabalho, ‘Nem sempre sim, nem sempre não’
problemas trazidos pelos usuários, inclusive expressa, portanto, que, muito frequente-
‘quebrando’ as regras da gestão, exercitando mente, o resultado do encontro trabalhador-
sua ‘inteligência astuciosa’. -usuário não é, de saída, previsível quando se
Tais encontros permitem ter mais clareza trata de acesso ao serviço, configurando-se
sobre o quanto o espaço intercessor é cons- em uma situação de ‘meia-cidadania’ para
tituído e atravessado por várias lógicas que aqueles que dependem do SUS, especial-
definem o quanto o trabalhador poderá mente da atenção básica. ‘Meia-cidadania’
ou não atender às demandas que lhe são porque o acesso é, em princípio e por garan-
apresentadas, entre elas, o modo de operar tia constitucional, de caráter universal, mas,
do modelo biomédico centrado no corpo na prática, o cidadão que depende do SUS
doente, cada vez mais produtor de exames para receber a atenção à sua saúde não tem
e utilizador de fármacos. Tal modelo segue o acesso garantido de saída, já que este de-
hegemônico ainda na atenção básica, apesar penderá de um conjunto de fatores que não
de todas as possibilidades de cuidados al- estão previamente dados.
ternativos; a formação técnica e o sentido Como limitação do estudo, poderia ser
ético que o trabalhador dá ao seu trabalho; apontado o fato de ter sido realizado em
o conjunto de diretrizes, normativas e regras uma UBS que adota um modelo de atenção,

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 195-207, JAN-MAR 2017


206 MELO, S. M.; CECÍLIO, L. C. O.; ANDREAZZA, R.

em princípio, em ‘extinção’. Por outro lado, entre trabalhadores e usuários ali no serviço
seria possível dizer que essa ‘invisibilidade’ de saúde.
dos encontros dos trabalhadores com os
usuários, em particular, o quanto resultam
em mais ou menos cuidado, é uma questão Colaboradores
importante para quem se ocupa da gestão em
saúde, independentemente do modelo assis- Melo, S. M., Cecílio, L.C.O. contribuíram
tencial adotado e mesmo do regime jurídico substancialmente para a concepção, análise,
vigente, de recorte mais ou menos privatiza- interpretação dos dados e aprovação da
do. Enfim, o estudo mostra o quanto o SUS versão final do manuscrito. Andreazza, R.
real, aquele vivido pelas pessoas movidas contribuiu para a concepção, análise, inter-
por suas necessidades, é uma construção pretação dos dados e revisão crítica do con-
diária, tensa, disputada no encontro diário teúdo. s

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Nem sempre sim, nem sempre não: os encontros entre trabalhadores e usuários em uma unidade de saúde 207

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 195-207, JAN-MAR 2017


208 ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE

Disseminação e uso dos resultados de


pesquisas financiadas pela Secretaria de
Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos
do Ministério da Saúde, Brasil, 2004 a 2007
Dissemination and use of the research results funded by the
Department of Science, Technology and Strategic Inputs of the
Ministry of Health, Brazil, 2004 to 2007

Daniela Alba Nickel1, Sonia Natal2, Ana Cláudia Figueiró3, Marly Marques da Cruz4, Zulmira
Maria de Araújo Hartz5

RESUMO Este artigo verifica a disseminação e o uso das pesquisas financiadas pelo
Departamento de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde. Trata-se de um estudo de
seis casos com análise imbricada, em que se verifica que a política de descentralização do
1Universidade Federal de fomento contribuiu para a redução da desigualdade na produção de conhecimento em saúde,
Santa Catarina (UFSC), embora haja desigualdade no volume de recursos alocados. A disseminação dos resultados foi
Departamento de Saúde
Pública – Florianópolis o limitador da incorporação dos resultados de pesquisa. Os formatos de acompanhamento das
(SC), Brasil. pesquisas devem ser melhorados. O fator determinante na incorporação de conhecimentos
danielanspb@gmail.com
e tecnologias pelo sistema de saúde é a intencionalidade técnica e política para o uso dos
2 Universidade Federal de
resultados.
Santa Catarina (UFSC),
Departamento de Saúde
Pública, Programa de PALAVRAS-CHAVE Uso da informação científica na tomada de decisões em saúde. Pesquisa.
Pós-Graduação em Saúde
Coletiva – Florianópolis Apoio à pesquisa como assunto.
(SC), Brasil.
sonianatal2010@gmail.com
ABSTRACT This article verifies the dissemination and use of the researches funded by the
3 Fundação Oswaldo Cruz Department of Science and Technology of the Ministry of Health. It is a study of six cases
(Fiocruz), Escola Nacional
de Saúde Pública Sergio with imbricated analysis, where it is verified that the decentralization policy of the promotion
Arouca (Ensp) – Rio de contributed to the reduction of inequality in the production of health knowledge, although there
Janeiro(RJ), Brasil.
anaclaudiafigueiro@ensp. is inequality in the volume of resources allocated. The dissemination of results was the limiting
fiocruz.br factor of the incorporation of the research results. Survey monitoring formats should be improved.
4 Fundação Oswaldo Cruz The determinant factor in the incorporation of knowledge and technologies by the health system
(Fiocruz), Escola Nacional is the technical and politic intentionality for the use of the results.
de Saúde Pública Sergio
Arouca (Ensp) – Rio de
Janeiro(RJ), Brasil. KEYWORDS Use of scientific information for health decision making. Research. Research support
marly@ensp.fiocruz.br
as topic.
5 Universidade Nova de

Lisboa, Instituto de Higiene


e Medicina Tropical –
Lisboa, Portugal.
zhartz@ihmt.unl.pt

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 208-220, JAN-MAR 2017 DOI: 10.1590/0103-1104201711217
Disseminação e uso dos resultados de pesquisas financiadas pela Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, Brasil, 2004 a 2007 209

Introdução Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde, no


ano de 2004 (GUIMARÃES, 2006; COSTA; CRUZ, 2014).
A década de 2000 foi marcada por importan- A agenda foi constituída por subagendas e
tes decisões que culminaram na elaboração temas de pesquisa. O primeiro definiu amplas
da Política Nacional de Ciência, Tecnologia áreas de pesquisa, envolvendo campos discipli-
e Inovação em Saúde (PNCITS) e na defi- nares que conformaram os temas prioritários
nição da agenda nacional de prioridades de de pesquisa; o segundo compreendeu tópicos
pesquisa e desenvolvimento tecnológico em específicos e agregados em cada subagenda. Os
saúde. Ambas tiveram finalidade de orien- temas prioritários poderiam contemplar qual-
tar o fomento no âmbito do Sistema Único quer etapa da cadeia do conhecimento, desde
de Saúde (SUS) e servir de diretriz para as a pesquisa básica até a operacional, sem restri-
demais agências de fomento científico e tec- ções quanto às áreas de conhecimento envolvi-
nológico com atuação no setor saúde naquele das. Ao todo, foram aprovadas 24 subagendas
período. A implantação do projeto Gestão de pesquisa (COSTA; CRUZ, 2014).
Compartilhada em Ciência e Tecnologia O Departamento de Ciência e Tecnologia
em Saúde, posteriormente denominado (Decit), na época, vinculado à Secretaria de
Programa de Pesquisa para o SUS: gestão Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos
compartilhada em saúde (PPSUS), determi- (SCTIES) do Ministério da Saúde (MS), co-
nou a descentralização do fomento da esfera ordenou a formulação, a implementação e
pública à pesquisa em saúde e possibilitou a avaliação da Política Nacional de Ciência,
a parceria do nível federal com os estados Tecnologia e Inovação em Saúde, da Agenda
através das Fundações estaduais de Amparo Nacional de Prioridades de Pesquisa em
à Pesquisa (FAPs) (GUIMARÃES, 2006; BRASIL, 2011). Saúde e das Pesquisas Estratégicas para o
A PNCITS teve como objetivo princi- Sistema de Saúde (Pess). Suas ações incluí-
pal desenvolver e aperfeiçoar os processos ram propor a execução das ações no campo
de produção e absorção de conhecimen- da Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) em
to científico e tecnológico pelos sistemas, saúde, gerir o conhecimento em Ciência e
serviços e instituições de saúde, centros de Tecnologia em Saúde, visando à utilização
formação de recursos humanos, empresas do conhecimento científico e tecnológico
do setor produtivo e demais segmentos da em todos os níveis de gestão do SUS, induzir
sociedade (BRASIL, 2008). A Agenda Nacional de a proposição de acordos e convênios com
Prioridades de Pesquisa em Saúde (ANPPS) os órgãos da União, dos estados e dos mu-
serviu como o principal instrumento para a nicípios para a execução descentralizada de
orientação do fomento à pesquisa em saúde programas e projetos especiais no âmbito do
pelo Departamento de Ciência e Tecnologia, SUS. Desta forma, foram definidas quatro
no período de 2005-2006 (COSTA; CRUZ, 2014). A áreas de atividade articuladas entre si no
ANPPS tem como pressupostos respeitar as Decit: apoio/fomento à pesquisa, desenvol-
necessidades nacionais e regionais de saúde e vimento institucional, assessoria de políticas
aumentar a indução seletiva para a produção de C&T e biotecnologia (BRASIL, 2007).
de conhecimentos e bens materiais e proces- O fomento a projetos de pesquisa foi
suais nas áreas prioritárias para o desenvol- veiculado, nacionalmente, por meio da
vimento das políticas sociais. Elaborada por publicação de editais de financiamen-
um processo de cinco etapas sucessivas, com to a pesquisa pelo Conselho Nacional de
assessoramento do Comitê Técnico Assessor Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CTA), composto por especialistas e gesto- (CNPq) ou, regionalmente, pelas Fundações
res reconhecidos, posteriormente, recebeu de Amparo à Pesquisa nas Unidades da
aprovação na II Conferência Nacional de Federação. Com a finalidade de aumentar

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 208-220, JAN-MAR 2017


210 NICKEL, D. A.; NATAL, S.; FIGUEIRÓ, A. C.; CRUZ, M. M., HARTZ, Z. M. A.

a taxa de incorporação do conhecimento A utilização dos resultados de pesquisa para


científico e tecnológico em novos processos a tomada de decisão no nível gerencial ou na
e produtos capazes de atender às necessida- organização do sistema de saúde é ainda mais
des e aos desejos dos brasileiros, o Decit e desafiadora do que o uso de pesquisas clínicas
o SCTIES afirmam priorizar o fomento aos (HANNEY; GONZÁLEZ-BLOCK, 2009). Percebe-se que o
projetos com potencial de inovação (BRASIL, uso é mais provável se o problema a ser resolvi-
2007). Ademais, é preciso investir, também, do está claro para os formuladores de política,
na disseminação do conhecimento resultan- se os resultados da pesquisa não trazem infor-
te deles, tornando os resultados aplicáveis ao mações contraditórias e possuem base teórica
sistema de saúde (GUIMARÃES, 2006). sólida e, principalmente, se não contrariam
Concordando com o modelo da Hélice fortes interesses políticos (HANNEY ET AL., 2003).
Tríplice de, Etzkowitz (LEYDESDORFF; ETZKOWITZ, Ampliar iniciativas que favoreçam a divulga-
1998), e sem descartar o papel da universidade ção científica e a comunicação de resultados
e da indústria/mercado na indução da P&D, é outro fator interferente na apropriação do
foi a partir da criação da política pública conhecimento científico e na utilização pelos
que se definiu normativamente o papel do diferentes atores institucionais: pesquisadores,
Estado no desenvolvimento e na regulação empresários, gestores, profissionais de saúde e
dos fluxos de produção e de incorporação de estudantes. Tal como a desigualdade existente
tecnologias e no financiamento de atividades na produção de P&D, existem desigualdades na
de pesquisa e desenvolvimento. No Brasil, o disseminação da informação e da comunicação
Decit apresentou papel indutor financeiro a científica entre grupos de pesquisa de univer-
partir do triênio 2004-2006, os recursos pú- sidades em diferentes regiões (COIMBRA JR., 2003).
blicos destinados a atividades exclusivas de Existem diferenças no nível de uso dos
fomento a projetos de pesquisa, ou seja, sub- resultados, que ocorrem desde o conheci-
traindo-se os recursos de formação, sustento mento produzido pela pesquisa, medido
e estímulo dos recursos humanos envolvidos através de publicações em periódicos cien-
com P&D em saúde, recebeu acréscimo de tíficos ou pedidos de patente, até o ganho
60% quando comparado com os gastos do social e econômico medido por indicadores
triênio anterior – 2000-2002 (GUIMARÃES, 2006). específicos (HANNEY ET AL., 2003). As referências
Tendo em vista os objetivos da Política teóricas para o estudo do uso dos resultados
Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em de pesquisa são diversas, seguindo a lineari-
Saúde, a trajetória da construção da ANPPS e dade entre a pesquisa que gera uma ação no
a missão do Decit nesse contexto, a verifica- modelo clássico ou no modelo de resolução
ção da utilização dos resultados das pesquisas de problemas, passando pelo uso político ou
financiadas serve ao objetivo de prestar contas simbólico quando os resultados tornam-se
(accountability) à sociedade, incluindo-se aí argumentos para decisões políticas, até os
os entes públicos e os envolvidos no campo modelos que tomam o uso de resultados de
de pesquisa e desenvolvimento brasileiro. Os pesquisa como uma interação entre pesqui-
estudos de avaliação de políticas e programas sadores e prováveis usuários da informação
governamentais permitem que formuladores (HANNEY; GONZÁLEZ BLOCK, 2008).
e implementadores sejam capazes de tomar O modelo Payback, ou estoque de conhe-
decisões com maior qualidade. A otimização do cimento, cunhado por Buxton e Hanney,
gasto público nas atividades que são objetos da apresenta dois elementos para a análise do
intervenção estatal é possível através da identi- uso: um modelo lógico com as etapas de
ficação e da superação de pontos de estrangu- pesquisa (definição da temática, até o uso do
lamentos e destaque dos pontos exitosos dos resultado) e cinco categorias para classificar
programas (OLIVEIRA ET AL., 2010). o uso dos resultados. As categorias de uso do

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 208-220, JAN-MAR 2017


Disseminação e uso dos resultados de pesquisas financiadas pela Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, Brasil, 2004 a 2007 211

modelo são: conhecimento (por exemplo, Metodologia


publicações acadêmicas), benefícios para
futuras pesquisas (por exemplo, formação O método adotado foi o estudo de casos múlti-
de novos pesquisadores), benefícios para a plos com níveis de análise imbricados (YIN, 2010).
política (por exemplo, base de informação Os casos definidos foram os projetos de pesqui-
para tomadores de decisão), benefícios para sa financiados e com temática nas subagendas
a saúde da população ou para o sistema de da ANPPS. A seleção utilizou os seguintes cri-
saúde (por exemplo, indicadores de morbi- térios: (a) pesquisas aprovadas entre os anos de
mortalidade, redução de custos, qualidade 2004 e 2007; (b) relatório final concluído; (c)
das ações) e benefícios econômicos mais no mínimo, uma pesquisa contemplada com
amplos (por exemplo, ampliação da cadeia edital nacional, uma contemplada com edital
produtiva na saúde) (HANNEY ET AL., 2003, 2004; estadual PPSUS e uma com tema de Avaliação
GREENHALGH ET AL., 2016). de tecnologias em saúde; e (d) pesquisas com
Conforme o modelo de estoque de conhe- maior chance de utilização dos resultados em
cimento, o caminho entre a definição do tema curto e médio prazos, considerando, para isso,
de pesquisa, o processo de pesquisa e o uso dos que o tema do projeto de pesquisa deveria ser
resultados no sistema de saúde não é linear. considerado prioridade pelo Pacto Pela Vida e
Por isso, uma das abordagens para avaliar o Pacto de Gestão no biênio 2006-2007.
impacto de uma pesquisa poderá combinar Seis casos e oito projetos de pesquisa
um modelo lógico para descrever ligações foram selecionados. Os casos estão nume-
entre objetivos, atividades e produtos, com rados (1-6), e os projetos de pesquisa que
o estudo de caso para verificar as interações compõem cada caso estão descritos como
complexas entre os atores e as instituições, letras (A-I). Os casos 2 e 6 apresentam mais
através do qual o conhecimento é produzido e de um projeto de pesquisa para análise. O
compartilhado (GREENHALGH ET AL., 2016). caso 2 contempla a temática de Alimentação
Este artigo apresenta a utilização dos e Nutrição, com dois projetos de pesquisa,
resultados das pesquisas financiadas pelo e o caso 6 refere-se ao Edital PPSUS, que
Decit do MS e faz parte de uma pesquisa abarcou três projetos de pesquisa (quadro 1).
avaliativa que teve como objetivo principal Dados primários e secundários foram utili-
avaliar a Política de Ciência Tecnologia e zados. Os dados primários advêm de entrevistas
Inovação em Saúde implantada pelo Decit semiestruturadas, dos seguintes atores-chave:
do MS, no período de 2004 a 2010. A pes- coordenadores dos projetos de pesquisa sele-
quisa de utilização dos resultados apresen- cionados; gestor estadual dos casos vinculados
tou os seguintes pressupostos: (a) a política ao PPSUS; coordenadores e direção do Decit,
de fomento de pesquisas em saúde, baseada cogestores de fomento das instâncias estaduais
na agenda de prioridades, pactuada com e nacionais parceiras; diretores de gestões ante-
gestores, favorece a utilização dos resul- riores do Decit. Os dados secundários provêm
tados no processo decisório das políticas do banco de dados do Decit/SCTIE/MS
públicas; (b) as relações entre atores e or- Pesquisa Saúde (http://pesquisasaude.saude.
ganizações, na interconexão entre a pesqui- gov.br/); editais de financiamento de projetos
sa e a formulação de políticas e processos de pesquisa dos casos selecionados, relatórios
de implementação, contribuem para o uso dos projetos de pesquisa dos casos selecio-
dos resultados, seja por transferência do nados, artigos científicos de divulgação das
conhecimento ou pelo seu impacto sobre os pesquisas dos casos selecionados e relatórios
processos de decisão; (c) fatores políticos, do estudo de avaliação da Política de Ciência,
culturais, ideológicos são determinantes Tecnologia e Inovação em Saúde, da qual se
para o uso dos resultados. originou esta pesquisa.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 208-220, JAN-MAR 2017


212 NICKEL, D. A.; NATAL, S.; FIGUEIRÓ, A. C.; CRUZ, M. M., HARTZ, Z. M. A.

A análise imbricada de seis casos incluiu objeto e objetivo da avaliação do uso, resultados
duas etapas: a análise interior dos casos e a e fontes de evidência.
análise cruzada. A análise interior dos casos O Modelo Lógico para o estudo de caso de
consistiu-se em: (a) exame de todas as respos- usos das pesquisas em saúde utilizado está
tas dos atores-chave em termos da integridade, descrito na figura 1. Conforme o modelo lógico
qualidade e pertinência da resposta à pergun- apresentado, o processo de formulação de po-
ta; (b) criação de base de dados qualitativos; líticas se inicia quando necessidades ou pro-
(c) mapeamento das respostas por unidade de blemas surgem e devem ser resolvidos através
avaliação, com um texto sintético extraído das de políticas. As informações sobre essas neces-
respostas; (d) classificação das respostas mape- sidades e os problemas são coletadas em dife-
adas nas categorias pré-definidas de descrição rentes fontes. Já o processo de pesquisa inclui
dos casos e de avaliação do uso. O objetivo da as fases de geração de ideias, constituição do
análise cruzada é aumentar a possibilidade de grupo de pesquisa, desenho do estudo, coleta
generalização, assegurando que os eventos e de dados, análise e aplicação dos resultados.
processos não são inteiramente idiossincrási- Os resultados de pesquisas criam novas ideias
cos. Ela envolveu dois enfoques: o primeiro é o e novos projetos de pesquisa; um caminho
da estratégia de replicação, pela qual se utiliza retorna para os estágios iniciais enquanto outro
um marco teórico para estudar em profundida- segue para a aplicação dos resultados da pes-
de os casos e verificar se o padrão encontrado quisa. A aplicação dos resultados também gera
em um caso coincide com os demais casos, novas ideias e novos desenhos. No modelo, os
sucessivamente; o segundo enfoque utilizado resultados relacionados ao uso podem ocorrer
envolveu a formação de tipos ou famílias, a fim durante o processo de pesquisa e/ ou após a di-
de verificar se os casos examinados em conjun- vulgação, em que podem ir para um estoque de
to formam agrupamentos com determinados conhecimento ou para os formuladores de po-
padrões ou configurações. lítica pública (HANNEY ET AL., 2003, 2004; MARJANOVIC ET
A matriz de análise desta pesquisa incluiu, AL., 2009; GRANT ET AL., 2010).
portanto, as categorias pré-definidas relativas à A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de
descrição dos casos: projeto de pesquisa, tipo de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde
contratação, ano de início da pesquisa, valor do Pública Sérgio Arouca sob o número de proto-
fomento, métodos, produto da pesquisa, meio colo 93, no ano de 2010, e está em acordo com
de divulgação; e as categorias pré-definidas re- os preceitos éticos de pesquisas científicas que
lacionadas com a análise individual dos casos: envolvem seres humanos.

Figura 1. Modelo Lógico para os estudos de caso dos subprojetos do uso das pesquisas em saúde

Estoque de conhecimento

Identificação Processo de pesquisa Resultados primários Disseminação

Formuladores de políticas

Incorporação dos resultados

Fonte: HANNEY ET AL. (2003); MARJANOVIC, HANNEY E WOODING (2009); GRANT ET AL. (2010).

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Disseminação e uso dos resultados de pesquisas financiadas pela Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, Brasil, 2004 a 2007 213

Quadro 1. Descrição dos casos


Ano
Projetos Subagenda Atendimento
Caso Contratação início Valor (R$) Método Produto Divulgação
pesquisa contemplada aos objetivos
projeto
Eventos científicos, Utiliza-
Registro de nova
Não descreve Não des- ção da nova tecnologia no
1 A Direta Não se aplica 2008* 4,5 milhões tecnologia em
os resultados creve serviço público de saúde no
saúde
âmbito nacional.
Estudo de Eventos científicos; Reuni-
B
CNPq/ Alimentação e coorte Guias alimentares ões com técnicos de se-
2 2004 46,6 mil Sim
MCT Nutrição Estudo de e protocolos cretarias de saúde; Artigos
C científicos.
intervenção
D CNPq Modalidades de 2004 100 mil Parcialmente Obser- Livreto e Folder; Eventos científicos; Artigos
Gestão, Práticas vacional, Material para científicos.
3 Gerenciais e Re- longitudinal sensibilização;
lações Público- Instrumento para
-Privadas monitoramento.
E MCT/ Doenças negli- 2006 800 mil Sim Ensaio Não descrito Eventos científicos; Artigos
CNPq/ genciadas clínico científicos. Reuniões de
4
MS/ Decit pesquisa; Treinamento de
jornalistas.
F CNPq Saúde do idoso 2006 1,1 milhão Sim Estudo de Não descrito Não descrito
5
coorte
G PPSUS Assistência 2006 27,9 mil Sim Observa- Não descrito Eventos científicos; Artigos
Farmacêutica cional científicos.
H PPSUS Doenças Crôni- 2006 76,2 mil Sim Não des- Não descrito Não descrito
6 cas Não Trans- crito
missíveis
I PPSUS Pesquisa clínica 2006 152,1 mil Não descreve Ensaio Não descrito Não descrito
os resultados clínico

Fonte: Elaboração própria (2016).


*Previsto para 2004.

Resultados e discussão sendo o primeiro relativo às categorias rela-


cionadas com a descrição dos casos (quadro
A apresentação dos resultados, expondo as 1), e o segundo relativo às categorias da ava-
evidências caso por caso, de acordo com as liação do uso (quadro 2).
categorias, está dividida em dois quadros,

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214 NICKEL, D. A.; NATAL, S.; FIGUEIRÓ, A. C.; CRUZ, M. M., HARTZ, Z. M. A.

Quadro 2. Análise de casos

Caso 1 Projeto de pesquisa A


Variável Descrição
Objeto da avaliação Projeto de pesquisa.
Objetivos da avaliação Evidenciar a experiência de desenvolvimento de uma nova tecnologia para uso no sistema de saúde.
Resultados da avaliação A tecnologia obteve o registro final da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no ano de 2010. Houve a redu-
ção de custos para a implantação da tecnologia no Brasil e o fortalecimento do desenvolvimento nacional na produção
de insumos em planta produtiva brasileira. A plataforma da tecnologia não foi testada anteriormente ao estudo piloto e
impossibilitou ajustes antes do teste em campo. A produção de políticas pró-inovação tem sido intensa nos últimos anos,
principalmente por parte dos órgãos de fomento federais e estaduais e o setor de biotecnologia.
Fontes de evidência Relatório da avaliação do caso.
Manual operacional para utilização da tecnologia no Sistema Único de Saúde.
Página eletrônica da instituição de ensino e pesquisa responsável pela pesquisa.
Caso 2 Projetos de pesquisa B e C
Objeto da avaliação Panorama da pesquisa nacional na subagenda Alimentação e Nutrição.
Objetivos da avaliação Identificar o uso efetivo e potencial dos resultados dos projetos de pesquisa da subagenda Alimentação e Nutrição.
Resultados da avaliação A publicação de editais com fomento descentralizado – PPSUS – é positiva, e a agenda trouxe oportunidades para dife-
rentes linhas de pesquisa. Apesar do sistema eletrônico de acompanhamento de pesquisas em saúde – Pesquisa Saúde –,
existe limitação no acompanhamento da execução dos projetos e do uso dos resultados. No projeto de pesquisa B, houve
formação de recursos humanos dos serviços de saúde e de formuladores de políticas ou programas; outros projetos foram
gerados em parceria com Secretarias Municipais de Saúde, com financiamento estadual via FAP; houve aumento da in-
teração com as Secretarias de Saúde; o espaço em reuniões para tradução do discurso acadêmico para a ação no SUS foi
efetivado; um núcleo de estudos e pesquisas epidemiológicas foi formado e contribui para a redução da desigualdade na
distribuição da pesquisa. No projeto de pesquisa C, os resultados parciais do projeto foram divulgados nas Secretarias Mu-
nicipais de Saúde; as ações para o incentivo e o acompanhamento do aleitamento materno, guias alimentares e protocolos
vêm sendo elaborados e difundidos com base nos estudos.
Fontes de evidência Relatório da avaliação do caso.
Projeto de pesquisa B:
Artigo científico, Revista da Associação Médica Brasileira, ano 2009.
Artigo científico, Revista de Saúde Pública, ano 2011.
Projeto de pesquisa C:
Artigo científico, Maternal & Child Nutrition, ano 2013.
Artigo científico, Revista de Nutrição, ano 2013.
Caso 3 Projeto de pesquisa D
Objeto da avaliação Projeto de pesquisa.
Objetivos da avaliação Descrever a pesquisa e analisar seus usos e influências.
Resultados da avaliação A pesquisa limitou-se a três áreas de atuação na temática do edital. Houve limitação para a coleta de evidências da ava-
liação, inclusive no relatório do caso. O processo de pesquisa não demonstrou preocupação com o uso dos resultados.
Quatro objetivos específicos não foram atingidos em duas áreas de atuação na temática e comprometeram o alcance do
objetivo geral da pesquisa. Houve elaboração de material instrutivo e de sensibilização em uma das áreas de atuação.
Fontes de evidência Relatório da avaliação do caso.
Artigo científico, Arquivos Brasileiros de Cardiologia, ano 2011.
Caso 4 Projeto de pesquisa E
Objeto da avaliação Edital nacional em Doenças negligenciadas, lançado em 2006.
Objetivos da avaliação Analisar a representação do edital para o campo de pesquisa do tema no Brasil.
Resultados da avaliação O edital é um marco no fomento da pesquisa no tema, com incremento financeiro em relação aos anos anteriores e estra-
tégia para a formação de redes de pesquisa. Acompanhamentos em formato de workshops são espaços privilegiados de
interação e comunicação científica. O uso dos resultados no plano local para as decisões políticas sofre influência de recur-
sos físicos (como o laboratório), políticos e de relações pessoais específicas, por exemplo. Geralmente, são utilizados os
conhecimentos produzidos em redes de pesquisa já consolidadas, os quais tem pouca especificidade com o edital lançado.
No plano federal, o processo de decisão sofre influência da indústria e de laboratórios privados, das relações de poder e da
cultura de centralização das políticas públicas. As pesquisas no tema têm baixa tradução em inovações.

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Disseminação e uso dos resultados de pesquisas financiadas pela Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, Brasil, 2004 a 2007 215

Quadro 2. (cont.)
Fontes de evidência Relatório do estudo de caso.
Artigo científico, Parasites & Vectors, ano 2013.
Artigo científico, PLoS ONE, ano 2012.
Artigo científico, Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, ano 2012.
Caso 5 Projeto de pesquisa F
Objeto da avaliação Projeto de pesquisa.
Objetivos da avaliação Descrever o projeto de pesquisa e analisar seu impacto científico e tecnológico.
Resultados da avaliação Houve capacitação de pesquisadores em programas de pós-graduação nas instituições de ensino e pesquisa proponentes,
constituição de parcerias internacionais e nacionais em quatro regiões do Brasil. Nenhum dos objetivos foi plenamente
atendido, sendo eles a construção do instrumento de avaliação, estudos de confiabilidade e validade, verificação de de-
manda aos serviços de saúde e discussões sobre o planejamento de serviços de saúde em parceria com profissionais e
gestores do sistema de saúde.
Fontes de evidência Relatório do caso.
Artigo científico, Revista de Saúde Pública, ano 2013.
Caso 6 Projetos de pesquisa G, H e I
Objeto da avaliação Uso e influência dos resultados de pesquisas financiadas pelo PPSUS em Santa Catarina.
Objetivos da avaliação Avaliar o uso, a incorporação e a influência dos resultados dos projetos.
Resultados da avaliação Os três pesquisadores apontaram em seus relatórios um alto potencial de apropriação e incorporação dos resultados pelos
serviços de saúde, no entanto, isso não foi evidenciado pelos dados e não há conhecimento sobre o uso dos resultados
das pesquisas por gestores ou por profissionais. A divulgação dos resultados ocorreu em apresentações dos trabalhos em
eventos. A formação de novos pesquisadores foi discreta, e não houve parceria com outros grupos de pesquisa. A ade-
quação da expertise dos pesquisadores à área do projeto financiado não influenciou a baixa contribuição formativa dos
projetos.
Fontes de evidência Relatório final do caso.
Fonte: Elaboração própria.

A definição das prioridades de pesquisa é grupo de atores, há possibilidade de baixa


corroborada pela literatura como um passo adesão à decisão, financiamento insuficiente
importante para a estruturação de uma polí- ou intermitente e, consequentemente, pouco
tica de P&D (GUIMARÃES, 2006). A construção da resultado em longo prazo (SANTOS ET AL., 2015).
agenda de prioridades de pesquisa brasileira O esforço para contemplar as diferentes
ocorreu em etapas participativas, no entanto, áreas do conhecimento acabou por expor
cabe análise aprofundada da pluralidade uma fragilidade da ANPPS brasileira: o
dos atores político-institucionais, vista pela excesso de temas e de subagendas. O resul-
presença de representantes dos usuários do tado dessa pulverização foi a desigualdade
sistema de saúde, dos profissionais da saúde na distribuição dos recursos financeiros
e de gestores. A participação dos atores segundo os temas de pesquisa. As subagen-
político-institucionais deve ocorrer durante das de complexo produtivo da saúde e pes-
todo o processo decisório, não somente no quisa clínica receberam quase 50% do valor
processo final de aceitação ou negação da para financiar as pesquisas, somando, apro-
tomada de decisão, assim, a análise da per- ximadamente, R$ 203 milhões, entre os
cepção desses atores sobre a sua participa- anos de 2004 e 2007 (COSTA; CRUZ, 2014). Neste
ção efetiva nas etapas de criação e aprovação estudo, a desigualdade do financiamento
da agenda também deve ser analisada. Em segundo as subagendas também é visível:
um cenário de elaboração de política pública o maior volume de recursos financeiros
e tomada de decisão restritas a um pequeno foi destinado ao Caso 1, viabilizado por

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216 NICKEL, D. A.; NATAL, S.; FIGUEIRÓ, A. C.; CRUZ, M. M., HARTZ, Z. M. A.

contratação direta para desenvolver e avaliar administrativo. A função das FAPs incluía os
uma tecnologia de saúde – R$ 4,5 milhões. O papéis de cofinanciadoras e agentes execu-
menor valor de financiamento ocorreu para toras nos estados. Em parceria com as FAPs,
as pesquisas aprovadas via Edital PPSUS, no as Secretarias Estaduais de Saúde (SES)
Caso 6, Projeto de pesquisa G, subagenda de envolveram-se na execução das etapas ope-
Assistência Farmacêutica – R$ 27,9 mil. Os racionais, tais como a definição das linhas
demais casos foram financiados via edital prioritárias de pesquisa, a publicação de
nacional (Casos 2, 3, 4 e 5). editais de seleção de projetos de pesquisa, o
Na área da saúde, os temas têm associação acompanhamento e a avaliação final daque-
com prioridades de saúde e tendem a coexis- les projetos selecionados.
tir com as prioridades da política de saúde Na fase anterior ao programa, as FAPs e
vigente, porém, por vezes, não há, no campo os núcleos responsáveis pela ciência e tec-
do saber e das práticas científicas e tecnoló- nologia nas secretarias estaduais não tinham
gicas, conceitos, metodologia ou ferramen- experiência em lançar editais de pesquisa
tas adequadas para a produção de soluções. próprios, descentralizados. Assim, o PPSUS
Assim, a extensividade, que é a incorporação permitiu o fortalecimento do Sistema
na política de P&D de todas as etapas da Nacional de Ciência e Tecnologia, a redução
cadeia do conhecimento, esteve expressa das desigualdades regionais no desenvolvi-
na agenda de prioridades (GUIMARÃES, 2006). mento das pesquisas em saúde e viabilizou o
Segundo os usos citados por Hanney et al. apoio a pesquisadores no início da carreira
(2003), as pesquisas básica e aplicada apresen- que, possivelmente, não teriam condições de
tam utilizações diferentes, mas igualmente concorrer com os centros de pesquisa com
importantes para o desenvolvimento cien- pesquisadores em carreira já consolidada.
tífico de um país. A pesquisa básica poderá Quanto ao envolvimento de interessados
agregar conhecimento ou beneficiar futuras ou afetados pela pesquisa (stakeholders), o
pesquisas, enquanto a pesquisa aplicada Caso 3 incluiu profissionais de saúde no de-
apresentará uso em curto ou médio prazo senvolvimento da pesquisa, e o Caso 2 apre-
no sistema de saúde. Ambas constituem um sentou uma pesquisa de intervenção com
estoque de conhecimento. usuários do sistema de saúde. No que tange
Do ponto de vista macro, uma das ações à colaboração de grupos de pesquisa, o Caso
da PNCITS que viabilizaram o fomento 4 incorporou 22 grupos de pesquisadores em
descentralizado foi o estreitamento da quatro regiões geográficas do País, e o Caso 5
relação do MS com o Ministério da Ciência e incluiu pesquisadores e sujeitos de pesquisa
Tecnologia (MCT) e seus órgãos de fomento de quatro cidades brasileiras.
(Finep – Financiadora de Estudos e Projetos O Caso 5 contribuiu para a formação
e CNPq), e do Ministério da Educação e da de profissionais em programas de Pós-
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal Graduação e manteve os grupos de pesqui-
de Nível Superior (Capes) (BRASIL, 2008). Essas sadores envolvidos em atividades durante
relações trouxeram para o MS a lógica do o período da pesquisa. No entanto, o caso
campo científico, enquanto que o CNPq apresentou alcance parcial dos objetivos de
passou a interagir com os gestores para a de- pesquisa descritos pelo projeto e não apre-
finição dos temas dos editais e a considerar sentou os resultados/produtos da pesquisa.
outros critérios de julgamento, como a rele- A justificativa do coordenador da pesquisa
vância social e a equidade regional. foi a entrega do relatório final anteriormente
Cabia ao MS, por meio do Decit, coorde- à divulgação dos resultados (quadro 2). Os
nar nacionalmente o programa de fomento Casos 3, 5 e 6 evidenciaram mudanças na
à pesquisa, e ao CNPq o seu gerenciamento abordagem da pesquisa ao longo do tempo.

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Disseminação e uso dos resultados de pesquisas financiadas pela Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, Brasil, 2004 a 2007 217

Consequentemente, os resultados alcança- ambiente onde a decisão de incorporação de


dos não refletiram os resultados esperados novos produtos parece ser focada em custo-
quando da aprovação do fomento e obtive- -benefício ou custo-efetividade, estudos de-
ram alcance parcial dos objetivos do projeto monstraram que as decisões possuem grande
de pesquisa. permeabilidade aos argumentos políticos e
No que tange à capacidade de financia- aos grupos de interesse (HANNEY ET AL., 2003).
mento, o Decit realizou a indução financeira Indo de encontro à literatura de utilização
através dos recursos alocados em editais. Por de resultados de pesquisa que demonstra a
outro lado, a gerência do fomento para os importância da comunicação entre pesqui-
projetos de pesquisa trouxe consequências sadores e tomadores de decisão (LEYDESDORFF;
para os casos analisados. O recurso financei- ETZKOWITZ, 1998; HANNEY ET AL., 2007), os pesqui-
ro para a pesquisa foi atrasado ou reduzido, sadores vinculados ao Caso 6 afirmaram
o que trouxe necessidade de adaptação dos que o principal papel do pesquisador seria
objetivos e resultados esperados. Somou-se produzir pesquisas com resultados satis-
o excesso de burocracia nos processos de fatórios para o meio acadêmico, enquanto
aprovação do projeto, liberação do recurso e que a utilização dos resultados de pesquisa
início da execução, o que gerou atrasos em pelo sistema de saúde ou por interessados
algum desses momentos. A precariedade não estaria sob responsabilidade direta do
do vínculo empregatício no Decit e a falta pesquisador. A divulgação da pesquisa quase
de uma política de cargos e salários foram que exclusivamente no meio acadêmico foi
citadas como obstáculos para a implantação justificada pela valorização que recebe dos
e a continuidade de uma política de fomento. órgãos de financiamento e de avaliação.
O quadro de pessoal, apesar de apresentar A disseminação da informação científi-
competência técnica, estava vinculado ao ca foi inserida entre as atividades do Decit
departamento por meio de contratos tem- no ano de 2007 e culminou na criação de
porários, o que causou elevada rotatividade mecanismos de acompanhamento e moni-
da equipe, o que, por sua vez, prejudicou a toramento dos projetos de pesquisa, via a
continuidade dos processos em andamento e plataforma eletrônica Pesquisa Saúde. A fi-
o acúmulo de capacidade técnica na equipe. nalidade seria
A alta rotatividade esteve presente, inclusi-
ve, nos cargos de gestão. Em dois anos, houve tornar acessíveis os dados que viabilizem o
diversas mudanças do pessoal gestor. monitoramento das ações do Departamento,
O Caso 1 apresentou uso do produto da em todo o processo de fomento, desde a ela-
pesquisa no sistema de saúde brasileiro. Por boração dos editais até a divulgação dos re-
outro lado, o Caso 4 teve o uso limitado pelos sultados obtidos pelas pesquisas financiadas.
contextos político e econômico, marcados (BRASIL, 2007, P. 4).
pela centralização federal de decisões sobre
a política pública e pela pressão de indús- Com exceção de dois casos (Caso 1 e Caso
trias e laboratórios com interesses vincula- 6), todos apresentaram resultados no relató-
dos à área temática do projeto de pesquisa. rio final. Portanto, com relação ao acompa-
A pesquisa aplicada segue uma agenda com- nhamento das pesquisas e à apreciação dos
partilhada entre os pesquisadores e forças relatórios finais, com exceção da prestação
externas ao ambiente acadêmico, como as de contas, existe um grande percurso para
políticas e econômicas. A pesquisa dirigida alcançar a qualidade desejada. O Decit, o
à incorporação de novas tecnologias tem de- CNPq e as FAPs desenvolveram iniciati-
monstrado a importância do caráter político vas, no período analisado, para aumentar a
e de redes de contato (networks). Em um visibilidade dos resultados das pesquisas,

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218 NICKEL, D. A.; NATAL, S.; FIGUEIRÓ, A. C.; CRUZ, M. M., HARTZ, Z. M. A.

principalmente para o público dos gesto- casos trouxeram uma possibilidade de ana-
res do sistema de saúde, porém, elas foram lisar a relação de sobreposição entre o uso
denominadas pelos entrevistados como e as publicações, ou seja, quando uma pes-
meramente burocráticas, com caráter se- quisa apresenta utilização direta, tal como o
melhante à prestação de contas dos gastos caso do projeto de pesquisa contratado dire-
com o dinheiro público do fomento. O acom- tamente (Caso 1), o número de publicações
panhamento da pesquisa e o relatório final científicas não é tão alto quanto naqueles
permanecem centrados em relatório técni- projetos onde se verifica o uso estritamente
cos, geralmente fundamentados na produti- acadêmico, sem aplicação direta no serviço.
vidade dos pesquisadores, dado o interesse
específico do CNPq em avaliar os resultados
de pesquisa por meio de resultados tangíveis Conclusões
e de sua contabilidade.
Instrumentos alternativos de avaliação Tratou-se de uma análise para a identifica-
das pesquisas, como os seminários de apre- ção dos efeitos que limitam e que favore-
sentação de resultados parciais, pareceram cem o uso dos resultados de pesquisa, com
boas iniciativas das FAPs naqueles projetos um recorte temporal e institucional, uma
vinculados ao Edital PPSUS, apesar de o vez que foram definidos para a pesquisa os
tempo ser inferior ao demandado para os fomentos provenientes de editais lançados
pesquisadores apresentarem seus resulta- após a implantação da PNCTIS e da ANPPS.
dos parciais, em geral, após um ano desde Os formatos institucionais e as articulações
a contratação do projeto. Outra temporali- políticas para a definição das prioridades
dade que limita a avaliação das pesquisas é de pesquisa e do fomento aos projetos em
a da publicação dos resultados, que ocorre editais específicos ou a contratação direta
até cinco anos após o término do projeto, são peças importantes no estudo de uso de
vislumbrada no quadro 2, no item Fonte de resultados de pesquisa e difíceis de identifi-
Evidências, onde muitos artigos científicos car ou mensurar. A política de descentrali-
foram publicados dois a três anos após con- zação do fomento por meio das FAPs e dos
cluída a pesquisa. editais PPSUS possibilitou uma experiência
A ausência de um canal comum de comu- positiva para a diversidade na produção de
nicação entre pesquisador, profissional de conhecimento em saúde e para a definição
saúde, gestor e população é um aspecto que de temas de pesquisa mais próximos à re-
restringe a divulgação da pesquisa para além alidade regional. O aspecto limitador foi a
do meio acadêmico, ou seja, a divulgação é ampla agenda de prioridades em pesquisa,
prioritariamente realizada pela publicação que permitiu uma desigualdade no finan-
em periódicos e apresentação em congres- ciamento entre as subagendas, bem como
sos. A implantação do sistema de informação a priorização do volume de financiamento
denominado Pesquisa Saúde deu um passo para a contratação direta da produção e ava-
à frente para a divulgação irrestrita das pes- liação de uma nova tecnologia em saúde.
quisas financiadas, mas é comum encontrar O uso dos resultados como um estoque de
informações desatualizadas e incompletas conhecimentos está claramente definido nos
no sistema, principalmente quanto aos re- seis casos estudados, seja pela divulgação em
sultados das pesquisas. periódicos científicos ou eventos temáticos
Os relatórios falham em apontar os impac- ou pela formação de pesquisadores e manu-
tos ou as contribuições ao SUS, talvez porque tenção de grupos de pesquisa em atividade
a maioria dos pesquisadores não tem essa no País. A disseminação dos resultados para
preocupação durante sua atividade. Dois alcançar os formuladores de políticas é o

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Disseminação e uso dos resultados de pesquisas financiadas pela Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, Brasil, 2004 a 2007 219

limitador da incorporação dos resultados resultados, tanto a intencionalidade técnica,


de pesquisa. Os pesquisadores entrevistados pela necessidade de novos elementos tec-
não se perceberam como disseminadores nológicos, quanto intencionalidade política,
das informações para além dos centros de dado que a pressão para a incorporação deve
ensino e pesquisa. As ferramentas de disse- ser maior do que a pressão pela continuida-
minação irrestrita, como a página eletrônica de de tecnologias já implantadas e que tem
Pesquisa Saúde, apresentam incompletude o apoio dos meios de produção consolidados
de dados. O desafio consiste em melhorar os – como a indústria médico-assistencial e os
formatos de acompanhamento das pesquisas laboratórios.
que recebem o fomento em longo prazo, até
cinco anos após a entrega do relatório final, e
tornar heterogêneos os canais de monitora- Colaboradores
mento e avaliação para evitar a discordância
entre a necessidade do uso dos resultados de Natal, S. e Nickel, D. A. contribuíram para a
pesquisa e a avaliação com ênfase nos resul- concepção, análise e interpretação dos dados,
tados científicos – publicações em periódi- elaboração do manuscrito e aprovação final.
cos e apresentação em eventos. Figueiró, A. C. e Cruz, M. M. participaram
Como conclusão, o fator determinante da aprovação da versão final do manuscrito.
na incorporação de conhecimentos e tec- Hartz, Z. M. A. contribuiu para a concepção,
nologias pelo sistema de saúde é a inten- análise e interpretação dos dados e aprova-
cionalidade da pesquisa para o uso de seus ção final do manuscrito. s

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 208-220, JAN-MAR 2017


ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE 221

Representações sociais de estudantes de


escolas públicas sobre as pessoas que vivem
com HIV/Aids
Social representations of public school students about people living
with HIV/Aids

Rebeca Coelho de Moura Angelim1, Verônica Mirelle Alves Oliveira Pereira2, Daniela de Aquino
Freire3, Brígida Maria Gonçalves de Melo Brandão4, Fátima Maria da Silva Abrão5

1 Universidadede
Pernambuco (UPE) e
Universidade Estadual
da Paraíba (UEPB), RESUMO O estudo objetivou analisar as representações sociais dos jovens e adultos acerca
Programa Associado de suas vivências ante a pessoa com Vírus da Imunodeficiência Humana/Síndrome de
de Pós-Graduação em
Enfermagem – Recife (PE), Imunodeficiência Adquirida (HIV/Aids). Trata-se de um estudo descritivo, de caráter explo-
Brasil. ratório com abordagem qualitativa, desenvolvido com 59 alunos do Programa de Educação de
rebecaangelim@hotmail.com
Jovens e Adultos, matriculados em duas escolas do município de Recife. Utilizou-se a técnica
2 Universidade de
de entrevistas. Os dados foram analisados com apoio do software Alceste 4.5. Conclui-se que
Pernambuco (UPE) e
Universidade Estadual há necessidade de integrar temas sobre a conscientização social acerca da Aids. Ressalta-se
da Paraíba (UEPB), a importância do enfermeiro como facilitador em colaborar para a desmistificação de senti-
Programa Associado
de Pós-Graduação em mentos e atitudes referentes às pessoas com HIV.
Enfermagem – Recife (PE),
Brasil.
vmirelle@gmail.com PALAVRAS-CHAVE Síndrome de Imunodeficiência Adquirida. HIV. Adulto jovem. Percepção.
3 Universidadede
Pernambuco (UPE) e ABSTRACT The study aimed to analyze the social representations of young people and adults
Universidade Estadual about their experiences facing the person with HIV/AIDS. It is a descriptive, exploratory
da Paraíba (UEPB),
Programa Associado study with qualitative approach, developed with 59 students of the Youth and Adult Education
de Pós-Graduação em Program, enrolled in two schools in the city of Recife. We use the technique of interviews. Data
Enfermagem – Recife (PE),
Brasil. were analyzed with the support of software Alceste 4.5. It is concluded that there is a need to
daniela_3439@hotmail.com integrate issues of social awareness about AIDS. We emphasize the importance of the nurse as a
4 Universidadede facilitator in helping to demystify feelings and attitudes towards people with HIV.
Pernambuco (UPE) e
Universidade Estadual
da Paraíba (UEPB), KEYWORDS Acquired Immunodeficiency Syndrome. HIV. Young adult. Perception.
Programa Associado
de Pós-Graduação em
Enfermagem – Recife (PE),
Brasil.
bri.melo@hotmail.com

5 Universidade de

Pernambuco (UPE) e
Universidade Estadual
da Paraíba (UEPB),
Programa Associado
de Pós-Graduação em
Enfermagem – Recife (PE),
Brasil.
fatimaabrao@hotmail.com

DOI: 10.1590/0103-1104201711218 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 221-229, JAN-MAR 2017
222 ANGELIM, R. C. M.; PEREIRA, V. M. A. O.; FREIRE, D. A.; BRANDÃO, B. M. G. M.; ABRÃO, F. M. S.

Introdução informação dos alunos com os educadores


(PIAU; PEREIRA, 2012).
O Vírus da Imunodeficiência Humana Vale ressaltar que em relação à fonte de
(HIV) e a Síndrome da Imunodeficiência informações dos adolescentes sobre DST e
Adquirida (Aids) são temas discutidos mun- o HIV/Aids, 60,6% afirmaram utilizar a tele-
dialmente (DANTAS ET AL., 2015). Desde o início visão como principal meio para obter infor-
da década de 1980, a identificação do HIV/ mações acerca dessas doenças, seguido por
Aids constitui um desafio para a comunidade 49,3% que referiram a escola com o profes-
científica global, sendo considerado um pro- sor como principal fonte disseminadora de
blema de saúde pública, de grande magnitu- informação (CHAVES ET AL., 2014).
de e caráter pandêmico que envolve diversos Dessa forma, salienta-se a importância da
atores sociais, atingindo os indivíduos sem escola como um ambiente onde se trabalha
distinção social, econômica, racial, cultural conhecimentos, habilidades e mudanças
ou política (PERUCCHI ET AL., 2011). comportamentais em diferentes áreas do
No Brasil, o primeiro caso foi registrado conhecimento humano, tornando-se o local
no estado de São Paulo na década de 1980. mais adequado para as ações educativas e
Comparando a evolução da epidemia de Aids promotoras em saúde (CAMARGO; FERRARI, 2009).
com dados disponíveis desde esse período, Além de ser um ambiente ideal no processo
chama atenção o fato de que, pela primeira ensino-aprendizagem, a escola é fundamen-
vez em sete anos, a taxa de detecção por 100 tal na formação de pessoas no que tange aos
mil habitantes caiu para menos de 20 casos, direitos civis e de proteção à pessoa física,
passando a ser a menor taxa de detecção dos promove a inserção nos diversos aspec-
últimos 12 anos (PERUCCHI ET AL., 2011). A maior tos sociais e de políticas públicas e, com as
concentração dos casos de Aids no Brasil está demais entidades promotoras do desenvolvi-
nos indivíduos com idade entre 25 e 39 anos mento de jovens e adultos, propicia um local
para ambos os sexos, porém, no que se refere indispensável para a abordagem acerca da
às faixas etárias, observa-se que a maioria temática HIV/Aids (BRASIL, 2009).
dos casos de infecção pelo HIV encontra-se Estudos que promovam a reflexão acerca
nas faixas etárias de 15 a 39 anos (BRASIL, 2015). do impacto do HIV/Aids na sociedade e a
A abordagem sobre o HIV/Aids pode ser atuação do profissional de saúde como fa-
realizada por meio de programas em saúde cilitador de diálogo, das questões suscita-
que envolvem os estudantes tanto individu- das pela doença, reforçam a necessidade de
almente quanto em grupo, usando como base estudar as representações sociais sobre o
palestras e/ou dinâmicas diversas acerca das processo do adoecer pelo vírus.
Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST), Segundo Denize Jodelet (2001), a falta de
inclusive a Aids (NAGAMATSU ET AL., 2011). Além informações e incertezas científicas promove
disso, alguns fatores podem influenciar no o surgimento de pensamentos, ou seja, das
melhor entendimento dos alunos sobre essas representações sociais que circulam em torno
doenças, como a participação da família, qua- de uma comunidade. Essas definições compar-
lidade de vida e a educação (CAI ET AL., 2012). tilhadas pelos indivíduos de um mesmo grupo
Desse modo, torna-se imprescindível a suscitam em uma realidade para eles, que pode
realização de práticas educativas voltadas à ou não entrar em conflito com outros grupos.
temática da sexualidade, principalmente no Nessa perspectiva, a autora afirma que as re-
ambiente escolar a respeito da prevenção presentações são um sistema de interpretação
do HIV, visto que a escola atua como agente que promove a relação do indivíduo com o
facilitador no processo de aprendizagem mundo, podendo representar ou se representar
dos estudantes, estabelecendo uma troca de a um objeto ou a um sujeito.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 221-229, JAN-MAR 2017


Representações sociais de estudantes de escolas públicas sobre as pessoas que vivem com HIV/Aids 223

Diante do exposto, trabalhar representa- o HIV. Nenhum aluno afirmou possuir o


ções sociais em um ambiente escolar, tendo vírus. As entrevistas obedeceram um roteiro
em vista a análise do conhecimento social previamente elaborado com sete questões,
compartilhado sobre um determinado tema, sendo que, para análise deste estudo, a ênfase
na visão do senso comum dessa população foi dada para a seguinte questão: Como você
em um ambiente educacional é de funda- percebe/visualiza uma pessoa contaminada
mental importância. com HIV/Aids? Os indivíduos foram entrevis-
Nesse caminhar, a problemática deste tados individualmente. Cada entrevista durou
estudo partiu de que o conhecimento acerca em média 15 minutos, o conteúdo foi gravado
do HIV/Aids entre estudantes de escola em aparelho MP3, com posterior transcrição.
pública ainda é deficiente em face de ser um Os dados qualitativos foram dispostos
grupo vulnerável com reduzido acesso as po- no programa Alceste – Análise Lexical por
líticas públicas de promoção da saúde. Contexto de um Conjunto de Segmentos de
O pressuposto teórico se deu pelo fato de Texto. As entrevistas foram transcritas em
se tratar de uma população que apresenta um documento Word®, em que foram minu-
elevado número de contaminação pelo HIV/ ciosamente revisadas, sendo eliminados os
Aids e que pode dispor de informações per- vícios de linguagem e adequada a ortogra-
tinentes sobre a doença para a equipe de fia. Posteriormente, foram operacionaliza-
saúde no que se refere às representações das conforme o programa, por meio de um
sociais. Dessa forma, este estudo objetivou corpus de natureza textual, de análise stan-
analisar as representações sociais dos jovens dard, ou seja, a utilização de entrevistas com
e adultos acerca de suas vivências perante questões abertas (OLIVEIRA; GOMES; MARQUES, 2005).
pessoas que vivem com HIV. A montagem do corpus se deu por inter-
médio da apresentação das variáveis cha-
madas de linhas estreladas, que delimitam
Métodos cada unidade a ser analisada. As variáveis
usadas foram sexo e escola, as quais foram
Trata-se de um estudo descritivo, de caráter utilizadas apenas a critério de identificação
exploratório com abordagem qualitativa. A do sujeito. Criou-se um dicionário para que
pesquisa foi desenvolvida em duas escolas houvesse uma redução de vocabulário; as pa-
estaduais que possuem o curso presencial lavras com o mesmo significado foram subs-
de Educação de Jovens e Adultos (EJA), foi tituídas por um único termo com o intuito de
realizada no período de agosto a dezembro homogeneizar o texto.
2013, na cidade do Recife, Brasil. O critério De acordo com as regras do software,
para os estudantes participarem da pesquisa também foram substituídas palavras que
foi o de estarem regularmente matriculados tivessem o hífen para o underline, e as falas
nas escolas contempladas e inseridos na mo- do entrevistador foram colocadas em letras
dalidade de ensino EJA. maiúsculas para que não se confundis-
Os dados foram coletados a partir da apli- sem com a fala do entrevistado (NASCIMENTO;
cação de um questionário aos 169 alunos, MENANDRO, 2006). As 59 entrevistas realizadas
com idade entre 18 e 63 anos, o qual objetivou totalizaram 47 páginas com 67.094 caracte-
identificar as possíveis pessoas contaminadas res, o corpus foi inspecionado por uma das
pelo HIV ou sujeitos que conhecem pessoas pesquisadoras especialista nesse tipo de
infectadas; assim, somente os sujeitos que análise durante toda a sua montagem.
têm esse conhecimento ou são contamina- Após a leitura dos conteúdos posterio-
dos seguiram para a entrevista. Desse modo, res a cada linha estrelada ou da Unidade
59 alunos afirmaram conhecer pessoas com de Contexto Inicial (UCI), comando que o

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 221-229, JAN-MAR 2017


224 ANGELIM, R. C. M.; PEREIRA, V. M. A. O.; FREIRE, D. A.; BRANDÃO, B. M. G. M.; ABRÃO, F. M. S.

programa identifica onde se inicia cada entre- Resultados e discussão


vista, o Alceste segmenta o texto em Unidades
de Contexto Elementar (UCE), que são frag- A análise do resultado do software Alceste
mentos menores apresentados em três ou partiu de 59 linhas estreladas, o corpus
mais linhas (NASCIMENTO; MENANDRO, 2006). íntegro apresentou 73% de aproveitamen-
Por fim, são criadas as classes, que são to. De acordo com a distribuição das UCE,
conjuntos de UCE com sentidos semelhan- a classe que associou o predomínio textual
tes e vocabulários homogêneos. A análise com o objetivo proposto foi a classe 3 com
dos resultados apresentados pelo Alceste foi 43% do corpus. Para obter melhor compre-
ancorada em autores que abordam as repre- ensão da classe analisada, ela foi nomeada
sentações sociais. para atender ao objetivo da pesquisa como:
Para o desenvolvimento desta pesqui- ‘O significado das representações sociais dos
sa, foi respeitada a norma e diretriz para jovens e adultos e suas percepções acerca da
a realização de pesquisas envolvendo pessoa com HIV’.
seres humanos, contidas na Resolução nº As principais formas reduzidas, o con-
446/2012, do Conselho Nacional de Saúde texto semântico e os respectivos valores de
(CNS). A pesquisa foi aprovada pelo comitê qui-quadrado (x²) constituintes da classe 3
de Ética da Universidade de Pernambuco que possibilitam uma compreensão melhor
com parecer datado no dia 2 de julho de 2013 do conteúdo da classe são apresentadas no
de nº 323.058. quadro 1.

