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TAYA CRISTO
Alfenas
2018
1
TAYA CRISTO
Alfenas - MG
2018
2
TAYA CRISTO
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Flamarion Dutra Alves – Orientador
Universidade Federal de Alfenas –MG
Assinatura: ________________
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AGRADECIMENTOS
Assim como na vida, em primeiro lugar preciso agradecer à Sheila, cujo estímulo aos
estudos foi fundamental para a minha completa transformação como cidadã, profissional e
principalmente como ser humano. O que você me mostrou é que o amor verdadeiro é honesto,
humano, e é aquele que te lança para frente, te desafia, te prepara para o melhor e para o pior,
mas que também segura a sua mão como quem está sempre dizendo: “tamo junto!”. Se não
fosse por você, certamente nada disso teria sido.
Agradeço também a todos os meus professores, porque cada aula, cada texto, cada
prova, cada conversa foram um tijolo desse edifício enorme que luto todos os dias para
construir: ser uma geógrafa digna de todos os grandes geógrafos temos em nosso país, e dos
quais vocês fazem parte.
Agradecimento especial ao Flamarion, meu orientador, e ao Prof. Evânio, orientador
não-oficial, pela paciência com todos os muitos defeitos que tenho, pelos ensinamentos que
foram determinantes para a construção do que sou hoje como geógrafa, e cujas personalidades
e inteligências são realmente marcantes.
Agradeço a todos os profissionais da UNIFAL-MG, que trabalharam direta ou
indiretamente para que hoje eu possa estar entrando para um rol de indivíduos extremamente
privilegiados em um país tão desigual: concluir um ensino superior de muita qualidade.
Por fim, ainda que talvez este nunca leia uma linha deste trabalho, agradeço ao
presidente Lula, porque os universitários pobres deste país são, de certa forma, crias de seu
desejo de transformação da nossa classe social e da nossa geração, que nasceu e cresceu sem
nenhuma perspectiva de estudar em uma instituição de ensino superior pública e da mais alta
qualidade, e hoje podem sonhar sim com um futuro menos árduo do que o passado de nossos
pais.
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Resumo
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Abstract
At the beginning of the 21st century, Brazil experienced another period of significant economic
growth and improvements in social indicators. The good performance of the domestic market
to promote development also went through expanded access to real estate financing that started
the fight against the historic housing deficit, and real estate companies gained prominence in
terms of growth. But the current scenario of the country until 2017 is economic and political
crisis, and as is understood by many authors, especially geographers, the same growth factors
are those that produce their own barriers, their crises, as is characteristic of the capitalism that
has been intensified by globalization. The target of this study is to analyze the development
process of the national economy, focusing on the real state market, assess the achievements,
but also the negative results, mainly spatial segregation and inflation, since the overvaluation
of the properties and rents is one of the factors that once again separates the poorest populations
of full access to the city, and even after all the positive period, makes it difficult to overcome
the crisis by the domestic market and again keep the Brazilian housing deficit on the rise. It is
a study whose dialectical method was used to analyze the data and information obtained,
through well-known authors of geography, articles of important magazines related to the
subjects, and mainly data provided by official institutions
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Lista de Tabelas
Tabela 3 – Distribuição do déficit habitacional brasileiro, por regiões, por renda (em salários
mínimos), em 2007....................................................................................................................59
Tabela 5 – Déficit habitacional, urbano e rural, total e relativo, por região, em 2010................73
Tabela 7 – Proporção de domicílios adequados nas 5 regiões brasileiras de acordo com o Censo
de 2010......................................................................................................................................79
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Lista de Gráficos
Gráfico 4 - Variações (em %) do PIB nacional e do PIB per capita entre 2012 e 2015..............47
Gráfico 5 - Variações dos preços do minério de ferro e do petróleo para exportação, nos meses
de janeiro dos anos de 2008 até 2015.........................................................................................48
Gráfico 8 - Situação das unidades (contratadas e entregues) pelo Minha Casa Minha Vida até
o 5º balanço do PAC (2015-2018) .............................................................................................63
Gráfico 13 - Variação (em%) dos preços dos imóveis à venda nas capitais sulistas, entre 2012-
2015...........................................................................................................................................69
8
Gráfico 14 – Variação anual (em %) da valorização de imóveis à venda em algumas das capitais
do país, entre 2010-2015............................................................................................................70
Gráfico 15 – Variação do custo médio do m² (em %), nacional e por regiões, entre 2007 e
2015...........................................................................................................................................71
Gráfico 16 – Variação (em %) do PIB nacional, per capita e do salário mínimo em 2 períodos:
2007-2010 e 2011-2014.............................................................................................................71
Gráfico 19 – Participação média (em %) ao PIB nacional, por regiões, em comparação com a
proporção de financiamento do SFH, entre 2007 e 2014............................................................76