Quadro 1. Principais formas reduzidas, contextos semânticos e valores de x² da classe 3

Formas reduzidas Contexto semântico KH12

Viv vive(1) vivem(1) viver(12) vivia(4) vivo(1) 15

Acontec acontece(1) acontecer(14) acontecesse(1) aconteceu(3) acontecia(1) 14

CUR cura(12) curar(1) 13

Amigo amigo(9) amigos(4) 11

Descuid descuidar(1) descuido(8) descuidou(1) 10

Trist triste(17) tristes(1) tristeza(4) 9

Compaixão compaixão(12) 8

Difícil difícil(9) 8

Depressão depressão(5) 7

Na Classificação Hierárquica Ascendente com HIV’. Há também uma associação entre:


(CHA), resultado apresentado pelo software, amigo + coisa + viver + podemos + acon-
foram consideradas 21 formas reduzidas. teceu + acho, cuja temática denomina-se:
Observa-se que há uma ligação entre: cura ‘Lembranças e hipóteses de como ocorreu
+ convívio + compaixão + difícil, sequência a transmissão do HIV’. As palavras: acabou
que forma a primeira temática: ‘Vivências e + faz + vez + penso, constituem a temática:
sentimentos de jovens e adultos a pessoas ‘Dimensões e complexidades observadas

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 221-229, JAN-MAR 2017


Representações sociais de estudantes de escolas públicas sobre as pessoas que vivem com HIV/Aids 225

pelos estudantes a pessoas com HIV’. As formas: Para tanto, destaca-se o Programa Saúde
tomar + sabemos + vou + uma + triste + vida na Escola, o qual vai além de um programa
formam a temática: ‘Vulnerabilidade de pessoas de governo para uma política de Estado,
com o HIV devido à infecção do vírus’. pois implica na superação do modelo bio-
Com vista no objetivo de analisar as repre- médico de atenção aos estudantes para uma
sentações sociais dos jovens e adultos inseri- proposta promotora de saúde, com a parti-
dos no EJA com base na classe escolhida, nas cipação efetiva dos gestores, profissionais
UCE analisadas e as formas reduzidas emer- das Estratégias Saúde da Família (ESF) e da
gidas do software, surgiram os resultados escola e comunidade escolar (estudantes,
correspondentes ao grupo em geral indepen- pais, comunidade do entorno), com base no
dentemente das instituições pesquisadas. enfrentamento de suas necessidades espe-
As quatro divisões binárias propostas pela cíficas, proporcionando o trabalho com ca-
CHA da classe 3 serão em seguida abordadas. pacidades individuais e coletivas existentes
(FERREIRA ET AL., 2014)
Vivências e sentimentos de jovens e Os sujeitos expuseram tais depoimentos e
adultos a pessoas com HIV/Aids concepções reportando-se às suas memórias
sociais. A reapresentação do sofrimento tor-
As informações contidas nessa categoria na-se real quando esses sujeitos se deparam
trazem as experiências vividas pelos atores com a realidade da Aids, uma doença in-
da pesquisa, e os sentimentos expostos por curável, o que determina sentimentos tão
eles nas entrevistas fazem referência à tris- intensos e angustiantes centralizados na
teza, à depressão, à compaixão e à amizade amargura, tristeza, desespero, solidão, medo
como acolhimento crucial para a retomada da morte e da rejeição (CAMARGO; BERTOLO;
de laços para sociabilidade do portador. As BÁRBARA, 2009; SERRA ET AL., 2013).
falas remetem essa realidade: Assim, percebe-se um conjunto de re-
presentações, vivências e sentimentos que,
Uma fatalidade, mesmo tendo uma vida boa, no direta ou indiretamente, influenciaram e
final ele sabe o que pode acontecer, então é viver deixaram marcas significativas nas trajetó-
em uma corda bamba se equilibrando para não rias dos entrevistados, sobretudo em relação
cair, mas no final de tudo ele sabe o que vai acon- aos sentimentos vivenciados.
tecer, é triste. (E 05). Também têm destaque para o sujeito da
pesquisa o respeito e o acolhimento como
pontos essenciais para pessoas com HIV. A
Fiquei triste porque eu o conheço desde criança e fala seguinte expressa o respeito, a solidarie-
independente da sexualidade, ele é ser humano, dade à pessoa com o vírus:
estou do lado dele. (E 53).
[...] é mais fácil quando você lida diretamen-
É necessária a compreensão emocional te com a pessoa, você aprende a respeitar, a se
dos amigos, familiares e cônjuges que circun- prevenir, a ajudar as outras pessoas, e também a
dam o portador, adequando suas orientações entender que o nosso mundo está sujeito a acon-
e cuidados durante o adoecer pelo vírus. Por tecer qualquer coisa. (E 22).
este motivo, faz-se necessária a presença do
profissional de saúde no ambiente educacio- Essas representações estão integradas a
nal, ajudando a promover a desmistificação um valor social, associadas às repercussões
de crenças e a inversão dos valores associa- afetivas e morais negativas, ligadas ao fato de
dos aos sentimentos de negatividade ligados estar doente.
aos portadores.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 221-229, JAN-MAR 2017


226 ANGELIM, R. C. M.; PEREIRA, V. M. A. O.; FREIRE, D. A.; BRANDÃO, B. M. G. M.; ABRÃO, F. M. S.

Lembranças e hipóteses de como principais causas de contaminação. Os depoi-


ocorreu a transmissão do HIV/Aids mentos relatam os mitos sobre a transmissão
do vírus, ainda presentes nas populações ad-
Nessa subclasse, foram identificados dois jacentes aos atores da pesquisa.
tipos de abordagens. Na primeira, os par-
ticipantes visualizam as principais formas As pessoas acham que se sentar pode se conta-
de transmissão do vírus cientificamen- minar, se conversar pode se contaminar, um beijo
te comprovadas, como a relação sexual ou abraço pode se contaminar, eu acho isso ig-
desprevenida, a transmissão por meio de norância, eu tenho compaixão, sou amiga, mas
objetos perfurocortantes contaminados e acho que ela procurou porque ela quis. (E 20).
transfusão sanguínea. Evidenciam o uso
de preservativos como o meio mais eficaz O relato que refere a culpa da contamina-
para a prevenção das DST, reapresentam ção ao sujeito portador apresenta uma con-
a relação sexual como forma principal da cordância com o estudo no qual os sujeitos
transmissão do HIV. A fala seguinte evi- declararam que a irresponsabilidade nos
dencia essa realidade. intercursos sexuais culmina na soropositivi-
dade, o que acarreta o sentimento de culpa
Irresponsabilidade. Porque hoje em dia está tudo (CAMARGO; BERTOLO; BÁRBARA, 2009).
muito aberto, televisão tem uma comunicação A análise que menciona os mitos sobre a
grande, as pessoas falam uns com os outro, até contaminação pelo vírus aborda a necessi-
as crianças de hoje sabem o que é preservativo. dade de trabalhar questões voltadas para a
(E 16). saúde dentro da sala de aula. Faz-se necessá-
ria a existência de um profissional capacitado
A citação do preservativo nos depoimen- para as questões educacionais acerca do tema.
tos é de extrema importância por se tratar
de um método que, além de proteger contra Dimensões e complexidades obser-
DST, funciona como um contraceptivo. vadas pelos estudantes as pessoas
Destaca-se a importância educativa do pro- com HIV/Aids
fissional de saúde no ambiente educacional,
que possa promover reflexões às práticas Nesse item, os sujeitos relatam os preconcei-
sexuais preventivas e o manuseio adequado tos vivenciados, doenças associadas à triste-
dos métodos preventivos. O uso do preser- za e o não uso de preservativos nas relações
vativo apresenta-se como peça-chave para o conjugais. Para elucidar essa questão, serão
enfrentamento da epidemia (CAMARGO; BERTOLO; expostos os seguintes fragmentos:
BÁRBARA, 2009).
Vale destacar ainda algumas estratégias As pessoas veem como uma pessoa totalmente
adotadas para a diminuição do risco de incapacitada de fazer qualquer coisa, não ver
contaminação de HIV/Aids; dentre elas como uma pessoa normal, eu já sofri discrimina-
estão: o conhecer de saberes e práticas, ção só por estar com ele, já perdi amigos. (E 05).
a pesquisa comportamental, o diálogo,
a humanização, a consulta de enferma-
gem, a capacitação profissional, o cuidado Ela não fica com mais ninguém. Ela tem marido,
compartilhado e o planejamento de ações ele tem Aids também porque eles não se preve-
(SANTOS ET AL., 2012). niam. Ela acabou ficando louca; fala coisa com
A segunda abordagem demonstra que os coisa; ficou em depressão; ficou doente. Hoje em
participantes julgam o descuido e a irres- dia ela não faz mais nada, não pode trabalhar.
ponsabilidade nos intercursos sexuais como (E 47).

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 221-229, JAN-MAR 2017


Representações sociais de estudantes de escolas públicas sobre as pessoas que vivem com HIV/Aids 227

As falas expressam o sentimento de pre- Sinto compaixão, a Aids não tem cura, só trata-
conceito e discriminação contra as pessoas mento eu acho que só tem Jesus porque não tem
que vivem com HIV/Aids. Estudo seme- outra não. (E 03).
lhante de âmbito nacional realizado em 2011
identificou que, entre adultos, ainda existe a De acordo com os trechos, os sujeitos uti-
estigmatização e o despreparo associados à lizam a divindade como refúgio; o símbolo
Aids e a temas relacionados com a sexualida- da instituição religiosa alivia o sofrimento
de, apesar de campanhas na mídia nacional do portador e de familiares. A religião é uma
(GOMES; SILVA; OLIVEIRA, 2011). A desmistificação forma de acolhimento e de apoio ao enfren-
dos sentimentos expressados pelos estu- tamento dos aspectos morais das reper-
dantes requer competências e habilidades cussões clínicas do adoecimento pelo HIV.
desempenhadas com segurança e conhe- Aceitar a condição da doença pode ser parte
cimento pelos componentes da equipe de de um processo que inclui a construção de
saúde, com ênfase no Enfermeiro, que assiste novas identidades, como ser incluído em um
o doente com cuidados complementares no grupo religioso (PAIVA ET AL., 2011). Desse modo,
ambiente hospitalar, na atenção básica e am- a religião reapresenta um fortalecimento
biente educacional. adiante da fragilidade do adoecer.
Assim, as falas que expressam a impos- Outro aspecto identificado nessa sub-
sibilidade da pessoa em exercer suas ativi- classe é que apesar da Aids ser considerada
dades normais, como trabalhar, ter relação doença crônica que possibilita ao indivíduo
sexual ou ter filhos, são reapresentadas infectado melhorar seu aspecto físico e emo-
como uma complexidade em relação ao cional, a associação da doença ao precon-
adoecer pelo vírus. Tal conjetura sugere ceito e a ideia da morte pelo HIV é ligada às
que os entrevistados não estão conscientes práticas sexuais desviantes que comprome-
do tratamento da doença – a Aids é uma tem as regras sociais. Essa realidade pode
doença para o resto da vida, semelhante a ser evidenciada no trecho: “[...] ela descui-
uma doença crônica, tal como a diabetes, dou, tinha relação sexual com um e com outro,
que requer disciplina e exige alguns cui- toda noite ela saia para balada, bebia, usava
dados, como hábitos saudáveis na rotina drogas” (E 35).
diária, dormir cedo, alimentar-se bem, não Nesse sentido, as práticas sexuais consi-
beber, não fumar e manter alimentação deradas desviantes permitem a apresentação
balanceada (CAMARGO; BERTOLO; BÁRBARA, 2009). de pensamentos negativos em relação a quem
tem o vírus. O depoimento em relação ao uso
Vulnerabilidade de pessoas com o de drogas nas falas se sobressai como um
HIV devido à infecção do vírus fator de extrema importância, pois aborda
uma das principais vias de contaminação.
Nessa subclasse, observa-se a ligação entre a O julgamento da pessoa com HIV/Aids
religiosidade e os depoimentos. Os discursos remete à culpa pela contaminação, ao não
que abordam esse tema exibem uma forma uso do preservativo e à multiplicidade de
de fortalecimento ao indivíduo no enfrenta- parceiros como causas da contaminação.
mento das fragilidades expostas pelo HIV, A culpa, ante o HIV/Aids, demonstra
como visualizado a seguir: constituir uma questão intrigante por en-
volver aspectos relacionados com o juízo
Ele não se tornou uma pessoa triste, ele aceitou de moralidade, de consciência e de justiça.
Jesus, realmente deve ter seus momentos de tris- Os resultados demonstram que a conta-
teza, ele é uma pessoa alegre, que luta para apro- minação do sujeito é decorrente do seu
veitar o tempo que ele tem. (E 48). comportamento de risco estabelecido pela

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 221-229, JAN-MAR 2017


228 ANGELIM, R. C. M.; PEREIRA, V. M. A. O.; FREIRE, D. A.; BRANDÃO, B. M. G. M.; ABRÃO, F. M. S.

sociedade, envolvendo aspectos relaciona- destaque para a vulnerabilidade do por-


dos com o juízo de moralidade, de consciên- tador do vírus, os medos, sentimentos e
cia, de justiça anteriormente prescrita pelo vivências acerca da doença. Os sujeitos re-
social. Os sujeitos entrevistados não perce- apresentam o preservativo e a multiplici-
bem que os modos de transmissão de uma dade de parceiros como principal motivo
doença têm razões mais sociais do que indi- para a contaminação pelo vírus.
viduais (FERREIRA; FAVORETO; GUIMARÃES, 2012). Não se pode ignorar que a Aids vem se
Diante dos resultados, ressalta-se a im- construindo ao longo dos anos como uma
portância da promoção de programas edu- doença do medo. Sabe-se que é difícil mudar
cativos em parceria com os profissionais de opiniões preconceituosas, conceitos e es-
saúde nas instituições de ensino, em especial tigmas perante a história da Aids, por isso
ao profissional enfermeiro, que contribu- faz-se necessário alertar as instituições de
am para a conscientização dos estudantes ensino quanto ao papel educacional no que
quanto à importância da prevenção e pro- tange à educação social para a formação de
moção em saúde no ambiente escolar, como pessoas com visões abrangentes aos estig-
também a desmistificação em torno do HIV/ mas da doença e menos preconceituosas.
Aids. Assim, menos estigmas serão formu- Percebeu-se que a promoção à saúde
lados nessa relação, e aquele que portar o sexual dos estudantes necessita integrar
HIV/Aids poderá ter uma melhor qualida- temas sobre a conscientização social e edu-
de de vida ao conviver com pessoas menos cação e saúde: é a partir daí que os profis-
preconceituosas. sionais de saúde devem colaborar para a
desmistificação de sentimentos e atitudes
referentes ao portador do HIV/Aids. Assim,
Considerações finais reforça-se a necessidade do Enfermeiro em
promover novas estratégias de ensino para
Este trabalho fortalece as discussões de abordar esse conteúdo, na concretização de
jovens e adultos acerca da pessoa que vive uma educação transformadora, que contri-
com HIV/Aids. Por meio deste estudo, foi buam para mudanças sociais rumo a uma
possível identificar diversos conteúdos sociedade justa.
que compõem a representação social da Nesse caminhar, no que se refere à saúde,
Aids para os escolares que estão inseridos o tema em questão traz implicações impor-
na EJA e sua influência acerca dos indiví- tantes para o campo da enfermagem, para
duos soropositivos, apresentando-se como as práticas de promoção da saúde, especifi-
uma realidade vivida. A representação da camente de prevenção da disseminação do
doença abarca diferentes aspectos, com vírus e da doença. s

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 221-229, JAN-MAR 2017


Representações sociais de estudantes de escolas públicas sobre as pessoas que vivem com HIV/Aids 229

Referências

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 221-229, JAN-MAR 2017


230 ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE

Hanseníase e Atenção Primária à Saúde: uma


avaliação de estrutura do programa
Leprosy and Primary Health Care: program structure assessment

Gutembergue Santos de Sousa1, Rodrigo Luis Ferreira da Silva2, Marília Brasil Xavier3

RESUMO O presente trabalho objetivou avaliar a estrutura do programa municipal de controle


da hanseníase, em Canaã dos Carajás (Pará), no contexto da Atenção Primária à Saúde. Trata-
se de um estudo de avaliação de programas de saúde, com foco na hanseníase, tendo como
público-alvo os gestores do programa de hanseníase e os gerentes das unidades de saúde da
atenção primária. Foram utilizados dois questionários diferentes, elaborados especificamen-
te para esse fim. Concluiu-se que o município em questão possui uma estrutura classificada
entre insatisfatória e regular, demonstrando várias fragilidades no programa avaliado, para o
atendimento em hanseníase.

PALAVRAS-CHAVE Hanseníase. Avaliação em saúde. Estrutura dos serviços. Atenção Primária


à Saúde. Avaliação de serviços de saúde.

ABSTRACT Objective: to evaluate the structure of the municipal program of leprosy control in
Canaã dos Carajás (Pará), in the context of Primary Health Care. Methods: this is an assessment
of health programs, focusing on leprosy, targeting managers of the leprosy program and managers
of health facilities of primary care. Two different questionnaires, developed specifically for this
purpose, were used. Conclusion: the municipality in question has a structure classified between
poor and regular, showing several weaknesses in the assessed program for the care of leprosy.

KEYWORDS Leprosy. Health evaluation. Structure of services. Primary Health Care. Health
services evaluation.
1 Secretaria
Municipal
de Saúde de Canaã dos
Carajás – Canaã dos
Carajás (PA), Brasil.
gutenf@yahoo.com.br

2 Universidade do

Estado do Pará (Uepa),


Departamento de Ciências
do Movimento – Belém
(PA), Brasil.
rodrigolsf@yahoo.com.br

3 Universidade Federal do
Pará (UFPA) – Belém (PA),
Brasil.
mariliabrasil@terra.com.br

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 230-242, JAN-MAR 2017 DOI: 10.1590/0103-1104201711219
Hanseníase e Atenção Primária à Saúde: uma avaliação de estrutura do programa 231

Introdução número de alojamentos coletivos, áreas de


difícil acesso e dificuldade no controle dos
A hanseníase é uma doença infecciosa e comunicantes da doença devido ao grande
crônica de grande relevância para a saúde fluxo migratório.
pública, possuindo ações exclusivas volta- Avaliar, segundo a Organização Mundial
das para a sua eliminação em âmbito nacio- da Saúde (OMS) (2010), é realizar uma análise
nal por meio do Programa de Controle da sistemática do desempenho do programa
Hanseníase, presente na Atenção Primária à após um período de tempo específico de sua
Saúde (APS), em particular nas Equipes de implementação, comparando os resultados
Saúde da Família (EqSF), atendendo a popu- alcançados com os esperados, considerando
lação por meio de ações preventivas e cura- o planejamento prévio. A avaliação conside-
tivas (BRASIL, 2007). É transmitida pelo contato ra aspectos relacionados com a qualidade,
direto com pessoas doentes, principalmente eficiência, equidade, relevância, sustentabi-
mediante o convívio com pacientes multiba- lidade, qualidade dos cuidados e indicadores
cilares antes do tratamento, com interferên- de estrutura física.
cia de fatores determinantes e condicionantes A avaliação nos serviços de saúde,
do meio em que vive (SARNO, 2003). segundo Ferreira (2005), traduz-se em uma
Somente no ano de 2012, foram notificados prestação de contas à sociedade sobre as
33.741 mil casos novos da doença no País, com ações e medidas que estão sendo utilizadas
uma taxa de incidência de 17,39 por 100 mil no serviço, contribuindo para a melhoria
habitantes. No estado do Pará, em 2012, foram do serviço em questão, com reflexo direto
notificados 3.970 novos casos de hanseníase, na qualidade de vida da população assistida
com uma taxa de incidência de 50,75 por 100 pelo programa avaliado.
mil habitantes. No município de Canaã dos Para Lanza (2014), avaliar a hanseníase é
Carajás (PA), durante o ano de 2012, foram de extrema importância por se tratar de um
notificados 22 novos casos, com uma taxa agravo prioritário na política de saúde do
de incidência de 75,60 por 100 mil habitan- Brasil necessitando de ações que visem ao
tes (BRASIL, 2012). Os dados acima apresentados fortalecimento da atuação da APS no seu
fazem com que a hanseníase seja considerada controle. O uso de instrumentos adequados
um sério problema de saúde pública, exigindo e que permitam a análise do conhecimento
prioridades nas políticas públicas e ações de dos atributos que estão sendo alcançados
saúde que quebrem a cadeia de transmissão facilita o planejamento das ações para o res-
e que, consequentemente, cause impacto nos pectivo serviço, repercutindo diretamente
coeficientes da doença. na qualidade deste.
A incidência da hanseníase no município Diante do exposto o presente estudo teve
em questão é quatro vezes superior à média como objetivo avaliar a estrutura do progra-
da taxa apresentada no Brasil no mesmo ma municipal de controle da hanseníase, em
período, e bem maior do que os dados apre- Canaã dos Carajás, no contexto da APS, sob
sentados no estado do Pará, fazendo com que a ótica da gestão e da gerência do programa
o município seja hiperendêmico em relação em questão.
à hanseníase, alertando para a necessida-
de de intervenção no local e de um melhor
conhecimento sobre o funcionamento do Material e métodos
programa em questão. A alta taxa preocupa
tanto as equipes de saúde quanto a gestão, Trata-se de um estudo de avaliação em
cujos determinantes são potencializados saúde, tendo como foco o programa de
ante o fato de o município possuir um grande hanseníase, buscando um aprofundamento

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 230-242, JAN-MAR 2017


232 SOUSA, G. S.; FERREIRA DA SILVA, R. L.; XAVIER, M. B.

acerca das condições estruturais e de funcio- e quatro equipes de Agentes Comunitários


namento do respectivo programa em Canaã de Saúde, além de gestores da Secretaria
dos Carajás, que em 2015 possuía uma popu- Municipal de Saúde de Canaã dos Carajás
lacional estimada de 33.632 habitantes (IBGE, onde foram abordados os assuntos inerentes
2015). Contudo, o que se observa no município, à gestão do programa. A amostra foi compos-
e pelo discurso de seus gestores, é que tais ta por dois gestores e oito gerentes, sendo
números não representam a população real nove enfermeiros e um administrador.
residente, tendo em vista a elevada contra- As informações quantitativas foram apre-
tação de trabalhadores para atuar na monta- sentadas em tabelas e analisadas por meio de
gem de projeto minerador, acarretando com frequências relativas, correspondendo às va-
isso um desordenado processo migratório de riáveis presentes nos questionários aplicados.
pessoas em busca de trabalho. O estudo foi submetido ao Comitê de Ética
O caráter flutuante de sua população e em Pesquisa do Núcleo de Medicina Tropical
a grande taxa de crescimento anual traz da Universidade Federal do Pará, com parecer
consigo uma série de dificuldades para os favorável nº 1.128.385, foram observados os
serviços públicos de saúde, principalmente critérios para o estudo em seres humanos
no que tange ao planejamento das ações e conforme estabelece a Portaria nº 466/12.
serviços e à implementação de políticas pú-
blicas de saúde.
A avaliação de estrutura, segundo Resultados
Donabedian (1980), contempla análise de ins-
trumentos, recursos (financeiros, físicos e O município conta com 10 unidades de
humanos) e lugares físicos (estrutura física APS que fazem atendimento do agravo em
e materiais) necessários ao desenvolvimento questão, sendo seis delas na área urbana e
da atenção à saúde. quatro na área rural. Entre os profissionais
Para esta avaliação, foram utilizados dois de saúde que atendem a demandas relacio-
questionários semiestruturados, composto nadas com a hanseníase, o município conta
de perguntas abertas e fechadas. Para Gil com uma equipe formada por médicos,
(2008), o questionário é uma técnica de in- enfermeiros e fisioterapeutas para atendi-
vestigação social, contendo um conjunto de mento direto ao usuário do programa sem
questões, que serão respondidas pelos su- necessidade de referenciar para tais profis-
jeitos da pesquisa, com a finalidade de evi- sionais. O quadro de profissionais do muni-
denciar informações sobre conhecimentos, cípio também possui psicólogos, assistentes
valores, interesses, expectativas, compor- sociais, neurologista e ortopedistas alocados
tamento, entre outros, apresentando uma em outros setores, mas que atendem a enca-
variedade muito grande de temas, de acordo minhamentos do programa de acordo com as
com o problema de pesquisa apresentado e necessidades.
com os objetivos que se pretende alcançar. Conforme relato do gestor do referido
Quanto à análise e interpretação dos re- programa, o diagnóstico da hanseníase é de
sultados, este estudo teve uma abordagem responsabilidade das unidades básicas de
quantitativa, dos seguintes aspectos: estru- saúde, porém alguns casos ainda são diag-
tura física, logística de trabalho, recursos nosticados em outros serviços, tais como
humanos disponíveis, recursos materiais hospitais e ambulatório de especialidades.
existentes, estratégias utilizadas pelo pro- Todas as unidades de saúde do município
grama, atividades realizadas e recursos fi- possuem local adequado para o diagnós-
nanceiros disponibilizados. tico e atendimento sequencial ao usuário
A pesquisa foi realizada com nove EqSF do programa de hanseníase, bem como os

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 230-242, JAN-MAR 2017


Hanseníase e Atenção Primária à Saúde: uma avaliação de estrutura do programa 233

equipamentos e materiais necessários para Não foi relatada dificuldade para aqui-
a realização do atendimento em questão. A sição dos materiais e insumos necessários
referência do programa funciona por meio ao desenvolvimento das ações do programa
de pactuação com o município vizinho, loca- municipal de controle da hanseníase, sendo
lizado a 62 km de distância. utilizados recursos próprios nessas aquisi-
O município não possui plano municipal ções quando necessário, atendendo a todas
de controle da hanseníase, sendo suas ações as solicitações oriundas das equipes de saúde
baseadas e planejadas de acordo com a pro- no que tange ao programa.
gramação anual de saúde e planejamentos Não existe uma programação orçamen-
setoriais das equipes de trabalho. tária financeira, estabelecida por meio de
Foram realizadas uma campanha para dotação orçamentária, no orçamento anual
detecção de casos novos no ano de 2014 e da secretaria municipal de saúde, específica
uma campanha no ano de 2015, sendo que para as ações de hanseníase, sendo que estas
ambas as campanhas estavam previstas e de- são atendidas dentro do bloco financeiro da
talhadas na programação anual de saúde do vigilância em saúde.
município. É disponibilizado veículo para a equipe
Conforme informações do gestor do pro- de saúde realizar busca ativa aos faltosos do
grama, é realizado em média um treinamen- programa municipal de controle da hansení-
to anual para a equipe de saúde, no manejo ase, bem como também é fornecido combus-
clínico da hanseníase, envolvendo os profis- tível mensalmente ao enfermeiro da equipe
sionais médicos, enfermeiros, fisioterapeu- de saúde caso este opte por realizar tais
tas e terapeutas ocupacionais. visitas em seu próprio carro.

Tabela 1. Materiais sobre hanseníase disponíveis nas unidades de saúde. Canaã dos Carajás (PA) – 2016

Unidades de Saúde Disponíveis


Material
Sim Não Total
Manual do Programa de Hanseníase 100% 0% 100%
Protocolo do Programa de Hanseníase 75% 25% 100%
Protocolo complementar para investigação Diagnóstica em 50% 50% 100%
menores de 15 anos
Folder 62,5% 37,5% 100%
Cartazes 100% 0% 100%

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados coletados.

A tabela 1 refere-se aos materiais dispo- protocolo complementar para investigação


níveis nas unidades de saúde da atenção diagnóstica em menores de 15 anos.
primária, referentes ao programa de han- O município não possui protocolo próprio
seníase. Observa-se que 100% das unidades e nem fluxograma detalhado para o atendi-
possuem manual do programa de hansení- mento dos casos de hanseníase, sendo que
ase, 75% possuem o protocolo do progra- todas as diretrizes utilizadas para atendi-
ma e apenas 50% das unidades possuem o mento no programa são baseadas no Guia

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 230-242, JAN-MAR 2017


234 SOUSA, G. S.; FERREIRA DA SILVA, R. L.; XAVIER, M. B.

de Vigilância Epidemiológica (Ministério das unidades possuam folder para divulga-


da Saúde – MS) e nas portarias do MS que ção da doença.
dispõe sobre o agravo em questão. Todas as unidades de saúde visitadas
Quanto à presença de materiais de divul- possuem os materiais básicos para a reali-
gação e materiais educativos, observa-se que zação do diagnóstico da hanseníase, em um
100% das unidades possuem cartazes afixa- kit específico para essa finalidade, conforme
dos sobre a hanseníase embora apenas 62,5% demonstra a tabela 2.

Tabela 2. Materiais disponíveis nas unidades de saúde para o diagnóstico de hanseníase. Canaã dos Carajás (PA) – 2016

Disponibilidade
Material
Sim Não Total
Monofilamentos de Semmes Weinstein (kit com 6) 100% 0% 100%
Fio dental 100% 0% 100%
Algodão 100% 0% 100%
Alfinetes 100% 0% 100%
Tubo de ensaio 100% 0%
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados coletados.

Referente à realização do teste de acuidade e pressão arterial, apenas 25% das unidades
visual no diagnóstico da hanseníase, 75% das realizam a glicemia de jejum, 12,5% realizam
unidades de saúde não realizam tal teste, 12,5% tratamento profilático para estrongiloidíase e
realizam para todos os pacientes no momento nenhuma das unidades de saúde realizam tra-
do diagnóstico e 12,5% realizam, porém sem tamento profilático para osteoporose.
rotina estabelecida. Quanto aos fatores ligados Em casos de neurite associada, nenhuma
a não realização do teste acima citado, os depo- unidade de saúde realiza a imobilização do
entes relatam a falta de material necessário e a membro afetado com tala gessada ou encami-
falta de espaço físico adequado. nha o usuário para o ambulatório de ortopedia,
A dispensação dos medicamentos da po- 37,5% afirmam tomar outras condutas segui-
liquimioterapia da hanseníase e dos medica- das de orientação para repouso, 25% afirmam
mentos utilizados para tratamento das reações não tomar conduta nenhuma e 37,5% afirmam
hansênicas também foram objetos de avaliação nunca ter acompanhado nenhum caso relativo
deste estudo, que identificou que 50% das uni- a esse tipo de reação.
dades de saúde possuem tais medicamentos em Quanto à solicitação de exames diagnósticos
estoque armazenados em sua sede enquanto complementares, identificou-se que 100% das
os demais 50% não possuem armazenamento, unidades de saúde participantes da pesquisa
dependendo de liberação conforme notificação solicitam exames de baciloscopia e 62,5% solici-
de casos novos. tam histopatologia para hanseníase, sendo que,
O serviço de saúde usa o cartão de apraza- quando solicitados, ambos os exames são reali-
mento das consultas, inclusive para as referên- zados no próprio município e posteriormente
cias para o serviço especializado. enviados para um laboratório conveniado de
Entre as ações de monitoramento imple- referência, sendo seu resultado disponibilizado
mentadas em pacientes em uso de prednisona, ao usuário em média 30 dias após a coleta.
100% das unidades de saúde realizam peso Dos usuários que apresentam reação tipo

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 230-242, JAN-MAR 2017


Hanseníase e Atenção Primária à Saúde: uma avaliação de estrutura do programa 235

2, 75% das unidades de saúde afirmam ofertar grau de incapacidade e o formulário para ava-
acompanhamento odontológico para esse liação neurológica simplificada; 62,5% das uni-
público-alvo, enquanto 25% das unidades não dades possuem o formulário de vigilância dos
oferecem esse tipo de atendimento como rotina contatos intradomiciliares e 37,5% possuem a
no programa de hanseníase. ficha de investigação de suspeita de recidiva.
Entre os impressos utilizados no programa Nenhuma das unidades de saúde do municí-
de hanseníase, 100% das unidades de saúde pio possui vacina BCG disponível todos os dias
possuem a ficha de notificação de casos novos, da semana, sendo que, no município, tal vacina
o boletim de acompanhamento mensal dos é disponibilizada apenas na sala de imuniza-
casos atendidos, o formulário de avaliação do ções do hospital municipal.

Tabela 3. Solicitação de exames laboratoriais no diagnóstico da hanseníase e em casos de reações tipo 2. Canaã dos
Carajás (PA) – 2016

Evento da Solicitação
Exame Laboratorial Diagnóstico Reação Tipo 2
Sim Não Total Sim Não Total
Hemograma 775% 225% 1100% 550% 550% 1100%
Creatinina 225% 775% 1100% 550% 550% 1100%
TGO/TGP 337,5% 662,5% 1100% 550% 550% 1100%
PCR - - - 225% 775% 1100%
VHS/FAN - - - 112,5% 887,5% 1100%
Urina - - - 550% 550% 1100%
EPF - - - 225% 775% 1100%
Outros - - - 112,5% 887,5% 1100%
Nenhum 225% 775% 1100% 337,5% 662,5% 1100%

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados coletados.


TGO: Transaminase Glutâmico Oxalacética; TGP: Transaminase Glutâmico Pirúvica; PCR: Proteína C Reativa; VHS: Velocidade de
Hemossedimentação; FAN: Fator Antinuclear; EPF: Exame Parasitológico de Fezes.

Em relação aos exames laboratoriais so- um não cumprimento das normas estabele-
licitados no momento do diagnóstico do pa- cidas para o programa e questão.
ciente com hanseníase, observa-se a partir Nos casos de reação tipo 2, também se
da tabela 3 que não existe uma padronização observa uma falta de padronização no acom-
específica para a solicitação de tais exames, panhamento de indicadores laboratoriais em
sendo que o exame mais solicitado é o he- que 37,5% das unidades de saúde não soli-
mograma completo (75% das unidades) e citam nenhum exame; 50% delas solicitam
o menos solicitado é a creatinina (25% das hemograma, creatininina, Transaminase
unidades). Todos os exames preconizados Glutâmico Oxalacética/Transaminase
por intermédio do MS para o diagnóstico Glutâmico Pirúvica (TGO/TGP) e urina e
complementar ou controle dos casos de han- apenas 25% das unidades solicitam Exame
seníase e reações hansênicas são disponibi- Parasitológico de Fezes (EPF) e Proteína C
lizados no município, observando-se assim Reativa (PCR).

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 230-242, JAN-MAR 2017


236 SOUSA, G. S.; FERREIRA DA SILVA, R. L.; XAVIER, M. B.

Tabela 4. Materiais disponibilizados ao usuário do programa municipal de controle da hanseníase de Canaã dos Carajás
(PA) – 2016

Disponibilidade
Material
Sim Não Total
Colírio para reposição de lágrima 12,5% 87,5% 100%
Soro fisiológico 100% 0% 100%
Óleo de girassol (Dersane) 37,5% 62,5% 100%
Óleo mineral 75% 25% 100%
Creme de ureia 25% 75% 100%
Outros 12,5% 87,5% 100%

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados coletados.

Das unidades de saúde participantes da necessidade da prestação de cuidados de


pesquisa, 100% disponibilizam gratuitamen- forma integral a esse grupo de usuários. A
te soro fisiológico aos pacientes com hanse- presença da equipe multiprofissional propi-
níase; 75% distribuem óleo mineral; 37,5% cia um atendimento acolhedor e uma maior
disponibilizam óleo de girassol; 25% dispo- resolutividade do trabalho, permitindo um
nibilizam creme de ureia e 12,5% disponi- aprofundamento de saberes e práticas e a
bilizam colírio para reposição de lágrima, geração de vínculos comunitários, gerando
conforme especificado na tabela 4. uma maior autonomia no processo de traba-
Nenhuma das unidades de saúde abre lho e assistência da atenção primária (COSTA
sábado ou domingo ou permanece aberta no ET AL., 2014).
horário de almoço ou após as 18h algum dia A ausência do profissional de terapia ocu-
na semana. pacional na equipe de trabalho atuante na
Na opinião do gestor do programa, o mu- hanseníase traz prejuízos direto ao paciente.
nicípio possui como pontos fortes (forças) a Embora Canaã dos Carajás seja um municí-
pouca rotatividade da equipe de saúde, a dis- pio com população abaixo de 100 mil habi-
ponibilidade de materiais e insumos para o tantes, e possa pactuar tal serviço com outros
programa e o apoio técnico e proximidade da municípios, seria de extrema importância a
referência para os atendimentos mais comple- contratação desse profissional para atuar nas
xos. Possui como pontos fracos (fraquezas) a ações de reabilitação em hanseníase.
mobilidade populacional, a dificuldade para a A terapia ocupacional no cuidado ao pa-
busca ativa de contatos e a frequente entrada ciente com hanseníase é fundamental para a
de novos servidores no quadro, devido à ex- compreensão do usuário enquanto sujeito de
pansão populacional e dos serviços de saúde e sua própria história, atuando por intermédio
a necessidade de capacitação frequente dessa da reabilitação física direcionada às ativida-
nova demanda de profissionais. des da vida diária, por meio da mudança e da
transformação do indivíduo, na promoção
do autocuidado e da independência desse
Discussão usuário (LOUREIRO; BARRETO; MAKSUD, 2015).
Para a OMS (2010), os serviços de aten-
A presença de profissionais de diversas ca- dimento à hanseníase não necessitam de
tegorias é de extrema importância na as- grandes aparatos tecnológicos, devendo
sistência da hanseníase, tendo em vista a proporcionar uma ampla cobertura, sendo

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 230-242, JAN-MAR 2017


Hanseníase e Atenção Primária à Saúde: uma avaliação de estrutura do programa 237

fornecido em todas as unidades de saúde, Um estudo realizado em Minas Gerais


centrado no paciente garantindo privacida- identificou também uma baixa taxa de
de e confidencialidade, possuir diagnóstico treinamentos e capacitações ofertadas aos
oportuno e os recursos necessários e esse fim, profissionais que atuam no atendimento da
tratamento disponível e gratuito e garantir hanseníase nas unidades de APS. Diante de
encaminhamentos adequados em casos de tal fato, a autora sugere a adoção de mecanis-
complicações, reabilitação e outras situações mo de qualificação a distância e consultorias
que requeiram um serviço especializado. por parte de municípios que não possuem
Diante da complexidade da hanseníase, profissionais capacitados para ministrar tais
de seu histórico de estigma e segregação e de treinamentos (LANZA, 2014).
todo o contexto social que envolve a doença, O uso de recursos financeiros munici-
faz-se necessária a elaboração de medidas pais como contrapartida para a aquisição de
específicas que visam minimizar os efeitos da insumos e outros materiais para a manuten-
doença na comunidade, bem como ampliar ção do programa municipal de controle da
as taxas de detecção de casos novos para hanseníase é uma ação prevista e rotineira
posteriormente controlar a doença por meio que, teoricamente, deve existir em todos
de medidas que interrompam sua cadeia de os municípios brasileiros, tendo em vista o
transmissão. Assim, a elaboração do plano caráter tripartite de financiamento da saúde,
municipal de controle da hanseníase é uma assegurado por intermédio de lei federal
medida simples e inovadora capaz de dire- (BRASIL, 1990).
cionar as ações da doença de acordo com A falta de uma programação orçamentária
seus níveis de complexidade e de atenção, e financeira específica para a hanseníase, no
impactando diretamente nos coeficientes contexto da lei orçamentaria anual, não deve
e indicadores da doença, uma vez que dará prejudicar o desenvolvimento das ações
mais visibilidade às ações e serviços que pre- específicas para esse agravo, uma vez que
cisam ser desenvolvidos para esse fim. o próprio MS determina os repasses finan-
No município da pesquisa, foi realizada ceiros alocados em blocos de financiamento,
apenas uma campanha para hanseníase. As em que a hanseníase e outras doenças trans-
campanhas para detecção de casos novos missíveis pertencem ao conjunto das ações
de hanseníase devem ser vistas como uma e financiamento do bloco de vigilância em
ferramenta facilitadora do processo de tra- saúde (BRASIL, 2016).
balho e que agrega grandes contribuições O serviço de saúde usa o cartão de apra-
para melhoria dos coeficientes da doença. zamento das consultas, inclusive para as
Em um estudo realizado no município de referências para o serviço especializa-
Buriticupu, estado do Maranhão, os autores do, conforme preconiza a Portaria MS nº
identificaram que a busca ativa de casos 149/2016 (BRASIL 2016).
novos é de extrema importância para o diag- A busca ativa de pacientes faltosos no pro-
nóstico precoce da doença (SILVA ET AL., 2010). grama de hanseníase e de contatos domicilia-
A baixa taxa de capacitação profissional no res é de extrema importância para o resgate
município de Canaã dos Carajás é um fator da demanda que não compareceu a unidade
preocupante no que se refere a prestação de de saúde e requer assistência profissional.
assistência em hanseníase. Observou-se que Canaã dos Carajás possui ações inovadoras
o município ofereceu, no último ano, treina- como o fornecimento de combustível para os
mento apenas para os profissionais de nível su- profissionais das unidades de saúde realiza-
perior, não atendendo às demandas de outros rem tais visitas em seu próprio veículo, caso
profissionais como técnico/auxiliar de enfer- não optem por usar o veículo disponibiliza-
magem e agentes comunitários de saúde. do pelo serviço.

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238 SOUSA, G. S.; FERREIRA DA SILVA, R. L.; XAVIER, M. B.

Um estudo realizado em Goiás identificou tal procedimento. Em uma avaliação reali-


que entre os motivos para o não compareci- zada em um centro de referência nacional
mento à unidade de saúde na data agendada para hanseníase, identificou-se que houve
está a não informação sobre o agendamen- aumento no número de deficiências ou inca-
to realizado e a distância da residência até pacidades oculares comparados no momento
o serviço de saúde limitando o acesso do do diagnóstico e na alta por cura respectiva-
usuário (FARIA ET AL., 2013). mente. Os autores afirmam que tal fato se
O uso de protocolos municipais e fluxogra- torna recorrente devido ao pequeno número
mas de atendimento no programa de hansení- de serviços em que a avaliação ocular faz
ase é de extrema importância para unificação parte da rotina de controle dos pacientes
da assistência prestada ao paciente, dentro portadores de hanseníase (KIL ET AL., 2010).
de um contexto de equidade, regionalização Referente ao armazenamento da
e valorização da singularização das caracte- Poliquimioterapia (PQT) para hanseníase,
rísticas locais, bem como de seus condicio- identificou-se que apenas 50% das unida-
nantes e determinantes. O protocolo deve ser des de saúde possuem armazenamento das
visto como um instrumento técnico de orien- medicações no próprio estabelecimento, en-
tação profissional e do processo de trabalho, quanto as demais unidades fazem a solicita-
por meio do direcionamento das atividades a ção mediante o diagnóstico do paciente. Vale
serem desempenhadas dentro das atribuições atentar para o fato de que o armazenamento
profissionais de cada categoria dentro do da medicação na própria unidade favorece a
serviço de saúde, com o objetivo de garantir dispensação imediata, sem atrasos no início
melhoria na qualidade da assistência prestada da PQT e sem riscos de perda do paciente ou
ao usuário (COREN-MG, 2012). ausência caso ocorra agendamento para dis-
Referente ao uso de materiais educati- pensação da medicação para o próximo dia.
vos como folder e cartaz, percebeu-se que O MS define que o uso do cartão de apra-
a maioria das unidades de saúde faz uso de zamento ou agendamento de consultas é de
tais recursos informativos e educativos. Em extrema importância para o registro da data
um estudo realizado no Rio de Janeiro sobre de retorno ao serviço de saúde, servindo
o uso de recursos para comunicação, os como ferramenta para monitorar a adesão
autores concluíram que tais materiais educa- do paciente ao tratamento. Em Canaã dos
tivos favorecem a compreensão de aspectos Carajás, todas as unidades participantes da
clínicos, psicológicos e socioculturais sobre pesquisa fazem uso de tal dispositivo no pro-
a hanseníase, potencializando o diálogo grama de hanseníase (BRASIL, 2016).
entre os grupos (SANTOS; RIBEIRO; MONTEIRO, 2012). Os corticosteroides, neste caso a predni-
O município dispõe de um kit com os ma- sona, trazem grandes benefícios ao estado
teriais necessários à realização do diagnós- de saúde do usuário, porém seus efeitos
tico da hanseníase comportando: tubo de colaterais devem ser monitorados perante
ensaio, estesiômetro, fio dental sem sabor, al- o risco de comorbidades, agravamento de
finetes e algodão. Todos esses materiais são doenças preexistentes e desencadeamen-
utilizados para avaliar o grau de incapacida- to de efeitos danosos. Observou-se que as
de e a ausência ou diminuição de sensibili- unidades de saúde de Canaã dos Carajás,
dade, conforme disposto pelo MS (BRASIL, 2016). que participaram da pesquisa, não possuem
Quanto à realização do teste de acuidade uma padronização para o monitoramento de
visual no diagnóstico, a maioria das unida- ações implantadas no paciente em uso desse
des de saúde (75%) não realiza tal teste por medicamento, sendo que a maioria das uni-
falta de material na unidade de saúde e por dades realiza somente o peso e a pressão ar-
falta também de um espaço adequado para terial, sendo esporádico o monitoramento da

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 230-242, JAN-MAR 2017


Hanseníase e Atenção Primária à Saúde: uma avaliação de estrutura do programa 239

glicemia e os cuidados com estrongiloidíase assim planejar melhor sua conduta diante do
e osteoporose, conforme preconização do problema atual (PASCHOAL ET AL., 2011).
MS (BRASIL, 2016; RIO DE JANEIRO, 2010). A ausência de vacina BCG nas unidades
Observou-se que as unidades de saúde da rede de atenção primária é um fator agra-
não estão preparadas para atender ou dar vante que precisa ser solucionado a fim de
o encaminhamento necessário aos casos de melhorar o atendimento aos contatos dos
neurite associada, sendo que nenhuma das pacientes de hanseníase. O que se observa é
unidades pesquisada orienta o repouso do que tal problema não é restrito a Canaã dos
membro por meio de imobilização com tala Carajás e que vários municípios do País estão
gessada (BRASIL, 2016). com falta desse imunobiológico em sua rede
Identificou-se que a maioria das unidades de frios, sendo necessário o agendamento
de saúde do município pesquisado faz uso da de dias para realizar a vacina e até mesmo
baciloscopia e da histopatologia como recur- a centralização desta em apenas um local.
sos auxiliares no diagnóstico da hanseníase, Esse problema ocorre devido a atrasos no
sendo tal serviço oferecido gratuitamente repasse dessa vacina ou do repasse em quan-
aos usuários que necessitam. Para Obardia, tidade inferior à necessidade de estados e
Veraldino e Alves (2011), tais exames são úteis municípios, não sendo possível atender toda
no diagnóstico classificatório da doença em a demanda de pessoas que necessitam desse
situações em que o diagnóstico clínico sus- imunobiológico segundo as normas do pro-
citou dúvidas, porém não devem ser con- grama municipal de imunização (CANCIA, 2015).
siderados como exames de escolha para o Quanto aos exames laboratoriais soli-
diagnóstico da doença, devendo as caracte- citados no momento do diagnóstico e em
rísticas clínicas prevalecerem sempre. casos de reações hansênicas, observa-se que
O atendimento à saúde bucal dos pacien- não existe uma padronização ou protocolo
tes de hanseníase está presente na maioria seguido pelas unidades de saúde, sendo que
das unidades de saúde que participaram do algumas solicitam todos os exames e outras
estudo (75%). Isso demonstra comprome- solicitam parcialmente, porém sem crité-
timento com a integralidade da assistência rios específicos para isso, demonstrando
em saúde prestada ao usuário desse progra- que, nesse quesito, o município não está de
ma. Um estudo sobre a autopercepção sobre acordo com o que preconiza o MS (BRASIL, 2016).
saúde bucal com pacientes de hanseníase A disponibilização gratuita de insumos ao
demonstrou que é de extrema importância o usuário de hanseníase não segue o mesmo
desenvolvimento de programas que promo- padrão em todas as unidades. Todas as
vam a saúde bucal em hanseníase uma vez unidades dispõem de soro fisiológico, mas
que infecções odontológicas podem causar apenas 12,5% disponibilizam colírio para
reações hansênicas, agravando assim os sin- reposição de lágrimas. O ideal seria a oferta
tomas da doença (ALMEIDA ET AL, 2013). dos insumos necessário ao atendimento do
O prontuário completo e organizado é paciente em todas as unidades de saúde do
de extrema importância para situar os di- município, conforme a demanda de cada
versos profissionais que fazem atendimen- serviço. A oferta de insumos e materiais
to ao usuário de hanseníase sobre todas as ao usuário do serviço, mesmo que este não
situações, condutas e assistência prestada. esteja previsto no elenco de medicamentos
O prontuário com anotações adequadas básicos, é de responsabilidade das unidades
e os anexos inerentes ao estado de saúde de saúde, por meio de disponibilização pelo
do paciente facilitam o acesso ao histórico setor específico, favorecendo, assim, o exer-
daquele usuário, permitindo ao profissional cício da integralidade da atenção e do serviço
consultar outras intervenções já adotadas e em questão (SÃO PAULO, 2013; RIO DE JANEIRO, 2010).

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240 SOUSA, G. S.; FERREIRA DA SILVA, R. L.; XAVIER, M. B.

O fato de nenhuma unidade de saúde ficar o tamanho amostral utilizado, embora a


aberta após as 18h, no horário de almoço ou amostra empregada tenha representado
no sábado ou domingo não prejudica direta- 92,3% do universo disponível no município.
mente o desenvolvimento das ações de han- Destaca-se também a ausência de um ins-
seníase, mas dificulta o acesso dos usuários trumento de coleta de dados validado para
que trabalham em turnos, como é o caso da a avaliação de estrutura, capaz de indicar
maioria dos trabalhadores do município em parâmetros avaliatórios eficazes e que ul-
decorrência dos horários estabelecidos pelas trapassem os limites atuais encontrados na
empresas de mineração e suas prestadoras subjetividade da análise realizada.
de serviço. Tal fato requer que, nestes casos
de trabalho em regime de escala ou turnos,
o usuário necessite faltar ao serviço para ser Conclusões
atendido na unidade de saúde.
Um estudo realizado no município de Observou-se, a partir deste estudo, que o
João Pessoa (PB), com o objetivo de analisar município de Canaã dos Carajás, com base
o impacto da ampliação do horário de funcio- na Portaria GM/MS nº 149/2016 que define
namento das unidades de saúde para o turno as diretrizes para vigilância, atenção e con-
noturno, identificou uma melhora significa- trole da hanseníase, possui uma estrutura
tiva da procura pelo serviço principalmente que, na maioria dos itens avaliados, encon-
da clientela de trabalhadores masculinos. tra-se classificada entre insatisfatória e
Tais resultados apontam para uma poten- regular, sendo poucos os itens avaliados que
cial eficácia da criação de horários alterna- receberam classificação bom ou excelente.
tivos para o atendimento principalmente Foram encontradas diversas fragilidades no
de trabalhadores que não podem procurar que tange às orientações dadas pela portaria
o serviço de saúde nos horários padrões de acima citada e que precisam ser revistas no
funcionamento (CORDEIRO ET AL., 2014). intuito de garantir melhoria na qualidade da
No que se refere aos pontos fortes e pontos assistência prestada ao usuário.
fracos do programa de hanseníase do muni- É necessário que o município em questão
cípio, segundo a opinião do gestor do sistema fomente maiores investimentos na capacita-
de saúde, observa-se que as forças estão mais ção profissional e educação permanente dos
relacionadas com a gestão de pessoas e orça- trabalhadores ligados à hanseníase a fim de
mentária e que as fraquezas estão relaciona- que estes sintam maior segurança no aten-
das com as dificuldades impostas pelo meio. dimento ao usuário desse programa e que
Quanto à mobilidade populacional, des- isto repercuta diretamente na qualidade da
tacada como ponto fraco do programa em assistência prestada, implementando meca-
questão, um estudo realizado em Mato Grosso nismos de vigilância epidemiológica para o
identificou uma associação entre a evolução e agravo em questão, fortalecendo o seu pro-
aumento no número de casos de hanseníase e grama de controle, promovendo melhorias
o processo de ocupação do território. A autora nos processos de assistência e do resultado
destaca ainda que a migração explicaria a ins- final do programa.
talação e evolução da hanseníase, porém a Sugere-se a realização de novos estudos,
manutenção dela estaria relacionada com de- com os mesmos seguimentos, porém com
terminantes e condicionantes fornecidos pelo uma amostragem maior, a fim de que se
meio, como o aumento de desmatamento e a possa comparar os resultados obtidos e,
expansão do extrativismo e da agropecuária a partir destes dados, formular hipóteses
(MAGALHÃES ET AL., 2011). para as questões encontradas e levantadas
Este estudo possui como limitações durante a avaliação. s

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Hanseníase e Atenção Primária à Saúde: uma avaliação de estrutura do programa 241

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Recebido para publicação em março de 2016
Versão final em agosto de 2016
Conflito de interesses: inexistente
RIO DE JANEIRO (Município). Secretaria Municipal
Suporte financeiro: não houve
de Saúde e Defesa Civil. Sub-Secretaria de Promoção,
Atenção Primária e Vigilância em Saúde. Linha

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 230-242, JAN-MAR 2017


ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE 243

Centro de Trauma: modelo alternativo de


atendimento às causas externas no estado do
Rio de Janeiro
Trauma Center: alternative model of trauma care in the state of Rio
de Janeiro

Elvis da Silva Silveira1, Gisele O’Dwyer2

RESUMO O trabalho objetivou analisar o Centro de Trauma de um hospital estadual do Rio


de Janeiro. Observou-se o serviço e analisaram-se indicadores: critérios de elegibilidade;
cumprimento de rotinas de atendimento estabelecidas; número e causa de atendimentos; e
tempo de permanência. O atendimento cumpriu os protocolos preconizados. O tempo médio
de internação foi 11,4 dias, semelhante ao da rede, apesar da maior complexidade. Dos atendi-
mentos, 79,6% foram originários do ambiente pré-hospitalar e 54,97% foram de acidentes de
trânsito. A mortalidade foi de 4,5%. O Centro de Trauma obteve resultado considerado satis-
fatório nas análises. Espera-se que a experiência contribua para a construção de uma política
estadual de atenção ao trauma.

PALAVRAS-CHAVE Medicina de emergência. Causas externas. Ferimentos e lesões. Centros de


traumatologia. Avaliação.

ABSTRACT The objective was to evaluate the Trauma Center of a public hospital in the state
of Rio de Janeiro. As methodology the service was observed and indicators were analyzed, in-
cluding: eligibility criteria; established procedures of service; number and causes of care; and
length of stay. The service met the recommended protocols. The mean hospital stay was 11.4 days,
similar to the rest of the network, despite the highly complex profile. Seventy-nine percent of the
patients were from the prehospital setting and 54.97% were from traffic accidents. The mortal-
ity was 4.5%. The Trauma Center fulfilled goals and it is expected that the experience from this
center will contribute to the construction of a state policy for trauma care.

KEYWORDS Emergency medicine. External causes. Wounds and injuries. Traumas center.
1 Fundação Oswaldo Cruz Evaluation.
(Fiocruz), Escola Nacional
de Saúde Pública Sergio
Arouca (Ensp) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.
elvis.silveira@live.com

2 Fundação Oswaldo Cruz

(Fiocruz), Escola Nacional


de Saúde Pública Sergio
Arouca (Ensp) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.
odwyer@ensp.fiocruz.br

DOI: 10.1590/0103-1104201711220 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 243-254, JAN-MAR 2017
244 SILVEIRA, E. S.; O’DWYER, G.

Introdução sobre Mortalidade do Ministério da Saúde


(SIM/MS), chamam a atenção também para
A morte e invalidez decorrente de acidentes a alta taxa de mortalidade por causas exter-
são uma epidemia negligenciada da socieda- nas entre os idosos, com um valor de 118,9
de moderna e a principal causa de morte na óbitos por 100 mil habitantes, o que pode ser
primeira metade da vida (NATIONAL ACADEMY OF explicado pela maior vulnerabilidade física
SCIENCES, 1966). O cenário atual é semelhante. dessa população.
Os acidentes e a violência formam o grupo Mas, nada causa tanto impacto como
das causas externas e são responsáveis, anu- os homicídios, a primeira causa de morte
almente, por 5,8 milhões de mortes em todo dentre todas as causas externas. Só em 2011,
o mundo, 32% a mais que a soma das mortes segundo dados do SIM/MS, foram 51.724
por malária, Síndrome de Imunodeficiência óbitos por esta causa. Por dia aproximada-
Adquirida (Aids) e tuberculose (ONUBR, 2014). mente 142 pessoas morrem no Brasil vítimas
Para cada milhão de pessoas que morre todo de homicídio, um assassinato a cada dez
ano, outros milhares ficam incapacitados minutos. Nos últimos 20 anos, os homicídios
temporária ou definitivamente. no Brasil tiveram crescimento proporcional
Os impactos gerados pelas causas exter- de mais de 200%, cerca de 70% deles foram
nas têm repercussão em diversos setores cometidos com armas de fogo cujo uso au-
da sociedade, mas é o setor saúde que mentou intensamente nesse período (BRASIL,
recebe seu maior impacto, pela pressão que 2005). A faixa entre 20 a 24 anos de idade
exercem suas vítimas sobre os serviços de lidera os índices de mortes por homicídios,
emergência, atenção especializada, reabili- revelando nesse ponto seu traço mais devas-
tação física, psicológica e assistência social tador, a subtração precoce de uma população
(MELLO-JORGE; KOIZUMI; TONO, 2008). recém iniciada na vida adulta.
Ao longo das últimas décadas o Brasil Além do alto custo econômico e social
vem passando por um processo de transi- gerado pela mortalidade, o Brasil ainda
ção epidemiológica com a modificação nos acumula perdas incalculáveis com a mor-
padrões de morte, morbidade e invalidez bidade gerada pelas causas externas. Entre
da população. O País ainda mantém altas os jovens, para cada homicídio há 20 a 40
taxas de mortes e sequelas por causas ex- vítimas de violência juvenil não fatal rece-
ternas gerando um grave problema de saúde bendo tratamento (SOUZA, 2005).
pública e pode-se afirmar que houve uma Em 2011, em consonância com a nova po-
grande demora em identificar que essa situ- lítica de Redes de Atenção à Saúde, é editada
ação necessitaria de uma atenção sistêmica a política de Rede de Atenção às Urgências
específica (BRASIL, 2001). (BRASIL, 2011), uma atualização da Política
No Brasil, as causas externas representam Nacional de Urgência e Emergência de 2003.
a terceira causa de mortes e 12,5% do total A nova política de urgência define os compo-
de mortes por todas as causas. Na faixa etária nentes da rede de urgência que necessitam
entre 01 e 39 anos, as causas externas repre- estar integrados, mas não se detém nas es-
sentam a primeira causa de morte, com uma tratégias especiais para tipos específicos de
taxa de mortalidade de 70,5 casos por 100 atendimento.
mil habitantes, onde o sexo masculino re- Em 2013, políticas específicas de atenção
presenta 83,1% de todos os óbitos (BRASIL, 2011). as causas externas começaram a se concreti-
Somos o quinto país no mundo em mortes zar a partir da publicação de duas portarias
provocadas pelo trânsito, com 28% destas do Ministério da Saúde, a primeira instituin-
envolvendo motocicletas (BRASIL, 2015). do a linha de cuidado ao trauma na rede de
Dados de 2011, do Sistema de Informações atenção às urgências (BRASIL, 2013A) e a segunda

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 243-254, JAN-MAR 2017


Centro de Trauma: modelo alternativo de atendimento às causas externas no estado do Rio de Janeiro 245

estabelecendo a organização dos Centros de O modelo americano de Centro de


Trauma (BRASIL, 2013B). Colocar as urgências de Trauma (CT) guarda algumas características
natureza clínica e traumática em um mesmo próprias, dentre elas, a destinação ao atendi-
cenário ainda é comum no País, haja visto a mento somente de vítimas de causas exter-
organização das emergências das unidades nas com traumas graves, seleção por parte
hospitalares onde geralmente casos clínicos dos serviços pré-hospitalares das vítimas
e traumas dividem o mesmo espaço. a partir de critérios de elegibilidade pré-
O estado do Rio de Janeiro, possui uma -estabelecidos, o contato prévio das equipes
grande concentração de unidades hospitala- pré-hospitalares avisando sobre a chegada
res, sobretudo no município do Rio, herança do paciente, a formação dos chamados ‘times
do período em que a cidade era capital do de trauma’ destinado ao primeiro atendi-
País. Somente na região metropolitana são mento do paciente na unidade, entre outros
aproximadamente vinte e um hospitais de (AMERICAN COLLEGE OF SURGEONS, 2006).
urgência pertencentes à União, estado e Experiências nos EUA e também em
municípios, sendo que destes, sete estão sob outros países apontam como positiva a es-
gestão da Secretaria de Estado de Saúde do tratégia de atendimento a pacientes vítimas
Rio de Janeiro (SES/RJ). Apesar dessa rede de causas externas baseada em modelos de
robusta, ainda são muitos os problemas en- CT, mas ressaltam que não só o CT e sim
frentados, com destaque para a dificuldade um sistema regional de trauma precisa ser
de integração entre as unidades, sobretudo criado. Em média somente 15% das vítimas
de diferentes níveis de governo. de causas externas precisam ser atendidas
Em linhas gerais, o modelo de atenção às em Centros de Trauma nível I (FRAGA, 2007),
causas externas adotado no estado do Rio de o mais alto dos quatro níveis preconiza-
Janeiro ao longo dos últimos anos seguiu o dos pela Colégio Americano de Cirurgiões
padrão nacional, ou seja, uma rede formada (AMERICAN COLLEGE OF SURGEONS, 2006). Estudo
por hospitais gerais com emergências 24h comparando resultados de pacientes gra-
atendendo demanda espontânea e referen- vemente feridos tratados em sistemas com
ciada, tanto clínicas como cirúrgicas. Nessas Centros de Trauma apontou uma redução
unidades, em geral, são recebidos todos os na mortalidade dessas vítimas (CELSO ET AL.,
tipos de casos, desde traumas leves até pa- 2007; VICKERS ET AL., 2015).
cientes politraumatizados graves. Segundo Fraga (2007), a redução dos
Recente pesquisa em um hospital terciá- óbitos evitáveis chega a 50% no caso desses
rio referência para trauma, que atende indis- pacientes. Esses dados aliados a grande ca-
tintamente traumas e urgências atribuíveis à suística de lesões por causas externas no
atenção primária, demonstrou dificuldades estado justificou a adoção desse modelo
operacionais para uma atenção de qualidade pela SES/RJ (SES/RJ, 2012).
(SOARES; SCHERER; O’DWYER, 2015). Mais do que a mudança da estrutura física
Uma medida de atenção às causas ex- e de conformação de equipe das unidades de
ternas adotada foi a criação dos chamados urgência, o projeto da SES/RJ de criação de
Centros de Trauma. O modelo proposto pela Centros de Trauma visa mudar os processos
SES/RJ baseou-se no modelo norte-ameri- de trabalho e alterar a lógica de atendimen-
cano e foi implantado a partir de trocas de to ao paciente vítima de causas externas nas
experiências entre a SES/RJ e os Centros de portas de entrada dos hospitais de urgência,
Trauma de Baltimore e Miami. A inaugura- aumentando a integração entre pré e intra-
ção da primeira unidade deste tipo no estado -hospitalar (SES/RJ, 2012).
ocorreu em junho de 2013, em um dos hospi- Justifica-se a escolha do estado já que há
tais de urgência pertencentes à SES/RJ. exigências estruturais para implementação

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 243-254, JAN-MAR 2017


246 SILVEIRA, E. S.; O’DWYER, G.

dessas unidades como existência de hos- do paciente, conformação das equipes e


pitais de grande porte e disponibilidade de padrão de atendimento inicial.
leitos de Centros de Terapia Intensiva (CTI) Os dados foram obtidos através de acesso
(PESSÔA ET AL., 2016). ao sistema informatizado de registro de aten-
Diante deste projeto inovador da SES-RJ dimentos e de outros registros da própria
e de toda o impacto que o atendimento unidade. Esses dados foram tabulados trans-
aos pacientes vítimas de causas externas formando-se em indicadores assistenciais
causam para o sistema de saúde, esta pes- sofrendo posterior análise. Foram analisados
quisa teve por objetivo analisar os resulta- indicadores como número de atendimentos,
dos do primeiro CT implantado pela SES/ faixa etária e origem dos pacientes, causa
RJ em relação ao perfil de atendimento, dos atendimentos, tempo média de perma-
desempenho e forma de funcionamento nência entre outros. Os resultados foram
preconizado tanto pela SES/RJ quanto pela confrontados com as metas estabelecidas
literatura para este tipo de unidade. À época pela SES/RJ e com os dados epidemiológi-
da pesquisa a SES/RJ já havia inaugurado cos que surgiram a partir do levantamento
outro CT e havia projeto para inaugura- bibliográfico sobre o tema. A presente pes-
ção de outras unidades desse tipo, porém, quisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em
optou-se pelo primeiro CT levando-se em Pesquisa (CEP) Ensp/Fiocruz, sob o número
consideração o seu tempo de implantação. CAAE (Certificado de Apresentação para
Apreciação Ética) 40152514.7.0000.5240.

Metodologia
Resultados e discussão
Trata-se de um estudo de caso realizado a
partir de observação sistemática e coleta de Localizado na região metropolitana do Rio
dados do CT de um Hospital Estadual do de Janeiro, o CT possui área construída de
Rio de Janeiro, além de extensa análise do- 932,36 m2 composto pelas seguintes estru-
cumental da SES incluindo portarias e rela- turas: sala de estabilização de trauma com
tórios de gestão (YIN, 2010). Foram inclusos na 04 leitos; sala de imagens com tomografia
pesquisa todos os atendimentos por causas computadorizada; centro cirúrgico com três
externas ocorridos no CT no período de salas de operação; recuperação pós-anesté-
junho de 2013 a setembro de 2014, totalizan- sica com 05 leitos; farmácia satélite e ainda
do 1.942 atendimentos. vestiários masculino e feminino; área admi-
A fase de observação ocorreu em dias nistrativa, guarda de equipamentos e estar
e horários diversos durante os meses de das equipes; recepção e espaço de espera das
março, abril e maio de 2015 onde foram famílias (SES/RJ, 2012).
acompanhados os procedimentos e o Sua conformação permite às equipes
padrão de funcionamento do CT. Essa fase prestarem cuidados imediatos de alta com-
objetivou verificar se os procedimentos plexidade a pacientes vítimas de traumas
estabelecidos pela SES/RJ para o funcio- graves, dentre eles estabilização, exames
namento do CT estavam sendo seguidos, laboratoriais e de imagem e cirurgias, sem
bem como, fazer uma correlação entre os que necessariamente o paciente precise ser
padrões internacionais estabelecidos para deslocado para outras áreas do hospital, agi-
o funcionamento deste tipo de unidade e lizando o atendimento dentro da chamada
o padrão adotado no CT. Foram observa- ‘hora de ouro’, conforme preconizado pela
dos os critérios de elegibilidade, contato literatura (AMERICAN COLLEGE OF SURGEONS, 2012).
prévio das equipes para encaminhamento A inauguração do CT não determinou o

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Centro de Trauma: modelo alternativo de atendimento às causas externas no estado do Rio de Janeiro 247

fechamento do setor de emergência que já com o CT, passando o caso. Houve a ocorrên-
havia no hospital. Desta forma, a unidade cia de chegada de pacientes sem aviso prévio,
passou a contar com duas portas de entrada, mas como uma exceção à regra. Todos os
uma para atendimento às urgências e emer- casos de chegada sem aviso prévio ocorre-
gências clínicas e traumáticas de menor ram no atendimento de pacientes levados
complexidade e o CT destinado exclusi- por equipes de atendimento pré-hospitalar.
vamente aos casos de trauma grave com Em relação ao atendimento, o CT trabalha
acesso somente a pacientes trazidos pelo com o conceito de time trauma, com atuação
serviço pré-hospitalar móvel ou transfe- simultânea de vários profissionais no aten-
ridos de outras unidades hospitalares de dimento à vítima, respeitando suas respec-
menor complexidade. tivas posições e funções. A função de cada
O CT não se configura em uma unidade membro do time, bem como seu posiciona-
de internação, desta forma, os pacientes mento durante o atendimento, encontra-se
após o atendimento inicial, com as medidas descrita no ‘Manual de implantação do
necessárias que cada caso requeira, são Centro de Trauma’ (SES/RJ, 2012).
transferidos internamente para os leitos de Segundo o manual, o time de atendi-
retaguarda de terapia intensiva ou enferma- mento deve ser composto pelos seguintes
ria, conforme necessidade. profissionais: 01 Médico Cirurgião líder, 01
Com o intuito de qualificar a seleção de Enfermeiro líder, 01 Médico Anestesista,
pacientes vítimas de causas externas com 02 Médicos Cirurgiões, 01 Enfermeiro e 01
trauma grave, a SES/RJ adotou os chama- Técnico de Enfermagem
dos ‘Critérios de Elegibilidade’ que são O atendimento ao paciente se inicia com
atualmente muito próximos aos critérios o posicionamento do mesmo em um dos
estabelecidos pelo Colégio Americano de boxes da sala de estabilização. A equipe
Cirurgiões (AMERICAN COLLEGE OF SURGEONS, 2006). deve se posicionar em torno do paciente
Esses critérios servem como parâmetro para enquanto os líderes, cirurgião e enfermeiro,
os serviços pré-hospitalares e para as unida- supervisionam e orientam a equipe. A lide-
des hospitalares de menor porte seleciona- rança deve ser exercida pelos profissionais
rem pacientes. mais experientes do time. Uma linha preta
Apesar dos critérios preconizados pela no chão da sala de estabilização separa o
SES/RJ para atendimento no CT foi cons- espaço físico entre os boxes de atendimento
tatado que ocorreram atendimentos a pa- e a área comum. Somente os profissionais
cientes que não cumpriam esses critérios, do time de atendimento podem ultrapas-
em geral, pacientes acometidos por traumas sar a linha preta para dentro do box onde
leves. Como esses atendimentos eram uma encontra-se o paciente.
exceção à regra, ocorrendo de maneira even- Durante o período de observação, foi ve-
tual, não foram totalizados nesse estudo. rificada a atuação do time de trauma con-
Outro componente importante do CT é o forme preconizado, independentemente
contato prévio. Nesse contato são passadas do tipo de lesão apresentada pelo paciente
informações como tipo do evento, estado ou da origem, se pré-hospitalar ou de outra
da vítima, principais lesões e previsão de unidade de saúde. Na ocorrência de atendi-
chegada. Essas informações prévias permi- mento simultâneo de mais de uma vítima, os
tem à equipe se preparar para o atendimen- líderes precisaram abandonar essa função
to, como acontece nos CT norte-americanos. e atuar no atendimento direto à vítima.
Durante a pesquisa observou-se que as Contudo, foi esclarecido que essa é uma
equipes do pré-hospitalar ou de outras uni- conduta regular e prevista para essas situ-
dades de saúde faziam contato diretamente ações. Após o atendimento inicial, sempre

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248 SILVEIRA, E. S.; O’DWYER, G.

realizado pelo time de trauma, outros espe- dos pacientes atendidos no CT, 67,4%, eram
cialistas necessários para o atendimento são oriundos de São Gonçalo, município com
acionados via rádio, entre eles, ortopedista, aproximadamente metade da população da
neurocirurgião, cirurgião vascular, cirurgião região metropolitana II e onde está localiza-
bucomaxilofacial, entre outro. do o CT. Apenas 7% dos atendimentos eram
Apesar de algumas divergências ocorridas de pacientes fora da área de abrangência. Do
entre o padrão de funcionamento e procedi- total de atendimentos, 79,6%, foram origi-
mentos preconizados para o CT terem sido nários do ambiente pré-hospitalar, destes,
observadas durante a pesquisa, essas sempre 54,2% foram trazidos por ambulâncias do
apareceram como eventuais. Mesmo em Corpo de Bombeiros e os demais por outras
unidades de alto padrão, como é o caso, há agentes como Serviço de Atendimento
necessidade constante de acompanhamento Móvel de Urgência (Samu), concessionárias,
dos processos de trabalho. helicóptero de resgate, entre outros. O res-
No que diz respeito aos indicadores assis- tante, 20,4%, foi transferido de outras unida-
tenciais, o CT, segundo definido pela SES/ des hospitalares.
RJ, em relação a sua abrangência, destina-se O planejamento da SES/RJ para o CT
a atender primariamente à região conhecida previu uma média mensal de atendimentos
como Metropolitana II, composta por sete de 150 pacientes por mês. Como a unidade
municípios somando cerca de dois milhões de recebe somente pacientes do ambiente pré-
habitantes (IBGE, 2015). Todavia, atende também -hospitalar ou de outros hospitais que se
pacientes oriundos de outras unidades hos- enquadrem nos critérios de elegibilidade,
pitalares e pacientes trazidos por helicópte- a interação entre esses componentes deve
ro de qualquer região do estado. Conforme ser regular, a fim de atender à demanda pla-
descrito em norma, todo CT como elemento nejada. O CT necessita que o paciente seja
integrante da rede de urgência e emergência corretamente selecionado e rapidamente
deve ter sua área de atuação definida pelas removido para a unidade, tendo em vista a
características sócio-demográficas de cada especificidade do paciente e gravidade das
região e servir de referência para os serviços lesões. O gráfico 1, a seguir, demonstra a evo-
pré-hospitalar móvel e unidade hospitalares lução do número de atendimentos do CT ao
de menor complexidade (BRASIL, 2013A). longo dos anos de 2013 e 2014.
A pesquisa mostrou que a ampla maioria

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Centro de Trauma: modelo alternativo de atendimento às causas externas no estado do Rio de Janeiro 249

Gráfico 1. Evolução da quantidade de atendimentos do Centro de Trauma. Período: jul./2013 a set./2014

250

208 214
200 200
172
Número de Atendimentos

171
164
150
133
129
103 103
100
94 89
90

50 56

16
0
jul-13 ago-13 set-13 out-13 nov-13 dez-13 jan-14 fev-14 mar-14 abr-14 mai-14 jun-14 jul-14 ago-14 set-14
Período em meses
Atendimentos Meta SES

Pode-se constatar que a partir do quarto que acabaram, após análise da evolução dos
mês do seu funcionamento, o CT não mais atendimentos, sendo modificados, visando
acompanhou a curva de crescimento dos não somente aumentar o número de atendi-
atendimentos preconizado pela SES/RJ, es- mentos, visto que a capacidade instalada da
tacionando seu número próximo a 100 aten- unidade permitia tal aumento, mas também
dimentos/mês. Somente a partir do nono mês aproximar-se mais de critérios utilizados
de funcionamento a unidade ultrapassou a internacionalmente para esse tipo de aten-
meta estabelecida. Inicialmente o CT utiliza- dimento, em especial o preconizado pelo
va critérios de elegibilidade mais restritivos Colégio Americano de Cirurgiões.

Quadro 1. Critérios de elegibilidade

Critérios de elegibilidade até jan./2014 Critérios de elegibilidade a partir de fev./2014

Escala de Coma de Glasgow < 09 Escala de Coma de Glasgow < 14


Frequência Respiratória < 10 ou > 30 incursões por mi- Frequência Respiratória < 10 ou > 30 incursões por mi-
nuto nos pacientes adultos e < 10 incursões por minuto nuto nos pacientes adultos e < 10 incursões por minuto
nos pacientes pediátricos; ou uso de qualquer dispositivo nos pacientes pediátricos; ou uso de qualquer dispositivo
auxiliar para manutenção de vias aéreas auxiliar para manutenção de vias aéreas
Pressão Arterial Sistólica < 90 mmHg em adultos ou <70 Pressão Arterial Sistólica < 90 mmHg em adultos ou <70
mmHg em crianças mmHg em crianças
Ferida penetrante de crânio, pescoço, tórax ou abdome Ferida penetrante de crânio, pescoço, tórax ou abdome
Instabilidade pélvica Instabilidade pélvica
Tórax instável
Duas ou mais fraturas de ossos longos
Esmagamento ou desenluvamento de extremidades
Amputação de membros
Trauma raquimedular

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250 SILVEIRA, E. S.; O’DWYER, G.

Houve também um esforço da SES/RJ em Em relação à causa, a pesquisa evidenciou


divulgar o serviço na região entre os gestores que os atendimentos foram exclusivos de
da rede local e também de outras regiões, o pacientes vítimas de causas externas, con-
que foi comprovado durante a pesquisa aces- forme preconizado pela SES/RJ e literatura
sando atas de reuniões. e demonstrado no gráfico 2 a seguir.

Gráfico 2. Distribuição percentual dos atendimentos do Centro de Trauma segundo causa. Período: jul./2013 a set./2014.
N=1.268 atendimentos

Acidente Motociclístico 26,97%

Perfuração por Arma de Fogo 19,79%


Discriminação das causas externas

Atropelamento 15,22%

Acidente Automobilístico 12,78%

Queda de Nível Superior 11,59%

Outros 5,60%

Agressão 2,92%

Queda da própria altura 2,44%

Perfuração por Arma Branca 1,66%

Queimadura 1,03%

Da análise evidencia-se a grande prevalên- que demonstra o perfil altamente violento da


cia de acidentes de trânsito, onde somados os região. O Brasil, juntamente com o México,
atendimentos por acidentes motociclísticos, são uns dos poucos países das américas onde
atropelamentos e acidentes automobilísticos os homicídios são a principal causa mortis
obtém-se o percentual de 54,97% dos atendi- entre as causas externas (BIROLINI, 2001). Como
mentos. Nestes, os atendimentos de pacien- no CT há alta prevalência de atendimentos
tes vítimas de acidentes com motocicletas por acidentes de trânsito, pode-se concluir
representam quase a metade dos atendimen- que a maioria dos óbitos por homicídios
tos. Esses dados são compatíveis com a lite- acaba ocorrendo ainda no ambiente pré-hos-
ratura onde os acidentes de trânsito figuram pitalar, ou seja, boa parte dessas vítimas não
como a principal causa de morbidade entre tem sequer a chance de serem salvas após a
as causas externas, tendo os acidentes com ocorrência da agressão.
motocicletas como protagonistas. Já as quedas, principalmente quedas da
Chama a atenção também a violên- própria altura, não apareceram com valores
cia interpessoal, aqui representada pelas significativos entre os atendimentos do CT,
agressões, perfurações por arma branca e apesar de serem a principal causa de inter-
perfurações por arma de fogo, esta última nação por causas externas nas unidades do
figurando como o principal meio da violên- Sistema Único de Saúde (SUS), sobretu-
cia interpessoal. Essas causas juntas repre- do de pacientes idosos. Talvez porque as
sentam 24,37% de todos os atendimentos, o lesões provocadas pela maioria das quedas

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Centro de Trauma: modelo alternativo de atendimento às causas externas no estado do Rio de Janeiro 251

da própria altura, aqui com destaque para O tempo médio de internação dos pa-
as fraturas unilaterais de fêmur, não figurem cientes que acessaram o hospital através
entre os critérios de elegibilidade, diferente do CT ficou em 11,4 dias. Levando-se em
do preconizado pela Colégio Americano de consideração que no mesmo período o
Cirurgiões que leva em consideração os extre- tempo médio de internação dos pacientes
mos de idade, ou seja, crianças e idosos, como vítimas de causas externas nas unidades
critério de eleição ao atendimento em um CT. do SUS na região metropolitana II variou
Em relação ao perfil dos pacientes, os de 09 a 12 dias, segundo o Sistema de
dados apresentados assemelham-se aos Informações Hospitalares do SUS (SIH/
dados epidemiológicos sobre causas exter- SUS), pode-se afirmar que a unidade apre-
nas, ou seja, preferencialmente os pacientes sentou resultados satisfatórios e coerentes
atendidos nesse tipo de serviço são adultos com o restante da rede, mesmo atendendo
jovens do sexo masculino. No período anali- um perfil de pacientes de alta complexi-
sado, 82% dos pacientes atendidos eram do dade. O gráfico 3 demonstra a curva de
sexo masculino, com 59,7% na faixa etária de tempo médio de internação dos pacientes
15 a 39 anos de idade. atendidos no CT.

Gráfico 3. Tempo médio de permanência dos pacientes atendidos no Centro de Trauma. Período: jul./2013 a set./2014

20

18

16

14
Tempo em dias

12
Média=11,4
10

0
jul-13 ago-13 set-13 out-13 nov-13 dez-13 jan-14 fev-14 mar-14 abr-14 mai-14 jun-14 jul-14 ago-14 set-14
Período em meses

Conforme visto no gráfico 3, o tempo significativo nos atendimentos do CT. O com-


médio de permanência do paciente atendido portamento decrescente do início da curva
no CT que em julho de 2013 estava próximo pode ser explicado pelo aumento do número
de 18 dias, alcançou suas menores médias em de atendimentos em função da mudança dos
março e setembro de 2014 com aproximada- critérios de elegibilidade que possibilitaram
mente 08 dias de permanência, justamente a admissão de pacientes menos graves que os
nos meses em que houve um crescimento atendidos nos primeiros meses.

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252 SILVEIRA, E. S.; O’DWYER, G.

Não foi objetivo desta pesquisa analisar das metas e rotinas estabelecidas pela SES/
indicadores de óbito do CT, por acreditar-se RJ e vem desempenhando sua função prin-
que tal análise necessitaria considerar outros cipal que é atuar como uma unidade desti-
fatores, como as características do serviço e nada a atender usuários vítimas de causas
dos pacientes atendidos, sem os quais poderia externas com risco potencial ou iminente de
haver confundimento ao realizar compara- morte ou lesão permanente. Isso fica eviden-
ções. Pode-se citar alguns índices prediti- te ao se analisar os indicadores assistenciais
vos de mortalidade por trauma, como por da unidade, dentre eles o tempo médio de
exemplo ISS (Injury Severity Score) ou RTS permanência e o perfil dos pacientes atendi-
(Revised Trauma Score). De qualquer forma, dos no serviço, tanto em relação à faixa etária
a mortalidade com menos de 24 h variou quanto ao tipo de lesões prevalentes. Esses
entre 4 e 4,5% no período analisado, o que, a resultados demonstram a pertinência do
princípio, representa um resultado favorável. projeto desenvolvido pela SES/RJ. Quando
Houve coerência técnica na definição es- avaliado sob a ótica da literatura internacio-
tadual de criar uma CT em uma região que nal o projeto também se mostrou adequado.
estruturalmente comportava esse serviço Com pouco mais de dois anos de funcio-
(PESSÔA ET AL., 2016). Destaca-se a importância namento do primeiro CT do estado e com
da negociação ocorrida entre os diversos mais de três mil pacientes atendidos, foi
atores envolvidos para configurar o papel do oportuna a publicação pela SES/RJ, de uma
CT na rede local. O componente promoção norma regulamentando os critérios de elegi-
da saúde da política de urgência, que trata do bilidade aos CT, bem como os procedimen-
trânsito e uso de cinto de segurança, lei seca, tos de acesso e funcionamento desse tipo de
ainda não modificou o quadro de acidentes unidade. Essa medida serviria para consoli-
de trânsito no local estudado. dar esse modelo no estado e representaria a
materialização legal desse método de atendi-
mento aos pacientes de causas externas.
Conclusões Cabe ressaltar que somente CT isolados
possuem pouca capacidade de alterar signifi-
O modelo de atenção às vítimas de causas cativamente a morbimortalidade por causas
externas nas unidades da SES/RJ constitui-se externas, já que o sucesso desse tipo de unidade
hoje em modelo misto, onde coexistem duas está diretamente relacionado à integração com
formas distintas de atenção ao paciente os demais serviços de atendimento às urgên-
vítima de trauma. Um modelo atualmente cias, sobretudo com um sistema pré-hospitalar
predominante, amplamente utilizado no País, móvel bem estruturado. Para reprodução desse
baseado em hospitais gerais onde as emergên- modelo em outras localidades há que se fazer
cias constituem a porta de entrada para todo um estudo prévio que leve em consideração a
tipo de urgência e um outro modelo destina- característica estrutural da unidade, perfil epi-
do somente ao atendimento de uma parcela demiológico de cada região e custo de implan-
específica da população, os pacientes vítimas tação e manutenção do projeto.
de trauma grave. Não foi objetivo deste tra- Em relação aos critérios de elegibilidade
balho fazer uma comparação entre esses dois ao CT, levando-se em consideração a alta
modelos, contudo, pode-se afirmar que o mortalidade por causas externas apresenta-
modelo de CT traz à tona uma nova forma de da na faixa etária acima dos 60 anos de idade,
atenção ao trauma no estado, apresentando sugere-se que os critérios sejam reavalia-
bons resultados. dos e incluam os pacientes com 60 anos de
Os achados da pesquisa permitiram con- idade, ou mais, vítimas de causas externas,
cluir que o CT vem cumprindo a maior parte o que poderia contribuir para a redução da

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 243-254, JAN-MAR 2017


Centro de Trauma: modelo alternativo de atendimento às causas externas no estado do Rio de Janeiro 253

morbimortalidade nesta faixa, conforme já intra-hospitalar, prevenção, assistência e re-


ocorre em centros norte-americanos. abilitação, possibilitando o aprimoramento
Por fim, espera-se que a experiência de todos os entes envolvidos nesse proces-
acumulada pelo CT possa contribuir para so, para que no futuro próximo haja melhor
a construção de uma política estadual de controle da epidemia produzida pela causa
atenção às causas externas que integre pré e externa que atinge a sociedade. s

Referências

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ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE 255

Políticas de saúde mental, álcool e outras


drogas e de criança e adolescente no
Legislativo
Mental health, alcohol and other drugs, and child and adolescent
policies in the Legislative

Daniel Adolpho Daltin Assis1, Alyne Alvarez Silva2, Ticiana Torres3

RESUMO Após mapeamento dos Projetos de Lei (PL) em trâmite, entre 2003 e 2016, no
Congresso Nacional, apresentam-se resultados preliminares oriundos de análise dos PL rela-
cionados com os eixos Álcool e outras Drogas e Infância e Juventude, temas que predominam
nas proposituras no campo da saúde mental. No período analisado, observou-se a hegemonia
de projetos conservadores em ambos os eixos, pois se distanciam do Sistema Único de Saúde
constitucional, em sua maioria propostos por partidos de direita. Do mesmo modo, no âmbito
do poder executivo, após o afastamento da Presidenta da República, a migração de parlamen-
tares para assumirem pastas ministeriais pode gerar impactos negativos na Política Nacional
de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas.

PALAVRAS-CHAVE Poder legislativo. Saúde mental. Criança. Adolescente. Usuários de drogas.

ABSTRACT After mapping the Bills (PL) in progress between 2003 and 2016 at National Congress,
we present preliminary results from the analysis of PL relatedto the axes Alcohol and other Drugs
and Childhood and Youth, themes that predominate in the propositions in the mental health field.
In the analyzed period, we observed the hegemony of conservative bills, in both axes, for they
move away from the constitutional Unified Health System (SUS), mostly proposed by right-wing
parties. Similarly, in the context of the Executive power, after the impeachment of the President
of the Republic, the migration of parliamentarians to take ministerial portfolios can generate
1 Distrito
Sanitário Especial negative impacts on the National Policy of Mental Health, Alcohol and other Drugs.
Indígena Potiguara,
Secretaria Especial de
Saúde Indígena – João KEYWORDS Legislative. Mental health. Child. Adolescent. Drug users.
Pessoa (PB). Ministério
da Saúde – Brasília (DF),
Brasil.
danieladolpho@gmail.com

2 Universidade Federal de

Campina Grande (UFCG)


– Campina Grande (PB),
Brasil.
alvarezalyne@gmail.com

3 Universidade de Brasília
(UnB) – Brasília (DF),
Brasil.
torres.tici@gmail.com

DOI: 10.1590/0103-1104201711221 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 255-272, JAN-MAR 2017
256 ASSIS, D. A. D.; SILVA, A. A.; TORRES, T.

Introdução O tema das drogas, inclusive no âmbito


da infância e adolescência, sedia o convívio
No âmbito dos direitos humanos, o Brasil entre conquistas e retrocessos constitu-
adota, desde os anos 1980, paradigmas que cionais que vão desde o financiamento de
emancipam várias populações do locus de estratégias privadas de atenção (vertente
objeto de intervenção ao de sujeito de direi- do cuidado) até a ampliação do controle
tos, entre elas, as crianças e adolescentes e as das liberdades (vertente da responsabili-
pessoas que fazem uso de drogas. O primei- zação). É o que se pretende apresentar no
ro público é elevado ao grau de pessoa com presente artigo a partir de estudos avaliati-
discernimento e, por isso, com direitos ga- vos de políticas públicas sociais e criminais
rantidos no contorno denominado ‘proteção e de resultados preliminares da pesqui-
integral’, que supera a doutrina da situação sa Análise de Políticas de Saúde no Brasil
irregular, pela qual a essa população reserva- (2013 – 2017), no eixo Acompanhamento
vam-se apenas deveres disciplinares e corre- de Iniciativas do Poder Legislativo Federal
cionais, em contexto de direitos já violados. em Saúde (OBSERVATÓRIO DE ANÁLISE POLÍTICA EM
Já o segundo público entra em novo circuito SAÚDE, 2016). Dada a relevância histórica dos
de cuidados na medida em que, de um lado, é estudos e determinantes sociais que devem
contemplado pela Lei nº 10.216/01, apelidada fundamentar a construção legislativa das
de ‘lei da Reforma Psiquiátrica’, que dispõe políticas de saúde (BAPTISTA, 2003; FONSECA, 2008),
sobre os direitos das pessoas com transtor- na linha de pesquisa A Saúde Mental na Ação
nos mentais (BRASIL, 2001A); de outro, pela Lei do Legislativo Nacional, do referido eixo,
nº 11.343/06, conhecida como ‘nova lei de objetivou-se investigar a atuação do poder
drogas’ (BRASIL, 2006A), cuja Política Nacional legislativo nas ações de promoção de saúde
de Drogas, em parte homônima à de Saúde mental, de 2003 a 2016.
Mental, despenaliza o crime de uso de Como resultado preliminar, encontraram-se
substâncias psicotrópicas (ou, conforme se 223 Projetos de Lei (PL) propostos, dos quais 1391
alterna neste artigo, drogas), abolindo a pena representam os campos de álcool e outras
privativa de liberdade. A evolução histórica drogas (106) e de infância e adolescência
das políticas de saúde mental e dos direitos (35), números que demonstram a crescente
de crianças e adolescentes apresenta, entre importância do tema na agenda parlamentar.
outras evidências, a superação do paradig- Desse modo, o elevado número de PL nos
ma da tutela de loucos, usuários de drogas, dois campos citados justifica a escolha dos
crianças e adolescentes em direção ao re- eixos temáticos sobre os quais sedebruçam
conhecimento desses públicos como sujei- ao longo deste artigo.
tos de direitos. Um dos pontos de clivagem
entre as ações destinadas a esses públicos, a
Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e Material e métodos
outras Drogas reúne um conjunto de progra-
mas e ações que visam O levantamento de dados deu-se por meio do
uso dos buscadores localizados na primeira
reorientar o modelo de atenção psicossocial página de cada portal dos sites da Câmara
no sentido da lógica da produção de saúde e dos Deputados e do Senado Federal. O ma-
do reconhecimento da autonomia dos usuá- peamento fora iniciado pela inserção de
1 Adverte-se que a soma

não resulta no total rios dos serviços, no âmbito territorial-comu- expressões-chave nos campos de pesquisa
numérico apresentado em nitário, preferencialmente, em meio extra- dos documentos. Foram as seguintes ex-
razão de dois PL terem sido
identificados em ambos -hospitalar. (ASSIS; SILVA, 2016, P. 170). pressões utilizadas para garantir um amplo
os eixos. espectro de procura: ‘usuário de droga’,

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Políticas de saúde mental, álcool e outras drogas e de criança e adolescente no Legislativo 257

‘usuária de droga’, ‘deficiente mental’, ‘abuso ‘esquerda’ e ‘centro-esquerda’, PDT e PSB si-
de droga’, ‘saúde mental’, ‘droga’, ‘substân- tuam-se na centro-esquerda. Qualificaram-
cia psicoativa’, ‘substância ilícita’, ‘álcool’, se como progressistas os projetos alinhados
‘cannabis’, ‘crack’, ‘viciad’, ‘dependência aos marcos regulatórios de proteção dos di-
química’, ‘drogadição’, ‘transtorno mental’, reitos humanos, sobretudo da luta antimani-
‘internação’, ‘internação psiquiátrica’, ‘inter- comial, da Reforma Psiquiátrica, do Sistema
nação compulsória’, ‘lei 10.216’, ‘psiquiatri’, Único de Saúde (SUS), da política de drogas
‘ECA’; ‘infância e juventude’; ‘saúde mental’; e de proteção integral de crianças e adoles-
‘adolescência’. centes, sendo aqueles fundamentados nas
Após o mapeamento, o processo de análise Leis nº 10.216/2001 (BRASIL, 2001B), 8.080/1990
exigiu um exercício de agrupamento dos PL (BRASIL, 1990B) e 11.343/06 (BRASIL, 2006B); já este
de cada eixo em torno dos temas a que se último, na Lei nº 8.069/1990 (BRASIL, 1990A).
referiam, resultando na sua categorização,
conforme os objetivos dispostos em suas
ementas, o nível de reiteração de seus motes Resultados e discussão
e na quantificação deles. Agrupados por ca-
tegoria, problematizaram-seseus conteúdos,
em termos de suas proposições conservado- Eixo Álcool e outras Drogas
ras ou progressistas, e seus impactos sobre as
populações relacionadas com cada eixo, bem Após a identificação dos PL a partir do uso das
como analisaram-se brevemente os perío- expressões-chave citadas, verificou-se o que há
dos de maior produção legislativa. Cerca de em comum em seu conteúdo (especialmente
82% dos PL, ao final da análise, mostram-se a partir da ementa), posteriormente classifi-
conservadores seja porque alguns reiteram cados em 8 categorias temáticas, dentro das
a previsão legal atual, outros reclamam ação quais se distribuíram os 104 PL encontrados
meramente punitiva, seja porque há também da seguinte maneira: ‘tratamento’(26), ‘pre-
aqueles se propõem a reduzir o espectro de venção’ (23), ‘punição’ (23), ‘reabilitação’
direitos humanos do próprio público a que (6), ‘detecção no trânsito’ (6), ‘descrimina-
se destina sua norma. lização’ (2), ‘despenalização’ (1) e outros em
Analisaram-se, ainda, as iniciativas a partir ‘geral’(17), totalizando uma média de 7,5 PL/
das direções partidárias e o lugar dos parti- ano. Vale explicar que na categoria ‘geral’
dos na correlação de forças institucionais. encontram-se todos os PL que se incluemem
Uma via eleita de análise foi a quantificação mais de uma adotada. As oito categorias
2 Na ordem: Partido dos
de PL propostos por partidos de esquerda, foram construídas conforme o tema/obje-
Trabalhadores, Partido
centro e direita, e, a seguir, a relação do re- tivo predominantemente expresso no texto Socialista Brasileiro,
sultado dessa divisão com a classificação de proposto. Com exceção da categoria ‘detec- Partido Democrático
Trabalhista, Partido
textos progressistas e conservadores. Para ção no trânsito’ – a ser comentada adiante –, Comunista do Brasil,
a primeira separação, levou-se em conta a elas foram classificadas, inicialmente, em dois Partido Socialismo e
Liberdade, Partido do
classificação realizada pelo Departamento grandes blocos que contemplariam os proje- Movimento Democrático
Intersindical de Assessoria Parlamentar tos de lei: o bloco de temas tipicamente loca- Brasileiro, Partido da
Social Democracia
(Diap) em dezembro de 2014, de acordo lizados no campo da saúde pública e o bloco Brasileira, Partido Popular
com o qual, são partidos de esquerda PT, cujas expressões orientam as políticas de Socialista, Partido Verde,
Solidariedade, Partido
PSB, PDT, PCdoB e PSOL; de centro, PMDB, responsabilização socioeducativa e criminal Republicano Brasileiro,
PSDB, PPS, PV e SD; de direita, PRB, PMN, nas políticas de álcool e outras drogas. Sendo Partido Renovador
Trabalhista Brasileiro,
PRP, PRTB, PSDC, PSL e PTC2. Atualizada assim, ‘tratamento’, ‘prevenção’ e ‘reabilita- Partido Social Democrata
por pesquisa d’O Globo (VASCOCELOS, 2016), em ção’ conformam ações pilares que coordenam Cristão, Partido Social
Liberal, Partido Trabalhista
março de 2016, que fragmenta a esquerda em o processo saúde-doença-cuidado e intitulam Cristão.

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258 ASSIS, D. A. D.; SILVA, A. A.; TORRES, T.

programas estratégicos presentes nos três princípio, a mais óbvia, que diz respeito ao
níveis de complexidade da atenção no SUS. fato de os anos de 2003 e 2011 serem, cada
As categorias ‘punição’, ‘descriminaliza- qual, o primeiro ano de mandato legislati-
ção’ e ‘despenalização’, por sua vez, são ex- vo, o que permite supor que a atuação pro-
pressões comumente empregadas nas ações positiva do parlamentar, imediatamente à
de responsabilização dos sujeitos que fazem sua posse, vise responderao público que o
uso de álcool e outras drogas. Vale dizer que elegeu. Quanto aos outros picos de produção
a primeira expressão veicula um pensamento legislativa no campo, é no contexto de produ-
mais conservador na resposta estatal diante ção da demanda de enfrentamento ao crack,
do usuário das substâncias, sediando para- que, nos anos de 2009 (Portaria GM/MS
digma proibicionista e tutelar que, por si, é nº 1.190/09, instituiu o Plano Emergencial
polarizado pelas ações de segurança pública, de Ampliação do Acesso ao Tratamento e
ao contrário das duas outras, que indicam Prevenção em Álcool e outras Drogas no
prevalência da abordagem do usuário no Sistema Único de Saúde, primeiro programa
campo da saúde pública. A categoria ‘des- da ‘era’ de enfrentamento ao crack) (BRASIL,
criminalização’ foi forjada no sentido de 2009A) e 2012 (ano de vigência real da Portaria
abarcar os raros e inéditos textos que, na GM/MS nº 3.088, de 23/12/2011, que institui
contramão ideológica do maior conjunto de a Rede de Atenção Psicossocial (Raps), por-
PL encontrados nesta pesquisa, propõem taria de maior lastro para a Política Nacional
retirar da esfera penal a resposta estatal ao de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas)
uso de drogas. Também contra-hegemônica, (BRASIL, 2011A), o poder legislativo também pro-
a categoria ‘despenalização’ merece desta- tagoniza na disputa pelas políticas atuais de
que porque, ainda que não exclua o uso do atenção às pessoas com necessidades de-
âmbito penal, dá visibilidade às respostas es- correntes do uso de álcool e outras drogas.
tatais que não atingem a liberdade do sujeito. Aproximando-se ainda mais a lupa sobre
Ao contrário das demais categorias nomina- esse período, verifica-se que a janela tempo-
das, cujos PL alvejam, exclusivamente, o uso ral entre 2009 e 2012 fora ocupada por quase
de drogas, criou-se a categoria ‘detecção no metade (51) dos PL propostos durante os 14
trânsito’ em virtude da incidência estatal anos em análise3.
de maior rigor punitivo sobre a associação A despeito de a propositura normativa ser
de dois comportamentos: o uso de droga e uma das duas atribuições parlamentares, o
a condução de veículos automotores, sendo, fato de haver picos de produção legislativa
3 Inegavelmente, trata- nos próprios documentos, secundário o não significa, automaticamente, tratar-se
se de um intervalo de debate sobre a licitude da substância. de inovações alinhadas à Política Nacional
anos de contrastante
investimento orçamentário Nesse sentido, identificou-se, por ano, a de Saúde Mental e aos paradigmas de direi-
na Política de Saúde seguinte quantidade de PL (entre parênte- tos humanos. Se, por um lado, a categoria
Mental, com especial
escopo no cuidado às ses): 2012 (17), 2009 (16), 2011 e 2003 (13), ‘prevenção’apresenta PL de fortalecimento
pessoas com necessidades 2016 (11), 2013 (7), 2007 (6), 2010 (5), 2004 das estratégias de redução de danos decor-
em saúde pelo uso de
drogas. Exemplo disso é a (4), 2015, 2006 e 2005 (3), 2014 (2), 2008 rentes do uso de drogas (ex. PL 6.520/06 e
aceleração do investimento (1). Logo, os anos de 2003, 2009, 2011, 2012 e 1.692/07) e incumbência às empresas de
em Centros de Atenção
Psicossocial (Caps); 2016 superam a média anual, dos quais 2012, álcool e cigarros inscreverem nas embala-
reajuste do repasse; 2009, 2011 e 2003, nessa ordem, lideram, gens informações sobre formas de cuidados
criação, na portaria Raps,
do Caps III AD (Centro com larga vantagem, o rol de anos com maior com o uso da substância (ex. PL 983/03,
de Atenção Psicossocial incidência. O que há em comum entre esses 871/03, 4.391/04, 1.066/07), projetos de lei
Álcool e Drogas),
destinado ao cuidado anos? Das várias hipóteses possíveis, inclusi- dessa natureza praticamente desaparecem
diuturno às pessoas que ve a que deve levar em conta a constituição a partir de 2010, início do ‘período crack’.
fazem uso de drogas
(BRASIL, 2012B). das bancadas em cada legislatura, lança-se, a Em contrapartida, é nesse momento que

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Políticas de saúde mental, álcool e outras drogas e de criança e adolescente no Legislativo 259

também cresceu o número de propostas, na O caráter progressista se deve à direção


categoria ‘punição’, de agravamento da pena contrária de aumento da superpopulação
do crime de consumo, como o Projeto de Lei carcerária, desmonopolização da produ-
do Senado/PLS 67/09, que propõe “reforçar ção clandestina e o deslocamento, no que
a punição prevista para o consumo pessoal compete à atuação estatal, da questão do
de drogas com a imposição cumulativa da contexto policial para os contextos sanitário
pena de multa” (BRASIL, 2009C); o PLS 227/09, e socioassistencial.
que dispõe sobre a “pena de detenção para O ano de 2016 confirma a tendência,
condutas relacionadas ao consumo pessoal porém contrasta com os demais: é o quinto
de droga” (BRASIL, 2009C), e o PLS 285/12, que ano de maior produção legislativa no tema,
altera a lei para “prever o crime de tráfico considerando que a coleta se deu até o mês
econsumo de drogas ilícitas, e dá outras pro- de agosto; nas categorias, residem priori-
vidências” (BRASIL, 2012F). Da mesma forma, tariamente propostas eminentemente con-
a categoria ‘tratamento’, com constante servadoras ou de retrocesso. Localizados
quantidade de propostas no período dos 14 entre os três anos de maior produção legis-
anos, mas com pico de iniciativas em 2011 lativa nessa temática, osmeses de janeiro a
e 2012, parece também seguir a tendência agosto de 2016 protagonizamna categoria
do ‘período crack’: se, nos primeiros anos, ‘punição’ (6 PL, 40%), seguida pela ‘detecção
eram propostos PL de ampliação da rede no trânsito’(3 PL), cujos textos vão na con-
de ações e serviços privados e públicos (ex. tramão dos direitos de liberdade, autonomia
PL 2.584/03, 1.599/03, 4.938/05, 271/07, e do cuidado em saúde. Naquela categoria,
6.684/09 e 6.772/10), a partir de 2010, encontram-setrês tipos de textos de teor
voltam-se a fortalecer modalidades mais responsabilizatório: os PL 5.742 e 5.649, que
gravosas de intervenção sanitária (prin- estabelecem o aumento da pena para práticas
cipalmente pela imposição da internação de crimes em que se influencie a vítima pela
psiquiátrica compulsória) em nome da pro- oferta de drogas; o PL 5.090, que proíbe a
teção de pessoas que fazem uso de drogas importação de drogas sem autorização legal
(ex. PL 7.663/10, 1.144/11, 2.372/11, 3.167/12, interna, resta isolado entre o primeiro grupo
3.450/12, 6.839/13). Não se pode deixar de e o terceiro, cujos PL 5.877 e 5.712 propõem
mencionar PL progressistas, categorizados o aumento de pena para crimes de homicídio
como ‘descriminalização’e ‘despenalização’, praticado por condutores sob o efeito do uso
como o PL 7270/14, que de drogas. Ainda, pode-se definir como parte
desse grupo o PL 5.298, que, porém, diverge
regula a produção, a industrialização e a co- quanto à natureza punitiva, civil, realiza-
mercialização de cannabis, derivados e pro- da pelaindenização financeira do autor à
dutos de cannabis, dispõe sobre o Sistema vítima, o que pode representar uma maneira
Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas. mais relacional de reparação de dano do que
(BRASIL, 2014A), a mera prisão.
Quanto à categoria ‘detecção’, os PL
e o PL 7187/14, que dispõe sobre 6.069 e 5.431 determinam que o motorista
profissional se submeta a exames toxicoló-
o controle, a plantação, o cultivo, a colheita, gicos periódicos, mas não necessariamente
a produção, a aquisição, o armazenamento, a durante a condução do veículo, o que, por-
comercialização e a distribuição de maconha tanto, não atinge o resultado esperado, de
(‘cannabis sativa’) e seus derivados. (BRASIL, inibiçãoda condução sob efeito psicoativo.
2014B). Ainda na mesma categoria, o PL 4.848 impõe
que a União custeie as despesas relativas aos

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exames, mesmo que no tocante a um ramo 117/2006) (CONANDA, 2006); ‘proteção’ adjetiva
produtivo e laboral específico e privado. medidas propriamente adotadas com fulcro
Na categoria ‘prevenção’ (2 PL), o PL 4.380 no Estatuto da Criança e do Adolescente (art.
proíbe o “transporte de passageiro alcooli- 98) (BRASIL, 1990C), da mesma forma com que
zado em assento adjacente ao do motorista”, ocorre no âmbito da ‘responsabilização socio-
diferentemente do PL 5.020 – único alinha- educativa’ (art. 112); a ‘medicalização da vida’
do aos atuais paradigmas de prevenção em responde à agenda do Fórum Nacional sobre
saúde –, que propõe a inserção do conteúdo Medicalização da Educação e da Sociedade
temático no currículo escolar. Percorre-se, (FÓRUM, 2016) e à literatura a seguir utilizada.
assim, uma esteira histórica de PL marcados Em breve análise do período, o ano em
pelo tema das drogas em cujos textos, de que mais houve proposições foi 2012 (6),
2003 a 2009, prevalecem ações de constru- seguido por 2011 e 2015 (5), 2003 (4), 2009
ção de serviços e orientações de cuidado, e, e 2010 e 2016 (3), 2004 (2), 2006, 2007,
de 2009 a 2016, predominam ações de re- 2008 e 2013 (1). Nota-se, assim, que, tal
pressão e cerceamento de direitos em nome como no eixo anterior, a maioria (74%)
da proteção. Com isso, torna-se evidente dos PL em pauta são propostos na segunda
que, no primeiro período, o objeto dos docu- metade do período de análise, sendo que,
mentos é a política pública; no segundo, é o no ano de 2009, inauguram-se os progra-
próprio sujeito o alvo a ser regulado. mas voltados ao crack e se intensificam
todas as ações de atenção às pessoas com
Eixo Infância e Juventude necessidades decorrentes do uso de álcool
e outras drogas. Do mesmo modo, a pro-
Para a compreensão do cenário legislativo dução de PL, nesse eixo, apresenta pico no
no âmbito da saúde mental de crianças e período 2009 – 2012 (17). De acordo com
adolescentes, durante o levantamento de o que se apresenta a seguir, é exatamente
PL oriundos do mesmo período seleciona- nessa direção que se propõem os PL, com
do (2003 – 2016), organizaram-se os dados significativo teor repressivo e tutelar.
relativosaos conteúdos dos PL, às filia- No contexto dos PL categorizados como
ções partidárias, ano das proposições, em de ‘garantia de direitos’, trata-se de propo-
diálogo com a Política Nacional de Saúde sições mais amenas, com tendência a for-
Mental e Política de Direitos de Criança e talecer as diretrizes de cuidado em saúde
Adolescente. Considerando esses aspectos, mental já existentes, como no PL 4.767/2012,
problematizaram-se possíveis implicações que pretende garantir “assistência integral e
sociais desses PL nas políticas citadas. multiprofissional à criança e ao adolescente
Após o mapeamento, encontraram-se 35 dependentes químicos e/ou com proble-
PL, classificados, de acordo com seu texto, mas decorrentes do uso de drogas” (BRASIL,
nas seguintes categorias (e a quantidade 2012A). Mesma direção verifica-se no PL
entre parênteses): ‘garantia de direitos’ (7), 5.705/2016, que dispõe sobre ações especí-
‘proteção’ (10), ‘responsabilização socioe- ficas com relação ao “cuidado com a saúde
ducativa’ (13) e ‘medicalização da vida’ (5). mental dos menores infratores submetidos
Adotaram-se essas expressões por serem ao regime de internação” (BRASIL, 2016A). Nesse
de comum uso nas bandeiras de defesa caso, a ação proposta já é papel dos pontos
dos direitos de crianças e adolescentes: a de atenção da Raps. O mesmo entendimento
expressão ‘garantia de direitos’ intitula o pode-se extrair da análise do PLS 408/2011,
Sistema de Garantia de Direitos (Resolução que propõe “assistência médica e psico-
do Conselho Nacional dos Direitos da lógica ao adolescente viciado em drogas,
Criança e do Adolescente – Conanda nº bem como promover campanhas sociais de

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Políticas de saúde mental, álcool e outras drogas e de criança e adolescente no Legislativo 261

prevenção e combate ao uso das mesmas” ordem vigente – travestem-se de discursos


(BRASIL, 2011B), algo semelhante ao que propõe protetivos em nome da defesa da sociedade,
o PL 6.874/2010, que estabelece a “criação com alta aprovação de grande parte da po-
de núcleo psicossocial nas escolas públicas pulação, amedrontada diante das diferenças
de ensino fundamental” (BRASIL, 2010A). Outro produzidas como resultado de processos po-
exemplo é o constante do PL 3.121/2012, que, líticos desiguais próprios do neoliberalismo.
embora misture a condição psicossocial de Nesse contexto, narrativas de proteção têm
jovens desempregados e de jovens com neces- embaraçado a compreensão acerca do pro-
sidades decorrentes do uso de drogas, propõe, cessosaúde-doença-cuidado, transformando
para ambos, a criação de “programas de recu- problemas de saúde em questões criminais.
peração [...] mediante capacitação técnica ou Ao adentrar nos conteúdos dos PL cate-
profissional, ou atendimento médico, psicoló- gorizados como de ‘responsabilização so-
gico e social” (BRASIL, 2012B). Nesse caso, também cioeducativa’, percebe-se que a maioria está
se encontram ações específicas voltadas a relacionada, predominantemente, com diag-
ambos os grupos de jovens. nósticos psiquiátricos (ex. PL 1.052/2011, que
Da mesma maneira, as proposições cate- impõe seja o adolescente autor de ato infra-
gorizadas como ‘proteção’ reiteram ações cional “obrigatoriamente submetido a exame
públicas já previstas, como a estabeleci- psiquiátrico e a testes projetivos de persona-
da no PL 1.795/2015, que constitui como lidade” (BRASIL, 2011A), e PL 395/07, que determi-
crime “vender, fornecer, servir, ministrar na a submissão do adolescente autor de ato
ou entregar bebida alcoólica e energética a infracional ao crivo psiquiátrico), tratamen-
criança ou a adolescente” (BRASIL, 2015A), o que to (ex. PL 23/2012, que cria a oitava medida
ocorre também com o PL 4.478/2004, PL socioeducativa, de “atendimento médico-
6.411/2009, PL 3.158/2004 e o Projeto de Lei -psiquiátrico, consistente em tratamento
da Câmara/PLC nº 80/2012, que propõem a ambulatorial ou internação” (BRASIL, 2012D),
mesma medida com relação a produto que a despeito de ser esse um direito à saúde) e
cause dependência. punição (ex. PL 2.116/2015, que também cria
Com outro fim, dois PL tornam tutelares a oitava medida socioeducativa, “medida de
as ações de proteção, com textos que têm segurança”, em “regime especial”, “por prazo
como efeito a violação dos direitos de liber- indeterminado” (BRASIL, 2015B), o que viola os
dade, intimidade e do dever de sigilo do pro- princípios socioeducativos da medida). Por
fissional vinculado à criança ou adolescente. vezes, os conteúdos se misturam, a exemplo
Trata-se do PL 5.933/16, que estabelece a co- do PL 1.325/2015, que determina que laudo
municação compulsória de casos de consumo psiquiátrico prévio ensejará “internação pre-
de drogas por crianças e adolescentes a uni- ventiva” (BRASIL, 2015C), sendo a internação defi-
dades de saúde, e do PL 5.356/16, que, com nitiva sem prazo determinado, como também
mesma resposta, impõe a comunicação aos ocorre com os PL 2.588/2003 e 7.208/2010.
pais e conselho tutelar. É importante pontuar Tais PL, todos propostos após a nova lei de
que discursos de garantia de direitos ou de drogas, têm como público adolescentes que
proteção de determinadas populações em fazem uso abusivo de drogas, de modo que o
situação de vulnerabilidade devem ser ana- princípio da brevidade, previsto para a medida
lisados com cautela com o fim de demarcar socioeducativa de internação, já não responde
a linha tênue que por vezes separa a prote- mais aos anseios de lhes colocar para fora do
ção e o controle/contenção dos corpos para circuito da proteção integral e da garantia de
a gestão biopolítica dos ‘desviantes’ (FOUCAULT, direitos humanos, a partir de um novo estado
2008). Processos de normalização dos consi- de exceção, destinado aos jovens considera-
derados ‘anormais’ – porque questionam a dos ‘perigosos’pelo aparato médico-jurídico.