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Lista de Figuras
Figura 1 – Variação anual das taxas de juros da Federal Reserve dos EUA, do final da década
de 1970 até 2016........................................................................................................................27
Figura 2 – Distribuição dos financiamentos do BNDES, por região e por porte da empresa,
entre 1995 e 2016.......................................................................................................................44
Figura 3 – Expectativa da demanda por habitação para o Brasil, por faixa de renda e por região,
entre 2007 e 2023.......................................................................................................................60
Lista de Quadros
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................12
1.1 Justificativa, objetivos e metodologia da pesquisa..................................................16
2 A GLOBALIZAÇÃO E AS TRANSFORMAÇÕES SOCIOESPACIAIS NA AMÉRICA
LATINA...................................................................................................................................19
2.1 Contextualização da ascensão do neoliberalismo....................................................20
2.2 A geografia da reestruturação produtiva e a importância das técnicas......................23
2.3 A das consequências socioespaciais do fenômeno da globalização.........................25
2.4 A globalização como motor de urbanização e reprodução ampliada de capital.......32
3 DO ÊXITO À CRISE: A TRAJETÓRIA DA ECONOMIA BRASILEIRA NO INÍCIO
DO SÉCULO XXI...................................................................................................................40
3.1 Trajetória ascendente: os “nutrientes” do crescimento brasileiro.............................40
3.2Trajetória descendente: os limites do modelo de crescimento e suas
consequências............................................................................................................................46
4 A RECENTE EXPANSÃO DO MERCADO IMOBILIÁRIO/HABITACIONAL
BRASILEIRO E AS CONSEQUÊNCIAS SOCIOESPACIAIS..........................................57
4.1 O contexto habitacional brasileiro: do BNH ao Minha Casa Minha Vida.................57
4.2 O processo recente de expansão do mercado imobiliário brasileiro.........................63
4.3 Déficit habitacional brasileiro: discussões e estratégias para enfrentamento...........72
4.4 Estudos de experiências do MCMV: conquistas e desafios......................................76
4.5 Estudos de experiências do MCMV: conquistas e desafios.....................................81
5 CONSIDERAÇÕES DO PROCESSO................................................................................87
6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................................................91
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1. INTRODUÇÃO
Ainda que o embrião neoliberal tenha sido os EUA e Grã-Bretanha, o modelo nasceu
no Chile, entretanto quando foi colocado em prática nas economias desenvolvidas, foi
expandido para todo o planeta, acompanhando diversas transformações dentro do próprio
sistema capitalista: espetacular desenvolvimento das tecnologias de informação e transporte de
bens e pessoas, que por sua vez propiciou a desconcentração produtiva internacional para países
subdesenvolvidos, principalmente da Ásia, a inserção da tecnologia dentro das unidades
produtivas, que reduziu a necessidade do trabalho humano, além da infinita mobilidade de
capitais que favoreceu o fortalecimento de um sistema financeiro mundial que hoje se coloca
acima da produção.
Os diferentes autores abordados neste estudo, argumentam que a globalização não agiu,
para os países subdesenvolvidos de forma a inseri-los dignamente no processo, mas transforma-
los em membros precários. Mesmo dentro dos países desenvolvidos, as desigualdades
socioespaciais foram intensificadas, visto que o controle do capital financeiro controla o capital
produtivo, e as exigências para ter acesso a esse capital e ao desenvolvimento são cada vez
maiores, gerando muita competição entre as cidades, as regiões e os Estados.
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A alta competitividade global, objetivo atingido da globalização, facilitou uma
desvalorização continuada do valor do trabalho, dos recursos naturais, e elevou como nunca o
valor de um dos bens mais indispensáveis para a própria reprodução humana (força de trabalho):
a terra. Se os bens materiais, os recursos naturais e o trabalho estão custando cada vez menos
(o que é visto como uma grande vitória para muitos), a terra perdeu seu valor de uso, e ganhou
um valor especulativo imenso, e a especulação imobiliária é hoje um dos maiores problemas
sociais, pois impede o acesso à propriedade, dificulta a sobrevivência das pessoas nas cidades,
e intensifica a ocupação de áreas de risco, ilegais, gastos elevados com alugueis cada vez mais
caros, e também fica cada vez mais caro adquirir um imóvel.
O governo do então presidente Lula ampliou a captação dos recursos para construção e
financiamentos habitacionais, e em 2009 lançou o Programa Minha Casa Minha Vida
(PMCMV). O setor habitacional brasileiro cresceu como nunca: recorde em unidades entregues,
em volume de financiamentos, em crescimento das empresas, enfim, a estratégia de ampliação
da aquisição do imóvel, via subsídio governamental ou via crédito no mercado estava
funcionando.
Entretanto, um dos efeitos colaterais deixado pelo processo, não só de expansão do setor
habitacional e imobiliário, mas também da melhora econômica do país como um todo, foi a
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supervalorização dos imóveis, dos lotes, enfim, do custo de habitar. A inflação dos imóveis nas
principais metrópoles brasileiras superou os 100% em menos de 10 anos, assim como os valores
dos alugueis e, apesar de todos os esforços do governo, o déficit habitacional brasileiro em
2015, segundo a Fundação João Pinheiro, ainda era de mais de 6 milhões de unidades, sendo o
ônus excessivo com aluguel a principal razão para o déficit.