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262 ASSIS, D. A. D.; SILVA, A. A.; TORRES, T.

A classificação dos textos nessas categorias Apresenta, portanto, a importância de


demonstra quão conservadora e de retrocesso fortalecer o papel dos órgãos de saúde na
é a maioria das proposições, voltadas a uma coordenação dos cuidados, especialmente
regulamentação de privações de direitos de pelas vias medicamentosas, com vista a frear
adolescentes. A maioria dos PL apresenta os excessos desse processo, já que o Brasil,
tendência compatível com a doutrina da si- no decorrer da década de 2000, passou a
tuação irregular e a lógica manicomial, com figurar como o segundo país do mundo em
lastro em controle punitivo e institucionali- prescrições de metilfenidato, genericamente
zante. Em contraponto, sobressai apenas o PL conhecido como Ritalina ou Conserta, para
5.673/2009, que proíbe a aplicação da medida diagnósticos de TDAH em crianças (HECKERT;
privativa de liberdade nos casos de prática in- ROCHA, 2012). Na mesma tendência dos dois
fracional resultante do uso de drogas. primeiros projetos segueo PL 3.092/2012, eis
No âmbito da ‘medicalização da vida’, as que, embora não reduza os cuidados ao am-
propostas dividem opiniões uma vez que biente escolar, reforça a prática do cuidado
algumas, apesar de se voltarem ao cuidado, medicamentoso pela “obrigatoriedade de
reforçam a questionável tese do diagnósti- fornecimento de medicamentos gratuitos
co precoce de transtornos do desenvolvi- pelo SUS para tratar Hiperatividade e TDHA
mento e da aprendizagem. É o caso do PL em crianças portadoras da síndrome” (BRASIL,
7.081/2010, que obriga o poder público a 2012C). Mais repressor é o PL 2372/2011,
que impõe a “internação compulsória para
manter programa de diagnóstico e tratamen- tratamento de crianças e adolescentes, em
to de estudantes da atenção básica com dis- situação de rua, dependentes de álcool e
lexia e Transtorno de Déficit de Atenção e Hi- substâncias entorpecentes” (BRASIL, 2011B)4.
peratividade (TDAH). (BRASIL, 2010B), De modo geral, a medicalização da vida
pode ser entendida como processo que torna
bem como fornecer aos professores esco- contextos considerados problemáticos, de
lares curso sobre os diagnósticos. Semelhante ordens diversas, em questões exclusiva-
é o PL 5.700/2009, que impõe às escolas a mente médicas, sendo retiradas do campo
criação de ações de “avaliação e acompa- social de produção e restritasa processos
nhamento dos transtornos de aprendiza- biológicos próprios de cada indivíduo, sendo
gem” (BRASIL, 2009A). Ambos são questionáveis, aquelas nomeadas como patologias a serem
ademais, porque visam instrumentalizar as tratadas/curadas, prioritariamente, à base
escolas, substituindo-se, com isso, os servi- de medicamentos. Segundo Heckert e Rocha
ços de saúde disponíveis ou demandáveis (2012), o não aprender, as inquietações ou agi-
na comunidade, e aproximando os estabe- tações, conflitos e indisciplinas, geralmente
lecimentos educacionais das instituições expressas no ambiente escolar, quando in-
totais. Destaca-se, em sentido distinto, o PLS dividualizados e considerados ‘anormais’,
247/2012, que propõe que têm como efeito a ampliação da jurisdição
médica sobre problemas que, muitas vezes,
4 De autoria da deputada
o uso de psicofármacos em crianças e ado- emergem do chão da escola por meio de
fluminense Liliam Sá (PR/ lescentes exigirá comprovada necessidade processos de patologização da diferença que
RJ), o PL surge no exato
momento em que nasce
do uso, que deve ocorrer em conformida- anulam possibilidades de questionamento
a carioca e polêmica de com os protocolos clínico-terapêuticos e reinvenção das instituições e contextos
Resolução SMAS nº
20/2011, com a finalidade,
aprovados pelo Ministério da Saúde, proi- onde estão inseridas crianças e adolescentes.
entre outras, de propor o bindo o uso da medicalização de forma in- Nesse jogo de forças, em que comportamen-
‘abrigamento compulsório’
de crianças e adolescentes
discriminada, inadequada, desnecessária tos socialmente indesejados são reduzidos
em situação de rua. ou excessiva. (BRASIL, 2012E). a problemas de cada um, são retirados do

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Políticas de saúde mental, álcool e outras drogas e de criança e adolescente no Legislativo 263

campo de análise atores e condições especí- É interessante perceber essas variações,


ficos que determinam os rumos das políticas muitas das quais sem fundamento teórico
da infância e da juventude, dentro ou fora consistente, desconsiderando-se uma série
da escola, a exemplo da indústria farmacêu- de elementos contextuais socioculturais que
tica; do ritmo de trabalho dos pais exigido compõem o ser criança e o ser adolescen-
pelo sistema produtivo, dificultando-lhes o te. Vale ressaltar, especialmente nos PL de
acompanhamento cotidiano de seus filhos; responsabilização, a ausência completa dos
das condições de trabalho dos educadores; da protagonistas da tríplice cooperação consti-
mercantilização da educação, cada vez mais tucional Estado, família e sociedade (art. 227
voltada para resultados pragmáticos etc. da Constituição Federal) entre os sujeitos e
Viu-se que, no contexto da ‘responsabili- predicados alvos de demandas de cuidado
zação socioeducativa’, os conteúdos dos PL em saúde. O foco da responsabilização está
são majoritariamente conservadores e de cada vez mais apontado para o próprio ado-
tendência retrógrada, dado o caráter puni- lescente. Um exemplo que gera muitas in-
tivista e patologizante veiculado em seus quietações sociais e se direciona ante uma
textos. Em suma, 12 dos 13 PL apontam para responsabilização cada vez mais focada no
a modificação da legislação da infância e adolescente se encontra no PL 192/2015, que
adolescência no sentido da redução de di- problematiza a natureza pétrea da cláusula
reitos humanos de crianças e adolescentes. constitucional sobre a idade penal, apresenta
No que tange às ações de saúde mental em argumentos descontextualizados, faz uso de
outras dimensões da vida desse público, com comparações desproporcionais entre países
exceção do progressista PLC 30/2006, que e se arvora em argumentos pouco progres-
dispõe sobre destinação, à política da infân- sistas em uma perspectiva de redução de
cia, de recursos orçamentários oriundos de direitos, bem como da idade penal.
multas, os demais PL da categoria ‘garantia Ainda resta analisar os jogos de força a
de direitos’ podem ser entendidos como des- partir da participação de cada partido na
necessários, haja vista que o investimento propositura dos projetos de lei. Ao se pin-
empregado em sua tramitação poderia ser çarem, brevemente, os PL cujos textos con-
direcionado para a fiscalização das leis e vergem com a legislação de saúde mental e
políticas em andamento, como visto, papel de direitos de crianças e adolescentes – aqui
também precípuo dos parlamentares. Dos nomeados como progressistas –, nota-se que
dez PL revelados na categoria ‘proteção’, por são minoria expressiva e de autoria de par-
sua vez, seis também repetem normas proibi- lamentares ligados, proporcionalmente, a
tivas já compreendidas no ordenamento ju- partidos de esquerda.
rídico. Contraria apenas o PL 779/2003, que
prevê a inclusão do conteúdo sobre uso de Análise das expressões partidárias
drogas no currículo escolar; e os presentes em conexão com os eixos temáticos
na ‘medicalização da vida’ tendem, em sua
maioria, a fortalecer a lógica patologizan- Entre os projetos voltados às ações em álcool
te do comportamento infantil. Dos cinco e outras drogas, dos 106 PL, apenas 11 (11%)
PL em tela, apenas o PL 247/2012 propõe têm caráter progressista, sendo majorita-
a desinstrumentalização psiquiátrica e riamente de partidos de esquerda como PT,
psicológica das relações de sociabilidade PDT e PSOL e, excepcionalmente, do PFL
infantil, enfrentando a tendência – que os (PL 6520/06, que dispõe sobre ações de
demais PL assumem – de submeter, cada redução de danos) e do PMDB (PL 5298/16,
vez mais, os comportamentos infantoado- que dá importância à responsabilidade civil
lescentes a esses saberes. do motorista que, nessa função, comete

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264 ASSIS, D. A. D.; SILVA, A. A.; TORRES, T.

homicídio). De outro modo, os 89% restan- psiquiátricas particulares, comunidades te-


tes são de partidos de centro e de direita, jus- rapêuticas (CT) e internações compulsórias
tamente alguns dos quais, no atual governo (STOCHERO; ARAÚJO; AHMED, 2013).
federal de Michel Temer (PMDB/SP), prota- Exemplo dessa constatação, na categoria
gonizam em base aliada. ‘tratamento’, do eixo Álcool e outras Drogas,
No conjunto de 35 PL relacionados com e na categoria ‘responsabilização socioedu-
a temática da infância e adolescência, 10 cativa’, do eixo Infância e Juventude, encon-
são de autoria de parlamentares filiados aos tra-se o caráter punitivista e patologizante
partidos de esquerda PT, PSB e PDT, porém do autor do delito ou de psiquiatrização da
somente os propostos na legenda do PT são infração, em que são propostas internação
de natureza progressista. Além desses, 3 PL compulsória e medida de segurança para os
progressistas são de autoria de parlamenta- julgados pelo aparato médico-jurídico como
res dos antigos PPB (PL 779/03) e PFL (PL ‘perigosos’, jovens e adolescentes que fazem
1.811/03) e do atual PMDB (PLC 30/06). Os uso de droga. Perante esses, as medidas pro-
demais 22 PL (63%) são de autoria de par- postas retomam o retrógrado pensamento
tidos de centro e de direita, como, em seu lombrosiano, do final do século XIX, para
conteúdo, de retrocesso, pois divergem dos o qual a ‘delinquência’ é uma expressão da
marcos de garantia de direitos das popula- doença mental, devendo esta ser controlada
ções em pauta. Nesse sentido, 82% do total mais pela medicina psiquiátrica e menos pelo
de PL em análise em ambos os eixos temáti- direito penal. São propostas que prescindem
cos têm textos com finalidade de redução de de prazo para a clausura, com o explícito
direitos dos públicos-alvo, punitivistas ou de desejo de punição mascarado pelo discurso
mera reiteração da legislação atual. da proteção. Todavia, além das modalidades
Em ambos os eixos, viu-se que, na segunda sanitárias de punição para o tratamento dos
metade do período analisado, encontram-se ‘desviantes’, alguns projetos (PL 4.941/09
os picos de produção legislativa, momento e PLS 2.27/09) prescindem do discurso
em que prevalece a natureza conservadora médico patologizante e invocam o caráter
dos projetos. Os que mais chamam a atenção punitivista a ser aplicado às respostas esta-
são os que cruzam os eixos analisados pro- tais a usuários de drogas, com a reinstituição
pondo medidas de caráter punitivista e pa- da pena de prisão.
tologizante a serem adotadas ao usuário de Por outro lado, dos poucos PL de natureza
drogas, seja este criança, adolescente ou progressista, encontrados principalmente
adulto. Como visto, a coincidência temporal nas categorias ‘prevenção e reabilitação’, do
– iniciada no ano de 2009 – entre o ápice das eixo Álcool e outras Drogas, e ‘garantia de di-
proposituras e o início dos programas de en- reitos’, do eixo Infância e Juventude, viu-se
frentamento ao crack ganha legitimidade (e que a maioria propõe ações já estabelecidas
investimento orçamentário) no lançamento nos normativos de saúde mental. Este dado
do programa ‘Crack, é possível vencer’, do sugere pensar que os serviços e programas
Ministério da Justiça, em 2011. Em relação a já implementados não parecem funcionar
esse ano, o orçamento decuplicou em 2014. à altura das demandas para as quais foram
Os discursos do cuidado e da repressão desenvolvidos, tornando-se invisibilizados
convivem na mesma agenda das drogas, vo- como ações de prevenção de agravos e pro-
calizados por todos os partidos, sem distin- moção dedireitos. Levanta-se a hipótese
ção. Ao mesmo tempo que se fortalecem os de que o crescente financiamento público
serviços substitutivos e territoriais, ganham de iniciativas privadas dos últimos cinco
força os espaços e práticas que retomam a anos, destinado ao tratamento da população
lógica manicomial, a exemplo de clínicas que faz uso de álcool e outras drogas, vem

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Políticas de saúde mental, álcool e outras drogas e de criança e adolescente no Legislativo 265

enfraquecendo os pontos de atenção já exis- também discorreu-se sobre alguns aconte-


tentes, precarizando os equipamentos sociais cimentos no âmbito do poder executivo que
de que se dispõem, embora muitos desses ser- ensejaram ações específicas do poder legis-
viços privados caminhem na contramão dos lativo no campo da saúde mental e que, após
princípios da autonomia, do cuidado em li- o processo de impeachment da Presidenta da
berdade e em convivência familiar e comuni- República Dilma Rousseff, em 31 de agosto de
tária. Como é o caso das CT, serviços atípicos 2016, poderão mobilizar outras disputas das
de acolhimento, porque, além das violações políticas públicas em questão.
daqueles direitos, caracterizam-se por reali- Em outubro de 2015, o então sanitaris-
zar outras restrições em nome da abstinência ta ministro da saúde Arthur Chioro (PT/
em relação ao uso de drogas. SP) foi exonerado do cargo e, em seu lugar,
Ao mesmo tempo, a reiterada proposi- assumiu o deputado federal Marcelo Castro
tura do que já está disposto em normativos (PMDB/PI). A entrega da pasta ao PMDB foi
da saúde mental e da infância e juventude uma tentativa presidencial de garantir maior
fortalece o papel legislador em detrimento apoio político do majoritário partido perante
das ações de fiscalização do poder executivo as novas exigências da oposição, às vésperas
para o cumprimento da execução das po- do recebimento da denúncia que culmi-
líticas públicas, também inerente ao poder naria, dez meses depois, no impeachment
legislativo. Esse comportamento sugere que da Presidenta da República. Efeito da
o comportamento parlamentar valoriza o mudança da chefia ministerial, dois meses
interesse dos cidadãos a partir da criação de depois, a exoneração do então gestor da
regras, a despeito de algumas delas já existi- Política Nacional de Saúde Mental, Roberto
rem e outras serem eventualmente danosas Tykanori, ensejou a nomeação do desco-
ao interesse público. Segundo Anastasia e nhecido Valencius Wurch, o que mobilizou
Inácio (2010, p. 37), “o Poder Legislativo não sobremaneira os movimentos sociais ligados
está (ainda?) devidamente capacitado para ao tema, a fim de evitar possíveis desmontes
exercer suas funções de monitoramento e da Política Nacional (CORREIO, 2016).
avaliação dessas políticas”, fragilidade que Após 123 dias de ocupação da sala da
se explica pela dificuldade de instituir pro- Coordenação Nacional de Saúde Mental,
cedimentos indutores de responsabilidades Álcool e outras Drogas, manifestações e au-
cruzadas entre os governos subnacionais, diências públicas e reuniões institucionais
mediante forte coordenação intergoverna- com o governo federal (ABRASCO, 2016), os movi-
mental, além do investimento nas instâncias mentos da luta antimanicomial priorizaram a
de participação política. Segundo os autores, interlocução com o poder legislativo, inicial-
mente na pessoa da deputada federal Erika
o monitoramento e a avaliação das políticas Kokay (PT/DF). Nesse passo, com a presença
em cada nível de governo dependem de infor- de vários setores da Reforma Psiquiátrica,
mações sobre as decisões e as ações levadas a foi proposta a composição de uma Frente
cabo nos demais níveis. (ANASTASIA; INÁCIO, P. 42). Parlamentar em Defesa da Reforma
Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial (HAJE,
2016), levada a cabo no 6 de abril, dia em que
Conclusão: perspectivas a lei respectiva completaria 15 anos. Seu
planode trabalho pauta-se em ações de ga-
Para concluir o presente artigo, relaciona- rantia do direito de ser cuidado nas redes
ram-se os projetos de lei analisados e seus de base comunitária, de não ser internado
possíveis efeitos sobre a Política Nacional de em hospital psiquiátrico e do direito de dele
Saúde Mental, Álcool e outras Drogas, mas sair, em processos fielmente alinhados às

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266 ASSIS, D. A. D.; SILVA, A. A.; TORRES, T.

diretrizes da Política Nacional, o que incidi- casos, os projetos de lei acabam por se tornar
rá também na vida de crianças, adolescentes processos de instrumentalização legal que
e pessoas com necessidades decorrentes do impactarão consideravelmente nos servi-
uso de drogas. Em suma, vale destacar que ços, no processo de trabalho, no fazer pro-
o plano é plenamente ilustrado de ações fissional e no (possível não) cuidado com o
fiscalizatórias e contributivas ao poder usuário no âmbito da saúde mental.
executivo, bem como do acompanhamento Paralelamente aos acontecimentos po-
dos PL ligados à Reforma Psiquiátrica e à líticos ocorridos no primeiro semestre de
Luta Antimanicomial (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2016, no campo da saúde mental, viu-se que
2016). Sob coordenação da citada deputada, o legislativo propôs predominantemente
a Frente teve adesão de 198 deputados, dos projetos de lei referentes às questões con-
quais 77 são membros de partidos classifica- cernentes ao uso de álcool e outras drogas,
dos como de esquerda, o que expressa pre- os quais, em sua maioria, expressam o endu-
sença significativa contra os retrocessos nas recimento de medidas punitivas e institucio-
respectivas políticas. nalizantes travestidas de responsabilização.
Na medida em que a democracia par- No âmbito executivo, mesmo após a exone-
ticipativa constitui-se como alicerce do ração de Wurche a do então ministro Castro,
Estado Democrático de Direito, entende-se a Política de Saúde Mental, Álcool e outras
a Frente Parlamentar em Defesa da Reforma Drogas continua desguarnecida, seja porque
Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial como carece de gestor nomeado, seja em razão da
um veículo do comportamento parlamen- postura do novo ministro, o deputado federal
tar de fiscal da administração pública, em Ricardo Barros (PP/PR).
audição de uma pauta em constante disputa Sem guarida, a política de saúde mental
social e institucional. Com isso, um dos pode ser alvo de negociações desde que o
efeitos pode ser a garantia da continuidade deputado federal Osmar Terra (PMDB/
da política de saúde mental no modelo cons- RS) assumira a chefia do Ministério do
titucional do SUS, a despeito do contexto Desenvolvimento Social e Agrário (MDSA),
em que se insere e se sustenta a maior parte em virtude da sua relação com o campo das
dos PL analisados nos eixos Álcool e outras drogas. Terra tem um emblemático Projeto
Drogas e Infância e Juventude. O esforço de Lei (nº 7.663/2010, atual PLC 37/2013),
dessa e outras Frentes será hercúleo, na já citado, que prevê a alteração mais ampla,
medida em que, no primeiro eixo, os 11 PL austera e conservadora da nova lei de drogas,
de natureza progressista evidenciam a in- da Lei nº 10.216/2001 e das modalidades
vertida do momento de ampliação de ações de cuidado instituídos pelos SUS, Sistema
de cuidado e qualificação das políticas (pri- Único de Assistência Social (Suas), e Sistema
meira metade do período analisado) para Nacional de Políticas sobre Drogas (Sisnad),
um seguinte de acirramento do controle das o que se expressa na regulamentação de co-
liberdades e instalação de uma lógica penal- munidades terapêuticas. Nessa crescente in-
-sanitarista (ASSIS, 2012) no campo das drogas cidência, para lhe assessorar no MDSA, Terra
(segunda metade do mesmo período). No nomeou como secretário executivo o ex-se-
segundo eixo, apesar de haver projetos de cretário de atenção à saúde de Marcelo Castro,
lei que apontam para pautas progressistas (5 Alberto Beltrame, proprietário de clínicas
dos 35), é complexo o cenário em que se en- dessa natureza, em uma das quais é sócio do
contra a saúde mental, pois, como discutiu- suplente de Ronaldo Laranjeiras no Conselho
-se, a lógica está cada vez mais patologizante Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad),
e institucionalizante, desconectando-se, em psiquiatra expoente na defesa de modalidade
uma crescente, das diretrizes do SUS. Nesses de tratamento semelhante à empregada nas

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Políticas de saúde mental, álcool e outras drogas e de criança e adolescente no Legislativo 267

comunidades terapêuticas. Ato contínuo, em se deu até os anos 1990 –, mas de leis em vi-
posições máximas no MDSA, ambos se nome- gência, que, apesar da consolidação dos siste-
aram membros do Conad. mas sociais, sustentam políticas que podem
Em suma, as disputas perduram no sofrer atrasos e reformulações pela nova
entorno da Política Nacional de Saúde Mental compleiçãofederal, composta de parlamen-
e da jovem política de drogas. No período de tares de partidos de direita e centro, signatá-
14 anos de análise, além do variado acervo rios do majoritário rol de PL conservadores.
de PL e da dança das cadeiras ministeriais – Do outro lado da disputa, encontram-se os
com notável alteração nos últimos 16 meses, parlamentares de partidos de esquerda, no-
estando partidos de centro e direita na chefia tórios constituintes da base aliada em quase
do Ministério da Saúde –, percebe-se que todo o período de análise. Esses, ao mesmo
a emergência das Frentes Parlamentares tempo que, a partir do impeachment, perdem
também redimensiona o cenário legislativo voz no poder executivo, parecem se destinar
em torno das políticas em pauta. Em no- a fortalecer instrumentos de defesa da políti-
vembro de 2015, reinaugurou-se a Frente ca de saúde mental no âmbito legislativo.
Parlamentar Mista em Defesa da Criança e
do Adolescente, com 87 deputados de par-
tidos classificados como de esquerda, entre Colaboradores
202 membros. A Frente Parlamentar em
Defesa dos Direitos Humanos, inaugurada em Daniel Adolpho e Alyne Alvarez contribu-
maio de 2015, conta com 217 parlamentares, íram substancialmente para a concepção
dos quais 98 representam partidos de esquer- e o planejamento e para a análise e inter-
da. Comum atribuição das Frentes, o acompa- pretaçãodos dados; bem como para a ela-
nhamento e monitoramento das proposições boração do rascunho e revisão crítica do
legislativas no entorno de seu respectivo tema conteúdo. Ticiana Torres contribuiu subs-
evidencia a importância que carrega o papel tancialmente para o planejamento e para a
de fiscalizador das políticas públicas. sistematização dos dados; bem como para
Em termos conjunturais, vislumbra-se um a elaboração do rascunho. Todos partici-
cenário complexo de disputa não mais por param da aprovação da versão final do ma-
leis em branco, à espera de anotações – como nuscrito. s

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 255-272, JAN-MAR 2017


268 ASSIS, D. A. D.; SILVA, A. A.; TORRES, T.

Referências

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 255-272, JAN-MAR 2017


Políticas de saúde mental, álcool e outras drogas e de criança e adolescente no Legislativo 269

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 255-272, JAN-MAR 2017


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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 255-272, JAN-MAR 2017


ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE 273

Loucos/as, pacientes, usuários/as,


experientes: o estatuto dos sujeitos no
contexto da reforma psiquiátrica brasileira
Crazies, patients, users, experienced: the statute of the subjects in the
context of the brazilian psychiatric reform

Ana Paula Müller de Andrade1, Sônia Weidner Maluf2

RESUMO Este artigo visa refletir sobre o estatuto dos sujeitos-usuários/as no contexto da
reforma psiquiátrica brasileira. A partir de uma pesquisa etnográfica realizada em 2010 e
2011, com o objetivo de analisar criticamente o processo da reforma psiquiátrica brasileira,
do ponto de vista de usuários/as dos serviços de saúde mental, problematiza-se a categoria
‘usuário/a’ e aponta-se para a complexidade e a relevância das experiências singulares e ins-
titucionais desses sujeitos na consolidação da política pública de saúde mental no Brasil. As
análises indicam a necessidade de conferir um estatuto epistemológico ao saber produzido
por tais sujeitos no contexto da reforma psiquiátrica brasileira.

PALAVRAS-CHAVE Política social. Desinstitucionalização. Sujeitos da pesquisa.

ABSTRACT This article aims to reflect about the statute of the subjects-users in the context of
the Brazilian psychiatric reform. Based on an ethnographic research conducted in 2010 and 2011,
which the objective of critically analyzing the process of the Brazilian psychiatric reform, from
the point of view of the users of mental health services, the ‘user’ category is problematized and
points out the complexity and the relevance of the singular and institutional experiences of these
subjects in the consolidation of the public mental health policy in Brazil. The analysis indicates
the need to confer an epistemological statute to the knowledge produced by such subjects in the
context of the Brazilian psychiatric reform.

KEYWORDS Social policy. Deinstitutionalization. Research subjects.

1 UniversidadeFederal de
Pelotas (UFPEL) – Pelotas
(RS), Brasil.
psicopaulla@yahoo.com.br

2 Universidade Federal de

Santa Catarina (UFSC) –


Florianópolis (RS), Brasil.
sonia.maluf@ufsc.br

DOI: 10.1590/0103-1104201711222 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 273-284, JAN-MAR 2017
274 ANDRADE, A. P. M.; MALUF, S. W.

Introdução desses atos’, para denominar as pessoas


consideradas incapazes para os atos da vida
A reorientação da assistência psiquiátrica civil, outras mudanças têm sido instituídas a
brasileira, consolidada com a aprovação da fim de atender a complexidade de centrar a
Política Nacional de Saúde Mental (PNSM), assistência psiquiátrica no sujeito que sofre e
Lei nº 10.216/2001, teve como eixo nortea- não na suposta doença que o acomete. Além
dor a garantia de dignidade e de liberdade dessa substituição, no contexto dos serviços
para pessoas acometidas por algum tipo de saúde mental criados a partir da aprova-
de sofrimento psíquico. Diante de críticas ção da PNSM, tais pessoas passaram a ser
e denúncias de diferentes atores sociais denominadas como ‘usuárias/os’, em substi-
sobre as condições desumanas e pouco te- tuição às expressões ‘doente mental’, ‘louco’
rapêuticas dispensadas aos considerados ou ‘cliente’, consideradas inadequadas frente
doentes mentais nos hospitais psiquiátricos ao seu protagonismo (AMARANTE, 1995).
brasileiros, bem como do reconhecimento A fim de discutir o estatuto conferido
de experiências de transformação da assis- aos sujeitos-usuários/as no contexto da
tência psiquiátrica em outros países, como reforma psiquiátrica brasileira, destacam-
França, Inglaterra, Estados Unidos e Itália, -se aqui os dados de uma pesquisa etno-
o processo de reforma psiquiátrica ganhou gráfica, que teve o objetivo de analisar
força no Brasil. criticamente o processo da reforma psi-
A partir da aprovação da PNSM, os princí- quiátrica brasileira do ponto de vista de
pios da reforma psiquiátrica têm orientado, usuários/as dos serviços de saúde mental,
na sua vertente assistencial, a criação de uma cujos resultados indicaram a necessidade
rede de serviços de saúde mental abertos, de conferir um estatuto epistemológico ao
de base comunitária, que, articulados com saber produzido por esses sujeitos.
outros setores, visam substituir os leitos em
hospitais psiquiátricos e garantir a formu-
lação de estratégias terapêuticas singulares Metodologia
para os sujeitos. Como apontado por Wetzel
(2005), tais serviços vêm se concretizando de A pesquisa foi realizada nas cidades de
forma heterogênea em todo Brasil. Joinville (SC) e Barbacena (MG), nos anos
A participação de diferentes atores – mo- de 2010 e 2011. A opção pela abordagem qua-
vimentos sociais, trabalhadores, familiares, litativa e etnográfica justificou-se pela possi-
artistas e pessoas incluídas na categoria de bilidade de enfatizar os diferentes discursos
usuários do sistema de saúde – no processo e práticas presentes no contexto investiga-
de formulação e consolidação da política do, e de articular os dados empíricos com a
pública de saúde mental no País promoveu teoria, colocando-os em diálogo.
mudanças importantes na assistência psi- Durante nove meses, foram feitas observa-
quiátrica ofertada e tem instituído outro ções participantes, entrevistas semiestrutu-
lugar social para a loucura e para as pessoas radas (realizadas na fase inicial do trabalho
consideradas loucas, entendidas aqui como de campo) e conversas ordinárias e extra-
aquelas que têm o encargo simbólico de cor- ordinárias, com usuários/as dos serviços de
porificar a loucura (PELBART, 1990). saúde mental. Os dados foram registrados
A exemplo da substituição, no Novo em diário de campo e as entrevistas gravadas
Código Civil Brasileiro (2002), da expressão e transcritas. Os nomes de pessoas utilizados
‘loucos de todo gênero’ por ‘os que, por enfer- neste texto são fictícios.
midade ou deficiência mental, não tiverem A escolha dos usuários/as dos serviços
o necessário discernimento para a prática de saúde mental substitutivos ao hospital

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Loucos/as, pacientes, usuários/as, experientes: o estatuto dos sujeitos no contexto da reforma psiquiátrica brasileira 275

psiquiátrico deu-se pelo entendimento de Tal expressão é usada no texto da política


que o ponto de vista e as experiências desses para denominar os indivíduos que deverão
sujeitos sobre o processo da reforma psi- ter garantidos o direito a tratamento em
quiátrica brasileira trariam contribuições serviço aberto, sem qualquer forma de dis-
importantes para a análise a ser realizada. criminação quanto à raça, à cor, ao sexo, à
Do conjunto dos sujeitos que compuseram orientação sexual, à religião, à opção política,
a pesquisa, foram selecionados dois para o à nacionalidade, à idade, à família, a recursos
desenvolvimento do argumento apresentado econômicos e/ou ao grau de gravidade ou
neste trabalho. tempo de evolução de seu transtorno, ou a
A inserção etnográfica se deu em diferen- qualquer outra.
tes ‘planos’ (MALUF, 2011), entre eles, o plano No senso comum, tais pessoas são re-
institucional (conferências municipais de conhecidas através de expressões como
saúde, serviços de saúde mental governa- ‘pacientes’, ‘doentes mentais’, ‘loucas/
mentais e não governamentais) e o plano das os’, ‘birutas’, ‘doidas’, ‘tantãs’, entre tantas
experiências singulares dos sujeitos (rotinas outras. Tais expressões se relacionam com o
ordinárias e extraordinárias, percursos pela contexto social, cultural, ideológico, teórico
cidade, visitas domiciliares, idas a feiras e em que aparecem e, em geral, refletem a
restaurantes, entre outros), que foram arti- maneira como tais pessoas são percebidas
culados na construção da análise realizada. pelas demais.
O trabalho de campo não foi realizado No contexto da reforma psiquiátrica bra-
com um grupo ou em um local específico, sileira, são comumente denominadas como
mas com as pessoas que participavam de ati- ‘usuárias’. Tal expressão encontra respaldo
vidades ligadas ao chamado campo da saúde no fato d’elas terem sido protagonistas nos
mental. Os/as sujeitos da pesquisa eram processos de construção e consolidação do
homens e mulheres adultos, em sua maioria, Sistema Único de Saúde (SUS), bem como
pertencente às classes populares urbanas, de usarem os serviços que dele fazem parte.
que tinham em comum o fato de frequen- Entretanto, além dos diferentes usos que tais
tarem ou já terem frequentado serviços de sujeitos fazem dos e nos serviços, cabe sa-
saúde mental e fazerem ou já terem feito lientar a sua participação em outros espaços
uso de psicofármacos. Nas duas cidades, foi de sustentação e execução da PNSM, tais
solicitado, aos primeiros interlocutores, que como os conselhos de saúde e outros fóruns
indicassem outras pessoas que pudessem em que a política é gestada, como mostra,
participar, tal como sugerido por Bott (1976), por exemplo, o trabalho de Silveira, Brante e
e, assim, foi composto o grupo de sujeitos van Stralen (2014).
investigados. A pesquisa foi aprovada em O reconhecimento da importância de
Comitê de Ética. tais pessoas no processo da reforma psi-
quiátrica brasileira pode ser percebido,
por exemplo, na Marcha dos Usuários pela
Resultados e discussão Reforma Psiquiátrica Antimanicomial, re-
alizada em setembro de 2009, na cidade de
Brasília (DF). A marcha teve como objetivo
Usuários/as entre aspas mobilizar a sociedade civil para reivindicar,
junto ao governo federal, a realização da IV
No texto da PNSM, as pessoas acometidas Conferência Nacional de Saúde Mental. Para
por algum tipo de sofrimento, aflição ou tanto, foi organizada com apoio do Conselho
perturbação (DUARTE, 1994) são denominadas Federal de Psicologia e da Rede Internúcleos
‘pessoas portadoras de transtornos mentais’. da Luta Antimanicomial (Renila). A

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276 ANDRADE, A. P. M.; MALUF, S. W.

chamada principal era ‘Marcha dos Usuários com frequência alguns desses profissionais
pela Reforma Psiquiátrica Antimanicomial! se referem a elas como pacientes.
Brasília vai ouvir nossa voz’, em uma clara Uma problematização desta expressão
referência de que os/as usuários/as deveriam também é apresentada na ‘Carta de direi-
ser escutados (SILVEIRA; BRANTE; VAN STRALEN, 2014). tos e deveres dos usuários e familiares dos
Como resultado de tal mobilização, a IV serviços de saúde mental’, que, entre outras
Conferência Nacional de Saúde Mental foi re- coisas, descreve:
alizada, no ano de 2010, com a participação de
outros setores além da saúde, o que agregou à Utilizamos a expressão ‘usuário’, assim como
tal conferência um caráter intersetorial. Com se usa a expressão ‘técnicos’, para designar
isso, a paridade na representação foi remo- situações específicas. Na verdade, nós, usu-
delada, ficando 70% para o setor saúde (dos ários entre aspas, somos pessoas, seres hu-
quais, 50% para usuários, 25% para gestores e manos totais integrais, acima das condições
25% para trabalhadores) e 30% para a interse- circunstanciais dos Serviços de Saúde Men-
torialidade (na qual se destacaram os setores tal. (CARTA DE DIREITOS E DEVERES DOS USUÁRIOS E
de educação, trabalho e cultura, entre outros), FAMILIARES DOS SERVIÇOS DE SAÚDE MENTAL, 1993, P. 1).
o que buscou garantir a ampla participação
dos/as usuários/as (BRASIL, 2010). Ao apontar para o fato de que as expres-
Para Amarante (1995), a expressão ‘usuário’ sões ‘usuário’ e ‘técnico’ designam situações
surge no interior do processo de reforma específicas, o texto produzido na carta faz
psiquiátrica brasileira e pretende substituir pensar no caráter irredutível da complexi-
as expressões utilizadas até então. Contudo, dade e da integralidade das experiências dos
para o autor, em pouco tempo se percebe que sujeitos a qualquer tipo de denominação,
a expressão ‘usuário’ remete às mesmas con- bem como nas possíveis limitações que a ex-
sequências anteriores. Então, ele não sugere pressão ‘usuários/as’ possa conter.
outra expressão capaz de substituí-la, mas No processo de reflexão e análise dos
demonstra, em Torre e Amarante (2001, P. 79), dados da pesquisa realizada, optou-se pela
como houve, no processo da reforma psiqui- expressão ‘experientes’ para fazer referência
átrica, uma “transformação do lugar do louco a essas pessoas. O objetivo dessa opção foi
como ator social, como sujeito político”. destacar a importância que as experiências
Cecílio et al. (2014) argumentam sobre um singulares e institucionais mostravam ter na
agir leigo no âmbito da saúde e alegam que constituição de práticas e relações nos ser-
os usuários são sujeitos cognoscentes, cog- viços de saúde mental e também fora deles,
noscíveis e produtores de seus sistemas de bem como no processo da reforma psiqui-
saúde. O conceito de leigo é pensado pelos átrica de modo mais amplo. Além disso, tal
autores como um saber advindo das experi- opção possibilitou refletir densa e critica-
ências sociais e que não está necessariamen- mente sobre a expressão ‘usuário/as’.
te referenciado a uma área do conhecimento A ideia do uso da expressão ‘experientes’
ou saber especializado. emergiu da discussão proposta por Maluf
Já Carvalho (2014) aponta que o uso da (2010) ao propor uma abordagem antropológi-
expressão ‘usuário’ em substituição a ‘pa- ca do contexto das políticas de saúde mental
ciente’, usada por profissionais e militantes no Brasil. A autora, na construção de seu
da reforma psiquiátrica, remete ao uso dos argumento, coloca a palavra usuário entre
serviços de saúde por uma determinada aspas e discute a relevância da experiência
população e pretende superar a reificação social destas pessoas para o contexto da po-
e a redução de tais pessoas a uma condição lítica pública de saúde mental no Brasil. Por
patologizável. Segundo o autor, ainda assim, experiência social, designa

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Loucos/as, pacientes, usuários/as, experientes: o estatuto dos sujeitos no contexto da reforma psiquiátrica brasileira 277

a dimensão da vivência e produção de sabe- acontece fora de significados estabelecidos),


res e discursos por parte daquelas que são mas não está confinada a uma ordem fixa de
justamente o ‘público-alvo’ das políticas pú- significados. Já que o discurso é, por defini-
blicas e da atuação de profissionais e agentes ção, compartilhado, a experiência é coletiva
de saúde [...]. (MALUF, 2010, P. 40). assim como individual. Experiência é uma his-
tória do sujeito. A linguagem é o local onde a
Outro aporte teórico para a escolha da história é encenada. (SCOTT, 1999, P. 42).
expressão ‘experientes’ adveio das conside-
rações de Coleman (2004). O autor argumenta Nesse sentido, a interlocução com os sujei-
sobre a importância da experiência pessoal tos da pesquisa permitiu considerar o modo
na trajetória de recuperação de pessoas com como as pessoas falavam de si no contexto da
algum tipo de mal-estar mental. Para ele, as reforma psiquiátrica brasileira, entendendo
experiências das pessoas que são acometi- que não falavam apenas de si nem somente
das por algum mal-estar e também daquelas para outrem, mas também para si, como um
que com elas convivem e trabalham devem modo de constituir tanto suas experiências
ser consideradas no processo de recupera- quanto a si mesmos. Nas análises, buscou-se
ção do bem-estar perdido. Estas diferentes produzir um conhecimento que conjugasse
proximidades com a experiência do mal- as dimensões coletiva e individual de tais ex-
-estar, próprio ou de outrem, são definidas periências, tal como proposto por Scott (1999).
pelo autor a partir de diferentes designações
para as pessoas envolvidas: ‘expert por ex-
periência’ (l’esperto per esperienza), ou seja, Experientes: um outro
a pessoa que experimenta algum tipo de estatuto para os sujeitos
incômodo psíquico e ‘expert por profissão’
(l’esperto per professione), o profissional Os dados analisados, advindos da interlocu-
que a acompanha. ção com usuários/as dos serviços de saúde
É possível, ainda, acrescentar às deno- mental sobre o processo da reforma psiqui-
minações de Coleman (2004) a expressão átrica brasileira, permitiram, entre outras
‘expert por convivência’, para denominar coisas, perceber que existia uma tensão entre
as pessoas que convivem no âmbito privado o plano institucional da reforma psiquiátrica
com a pessoa que tem algum mal-estar, e e aquele em que se constituem as experiên-
que são reconhecidas e denominadas co- cias singulares e institucionais dos sujeitos
mumente no contexto dos serviços de saúde que o compõem.
mental como familiares. Além disso, o reconhecimento de tais
Considerar a experiência como uma ca- planos diferenciados, bem como do ten-
tegoria importante para a análise desenvol- sionamento entre eles, indicou que, nos
vida neste artigo significa admitir que essas processos de constituição dos sujeitos nas
experiências são produzidas pelos sujeitos relações estabelecidas entre os distintos
em contextos socioculturais e históricos es- atores da reforma psiquiátrica, operam di-
pecíficos, e não devem ser naturalizadas ou ferentes lógicas e interpretações sobre os
mesmo ontologizadas. Como propõe Scott processos de adoecimento e suas terapêuti-
(1999), é preciso analisar a natureza discursi- cas. Assim, se por um lado podemos indicar
va da experiência e sua construção política. que a interpretação biomédica é hegemôni-
Para a autora, os ca do ponto de vista dos discursos e práti-
cas das políticas públicas e dos serviços de
[...] sujeitos são constituídos discursivamen- saúde, por outro, do ponto de vista dos su-
te, a experiência é um evento linguístico (não jeitos sociais envolvidos, também é possível

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278 ANDRADE, A. P. M.; MALUF, S. W.

afirmar que outras interpretações, sobretu- Cumpre dizer que Daniel era um homem
do aquelas baseadas no modelo físico-moral que pertencia às classes populares, tinha
dos nervos (DUARTE, 1988), estão presentes em aproximadamente 40 anos, era separado,
suas práticas e discursos. pai de 2 filhos e com uma história de longas
A partir dos diálogos estabelecidos e sucessivas internações psiquiátricas.
com dois interlocutores da pesquisa, Considerando sua experiência com a tera-
evidenciam-se alguns elementos impor- pêutica medicamentosa, ele entendia que o
tantes para a discussão sobre a articulação médico o conhecia, mas não conhecia seu or-
entre diferentes modelos interpretativos, ganismo, o que também significava dizer que
práticas e discursos que conformam as ex- o médico o conhecia, mas não o suficiente
periências no contexto da reforma psiqui- para entender o seu organismo tanto quanto
átrica brasileira, especialmente naqueles ele, como indica em seu relato.
aspectos relacionados à prescrição e ao uso Além disso, para ele, o médico reconhecia
de psicofármacos, e aos diferentes agen- aquilo que compunha a interpretação biomé-
ciamentos dos sujeitos em relação à me- dica da sua experiência: sintomas e efeitos co-
dicação. Daniel, um dos interlocutores da laterais. Já o que Daniel reconhecia era que,
pesquisa, narra, em uma das conversas, sua manejando os remédios e articulando seus
experiência com os medicamentos: conhecimentos, inclusive, o de psicofarmaco-
logia, podia fazer tentativas de ajuste medica-
Eu gostei muito da psicofarmacologia porque dá mentoso tal como faz o médico, que “conhece
pra mim... agora, quando tinha o médico do con- pelos efeitos colaterais. Se for dar muito efeito
vênio, eu falava com ele, eu dialogava com ele. colateral, ele tira e passa pro outro”.
Com o médico do SUS, não dá, é muito rápido. Não se trata, aqui, de fazer um julgamen-
Então, até a gente esperar, leva aquele tempo, to sobre a terapêutica adotada nos serviços
aquela angústia, aquela agonia... Então, como de saúde mental, ainda que isto seja muito
eu tenho conhecimento de psicofarmacologia, eu pertinente, mas apontar como diferentes
faço, eu mesmo, a retirada... [Pergunto:] ‘Como experiências conformam diferentes usos e
assim, tu mesmo faz a retirada?’ [Ele respon- discursos em torno dessas terapêuticas, in-
de:] ‘É assim, ó: o vapakene, depakene é para cluindo as medicamentosas. Também não
transtorno de humor, é para afetividade. Então, significa dizer que uma experiência tem
é assim... [pausa breve] Então, eu me dei mal... mais valor do que outra ou, então, que o pro-
[pausa breve] Então, eu tiro um a menos, eu fissional e/ou os sujeitos-alvo de tal terapêu-
boto um a mais [...] porque o médico conhece eu, tica estão mais, ou menos, autorizados a falar
né?! Mas ele não conhece bem meu organismo sobre elas. A intenção é mostrar que tanto a
[pausa breve] porque eu sei que o remédio pros experiência de Daniel quanto a do médico ao
nervos, ele não cura, né?! O médico sabe os sin- qual ele se referia na conversa são atravessa-
tomas, mas aí, ele dá, ele dá e ele vai saber, ele das, uma pela outra, e se constituem em rela-
conhece pelos efeitos colaterais. Se for dar muito ções de poder, de reciprocidade e, também,
efeito colateral, ele tira e passa pro outro. Eu sei, de circularidade.
é assim o esquema que funciona. Isso aí, eu sei. Como foi percebido no desenvolvimen-
Mas, aí, eu fiz ali. Então, agora eu tô tomando to da pesquisa, é no emaranhado das re-
a ziprazidona. Eu fiz uma experiência hoje de lações de poder (FOUCAULT, 2009), que fazem
manhã mesmo, eu tava há uns dez dias, eu tava parte do processo da reforma psiquiátrica,
meio assim... irritado... Aí, eu fiz assim: de ma- que é possível reconhecer a emergência de
nhã, eu tirei um valpakene... [...]’. (fragmento do experiências e de sujeitos capazes de esta-
Diário de Campo) belecer outras possibilidades de relaciona-
mento. Assim, não se trata de reificar um

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Loucos/as, pacientes, usuários/as, experientes: o estatuto dos sujeitos no contexto da reforma psiquiátrica brasileira 279

lugar comum e estático reservado aos usuá- relações com e no mundo. Como sugeriu
rios/as e/ou aos profissionais que com eles Coleman (2004), uma é expert por profissão;
convivem, mas de considerar que o tensio- a outra, expert por experiência. Entretanto,
namento de diferentes interpretações acerca entende-se que tais experiências são histó-
das experiências de sofrimento psíquico ricas e dotadas de sentidos assim situados.
produz e é produzido por conhecimentos e Tal como se percebe no relato de Daniel, sua
configurações de valores que precisam ser experiência se constituiu a partir da articu-
reconhecidos. Segundo Cardoso, Oliveira e lação dessas diferentes condições e da sua
Piani (2016, P. 97), aproximação com o modelo de interpretação
biomédica, porque ele já observou e perce-
todos os atores envolvidos no processo de beu “como o esquema funciona”. Sendo assim,
cuidado criam condições, estratégias e espa- sua experiência é, como sugeriu Scott (1999, P.
ços de participação, possibilitando a discus- 48), “ao mesmo tempo, já uma interpretação e
são e a problematização de todas as questões algo que precisa de interpretação”. Interessa,
que envolvem o contexto e o cotidiano impli- aqui, analisar como o que Coleman define
cados no cuidado. como expert ‘por experiência’ – em espe-
cial, o chamado usuário do sistema de saúde,
Nesse sentido, o estatuto do sujeito que diagnosticado e em tratamento – constitui
predomina nas relações estabelecidas nesse seu próprio saber e suas próprias teorias
contexto é dado prioritariamente pelo dis- sobre essa experiência e sobre as relações
curso biomédico. É o discurso biomédico que se estabelecem entre eles, profissionais,
que determina, por exemplo, as categorias instituições e, mesmo entre eles e as terapêu-
a partir das quais esses sujeitos serão defi- ticas utilizadas.
nidos ou classificados: usuários/as, profis- Outro diálogo ocorrido durante o traba-
sionais, familiares etc. E, particularmente lho de campo também ajuda nessa discussão.
em relação aos usuários/as, essa definição é Na conversa com Mateus, outro interlocu-
dada, sobretudo, através da prescrição diag- tor, homem jovem, de aproximadamente 25
nóstica. Contudo, percebe-se que essas são, anos, negro, pertencente às classes popula-
também, categorias precárias, uma vez que res, ele contou sobre sua primeira interna-
um sujeito pode ser usuário, familiar e, em ção em um hospital psiquiátrico e falou das
alguns casos, profissional da saúde mental, lembranças ruins que tinha daquele período.
ao mesmo tempo. Tais classificações podem Ele disse que já havia percorrido diversos
ser conjugadas de várias maneiras. Quanto serviços de saúde mental depois que saiu do
aos usuários/as, alguns conseguem romper hospital psiquiátrico, e já tinha feito uso de
com a prescrição dada pelo diagnóstico, e até medicamentos de todos os tipos e terapêuti-
fazer deslocamentos, ainda que precários, a cas diversas (incluindo as de ordem religio-
partir de alguns requisitos, como saber falar sa), até que, em um determinado momento
em público, pertencer a uma classe social de sua vida, uma psiquiatra lhe prescreveu
mais favorecida economicamente e compar- um medicamento que fez com que se sen-
tilhar um conjunto de expressões/palavras tisse melhor. Ele não sabia dizer exatamente
tidas como ‘científicas’, tal como a nomen- o que a psiquiatra tinha avaliado, tampouco
clatura médica, por exemplo. a que saber específico tinha recorrido para
Dessa maneira, seria possível pensar que tal prescrição. O que sabia era que ela havia
todas as pessoas, em suas diferentes posi- lhe feito uma prescrição medicamentosa que
ções nesse contexto, são experientes, visto havia aliviado seus sintomas.
que, cada uma à sua maneira e em circuns- Diante de suas experiências, Mateus en-
tâncias específicas, experimenta-se em suas tendia que a prescrição e a gestão do uso

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dos medicamentos era uma experimentação, nas práticas assistenciais. Caso contrário, a
tanto para os/as usuários/as como para os/ descoberta dos psicofármacos, por exemplo,
as prescritores/as. Nesse sentido, ambos es- poderá determinar outra relação dos/as usu-
tariam no mesmo patamar de experimenta- ários/as com as instituições (possibilitando,
ção, distintos apenas na especificidade e na de acordo com algumas interpretações, a
hierarquia de seus saberes. Ele disse: desospitalização), mas não desencadeará
mudanças nessas relações de poder, uma vez
O médico ainda tem um poder muito grande, e eu que o ‘louco’ seguirá sendo o ‘louco’ e suas
acho que, em psiquiatria, por mais que ele saiba, experiências acabarão sempre sendo inter-
ele também não sabe muita coisa. Eles fazem um pretadas a partir de uma razão psicopatoló-
laboratório com a gente, eles vão dando esse re- gica, como apontou Basaglia (2005).
médio, esse remédio... Ah, se funciona, tudo bem! A discussão sobre o uso de psicofármacos
Se não, eles tentam... é complexa, tensa e intensa, e sua análise ul-
trapassa os limites e objetivos deste artigo.
O argumento de Mateus indica uma Ainda assim, destaca-se que a terapêutica
problematização do saber psiquiátrico medicamentosa esteve presente de forma
(FOUCAULT, 1997). Ele reconhece que ‘o médico significativa no contexto investigado e, tal
tem um poder muito grande’, mesmo que como mostram os relatos apresentados, ela
esteja no mesmo patamar de experimenta- não está reduzida à prescrição, à gestão e aos
ção que os/as usuários/as, uma vez que ‘ele seus usos, mas também a questões de poder
também não sabe muita coisa’. Seu argu- e controle mais amplas.
mento também aponta que, tal como propôs Mesmo considerando a importância dos
Foucault (1997), o saber psiquiátrico, ao insti- psicofármacos como uma das terapêuticas
tuir, em determinado momento histórico, a possíveis no contexto da assistência psiqui-
doença mental como seu objeto, pressupôs átrica, a manutenção de sua centralidade
que ela deveria ser submetida a um trata- no contexto da reforma psiquiátrica brasi-
mento que lhe correspondesse. Entretanto, leira precisa, no mínimo, ser relativizada.
para Mateus, tanto o saber psiquiátrico Outrossim, parece interessante pensar em
quanto a terapêutica medicamentosa se como uma política pública, que pretende
ocupam de objetos imprecisos e, por isso, apostar no sujeito e em sua autodetermina-
demandam um exercício de experimenta- ção (ou ‘autonomia’, tal como aparece nos
ção. Neste sentido, usuário/a e profissional discursos em torno dos processos de de-
partilham experiências e experimentações, sinstitucionalização ou desospitalização),
a partir de diferentes discursos, modelos na subjetividade e na palavra, ainda investe
interpretativos e em processos relacionais. subjetiva e materialmente nos psicofárma-
Como discutido até aqui, esses processos cos, representantes de um regime eminente-
são constituídos em relações de poder, e é mente farmacológico, objetivante e redutor
no contexto destas relações de poder que da experiência social e subjetiva dos sujeitos.
a experiência de sujeitos acometidos por Uma das possibilidades de reflexão sobre
algum tipo de sofrimento, aflição ou pertur- esse aspecto encontra respaldo em Foucault
bação tende a ser objetivada e naturalizada (2009). Ao apresentar uma história das prá-
como um evento estritamente biológico. ticas coercitivas como dimensão política,
Compreender essa dimensão é importante o autor mostra que as mesmas, agenciadas
para admitir que a complexidade e a singu- por uma micropolítica constituída na ma-
laridade das experiências sejam contempla- quinaria institucional, além de produzirem
das no âmbito da política pública de saúde relações de submissão, fabricam corpos
mental, especialmente em sua execução dóceis e corpos/máquinas que interessam

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Loucos/as, pacientes, usuários/as, experientes: o estatuto dos sujeitos no contexto da reforma psiquiátrica brasileira 281

aos jogos de poder da sociedade, tal qual se enfrentamento à experiência de ouvir vozes.
inscreve no ponto de vista da economia e da Tal como apontam Romme et al. (2010), o mo-
política. Assim, o poder não exerceria apenas vimento dos ouvidores de vozes surgiu na
a função de repressão e exclusão, pois seria Holanda, em meados dos anos 1990. Nos anos
muito frágil. O poder é dotado de uma positi- seguintes, se desenvolveu no Reino Unido,
vidade que, ao contrário de impedir o saber, onde o movimento é muito forte, e também na
o produz, a ponto de transformar aquilo que Alemanha, na Itália e em outros países euro-
seria um ‘movimento de controle-repressão’ peus. Tal movimento realiza encontros regio-
em ‘controle-estimulação’ (FOUCAULT, 2009). nais, nacionais e internacionais, e baseia-se,
Assim, sendo o sujeito o alvo da manifesta- sobretudo, na formação de grupos de ajuda
ção desses micropoderes, é possível observar mútua, coordenados tanto por profissionais
que a terapêutica medicamentosa, para além como por ouvidores de vozes.
de um aparente cuidado médico, remete às Segundo Cardano e Lepori (2013), um
diferentes faces do poder e do controle. ponto central para os ouvidores de vozes é
No contexto investigado, foi possível per- o fato de rejeitarem a etiqueta de ‘loucos’, de
ceber que, de alguma maneira, em meio às ‘esquizofrênicos’ e proporem para si mesmos
transformações da assistência psiquiátrica serem ‘ouvidores de vozes’, ou seja, pessoas
no Brasil, se deixou de controlar os loucos dotadas de certa capacidade e portadoras de
através do aparato asilar, na sua estrutura uma experiência singular, a de ouvir vozes.
física – ou seja, entre os muros dos hospi- Tais grupos tendem a valorizar, desta forma,
tais psiquiátricos – e se passou a controlar a as experiências e os conhecimentos dos su-
‘loucura’ (ou, do ponto de vista biomédico, a jeitos, seja em suas experiências nas redes de
doença) através do imperativo da terapêuti- sociabilidade individuais, seja na rede ins-
ca medicamentosa. titucional, constituída por um movimento
Contudo, as análises apontam para a re- internacional que os agrega.
levância das experiências desses sujeitos- Nesse sentido, o movimento confere vi-
-usuários/as dos serviços e da biomedicina, sibilidade aos sujeitos, legitimidade às suas
denominados aqui ‘experientes’. Tal como interpretações sobre a experiência de ouvir
foi percebido, é através destas experiências vozes e, de certa forma, impacta a política
que vão se constituindo estratégias capazes pública nos países em que se desenvolve. Ao
de subverter e/ou possibilitar outras apro- considerar as estratégias destes sujeitos para
ximações com o sofrimento e as aflições, e enfrentar a experiência de ouvir vozes, o
suas possíveis terapêuticas. Considerar com movimento propõe que os ouvidores devem
seriedade tais experiências permite ampliar reconhecer/aceitar suas experiências com as
a compreensão das relações de poder pre- vozes, buscar estratégias para lidar com elas,
sentes no contexto da reforma psiquiátrica tentando compreender seus significados e
brasileira e conferir um estatuto epistemoló- suas origens. Muitos sujeitos ouvidores de
gico ao saber produzido pelos sujeitos. vozes recorrem aos cuidados biomédicos,
Reconhecem-se, também, outras ex- fazem uso de psicofármacos; outros não, tal
periências que auxiliam nessa discussão, como apontam Romme et al. (2010), Cardano
algumas adquirindo uma dimensão mais e Lepori (2013) e Coleman (2004).
coletiva e mesmo institucionalizada, como No Brasil, os estudos de Barros e Serpa Jr.
a do Movimento dos Ouvidores de Vozes (2014) e Muñoz (2009) também apontam para
(Hearing Voices Network). Ao apoiar-se a importância de considerar a experiência
na experiência dos sujeitos, o movimen- vivida pelos sujeitos que ouvem vozes. A
to busca romper com a hegemonia do partir de pesquisas inspiradas na experiência
modelo biomédico e construir estratégias de holandesa de grupos de ouvidores de vozes,

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282 ANDRADE, A. P. M.; MALUF, S. W.

os/as autores/as destacam, entre outros as- da reforma psiquiátrica brasileira a serem
pectos, a importância de problematizados, tais como os diferentes
saberes produzidos nesse contexto.
[...] dar voz aos que ouvem vozes como uma Entende-se que tal problematização ope-
estratégia clínica que não está desarticulada raria um deslocamento importante dos su-
da política, pois tem no horizonte o objetivo jeitos-usuários/as nas relações estabelecidas
de disponibilizar um saber-fazer com as vozes nos serviços de saúde mental e permitiria
para todos que dele precisarem. (MUÑOZ, 2009, que o conhecimento produzido por eles em
P. 8). suas experiências de adoecimento e trata-
mento fosse agregado aos demais saberes já
Além disso, apontam para o fato de que, instituídos.
diante da possibilidade de estabelecer outras Recorreu-se ao conceito de experiência
relações com tal experiência, para argumentarmos que a expressão ‘expe-
rientes’ abrange aspectos que se referem às
[...] muitas pessoas ouvidoras de vozes não se possibilidades abertas pela reorientação da
incomodam com elas ou já encontraram suas assistência psiquiátrica no Brasil, não con-
próprias maneiras de lidar com elas fora da templadas na expressão ‘usuário/a’. A ideia
assistência psiquiátrica. (BARROS; SERPA JUNIOR, também foi demonstrar que existem outras
2014, P. 567). posições a serem conquistadas por tais su-
jeitos, em suas relações, entendendo que
Tal como discutido até aqui, o reconheci- eles fazem muito mais do que apenas ‘usar’
mento da importância das experiências dos os serviços de saúde mental. É através das
sujeitos e do saber produzido por eles na busca experiências que os conduzem aos serviços,
do alívio de seus sofrimentos possibilitaria um bem como dos ‘usos’ que fazem dos mesmos,
diálogo profícuo entre os diferentes protago- que tais sujeitos se constituem e constituem
nistas da reforma psiquiátrica brasileira e uma os serviços.
ampliação da compreensão da mesma. Entretanto, não se trata de uma mera
substituição de uma expressão por outra
que pareça mais correta, mas de uma in-
Considerações finais corporação do saber produzido pelos su-
jeitos em suas experiências nos serviços de
Considerando as análises realizadas durante saúde mental. Entende-se que é necessário
a pesquisa e as discussões aqui apresentadas, instituir, no âmbito da política pública de
buscou-se argumentar que priorizar a ex- saúde mental, um modo de relação capaz
periência de pessoas acometidas por algum de considerar com seriedade as experiên-
tipo de sofrimento, aflição e/ou perturbação, cias destas pessoas e, assim, atribuir um
que buscam os serviços de saúde mental, estatuto epistemológico ao conhecimento
permite vislumbrar aspectos importantes produzido por elas. s

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Loucos/as, pacientes, usuários/as, experientes: o estatuto dos sujeitos no contexto da reforma psiquiátrica brasileira 283

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ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE 285

Efeitos danosos do processo de trabalho em


um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e
Drogas
Harmful effects of the work process in an Alcohol and Drugs
Psychosocial Care Center

Kallen Dettmann Wandekoken1, Maristela Dalbello-Araujo2, Luiz Henrique Borges3

RESUMO Este artigo analisa de que forma os trabalhadores vivenciam os efeitos do processo de
trabalho em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Capsad). Foram realizadas
observações, entrevista coletiva e entrevistas em profundidade com os trabalhadores. Entre os
efeitos, destacaram-se desgaste, adoecimento, impotência de ação e esgotamento. Conclui-se
que estes afetam a capacidade de agir, já que, para colaborar na produção do sentido de vida
do outro, em muitos casos, o trabalhador não oferta nada para si, e isto os leva ao que Merhy
chama de combustão.

PALAVRAS-CHAVE Serviços de saúde mental. Recursos humanos. Esgotamento profissional.

ABSTRACT This article analyzes how workers experience the effects of the work process in an
Alcohol and Drugs Psychosocial Care Center (Capsad). Observations, collective interview and in-
depth interviews with workers were carried out. Among the effects, the most notable were wear,
sickness, powerlessness of action and exhaustion. It is concluded that these affect the capacity
to act, since, in order to collaborate in the production of the meaning of life of the other, in many
cases, the employee does not offer nothing for himself, and this leads them to what Merhy calls
combustion.

1 Universidade
KEYWORDS Mental health services. Human resources. Professional exhaustion.
Federal
do Espírito Santo (Ufes),
Departamento de
Enfermagem – Vitória (ES),
Brasil.
kallendw@gmail.com

2 Universidade Federal

do Espírito Santo (Ufes),


Programa de Pós-
Graduação em Saúde
Coletiva – Vitória (ES),
Brasil.
dalbello.araujo@gmail.com

3 Escola Superior de
Ciências da Santa Casa de
Misericórdia de Vitória –
Vitória (ES), Brasil.
luiz.borges@emescam.br

DOI: 10.1590/0103-1104201711223 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 285-297, JAN-MAR 2017
286 WANDEKOKEN, K. D.; DALBELLO-ARAUJO, M.; BORGES, L. H.

Introdução Schraiber (2008, P. 323) afirmam que processo


de trabalho em saúde
À medida que a sociedade ocidental se de-
senvolvia, frente às transformações ocasio- diz respeito à dimensão microscópica do coti-
nadas pela revolução industrial, o trabalho diano do trabalho em saúde, ou seja, à prática
foi colocado como mercadoria principal dos trabalhadores/profissionais de saúde in-
e indutora do processo de acumulação ca- seridos no dia-a-dia da produção e consumo
pitalista. Assim, o trabalho passou a ser de serviços de saúde.
elemento central no entendimento da so-
ciedade e do indivíduo na dinâmica social Assim, segundo Faria e Dalbello-Araujo
(CARDOSO, 2011). (2010),a finalidade do processo de trabalho
Para Marx (1996, P. 297), o trabalho é em saúde seria, por exemplo, a cura, a rea-
bilitação e a promoção da saúde, que coe-
um processo entre o homem e a natureza, um xistem em diferentes formas de produção
processo em que o homem, por sua própria de cuidado. Ressalta-se que, com base em
ação, media, regula e controla seu metabolis- Merhy, Feurwerker e Cerqueira (2010), a pro-
mo com a natureza. dução do cuidado deve ser compartilhada
por todos os trabalhadores de um serviço
Para o autor, a sobrevivência humana de saúde, uma vez que a todos são válidos os
depende da interação do indivíduo com a na- atos de acolhimento e de escuta, o mostrar-se
tureza, de modo que os elementos desta são interessado, de forma a possibilitar o encon-
modificados sempre com um propósito, uma tro que seja de conforto, a partir de olhares
finalidade. Assim, o processo de trabalho é diferenciados. Campos (2007, P. 22) afirma,
uma condição da existência humana e é por ainda, que “o trabalho em saúde assenta-se
meio dele que o homem se constitui, social sobre relações interpessoais todo o tempo”.
e culturalmente. Ele ainda esclarece que o Esses encontros são, dessa forma, essen-
processo de trabalho é a atividade humana ciais no processo de trabalho em saúde, e
(gasto de energia) que transforma matéria- particularmente importantes nos Centros
-prima em produto, a partir do uso de meios de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas
e instrumentos. Entende-se que a história (Capsad), uma vez que este é um serviço
da humanidade passa pelo trabalho e pelas de referência na rede de atenção aos usuá-
transformações que ele realiza, de forma rios de substâncias psicoativas, tendo como
que compreender o processo de trabalho base as atividades terapêuticas e preventivas
se torna importante para a compreensão da à comunidade (BRASIL, 2003). Logo, são várias
sociedade e das relações sociais, inclusive no as possibilidades de atividades a serem ofe-
contexto do trabalho na área da saúde. recidas pelos Capsad, tais como o atendi-
No Brasil, teóricos como Maria Cecília mento individual, que inclui a medicação; a
Donnângelo e Ricardo Bruno Mendes- psicoterapia; a orientação; as atividades em
Gonçalves foram pioneiros ao introduzir a grupo; oficinas terapêuticas; visitas domici-
teoria marxista no campo da saúde. Mendes- liares etc. (BRASIL, 2003). Atividades essas que
Gonçalves (1992) formulou o conceito de pro- se baseiam em relações interpessoais e no
cesso de trabalho em saúde, que se refere encontro entre trabalhador e usuário.
ao modo de organização dos serviços, a fim Além disso, trabalhadores de Capsad vi-
de atender às necessidades de saúde dos venciam uma contradição entre duas políti-
usuários, ou, ainda, diz respeito à configu- cas: a Política Nacional sobre Drogas ligada
ração e ao reconhecimento de novas neces- à Segurança Pública (BRASIL, 2002) e a Política
sidades. Corroborando essa ideia, Peduzzi e de Atenção Integral aos Usuários de Álcool

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Efeitos danosos do processo de trabalho em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas 287

e outras Drogas, com foco na saúde pública, analisar os efeitos vivenciados pelos trabalha-
ressaltando a necessidade da diversidade e da dores, tal escolha se deu pela crença de que a
pluralidade de ações neste campo (BRASIL, 2003). precariedade da rede de atenção em álcool e
Tal situação impacta negativamente no traba- drogas contribuía para esses achados.
lho a ser realizado no Capsad, dificultando as A coleta de dados foi realizada entre os
relações interpessoais, que são essenciais ao meses de janeiro e abril do ano de 2014, a partir
cuidado (WANDEKOKEN; DALBELLO-ARAUJO, 2015). de três técnicas: observação do cotidiano, das
A temática da dependência química está reuniões de equipe e das assembleias com os
diretamente vinculada a questões sociais, usuários; entrevista coletiva; e entrevistas em
como a criminalidade, a prostituição, a situ- profundidade. A técnica de observação foi im-
ação de rua, o tráfico de drogas, a Síndrome portante para identificar os comportamentos
da Imunodeficiência Adquirida (Aids), não intencionais ou as reações sutis e, dessa
entre outras (KESSLER; PECHANSKY, 2008). Fato é forma, explorar questões que as pessoas não
que o profissional dedicado à assistência ao se sentem à vontade para discutir, permitindo
usuário de substâncias psicoativas não deve registrar o comportamento no contexto em
se preocupar apenas com o uso de drogas, que ele ocorre (DALBELLO-ARAUJO, 2008). Conforme
redução de danos e/ou abstinência, mas deve Dalbello-Araujo (2008), a entrevista coletiva é
percebê-lo como um indivíduo que tem uma usada quando se pretende facilitar o acesso
história, uma trajetória, desejos, crenças, aos diferentes pontos de vista dos participan-
valores e potencialidades, o que torna este tes. A entrevista em profundidade foi utilizada
trabalho ainda mais complexo. com 13 trabalhadores, tendo como questão de
Tendo isso em vista, neste artigo, ana- partida ‘O que você acha de trabalhar aqui?’.
lisam-se os efeitos danosos identificados Todos os dados foram transcritos e discutidos
pelos trabalhadores no processo de trabalho com a utilização da técnica de análise temática
de um Capsad. (BARDIN, 2009).
Ressalta-se que os participantes assi-
naram de forma voluntária o Termo de
Métodos Consentimento Livre e Esclarecido, através
do qual tiveram a garantia do sigilo de iden-
Foi realizada uma pesquisa qualitativa, com tidade e das informações prestadas. Assim,
todos os 28 trabalhadores do serviço, in- a identificação dos trechos selecionados
cluindo enfermeiros, psicólogos, assistente aconteceu de três formas: ‘Trabalhador’ ou
administrativo, motorista, recepcionistas, ‘Trabalhador em roda’, quando teve relação
vigilantes, auxiliares de serviços gerais, far- com depoimentos; e ‘Diário de campo’,
macêutico, educadores físicos, terapeuta ocu- quando o trecho de observação da autora
pacional, gerente, técnicos de enfermagem, baseou-se na observação do cotidiano.
assistentes sociais e médicos, visto que todos Foram atendidas as prerrogativas da
intervêm na produção do cuidado do serviço Resolução nº 466/12 do Conselho Nacional
de saúde (MERHY; FEUERWERKER; CERQUEIRA, 2010). de Saúde, sendo aprovada a pesquisa, sob o
Para a escolha do local da pesquisa, foram nº 16771113000005060, pelo Comitê de Ética
analisadas as informações municipais recen- em Pesquisa.
tes das sete cidades da região metropolitana
onde foi realizada a pesquisa a respeito da
rede de atenção aos usuários de substâncias Resultados e discussão
psicoativas. Optou-se, assim, por pesquisar
um município de 420 mil habitantes, com Entre as tantas questões observadas no
apenas um Capsad. Como o foco estava em campo de pesquisa, evidenciaram-se

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288 WANDEKOKEN, K. D.; DALBELLO-ARAUJO, M.; BORGES, L. H.

diversas dificuldades apresentadas pelos o referencial da análise temática (BARDIN, 2009),


trabalhadores para entenderem os aconteci- os dados coletados foram divididos em ca-
mentos do seu exigente ofício. Destaca-se o tegorias, conforme os efeitos identificados:
fato de o cotidiano de trabalho ser marcado o desgaste, o medo, o adoecimento, o senti-
por intensas demandas de cuidado, por parte mento de inutilidade, a impotência de ação e
dos usuários com sintomas de abstinência ou o esgotamento.
em crise. Isto torna o fazer árduo, de forma
que, entre os efeitos estão o desgaste, o medo, Desgaste
o adoecimento, o sentimento de inutilidade e
a impotência de ação, que acabam levando ao
esgotamento. Esses efeitos produzem o que O grupo exige muito, é cansativo [...] No grupo,
Merhy (2004) descreve como combustão. Ainda é preciso ficar atenta a tudo ao que acontece.
conforme Merhy (2013), a combustão é o efeito (Trab3).
decorrente dos fazeres no trabalho em saúde,
que consomem vida em ato (no momento em
que o trabalho é realizado), uma vez que o tra- O serviço no Capsad é muito desgastante, ‘suga
balhador, ao realizar o cuidado em saúde, deve muito’. (Trab8).
ofertar o trabalho vivo para dar sentido à vida
do outro. Assim, para auxiliar na produção do
sentido de vida do outro, oferecendo energia É muito difícil trabalhar com adolescentes... é
vital, em muitos casos, ocorre o consumo do preciso ter habilidade para manejar o grupo. O
trabalhador quando, em não restando nada trabalho acaba sendo mais desgastante, você
para si, ele, de fato, entra em combustão. Ao fica muito cansado. (Trab6).
experimentar estes efeitos, o trabalhador não
vislumbra possibilidades para gerar mudanças
no trabalho, de forma que vivencia um distan- É muito cansativo, a cabeça fica cansada. É igual
ciamento afetivo (paralisia e automatismo). Tal quando você está estudando muito e parece
conceito se vincula à especificidade do trabalho que o corpo também dói. Tem dia em que chego
em saúde, visto que, para o autor, este esforço exausto em casa. (Trab2).
de dar sentido à vida de outro, emprestando-
-lhe o desejo, pode levar à combustão, quando Como se vê, o desgaste foi evidenciado em
não são tomadas medidas de compartilhamen- várias circunstâncias de trabalho no Capsad,
to e análise do processo de trabalho. seja ao coordenar um grupo com adultos, com
Vale a pena ressaltar, entretanto, que esta adolescentes ou no serviço cotidiano. Observa-
ideia em muito se assemelha ao conceito de se que, em todas as situações elencadas, o en-
sofrimento psíquico postulado por Dejours contro com o outro foi essencial, de forma a
(1994), que vem, desde 1980, estudando, so- exigir do trabalhador o estabelecimento de
bretudo no trabalho fabril, os efeitos da or- relações interpessoais e o envolvimento de sua
ganização industrial para os trabalhadores, subjetividade (MERHY, 2002), o que representa
visando a uma melhor compreensão da dor fonte de desgaste, nos depoimentos.
e do sofrimento. Também faz eco à síndrome Para Onocko e Campos (2006), o desgaste de
de Burnout, uma das consequências do estado um trabalhador da saúde é grande, uma vez que
de constante tensão emocional e estresse este se encontra em permanente contato com
crônico provocado por condições de trabalho a dor e com o sofrimento. Os autores afirmam,
desgastantes, estudada no Brasil, especial- ainda, que os trabalhadores da saúde não per-
mente entre professores (CARLOTTO, 2002). cebem que gastam suas vidas na defesa da vida
Para a organização da discussão, seguindo dos outros. Assim, o desgaste é um sinal de

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Efeitos danosos do processo de trabalho em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas 289

combustão, como se observa na fala “[...] parece mesa – sinais claros de combustão.
que o corpo também dói. Tem dia que chego Nesse ponto, destaca-se que a produção
exausto em casa” (Trab4). do cuidado no Capsad é pautada no encontro
e no estabelecimento de vínculos, no entanto,
Estresse a combustão não favorece esta produção e,
assim, implica em dificuldades no encontro
entre trabalhador e usuário.
Tem que ter muito equilíbrio para lidar com os
pacientes de dependência química porque eles Medo
são muito instáveis, é muito difícil. Igual ao dia
em que eu me estressei muito, o paciente mani- Tal efeito foi ressaltado por aqueles que rea-
pulador... me acusava de ter solicitado a interna- lizam atividades externas, tais como levar os
ção dele para o Capsad se livrar dele [...] Eu me usuários da atenção diária para passeios:
estressei muito, sabe? Lidar com dependência
química é muito difícil. (Trab12). [...] ‘é preciso dois profissionais para levá-los
[os pacientes], já que é perigoso um sozinho’.
No depoimento, observa-se que as situa- O outro disse: ‘Eu tenho medo de sair de carro
ções de instabilidade dos usuários, inerentes com eles... não sei o que podem fazer, quem eles
ao tratamento da dependência química, são podem encontrar na rua’. Já outro disse: ‘O que
fontes de estresse para os trabalhadores, pode acontecer fora, acontece aqui dentro [no
uma vez que vivenciam estas situações dia- Capsad] também’. (Trabalhadores em roda).
riamente. Assim, a afirmação “você tem que
ser uma pessoa muito equilibrada” (Trab1) Ressalta-se a frase “O que pode acontecer
destaca que vivenciar estas situações é, de fora, acontece aqui dentro também”, uma vez
fato, difícil e requer certo preparo do traba- que amplia as situações de medo e, assim, de
lhador para que não haja a combustão. combustão, devido à exigência de perma-
Há, também, como no caso abaixo, o es- nência em estado de atenção. Grande parte
tresse proveniente das relações interpesso- dos depoimentos relacionados ao medo se
ais entre os trabalhadores: referiu à atividade de internação compulsó-
ria, como descrito abaixo:
O trabalhador, então, quis me falar sobre uma
reunião em que ele ‘explodiu’. Disse que, por falta [...] quem está na internação compulsória está
de comunicação da recepção, ele passou por uma correndo risco de morte, pois não se sabe se o
situação constrangedora, em que o paciente psi- paciente está com uma faca! Você ‘tá na frente
quiátrico reclamou de sua conduta na gerência da batalha. (Trab13).
[...] Até socou a mesa e alterou a voz para mos-
trar sua indignação. (Diário de campo).
Mas, eu sei que é muito perigoso, tem muito risco
Qualquer trabalhador está sujeito a vi- pr’a gente, porque a gente não sabe se o cara ‘tá
venciar episódios em que há conflitos na armado, né?, como ele está. Não tem uma escol-
comunicação entre os membros da equipe. ta, nada... Teve o caso de um usuário, que a gente
Entretanto, o relato acima ressalta uma in- foi internar e que ele fazia sinal de que queria se
dignação frente ao fato ter ocorrido repe- cortar, cortar os punhos. Ficamos morrendo de
tidas vezes, ainda mais se relacionando ao medo. Eu disse: ‘Já pensou se ele pega uma faca
cuidado em saúde mental, que demandaria e tenta se matar? O que a gente vai fazer?’, e X
maior atenção e empatia. Como se observa, o disse: ‘O pior é se ele pega uma faca e tenta nos
trabalhador diz ter ‘explodido’ e ter socado a matar, né?!’. (Trab5).

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 285-297, JAN-MAR 2017


290 WANDEKOKEN, K. D.; DALBELLO-ARAUJO, M.; BORGES, L. H.

Segundo Merhy (2013, P. 222), os trabalhado- dos problemas e certo desejo por mudança
res produzem “alívio nos outros, mas não têm – entretanto, extremamente limitado – para
nenhum alívio para olhar e repensar o tra- alterar a situação.
balho”. Neste sentido, é imprescindível que No depoimento acima, percebe-se, ainda,
existam formas de alívio para tais trabalhado- certa paralisia diante da impotência. Parece
res, de modo a aumentar-lhes a capacidade de que o diálogo e a escuta não foram conside-
agir. Há que se pensar em formas de articular rados como possíveis ferramentas de mu-
a rede intersetorial, de modo que haja maior danças frente às condutas do profissional em
segurança, e também em criar meios de pro- questão. Por isto, a espera por uma atitude
blematização das práticas para que esses tra- da gestão. E além disto, a gestão, personi-
balhadores articulem ferramentas frente às ficada na pessoa da diretoria, está sempre
demandas da internação compulsória. distante da assistência. Com este quadro,
Aponta-se a Educação Permanente em é muito difícil se atentar para as demandas
Saúde (EPS) como um possível caminho para do usuário e estabelecer “um compromisso
a transformação da produção do cuidado. permanente com a tarefa de acolher, respon-
A partir da EPS, o aprender e o ensinar sabilizar, resolver, autonomizar”, como pos-
são incorporados ao cotidiano do serviço tulado por Merhy (2002, P. 82).
(BRASIL, 2004). Compreende-se, assim, que a Em outra oportunidade, os trabalhadores
proposta da Política Nacional de Educação relataram a impotência de ação diante de
Permanente em Saúde (PNEPS) é atual e sua um caso:
implantação se faz necessária, mas sabe-se
que, para que isto ocorra, é preciso o en- Outro ponto de pauta foi o ‘caso do usuário X’.
volvimento de trabalhadores e de gestores. Neste momento, um profissional – técnico de re-
Ressalta-se, ainda, que a EPS se constitui em ferência de X – disse que não queria mais essa
estratégia para a reorganização do processo função, pois achava que já não dava conta da de-
de trabalho com base na problematização, manda e que não acrescentava mais ao paciente.
ou seja, vai muito além da ideia de oferta de (Diário de campo).
capacitações e cursos, e é uma proposta de
transformação frente a todos os efeitos que A princípio, concorda-se com Merhy (2002)
serão vistos a seguir. quando ele defende que deve haver, nas
equipes, os profissionais de referência para
Impotência de ação cada usuário, de forma que os trabalhadores
desenvolvam vínculos mais estreitos e, assim,
A ‘impotência de ação’ aparece sempre que os interpretem melhor suas demandas. Porém,
profissionais alegam que não há nada a fazer como se observa, as situações de impotência
para melhorar o atendimento burocratizado, parecem implicar em uma situação de para-
e não humanizado, realizado por alguns dos lisia, na qual o trabalhador prefere até deixar
trabalhadores: “[...] isso é muito ruim para de exercer sua função por não saber o que
os pacientes! Ficamos inconformados! Mas fazer. Ressalta-se que tal desistência não foi
vamos fazer o quê? X [a gestão] diz que é assim sequer analisada pelo grupo que optou pela
mesmo” (Trabalhadores em roda). troca do trabalhador que exercia a função de
Constata-se, assim, que as situações técnico de referência do usuário em questão.
de impotência se expressam nas relações A paralisia observada parece decorrer da
interpessoais – seja entre trabalhador e combustão vivenciada pelos trabalhadores,
usuário ou entre os próprios trabalhadores refletida na falta de implicação da equipe
– e nas relações intersubjetivas – relacional frente à produção de cuidados. Assim, pode
e afetiva. Há, aparentemente, consciência ser questionada a existência, neste serviço,

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Efeitos danosos do processo de trabalho em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas 291

de sujeitos militantes, como descrito por conforme descrito por Merhy (2002). Segundo
Merhy (2004). Para nós, estar implicado é ser Franco e Merhy (2005), há ideias que associam
ativo, é se colocar como alguém que afeta e a complexidade tecnológica à qualidade do
é afetado, como alguém que produz e que é cuidado, configurando a ilusória imagem
produzido; se colocar como um trabalhador, de resolutividade. Sabe-se, no entanto, com
como um sujeito. É preciso abrir passagem base nestes autores, que o processo de tra-
para novos sentidos, até porque, neste con- balho mais relacional implica em alta sofis-
texto, a repetição já não funciona mais. ticação e exige grande energia por parte dos
Ao discutir sobre a impotência, é preciso trabalhadores. Até porque esta complexida-
ressaltar que, segundo Merhy (2002, P. 61), o de se baseia nas redes de relações focadas
trabalhador tem um alto grau de liberdade nos saber-fazer dos trabalhadores e não no
na produção do cuidado em saúde, de forma aporte tecnológico. Assim, concorda-se que
a exercer certo autogoverno de suas práticas. o olhar atento, a escuta, o toque operam em
Assim, para o autor, considerando a micro- conjunto com os saberes e, sem dúvida, co-
política do trabalho vivo, não cabe a noção de laboram na constituição de maior resolutivi-
impotência, uma vez que, se dade do trabalho em saúde (FRANCO, 2013).
Além dessas questões, percebe-se, no
o processo de trabalho está sempre aberto à depoimento, certo sofrimento e, de fato, a
presença do trabalho vivo em ato, é porque ele combustão, quando o trabalhador afirma
pode ser sempre ‘atravessado’ por distintas “Eu não aguento não falar o que penso”. Esta
lógicas que o trabalho vivo pode comportar. fala aponta que o trabalhador parece não ter
implicação com a escuta, no encontro com
Neste sentido, deve-se considerar que a o outro, e que ele apenas suporta vivenciar
criatividade é uma das possibilidades para esses encontros no cotidiano de trabalho, o
tornar os trabalhadores menos impotentes, que repercute na produção de um cuidado
de forma que possam inventar novos proces- menos acolhedor.
sos de trabalho.
Adoecimento
Sentimento de inutilidade

Disseram que muitos ali vivenciam processos de


[...] quando vim pra cá [para o Capsad], me sen- adoecimento devido à demanda e pelas condi-
ti inútil... a dinâmica é bem diferente do hospital ções de trabalho; que não é só o salário. (Diário
porque, no hospital, você tem que ficar o tempo de campo).
todo em atenção, porque, em um momento, pode
estar tudo bem e, em outro, cai um ônibus, tem
um acidente, e aí, lota o pronto socorro. [...] tra- [...] meu problema de audição é genético, mas,
balhar com álcool e drogas é difícil porque eu não com certeza, foi piorado devido ao estresse e an-
aguento não falar o que penso [...] Às vezes, vem siedade. Principalmente, pelas dificuldades de
um paciente que quer falar comigo, quer desa- relacionamento com a equipe. (Trab2).
bafar... e eu não aguento, não! Eu falo o que eu
penso e pronto! (Trab11).
[...] o motivo de eu ter ficado de atestado nesse
Percebe-se que o sentimento de inuti- tempo tem muito a ver com o Capsad... eu não
lidade vivenciado pelos trabalhadores se estava aguentando mais. (Trab9).
relaciona ao seu fazer muito distinto dos
procedimentos e técnicas hospitalares, Foram vários os depoimentos que apontaram

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292 WANDEKOKEN, K. D.; DALBELLO-ARAUJO, M.; BORGES, L. H.

o adoecimento como um efeito do processo de Capsad que estão em tratamento intensivo):


trabalho no Capsad. Sabe-se que o trabalho,
por si só, não é fator de adoecimento, mas, sim,
determinadas condições e contextos nos quais Tem dia que xingam, que ofendem os profissio-
é realizado, o que pode implicar em situações nais. O convívio é diário, então, é mais difícil.
que interferem diretamente na produção do (Trab6).
cuidado e só reforçam a constatação de que a
combustão é vivenciada no cotidiano de grande
parte dos trabalhadores do serviço. Assim, [...] um dos trabalhadores me explica que o
ressalta-se a necessidade de serem pensadas usuário havia o tratado mal, ofendido, e ele não
formas de gerar alívio aos trabalhadores para aguentava mais, por isso, estava saindo da aten-
que estes produzam vida em si (para ofertar ção diária. (Diário de campo).
ao outro) e para si (para ofertar a si), conforme
Merhy (2013).
Já um efeito, e único identificado, que tem [...] ninguém gosta de ficar na atenção diária, só
a ver com o aumento da capacidade de agir fazem por falta de opção [e riram]. [Perguntei
é a ‘realização profissional’, mencionada por o porquê.] Vou te colocar lá um mês, pra você
alguns trabalhadores: saber. [O outro disse] Ah, eles são muito de-
sobedientes, são muito agressivos, só arrumam
É muito bom quando você vê o paciente, você vê confusão... (Trabalhadores em roda).
a mudança dele... isso traz realização, sabe? O
envolvimento que tem aqui, ele é muito intenso... Observa-se que o encontro com o usuário na
tanto pro que é positivo quanto pro que é nega- atenção diária é penoso. Todos os profissionais
tivo... é tudo muito intenso... muito forte... então, escalados para trabalhar na atenção diária, sem
eu gosto disso, sabe? É como se eu me sentisse exceção, disseram não gostar de nela atuar. O
mais viva! (Trab4). que mais impressiona é o fato desta atividade
ter grande importância, pois se trata do encon-
tro com usuários em cuidado intensivo. Assim,
Eu amo trabalhar no Capsad! Nunca trabalhei com atenta-se para a fala dos trabalhadores, quando
saúde, mas amo trabalhar com dependência quími- são perguntados a respeito de trabalhar na
ca [...] o que importa é o paciente e, por mais que atenção diária. Eles responderam, juntos, que:
depois da consulta ele vá embora e não volte, algo
já mudou nele e ele não é mais o mesmo. (Trab10). É estressante, frustrante, desgastante, desesti-
mulante, ‘broxante’! [...].

[...] eu sou do povo, gosto de estar com eles, con-


versar com eles, gosto da assistência. (Trab3). Eles gritam, ofendem, são agressivos [...].

Esgotamento Preparo o material. Às vezes, chego com tudo ‘ar-


mado’. Aí, um ‘vem pra dormir’, ninguém presta
Destaca-se, a partir do efeito esgotamento – atenção... Então, é assim, é frustrante! [...].
que engloba frustração, desgaste e estresse
–, o caso dos membros da equipe que dizem
não suportar o trabalho na atenção diária A gente pergunta e ‘cri, cri’. [E outro trabalha-
(modalidade de atendimento diário baseada dor disse:] ‘Por isso, não pergunto nada, falo so-
em oficinas terapêuticas para os usuários do zinha...’. (Trabalhadores em roda).

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Efeitos danosos do processo de trabalho em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas 293

Os usuários em cuidado intensivo frequen- leves, que se referem às relações construídas


temente são aqueles que ainda estão em uso entre duas pessoas, em ato, e produzem uma
continuado da substância e são orientados a relação de vínculo e de aceitação – conforme
permanecerem sem o uso da droga por um descreve Merhy (2002) –, imprescindíveis ao
dia inteiro – caso contrário, não poderão encontro no Capsad.
permanecer na atividade do Capsad. Assim, Outra questão que se coloca na cate-
compreende-se a dificuldade que é estar em goria esgotamento é mencionada pelos
abstinência, que os leva à agressividade e à trabalhadores:
falta de interesse por qualquer atividade, as-
pectos inerentes a este estado. No entanto, O PTS [Projeto Terapêutico Singular] é feito,
estas questões implicam no esgotamento do mas nunca é avaliado. Outro trabalhador disse:
trabalhador, que passa a vivenciar, no cuidado ‘Tem paciente na atenção diária, de forma inte-
intensivo, uma atividade que o exaure. gral, há mais de seis meses, porque o PTS nun-
Além disso, percebe-se, também, que a di- ca foi avaliado. A atenção diária está inchada’.
ficuldade da escuta frente às demandas dos (Trabalhadores em roda)
usuários e a dificuldade de tratá-los como su-
jeitos – com desejos, crenças e valores – tem Cada usuário do Capsad deve ter um
implicado em prejuízos, não só para o usuário Projeto Terapêutico Singular (PTS), isto é,
como para o trabalhador, que se sente limi-
tado para lidar com tais questões, que o têm um conjunto de atendimentos que respeite a
levado ao automatismo no encontro com o sua particularidade, que personalize o atendi-
outro – o que descreve as situações nas quais mento de cada pessoa na unidade e fora dela,
o trabalhador passa a ser indiferente e se dis- e proponha atividades durante a permanência
tancia do cotidiano, deixando-se levar pelas diária no serviço, segundo suas necessidades.
ocorrências sem se vincular e pressupondo (BRASIL, 2004, P. 16).
a passividade do usuário, como se vê na fala
“Por isso, não pergunto nada, falo sozinha...” PTS deve ser realizado no acolhimento
(Trab8). E estas situações não são nada anima- do usuário no serviço e deve ser monitorado
doras, uma vez que os trabalhadores chegam periodicamente pelo profissional de referên-
a ver os usuários como potenciais estressores, cia, junto com o usuário (BRASIL, 2004).
o que torna o encontro exaustivo. Assim, o fato de o PTS nunca ser avalia-
Assim, ao vivenciar o esgotamento por meio do é difícil de compreender. Percebe-se que
do automatismo, o trabalhador contribui para o encontro com o usuário, que está há tanto
que a produção do cuidado não seja centrada tempo na mesma atividade, só pode produ-
no usuário. E quando o profissional se distan- zir esgotamento, não só no trabalhador como
cia do cotidiano, outras questões passam a ter também no próprio usuário, que acaba por
prioridade, como o protocolo e o preenchi- manifestá-lo, seja pelos envolvimentos em
mento do prontuário, entre outros aspectos brigas ou em agressividade (nas palavras
contrários ao que Merhy (2002) sugere. Neste ou em gestos). Assim, o esgotamento e, con-
caso, fica claro que apenas o saber-fazer do sequentemente, a combustão contribuem
profissional importa, e assim, as ações centra- para um estado de paralisia, que o traba-
das no trabalhador fazem com que o usuário lhador acaba se distanciando afetivamente,
seja atendido com base em tecnologias duras mesmo estando presente no cotidiano do
(equipamentos, instrumentos, protocolos serviço, e, com isto, surgem situações como
etc.) e/ou leve-duras (conhecimentos es- estas observadas: usuários há mais de seis
truturados, dos diversos saberes da área da meses no mesmo tipo de cuidado e de abor-
saúde), sem que se dê atenção às tecnologias dagem sem, ao menos, uma avaliação. No

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294 WANDEKOKEN, K. D.; DALBELLO-ARAUJO, M.; BORGES, L. H.

entanto, essa questão não foi explicada pelos ao cuidado intensivo em um Capsad.
trabalhadores. No entanto, segundo Merhy (2005), não
Observa-se que os encontros na atenção se pode acreditar que a baixa eficácia das
diária, em sua maioria, exaurem o trabalha- ações em saúde se relaciona apenas à falta
dor, de forma que este, quando não está nesta de competência dos trabalhadores, que pode
atividade, demonstra grande alívio. Refletiu- ser suprida por meio de cursos. Essa seria
se, então, sobre o fato de estes trabalhadores uma visão simplista da questão, que geraria
irem todos os dias para esta atividade, já apenas pequenas mudanças no cotidiano de
exaustos, frustrados e na incerteza do que produção do cuidado. Ao contrário, Merhy
acontecerá, e poderem vivenciar episódios (2005) aponta que o trabalhador deve ser
de surtos, crises ou convulsões de usuários. protagonista no processo de transformação
Nesses casos, o trabalhador responsável pela da sua prática. Do mesmo modo, Carvalho
atividade do dia terá que atuar diretamente e Ceccim (2009) afirmam que o trabalhador
no caso, usando suas habilidades a fim de deve avaliar sua atuação e direcionar críticas
ofertar um cuidado singular que seja pro- em relação a ela.
motor de vínculo, de acolhimento, de escuta Destaca-se que, paradoxalmente, também
e de ressignificação, como propõe Merhy se percebe certa realização pessoal nos tra-
(2002). Mas, como? balhadores, com o desenvolvimento das
Nesse ponto, destaca-se, ainda, que outro atividades, mas esta precisa ser potencia-
motivo de esgotamento na atenção diária se lizada. Observa-se que, quando o trabalho
relaciona com a suposta falta de interesse em saúde tem como efeito esta realização, o
dos usuários levantada pelos trabalhadores trabalhador apresenta maior grau de potên-
do Capsad, o que gerou uma série de discus- cia para dar conta de suas atividades e, como
sões ao longo do campo de pesquisa: consequência, se sente mais satisfeito, o que
favorece a criação de vínculo e repercute
Ninguém quer ficar na atenção diária; uns não positivamente na produção do cuidado. No
querem mesmo e outros, apenas suportam. [...] entanto, pode-se afirmar que, para que haja
os pacientes confrontam muito os profissionais, bem-estar no trabalho, não se faz necessária
eles não têm interesse. Um deles explicou: ‘Antes a satisfação constante, apenas é preciso que
os pacientes eram mais novos e gostavam das haja esperança, metas, desejos.
atividades que a gente levava, mas agora eles Sabe-se que o desejo faz com que os traba-
são mais velhos e não querem fazer atividades lhadores tenham maior capacidade para agir,
como ‘adedonha’. Dizem que é idiotice e só gos- em concordância com o que afirma Franco
tam de atividades mais intelectuais, como leitura (2013), quando ele diz que é preciso estimular
e discussão’. (Trabalhadores em roda). os trabalhadores para que se tornem sujeitos
desejantes, visto que todos têm a capacida-
O fato de alguns apenas suportarem estar de de exercer mudanças na realidade que
na atenção diária e os outros não quererem vivenciam desde que tenham capacidade de
estar de forma alguma, é grave. Observa-se autogestão e de autoanálise. A primeira, diz
que algumas atividades não parecem ser in- respeito à atuação do trabalhador com foco
teressantes para serem desenvolvidas com no trabalho vivo em ato e é conduzida com
jovens e adultos em estado de abstinência, base no próprio sujeito, que faz as demais
mas que, mesmo nestes casos, a responsa- conexões com os outros trabalhadores,
bilidade pela falta de interesse é atribuída podendo realizar a produção do cuidado de
apenas ao usuário. Assim, identifica-se que forma diferenciada. A segunda tem a ver com
falta formação adequada aos trabalhadores a valorização do conhecimento do trabalha-
para saber lidar com os desgastes inerentes dor, de sua criatividade e iniciativa, seus

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Efeitos danosos do processo de trabalho em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas 295

desejos e necessidades. Este conhecimento trabalho com prazer, o que repercute posi-
de si, associado com a realidade do cotidiano tivamente na produção de um cuidado com
de serviço no qual está inserido, dá ao traba- maior produção de vínculo. E, ao contrário,
lhador a possibilidade de intervir na produ- quando este se sente esgotado, pode demons-
ção de serviços mais acolhedores, com mais trar dificuldades de sentir empatia frente ao
vínculos, e que sejam centrados no usuário sofrimento do outro, o que pode implicar em
(FRANCO, 2013). Assim, ainda corroboram-se as distanciamento afetivo e repercutir de forma
ideias de Franco (2013) quando se afirma que negativa na produção do cuidado.
o maior desafio da gestão do trabalho em Para tanto, frente aos efeitos identifica-
saúde é manter os trabalhadores com alta dos, é preciso que haja formas de alívio que
capacidade para agir. evitem a combustão, favorecendo a capa-
Para tanto, Merhy (2013) aponta que é cidade de agir, a fim de que o processo de
preciso instituir no cotidiano dos serviços trabalho seja favorável não só aos usuários,
de saúde meios que avancem em direção à mas também aos trabalhadores. Entre estas
autogestão e à autoanálise, a fim de permi- formas, destacam-se a educação perma-
tir que os trabalhadores lidem melhor com nente, a autogestão e a autoanálise, que fa-
suas tristezas e sofrimentos, e que produzam vorecem a existência de espaços para que
o autocuidado. Até porque, como visto em o trabalhador possa se expressar e buscar
grande parte dos depoimentos, o cotidiano possibilidades, visando ter aumentada sua
no Capsad consome o trabalhador em vida capacidade de agir e gerando mudanças no
e em ato, como um ser antropofágico (MERHY, trabalho.
2013) e, diante disto, é preciso que haja con-
textos, no cotidiano, nos quais o trabalhador
possa falar sobre suas questões, abrindo-lhes Colaboradores
oportunidades e possibilidades de aumento
da capacidade de agir, o que favorece a pro- Autor principal: contribuiu substancial-
dução de cuidado. mente para a concepção, o planejamento, a
análise e a interpretação dos dados; contri-
buiu significativamente na elaboração do
Conclusões rascunho e na revisão crítica do conteúdo;
participou da aprovação da versão final do
Vários foram os relatos sobre o efeito des- manuscrito. Coautor 1: contribuiu substan-
gastante gerado pelo ato de acolher o outro, cialmente para o planejamento, a análise e a
neste lugar; sobre a exaustão, a frustração e interpretação dos dados; contribuiu signifi-
o pavor diante das crises dos usuários, re- cativamente na revisão crítica do conteúdo;
pletas de ofensas, xingamentos e episódios participou da aprovação da versão final do
de agressividade. Neste contexto, o encontro manuscrito. Coautor 2: contribuiu substan-
com o usuário se torna difícil. Deste modo, cialmente para o planejamento, a análise e a
uma reflexão sobre o trabalho em um Capsad interpretação dos dados; contribuiu signifi-
revela que é essencial pensar no cuidado cativamente na revisão crítica do conteúdo;
para com o trabalhador, uma vez que este, participou da aprovação da versão final do
quando satisfeito e realizado, vivencia seu manuscrito. s

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296 WANDEKOKEN, K. D.; DALBELLO-ARAUJO, M.; BORGES, L. H.

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298 ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE

A experiência de formação (em) comum de


nutricionistas na Unifesp, campus Baixada
Santista
The training experience (in) common of nutritionists at Unifesp,
Baixada Santista campus

Maria Fernanda Petroli Frutuoso1, Virginia Junqueira2, Ângela Aparecida Capozzolo3

RESUMO Para discutir a experiência de formação em comum do eixo Trabalho em Saúde, da


Universidade Federal de São Paulo, delineou-se estudo qualitativo conduzido por meio de
grupo focal, com concluintes do curso de nutrição. Evidenciaram-se tensões não somente
entre o específico e o comum nas práticas profissionais, mas na concepção de cuidado e
clínica. Efeitos importantes na formação foram relatados, na medida em que as atividades do
eixo fizeram um convite à criação e invenção de outros modos de cuidar em nutrição, a partir
da contaminação/combinação de áreas profissionais, afastando-se de práticas normativas, in-
suficientes para dar conta da complexidade da alimentação e nutrição, na atualidade.

PALAVRAS-CHAVE Ensino. Nutricionistas. Sistema Único de Saúde. Integralidade em saúde.

ABSTRACT To discuss the training experience in common of the Health Work axis, of the Federal
University of São Paulo, a qualitative study was outlined conducted through a focus group, with
graduates of the nutrition course. Tensions were evident not only between the specific and the
common in professional practices, but in the conception of clinical and care. Important effects
on training were reported, as the activities of the axis invited the creation and invention of other
modes of care practices in nutrition, from contamination/combination of professional areas,
moving away from normative practices, insufficient to handle the complexity of food and nutri-
1 Universidade
tion, nowadays.
Federal
de São Paulo (Unifesp),
Departamento de Gestão KEYWORDS Teaching. Nutritionists. Unified Health System. Integrality in health.
e Cuidados em Saúde –
Santos (SP), Brasil.
fernanda.frutuoso@unifesp.br

2 Universidade Federal

de São Paulo (Unifesp),


Departamento de Gestão
e Cuidados em Saúde –
Santos (SP), Brasil.
virginiaj@uol.com.br

3 Universidade Federal
de São Paulo (Unifesp),
Departamento de Gestão
e Cuidados em Saúde –
Santos (SP), Brasil.
angeruma@uol.com.br

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 298-310, JAN-MAR 2017 DOI: 10.1590/0103-1104201711224
A experiência de formação (em) comum de nutricionistas na Unifesp, campus Baixada Santista 299

Introdução institucional (VASCONCELOS; CALADO, 2011). Assim


como nas demais áreas do campo da saúde, a
O chá pra curar esta azia conformação histórica das práticas profissio-
Um bom chá pra curar esta azia nais resultou no fortalecimento da especiali-
Todas as ciências de baixa tecnologia zação, da fragmentação dos conhecimentos
Todas as cores escondidas nas nuvens da e práticas, na tecnificação e no biologicismo
rotina (AROUCA, 2003; MERHY ET AL., 2010).
Pra gente ver... por entre prédios e nós... A complexidade das práticas alimentares
(Yuka, 1999) e sua interface com o processo de saúde-
-adoecimento-cuidado envolvem dimensões
O campo da alimentação e nutrição, em suas sociais, subjetivas, culturais e simbólicas,
dimensões científica, profissional e política, que tendem a ser pouco consideradas pelos
surge, no Brasil, no final da década de 1930 profissionais, resultando em práticas pouco
(VASCONCELOS; BATISTA-FILHO, 2011). A prática dos efetivas. As condutas hegemônicas baseiam-
profissionais da nutrição tem sua origem -se em prescrições dietéticas normativas e
ligada à crescente especialização da prática culpabilizadoras, com enfoques predomi-
médica. Inicialmente, atuam como auxilia- nantemente biológicos e, muitas vezes, re-
res do trabalho médico (em uma relação de duzidos à orientação de mudança de hábitos
subordinação), responsáveis pela dieta de alimentares, definidas a partir da relação da
pacientes internados nos hospitais. A ênfase dieta com o risco de adoecimento e morte
na dimensão biológica e nos aspectos clíni- (BOSI; PRADO, 2011; SANTOS, 2012).
co-fisiológicos associados ao consumo dos A partir da década de 1970, no Brasil,
nutrientes dá origem ao campo da nutrição avolumam-se as investigações que apontam
clínica. Esse campo foi se constituindo com a distribuição da renda, da terra e as condi-
uma progressiva fragmentação e especiali- ções sociais como principais determinantes
zação (em subáreas de atuação, por grupos da fome e dos problemas nutricionais, e am-
etários, de patologias e outros) focada em pliam-se as críticas ao distanciamento entre
ações individuais, curativas e hospitalares os modelos de formação e as necessidades
(DEMETRIO, 2011). de atenção da população. Movimentos crí-
Outra perspectiva reunia aqueles cuja ticos destacam a importância da garantia do
atenção voltava-se para os aspectos socio- direito humano à alimentação, bem como de
econômicos e populacionais relacionados um conjunto de condições e serviços neces-
à produção, à distribuição e ao consumo sários à prevenção, promoção, manutenção
de alimentos. Inicialmente, estudos desse e recuperação da saúde (VASCONCELOS; BATISTA-
campo caracterizaram a fome e as carências FILHO, 2011).
alimentares e nutricionais do País, e subsi- Com o movimento da Reforma Sanitária
diaram programas de assistência alimentar e a instituição do Sistema Único de Saúde
desenvolvidos pelo Estado, direcionados a (SUS), avança o debate sobre a necessidade
grupos populacionais prioritários. de mudanças na graduação dos profissionais
Essas perspectivas influenciaram a orga- de saúde, incluindo os de nutrição. Ganha
nização do ensino em nutrição, dividido em destaque a importância de ampliar a com-
grandes áreas, resultando em objetos bem preensão das diversas dimensões envolvidas
particulares de estudo e trabalho. Vale des- no processo saúde-doença e do trabalho in-
tacar, no entanto, que a formação concen- tegrado entre as diversas áreas profissionais
trou-se fundamentalmente no preparo dos para intervir nos problemas de saúde da
profissionais para o trabalho em instituições população. As novas diretrizes curriculares
hospitalares, na área clínica e de alimentação nacionais, homologadas a partir de 2001,

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300 FRUTUOSO, M. F. P.; JUNQUEIRA, V.; CAPOZZOLO, A. A.

propõem competências comuns para todas perspectiva de compor com outros saberes
as profissões, ênfase na diversificação de e práticas para contribuir na constituição
cenários de aprendizagem e na inserção no de certo ‘modo de pensar e agir’ dos futuros
SUS (BRASIL, 2001; SOARES; AGUIAR, 2010; FEUERWERKER; profissionais. Neste sentido, docentes da
CAPOZZOLO, 2013). área de saúde coletiva e das distintas áreas
Nesse contexto de mudanças, se insere profissionais integram o eixo e se mesclam
o curso de graduação em nutrição da para o apoio e a supervisão das atividades
Universidade Federal de São Paulo, campus de ensino, que buscam problematizar as
Baixada Santista (Unifesp-BS). Implantado diversas dimensões envolvidas no proces-
em 2006, em conjunto com outros cursos so saúde-doença e favorecer a construção
da área de saúde (educação física, fisiote- de práticas integradas implicadas com a
rapia, psicologia e terapia ocupacional), produção de cuidado e da vida.
tem um desenho curricular estruturado em A diretriz que orientou a estruturação
quatro eixos, que rompem com a estrutu- desse eixo foi a busca do comum às várias
ra disciplinar tradicional e com a formação áreas profissionais. Uma dimensão desse
isolada de uma única profissão. Um dos comum diz respeito ao que é importante na
eixos – ‘Aproximação à prática da nutrição’ clínica de qualquer profissional de saúde,
– é denominado eixo específico e está dire- como a escuta, a capacidade de estabelecer
cionado somente aos estudantes de nutrição. relações de confiança, vínculo, diálogo, ética,
Os outros três eixos – ‘Trabalho em Saúde’, responsabilização. Outra dimensão diz res-
‘O ser humano e sua inserção social’ e ‘O peito ao que se realiza no encontro das dife-
ser humano e sua dimensão biológica’ – são renças das áreas profissionais, na produção
comuns, mesclando alunos dos vários cursos de estratégias compartilhadas de interven-
(UNIFESP, 2006). ção, na exploração do ‘entre’ as áreas disci-
Embora se reconheça a importância de plinares. Essas dimensões compõem o que
todos os eixos para a formação, neste artigo temos denominado clínica ‘comum’ às várias
optou-se por discutir algumas questões que áreas profissionais (CAPOZZOLO ET AL., 2013).
têm emergido do eixo comum ‘Trabalho em Essas perspectivas articulam conteúdos
Saúde’ (TS), por ser um diferencial desta e estratégias que atravessam os diferentes
proposta de formação. módulos e buscam fornecer recursos aos
As atividades do eixo TS, organizadas em estudantes para lidarem com o momento do
módulos semestrais, percorrem os três pri- encontro clínico e para estabelecerem rela-
meiros anos de graduação e pautam-se na ções. As vivências, processadas em espaços
aprendizagem baseada na experiência. Para de supervisão com os docentes, permitem
Bondía (2002, P. 21), a “experiência é o que nos explorar diversas dimensões envolvidas no
passa, o que nos acontece, o que nos toca”. trabalho em saúde e na produção do cuidado,
No percurso da formação, são utilizadas di- para além da utilização de técnicas, proto-
ferentes estratégias, que procuram expor colos e procedimentos específicos de cada
os estudantes ao encontro com usuários e profissão. Optou-se por inserir as atividades
equipes da rede de serviços e com as condi- de ensino nas áreas de maior vulnerabilidade
ções de vida e de saúde da população. social do município de Santos (SP).
Nesse eixo, foi alocada parte dos conte- No primeiro e no segundo semestre da
údos do campo da saúde coletiva (políticas graduação, os estudantes realizam ativida-
públicas, sistema de saúde; organização do des de reconhecimento de diferentes territó-
processo de trabalho e da rede de serviços; rios do município onde se localiza o campus,
conceito de saúde; trabalho em equipe; que possibilitam perceber os diversos modos
e cuidado integral, entre outros), na de vida da população e suas implicações

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A experiência de formação (em) comum de nutricionistas na Unifesp, campus Baixada Santista 301

para o processo saúde-doença-cuidado. a sustentabilidade desta experiência.