Após a análise dos diferentes autores que estudaram o tema, bem como dos dados
oficiais disponibilizados pelas diferentes instituições oficiais, conclui-se que, mesmo a
expansão do setor não ter sido realizada através dos moldes neoliberais, mas o contrário, com
investimentos governamentais pesados, o mesmo Estado não tomou atitudes de modo a prevenir
a especulação imobiliária, a supervalorização de imóveis e dos custos da construção civil, da
segregação das populações atendidas pelo PMCMV, e a lógica dos agentes imobiliários
prevaleceu sobre as necessidades dos brasileiros por moradia.
Mesmo que muitas famílias de baixa renda tenham acessado à moradia própria,
especialmente nas faixas de renda 1, 1.5 e 2 do PMCMV, as favelas e as ocupações ilegais ainda
são uma paisagem comum do país, especialmente nas grandes metrópoles, além de que
pesquisas mostraram que populações de rendas mais altas são as que mais tiveram acesso aos
financiamentos.
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financiamentos, e a crise política que também é uma barreira à retomada do desenvolvimento
nacional.
Assim como o desaquecimento do mesmo mercado (apesar de ter sido considerado até
certo ponto necessário para combate à inflação) tem dificultado recuperação da economia, com
o passar do tempo, se a lógica rentista e mercadológica prevalecer sobre as necessidades sociais,
não há como não acreditar que a pressão dos gastos para possuir um lugar irá atingir um limite
que pode ser perigoso para a população, para os empresários, para a economia como um todo,
mesmo em um cenário economicamente positivo, vide o exemplo recente do mercado
americano.
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1.1. Justificativa, objetivo e metodologia da pesquisa
O século XXI, ainda tão curto, tem sido para o Brasil numa perspectiva geral, um
período de transformações positivas no que diz respeito à economia e à sociedade. A década
crescimento econômico, 2004-2013, foi acompanhada de uma significativa melhoria na
qualidade de vida das classes média e baixa que, com mais oportunidades de emprego, melhores
rendas e mais acesso ao crédito, puderam acessar o consumo de eletrodomésticos, eletrônicos,
automóveis, lazer, acesso também ao ensino superior que foi ampliado, aos mais diversos
programas governamentais na área da saúde, da educação e também da habitação.
Entretanto, mesmo com algum foco das políticas públicas para o acesso de moradias às
classes mais baixas, o déficit habitacional continua muito alto, e com a crise econômica que
prevalece até 2017, pode até mesmo superar àquele de 10-11 anos atrás, além de que muitos
são os estudos que mostram que as unidades habitacionais destinadas às populações de mais
baixa renda estão localizadas muito afastada dos centros urbanos, o que no geral dificulta o
pleno acesso à estrutura urbana, como transporte, educação, saúde, e também às oportunidades
no mercado de trabalho, já que os custos do deslocamento podem comprometer no momento
de conseguir uma vaga de emprego, por exemplo.
Essa peculiaridade do próprio sistema capitalista de, ao mesmo tempo em que produz
suas riquezas e o crescimento, vai paralelamente produzindo suas próprias barreiras, as crises
localizadas e mundializadas, se intensificam de forma expressiva com a nova ordem mundial
que se inicia na década de 1970, a globalização, e esse é o objetivo principal do estudo:
compreender quais as implicações na sociedade brasileira do recente processo de expansão
imobiliária diante do atual cenário de crise econômica e política, buscando manter como pano
de fundo o fenômeno da globalização.
16
países subdesenvolvidos, as desigualdades sociais, elevaram também a fragilidade desses países
em se sustentarem mediante crises de países desenvolvidos, ou seja, criou uma instabilidade
econômica mundial que se reflete, não nos números, nos gráficos, mas nas cidades, nos bairros,
nas regiões, através do modo de vida, de acesso aos serviços básicos e às oportunidades, ao
consumo da maioria da população brasileira que se encontra entre as faixas de renda média e
baixa.
Essa pesquisa se justifica a partir do momento que, apesar do acesso à habitação ter sido
promovido de uma maneira muito positiva e com um papel importante do Estado, e os esforços
governamentais que foram na contramão da década anterior ter de ser reconhecido, ainda há
muito a ser melhorado, a começar por fazer cumprir o papel social da terra, da moradia,
combater a especulação imobiliária que suga os ganhos sociais do processo expansivo, melhorar
a alocação dos recursos para poder ampliar sempre mais os esforços, já que 70% da população
brasileira depende de subsídios para adquirir sua casa própria, e encontrar um meio de inserir
as moradias subsidiadas para populações mais carentes em melhores localidades, enfrentando
a especulação.
17
que estudaram a alocação e os perfis dos empreendimentos do PMCMV em algumas cidades
do país.
Foram utilizados textos, livros e artigos publicados por importantes autores para tratar
do fenômeno da globalização, sob uma perspectiva geográfica, principalmente, para buscar na
abordagem do fenômeno a origem e a intensificação das contradições do sistema capitalista,
que ajudam a compreender as ligações entre tudo o que foi abordado: o desenvolvimento, a
crise e a expansão urbana, principalmente através do setor habitacional. E por fim, todos esses
dados e informações foram “colocados em diálogo” através do método dialético.