Abordam-se, ainda, as políticas e a or- Para saber se tal aposta de formação
ganização dos serviços de saúde. Nos surtia os efeitos desejados, foram reali-
semestres seguintes, a ênfase está no tra- zados grupos focais, separadamente, com
balho com histórias singulares de vida e de dez estudantes sorteados, de cada um dos
saúde. No terceiro semestre de graduação, cursos, concluintes da primeira turma,
duplas de estudantes de cursos diferentes bem como um grupo focal com dois do-
visitam, durante o semestre, uma pessoa centes de cada curso. Os encontros foram
ou família, em suas residências, com o ob- conduzidos por um coordenador, segundo
jetivo de construírem narrativas de suas procedimentos pré-estabelecidos, tendo
histórias de vida e de saúde. No quarto se- como pauta o relato de experiências mar-
mestre, equipes mistas de estudantes ela- cantes, que envolveram a aprendizagem
boram e implementam ações de promoção com alunos de outras áreas, docentes,
de saúde com grupos populacionais. No equipes de saúde e população. Também
quinto e no sexto semestre, os estudantes foram realizadas entrevistas individuais
se organizam em equipes mistas para rea- semiestruturadas com os coordenadores
lizarem projetos terapêuticos de cuidado. dos cursos e com oito profissionais (chefia
Pesquisa realizada com a primeira turma e enfermeiros) das equipes onde eram de-
de formandos apontou para a produção de senvolvidas atividades do eixo havia mais
experiências marcantes desse eixo, na for- de um ano.
mação. Tendo como perspectiva a formação Cada material foi analisado, separada-
de nutricionistas, este artigo tem como ob- mente, por três pesquisadores, de diferentes
jetivo apresentar e discutir as questões que áreas de formação. Elaborou-se uma matriz
emergem dessa experiência de formação. de sistematização dos temas inicialmente
identificados, dos diferentes posicionamen-
tos com os trechos de discursos mais sig-
Material e métodos nificativos, bem como com as impressões e
problematizações que emergiram durante
Esta pesquisa, de natureza qualitativa, foi a leitura. Em seguida, o material foi discu-
conduzida pelo Laboratório de Estudos e tido pelo conjunto de 20 pesquisadores que
Pesquisas sobre Formação e Trabalho em compõem o Lepets, para a agregação dos
Saúde (Lepets), no período de 2009 a 2011, materiais em grandes núcleos temáticos.
e foi aprovada pelo Comitê de Ética da Posteriormente, foram apresentadas, em
Universidade (Parecer 1.528/09). seminários, as análises preliminares com os
O projeto ‘Formação para o trabalho em sujeitos da pesquisa e com interlocutores ex-
saúde: a experiência em implantação nos ternos. O material desses encontros integrou
cursos de graduação – Educação Física, a análise e contribuiu na constituição de uma
Fisioterapia, Nutrição, Psicologia e Terapia síntese final1.
Ocupacional da Universidade Federal de Neste artigo, houve interesse em des-
São Paulo – Campus Baixada Santista’, me- tacar os achados desta experiência que se
diante o processo no Conselho Nacional de relacionam à formação na área de nutri-
Desenvolvimento Científico e Tecnológico ção, analisando efeitos, tensões e reflexões
(CNPq) nº 479031/2008-8, almejou siste- que emergiram dos relatos do grupo focal, 1 O conjunto de resultados

e reflexões desta pesquisa


matizar, analisar e aprimorar a proposta composto por oito estudantes concluintes foi publicado no livro
de formação profissional desenvolvida a da primeira turma deste curso, entre os dez ‘Clínica comum: itinerários
de uma formação em
partir do eixo TS, estabelecendo estraté- sorteados para participar. As questões pro- Saúde’, organizado por
gias para o acompanhamento, a avaliação e blematizadoras do encontro envolveram: Capozzolo et al., 2013.

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1. A experiência dos estudantes na atuação Resultados e discussão


interprofissional com as equipes de saúde,
pessoas/famílias/grupos e com alunos das
outras áreas profissionais; 2. Compreensão Formação e clínica comum
das atividades de ensino-aprendizagem pro-
postas pelo eixo TS; e 3. Possíveis efeitos e Os comentários que os alunos da nutrição
impactos das atividades de ensino-aprendi- apresentaram sobre o eixo TS apontam
zagem do eixo, na formação do estudante. que os módulos permitem experimentar
A literatura aponta como vantagem do um tipo de organização de trabalho em
grupo focal a interação entre os partici- equipe diferente da que habitualmente
pantes a respeito das questões colocadas, ocorre em sala de aula:
favorecendo o intercâmbio de percepções
e argumentos, e de opiniões formadas com [...] a gente fazia trabalhos juntos, mas era mais
base tanto no consenso como nas diferenças. separado. Acabava que sempre o aluno de nu-
Entre as desvantagens, encontram-se as di- trição pesquisava só a parte de nutrição, o aluno
ficuldades de criar interação e comunicação de TO só de TO, e juntava [...], mas no eixo de
da forma mais espontânea possível, em um TS já não, tentava englobar uma visão diferente
processo de discussão distante de apenas de como aplicar [...] tinha que relacionar todas as
responder individualmente às questões pro- profissões, então, acho que foi essencial isso. (E2).
postas a partir do papel ativo do moderador
como facilitador deste processo (GATTI, 2005). Os diferentes arranjos e estratégias dos
Neste estudo, e escolha do grupo focal se módulos propõem a realização de ações con-
justifica pelo interesse em que os estudantes juntas, em campo: “[...] no TS que a gente teve
falassem o que já pensavam sobre a experi- mais uma aproximação prática. A gente ia
ência de formação no eixo, e também aquilo para os locais, visitava, discutia os casos, fazia
que ainda não haviam formulado, mas que tudo isso junto” (E1).
poderia ser pensado a partir da discussão em Os estudantes apontam que, nas reitera-
grupo. Assim, as posições foram sendo cons- das vivências, têm a oportunidade de ampliar
truídas no debate, tendo como resultado um o olhar sobre cada profissão, de conhecer as
produto coletivo, sem a necessidade de ser diferenças, as possibilidades e os limites de
harmonioso ou homogêneo. A grupalidade cada área:
propiciada pela técnica de grupo focal apre-
sentou, ainda, “uma oportuna sintonia com Um aspecto que eu acho interessante, é que pelo
as práticas que o TS colocava em exercício menos um pouco dos cinco cursos que existem, a
na formação” (CASETTO ET AL., 2013, P. 98). gente sabe descrever, [...] as atribuições de cada
O material transcrito do grupo focal da um, na sua profissão. (E2).
nutrição foi tratado pela análise temáti-
ca, na qual os valores de referência e os Para além de conhecer o que cada pro-
modelos de comportamento presentes no fissão faz, as atividades de ensino do eixo
discurso são caracterizados pela presen- permitem vivenciar ‘algo’ a mais, “[...] a gente
ça de determinados temas (MINAYO, 2010). precisava achar uma maneira de intercalar
Foram identificadas unidades de contexto as duas coisas, para um bem maior” (E5).
(ideia central) e, em cada uma delas, uni- Os alunos reconhecem que, nas experiên-
dades de registro (relatos), aglutinadas cias conjuntas com tarefas de cuidado de
nos seguintes itens: 1) formação e clínica complexidade crescente, aprendem a “[...]
comum; 2) entre o específico e o comum: o saber respeitar o limite de cada profissão, mas
que as tensões revelam? também saber interagir” (E6).

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A experiência de formação (em) comum de nutricionistas na Unifesp, campus Baixada Santista 303

Nunes (2002) enfatiza a importância da outros cursos, que às vezes nos ajudavam nisso
integração de saberes e práticas, a partir de também, de como abordar aquela pessoa. (E3).
problemas a serem enfrentados, em um pro-
cesso construído entre a ciência, o mundo No desafio de fazer intervenções em
vivido e a vida prática, para além da simples comum, os estudantes vão exercitando o es-
justaposição ou complementaridade entre tabelecimento de laços de confiança, de vín-
os elementos disciplinares. No percurso de culos, e incorporando certo modo de atuar,
formação do eixo, as vivências de cuidado de fazer clínica, como segue: “A gente acos-
vão exigindo diferentes recursos e combina- tumou a conversar, escutar, considerar vários
ções de saberes e práticas, que possibilitam aspectos” (E7). No momento do estágio, per-
aos estudantes incorporar em sua prática cebem com mais clareza a diferença da for-
profissional o que reconhecem como sendo mação que receberam:
repertório de outros cursos e experimentar a
potência de ações que inventam em comum. Eu fiquei escutando um açougueiro, fiquei mais
As experiências, desde o início da formação, de 40 minutos, [...] então, eu vi a diferença [...] a
nos territórios de maior vulnerabilidade social, estagiária de outra universidade saiu, me deixou
permitem o encontro com as pessoas que lá lá [...]. (E3).
vivem, com suas condições e histórias de vida:
Todos os estudantes referiram vivências
Experiência significativa foi conhecer a realidade significativas, nas quais reconheceram que
de outras pessoas que eu nunca imaginei, [...] é produziram diferenças com as ações que
totalmente diferente da que eu vivo em São Paulo realizaram, e que afetaram e foram afetados
[...] foi bem contrastante. (E1). durante os encontros:

Estes encontros contribuem para que os O impacto é muito grande, que você causa na
estudantes percebam que suas intervenções pessoa e ela causa em você. (E6).
têm que considerar as situações singulares
de vida: “[...] que a pessoa está inserida numa
sociedade, e até que ponto o ambiente está in- [...] sempre, numa relação que você vai deixar al-
terferindo na relação saúde/doença” (E4). guma coisa e vai receber também. (E5).
As estratégias de ensino direcionam para
reiteradas experiências de escuta e de deslo-
camentos em direção ao ‘outro’: É realmente uma troca: a gente não está lá só
para passar o nosso conhecimento, a gente tam-
Na TS, a gente realmente aprende a se interessar bém aprende muito. (E8).
pelo outro, [...] se interessar de verdade, escutar
aquilo que eles estão falando, dar importância ao
que eles estão trazendo. (E2). Como referem Henz et al. (2013), as estraté-
gias de ensino possibilitam:
Possibilitam o reconhecimento de diferen-
tes perspectivas e da necessidade de estabele- [...] uma escuta descentrada, que tira do cen-
cer diálogo, como explicita o trecho a seguir: tro o poder da palavra profissional e pode
levar à porosidade dos vários signos silencio-
[...] ela não querer aquilo, [...] ela não aceitava sos produzidos nos encontros. Esse descen-
aquela proposta, às vezes a gente até ia com tramento da escuta pode abrir espaços sutis
coisas legais para passar, até tentava passar, de implicação ética e pensamento clínico
aí entrava a ajuda de outros companheiros, de – exercícios para o trabalho em equipe, com

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304 FRUTUOSO, M. F. P.; JUNQUEIRA, V.; CAPOZZOLO, A. A.

as decomposições e composições que podem Sucintamente, os estudantes ilustram que


ocorrer a cada caso. (HENZ ET AL., 2013, P. 164). as experiências que vivenciam nos diferen-
tes módulos do eixo deixam marcas, e que as
Os depoimentos demonstram que os en- estratégias de ensino favorecem a escuta das
contros interprofissionais para produção de histórias de vida, para a construção de ações
cuidado possibilitam uma contaminação e/ou que compõem um modo de fazer.
combinação de saberes/práticas, permitindo Pode-se dizer que, nos encontros, no
a criação e invenção dentro da sua própria exercício entre as diferentes profissões, vai
área profissional, como explicita a fala abaixo: ocorrendo a aprendizagem de certo modo
de compreender e intervir nos problemas
A gente fez a linha da vida com ela, um recurso de saúde, e essa experiência de formação se
de psicologia. Como ela era analfabeta, a gente aproxima da discussão de Abrahão e Merhy
relatou, em figuras, em recortes, a história de (2014), sobre a disposição para experimentar o
vida dela e, quando ela abria e via o livro, ela ato do trabalho em saúde com abertura para
chorava. Nossa, nunca tinha pensado nisso! En- sensações e afetos, cujo ponto de partida é o
tão, essa troca de recursos de outros cursos, que próprio encontro, com diferentes possibili-
a gente não tem muito acesso, foi muito emocio- dades, produzindo-se no cuidado.
nante, porque, se eu tivesse, talvez, a formação O eixo possibilita o diálogo entre as prá-
tradicional de nutrição, eu nunca pensaria em ticas de cada área e a constituição de uma
algo assim, algo tão simples, que trouxe tanta fe- clínica ‘comum’, na medida em que, conduzi-
licidade para alguém. Então, acho que abre muito dos pelo encontro, docentes e estudantes ex-
o nosso olhar. (E5). perimentam certos ‘conceitos-tecnologias’,
que resultam em formas de pensar, sentir e
Os trechos a seguir exemplificam algumas fazer comuns, pertencentes e constitutivas
atividades marcantes para os alunos da nu- de todas as profissões, inclusive a de nutri-
trição, tanto em grupo como individuais, re- cionista (HENZ ET AL., 2013).
alizadas em conjunto com outros estudantes,
nos diferentes módulos: Entre o específico e o comum: o que
as tensões revelam?
Foi uma apresentação dos adolescentes do Cen-
tro de Juventude. A primeira vez que eles apre- Se, por um lado, os estudantes referem a pos-
sentaram, nós viramos plateia. Então, foi muito sibilidade de uma combinação de elementos
lindo, [...] ao mesmo tempo, a gente montou uma e estratégias de cuidado de cada área profis-
peça de teatro da nossa vivência na faculdade. sional, e valorizam os novos conhecimentos e
Então, foi uma troca muito gostosa. (E1). práticas que proporcionam, por outro, expli-
citam tensões que a proposta de formação do
eixo traz, como se vê no depoimento a seguir:
[...] o paciente já tinha tido vários AVCs, e ele
nem andava. E quando saímos de lá, ele estava Porque a nossa insegurança era justamente ten-
andando, abriu a porta, fechou, foi muito grati- tar aliar algo de nutrição, porque a gente ab-
ficante. (E3). sorveu tanto a questão de escutar a pessoa, e a
gente ficava inseguro: ‘Será que eu vou conseguir
ser uma nutricionista assim, algo bem específico?
Eu lembro que a gente fez um grupo de idosos e, Como que vai ser?’. (E5).
no último dia, a gente fez um bailinho para se des-
pedir. Teve comes e bebes e tudo, e, no último dia, Ainda que os estudantes reconheçam
eles entregaram uma mensagem pr’a gente. (E4). a importância do trabalho comum entre

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A experiência de formação (em) comum de nutricionistas na Unifesp, campus Baixada Santista 305

as várias áreas profissionais, verbalizam o TS não é apenas o de possibilitar a ‘aplicação


receio de que a profissão que escolheram se prática’ da teoria.
dilua no campo do trabalho em saúde, per- As vivências nos diferentes módulos do
dendo sua singularidade. As tensões apare- eixo produzem tensões também quando os
cem quando os alunos relatam a insegurança estudantes percebem que, após o diagnós-
diante de não saber agregar a especificidade tico, precisam negociar e pensar na cons-
do curso à prática do eixo TS e apontam que trução processual de um cuidado que faça
‘escutar a pessoa’ parece não pertencer ao sentido para a pessoa que está sendo aten-
escopo de ações do profissional de nutri- dida. Parece ser significativa a dificuldade
ção ou significar um ‘algo a mais’, que toma de negociar com aquilo que o usuário está
sentido somente se não confrontar as ações pedindo, na medida em que não se trata de
específicas da área profissional. desvalorizar o uso de instrumentos, mas de
Eles ainda explicitam que ficam temero- perceber o que a situação pede.
sos diante da possibilidade de realizar ações Sobre esse modelo de formação, pode-se
mais ‘comuns’ e perderem a identidade pro- apontar que se trata de abrir caminhos para
fissional, ao não executarem atividades que o aluno aprender com a experiência, pro-
entendem como sendo mais ‘técnicas’ e sin- vocando um constante movimento de ques-
gulares da nutrição, como apresenta o trecho tionamento e dúvida, sem que um caminho
a seguir: seja cristalizado como único e/ou correto, e,
a partir da perspectiva de que um profissio-
Tem algumas áreas que necessitam de situações nal deve dispor de recursos para descobrir
um pouco mais técnicas [...] tiveram alunos que possibilidades diante dos desafios técnicos,
falaram: ‘Nossa, mas você precisa de uma balan- éticos e políticos do cotidiano do trabalho
ça, parece carne em açougue’! É a mesma coisa em saúde.
que você pedir para um psicólogo não conversar O eixo TS aposta em uma formação
com o seu paciente, porque, infelizmente, nutri- que valoriza os espaços micropolíticos do
ção, ou felizmente, a gente tem algumas coisas cuidado, pois o trabalho em saúde lida com
que tem que fazer como nutricionista, por mais um objeto especial, que não é plenamente
que a gente entenda o ser humano, a integralida- estruturado, o que coloca, inevitavelmente,
de. Para ter um diagnóstico de nutrição, a gente as práticas profissionais prescritivas e nor-
precisa usar alguns instrumentos, que são bási- mativas em análise. Não se trata de negar a
cos, e que, no momento, talvez não era, mas foi utilização de técnicas inerentes à profissão
meio que banalizada a situação. (E5). (como o uso da balança), mas de promover
uma prática reflexiva do aluno diante da ne-
Assim, expressam a concepção que ser cessidade do indivíduo, problematizando as
nutricionista implica a aplicação de alguma práticas hegemônicas tradicionais.
técnica do repertório profissional, aqui Como problematizam Passos e Carvalho
exemplificada pelo uso da balança (ainda (2015), a discussão de cuidado na contempora-
que a utilização deste instrumento não neidade envolve a necessidade de humaniza-
seja somente atribuição de nutricionistas). ção das práticas em saúde e da integralidade
Também é possível perceber que os alunos da atenção, na medida em que pedem diálo-
criam a expectativa de que estar no eixo é uma gos e sujeitos, em detrimento de prescrições
oportunidade de aplicação prática do apren- e objetos (como as doenças, por exemplo).
dizado obtido nos espaços intramuros, como Considerando que quem demanda atenção
segue: “Às vezes, a gente estudava algumas (ou o usuário) é um sujeito com expectativas,
coisas, e a gente queria aplicar aquilo” (E3). desejos e história de vida, sendo muito mais
Neste sentido, o foco das atividades do eixo do que um corpo adoecido, entendido na

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306 FRUTUOSO, M. F. P.; JUNQUEIRA, V.; CAPOZZOLO, A. A.

perspectiva restritamente biológica, o uso da um modo de viver saudável, que se define,


técnica é apenas parte do cuidado. Abrahão e restritamente, pela dicotomia entre per-
Merhy (2014) abordam a importância de con- mitido e proibido (CONTRERAS; GRACIA, 2011).
vocar outros meios, incluindo a criatividade, Conhecer esses elementos contribuiria
que ajudem a deslocar o foco da doença e para o alcance de um cuidado nutricional,
ampliem possibilidades de novas práticas considerando o sujeito, suas expectativas e
construídas a partir da capacidade de com- seu contexto individual, familiar e comuni-
binar diferentes modos de ser, sentir e expe- tário, com vistas a uma abordagem integral e
rimentar, que emergem do encontro entre interdisciplinar da alimentação e do cuidado
estudante, docente, usuário e profissional. em saúde. As práticas do módulo do eixo fa-
Nesse sentido, ao realizarem ações de vorecem o contato dos estudantes com a vida
cuidado, os estudantes também perce- real e com pessoas que não teriam ‘condições
bem que não é possível apenas aplicar uma para seguir aquela orientação’, trazendo à
técnica e executar o que se aprende previa- tona a complexidade das orientações nutri-
mente, nas aulas, no contexto de vida real cionais, contextualizadas e construídas em
encontrado nas atividades práticas do eixo. conjunto com usuários dos serviços e com
outros profissionais.
Era delicado porque não dava para passar algu- Ainda que a experiência no eixo carregue
mas orientações. Porque a pessoa não teria con- tensões entre as ações comuns e específicas,
dições para seguir aquela orientação, então, a os estudantes assinalam um contraponto
gente via que o que a gente aprendia na aula não quando relatam que o aprendizado foi funda-
dava para ser muito aplicado no dia a dia. (E2). mental para uma prática diferenciada nos es-
tágios curriculares. Cabe pontuar que, apesar
Diversos autores problematizam as ações da formação em comum nos primeiros anos,
predominantes do nutricionista, baseadas os estágios são organizados por áreas profis-
na lógica preventivista, advinda do conheci- sionais e expõem algumas contradições do
mento epidemiológico e do conceito de risco, próprio PPP (Projeto Político Pedagógico).
que negligenciam, muitas vezes, algumas di- Neste sentido, os alunos se ressentem da au-
mensões, como os processos de subjetivação sência do trabalho conjunto com as demais
inerentes à comida e ao comer, caracterizan- áreas, nesse momento da formação.
do uma ação profissional baseada em dis- Embora o estágio se caracterize como um
cursos normativos para mudança de hábitos momento em que a profissão é convocada
alimentares, e que visa convencer os sujei- em sua especificidade, os alunos o reconhe-
tos a aderirem a um projeto dietoterápico cem como uma situação que evidencia o
(PEDROSO, 2008; BOSI; PRADO, 2011; SANTOS, 2012). melhor preparo e a possibilidade de susten-
As escolhas alimentares são mediadas tação de uma prática decorrente da experi-
por aspectos socioculturais, com hábitos ência de trabalho comum e do contato com
transmitidos de geração a geração, mas as pessoas atendidas, no local onde vivem.
que não são imutáveis e sofrem influência Há, portanto, uma contaminação do que foi
da mídia, dos discursos dos profissionais a vivência no eixo:
de saúde, do sistema alimentar, que resulta
na disponibilidade de gêneros alimen- Eu acho que foi fundamental, esse contato, mes-
tícios, entre outros (CONTRERAS; GRACIA, 2011; mo porque agora, no campo de estágio, eu estou
VILLAGELIM ET AL., 2012; FREITAS; SANTOS, 2014). Outro no estágio de clínica em nutrição, e foi até suge-
aspecto do contexto alimentar contempo- rido usar o tipo de recurso utilizado na TS. Você
râneo é o entendimento de que a alimen- pega um paciente que está hospitalizado e tenta
tação adequada é um dos componentes de trabalhar a narrativa da história de vida com esse

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A experiência de formação (em) comum de nutricionistas na Unifesp, campus Baixada Santista 307

paciente. Nesse sentido, se a gente não tivesse que integram diversos cursos de graduação
tido essa base, esse contato em TS, esse envol- na área da saúde e/ou inserem os estudan-
vimento com a população, realizar narrativas de tes nos cenários de práticas (LOBATO ET AL., 2012;
histórias de vida talvez não seria tão enriquece- AZEVEDO ET AL., 2013; CARVALHO ET AL., 2015).
dor agora, no momento do estágio. (E7). Quanto aos docentes, os alunos indicam
que “os professores novos também precisam
Vale ressaltar que o trecho acima traz o ter, fazer TS [...]” (E1), uma vez que os docen-
termo ‘clínica em nutrição’ como referên- tes do curso foram formados em instituições
cia ao estágio realizado em hospital. Isto com currículos tradicionais.
coloca, para os docentes, técnicos e estu- Na medida em que não há técnica pre-
dantes do curso, a necessidade de repensar viamente estabelecida que encaminhe ou
uma ‘clínica’ em nutrição que parece ainda facilite os diversos encontros entre alunos
remeter à compreensão histórica do surgi- de diferentes cursos, entre aluno-docente,
mento e da atuação do profissional nutricio- aluno-profissional de saúde e aluno-indiví-
nista (assim como de outros cursos da área duo/grupo atendido, os docentes são desa-
da saúde), a partir da divisão técnica do tra- fiados, convocados a construir, junto a todos
balho em saúde. os envolvidos, um pensar e agir misturado e
Para a nutrição, o entendimento da combinado, no qual, às vezes, os elementos
atuação clínica, inclusive como nomencla- específicos de sua formação e/ou área de
tura de área específica, perpassa o exercício atuação não precisam marcar a diferença
profissional em ambiente de atenção se- entre as ações de cuidado.
cundária e terciária em saúde, fruto de sua Assim, este modelo de formação requer
vertente histórica – e recente, uma vez que um diálogo permanente com os docentes
a profissão data do início do século XX – e do eixo específico, sobre as concepções
se direciona a ações nas quais o alimento é de saúde e cuidado, os possíveis desenhos
‘agente de tratamento’ (VASCONCELOS; BATISTA- da supervisão e a condução/discussão das
FILHO, 2011; DEMETRIO, 2011; VASCONCELOS; CALADO, 2011). ações propostas ao longo do semestre, o que
Assim, muitas vezes, a concepção de implica o desafio de formação/discussão
clínica ainda não consegue superar o entre os professores com vistas a construir
enfoque na doença e em procedimentos, uma forma de operacionalização do eixo.
face ao cuidado que contextualiza o pro- Estar no eixo também demanda um tra-
cesso de saúde-adoecimento, produzido balho docente de pactuação, de encontro
em um espaço físico, social, relacional, com outros docentes e de articulações com
resgatando as múltiplas dimensões da as questões de saúde pública. Avaliações
saúde. Desta forma, a experiência do eixo constantes com docentes, discentes e profis-
permite reiterar que repensar a clínica e sionais necessitam ser realizadas para ade-
as concepções de saúde predominantes é quações permanentes. Instigam a discussão
um desafio a ser enfrentado na formação da participação/composição de docentes
do nutricionista. do eixo específico, uma vez que o eixo TS
Além da tensão relacionada às ações requer a presença dos professores em campo
comuns e específicas, os estudantes também e o refinamento conjunto das estratégias de
apontaram alguns desconfortos provenien- ensino e concepção dos módulos.
tes da organização do trabalho de campo, Quanto à continuidade das ações, os estu-
especialmente relacionadas à supervisão dantes questionam:
docente e à continuidade das ações.
Outros estudos apontam para tensões [...] passou o tempo de TS, ninguém mais volta
semelhantes em experiências de formação, lá, acabou. E aquela pessoa, como ficou? (E7).

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308 FRUTUOSO, M. F. P.; JUNQUEIRA, V.; CAPOZZOLO, A. A.

A gente vai lá, faz um trabalho super legal, que alunos reconheceram que a vivência no eixo
dura dois meses [...] você realmente vai embora permite desenvolver o trabalho em equipe e
e não sabe se outra pessoa continuou o seu tra- estratégias, como a escuta e o vínculo, que
balho, se... Que foi válido, você sabe. Mas teve reconhecem o outro como legítimo, com
continuidade? (E2). seus saberes e desejos.
Olhar criticamente essa experiência, na
Para dar conta da continuidade das ati- perspectiva da formação do nutricionista,
vidades do eixo, há esforços na articulação permite afirmar que as atividades do eixo
das diversas ações da Unifesp-BS, nos dife- Trabalho em Saúde colocam, inevitavel-
rentes serviços (módulos do eixo, estágios, mente, as práticas profissionais em análise,
residência multiprofissional), a partir da a partir da vivência do trabalho em comum
fixação do docente em um equipamento/ter- e, à nutrição, faz um convite ao uso de tec-
ritório, bem como da consolidação processu- nologias compartilhadas e inventivas, afas-
al das políticas institucionais de integração tando-se de uma prática frequentemente
ensino-serviço e de educação permanente normativa e prescritiva, insuficiente para
(Programa de Reorientação da Formação em dar conta das questões que envolvem ali-
Saúde, Programa de Ensino pelo Trabalho e mentação e nutrição, na atualidade. Trata-se
Mestrado em Ensino em Ciências da Saúde – de um ‘modo de fazer’ a partir de um proces-
modalidade profissional, entre outras). so no qual não há receita e se admite criação.
Ao longo dos anos, alguns movimentos Diante das possibilidades e desafios, dos
foram realizados a partir da experiência, avanços e tensões da proposta em análise,
visando ao aprimoramento e à consolidação os estudantes referem abertura para a ino-
dessa proposta de formação. São exemplos: vação e para a construção de novas formas
a ampliação dos cenários de práticas, in- de agir profissionalmente no futuro:
cluindo equipamentos de assistência social
e educação, hospitais, organizações não go- A gente tem que estar preparado para tentar,
vernamentais; uma maior articulação com inovar. A gente chegar e tentar demonstrar que
as equipes de saúde, que se dá em diferentes existe uma outra proposta de trabalho, que bus-
estágios, em cada cenário, para seleção e dis- ca escutar, que busca discutir entre todos os pro-
cussão de condutas e processos. fissionais, e a gente inserir isso no mercado de
trabalho. Não chegar e já querer encontrar tudo
pronto, o que a gente aprendeu, mas construir
Considerações finais isso. Acho que o TS permite isso para a gente
hoje. (E4).
Entre as tensões da experiência em questão,
os estudantes apontaram a dificuldade de
propostas de cuidado construídas a partir
das demandas e significados para o indiví- Colaboradores
duo/grupo atendido, para além de aspectos
técnicos consolidados na área de nutrição, Todas as autoras participaram de todas
como o diagnóstico nutricional e as orien- as etapas do estudo, desde a concepção à
tações dietéticas. Em contrapartida, os aprovação da versão final do manuscrito. s

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A experiência de formação (em) comum de nutricionistas na Unifesp, campus Baixada Santista 309

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Recebido para publicação em outubro de 2016


UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO Versão final em fevereiro de 2017
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REVISÃO | REVIEW 311

Revisão sistemática da literatura sobre crack:


análise do seu uso prejudicial nas dimensões
individual e contextual
Systematic review of the literature on crack: analysis of its harmful
use in the individual and contextual dimensions

Mirna Barros Teixeira1, Elyne Montenegro Engstrom2, José Mendes Ribeiro3

RESUMO Este artigo visa investigar como se conformam, no Brasil e internacionalmente, as


abordagens ao uso prejudicial do crack e outras drogas. Foi realizada uma revisão crítica da li-
teratura acerca do padrão de consumo do crack e os fatores a ele relacionados com busca siste-
mática em bases eletrônicas no período de 2010 a 2016. Foram analisados 37 artigos por autor,
ano, país do estudo, metodologia; padrão de consumo de crack e fatores individuais e contex-
tuais relativos a esse uso. Conclui-se que a abordagem ao uso de drogas deve estar focada na
perspectiva da redução de danos, na promoção da autonomia e dos direitos humanos, e não na
utopia de eliminação do consumo e da produção de drogas.

PALAVRAS-CHAVE Cocaína crack. Redução de danos. Políticas públicas. Drogas ilícitas.

ABSTRACT This article investigates how the approaches towards the harmful use of crack cocaine
and other drugs are conformed in Brazil and worldwide. A critical revision of the literature has
1 Fundação
been made regarding the pattern of consumption of crack cocaine and its related factors through
Oswaldo
Cruz (Fiocruz), Escola a systematic search in scientific publications electronic data bases between 2010 and 2016.
Nacional de Saúde Pública 37 articles have been analyzed by author, year, country of the study, and methodology; crack
Sergio Arouca (Ensp),
Departamento de Ciências cocaine consumption pattern, individual and contextual factors related to this consumption.
Sociais – Rio de Janeiro The conclusion was that the approach towards the use of drugs should be focused on damage
(RJ), Brasil.
mirna@ensp.fiocruz.br reduction perspective, promotion of autonomy and human rights, and not on the utopia of
2 Fundação Oswaldo
eliminating consumption and drugs production.
Cruz (Fiocruz), Escola
Nacional de Saúde Pública KEYWORDS Crack cocaine. Harm reduction. Public policies. Street drugs.
Sergio Arouca (Ensp),
Departamento de Ciências
Sociais – Rio de Janeiro
(RJ), Brasil.
engstorm@ensp.fiocruz.br

3 Fundação Oswaldo
Cruz (Fiocruz), Escola
Nacional de Saúde Pública
Sergio Arouca (Ensp),
Departamento de Ciências
Sociais – Rio de Janeiro
(RJ), Brasil.
ribeiro@ensp.fiocruz.br

DOI: 10.1590/0103-1104201711225 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 311-330, JAN-MAR 2017
312 TEIXEIRA, M. B.; ENGSTROM, E. M.; RIBEIRO, J. M.

Introdução O termo ‘crack’ é uma onomatopeia e


se refere ao som produzido durante a sua
Por muitas décadas e em vários países, as produção;
políticas e ações voltadas ao uso de drogas
eram focadas principalmente pelas lentes cocaína e bicarbonato de sódio são dissolvi-
da justiça criminal. No entanto, é preciso dos em água e aquecidos até que se formem
considerar o uso prejudicial de drogas como cristais de cocaína que produzem um caracte-
um problema de saúde pública por sua mag- rístico estalido (crack). (HART, 2014, P. 163).
nitude elevada e crescente, por sua natureza
multifatorial e pelas repercussões na saúde e O seu surgimento no Brasil foi detectado
na vida das pessoas, famílias e comunidades. por agentes redutores de danos que traba-
Especialmente no século XXI, consolidam-se lhavam com drogas injetáveis. O uso do crack
novos paradigmas que fortalecem o prota- é menos significante se comparado à distri-
gonismo da abordagem pela saúde pública, buição e uso de vários outros tipos de drogas
desenvolvendo-se modelos voltados para entre a população brasileira. No entanto,
atenção integral, psicossocial e com estraté- quando se foca em determinados segmen-
gias para a Redução de Danos (RD) devido ao tos da população mais vulneráveis, como
uso prejudicial de drogas. Essa nova forma a População em Situação de Rua (PSR), ele
de olhar o problema vem gerando tensões no assume maior relevância (BRASIL, 2014).
campo da saúde, em suas diversas abordagens Para estudar crack e outras drogas,
do cuidado ao usuário de drogas, assim como partiu-se do pressuposto básico de que a
disputas com outros setores públicos e da so- droga sempre existiu na humanidade, que
ciedade que historicamente advogam ações uma sociedade livre de drogas é uma falácia
coercitivas de afastamento e isolamento, na e que, portanto, seu uso problemático não
visão de um ‘fictício mundo sem drogas’. diz respeito a todas as pessoas que as con-
Estima-se que 246 milhões de pessoas somem (ESCOHOTADO, 1996). Segundo Hart (2014),
usem drogas mundialmente, em uma preva- apenas 25% das pessoas que experimentam
lência global de 5,2%, em que um entre dez qualquer tipo de SPA, das consideradas mais
usuários sofrerá de dependência da droga leves até as mais estigmatizadas como crack
(cerca de 27 milhões de pessoas), sendo e heroína, fazem uso prejudicial. Na pesquisa
metade usuários de drogas injetáveis e boa sobre o perfil brasileiro dos UC, observou-se
parcela com HIV (Vírus da Imunodeficiência que a maioria consumia outras substâncias
Humana) (UNODC, 2015). O relatório mundial lícitas como álcool e tabaco, sendo o crack
sobre drogas estimou 187.100 mortes relacio- apenas uma das drogas consumidas em um
nadas com o uso prejudicial de drogas (UNODC, amplo portfólio de SPA, sendo por isso de-
2015). Já um estudo brasileiro recente fez uma nominados poliusuários. Outro achado im-
estimativa de usuários de crack (UC) regula- portante é que embora nem toda população
res e/ou similares em 370 mil pessoas, o que de rua seja usuário de drogas, um percentual
corresponde a 35% dos consumidores de relevante, cerca de 40% que se encontravam
drogas nas capitais do País (BASTOS; BERTONI, 2014). em situação de rua no momento em que foi
Entre os vários tipos de Substâncias realizada a pesquisa usavam crack. Bastos
Psicoativas (SPA) existentes, o artigo tem e Bertoni (2014) relataram ser o perfil geral
como foco o uso prejudicial do crack, pelo dos UC composto na sua maioria de jovens,
uso disseminado e crescente no Brasil a negros, de baixa escolaridade, vivendo em
partir dos anos 1990, pelo destaque na mídia situação de rua e sem emprego fixo, apresen-
e pela forte associação a aspectos de vulne- tando-se como um grupo de extrema vulne-
rabilidade social (NAPPO; SANCHEZ; OLIVEIRA, 2011). rabilidade social. Assim, a compreensão do

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Revisão sistemática da literatura sobre crack: análise do seu uso prejudicial nas dimensões individual e contextual 313

uso prejudicial de crack como um problema elementos universais e objetivos, mas há contex-
social é fundamental para pensar em estraté- tos sociais e culturais diferentes, de substâncias
gias de intervenção. diferentes e realizada por indivíduos diferentes e,
A vulnerabilidade é um conceito aplicável a sem a devida atenção a essas diferenças não é
qualquer dano ou condição de interesse para a possível se compreender o fenômeno.
saúde pública como, por exemplo, o uso pre-
judicial de crack e outras drogas. Reforça-se Dessa forma, diante da complexidade da
aqui que a abordagem da prevenção ao uso discussão sobre drogas, objetiva-se, neste
de drogas não depende apenas da informação artigo, analisar a literatura brasileira e inter-
acrescida da vontade do indivíduo, mas de uma nacional acerca do padrão de uso do crack,
série de fatores individuais, coletivos e contex- suas especificidades e os fatores individuais
tuais, sendo a vulnerabilidade definida como e contextuais envolvidos nesse uso, de modo
a compreender os fatores de vulnerabilidade
[...] a chance de exposição das pessoas ao social associados e refletir acerca das estra-
adoecimento como a resultante de um con- tégias de intervenção em saúde pública.
junto de aspectos não apenas individuais, mas
coletivos, contextuais, que acarretam maior
suscetibilidade à infecção e ao adoecimento e, Metodologia
de modo inseparável, maior ou menor disponi-
bilidade de recursos de todas as ordens para se Trata-se de uma revisão sistemática da litera-
proteger de ambos. (AYRES ET AL., 2005, P. 123). tura sobre crack, que responde a uma questão
norteadora usando métodos sistemáticos e
No campo do cuidado às pessoas em uso explícitos para selecionar e avaliar pesqui-
prejudicial de drogas, é importante investir em sas relevantes ao tema (SAMPAIO; MANCINI, 2007).
ações redutoras de vulnerabilidades a esse uso, Realizou-se busca em bases eletrônicas de
entendendo que essas pessoas não são vulne- publicações científicas, sendo identificadas as
ráveis, mas estão vulneráveis a algo, em algum seguintes: Scopus; Public/Publisher Medline
grau, e em um tempo e espaço definido; ou (PubMed); Scientific Electronic Library Online
seja, a vulnerabilidade é resultante da dinâmi- (SciELO), Web of Science; Elsevier e Medical
ca relação entre os componentes individuais e Literature Analysis and Retrieval System Online
sociais (AYRES, 2002; SODELLI, 2015). Nesse sentido, as (Medline). Utilizou-se o Portal de Periódicos
intervenções e políticas públicas devem levar Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de
em conta a vulnerabilidade associada ao uso Pessoal de Nível Superior) como fonte de re-
prejudicial de crack e outras drogas. ferências, uma vez que ele oferece acesso a
Este artigo aborda os fatores associados textos completos disponíveis em mais de 37
ao uso prejudicial de crack partindo de um mil publicações periódicas, internacionais e
modelo multidimensional de drogas (ZINBERG, nacionais e a diversas bases de dados. Como
1984) que reforça a tese das drogas como um período de busca, utilizou-se os últimos seis
problema complexo, em que é preciso consi- anos de produção, de janeiro de 2010 a junho de
derar três importantes dimensões de análise 2016. Optou-se por tal período porque o debate
para sua intervenção: as características indi- sobre crack se ampliou nos últimos anos com o
viduais (o indivíduo); os diferentes efeitos e surgimento de novas políticas públicas como o
usos ou padrão de consumo de SPA (a droga) Programa Crack é Possível Vencer (BRASIL, 2010).
e os fatores sociais envolvidos nesse consumo Cabe destacar, ainda, que já foi realizado um
(o contexto). Segundo Fiore (2013, P. 6), estudo similar de revisão sistemática sobre o
tema pelos autores Zanotto e Buchele (2013) no
[...] não há substância nem um indivíduo como período anterior de 2000 a 2010. Os descritores

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314 TEIXEIRA, M. B.; ENGSTROM, E. M.; RIBEIRO, J. M.

e termos MesH consultados nas buscas foram: definição dos artigos selecionados, foram feitas
‘Crack users’; ‘crack cocaine’; ‘crack addiction’ a leitura dos resumos e dos artigos completos
no campo ‘título e/ou abstract’. Em seguida, por dois pesquisadores. Foi aplicado o protoco-
foi feita uma combinação por meio do conec- lo AMSTAR (Assessement the Methodological
tor boleano and com ‘Policy’; ‘Public Policy’; Quality of Systematic Reviews) (SHEA ET AL., 2007)
‘Public Health’, no campo ‘Título e/ou abstract’ com alcance de 9 itens dentro dos 11 solicitados
+ ‘keywords’. Foram eleitos artigos nos idiomas (apenas os itens ‘não acesso a literatura cinzen-
inglês, espanhol e português. Foram utilizados ta’ e o ‘não realização de teste de homogenei-
como critério de inclusão para seleção dos dade’ não se aplicaram a esse tipo de revisão).
artigos: estudos que abordassem UC, publica- A síntese do resultado da busca realizada nas
dos nas bases de dados no período definido e bases pesquisadas se encontra sistematizada
na língua portuguesa, inglesa ou espanhola. Já no fluxograma ( figura 1). Ao se iniciar a leitura
como critérios de exclusão intencionais utili- completa dos artigos, observou-se que 78 deles
zou-se: os estudos experimentais, os estudos não abordavam diretamente estudos com usu-
que não investigaram UC, os estudos farma- ários de crack, sendo, portanto, excluídos do
cológicos e os estudos que abordaram outras estudo, ficando, assim, a análise crítica de 37
drogas que não especificamente o crack. Para artigos completos.

Figura 1. Fluxograma

PORTAL CAPES
Nº de artigos
‘crack cocaine’ OR ‘crack users’
identificados = 1127 OR ‘crack addiction’ AND ‘Policy’
OR ‘Public Policy’
Descritores: OR ‘Public Health’

Critérios de Refinamento
Base Capes: últimos 10
anos = 1127
Revisado por pares = 506
Excluídos heroína e
metanfetamina = 64

Critérios de exclusão dos


resumos e títulos: os estudos
experimentais, os estudos que
Estudos selecionados não mencionavam a palavra
para leitura dos crack no resumo; os estudos
resumos e títulos farmacológicos e os estudos
= 442 específicos de álcool,
cocaína.

Estudos selecionados
= 144 resumos para
leitura completa da
primeira busca
Estudos excluídos com
base nos resumos e
duplicados das duas
buscas = 28

Estudos selecionados
para leitura integral
de ambas as buscas
=116
Estudos excluídos após
leitura na íntegra = 78
estudos que não
utilizaram usuários de
crack na amostra
Amostra final:
37 artigos

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Revisão sistemática da literatura sobre crack: análise do seu uso prejudicial nas dimensões individual e contextual 315

Na análise dos artigos, dois eixos temá- (ensaio de campo=1; coorte=5 e inquéri-
ticos foram criados como categorias emer- to=15); 13 utilizaram metodologia qualitativa
gentes: 1. Características do uso prejudicial e 3 estudos adotaram ambas as metodologias
de crack; 2. Fatores individuais e sociais as- (inquéritos e pesquisa social) (quadro 1).
sociados ao uso prejudicial de crack. Cada Sobre a seleção dos participantes, 15 estudos
artigo foi analisado segundo esses eixos, o foram de base comunitária ou populacional,
ano de publicação e o país de estudo, siste- 13 estudos fizeram seleção a partir de servi-
matizados no quadro 1. ços de saúde ou sociais e 2 estudos incluí-
ram participantes de ambas as localizações.
Destaca-se que 6 estudos incluíram em seu
Resultados universo de estudo, de forma exclusiva ou
complementar a outros grupos, PSR. Apenas
A distribuição temporal das 37 publicações 1 estudo foi realizado exclusivamente em
analisadas foi a seguinte: 6 artigos (2010); 9 gestante UC. A grande maioria dos estudos
(2011); 5 (2012); 4 (2013); 7 (2014) e 6 (2015). incluiu pessoas de ambos os sexos; 6 incluí-
No que se refere aos locais do estudo, 11 foram ram apenas homens e 3 apenas mulheres. A
do Canadá, 19 do Brasil, 2 dos Estados Unidos, faixa etária dos participantes foi principal-
2 de países europeus e 1 do México. Sobre o mente composta por adultos jovens (entre 18
desenho, 21 foram estudos epidemiológicos e 50 anos).

Quadro 1. Análise dos artigos segundo a metodologia e eixos temáticos


METODOLOGIA:
Método Quanti/qualitativo, misto Eixo 2:
AUTOR Eixo 1:
Fatores individuais e contextuais (sociais)
ANO População estudada (n, sexo, idade) Padrão de consumo de crack
relacionados ao uso de crack
PAÍS, ESTADO Critério de inclusão,
Base comunitária/serviços
WERB et al. Quantitativo (quanti), coorte Poliusuário População em Situação de Rua (PSR)/
(2010) Base comunitária moradia instável
Canadá, Vancouver N = 1603 usuários de crack (UC) em Prostituição
situação de rua
Ambos os sexos.
PAQUETTE et al. Quanti, conveniência Poliusuário (cocaína) PSR
(2010) Base comunitária Idade de início de uso do crack: jovem Contexto familiar conturbado (história
Canadá, Montreal N = 203 Jovens UC em situação de familiar de uso de SPA)
rua
Média de 19 anos
Ambos os sexos.
FICSHER et al. Misto: Quanti e Qualitativo (quali) Poliusuário (álcool, maconha e opióides) PSR/moradia instável
(2010) N=148 UC Atendidos em centros Compartilhamento de apetrechos Baixa renda
Canadá, British comunitários socais e de saúde Uso em cachimbos Práticas ilícitas
Columbia Comprometimento no estado de saúde
OLIVEIRA; PONCE; Quali, etnografia, Poliusuário (álcool, heroína, opióides, Baixa escolaridade
NAPPO N = 30 UC na maioria homens; metadona e ansiolítico) Desemprego
(2010) Média entre 20 e 40 anos Baixo custo da droga
Espanha, Barcelona Ambos os sexos Uso em cachimbos ou canudos
Padrão de uso compulsivo
Efeitos da droga: fases prazerosa, desa-
gradável, fissura, depressão e alucinação

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 311-330, JAN-MAR 2017


316 TEIXEIRA, M. B.; ENGSTROM, E. M.; RIBEIRO, J. M.

Quadro 1. (cont.)

ROTHERDAM- Quanti, coorte Compartilhamento de apetrechos Comportamento de risco sexual


-BORUS et al. N= 875 inicial e 425 no final Padrão de uso compulsivo
(2010) UC em situação de rua inscritos em
Estados Unidos, Los programas de Redução de Danos (RD)
Angeles Ambos os sexos
RIBEIRO; Quali, análise temática Poliusuário (maconha e álcool) Comportamento de risco sexual
SANCHEZ; NAPPO N = 28 UC Padrão de uso compulsivo Desemprego
(2010) Tempo de uso durante a vida > 11 anos Prostituição
Brasil, São Paulo Uso coletivo (grupal) como fator protetor Práticas ilícitas
e em ambiente mais protegido
Efeitos da droga (Fissura, paranoia)
Overdose
IVSINS et al. Quali, entrevista semiestruturada Poliusuário Relação com a marginalidade;
(2011) Base comunitária Compartilhamento de apetrechos Comprometimento do estado de saúde
Canadá, Vitoria N = 31 UC selecionados a partir de (descuido no autocuidado)
Programa de Distribuição de Kits uso Percepção de insegurança pessoal e
seguro comunitária
Ambos os sexos
MALCHY et al. Quanti, 2 estudos seccional (antes e Uso e compartilhamento de apetrechos Comportamento de risco sexual
(2011) após a intervenção)
Canadá, Vancouver Base comunitária
N = 206 UC
Ambos os sexos
TI et al. Quanti, coorte Uso e compartilhamento de apetrechos
(2011) N = 503 UC Dificuldade de aquisição de apetrechos
Canadá, Vancouver Ambos os sexos como cachimbo
Efeitos da droga: fissura
TOBIN et al. Quanti, estudo seccional multicêntrico Poliusuário (maconha) Comprometimento do estado de saúde
(2011) Base comunitária Padrão de uso compulsivo Comportamento sexual de risco
Estados Unidos da N =230 homens afrodescendentes; Identidade bissexual associada ao crack
América, Baltimore sendo 84 UC e 146 não UC; Relação com a rede social e sexual;
Prática homossexual nos últimos 3
meses.
Sexo masculino
DIAS et al. Quanti, coorte Poliusuário (álcool, cocaína aspirada) Relação com a marginalidade
(2011) N =131 UC internados em hospital Idade de início de uso: media 22 anos Maior exposição a situações de violên-
Brasil, São Paulo geral sendo N = 107 amostra final Número de pedras consumidas cia (óbito por homicídio)
Ambos os sexos Padrão de uso compulsivo
Abstinência após 12 anos de alta
Dependência de crack
NAPPO; SANCHEZ; Quali Idade de início de uso: media 20 anos Baixa escolaridade
OLIVEIRA N = 75 mulheres UC > 14 anos Uso e compartilhamento de apetrechos Desemprego
(2011) Adulto jovem (média de 30 anos) Prostituição diariamente com 4 a 6
Brasil, São Paulo Sexo feminino parceiros ao dia
Gravidez e aborto
Maior exposição a situações de violên-
cia Violência física (estupro)
Comprometimento do estado de saúde
Comportamento de risco sexual
CHAVES et al. Quali Padrão de uso compulsivo Baixa renda
(2011) N = 40 sendo 31 UC Número de pedras consumidas Baixa escolaridade
Brasil, São Paulo N = 9 ex UC Efeitos da droga: fissura em 100% Desemprego
> 18 anos atendidos na Rede de Saúde Uso coletivo (com amigos) Prostituição
Adultos jovens Maior exposição a situações de vio-
Ambos os sexos lência

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 311-330, JAN-MAR 2017


Revisão sistemática da literatura sobre crack: análise do seu uso prejudicial nas dimensões individual e contextual 317

Quadro 1. (cont.)