18
2. A GLOBALIZAÇÃO E AS TRANSFORMAÇÕES SOCIOESPACIAIS NA
BRASIL
19
2.1 Contextualização da ascensão do neoliberalismo
Era preciso uma nova ordem mundial, com novos papéis para os Estados, para superar
o fracasso do capitalismo com a crise de 1929 que se arrastou pela década de 1930, bem como
pacificar a geopolítica, evitando novas guerras. Instituições como ONU e FMI foram criadas,
além do acordo de Bretton Woods, com esse fim. O dólar passou a ser a moeda de reserva
mundial, com câmbio fixo baseado na convertibilidade dele ao ouro (HARVEY, 2011).
O chamado “Estado de bem-estar social”, muito mais levado à cabo na Europa do que
nos Estados Unidos, e extremamente restrito nos países capitalistas periféricos, ao distribuir a
renda ao trabalho e aumentar os gastos com serviços sociais por parte dos governos
(MARICATO, 2009), reduziu a concentração dessa mesma renda que antes permanecia entre
os chamados “1% mais rico” e reduziu as taxas de lucro (HARVEY, 2008; MURTEIRA, 1986).
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Terceiro Mundo 12% 11%
Fonte: MURTEIRA, 1986. Elaboração própria.
Segundo Murteira (1986), não é correto associar a crise do crescimento apenas à crise
do petróleo de 1973-74, visto que existiram outros fatores muito “enraizados” dentro do
capitalismo global que facilitaram o aprofundamento da crise mundial da década de 1970. Em
primeiro lugar, o autor argumenta que como os custos da mão-de-obra estavam mais altos
(melhores relações salariais), então as taxas de lucro do capital estavam mais baixas, e isso
desestimulava os investimentos dentro dos países capitalistas desenvolvidos.
A insatisfação com o modelo que vinha funcionando após Bretton Woods (BW) se
materializa em uma cadeia de reações políticas e econômicas que sucedem grandes
acontecimentos que transformaram os destinos dos países, centrais ou não, inclusive com a
queda do sistema BW. Em 1973, Augusto Pinochet derruba o governo de esquerda de Salvador
Allende e promove a primeira experiência neoliberal do planeta através da ditadura militar no
Chile. Em 1978, a China abre seus mercados em direção a assumir o posto de segunda maior
economia capitalista do mundo (HARVEY, 2008).
21
Paul Volcker assume em 1979 a Federal Reserve, uma espécie de Banco Central
americano, e atua com políticas de desregulamentação da indústria, agricultura e do
extrativismo, restringindo o poder dos sindicatos no país e derrubando as barreiras da livre
movimentação das finanças. Ainda em 1979, Margareth Thatcher, talvez o maior expoente do
neoliberalismo mundial foi eleita e também atuou de forma a reduzir o poder dos sindicatos
britânicos (MARICATO, 2009; HARVEY, 2008).
Por fim, em 1980 Ronald Reagan vence as eleições presidenciais pelo Partido
Republicano nos Estados Unidos e, junto de Thatcher e Volcker, formam uma frente de combate
às políticas keynesianas, passam a difundir uma nova configuração econômica através de
políticas e ideais neoliberais por todo o globo, dando início a uma nova fase do capitalismo
mundial, chamada era da “globalização” (HARVEY, 2008).
Ao Estado nessa nova configuração, cabe o papel de “criar e preservar uma estrutura
institucional adequada à essas práticas” (HARVEY, 2008, p. 2). No Brasil, desde o governo de
Getúlio Vargas, passando por Kubistchek, Jânio Quadros, João Goulart e também durante o
regime militar, o Estado detinha as “rédeas” do desenvolvimento, regulando a economia mesmo
com algum certo grau de abertura e não adotando nem de modo incisivo os ideais liberais, vide
a Constituição Federal de 1988 (CF/88) que prevê um Estado forte e ativo (DEGENZSAJN,
2006).
Segundo Chesnais (1996) e Harvey (2008), o capital encontrava, a partir dessa nova
realidade, diante também de uma revolução tecnológica, principalmente na eletrônica que fez
se desenvolver radicalmente as tecnologias de comunicação e transporte, que favoreceu a
redução dos custos e do tempo de transporte e na velocidade de circulação das informações
(condição básica para o sucesso das operações financeiras).
Segundo Santos (2001, p. 13), “na história da humanidade é a primeira vez que tal
conjunto de técnicas envolve o planeta como um todo e faz sentir, instantaneamente, sua
presença”. O autor reflete que o desenvolvimento das técnicas fez com que seja possível uma
comunicação quase total dos lugares de um país, por exemplo, já que mesmo as técnicas não-
hegemônicas são inseridas na lógica das técnicas hegemônicas, imersas então na hierarquia
23
desses sistemas técnicos que são executados de acordo com a política, seja empresarial, seja
estatal.
Mas Santos (2001) afirma que “a globalização não é apenas a existência desse novo
sistema de técnicas. Ela é também resultado das ações que asseguram a emergência de um
mercado dito global”, mercado esse, que é a essência da eficiência política contemporânea, e
que ao usar dessas técnicas, globaliza perversamente o mundo. Para o geógrafo, quatro são
fatores os que podem colaborar para a compreensão do que ele chama de “arquitetura” dessa
globalização: a unicidade da técnica, a convergência dos momentos, a cognoscibilidade do
planeta e, por fim, a globalização da mais-valia.
Para Santos (2001), o desenvolvimento das técnicas marca as passagens dos diferentes
momentos históricos do homem, pois essas funcionam como uma espécie de referência à
própria história da humanidade. Entretanto, o surgimento de novas tecnologias não resulta no
desaparecimento das “antigas”, mas apenas na diferenciação entre os atores, já que os
hegemônicos são aqueles que podem usufruir das novas possibilidades de suas novas técnicas.
24
Aqueles atores que, segundo Santos (2001) de fato são os atores fluidos, até pelo
imperativo da fluidez de seus bens, informações e capitais, têm na mais-valia universalizada o
que o autor denomina “motor único” das ações do capitalismo globalizado. Essa mais-valia é
globalizada pela própria internacionalização das cadeias produtivas e, apesar de não ser
mensurável, de se transformar conforme o próprio progresso técnico se transforma, ela é um
fato empírico, imposto, e é cada vez mais cruel conforme mais competitividade há na esfera
produtiva.
Todo esse movimento, essa dinâmica, só pode ser como tal graças ao conhecimento
generalizado do planeta, via imagens de satélites cada vez mais modernos, via cartografia,
informações variadas, que dão um panorama dos lugares que é, segundo Santos (2001), “dado
essencial à operação das empresas e à produção do sistema histórico atual”.
Uma das mais importantes características da globalização, que é requisito para e também
a requisita, é a competitividade entre os lugares, pessoas, empresas, Estados. Em meio a
competição pela redução dos custos, pela superação do espaço pelo tempo, pela atração dos
investimentos, pelos melhores salários, enfim, há uma violência estrutural que distorce a
percepção do outro, seja pessoal, seja institucional (SANTOS, 2001).
Se as fronteiras estão, como apontou o autor, mais “porosas”, elas estão permeáveis
então não somente aos ganhos das técnicas, da ciência, da informática, da comunicação, mas
também das perdas decorrentes da premissa básica da competitividade (que é por sua vez uma
premissa do capitalismo): quando alguém está vencendo, alguém necessariamente está
perdendo.
25
década de 1980, graças a desregulamentação financeira que culminou com a própria
globalização financeira, assim como também graças as novas tecnologias que são, ao mesmo
tempo que condição para intensificar o processo globalizatório, uma premissa para tal.
Após os dois “choques” do petróleo em 1973-74 e em 1979-80 que fizeram eclodir uma
das mais graves crises do capitalismo e renascer os ideais liberais nas economias desenvolvidas,
a América Latina sofreu com a intensificação de suas relações, que já eram desiguais, com os
países industriais capitalistas, a chamada relação Norte/Sul, e os saldos obtidos nas exportações
latinas tinham de ser direcionados para pagamentos de juros de dívidas externas (HARVEY,
2008; MURTEIRA, 1986).
26
Figura 1 – Variação anual das taxas de juro da Federal Reserve dos EUA, do final da década
de 1970 até 2016.
Fonte: tradingeconomics.com/unitedstates/interest-rate.
27
Segundo Chesnais (1996), o investimento direto (IED) e as transferências de tecnologias
que eram feitos dos países desenvolvidos para os subdesenvolvidos recuaram diante desse novo
cenário econômico mundial, pós década de 1970. O autor afirma que os empréstimos e os
investimentos eram para os países em desenvolvimento fontes de capital, mas que na década de
1980 não foram eficientes para promover bom desenvolvimento. Já para os países capitalistas
desenvolvidos e para seus bancos credores, entretanto, eles eram multiplicadores de capital e
também de poder.
Com o discurso de que o problema foi a falta de efetividade que levou o país àquela
situação, os famosos “comitês de credores” (formados por credores das dívidas e que estiveram
presentes diversos países que se endividaram) passam a planejar as ações para garantir a melhor
“adaptação” do México ao “modelo” de desenvolvimento (CHESNAIS, 1996).
Segundo Harvey (2011) as crises agora não são mais localizadas, mas podem exercer
um efeito dominó nas mais diferentes economias, causando crises globalizadas de impactos
significativos, especialmente para os países dependentes de exportação de matérias primas, por
28
exemplo, como é o caso do Brasil. Vale ressaltar que uma das causas da atual crise econômica
brasileira reside na desaceleração da economia chinesa, que demandava uma alta quantidade de
commodities a preços elevados, mas que passa a atuar menos intensamente a partir de 2010,
impactando diretamente as receitas brasileiras.
Os Estados não foram diminuídos como fez crer o ideário neoliberal, mas adaptaram-
se às exigências das grandes corporações e do capital financeiro. Enfraqueceram-se
apenas em relação às políticas sociais. Naquilo que interessa às grandes corporações
e ao capital financeiro os Estados foram fortalecidos. (MARICATO, 2009, s/p.)
29
Há também, segundo Costa (2009), quem perceba a globalização como um mito, ou
uma fábula (para usar a expressão de Milton Santos), pois estes acreditam que o discurso não
condiz com a prática. Argumentam os pensadores dessa corrente, que a economia mundial era
mais “aberta” em 1914 do que é hoje, já que os investimentos, o comércio, o capital e as
empresas transnacionais estão concentradas nos poucos países centrais hegemônicos,
principalmente nos EUA.