HORTA et al. Quanti; estudo seccional Poliusuário (maconha, álcool e nicotina) Desemprego/sem ocupação regular
(2011) N = 95 UC atendidos em Caps e Idade de início de uso > 18 anos Estigma
Brasil, Porto Alegre Capsad Padrão de uso compulsivo
Sexo masculino Número de pedras consumidas
BISCH et al. Quanti, estudo descritivo retrospectivo Poliusuário (maconha, álcool, tabaco e
(2011) N=40 jovens entre 16 e 24 anos, solventes)
Brasil Entrevistas com UC do Vivavoz (ser- Padrão de uso compulsivo
viço de acolhimento telefônico do Consumo diário de crack
governo federal) Tempo de uso durante a vida (mais de
Ambos os sexos 2 anos)
Número de pedras consumidas
ROY et al. Misto: Quanti e Quali Preferência do uso do crack em relação
(2012) Quanti: N= 387 (M/F), sendo 64 à cocaína
Canadá, Montreal UC em situação de rua (PSR) e 323 Efeitos da droga: efeitos mais rápido,
usuários de cocaína atendidos em menos marcas no corpo
programas de Prevenção de HIV/HCV Baixo custo de aquisição e maior facilida-
(serviços). de na aquisição
Ambos os sexos

HANDLOVSKY Quali Padrão de uso compulsivo ou esporádico Contexto familiar como fator protetor
et al. N = 27 UC mulheres em um Centro Uso e compartilhamento de apetrechos Comprometimento do estado de saúde
(2013) Comunitário de Atenção Social e Overdose (hepatite, tuberculose, HIV)
Canadá, Vancouver Direitos Humanos. Relação com a rede de apoio social
A idade média foi de 44,9 anos (de 22
a 59,5)
Sexo feminino
TI et al. Quanti, 2 coortes, Compartilhamento de cachimbos, sendo Prostituição
(2012) N = 914 UC; maior dificuldade de acesso ao cachimbo Violência (presença policial dificultou
Canada, British Ambos os sexos em mulheres acesso a praticas seguras)
Columbia Comprometimento do estado de saúde
(HIV positivo, lesões bucais, nos dedos
e orofaringe)
ALVES; ARAÚJO Ensaio Clínico quase experimental; Poliusuário (álcool, nicotina, cannabis,
(2012) N = 30 UC internados naUnidade de cocaína em pó)
Brasil, Porto Alegre Dependência Química de Hospital A idade de início do uso: 14,07 anos
Psiquiátrico Número de pedras de crack consumidas
Média de idade: entre 18 e 50 anos Média de 7 pedras ao dia
de idade Efeitos da droga: Fissura e ansiedade
Sexo masculino
PAIM KESSLER Quanti, estudo seccional multicên- Desemprego
et al. trico. Contexto familiar conturbado
(2012) N = 738: sendo 293 UC, 126 cocaína Ilegalidade (atividades ilícitas e proble-
Brasil, Porto Alegre, em pó e 319 outras drogas recruta- mas judiciais)
Rio de Janeiro, São dos em 5 Centros de Tratamento de Maior exposição à situação de violência
Paulo e Salvador Drogas e agressão física, óbito por homicídio
Ambos os sexos Comprometimento do estado de saúde
Comorbidades com transtornos psiquiá-
tricos: > taxa de DPAS em UC.
KOPETZ et al. Quanti, estudo seccional Baixa renda
(2014) N = 211 UC em comunidade vulnerável Comportamento de risco sexual princi-
EUA, Washington e em tratamento residencial; palmente em mulheres
Ambos os sexos

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318 TEIXEIRA, M. B.; ENGSTROM, E. M.; RIBEIRO, J. M.

Quadro 1. (cont.)

JORGE Quali Poliusuário Alternativa de consumo para população


(2013) N = 21 UC Uso precedente de álcool, tabaco, maco- de baixa renda associado a maiores
Brasil, Fortaleza N = 15 trabalhadores do Capsad. nha e cocaína em pó danos de saúde
Maioria homens, adultos jovens média Padrão de uso compulsivo Relação com a marginalização social
32 anos Busca incessante de prazer Uso em ambientes inóspitos
Ambos os sexos Maconha associado ao crack como redu- Inibição da fome e prejuízo da alimen-
tor da fissura (RD) tação
Compartilhamento de apetrechos Comprometimento do estado de saúde
Consumo em espaços públicos e priva- com lesões bucais
dos Maior suscetibilidade a doenças
Baixo custo de aquisição
GABATZ et al. Quali Contexto familiar como fator protetor
(2013) N = 8 UC internados em hospital ou de risco
Brasil, Rio Grande geral; Práticas ilícitas
do Sul Sexo masculino Maior exposição à situação de violência;
Comprometimento do estado de saúde:
Apoio social
a) SANTOS CRUZ a) Quanti, inquérito, Poliusuário Relação com a marginalidade social e
et al. (2013a) N = 160 UC jovens de 18 a 24 anos ilegalidade
b) SANTOS CRUZ base comunitária Práticas ilícitas
et al. (2013b) b) Quali Comprometimento do estado de saúde
Brasil, Rio de Janei- Grupo Focal com 16 jovens UC Comportamento sexual de risco
ro e Salvador. Base comunitária
Ambos os sexos
KUO et al. Quanti, estudo seccional: clientes de 50% dos clientes eram UC Alta taxas de PSR (desabrigados)
(2014) 28 sites de RD Poliusuário Relação com a marginalidade social
Canadá, British Ambos os sexos Maconha associado ao crack como redu-
Columbia tor da fissura
STERK; ELIFSON; Quanti, seccional Espaços de consumo: 55% relataram PSR
DEPADILLA N = 461 UC afrodescendentes adultos, usar crack somente em casa, ou casa de Moradia estável
(2014) Média de idade 46 anos parentes e amigos íntimos Prostituição/troca de sexo pela droga
EUA, Atlanta Base comunitária Uso individual (14%) e coletivo Práticas ilícitas (envolvimento com a
Ambos os sexos Consumo em dias: menor em domicílio distribuição da droga/tráfico);
do que na rua e sozinho ou com amigos Maior exposição a situações de violên-
íntimos em relação a conhecidos cia (violência comunitária, desordem
Maior consumo quando há envolvimento social percebida pela comunidade)
com tráfico
URSIN Quali PSR
(2014) N =11 UC jovens em situação de rua; Práticas ilícitas
Brasil, Salvador Base comunitária
Sexo masculino
ZAVASCHI et al. Quanti, Metade das gravidas UC relataram uso Baixa renda
(2014) N = 145 sendo 56 UC grávidas e 89 de crack na gestação Gravidez (quase metade a gravidez foi
Brasil, Porto Alegre mulheres NUC (não usuários de crack) planejada)
em estado puerperal em uma materni- Contexto familiar frágil (baixo suporte
dade (hospital geral). marital)
Sexo feminino Comprometimento do estado de saúde
(HIV, hepatite C, sífilis)
Comorbidades psiquiátricas com DPAS
PAULA et al. Quali Padrão de uso compulsivo Práticas ilícitas
(2014) N = 21 UC e familiares e trabalhadores Efeitos da droga: fissura Contexto familiar (atuando tanto como
Brasil, Fortaleza em serviço especializado (Capsad) fator protetor como de risco)
Maior exposição à situação de violência
(violência familiar)

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Revisão sistemática da literatura sobre crack: análise do seu uso prejudicial nas dimensões individual e contextual 319

Quadro 1. (cont.)

MOURA et al. Quanti, estudo seccional, multicên- Poliusuário (maconha) Contexto familiar conturbado
(2014) trico
Brasil, Porto Alegre, N = 771 usuários de drogas sendo 283
São Paulo e Sal- UC atendidos em serviços especializa-
vador dos de saúde
Média de idade 31 anos
Ambos os sexos
CRUZ et al. Quanti, seccional, Fora de tratamento: compartilhamento PSR
(2014) N = 111 UC jovens sendo 81 PSR (fora de apetrechos Práticas ilícitas
Brasil, Rio de Ja- de tratamento) e 30 em tratamento Relação com a marginalidade social
neiro com programa de internação Baixa escolaridade
Sem ocupação regular (maior mendi-
cância nos UC em situação de rua)
Comportamento de risco sexual
NARVAEZ et al. Quanti, seccional, base populacional; Poliusuário (cocaína em pó) Baixa renda
(2014) N = 1560 sendo 2,51% UC alguma vez Práticas ilícitas (porte de arma, envolvi-
Brasil, Pelotas na vida mento com tráfico de drogas)
Base comunitária; Maior exposição à situação de violência
Jovens entre 18 e 24 anos (Agressão; Violência policial, óbitos por
Maioria homens homicídios)
Ambos os sexos Mortalidade estimada em 20%
Comportamento de risco sexual (uso
menor de preservativos)
Início da vida sexual aos 14 anos
Comorbidades psiquiátricas (DPAS)
BERTONI et al. Quanti, seccional, Poliusuário (cocaína em pó) PSR/Moradia instável
(2014) N = 159 UC sendo 124 homens e 35 Tempo de uso de crack durante a vida: 4 Baixa escolaridade
Brasil, Rio de Janei- mulheres anos para sexo M e 4,9 para sexo F Sem ocupação regular/múltiplas fontes
ro e Salvador Base comunitária Número de pedras ao dia: 10 pedras para de renda (prostituição, trabalho remu-
Maioria não brancos homens e 8 para mulheres. nerado, mendicância)
Ambos os sexos Uso diário de crack: 53% dos homens Prostituição maior em mulheres/troca
relataram uso diário em relação a 68% de sexo por drogas
das mulheres Maior emprego em homens
Comprometimento do estado de saúde
MCNEIL et al. Quali, Espaços de consumo: na rua, pouco PSR
(2015) N = 23 UC acesso em espaços de uso seguro (Safe Baixa renda
Canadá, British Idade média de 40 anos Smoke Room) Maior exposição a violência
Columbia Base comunitária Compartilhamento de apetrechos Estigma
Ambos os sexos
VALDEZ et al. Quali, Poliusuário PSR
(2015) N = 156 UC em situação de rua que Espaços de consumo: ambiente privado Práticas ilícitas
México não estão em tratamento e público Sem ocupação regular, trabalho informal
Base comunitária Padrão de uso compulsivo e uso episó- Contexto familiar conturbado ou forta-
Maiores de 18 anos dico lecido
Maioria homens Identificado 4 tipologias de padrão de Relação com a rede social
Ambos os sexos consumo: 1. Dabbler: rede social de não usuários;
1. Dabbler: UC amador/recreativo (oca- tem família inserção social
sional, fase inicial, uso em local semipri- 2. Stable user: trabalho informal, rede
vado) social de UC e não usuários
2. Stable user: UC estável e esporádico 3. Piedroso: rede social predominante de
(ambiente privado, frequência uso inter- UC e traficantes, uso crônico, envolvi-
mitente, uso controlado com RD) mento em atividades ilegais

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 311-330, JAN-MAR 2017


320 TEIXEIRA, M. B.; ENGSTROM, E. M.; RIBEIRO, J. M.

Quadro 1. (cont.)
3. Piedroso: Crack Head – UC crônico ou 4. Old Head: trabalho estável, envol-
compulsivo (ambiente público e semi- vimento com atividades ilícitas, rede
público, uso de longo tempo, comporta- social de UC, poliusuário e alcoolista,
mentos focados na aquisição da droga) longas histórias de encarceramento,
4. Old Head: UC de longo tempo (uso obrigações sociais mínimas
frequente ou episódico, ambiente privado
ou semipúblico)
GONÇALVES et al. Quali; Poliusuário (álcool; maconha, êxtase, PSR/moradia instável
(2015) N =27 sendo 20 UC cocaína em pó; benzodiazepínicos) Baixa renda
Brasil, São Paulo N = 07 profissionais de saúde Padrão de uso compulsivo Desemprego
Base comunitária Efeitos da droga: fissura e paranoia Baixa escolaridade
Idade entre 19 e 49 anos Maconha como RD: fator protetor e Contexto familiar com perda familiar
Ambos os sexos redução dos efeitos negativos, redução Práticas ilícitas
da quantidade de uso do crack e oferece Maior exposição a situações de violên-
menor estigmatização cia (ferimentos físicos)
Estigmatização (‘craqueiro’)
VERNAGLIA; VIEI- Quali, Padrão de uso compulsivo PSR
RA; SANTOS CRUZ N = 31 UC em situação de rua Nas mulheres há cuidado responsável Baixa escolaridade
(2015) Base comunitária (Manguinhos e com os filhos enquanto os homens há Desemprego e trabalho informal
Brasil, Rio de Ja- Jacarezinho) desresponsabilização Maior exposição a situações de violên-
neiro Idade superior a 18 anos cia (violência no cotidiano, agressão
Ambos os sexos entre casais)
Prostituição/troca de sexo por droga
Gravidez planejada (a droga não seria
responsável pela gestação)
Sexo seguro com uso de preservativos
Presença de uma rede social com com-
partilhamento de comida e pedra de
crack
Fonte: Elaboração própria.

Eixo 1: Características do uso prejudi- aumentou em cerca de 84%. A maconha, ao


cial de crack promover um padrão menos compulsivo,
foi citada como droga usada para RD em 4
Nesse eixo, serão apresentadas as subcate- estudos (GONÇALVES ET AL., 2015; JORGE, 2013; KUO ET AL.,
gorias do perfil de consumo dos usuários: 2014; RIBEIRO; SANCHEZ; NAPPO, 2010).
poliusuários (entendido uso concomitante Quanto ao ‘padrão de consumo de crack’,
de outras SPA); presença de padrão compul- seu efeito rápido e intenso faz com que a
sivo; e outras características. pessoa queira repetir o consumo, levando
Metade dos estudos citou pessoas poliu- a um padrão compulsivo e heterogêneo.
suárias, 51% dos estudos, sendo o crack as- Quanto à periodicidade, foram relatados
sociado principalmente à maconha, álcool, usos diário, semanal ou mensal, sendo que
heroína, cocaína. Cabe destacar que Jorge 6 estudos descreveram o número de pedras,
et al. (2013) observaram predomínio de início variando de 1 a 14 pedras/dia (média 10/dia).
do uso da cocaína na forma em pó, migrando O uso compulsivo ou exagerado foi denomi-
para a fumada. Paquette et al. (2010) ressaltam nado por alguns autores como ‘padrão binge
que os jovens que usavam várias substâncias de consumo’ (CHAVES ET AL., 2011; DIAS ET AL., 2011;
tinham maior risco de iniciar o uso de crack, JORGE, 2013) e foi mencionado em 14 estudos.
sendo que, para cada tipo adicional de subs- Quanto à relação de consumo e custo de
tância usada, o risco de iniciar o uso de crack aquisição, observou-se que o baixo custo do

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 311-330, JAN-MAR 2017


Revisão sistemática da literatura sobre crack: análise do seu uso prejudicial nas dimensões individual e contextual 321

crack e o aumento do preço da cocaína em pó et al. (2011) identificaram que jovens UC que
promoveu a disseminação do seu consumo usaram mais de 31 pedras por dia não conse-
nas camadas sociais economicamente guiram abstinência no final do atendimento.
baixas. Em 3 estudos (JORGE, 2013; NAPPO; SANCHEZ; Em relação à overdose, apenas 2 estudos re-
RIBEIRO, 2012; OLIVEIRA; PONCE; NAPPO, 2010), o crack lataram a sua ocorrência (HANDLOVSKY ET AL., 2013;
se tornou uma alternativa ao consumo da RIBEIRO; SANCHEZ; NAPPO, 2010).
cocaína em populações mais carentes, vindo Foram identificados espaços de consumo,
a ser uma droga usada por populações mais tanto coletivos quanto individuais, públi-
pobres e marginalizadas; enquanto a cocaína cos ou privados (ruas, locais públicos para
está associada ao uso de pessoas com poder consumo; casa de amigos; própria casa).
aquisitivo mais elevado e como símbolo de Observou-se que o fator financeiro influên-
ostentação e poder. cia nos locais de uso. Usuários com melhor
Os efeitos do crack foram destacados em poder aquisitivo fazem uso em locais mais
13 estudos, sendo que 90% deles demos- protegidos de forma a evitar riscos de agres-
traram a fissura como efeito principal e 5 sões e violência.
associaram outros efeitos, como paranoia, O compartilhamento de apetrechos para
depressão e ansiedade. A fissura por crack uso de crack foi apontado por 9 estudos, de-
tem um papel fundamental no aumento monstrando um padrão de uso inseguro dos
da sua dependência, desencadeando um UC, facilitando, por exemplo, a transmissão
modo de uso compulsivo. Segundo relato de HIV/Aids (Síndrome da Imunodeficiência
de um usuário, “não existe uma [pedra] só. Humana). Três estudos abordaram progra-
[...] você nem terminou a primeira [pedra], mas de distribuição de kits de uso seguro nas
você já está pensando como você vai fazer práticas de consumo de crack como estraté-
para pegar a segunda” (CHAVES ET AL., 2011, P. 1171). gia de RD ao risco de transmissão de doenças
Nesses episódios, é comum os usuários pas- infecciosas (MALCHY ET AL., 2011; ROTHERAM-BORUS ET
sarem dias consumindo apenas crack, álcool AL., 2010). Houve uma preocupação com o uso
e cigarro. A ansiedade em querer fumar crack do crack em latas já que o alumínio aquecido
é tão grande que o indivíduo não consegue pode ocasionar lesão no tecido cutâneo cau-
ficar parado, pois “o corpo dói, a mente dói, o sando o aparecimento de bolhas e feridas na
coração gela, a boca do estômago trava” uma boca e língua e aumentando o risco de con-
vez que o “corpo pede [...] é uma vontade pior taminação por DST (Doenças Sexualmente
que a fome” (CHAVES ET AL., 2011, P. 1172). Ribeiro, Transmissíveis) (JORGE, 2013). Nesse sentido,
Sanchez e Nappo (2010) também identificaram 6 estudos apontaram o uso em cachimbos
que, como consequência da fissura, os usuá- como estratégia de RD. Jorge et al. (2013) ob-
rios desenvolvem um padrão de uso obriga- servaram que a forma de uso mais comum é
tório que envolve muitas vezes envolvimento na lata ou em cachimbos, sendo a substância
com situações de alto risco para manter o absorvida de forma mais intensa.
consumo da droga como comportamento Vale destacar, ainda, o estudo de Valdez
sexual de risco, ferimentos físicos e agressivi- et al. (2010) que definiu quatro tipologias de
dade aumentada na presença da fissura. padrão de consumo de crack: 1. Dabbler – UC
Apenas 2 estudos discutiram a questão amador/recreativo (ocasional, fase inicial,
da abstinência. Dias et al. (2011) relataram a uso em local semiprivado); 2. Stable user –
abstinência em relação a 32% dos usuários; UC estável e esporádico (ambiente privado,
a composição de um grupo de abstenção frequência uso intermitente, uso controlado
apoia a quebra do ceticismo quanto à possi- com RD); 3. Piedroso – Crack Head – Usuário
bilidade de abandonar o crack e de sustentar crônico ou compulsivo (ambiente público
sua abstinência ao longo do tempo. Já Bisch e semipúblico, uso de longo tempo); 4. Old

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 311-330, JAN-MAR 2017


322 TEIXEIRA, M. B.; ENGSTROM, E. M.; RIBEIRO, J. M.

Head – Usuários de longo tempo (uso fre- em relação ao consumo de SPA. O envolvi-
quente ou episódico; ambiente privado ou mento dos UC com atividades ilícitas, como
semipúblico). Já Medina e Flach (2014) abor- pequenos delitos, furtos e envolvimento com
daram as formas de uso como funcional e tráfico de drogas, foi outro fator social rela-
disfuncional; e os modos de consumo como: tado nos estudos. Oliveira, Ponce e Nappo
experimental, eventual, recreativo ou social (2010) ressaltam que práticas de delitos
e dependente; este último quando o uso é in- podem estar relacionados com a fissura que
controlável, compulsivo e intenso, provocan- o crack provoca. Outro fator relacionado
do prejuízos para a saúde física, profissional, com a ilegalidade foi a busca constante de
familiar e social. dinheiro para a aquisição do crack e a mar-
ginalização social descrita em 8 estudos.
Eixo 2: Fatores individuais e sociais Alguns deles realizados em comunidades
associados ao uso de crack vulneráveis, no Rio de Janeiro (SANTOS CRUZ ET
AL., 2013A, 2013B), observaram que os comporta-
No que se refere às condições relacionadas mentos de riscos dos UC estão associados a
com a maior vulnerabilidade pessoal e social, pessoas economicamente marginalizadas,
11 artigos relacionaram o uso de crack à PSR como a PSR. Essa relação foi vista, também,
não só no Brasil como em outros países, como em estudo recente no Canadá, que mostrou
o Canadá e EUA. Em um estudo no Canadá, que os UC estão entre os mais marginaliza-
observou-se que a iniciação ao uso de crack dos socialmente, associados à alta taxa de
parece ser muito comum nessa população, desabrigados e à poliusuários, sendo o crack
com uma taxa de incidência de 136.6/1.000. o mais prevalente; e a problemas de saúde
No estudo de Paquette (2010), a taxa é ainda como infecções por HIV (KUO ET AL., 2014).
maior quando a análise se limita aos jovens O óbito por homicídio também foi a causa
que iniciaram o uso de drogas por uma nova mais prevalente das mortes de UC segundo 3
via de administração de cocaína, com 205,8 estudos. Dias et al. (2011), em um estudo com
casos/1.000. UC após 12 anos de alta hospitalar, encon-
Outro fator contextual importante asso- traram 27 ex-usuários que já haviam fale-
ciado aos UC é o desemprego ou a falta de cido em 107; dos que haviam falecido, 59%
uma ocupação regular. Segundo Ribeiro, morreram de forma violenta, sendo a Aids a
Sanchez e Nappo (2010), os UC ficam muitas segunda maior causa de morte.
vezes desempregados após alguns meses do O estudo de Chaves et al. (2011) também
uso de droga. Isso geralmente ocorre porque ajuda a explicar o envolvimento do UC
o usuário perde o interesse pelo trabalho ou com atividades ilícitas, relatando que, uma
não consegue mais obedecer às regras. vez que o crack adquiriu lugar de extrema
Quanto às fontes de renda dos UC, foram importância na vida do indivíduo, a urgên-
identificadas: o trabalho sexual, a prosti- cia em consumi-lo muda, muitas vezes,
tuição e a mendicância. Ribeiro, Sanchez os valores que até então norteavam sua
e Nappo (2010) identificaram a prostituição conduta, levando-o a realizar atividades que
como a modalidade mais frequente usada colocam em risco a sua integridade moral
pelas mulheres para a obtenção da droga, e física; pois o que está em foco é o uso de
com risco iminente de infecção por DST/ mais crack. Para a pessoa em fissura, perder
Aids. a família, gastar altas quantias, descuidar do
Além das características pessoais, é plau- próprio corpo não parece tão ruim quanto
sível presumir que fatores externos, como não usar crack. Ursin (2014), em seu estudo
o mercado de drogas e a rede social, podem em cenas de uso em Salvador, ressalta que
influenciar nas escolhas que os jovens fazem o crack, como substância, aparece como um

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 311-330, JAN-MAR 2017


Revisão sistemática da literatura sobre crack: análise do seu uso prejudicial nas dimensões individual e contextual 323

mediador dando coragem para roubar; mas O estudo de Sterk, Elifson e Depadilla
homicídios podem ou não ocorrer. (2014) mostrou que o ambiente de desordem
A busca obcecada pela droga suscita com- social percebida foi um preditor significa-
portamentos de risco que comprometem a tivo para o número de dias de uso do crack.
saúde do indivíduo e suas relações sociais. O envolvimento com distribuição de drogas
Observou-se que o uso da droga pode levar e com o sexo também foi associado ao
a delitos, tais como furtos e outras atividades aumento do número de dias. A situação de
que ajudem a consegui-la (GABATZ ET AL., 2013). gravidez e abortos em UC foi relatada em 3
Mais um aspecto relacionado com a ilega- estudos. Zavaschi et al. (2014) observaram que
lidade foi a presença do tráfico de drogas um grande número de UC tiveram um maior
na rede de relações dos UC (RIBEIRO; SANCHEZ; número de gestações e de partos prematuros
NAPPO, 2010). Esses riscos são associados, prin- e um QI (Quoeficiente de Inteligência) mais
cipalmente, com a violência na ‘boca’ (lugar baixo do que as não usuárias de crack. Essas
da venda da droga) causada por confronto UC pertenciam a uma classe social mais
com a polícia. baixa, com etnia não branca e com frequên-
Kopetz (2014) encontrou resultados que cia de uso de álcool e tabaco durante a ges-
sugerem que a experiência da exclusão social tação. É relevante dizer-se que 75% das UC
também pode ser um fator de risco impor- não tiveram assistência pré-natal, por isso,
tante relacionado com práticas de sexo inse- apenas 25% informaram ter doenças infec-
guro, estando as mulheres mais vulneráveis. ciosas. 42% tiveram alguma infecção diag-
Um outro aspecto social relevante é a es- nosticada como HIV, hepatite C ou sífilis.
tigmatização dos UC. O estigma envolvendo Outro resultado encontrado foi que os bebês
o uso de crack é bem maior que com outras de mães UC pesavam significativamente
drogas, devido a algumas características, menos do que o grupo de não usuárias. O
como: morar na rua, usar a droga em grandes estudo observou, ainda, que 47% relataram
conglomerados de pessoas, estar muitas que a gestação foi planejada, o que levou
vezes sujo, com imagem associada a de um os autores a indagar se isso poderia ser um
‘zumbi’. Ursin (2014) chama a atenção para a resultado da dificuldade em fazer planos re-
necessidade de desenvolver uma menor es- alistas na tentativa de recuperar a perda de
tigmatização, por meio de um debate público outros filhos, já que a maioria dos bebes não
sobre o consumo de crack. ficaram com suas mães.
Outro fator social associado ao consumo É esperado que os danos sociais e de
de drogas foi o contexto familiar; conside- saúde atinjam, de forma mais intensa, os
rado tanto como fator protetor (PAULA ET AL., grupos com maior vulnerabilidade (JORGE ET
2014; HANDLOVSKY ET AL., 2013) quanto como fator AL., 2013). Assim, os estudos apontaram para
de risco, quando o relacionamento familiar é um aumento nos fatores de risco e compro-
problemático (GONÇALVES ET AL., 2015; PAIM KESSLER metimento no estado de saúde devido ao uso
ET AL., 2012; PAQUETTE ET AL., 2010). No estudo de de crack relacionado com o comportamento
Paquette et al. (2010), as pessoas que têm, no de risco sexual. O relato de sexo inseguro foi
seu contexto familiar, um parente com pro- descrito em 12 estudos.
blema de uso de SPA reduziram o risco da Tobin et al. (2011), em sua pesquisa com-
iniciação do crack em quase 50%. parando as características da rede social e
Os trabalhadores de um serviço de saúde sexual de UC e de não usuários nos EUA, ob-
mental também associaram o uso do crack às servaram que a rede sexual dos não usuários
relações familiares difíceis e pontuaram que tinha um número muito maior de parceiros
a família é a principal motivadora das recaí- que usavam preservativos do que a rede de
das (PAULA ET AL., 2014). UC sendo, portanto, o uso de crack associado

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324 TEIXEIRA, M. B.; ENGSTROM, E. M.; RIBEIRO, J. M.

ao aumento de risco sexual por práticas Discussão


sexuais sem preservativos. Constataram,
ainda, que a rede sexual dos UC é diversifi- Em síntese, os estudos apontam para um
cada e que consiste de pessoas de ambos os uso do crack mais próximo do padrão com-
sexos, levando a uma forte associação dos pulsivo, associado à vulnerabilidade social,
UC com a identidade bissexual e que 91% embora existam relatos de uso eventual e re-
dos UC tiveram resultado positivo para HIV creativo, contrariando a divulgação na mídia
(TOBIN ET AL., 2011). O crack também foi associa- de que o crack é extremamente viciante e
do ao comportamento de risco sexual, em leva a morte em pouco tempo.
estudo recente realizado no sul do Brasil, no Observou-se, ainda, que os fatores sociais e
qual foi demostrado que os UC têm maior contextuais associados ao uso de crack estão
probabilidade de não usar preservativos, relacionados com a maior exposição a situa-
apresentando, por isso, alto índice de com- ções de violência, marginalização, gravidez,
portamento sexual de risco com transmissão de estar em situação de rua e a estar mais ex-
de HIV (NARVAEZ ET AL., 2014). Corroborando postos a fatores de risco para a saúde, como
esses achados, o estudo de Debeck et al. comportamento de sexo inseguro, comparti-
(2009), com UC que usam também drogas lhamento de apetrechos para uso de crack e
injetáveis, demonstrou que os fumantes um grande número de parceiros sexuais que
diários de crack apresentam maior risco de levam a uma maior exposição às doenças in-
soroconversão do HIV associado a compor- fectocontagiosas, principalmente o HIV.
tamentos sexuais, bem como ao uso do crack Ao se considerar que a maioria dos estudos
em recipientes de vidros ou metal, que pro- adotaram mais métodos quantitativos e
duzem ferimentos na boca e fazem com que menos de pesquisa social, houve evidências
esses usuários se tornem mais vulneráveis à relevantes quanto à dimensão epidemioló-
transmissão do HIV. No Canadá, observou- gica e clínica dos padrões de consumo, per-
-se um grande aumento no uso de crack em sistindo, ainda, lacunas no conhecimento em
Vancouver entre os usuários de drogas inje- torno das políticas públicas sobre drogas,
táveis em situação de rua (WERB ET AL., 2010). suas motivações políticas e seus modelos de
Três estudos abordaram a relação do UC intervenção. Por isso, talvez seja necessário
com transtornos psiquiátricos, relacionando investigações por parte de outros campos
os UC com a Desordem de Personalidade além da saúde pública, como a ciência polí-
Antissocial (DPAS) que pode afetar o resul- tica, a economia e o direito.
tado dos tratamentos. Observaram, também, O cuidado aos UC e outras drogas, históri-
que UC são mais marginalizados economica- co pela área social e pela segurança pública,
mente e apresentam comportamento sexual vem sendo marcado pela baixa integração
de risco com comprometimento em seu com outros setores como o do trabalho, da
estado de saúde. Outro resultado importante educação e da saúde. Apesar da crescente
foi a baixa utilização dos serviços sociais e de assumpção do uso de drogas como um im-
saúde de UC. Essa baixa utilização pode estar portante problema de saúde pública e da
associada às dificuldades de acesso a esses não criminalização do usuário, as políticas
serviços devido tanto à distância por causa de atenção à saúde ao UC têm-se mostrado
de meios de transporte quanto ao horário de ainda de baixa cobertura, com barreiras de
funcionamento desses serviços e ao estigma acesso a esses usuários.
dos UC pelos profissionais de saúde (PAIM Há que se pensar novos modelos de
KESSLER ET AL., 2012; STERK; ELIFSON; DEPADILLA, 2014; atenção, que considerem a complexidade
ZAVASCHI ET AL., 2014). e vulnerabilidade do cuidado a usuários de
drogas, em especial aos do crack, haja vista

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Revisão sistemática da literatura sobre crack: análise do seu uso prejudicial nas dimensões individual e contextual 325

sua relação com PSR, com morbimortalidade estratégias de intervenção, várias medidas
elevada por agravos de diferentes naturezas, são importantes. Horta et al. (2011) e Jorge
com violência e exposição a fatores individu- (2013) recomendam como iniciativa redutora
ais, ambientais e sociais de risco para a vida de riscos e danos facilitar o acesso de usuá-
e saúde. Além disso, a ocorrência de proble- rios de crack aos serviços do Sistema Único
mas com a polícia ou a justiça; o desempre- de Saúde. Pessoas com maior comprometi-
go; o envolvimento em situações de violência mento social parecem não chegar às redes
traduzem problemas importantes associados de saúde, o que remete à necessidade de os
ao uso do crack, o que gera necessidades de municípios implementarem estratégias de
ações intersetoriais. facilitação do acesso, com maior envolvi-
No Brasil, a pesquisa nacional sobre o mento de agentes comunitários de saúde;
perfil dos UC (BASTOS; BERTONI, 2014) identificou com os Programas de Redução de Danos
um perfil de extrema vulnerabilidade social (PRD) ou com os Consultórios na Rua, ou
e exclusão, necessitando-se ações de saúde outras ações de aproximação entre comu-
abrangentes, integrais e intersetoriais, como nidade e serviços. Estratégias promissoras
oferta de banho, alimentação e apoio para no âmbito da saúde pública de RD, como a
completar a educação e conseguir trabalho. distribuição de apetrechos para uso seguro
As políticas e práticas devem seguir na de crack; provisão de espaços públicos para
luta da ‘contrafissura’, conceito de Lancetti uso supervisionado de drogas e ações edu-
(2015) que aborda a discussão do tema das cativas e de promoção de saúde estreitando
drogas como parte do “conjunto-droga: o contato dos profissionais de saúde com os
produção-comercialização-judicialização- UC, podem ajudar a promover uma menor
-repressão-cuidado-terapêuticas-exposição estigmatização (DEBECK ET AL., 2009; PAQUETTE ET AL.,
midiática” (LANCETTI, 2015, P. 15). 2010; MALCHY ET AL., 2011; URSIN, 2014).
A questão do crack e outras drogas torna- Os formuladores de políticas públicas bra-
-se, a cada dia, mais complexa ao envolver os sileiras deveriam priorizar as iniciativas que
meios biológico, social, psicológico e cultural promovam mudança social e ativem a cida-
das pessoas em seu uso prejudicial. Questões dania, com estratégias de RD que necessitam
como desemprego, pessoas vivendo em situ- continuar em destaque na agenda política.
ação de rua e desigualdade social geram um Como limitações do presente estudo,
novo cenário de vulnerabilidades que precisam pode-se destacar o tempo que ficou limita-
ser levadas em consideração na abordagem aos do aos últimos seis anos e a não utilização
usuários de drogas (ZANOTTO; BUCHELE, 2013). de teses, escolhas já explicitadas na seção
A compreensão dos padrões de uso, de metodologia. Justifica-se, ainda, a não
como a compulsão e a fissura gerada pelo realização de análises estatísticas e a adoção
uso do crack, é importante no delineamento de critérios quantitativos para a avaliação
de ações de controle do consumo. A exis- da qualidade dos artigos, considerando-se
tência do controle da fissura sugere que o tratar aqui de revisão exploratória da lite-
fenômeno do uso de crack ultrapassa seus ratura o máximo possível inclusiva, diante
efeitos farmacológicos e é influenciado por da complexidade do tema estudado e de sua
questões sociais, ambientais e emocionais. aplicação para políticas públicas.
Essas questões poderiam ser mais bem ex-
ploradas pelos profissionais que atuam com
atendimento a usuários de drogas e com Considerações finais
elaboração de políticas públicas sobre o
tema (CHAVES ET AL., 2011). A abordagem ao uso de drogas, em especial
No âmbito do tratamento ou das ao crack, deve estar focada na perspectiva

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da RD, um modelo de saúde que defende a de cuidados que minimizem as consequên-


vida, a autonomia, os direitos e o respeito as cias adversas do uso prejudicial de drogas,
pessoas, e não na utopia de eliminação do tanto para o indivíduo quanto para a socie-
consumo, produção e comercialização de dade. A terapêutica pautada na RD é consi-
drogas, como advogam defensores de políti- derada de ‘baixa exigência’ por não exigir
cas de ‘Guerra às Drogas’ e o proibicionismo dos usuários a abstinência como um requi-
(MEDINA; NERY FILHO; FLACH, 2014). sito obrigatório, tornando-se uma estratégia
Considera-se que coexistem diferentes desenvolvida também para pessoas que não
abordagens que norteiam as pesquisas e as desejam ou não conseguem diminuir/cessar
práticas com os usuários de drogas, são elas: o uso de drogas, bem como para os demais
1. ‘Guerra às Drogas’ ou modelo moral/crimi- usuários com dificuldade para acessar servi-
nal, que tem como objetivo maior o combate ços de saúde ou aderir ao cuidado integral à
ao tráfico de drogas e a criminalização dos saúde (HART, 2014; LANCETTI, 2015; PASSOS; SOUZA, 2011).
usuários e de traficantes, visando um mundo 5. Por último, têm-se o debate da descrimi-
livre de drogas. Está associado a um discur- nalização e da legalização das drogas, que
so antidrogas, fruto de vários tratados in- compreende que o uso delas não deve ser
ternacionais que tem como compromisso a considerado crime; assim, ao usuário deve
prevenção do consumo e a repressão da pro- ser ofertado tratamento e cuidado, e não re-
dução e oferta (MARLATT, 1999). 2. O modelo da clusão em ambiente prisional (BOTTINI, 2015).
doença (MARLATT, 1999), no qual o uso de drogas O compromisso dos profissionais e gesto-
é avaliado como um ato moral, em que a abs- res da saúde é promover acesso a um cuidado
tinência é o objetivo final. Nesse modelo, o integral nos moldes da atenção psicossocial e
tratamento dos usuários de drogas tem a in- da RD. Para isso, é necessário investir-se em
ternação ou o isolamento com objetivos para estratégias de cuidado emancipadoras, que
impedir o acesso dos usuários à SPA visando incluam informação clara proporcionando
interromper o uso. Aqui, o uso abusivo de autonomia aos usuários. Para pessoas que
drogas é tratado como dependência química, optem pelo uso de drogas, há estratégias
como uma doença crônica com indicação de de RD na saúde pública, que minimizam os
internação hospitalar, visando à estabiliza- danos à saúde e à vida.
ção do quadro (DIAS ET AL., 2011; RIBEIRO; LARANJEIRA, Como contribuição para a formulação de
2010). 3. O modelo de atenção psicossocial que políticas e ações de saúde pública no Brasil,
oferta um cuidado de base comunitária no pode-se concluir que o foco das ações e es-
território e é centrado no discurso do respei- tratégias de intervenção não podem ter como
to às diferenças, à defesa da vida, ao direito finalidade exclusiva e principal a missão de
à liberdade e à dignidade da pessoa humana, reduzir o número de usuários dependen-
cujo objetivo é a inclusão social ou reinserção tes e com problemas decorrentes do uso de
social, que se contrapõe às práticas de reco- drogas, mas sim de investir em políticas pú-
lhimento dos usuários de drogas em abrigos blicas que priorizem o acesso e a qualidade
à internação compulsória. Esse modelo tem da atenção integral, com práticas de pro-
como principal dispositivo institucional a moção da saúde, no âmbito de uma rede de
rede de atenção psicossocial constituída por saúde humanizada e integrada a outras ações
dispositivos abertos de natureza territorial e intersetoriais, cujo objetivo principal seja a
comunitária (AMARANTE, 2007; BOKANY, 2015). 4. A defesa da vida e da cidadania das pessoas. s
abordagem da RD, que se direciona à oferta

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Recebido para publicação em agosto de 2016
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crack: aspectos relacionados ao uso e abuso. Saúde

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 311-330, JAN-MAR 2017


RELATO DE EXPERIÊNCIA | CASE STUDY 331

Abordagem na rua às pessoas usuárias


de substâncias psicoativas: um relato de
experiência
Street approach to people who use psychoactive substances: an
experience report

Satila Evely Figuereido de Souza1, Cleiana Francisca Bezerra Mesquita2, Fernando Sérgio Pereira
de Sousa3

RESUMO Relatou-se a experiência da Equipe de Abordagem de Rua do Centro de Atenção


Psicossocial Álcool e outras Drogas. Estudo descritivo, relato de experiência, a partir de re-
latórios mensais e diário de campo. Evidencia-se a desafiadora inserção e convivência dessa
equipe em uma comunidade em situação de rua que sobrevive com a exclusão social por ser
usuária de drogas, assim, os profissionais disponibilizam um acompanhamento alicerçado na
acolhida, escuta e vínculo. As práticas possibilitaram ações singulares ao trabalhar no con-
texto ‘extramuros’ com a subjetividade de cada usuário no meio social, proporcionando a
conexão entre o cuidado de saúde integral e a realidade social.

PALAVRAS-CHAVE Saúde mental. Transtornos relacionados ao uso de substâncias. Promoção


da saúde. Meio social.

ABSTRACT We report the experience of the Street Approach Team of the Psychosocial and Alcohol
and Other Drugs Care Center. It is a descriptive study, of experience report, from monthly reports
and field journals. We highlight the challenging integration and coexistence of this team in a
homeless community living on social exclusion because they are drug users, thus, professionals
offer a grounded monitoring in welcoming, listening and bonding. The practices allowed individ-
ual actions by working in the ‘extramural’ context with the subjectivity of each user in the social
environment and providing the connection between the care aspects of health and social reality.
1 UniversidadeFederal do
Tocantins (UFT), Hospital
de Doenças Tropicais KEYWORDS Mental health. Substance-related disorders. Health promotion. Social environment.
(HDT) – Araguaína (TO),
Brasil.
satilaevely@yahoo.com.br

2 Núcleo de Apoio à Saúde

da Família do (Nasf) –
Floriano (PI), Brasil.
cleyana@hotmail.com

3 Universidade Federal
do Piauí (UFPI), Curso de
Enfermagem – Floriano
(PI), Brasil.
fernando_sergio_1@hotmail.
com

DOI: 10.1590/0103-1104201711226 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 331-339, JAN-MAR 2017
332 SOUZA, S. E. F.; MESQUITA, C. F. B.; SOUSA, F. S. P.

Introdução muitas pessoas desenvolvem problemas, em


especial agravos à saúde, em consequência
As Políticas Públicas de Saúde, historicamen- do uso de drogas, alguns muito graves. É de
te, permitiram a existência de uma lacuna responsabilidade do poder público cuidar
assistencial em relação ao cuidado aos usu- desses agravos, e a PRD amplia a possibilida-
ários de Substâncias Psicoativas (SPAs), uma de desse cuidar (UFSC, 2014).
vez que a questão das drogas era referen- A PRD entende saúde, em seu sentido
ciada para instituições de justiça, seguran- mais amplo, como saúde integral do ser
ça pública e associações religiosas. Assim, humano que, para esse fim, considera que a
sendo o indivíduo considerado doente e autonomia é indispensável. A pessoa que faz
incapaz de responder por suas escolhas, os uso de SPAs, na perspectiva da PRD, é vista
modelos de tratamento tradicionais conver- como ser ativo, capaz e útil para seus pares
giam para o uso imperativo da abstinência e para a sociedade, sendo o protagonista de
da droga como a única opção de tratamento sua própria história de vida, e não relegado a
(PASSOS; SOUZA, 2011). um papel passivo. É um cidadão de direitos,
Durante as últimas décadas, houve signi- e não deve perder seus direitos por fazer uso
ficativos avanços na Política Nacional sobre de SPAs ilícitas (SANTOS; MALHEIROS, 2010).
Drogas, modificações importantes na lei O desenvolvimento de ações de atenção
sobre drogas, novos dispositivos para pro- integral ao uso de álcool e outras drogas deve
moção de acolhimento e cuidado, além de ser articulado e planejado de forma a consi-
ações voltadas para redução de danos. derar toda a complexidade e amplitude en-
Nesse sentido, a Lei Federal nº 11.343/2006 volvida no cenário histórico, político e social
institui o Sistema Nacional de Políticas do ritual do uso de SPAs, compreendendo
Públicas sobre Drogas (Sisnad) que prescre- que o processo do sofrimento que acarreta
ve medidas para prevenção do uso indevido, o uso abusivo dessas substâncias não se res-
atenção e reinserção social de usuários e tringe à esfera biológica ou orgânica, mas a
dependentes de drogas; estabelece normas uma vivência de desconforto na sociedade
para repressão à produção não autorizada e e à relação subjetiva do usuário com a SPAs
ao tráfico ilícito de drogas, define crime e fez trazendo consigo suas experiências pessoais
avançar um pouco mais, na medida em que na forma de se relacionarem consigo e com
afastou o uso de drogas do âmbito policial a vida em coletividade, bem como a forma
(supressão da pena de prisão para usuários de reagir ao ser moldado por essa expressão
de drogas), aproximando-o mais das ques- social que constrói e ressignifica o seu viver.
tões da saúde (FONSÊCA, 2012). A redução de danos situa o uso de drogas
É nessa linha de entendimento que a como uma questão de saúde pública, visando
Política de Redução de Danos (PRD), prin- à elaboração de estratégias de cuidado mais
cipal pilar da atenção aos usuários de SPAs próximas da realidade, juntamente com as
na perspectiva do modelo psicossocial de- pessoas que fazem uso/abuso de psicoati-
fendido como política pública no Brasil, vos. Ao adotar uma postura pragmática e
constitui-se como um conjunto de ações ampliada, a redução de danos traz noções de
de saúde pública voltadas para a minimiza- cuidado e autocuidado contextualizadas e
ção das consequências adversas causadas compartilhadas, valorizando a autonomia da
pelo o uso abusivo relacionadas com o uso pessoa que faz uso de drogas (DANTAS; CABRAL;
de drogas. Sabe-se que, embora a grande MORAES, 2014).
maioria dos usuários de álcool e outras Ao seguir essa lógica, a Equipe de
drogas não tenha muitas complicações/ Abordagem de Rua (EAR) foi criada, em
problemas em suas vidas, devido ao seu uso, outubro de 2013, com o intuito de realizar

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 331-339, JAN-MAR 2017


Abordagem na rua às pessoas usuárias de substâncias psicoativas: um relato de experiência 333

atividades de redução de danos em locais violência de todas as formas são alguns dos
onde os usuários de SPAs se concentram. motivos mais citados que conduzem essas
Essa equipe inicialmente foi formada por pessoas à situação de rua, espaço público
uma psicóloga, um redutor de danos, uma precarizado por elas utilizado como moradia
enfermeira e um técnico em enfermagem, ou provedor do sustento.
posteriormente foi adicionada a essa equipe O relato tem como base os relatórios
uma assistente social. mensais e o diário de campo utilizado pela
Diante da implantação das ações dessa equipe multidisciplinar, que foram preenchi-
EAR e em conformidade com a Política de dos pelos profissionais (enfermeiro, técnico
Saúde Mental e a Política sobre Drogas, este de enfermagem, redutor de danos, assisten-
estudo tem por objetivo relatar uma experi- te social e psicólogo), após a finalização da
ência vivenciada por uma EAR do Centro de rotina da abordagem, que foram desenvolvi-
Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas das nos primeiros seis meses de intervenção
24h (Capsad tipo III), na abordagem na rua (outubro de 2013 a março de 2014).
sob a lógica da PRD, evidenciando a atenção As atividades da equipe foram iniciadas,
integral à pessoa que faz uso de SPAs. e estabeleceram-se as sextas-feiras como os
dias para realização das ações. A proposta é
trabalhar a redução de riscos e danos no local
Métodos onde o usuário faz uso frequente, desenvol-
vendo assim uma relação de cuidado e res-
Trata-se de um estudo descritivo, tipo relato peitando suas particularidades, bem como o
de experiência, a partir da experiência de contexto em que está inserido esse sujeito.
uma equipe do Capsad III que trabalha com Foram realizadas reuniões pré-campo e
a abordagem na rua de usuários de substân- pós-campo, com o intuito de discutir estraté-
cias psicoativas. gias e planejar as ações a serem desenvolvi-
O relato de experiências é um tipo de das. É válido destacar as principais barreiras
fonte de informação dedicada à coleta de encontradas no início do trabalho, entre elas,
depoimentos e registro de situações e casos a dificuldade na formação de vínculo com os
relevantes que ocorreram durante a imple- usuários de SPAs, em que se pôde perceber a
mentação de um programa, projeto ou em questão do receio inicial por parte desses su-
uma dada situação problema (BIREME, 2011). jeitos, sendo questionadas as intencionalida-
O cenário escolhido foi o bairro Bosque, des dos profissionais. No entanto, logo essa
situado na cidade de Floriano, estado do Piauí. dificuldade foi superada, possibilitando a
Esse espaço comunitário é considerado de construção de vínculos com alguns usuários,
baixa renda e com concentração de pessoas que prontamente repassavam para os outros
que vivem em vulnerabilidade social, loca- as reais intenções da equipe.
lizado próximo às margens do rio Parnaíba,
onde há uma grande concentração de usuá-
rios de substâncias psicoativas, baseado em Resultados e discussão
dados empíricos e comercialização frequente
de SPAs. Havendo também outras problemá-
ticas, entre elas: situação de pobreza, com O caminhar da experiência
nenhum ou pouco acesso ao sistema formal
de saúde e educação, que vivem em situação Os primeiros passos, dados pela EAR, deram-se
de risco pessoal e social. Desemprego, pros- pela necessidade de trabalhar na perspectiva
tituição, venda de objetos furtados, rompi- ‘extramuros’ para promoção de cuidados dire-
mento de laços afetivos, familiares e sociais, cionados às pessoas que fazem uso de SPAs.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 331-339, JAN-MAR 2017


334 SOUZA, S. E. F.; MESQUITA, C. F. B.; SOUSA, F. S. P.

O modelo dessa abordagem se desenvolveu ferramenta permanente de proteção à vida.


sob a ótica da PRD e foi espelhado, também, Entre as promoções de cuidado, encontra-
na atuação do Consultório de Rua. Devido ao vam-se o acolhimento no território, escuta
fato de o município em questão não possuir terapêutica, orientações acerca da saúde e
população suficiente para adesão a este dis- também questões relacionadas com a cida-
positivo, partiu-se desses pressupostos. dania, como orientação sobre emissão de
O surgimento dos Consultórios de Rua, com documentos, além alguns encaminhamentos
base em uma experiência idealizada e propos- para rede de saúde e rede socioassistencial.
ta pelo Dr. Antônio Nery Filho, na cidade de Em campo, também foram realizadas orien-
Salvador, estado da Bahia, Brasil, com ofertas tações sobre as estratégias da PRD (gerais e
de serviços na modalidade de atendimento ex- específicas para cada substância), aferição
tramuros, objetivando promover acessibilidade de pressão arterial, distribuição de suco
aos serviços de saúde, assistência integral aos (para hidratação), preservativos (masculino
usuários de rua e promoção de laços sociais e feminino) e materiais informativos.
com enfoque intersetorial. A avaliação dessa Inicialmente, foi enfrentada resistência por
experiência, realizada entre 1999 e 2006, foi parte do público em questão, pois a grande
considerada exitosa, permitindo a inclusão maioria achava que a equipe tinha alguma
do Consultório de Rua no Plano Emergencial ligação com a polícia e/ou não entendiam o
de Ampliação de Acesso ao Tratamento e real significado do trabalho. Como exemplo,
Prevenção em Álcool e outras Drogas (Pead), e nas intervenções no campo, era ofertado suco
em 2010, no Plano Integrado de Enfrentamento de fruta, entretanto, alguns desses sujeitos
ao Crack (BRASIL, 2010B). acreditavam que a equipe colocava algum
O trabalho da EAR consistiu na prestação fármaco no suco, e não tomavam; posterior-
de cuidados, por meio da promoção de estra- mente, esse entrave foi superado em decor-
tégias de PRD relacionada com os cuidados rência da construção de vínculos.
das pessoas que fazem uso de SPAs, propon- O método da PRD enfrentou, em princípio,
do orientações e intervenções em relação à grande resistência de muitos setores da socie-
saúde e problemáticas sociais. dade, que tratavam a distribuição de seringas
Essa abordagem na rua se justifica pelo entre os usuários de drogas como uma forma
fato que o consumo de álcool e outras drogas de incentivar o consumo de substâncias psi-
e as consequências sanitárias e sociais tanto coativas. Esse conceito, portanto, foi sendo
para a comunidade como para os usuários desmistificado, visto que a distribuição de
chamam a atenção de diversos segmentos seringas diminuía a disseminação do Vírus
da sociedade, pois não raro relaciona-se da Imunodeficiência Humana (HIV) entre
com a dependência dessas substâncias e os usuários além de não aumentar o consumo
com a vulnerabilidade social (BRASIL, 2010B, 2011). de drogas, oferecendo vantagens em relação
Algumas pesquisas alegam que o (aumento ao custo-benefício (ANDRADE, 2011). Além disso,
do) consumo dessas substâncias é reflexo ampliou-se o entendimento que a redução de
de uma sociedade que estimula o consumo danos é uma política de saúde que se propõe
imediato de objetos (incluindo as drogas psi- a reduzir os prejuízos de natureza biológica,
coativas) como uma alternativa para aliviar social e econômica do uso de drogas, pautada
os sofrimentos (TONDIN; BARROS NETA; PASSOS, 2013). no respeito ao indivíduo e no seu direito de
Sobre a PRD, Nery Filho et al., (2009) consumir drogas (NIEL; SILVEIRA, 2008).
colocam que é uma estratégia de trabalho Nota-se que é muito importante aos profis-
que não se desenvolve em função da subs- sionais que lidam diretamente com esses su-
tância, mas das circunstâncias humanas jeitos ultrapassarem as barreiras do estigma
de uso; a redução de danos tem de ser uma do usuário de drogas psicoativas em situação

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 331-339, JAN-MAR 2017


Abordagem na rua às pessoas usuárias de substâncias psicoativas: um relato de experiência 335

de rua, pois, além desse estereótipo, há um dos usuários e de suas famílias, assumindo
sujeito de direitos que deve ser respeitado um caráter de equipe, a qual estará mais
(MÜLLER, 2013). Ampliar o olhar e a escuta pos- sensível à identificação de riscos ou vulne-
sibilita entender a complexidade da vida dos rabilidades, contribuindo para a construção
usuários e a maneira de os trabalhadores com- de intervenções terapêuticas adequadas às
preenderem os sofrimentos da vida, implica, necessidades percebidas (BRASIL, 2010A).
também, colocar o usuário em outro lugar, em Ao fomentar a discussão, percebe-se que a
outra posição: a de agente ativo na produção dificuldade inicial da equipe em inserir-se no
de sua saúde e no encontro com os trabalha- espaço coletivo dessas pessoas em situação
dores de saúde (MERHY; FEUERWERKER, 2009). de rua estava mergulhada em sentimentos
Com o tempo, foi crescente o número de de medo e angustia por parte dos usuá-
pessoas que participaram das atividades. rios de SPAs, pois no imaginário emergia: o
Ao longo dos meses, foi realizado um pro- medo que eles tinham perante a equipe por
cesso de esclarecimento sobre o trabalho acharem que iriam ser levados à força para o
que estava acontecendo; as pessoas aborda- internamento ou para a polícia.
das, inicialmente, foram divulgando e, aos Nessa modalidade de oferta de atenção
poucos, a confiabilidade foi adquirida. É fato e cuidados em saúde, é comum deparar-se
que não se adentrava nos locais onde não com os medos (compreendidos como estado
era permitido. Somente após algumas idas afetivo suscitado pela consciência do perigo
a campo foi que o vínculo entre a equipe e real ou suposto) e com as expectativas (com-
essas pessoas estabeleceu-se, viabilizando, preendidas como crenças em mudanças da
assim, a melhoria na atuação. realidade imediata) das pessoas em situação
A partir dos relatórios e diário de campo, de rua, haja vista as condições marginaliza-
percebe-se que os profissionais refletem sobre das e excludentes às quais estão expostas
as suas práticas e destacam que o propósito (SANTOS, 2003; NEIVA-SILVA, 2003).
fundamental da ação exercida no território Evidencia-se que a condição de vulnera-
por eles é acolher e oportunizar maneiras de bilidade e risco social potencialmente expõe
proteger as vidas dos usuários, possibilitando as pessoas em situação de rua a perigos que
a construção de vínculos sociais e afetivos, despertam medos relativos ao espaço da rua
intervindo nas situações vivenciadas por eles, como, por exemplo, o medo de ser violenta-
sob a lógica do respeito a sua subjetividade. do, capturado à força pela polícia, o que leva
Segundo Bueno e Merhy (2002), o acolhi- a um estado constante de alerta e tensão.
mento na saúde deve construir uma nova Todavia, é importante compreender como
ética, da diversidade e da tolerância aos dife- tais medos e expectativas são significados e
rentes, da inclusão social com escuta clínica vivenciados por essa população específica,
solidária, comprometendo-se com a cons- respeitando, portanto, as particularidades
trução da cidadania. dessa condição e agrupamento. Assim, con-
Além disso, acolher significa o compro- forme Santos (2003), o medo pode ser compre-
misso de reconhecimento do outro em sua endido como uma reação (retração, negação,
individualidade, como um ser que tem suas precaução ou inibição), configurando um
diferenças, alegrias, frustrações, um modo conjunto de emoções repleto de diferentes
de viver, sentir na vida. Inclusive, promove significados considerando o contexto de vul-
uma escuta de qualidade. Também nessa nerabilidade dos indivíduos.
perspectiva, o vínculo, quando estabelecido, Historicamente, a questão do uso abusivo
permite uma parceria alicerçada na sinceri- e/ou dependência de álcool e outras drogas
dade e responsabilidade e permite que haja tem sido abordada por uma ótica predomi-
um atendimento que abranja as necessidades nantemente policial, psiquiátrica ou médica

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 331-339, JAN-MAR 2017


336 SOUZA, S. E. F.; MESQUITA, C. F. B.; SOUSA, F. S. P.

(CARDOSO ET AL., 2014);em que a repressão, o Na sequência do acompanhamento, em


controle e a ‘guerra contra as drogas e contra um determinado encontro, a equipe realizou
seus usuários’ era o pilar das ações e se ma- uma dinâmica em grupo com alguns desses
terializava, em sua maioria, na rotulação dos usuários utilizando um questionamento
usuários de SPAs como marginais e, assim, (quais as expectativas, sonhos e desejos na
na prisão ou submetidos a uma dosagem vida de vocês?) como fio condutor dos dis-
exagerada de medicação como contenção e a cursos. Diante dessa questão, com relação às
internação involuntária e compulsiva como expectativas, a mais recorrente foi a de que
forma de tratamento e de cuidado em saúde. um dia eles pudessem sair daquela vida, isto
O uso indiscriminado de substâncias é, que deixassem de ser usuários de drogas
psicoativas é continuamente associado à psicoativas em situação de rua, com grande
criminalidade e às práticas antissociais rela- esperança depositada na família, mais preci-
cionadas com o comportamento irresponsá- samente na reconquista do parceiro amoroso
vel do usuário, que acaba por cometer atos de e na retomada da confiança de pais e filhos,
delinquência e envolver-se com problemas além de retomarem as atividades (laborais,
de ordem judiciária. Isso acarreta perdas in- de lazer, sociais etc.) que exerciam antes do
dividuais e sociais, o que leva o dependente à consumo das drogas e da situação de rua.
exclusão social (SILVA ET AL., 2010). Ainda houve relato da esperança de alertar
Aos poucos, foi possível o conhecimento a população em geral de que a vida na rua
do território e das pessoas que circulavam consumindo drogas psicoativas não é digna
por ele. Inicialmente, o acesso para a EAR e tampouco fácil, além de apelarem por mais
era apenas o começo da rua, com o passar do respeito e melhor tratamento aos usuários
tempo, a equipe passa a ser convidada para de drogas psicoativas em situação de rua.
adentrar no território, e foi concedida a per- Assim, a apropriação da rua como expres-
missão de frequentar a parte ribeirinha (onde são de aspectos subjetivos de cada indivíduo
o uso abusivo da SPAs era mais frequente). é algo compreensível, pois é nesse espaço
A rejeição inicial foi substituída paulatina- que muitos irão construir seus referenciais
mente pela aceitação; o receio e a desconfian- de identidade, de sobrevivência e de relação
ça, pela credibilidade. Assim, a compreensão com o outro (NERY FILHO; VALÉRIO, 2010).
foi ampliada para o cuidado e atenção de- Ter sonhos, vontades e desejos é algo ex-
dicada a esses usuários, que começaram a tremamente presente na vida dos usuários
manifestar que passavam a semana inteira acompanhados. Planos são elaborados, e
esperando pela equipe para conversar e fazer perspectivas são traçadas sobre os mais di-
perguntas e que o trabalho desenvolvido era versos temas, principalmente os relacionados
muito bonito, pois ajudavam aqueles que com a própria existência. Para Neiva-Silva
eram rejeitados pela família e pela sociedade. (2003), no caso das pessoas em situação de rua,
Nesse sentido, vale ressaltar o receio da muitas vezes, por não encontrarem em seu
solidão diante do temor da ruptura total cotidiano oportunidades para estruturar e
dos laços familiares e sociais, sendo esse desenvolver um novo projeto de vida, o papel
um sofrimento que denota abandono e re- exercido pelas expectativas e crenças em mu-
jeição. Dessa forma, em tempos de violência danças da realidade imediata é fundamental.
e competição generalizada que apresentam Dentre as queixas mais frequentes,
um quadro social em constante mudança, um ouvidas pela equipe, destacam-se: a dificul-
mundo de insegurança e de medo constante dade em ter acesso aos serviços de saúde e
é gerado, sendo o consumo de drogas a uma assistência social, a violência policial e o
provável resposta ao desamparo dos sujeitos estigma social. Assim, a escuta foi a princi-
(SANTOS, 2003; TONDIN; BARROS NETA; PASSOS, 2013). pal ferramenta do trabalho, visto que o ato

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 331-339, JAN-MAR 2017


Abordagem na rua às pessoas usuárias de substâncias psicoativas: um relato de experiência 337

de escutar em si produz uma significativa Contudo, observou-se, com essa experi-


proposta para promoção do cuidado. Nessa ência, que se dispor a promover cuidado a
perspectiva, a escuta foi basilar para com- esse público, no seio da comunidade, faz-se
preensão das trajetórias e dos repertórios extremamente necessário, pois muitos usu-
que compuseram as vidas desses sujeitos, ários de SPAs não procuram ou não aceitam
não podendo ser desprezados os contextos (de certa forma) um acompanhamento pelos
sociais, as situações socioeconômicas que dispositivos de saúde mental. Com isso, traz
posicionam esses sujeitos e os mais diversos à tona a possibilidade de rever as condicio-
problemas sociais. nalidades para implantação de alguns dis-
Houve a possibilidade de ouvir queixas, positivos nos municípios, considerando a
sonhos, anseios e desejos, possibilitando as valiosa experiência com a abordagem na rua
trocas de experiências enriquecedoras do realizada por profissionais do Capsad III de
ponto de vista profissional e também humano. Floriano (PI).
Logo, a PRD permite uma mobilidade, servin- É válido salientar que a abordagem na rua
do de referência e ponte entre o sujeito e o ainda é incipiente e tem sua dinâmica de tra-
laço social do qual parece apartado. Criam-se balho planejada e pautada de acordo com as
as condições de trabalho favoráveis ao acolhi- legislações e com as políticas públicas, entre
mento desses sujeitos, construindo com eles elas, à política de drogas.
esquemas de proteção e de autocuidado, fun- Por fim, pode-se afirmar que as práticas
damentais para o exercício da cidadania dos produzidas pela a equipe de abordagem na
usuários de drogas (CONTE ET AL., 2004). rua permitiram ações dinâmicas que propor-
cionaram o entendimento sobre o desafio
de trabalhar no contexto extramuros, além
Conclusões da compreensão do universo particular (em
que os sujeitos estão inseridos), com a finali-
A realidade encontrada em campo estava dade de proporcionar cuidados de saúde que
imersa em problemáticas sociais e de saúde sejam integrais, éticos e humanizados.
que circundavam a vida desses sujeitos, além
de questões relacionadas com os preconcei-
tos e estigmas, enraizados na sociedade, que, Colaboradores
por vezes, posicionam esses sujeitos em uma
situação considerada ‘marginalizada’. Os Satila Evely Figuereido de Souza contri-
desafios colocados aqui condicionam a ne- buiu substancialmente para a concepção e
cessidade de um ‘novo olhar’, que envolva as o planejamento ou para a análise e a inter-
pessoas que fazem uso de substâncias psico- pretação dos dados e participou da aprova-
ativas, em uma lógica de garantia de direitos ção da versão final do manuscrito. Cleiana
e liberdade de escolha. Francisca Bezerra Mesquita contribuiu sig-
As diversas situações que apareceram no nificativamente na elaboração do rascunho
campo foram bem peculiares e muitas vezes e participou da aprovação da versão final
inerentes aos sujeitos, ocasionando de- do manuscrito. Fernando Sérgio Pereira de
mandas imprevisíveis, reforçando, assim, a Sousa contribuiu substancialmente para
necessidade de que os profissionais compre- a concepção e o planejamento ou para a
endam a importância da subjetividade, do análise e a interpretação dos dados; contri-
trabalho articulado com as redes de cuidado, buiu significativamente na revisão crítica
alargando o olhar sobre as especificidades do conteúdo e participou da aprovação da
que o sujeito traz consigo. versão final do manuscrito. s

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 331-339, JAN-MAR 2017


338 SOUZA, S. E. F.; MESQUITA, C. F. B.; SOUSA, F. S. P.

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 331-339, JAN-MAR 2017


Abordagem na rua às pessoas usuárias de substâncias psicoativas: um relato de experiência 339

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Horizonte, v. 23, n. 1, p. 154-162, 2011. A. Consultório de rua: Intervenção ao uso de drogas
com pessoas em situação de rua. Revista de Educação
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uma estratégia construída para além dos muros institu-
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Módulo para capacitação dos profissionais do projeto (UFSC). Álcool e outras drogas da coerção à coe-
consultório de rua. Brasília, DF: SENAD; Salvador: são. Módulo Recursos e Estratégicos do Cuidado.
CETAD, 2010, p. 49-53. Florianópolis: UFSC, 2014. Disponível em: <https://
unasus.ufsc.br/alcooleoutrasdrogas/files/2015/03/
SANTOS, L. O. O medo contemporâneo: abordando M%C3%B3dulo-6.pdf>. Acesso em: 15 mar. 2017.
suas diferentes dimensões. Psicol. cienc. prof., Brasília,
DF, v. 23, n. 2, p. 48-55, 2003.
Recebido para publicação em setembro de 2016
Versão final em março de 2017
Conflito de interesses: inexistente
SILVA, L. H. P. et al. Perfil dos dependentes químicos
Suporte financeiro: não houve
atendidos em uma unidade de reabilitação de um hos-
pital psiquiátrico. Esc. Anna Nery, Rio de Janeiro, v. 14,
n. 3, p. 585-590, 2010.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 331-339, JAN-MAR 2017


Instruções aos autores para preparação e submissão de artigos

Revista Saúde em Debate Modalidades de textos aceitos para publicação

Instruções aos autores


1. Artigo original: resultado de pesquisa científica que possa
ser generalizado ou replicado. O texto deve conter entre 10 e 15
ATUALIZADA EM SETEMBRO DE 2016
laudas.

ESCOPO E POLÍTICA EDITORIAL 2. Ensaio: análise crítica sobre tema específico de relevância e
interesse para a conjuntura das políticas de saúde brasileira e in-
A revista ‘Saúde em Debate’, criada em 1976, é uma publicação do ternacional. O texto deve conter entre 10 e 15 laudas.
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) que tem como ob-
jetivo divulgar estudos, pesquisas e reflexões que contribuam para 3. Revisão sistemática: revisão crítica da literatura sobre tema
o debate no campo da saúde coletiva, em especial os que tratem atual. Objetiva responder a uma pergunta de relevância para a
de temas relacionados com a política, o planejamento, a gestão e a saúde pública, detalhando a metodologia adotada. O texto deve
avaliação em saúde. Valorizamos os estudos feitos a partir de dife- conter entre 10 e 15 laudas.
rentes abordagens teórico-metodológicas e com a contribuição de
distintos ramos das ciências. 4. Artigo de opinião: exclusivo para autores convidados pelo Co-
mitê Editorial, com tamanho entre 10 e 15 laudas. Neste formato
A periocidade da revista é trimestral, e, a critério dos editores, são não são exigidos resumo e abstract.
publicados números especiais que seguem o mesmo processo de
submissão e avaliação dos números regulares. 5. Relato de experiência: descrição de experiências acadêmicas,
assistenciais ou de extensão, com tamanho entre 10 e 12 laudas,
A ‘Saúde em Debate’ aceita trabalhos originais e inéditos que apor- que aportem contribuições significativas para a área.
tem contribuições relevantes para o conhecimento científico acu-
mulado na área. 6. Resenha: resenhas de livros de interesse para a área de polí-
ticas públicas de saúde, a critério do Comitê Editorial. Os textos
Os trabalhos submetidos à revista são de total e exclusiva respon- deverão apresentar uma visão geral do conteúdo da obra, de seus
sabilidade dos autores e não podem ser apresentados simultane- pressupostos teóricos e do público a que se dirige, com tamanho
amente a outro periódico, na íntegra ou parcialmente. Em caso de de até 3 laudas.
publicação do artigo na revista, os direitos autorais a ele referentes
se tornarão propriedade do Cebes. 7. Documento e depoimento: trabalhos referentes a temas de
interesse histórico ou conjuntural, a critério do Comitê Editorial.
O periódico está disponível on-line, de acesso aberto e gratuito, por-
tanto, livre para qualquer pessoa ler, baixar e divulgar os textos com Em todos os casos, o número máximo de laudas não inclui a folha de
fins educacionais e acadêmicos. É permitida a reprodução total ou apresentação e as referências.
parcial dos trabalhos publicados desde que identificada a fonte e a
autoria. Preparação do texto

A ‘Saúde em Debate’ não cobra taxas dos autores para a submissão O texto pode ser escrito em português, espanhol ou inglês. Deve ser
de trabalhos, mas, caso o artigo seja aprovado para publicação, fica digitado no programa Microsoft® Word ou compatível, gravado em
sob a responsabilidade dos autores a revisão de línguas (obrigató- formato doc ou docx.
ria) e a tradução do artigo para a língua inglesa, com base em uma
lista de revisores e tradutores indicados pela revista. Padrão A4 (210X297mm), margem de 2,5 cm em cada um dos qua-
tro lados, fonte Times New Roman tamanho 12, espaçamento entre
ORIENTAÇÕES PARA A PREPARAÇÃO E SUBMISSÃO linhas de 1,5.
DOS TRABALHOS
O corpo de texto não deve conter qualquer informação que possibi-
Os trabalhos devem ser submetidos exclusivamente pelo site: www. lite identificar os autores ou instituições a que se vinculem.
saudeemdebate.org.br. Após seu cadastramento, o autor responsá-
Não utilizar notas de rodapé no texto. As marcações de notas de
vel pela submissão receberá login e senha.
rodapé, quando absolutamente indispensáveis, deverão ser sobres-
Ao submeter o trabalho, todos os campos obrigatórios da página de- critas e sequenciais.
vem ser preenchidos com conteúdo idêntico ao do arquivo anexado.
Evitar repetições de dados ou informações nas diferentes partes do texto.

SAÚDE DEBATE
Instruções aos autores para preparação e submissão de artigos

Depoimentos de sujeitos deverão ser apresentados em itálico e en- ou siglas no resumo, à exceção de abreviaturas reconhecidas
tre aspas no corpo do texto se menores que três linhas. Se forem internacionalmente.
maiores que três linhas, devem ser destacados, com recuo de 4 cm,
espaço simples e fonte 12. f) Ao final do resumo, incluir de três a cinco palavras-chave, se-
paradas por ponto e vírgula (apenas a primeira inicial maiúscu-
Para as palavras ou trechos do texto destacados, a critério do au- la), utilizando os termos apresentados no vocabulário estrutura-
tor, utilizar aspas simples. Exemplo: ‘porta de entrada’. Evitar iniciais do (DeCS), disponíveis em: www.decs.bvs.br.
maiúsculas e negrito.
Registro de ensaios clínicos
Figuras, gráficos, quadros e tabelas devem ser em alta resolução, em
preto e branco ou escala de cinza e submetidos separadamente do
A revista ‘Saúde em Debate’ apoia as políticas para registro de
texto, um a um, seguindo a ordem que aparecem no estudo (devem
ensaios clínicos da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do
ser numerados e conter título e fonte). No escrito, apenas identifi-
International Committee of Medical Journal Editors (ICMJE), re-
car o local onde devem ser inseridos. O número de figuras, gráficos,
conhecendo, assim, sua importância para o registro e divulgação in-
quadros ou tabelas deverá ser, no máximo, de cinco por texto. O
ternacional de informações sobre ensaios clínicos. Nesse sentido, as
arquivo deve ser editável.
pesquisas clínicas devem conter o número de identificação em um
dos registros de Ensaios Clínicos validados pela OMS e ICMJE, cujos
Em caso de uso de fotos, os sujeitos não podem ser identificados, a
endereços estão disponíveis em: http://www.icmje.org. Nestes ca-
menos que autorizem, por escrito, para fins de divulgação científica.
sos, o número de identificação deverá constar ao final do resumo.

O trabalho completo, que corresponde ao arquivo a ser 2. Texto. Respeita-se o estilo e a criatividade dos autores para a
anexado, deve conter: composição do texto, no entanto, deve contemplar elementos con-
vencionais, como:
1. Folha de apresentação contendo:
a) Introdução com definição clara do problema investigado e
a) Título, que deve expressar clara e sucintamente o conteúdo justificativa;
do texto, contendo, no máximo, 15 palavras. O título deve ser
b) Métodos descritos de forma objetiva;
escrito em negrito, apenas com iniciais maiúsculas para nomes
próprios. O texto em português e espanhol deve ter título na lín-
c) Resultados e discussão podem ser apresentados juntos ou em
gua original e em inglês. O texto em inglês deve ter título em itens separados;
inglês e português.
d) Conclusão.
b) Nome completo do(s) autor(es) alinhado à direita (aceita-se o
máximo de cinco autores por artigo). Em nota de rodapé, colocar 3. Colaboradores. No final do texto, devem ser especificadas as con-
as informações sobre afiliação institucional e e-mail. Do autor de tribuições individuais de cada autor na elaboração do artigo. Segun-
contato, acrescentar endereço e telefone. do o critério de autoria do International Committee of Medical Jour-
nal Editors, os autores devem contemplar as seguintes condições: a)
c) No caso de resultado de pesquisa com financiamento, citar a contribuir substancialmente para a concepção e o planejamento ou
agência financiadora e o número do processo. para a análise e a interpretação dos dados; b) contribuir significati-
vamente na elaboração do rascunho ou revisão crítica do conteúdo;
d) Conflito de interesse. Os trabalhos encaminhados para publi- e c) participar da aprovação da versão final do manuscrito.
cação devem conter informação sobre a existência de algum tipo
de conflito de interesse. Os conflitos de interesse financeiros, por 4. Agradecimentos. Opcional.
exemplo, não estão relacionados apenas com o financiamento
direto da pesquisa, mas também com o próprio vínculo empre- 5. Referências. Devem ser de no máximo 25, podendo exceder
gatício. Caso não haja conflito, apenas a informação “Declaro que quando se tratar de revisão sistemática. Devem constar somente
não houve conflito de interesses na concepção deste trabalho” na fo- autores citados no texto e seguir as normas da ABNT (NBR 6023).
lha de apresentação do artigo será suficiente.
Exemplos de citações
e) Resumo em português e inglês ou em espanhol e inglês
com, no máximo, 700 caracteres, incluídos os espaços, no qual Todas as citações feitas no texto devem constar das referências
fiquem claros os objetivos, o método empregado e as prin- apresentadas no final do artigo. Para as citações, utilizar as normas
cipais conclusões do trabalho. Não são permitidas citações da ABNT (NBR 10520).

SAÚDE DEBATE
Instruções aos autores para preparação e submissão de artigos

Citação direta com até três linhas OBS.: Abreviar sempre o nome e os sobrenomes do meio dos
Já o grupo focal é uma “técnica de pesquisa que utiliza as sessões autores.
grupais como um dos foros facilitadores de expressão de caracterís-
ticas psicossociológicas e culturais” (WESTPHAL; BÓGUS; FARIA, PROCESSO DE AVALIAÇÃO
1996, p. 473).
Todo original recebido pela revista ‘Saúde em Debate’ é sub-
Citação direta com mais de três linhas metido a análise prévia. Os trabalhos não conformes às nor-
A Lei 8.080, conhecida como Lei Orgânica da Saúde, iniciou o pro- mas de publicação da revista são devolvidos aos autores para
cesso de regulamentação do funcionamento de um modelo público adequação e nova submissão. Uma vez cumpridas integral-
de ações e serviços de saúde, ordenado pelo que viria a ser conheci- mente as normas da revista, os originais são apreciados pelo
do como Sistema Único de Saúde (SUS): Comitê Editorial, composto pelo editor-chefe e por editores
associados, que avalia a originalidade, abrangência, atualidade
Orientado por um conjunto de princípios e diretrizes validos para e atendimento à política editorial da revista. Os trabalhos re-
todo o território nacional, parte de uma concepção ampla do comendados pelo Comitê serão avaliados por, no mínimo, dois
direito à saúde e do papel do Estado na garantia desse direito, pareceristas, indicados de acordo com o tema do trabalho e sua
incorporando, em sua estrutura institucional e decisória, espa- expertise, que poderão aprovar, recusar e/ou fazer recomenda-
ços e instrumentos para democratização e compartilhamento da ções aos autores.
gestão do sistema de saúde. (NORONHA; MACHADO; LIMA,
2011, p. 435). A avaliação é feita pelo método duplo-cego, isto é, os nomes
dos autores e dos pareceristas são omitidos durante todo o
Citação indireta processo de avaliação. Caso haja divergência de pareceres,
Segundo Foucault (2008), o neoliberalismo surge como modelo de o trabalho será encaminhado a um terceiro parecerista. Da
governo na Alemanha pós-nazismo, em uma radicalização do libe- mesma forma, o Comitê Editorial pode, a seu critério, emi-
ralismo que pretende recuperar o Estado alemão a partir de nova tir um terceiro parecer. Cabe aos pareceristas recomendar
relação Estado-mercado. a aceitação, recusa ou reformulação dos trabalhos. No caso
de solicitação de reformulação, os autores devem devolver o
Exemplos de referências trabalho revisado dentro do prazo estipulado. Não havendo
manifestação dos autores no prazo definido, o trabalho será
excluído do sistema.
As referências deverão ser apresentadas no final do artigo, seguin-
do as normas da ABNT (NBR 6023). Devem ser de no máximo 25,
O Comitê Editorial possui plena autoridade para decidir so-
podendo exceder quando se tratar de revisão sistemática. Abreviar
bre a aceitação final do trabalho, bem como sobre as alteraçõ es
sempre o nome e os sobrenomes do meio dos autores.
efetuadas.
Livro:
Não serão admitidos acréscimos ou modificaçõ es depois da
FLEURY, S.; LOBATO, L. V. C. (Org.). Seguridade social, cidadania e aprovação final do trabalho. Eventuais sugestões de modificações
saúde. Rio de Janeiro: Cebes, 2009. de estrutura ou de conteúdo por parte da editoria da revista serão
previamente acordadas com os autores por meio de comunicação
Capítulo de livro: por e-mail.
FLEURY, S. Socialismo e democracia: o lugar do sujeito. In: FLEU-
RY, S.; LOBATO, L. V. C. (Org.). Participação, democracia e saúde. A versão diagramada (prova de prelo) será enviada, por e-mail, ao
Rio de Janeiro: Cebes, 2009. p. 24-46. autor responsável pela correspondência para revisão final, que de-
verá devolver no prazo estipulado.
Artigo de periódico:
ALMEIDA-FILHO, N. A. Problemática teórica da determinação OBS.: antes de serem enviados para avaliação pelos pares, os
social da saúde (nota breve sobre desigualdades em saúde como artigos submetidos à revista ‘Saúde em Debate’ passam por um
objeto de conhecimento). Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 33, software detector de plágio, Plagiarisma. Assim, é possível que
n. 83, p. 349-370, set./dez. 2010. os autores, que devem garantir a originalidade dos manuscritos
e referenciar todas as fontes de pesquisa utilizadas, sejam ques-
Material da internet: tionados sobre informações identificadas pela ferramenta de de-
tecção. Plágio é um comportamento editorial inaceitável, dessa
CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE. Revista Saúde
forma, se for comprovada sua existência, os autores envolvidos
em Debate. Disponível em: <http://cebes.org.br/publicacao-tipo/
não poderão submeter novos artigos para a revista.
revista-saude-em-debate/>. Acesso em: 31 jan. 2016.

SAÚDE DEBATE
Instruções aos autores para preparação e submissão de artigos

DOCUMENTAÇÃO OBRIGATÓRIA A SER ENVIADA lista de revisores indicados pela revista. O artigo revisado deve
APÓS A APROVAÇÃO DO ARTIGO vir acompanhado de declaração do revisor.

Os documentos relacionados a seguir devem ser digitalizados e en- 4. Declaração de tradução


viados para o e-mail revista@saudeemdebate.org.br. Os artigos aprovados poderão ser traduzidos para o inglês a cri-
tério dos autores. Neste caso, a tradução será feita por profissio-
1. Cessão de direitos autorais e declaração de autoria e de nal qualificado, com base em uma lista de tradutores indicados
responsabilidade pela revista. O artigo traduzido deve vir acompanhado de decla-
Todos os autores e coautores devem preencher e assinar as de- ração do tradutor.
clarações conforme modelo disponível em: http://www.saudee-
mdebate.org.br/artigos/index.php. NOTA: A produção editorial do Cebes é resultado de trabalho co-
letivo e de apoios institucionais e individuais. A sua colaboração
2. Parecer de Aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) para que a revista ‘Saúde em Debate’ continue sendo um espaço
democrático de divulgação de conhecimentos críticos no campo da
No caso de pesquisas que envolvam seres humanos, nos termos saúde se dará por meio da associação dos autores ao Cebes. Para se
da Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012 do Conselho associar entre no site http://www.cebes.org.br.
Nacional de Saúde, enviar documento de aprovação da pesquisa
pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição onde o trabalho Endereço para correspondência
foi realizado. No caso de instituições que não disponham de um
Comitê de Ética em Pesquisa, deverá ser apresentado o docu- Avenida Brasil, 4.036, sala 802
mento do CEP onde ela foi aprovada. CEP 21040-361 – Manguinhos, Rio de Janeiro (RJ),
Brasil
3. Declaração de revisão ortográfica e gramatical Tel.: (21) 3882-9140/9140
Os artigos aprovados deverão passar por revisão ortográfica e Fax: (21) 2260-3782
gramatical feita por profissional qualificado, com base em uma E-mail: revista@saudeemdebate.org.br

SAÚDE DEBATE
Instructions to authors for preparation and submission of articles

Revista Saúde em Debate Types of texts accepted for submission

INSTRUCTIONS TO AUTHORS
1. Original article: scientific research outcome that may be
generalized or replicated. The text should comprise between 10
UPDATED IN SEPTEMBER 2016
and 15 pages.

2. Essay: critical analysis on a specific theme relevant and of


SCOPE AND EDITORIAL POLICY
interest to Brazilian and international topical health policies. The
text should comprise between 10 and 15 pages.
The journal ‘Saúde em Debate’ (Health in Debate), created in
1976, is published by Centro Brasileiro de Estudos de Saúde 3. Systematic review: critical review of literature on topical
(Cebes) (Brazilian Center for Health Studies), that aims to theme, aiming at answering a relevant question on public health,
disseminate studies, researches and reflections that contribute informing details of the methodology used. The text should
to the debate in the collective health field, especially those comprise between 10 and 15 pages.
related to issues regarding policy, planning, management and
assessment in health. The editors encourage contributions from 4. Opinion article: exclusively for authors invited by the Editorial
different theoretical and methodological perspectives and from Board. No abstract or summary are required. The text should
various scientific disciplines. comprise between 10 and 15 pages.

The journal is published on a quarterly basis; the Editors may decide 5. Experience report: description of academic, assistential or
on publishing special issues, which will follow the same submission extension experiences that bring significant contributions to the
and assessment process as the regular issues. area. The text should comprise between 10 and 12 pages.

6. Book review: review of books on subjects of interest to the


‘Saúde em Debate’ accepts unpublished and original works that
field of public health policies, by decision of the Editorial Board.
bring relevant contribution to scientific knowledge in the health field.
Texts should present an overview of the work, its theoretical
framework and target audience. The text should comprise up to
Authors are entirely and exclusively responsible for the submitted
3 pages.
manuscripts, which must not be simultaneously submitted to
another journal, be it integrally or partially. It is Cebes’ policy to own 7. Document and testimony: works referring to themes of
the copyright of all articles published in the journal. historical or topical interest, by decision of the Editorial Board.

The journal is made freely available, online and open access; thus, For all cases, the maximum number of pages does not include the
any person may freely read, download and disseminate the texts title page and references.
for educational and academic purposes, provided that the author(s)
and original source are properly cited. Text preparation

No fees are charged from the authors for the submission of articles; The text may be written in Portuguese, Spanish or English. It should
nevertheless, once the article has been approved for publication, the be typed in Microsoft® Word or compatible software, in doc or docx
authors are responsible for the language proofreading (obligatory) format.
and the translation into English, based on a list of proofreaders and
translators provided by the journal. Page size standard A4 (210X297mm); all four margins 2.5cm wide;
font Times New Roman in 12pt size; line spacing 1.5.
GUIDELINES FOR THE PREPARATION AND SUBMISSION
OF ARTICLES The text must not contain any information that identifies the
author(s) or related institution(s).
Articles should be submitted exclusively on the website: www.
Footnotes should not be used in the text. If absolutely necessary,
saudeemdebate.org.br. After registering, the author responsible for
footnotes should be indicated with sequential superscript numbers.
the submission will receive a login name and a password.
Repetition of data or information in the different parts of the text
When submitting the article, all information required must be
should be avoided.
supplied with identical content as in the uploaded file.

SAÚDE DEBATE
Instructions to authors for preparation and submission of articles

Subjects’ testimonies should be italicized and between inverted the work. No citations or abbreviations should be used, except
commas, placed within the text when not exceeding three lines. for internationally recognized abbreviations.
When longer than three lines, they should have a 4cm indentation,
simple line spacing and font in 12pt size. f) At the end of the abstract, three to five keywords should be
included, separated by semicolon (only the first letter in capital),
Highlighted words or text excerpts should be placed between simple using terms from the structured vocabulary (DeCS) available at
inverted commas. Example: ‘entrance door’. Capital letters and bold www.decs.bvs.br
font should be avoided.
Clinical trial registration
Figures, graphs, charts and tables should be supplied in high
resolution, in black-and-white or in gray scale, and on separate
‘Saúde em Debate’ journal supports the policies for clinical trial
sheets, one on each sheet, following the order in which they appear
registration of the World Health Organization (WHO) and the
in the text (they should be numbered and comprise title and source).
International Committee of Medical Journal Editors (ICMJE),
Their position should be clearly indicated on the page where they are
thus recognizing its importance to the registry and international
inserted. The quantity of figures, graphs, charts and tables should
dissemination of information on clinical trial. Thus, clinical
not exceed five per text. The file should be editable.
researches should contain the identification number on one of
the Clinical Trials registries validated by WHO and ICMJE, whose
In case there are photographs, subjects must not be identified,
addresses are available at http://www.icmje.org. Whenever a trial
unless they authorize it, in writing, for the purpose of scientific
registration number is available, authors should list it at the end of
dissemination.
the abstract.

The complete work, corresponding to the file to be 2. Text. The journal respects the authors’ style and creativity
uploaded, should comprise: regarding the text composition; nevertheless, the text must
contemplate conventional elements, such as:
1. Title page comprising:
a) Introduction with clear definition of the investigated problem
a) Title expressing clearly and briefly the contents of the text, and its rationale;
in no more than 15 words. The title should be in bold font, using
capital letters only for proper nouns. Texts written in Portuguese b) Methods objectively described;
and Spanish should have the title in the original idiom and in
English. The text in English should have the title in English and c) Outcomes and discussion may be presented together or
in Portuguese. separately;

b) Full author(s) name(s) aligned on the right (maximum of d) Conclusion.


five authors per article). On footnote(s), place information on
institutional affiliation and e-mail. For the contact author add 3. Contributors. Individual contributions of each author should be
address and telephone number. specified at the end of the text. According to the authorship criteria
developed by the International Committee of Medical Journal
c) In case the research has been funded, inform the funding Editors, authorship should be based on the following conditions:
agency and the number of the process. a) substantial contribution to the conception and the design of the
work, or to the analysis and interpretation of data for the work; b)
d) Conflict of interest. The works submitted for publication must substantial contribution to drafting the work or critically revising the
comprise information on the existence of any type of conflict of contents; and c) participation at the final approval of the version to
interest. Financial conflict of interest, for example, is related not be published.
only to the direct research funding, but also to employment link.
In case there is no conflict, it will suffice to place on the title page 4. Acknowledgements. Optional.
the statement “I declare that there has been no conflict of interest
regarding the conception of this work”. 5. References. Should not exceed 25 references, except in the case
of the systematic review type of article. Only authors cited in the
e) Abstract in Portuguese and English or in Spanish and English, text should be listed and it should follow the norm NBR 6023 of
comprising no more than 700 characters including spaces, clearly the Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) (Brazilian
outlining the aims, the method used and the main conclusions of Association of Technical Norms).

SAÚDE DEBATE
Instructions to authors for preparation and submission of articles

Citation examples Internet material:

CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE. Revista Saúde


All citations made in the text should be listed in the references pre em Debate. Disponível em: <http://cebes.org.br/publicacao-tipo/
sented at the end of the article, using the ABNT norm NBR 10520. revista-saude-emdebate/>. Acesso em: 31 jan. 2016.

Direct citation with up to three lines Note: Author’s middle name and surname should always be
abbreviated.
The focal group is a “research technique that uses the group ses-
sions as one of the facilitator forums of psycho-sociologic and
ASSESSMENT PROCESS
cultural characteristics expression” (WESTPHAL; BÓGUS; FARIA,
1996, p. 473).
Every manuscript received by ‘Saúde em Debate’ is submitted
to prior analysis. Works that are not in accordance to the jour-
Direct citation with more than three lines nal publishing norms shall be returned to the authors for ad-
The 8.080 Act, known as Health Organic Act, initiated a regulation equacy and new submission. Once the journal’s standards have
process for the operation of a public modelof health actions and ser- been entirely met, manuscripts will be appraised by the Editorial
vices, ordinated by the Unified Health System: Board, composed of the editor-in-chief and associate editors,
for originality, scope, topicality, and compliance with the jour-
Guided by a set of principles and guidelines valid for the entire nal’s editorial policy. Articles recommended by the Board shall
national territory, it is based on a wide conception of the right to be forwarded for assessment to at least two reviewers, who will
health and the role of the State on granting this right, incorpora- be indicated according to the theme of the work and to their
ting, within its institutional and decision-making structure, spa- expertise, and who will provide their approval, refusal, and/or
ces and instruments for the democratization and sharing of the make recommendations to the authors.
health system management. (NORONHA; MACHADO; LIMA,
2011, p. 435). ‘Saúde em Debate’ uses the double-blind review method, which
means that the names of both the authors and the reviewers are
concealed from one another during the entire assessment process.
Indirect citation In case there is divergence between the reviewers, the article will
According to Foucault (2008), neoliberalism appears as a govern- be sent to a third reviewer. Likewise, the Editorial Board may also
mental model in post-Nazi Germany, in a radicalization of liberalism produce a third review. The reviewers’ responsibility is to recom-
aiming at the recovery of the German state based on a new state- mend the acceptance, the refusal, or the reformulation of the works.
market relationship. In case there is a reformulation request, the authors shall return the
revised work until the stipulated date. In case this does not happen,
the work shall be excluded from the system.
Reference Examples
The editorial Board has full authority to decide on the final accep-
Book: tance of the work, as well as on the changes made.

FLEURY, S.; LOBATO, L. V. C. (Org.). Seguridade social, cidadania e


No additions or changes will be accepted after the final approval of
saúde. Rio de Janeiro: Cebes, 2009.
the work. In case the journal’s Editorial Board has any suggestions
regarding changes on the structure or contents of the work, these
Book chapter:
shall be previously agreed upon with the authors by means of e-mail
FLEURY, S. Socialismo e democracia: o lugar do sujeito. In: FLEU- communication.
RY, S.; LOBATO, L. V. C. (Org.). Participação, democracia e saúde.
Rio de Janeiro: Cebes, 2009. p. 24-46. The typeset article proof will be sent by e-mail to the corresponding
author; it must be carefully checked and returned until the stipulated
Journal article: date.

ALMEIDA-FILHO, N. A. Problemática teórica da determinação


Note: before being sent to peer review, articles submitted to the
social da saúde (nota breve sobre desigualdades em saúde como
journal ‘Saúde em Debate’ undergo a plagiarism detector software,
objeto de conhecimento). Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 33,
Plagiarisma. Thus, it is possible that the authors, who must guar-
n. 83, p. 349-370, set./dez. 2010.
antee the originality of the manuscripts and reference all research

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Instructions to authors for preparation and submission of articles

sources used, are questioned about information identified by the 3. Statement of spelling and grammar proofreading
detection tool. Plagiarism is an unacceptable editorial behavior, that
Upon acceptance, articles must be proofread by a qualified pro-
way, if proven its existence, the authors involved will no longer be
fessional to be chosen from a list provided by the journal. After
able to submit new articles to the journal.
proofreading, the article shall be returned together with a state-
ment from the proofreader.
MANDATORY DOCUMENTATION TO BE SENT AFTER
ARTICLE ACCEPTANCE 4. Statement of translation

The articles accepted may be translated into English on the au-


The documents listed below must be digitalized and sent to the e-
thors’ responsibility. In this case, the translation shall be carried
mail address revista@saudeemdebate.org.br.
out by a qualified professional to be chosen from a list provided
by the journal. The translated article shall be returned together
1. Assignment of copyright and Statement of authorship and
with a statement from the translator.
responsibility

All the authors and co-authors must fill in and sign the state- NOTE: Cebes editorial production is a result of collective work and
ments following the models available at: http://www.saudeem- of institutional and individual support. Authors’ contribution for the
debate.org.br/artigos/index.php. continuity of ‘Saúde em Debate’ journal as a democratic space for
the dissemination of critical knowledge in the health field shall be
2. Approval statement by the Research Ethics Committee made by means of association to Cebes. In order to become an as-
(CEP) sociate, please access http://www. cebes.org.br.
In the case of researches involving human beings, in compliance
Correspondence address
with Resolution 466, of 12th December 2012, from the National
Health Council (CNS), the research approval statement of the
Avenida Brasil, 4.036, sala 802
Research Ethics Committee from the institution where the work
CEP 21040-361 – Manguinhos, Rio de Janeiro (RJ),
has been carried out must be forwarded. In case the institution
Brasil
does not have a Research Ethics Committee, the document is-
Tel.: (21) 3882-9140/9140
sued by the CEP where the research has been approved must be
Fax: (21) 2260-3782
forwarded.
E-mail: revista@saudeemdebate.org.br

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Instrucciones a los autores para la preparación y presentación de artículos

Revista Saúde em Debate Modalidades de textos aceptados para la publicación

Instrucciones para los autores


1. Artículo original: resultado de investigación científica que
pueda ser generalizada o replicada. El texto debe contener entre
ACTUALIZADAS EN SEPTIEMBRE DE 2016
10 y 15 laudas.

ESCOPO Y POLÍTICA EDITORIAL 2. Ensayo: Análisis crítico sobre un tema específico de relevancia
e interés para la conjetura de las políticas de salud brasileña e
La revista ‘Saúde em Debate’ (Salud en Debate), creada en 1976, es internacional. El texto debe contener entre 10 y 15 laudas.
una publicación del Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes)
(Centro Brasileño de Estudios de Salud). Su objetivo es divulgar es- 3. Revisión sistemática: Revisión crítica de la literatura de un
tudios, investigaciones y reflexiones que contribuyan para el debate tema actual. Objetiva responder a una pregunta de relevancia
en el campo de la salud colectiva, en especial aquellos que tratan de para la salud pública, detallando la metodología adoptada. El
temas relacionados con la política y el planeamiento, la gestión y la texto debe contener entre 10 y 15 laudas.
evaluación de la salud. Valorizamos estudios con abordajes diferen-
tes teórico-metodológicos y con la contribución de diferentes ramas 4. Artículo de opinión: exclusivo para los autores invitados por
de las ciencias. el Comité Editorial, con tamaño entre 10 y 15 laudas. En este for-
mato no se exigirán resumen ni abstract.
La periodicidad de la revista es trimestral. A criterio de los editores
son publicados números especiales que siguen el mismo proceso de 5. Relato de experiencia: descripción de experiencias académi-
aprobación y evaluación de los regulares. cas, asistenciales o de extensión que aporten contribuciones sig-
nificativas para el área. Tamaño entre 10 y 12 laudas.
‘Saúde em Debate’ acepta trabajos originales e inéditos que aporten
contribuciones relevantes para el conocimiento científico acumula- 6. Reseña: reseña de libros de interés para el área de políticas
do en el área. públicas de salud, a criterio del Comité Editorial. Los textos de-
berán presentar una visión general del contenido de la obra, de
Los trabajos enviados a la revista son de total y exclusiva respon- sus presupuestos teóricos y del público al que se dirige. Tamaño
sabilidad de los autores y no pueden ser presentados simultánea- de hasta 3 laudas.
mente a otro periódico, en la integra o parcialmente. En caso de pu-
blicación del artículo en la revista, los derechos de autor referentes 7. Documento y declaración: trabajos referentes a temas de in-
pasarán a ser de propiedad de Cebes. terés histórico o conjetural, a criterio del Comité Editorial.

El periódico está disponible en línea, de acceso abierto y gratuito, En todos los casos, el número máximo de laudas no incluyen la hoja
por lo tanto, libre para que cualquier persona lea, baje o divulgue de presentación ni las referencias.
los textos con fines educacionales y académicos. Se permite la re-
producción total o parcial de los trabajos publicados desde que la Preparación del texto
fuente y la autoría sean indicadas.
El texto puede ser escrito en portugués, español o inglés.
‘Saúde em Debate’ no les cobra tasas a los autores para la evalua-
ción de los trabajos. Si el artículo es aprobado queda bajo la res- Debe ser digitado en el programa Microsoft®Word o compatible,
ponsabilidad de los autores la revisión del idioma (obligatorio) y su grabado en formato doc. o docx.
traducción para la lengua inglesa, con base en una lista de revisores
y traductores indicados por la revista. Patrón A4 (210x297mm), margen de 2,5 en cada uno de los cuatro
lados, letra New Román tamaño 12, espacio entre líneas de 1,5.
ORIENTACIONES PARA LA PREPARACIÓN Y EL SOME-
TIMIENTO DE LOS TRABAJOS El cuerpo del texto no debe contener ninguna información que posi-
bilite la identificación de los autores o de las instituciones a las que
se vinculen.
Los trabajos deben ser sometidos exclusivamente por el sitio: www.
saudeemdebate.org.br. Después de su registro, el autor responsable
No debe utilizar notas de pie de texto. Las marcaciones de notas,
por el envío recibirá su acceso y seña.
cuando absolutamente indispensables, deberán ser sobrescritas y
secuenciales.
Al enviar el trabajo, deberá completar todos los campos obligatorios
de la página con contenido idéntico al del archivo adjunto.

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Instrucciones a los autores para la preparación y presentación de artículos

Evitar repeticiones de datos o informaciones en las diferentes partes e) Resumen en portugués e inglés o en español e inglés en el que
del texto. queden claros los objetivos, el método empleado y las principales
conclusiones del trabajo, con un máximo de 700 caracteres, in-
Las declaraciones deberán estar en cursiva y entre comillas en el cluidos los espacios No se permitirán citas o siglas en el resumen,
cuerpo del texto, si son menos de tres líneas. Si son más de tres a excepción de abreviaturas reconocidas internacionalmente.
líneas deben estar destacadas, con retroceso de 4 cm, espacios sim-
ples y tamaño 12. f) Al final del resumen, incluir de tres a cinco palabras clave se-
paradas por punto y coma (apenas la primera inicial mayúscula),
Para las palabras o trechos del texto en destaque, a criterio del autor, utilizando los términos presentados en el vocabulario estructu-
utilizar comillas simples. Ejemplo: ‘puerta de entrada’. Evitar inicia- rado (DeCS), disponibles en: www.decs.bvs.br.
les mayúsculas y negritas.
Registro de ensayos clínicos
Figuras, gráficos, cuadros y tablas deben estar en alta resolución, en
blanco y negro o en escala de grises y debe ser enviados separados
La revista ‘Saúde em Debate’ apoya las políticas para el registro de
del texto, uno por uno, siguiendo el orden en el que aparecen en el
ensayos clínicos de la Organización Mundial de Salud (OMS) y del
estudio (deben estar numerados, tener título y fuente). Identificar,
International Committee of Medical Journal Editors (ICMJE), reco-
en el escrito, el local donde deberán ser inseridos. El número de fi-
nociendo su importancia para el registro y la divulgación interna-
guras, gráficos, cuadros o tablas deberá ser, en lo máximo, de cinco
cional de informaciones sobre ensayos clínicos. En este sentido, las
por texto. El archivo debe ser editable.
investigaciones clínicas deben contener el número de identificación
en uno de los registros de Ensayos Clínicos validados por la OMS y
Si usa fotos las personas no podrán ser identificadas, a menos que lo
ICMJE, cuyas direcciones están disponibles en: http://www.icmie.
autoricen por escrito, para fines de divulgación científico.
org. En estos casos, el número de la identificación deberá constar al
final del resumen.
El trabajo completo, que corresponde al archivo a ser
anexado, debe contener: 2. Texto. Se respeta el estilo y la creatividad de los autores para la
composición del texto, sin embargo, se deben observar elementos
1. Hoja de presentación con: convencionales como:

a) Título, que debe expresar de manera clara y sucinta el con- a) Introducción con definición clara del problema investigado y
tenido del texto, con un máximo de 15 palabras. Debe estar en su justificativa;
negrita, iniciales mayúsculas apenas para los nombres propios.
Los textos en portugués y español deben tener el título en la len- b) Métodos descritos de forma objetiva;
gua original y en inglés. El texto en inglés debe tener el título en
inglés y en portugués. c) Resultados y discusión pueden ser presentados juntos o en
renglones separados;
b) Nombre completo del/los autores alineados a la derecha
(máximo de cinco autores por artículo). En nota de pie de pági- d) Conclusión.
na, debe colocar las informaciones sobre afiliación institucional y
el correo electrónico. Agregar la dirección y el teléfono del autor 3. Colaboradores. Al final del texto, deben estar especificadas las
del contacto. contribuciones individuales de cada autor en la elaboración del ar-
tículo. Según el criterio de autoría del International Committee of
c) En caso de ser el resultado de investigación con financiación, Medical Journal Editors, los autores deben observar las siguientes
citar la agencia financiadora y el número del proceso. condiciones: a) contribuir substancialmente para la concepción y
la planificación o para el análisis y la interpretación de los datos;
d) Conflicto de intereses. Los trabajos encaminados para la pu- b) contribuir significativamente en la elaboración del rascuño o la
blicación deben informar si tienen algún tipo de conflicto de inte- revisión crítica del contenido; y c) participar de la aprobación de la
rés. Los conflictos de interés financiero, por ejemplo, no están re- versión final del manuscrito.
lacionados apenas con la financiación directa de la investigación,
pero también con el propio vínculo de trabajo. Si no hay conflicto, 4. Agradecimentos. Opcional.
será suficiente la información “Declaro que no hubo conflictos de
intereses en la concepción de este trabajo” en la hoja de presenta- 5. Referencias. Un máximo de 25, pudiendo exceder cuando se tra-
ción del artículo. te de una revisión sistemática. Solamente deben constar los autores
citados en el texto y seguir las normas de la ABNT (NBR 6023).

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Instrucciones a los autores para la preparación y presentación de artículos

Ejemplos de citas de textos Material de internet:

CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE. Revista Saúde


Todas las citas hechas en el texto deben constar de las referencias em Debate. Disponível em: <http://cebes.org.br/publicacao-ti-
presentadas al final del artículo. Para las citas, utilizar las normas po/revista-saude-em-debate/>. Acesso em: 31 jan. 2016.
ABNT (NBR 10520).
OBS: Abreviar siempre el nombre y los apellidos del medio de los
Citas directa con hasta tres líneas autores.

El grupo focal es una “técnica de investigación que utiliza las seccio-


nes grupales como uno de los foros facilitadores de expresión de ca- PROCESO DE EVALUACIÓN
racterísticas psicosociológicas y culturales” (WESTPHAL; BÓGUS;
FARIA, 1996, p. 473). Todo original recibido por la revista ‘Saúde em Debate’ es sometido
a un análisis previo. Los trabajos que no estén de acuerdo a las nor-
Citas directas con más de tres líneas mas de publicación de la revista serán devueltos a los autores para
adecuación y nueva evaluación. Si son cumplidas integralmente las
La ley 8.080, conocida como Ley Orgánica de la Salud, inicio el pro- normas de la revista, los originales serán apreciados por el Comi-
ceso de reglamentación del funcionamiento de un modelo público té Editorial, compuesto por el editor jefe y por editores asociados,
de acciones y servicios de salud, ordenado por lo que vendría a ser quienes evaluarán la originalidad, el alcance, la actualidad y el aten-
conocido como Sistema Único de Salud (SUS): dimiento a la política editorial de la revista. Los trabajos recomenda-
dos por el comité serán evaluados, por lo menos, por dos evaluado-
Orientado por un conjunto de principios y directrices válidos res indicados de acuerdo con el tema del trabajo y su expertise, que
para todo el territorio nacional, parte de una concepción am- podrán aprobar, rechazar y/o hacer recomendaciones a los autores.
plia del derecho a la salud y del papel del Estado en la garantía
de este derecho, incorporando, en su estructura institucional y La evaluación es hecha por el método doble ciego, esto es, los nom-
decisoria, espacios e instrumentos para la democratización y el bres de los autores y de los dos evaluadores son omitidos durante
compartimiento de la gestión del sistema de salud. (NORONHA; todo el proceso de evaluación. Caso haya divergencia de pareceres,
MACHADO; LIMA, 2011, p. 435). el trabajo será encaminado a un tercer evaluador. De esta manera, el
Comité Editorial puede, a su criterio, emitir un tercer parecer. Cabe a
Citas Indirectas los evaluadores recomendar la aceptación, rechazo o la devolución
de los trabajos con indicaciones para su corrección. En caso de so-
Según Foucault (2008), el neoliberalismo surge como un modelo
licitud de corrección los autores deben devolver el trabajo revisado
de gobierno en Alemania pos nacismo, en una radicalización del li-
en el plazo estipulado. Si los autores no se manifiestan en el plazo
beralismo con intención de recuperar al Estado alemán a partir de la
definido, el trabajo será excluido del sistema.
nueva relación Estado-mercado.

El Comité Editorial posee plena autoridad para decidir la aceptación


Ejemplos de referencias final del trabajo, así como sobre las alteraciones efectuadas.

Libro: No se admitirán aumentos o modificaciones después de la aproba-


ción final del trabajo. Eventuales sugerencias de modificaciones de
FLEURY, S.; LOBATO, L. V. C. (Org.). Seguridade social, cidadania
la estructura o del contenido por parte de la editorial de la revista
e saúde. Rio de Janeiro: Cebes, 2009.
serán previamente acordadas con los autores por medio de comu-
Capítulo del libro: nicación por e-mail.

FLEURY, S. Socialismo e democracia: o lugar do sujeito. In: FLEU- La versión diagramada (prueba de prensa) será enviada por e-mail,
RY, S.; LOBATO, L. V. C. (Org.). Participação, democracia e saúde. al autor responsable por la correspondencia para la revisión final,
Rio de Janeiro: Cebes, 2009. p. 24-46. que deberá devolver en el plazo estipulado.

Artículo del periódico: Observación: antes de que sean enviados para la evaluación por los
ALMEIDA-FILHO, N. A. Problemática teórica da determinação pares, los artículos sometidos a la revista ‘Saúde em Debate’ pasan
social da saúde (nota breve sobre desigualdades em saúde como por un software detector de plagio, Plagiarisma. Así es posible que
objeto de conhecimento). Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. los autores, que deben garantizar la originalidad de los manuscritos y
33, n. 83, p. 349-370, set./dez. 2010. hacer referencia a todas las fuentes de investigación utilizadas, sean
cuestionados sobre informaciones identificadas por la herramienta

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de detección. Plagio es un comportamiento editorial inaceptable, de 3. Declaración de revisión ortográfica y gramatical


esa manera, si es comprobada su existencia, los autores involucra-
Los artículos aprobados deberán ser revisados ortográfica y gra-
dos no podrán someter nuevos artículos para la revista.
maticalmente por profesional cualificado, con base en una lista
de revisores indicados por la revista. El artículo revisado debe es-
DOCUMENTOS OBLIGATORIOS QUE DEBEN SER EN- tar acompañado de la declaración del revisor.
VIADO DESPUÉS DE LA APROBACIÓN DEL ARTÍCULO
4. Declaración de traducción
Los documentos relacionados a seguir deben ser digitalizados y
Los artículos aprobados podrán ser traducidos para el inglés a
enviados para el correo electrónico revista@saudeemdebate.org.br.
criterio de los autores. En este caso, la traducción debe ser hecha
por profesional cualificado, con base en una lista de traductores
1. Cesión de derechos de autor y declaración de autoría y de
indicados por la revista. El artículo traducido debe estar acom-
responsabilidad
pañado de la declaración del traductor.
Todos los autores y coautores deben rellenar y firmar las decla-
raciones de acuerdo con el modelo disponible en: http://www. NOTA: La producción editorial de Cebes es el resultado del trabajo
saudeemdebate.org.br/artigos/index.php. colectivo y de apoyos institucionales e individuales. Para que la re-
vista ‘Saúde em Debate’ continúe siendo un espacio democrático
2. Parecer de Aprobación del Comité de Ética en Pesquisa de divulgación de conocimientos críticos en el campo de la salud
(CEP) participe de Cebes. Para asociarse entre en el sitio http://www.ce-
bes.org.br.
En el caso de investigaciones que envuelvan a seres humanos,
en los términos de la Resolución n° 466, de 12 de diciembre de
Endereço para correspondencia
2012 del Consejo Nacional de Salud, enviar documentos de apro-
bación de la investigación por el Comité de Ética en Pesquisa de
Avenida Brasil, 4.036, sala 802
la institución donde el trabajo fue realizado. En el caso de que
CEP 21040-361 – Manguinhos, Rio de Janeiro (RJ), Brasil
las instituciones no dispongan de un Comité de Ética en Pesqui-
Tel.: (21) 3882-9140/9140
sa, deberá ser presentado el documento del CEP de donde fue
Fax: (21) 2260-3782
aprobada.
E-mail: revista@saudeemdebate.org.br

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Diagramação e editoração eletrônica
Layout and desktop publishing

Rita Loureiro
ALM Apoio à Cultura - www.apoioacultura.com.br

Design de Capa
Cover design

Alex I. Peirano Chacon

Normalização, revisão e tradução de texto


Normalization, proofreading and translation

Ana Karina Fuginelli (inglês)


Ana Luísa Moreira Nicolino (inglês)
Anna Lú Sales (normalização)
Carla de Paula (português)
James Allen (inglês)
Javier Felipe Casallas Reinel (espanhol)
Katia Muller (inglês)
Lucas Rocha (normalização)
Luiza Nunes (normalização)
Simone Basilio (português)
Wanderson Ferreira da Silva (português e inglês)

Tiragem
Number of Copies
1.300 exemplares/copies

Capa em papel cartão ensocoat LD 250 g/m²


Miolo em papel couché matte LD 90 g/m²

Cover in ensocoat LD 250 g/m²


Core in couché matte LD 90 g/m²

Site: www.cebes.org.br • www.saudeemdebate.org.br


E–mail: cebes@cebes.org.br • revista@saudeemdebate.org.br

Saúde em Debate: Revista do Centro Brasileiro de Estudos de


Saúde, Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, Cebes –
n.1 (1976) – São Paulo: Centro Brasileiro de Estudos de
Saúde, Cebes, 2017.

v. 41. n. 112; 27,5 cm




ISSN 0103–1104

1. Saúde Pública, Periódico. I. Centro Brasileiro de Estudos de


Saúde, Cebes


CDD 362.1
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