Há uma terceira corrente de pensamento, segundo Costa (2009), que defende que a
globalização é um “fenômeno antigo”, iniciada com as expedições de Marco Polo à China, que
se intensifica com a conquista da América pelas grandes navegações, e evolui consecutivamente
desde então
O que Costa (2009) argumenta vai de encontro ao que trata também Maricato (2009),
Harvey (2008), Degenszajn (2006), Santos (2001), Antunes (1999), Chesnais (1996), e tantos
outros pensadores do fenômeno. Ao reestruturar suas bases, o capitalismo que se neoliberaliza
na segunda metade do século XX, intensifica a divisão internacional do trabalho, que por sua
vez também se manifesta regional e localmente, fragmentando não somente a produção, mas
também a própria sociedade global em unidades produtivas de valorização diferenciada.
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entre os lugares que tentam “dar um passo atrás para dar dois à frente”, ou seja, se desvalorizar
para atrair investimentos e futuramente se valorizar (HARVEY, 2008).
Além das sociedades, o meio ambiente também tem sofrido com o intenso
desenvolvimento do capitalismo contemporâneo. Segundo Harvey (2011, p. 152) a paisagem
geográfica do capitalismo está em “perpétua evolução, em grande parte sob o impulso das
necessidades especulativas de acumulação adicional” e não das necessidades humanas, e essa
evolução parte do que o próprio autor denomina “destruição criativa da terra”, ou seja, a
exploração indiscriminada dos recursos naturais para a produção da “segunda natureza”, a
natureza completamente transformada pelo homem (HARVEY, 2011).
A perversidade da globalização, que Santos (2001) diz que é apenas o mundo “como ele
é”, é o adjetivo que cabe a superconcentração dos diferentes recursos, naturais, financeiros e
informacionais, que já não mais se distribuem, e que favorecem a concentração do poder na
mão dos poucos atores hegemônicos do sistema.
A globalização “como possibilidade”, traduz o anseio de Santos (2001) por “uma outra
globalização”, em que as tecnologias, as ferramentas e as conquistas do capitalismo sejam
usadas para uma transformação radical da sociedade global, para uma globalização de cunho
mais social, menos financeirizado e mais justo.
31
2.4 A globalização como motor de urbanização e reprodução ampliada de capital
Os mais diversos usos da terra no território das cidades constituem o que Corrêa (1995)
denomina “espaço urbano”, assim como o espaço em si é, como disse Santos (1993), “um
conjunto inseparável da materialidade e das ações do homem”. Essas diferentes formas de
apropriação da terra urbana fragmentam o espaço, mas esses fragmentos não são independentes,
estão em constante interação pelas próprias dinâmicas sociais que segundo Santos (1993) são
políticas, territoriais, demográficas, culturais e econômicas, e interação essa, articulada pelas
redes de contatos pessoais, de transporte, de comunicações e de produção (SANTOS, 2006;
CORRÊA, 1995).
O espaço urbano é o campo de lutas pelas condições de cidadania, condições essas que
são o próprio reflexo dessa sociedade e que, ao passo que a cidadania é condicionada pelo
espaço, também o condiciona. O espaço urbano transforma e também é transformado pelos
chamados “agentes”, que são os proprietários dos meios de produção e fundiários, promotores
imobiliários, os grupos sociais “excluídos” e o próprio Estado, e essas transformações são
simbolizadas nas relações produtivas, na luta de classes e na própria acumulação capitalista
(CORRÊA, 1995).
O Estado é o agente que faz a intermediação entre os demais atores do espaço urbano,
gerenciando interesses ao utilizar-se dos instrumentos que detém, de modo a controlar e regular
o uso do solo urbano através dos impostos, do crédito, de desapropriações, entre outros
(CORRÊA, 1995). O problema é que o Estado não tem sido capaz, ao menos no Brasil, de
interromper um processo muito desfavorável àqueles grupos que o autor denomina “excluídos”,
que é a valorização urbana como promotora de gentrificação e mais segregação/exclusão
espacial.
32
desse espaço é acelerado, e geralmente não acompanhado pela melhoria na renda de grupos que
vivem em áreas periféricas (DEGENSZAJN, 2006; CORREA, 1995).
33
violência transformou as arquiteturas), mas cuja ocupação produz maior valor especulativo às
novas áreas, isolando os contatos sociais entre as diferentes classes.
A partir do ano de 2013, o Brasil começou a deixar para trás os “bons ventos” dos 10
anos de crescimento econômico, distribuição de renda e melhorias sociais, entrando num
processo de transformação cuja “ponta do iceberg” foram as chamadas “manifestações de
julho”, mas cujos desdobramentos a partir dali já resultaram no impeachment da ex-presidente
Dilma Rousseff em agosto de 2016, e na enorme crise política derivada da ação Polícia Federal
na chamada “Operação Lava-Jato”.
De acordo com o mesmo relatório da CBIC, os ramos de atuação dessas empresas não
eram principalmente a habitação, mas incluíam obras de urbanização e infraestrutura em geral:
34
rodovias, hidrelétricas, túneis, portos, ferrovias, plataformas offshore, instalações petrolíferas,
pontes e viadutos, aeroportos, dutos para combustíveis, telecomunicações, linhas de
transmissão, saneamento, e também edifícios comerciais e residenciais (embora nem todas
atuassem nesse ramo), entre outras atuações. Apenas em 2014, essas mesmas empresas
faturaram juntas quase R$32bi, cerca de 0,52% do PIB nacional e quantia maior que o PIB do
Acre, Amapá, Roraima e Tocantins, no mesmo ano (CBIC, 2017c).
O crescimento das empresas se justifica pelos altos investimentos feitos pelo governo
federal para melhorar a infraestrutura do país, expandir a atividade econômica nacional e
superar a crise mundial de 2008, principalmente através das ações previstas no Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC), criado em 2007 e que, até 2017 já havia investido cerca de
R$1,9tri em projetos de infraestrutura urbana, habitação, logística e energia, mas diante da
imensa crise política que envolve denúncias das mais variadas, coloca sob descrédito perante a
população essas parcerias público-privadas.
A China por exemplo, que tem sido o “grande motor” da urbanização no mundo, cerca
de 20% do PIB do país estava ligado apenas a negócios imobiliários, e num período de 2 anos
(2011-2012), o país do sudeste asiático produziu uma quantidade maior de cimento do que os
Estados Unidos durante todo o século XX (HARVEY, 2014). Esse expressivo crescimento
chinês foi também importante para o crescimento brasileiro, já que o país foi um dos principais
fornecedores da matéria prima necessária às ações da China.
35
De acordo com Harvey (2011, p.143) “a organização do consumo pela urbanização
tornou-se absolutamente central à dinâmica do capitalismo”. Nos EUA, a dependência da
economia pelo consumo chega à 70%, e essa dependência eleva a subordinação também de uma
“economia espetáculo”, de uma infraestrutura e de uma estética urbana específica. Para
sustentar esse processo, novas formas de organização do crédito e do financiamento facilitaram
o acesso à habitação e às grandes obras, distribuiu os riscos pelo mundo através da venda de
títulos de dívida (financiadora desse estilo de vida), distribuindo também, a grave crise que
eclodiu em 2008.
Antes da crise de 2008, que nasceu no mercado imobiliário americano através do modelo
de massiva distribuição de crédito para financiamentos hipotecários que sucumbe pela
inadimplência que também havia crescido (já que os altos preços dos imóveis formaram uma
bolha especulativa), os EUA já tinham visto sua economia atingir o auge durante a década de
1950, justamente com a popularização do “american way of life”, dos subúrbios norte-
americanos, e também do boom dos automóveis que forçaram pesados investimentos em
menores vias e highways, garantindo o fluxo dinâmico do capital, mas que também terminou
em crise (HARVEY, 2011).
Esse novo modo de investir para multiplicar o capital, através de obras ligadas à
empreendimentos urbanos, não é necessariamente uma novidade para o capitalismo, visto que
Napoleão III já havia se utilizado da mesma estratégia para modernizar Paris no fim do século
XIX, mas foi intensificado após a reestruturação produtiva pós-década de 1970, basta olharmos
aos exemplos da China e do Oriente Médio por exemplo (HARVEY, 2011).
O processo de reconstrução que transformou Paris na “cidade das luzes” e que funcionou
como “importante veículo de estabilização social”, foi possível graças às novas tecnologias,
bem como o surgimento de novas instituições financeiras. Todavia, terminou com uma forte
crise financeira em 1868, em guerra de Napoleão III contra Otto von Bismarck na Alemanha, e
36
com o surgimento da Comuna de Paris, “um dos maiores episódios revolucionários da história
urbana capitalista” (HARVEY, 2011, p.138).
Harvey (2011) comenta também que grande parte da mão de obra global está empregada
na construção e na manutenção de edifícios, na produção direta de espaço urbano, e um grande
volume de capital é mobilizado no desenvolvimento urbano via empréstimos de longo prazo,
gerando endividamento e tornando-se, então, epicentro de crises.
A construção de espaços, bem como a criação de uma morada segura chamada casa e
lar, tem um impacto tanto na terra quanto na acumulação do capital, e a produção de
tais lugares se torna um grande veículo para a produção e absorção do excedente
(HARVEY, 2011, p. 122).
Para Harvey (2011) o simbolismo, as relações que os indivíduos têm com sua casa, com
seu lugar, estão em completa contradição com os “comercialismos crassos dos mercados de
terras propriedades”, e deixa em aberto então a seguinte questão: “nossas cidades são projetadas
para as pessoas ou para os lucros? ”.
Algumas décadas antes, os elevados gastos com grandes obras para, por exemplo, a
integração dos mercados internos brasileiros promovida durante a Ditadura Militar, deixaram
para o Brasil e outros países latinos, as famosas “crises da dívida externa” que os sufocaram
durante a década de 1980 (HARVEY, 2011).
37
“membros” da rede neoliberal, adequá-los as novas “exigências” e garantir que os fluxos de
capitais para pagamento dos juros da dívida acontecessem (DEGENSZAJN, 2006).
O que Degenszajn (2006) pensa como questão social não se confunde com problema
social, pauperização, nem com o conceito de “exclusão social”, mas uma questão multifacetada,
que envolve aspectos econômicos, de gênero, raças e etnias, e cuja análise leva a entender que
não se pode dizer que existem “excluídos” do sistema, mas que há a inclusão de modo precário,
quase que como uma segunda sociedade, muito relevante para aquela incluída de modo não
precário, já que a desigualdade é parte crucial do capitalismo contemporâneo.
Maricato (2009) pensa, de certa forma, diferente de Degenszajn (2006) no que diz
respeito à exclusão. Para a autora, durante o domínio do fordismo e do keynesianismo no
“terceiro mundo”, havia uma precária integração das periferias e havia também a desigualdade
social, mas muitas periferias, bairros ou até mesmo países, ficaram esquecidos e sem “utilidade”
sob à nova ordem.
A ação dos movimentos sociais possui em suas bases as expressões da questão social, e
é através dessas ações que essas são inseridas nas pautas políticas dos agentes governistas, é
assim que se tornam demandas. Mas a neoliberalização que tem se tornado cada vez mais
hegemônica, coloca os Estados em processo de retração de gastos sociais, sempre com o pano
de fundo da “crise fiscal”, tal como o ajuste fiscal imposto pelo FMI às economias latinas na
década de 1990, principalmente (MARICATO, 2009; DEGENSZAJN, 2006).
38
nacional e das instâncias subnacionais na implementação das políticas públicas que
tenham como centralidade a (re)significação e a (re)construção do tecido social no
território urbano das grandes metrópole. (DEGENSZAJN, 2006, p. 39)
Essas agências, afirma Degenszajn (2006), tiveram o papel de disseminar uma ideia
comum de que a política social é subordinada à política econômica, defendendo políticas de
ajustes estruturais, orientando para o mercado e para a própria sociedade civil (como
organizações do terceiro setor) a solução dessas questões, deixando ao Estado a exigência de
agir apenas entre os mais pobres dos mais pobres.
39
3. DO ÊXITO À CRISE: A TRAJETÓRIA DA ECONOMIA BRASILEIRA NO INÍCIO
DO SÉCULO XXI
Entretanto, cerca de 10 anos depois no início dessa “nova era”, o país começou a
vivenciar sinais de crise econômica, social e política: queda do PIB, aumento do desemprego,
redução dos gastos governamentais, “escândalos” de corrupção envolvendo políticos e grandes
empresas nacionais, etc. A discussão a seguir vai abordar o processo de produção do
desenvolvimento, mas os autores irão mostrar que esse mesmo processo vai produzindo
também as suas próprias “barreiras”, para usar a expressão de Harvey (2008), ilustrando as
contradições do desenvolvimento capitalista na era da globalização.
Teixeira e Pinto (2012) afirmam que o primeiro mandato do governo Lula (2003-2006)
foi pautado na estabilidade monetária, com metas para a inflação, busca de superávit primário
(saldo positivo entre receitas e despesas do governo, já descontados o pagamento com juros da
dívida) e câmbio flexível (liberdade de negociação do preço da moeda no mercado), além da
40
sustentabilidade da dívida pública, ilustrando as iniciativas “pró-mercado” citadas por
Mendonça (2013).
Durante esse período, a conjuntura externa era muito favorável e o país pôde acumular
resultados positivos na balança comercial: os preços das commodities obtiveram significativos
aumentos, enquanto que os preços das manufaturas e dos “bens de capital” que o país
importava, comportaram-se de forma contrária, favorecendo esse desempenho positivo
(TEIXEIRA; PINTO, 2012). O Gráfico 1 contém a síntese da balança comercial nacional em
um período de 12 anos e, através dele, observa-se um salto expressivo de exportações e
importações a partir de 2010, mas o saldo final, que determina os recursos que são “lucrados”
com o comércio exterior, usado pelo governo em investimentos, sofre uma brusca queda a partir
de 2012, ficando negativo em 2014, voltando a retomada apenas em 2015.
300.000
250.000
200.000
150.000
100.000
50.000
0
2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016
-50.000
No segundo ciclo expansivo citado Mendonça (2013), entre 2009 e 2012, o crescimento
esteve ligado a políticas anticíclicas adotadas pelo governo para mitigar os efeitos da crise
41
mundial de 2008, sendo mais fortes as intervenções governamentais na concessão do crédito
por parte do BNDES (TORRES FILHO; COSTA, 2012). Segundo Mendonça (2013), a
variação do crédito entre 2008 e 2012 foi de + 328% em termos reais; já entre 2010 e 2012,
86%.
Após uma atuação mais cuidadosa com a política fiscal, o segundo mandato de Lula
aumentou os investimentos públicos e, diante da crise internacional que teve início em 2008, o
governo passou a agir de forma mais flexível e expansionista em relação à política econômica,
entre 2007-2010, com intuito de fazer com que o país fosse capaz de resistir à crise e crescer
(MENDONÇA, 2013), e as exportações de commodities tiveram um papel fundamental para
viabilizar o acúmulo de reservas e reduzir a restrição macroeconômica (HITAKURA; SARTI,
2016).
Entre 2003 e 2010 o governo conseguiu um superávit primário (relação entre despesas
e receitas do governo) acumulado de mais de R$230 bilhões e assim pôde quitar a dívida com
o Fundo Monetário Internacional – FMI (TEIXEIRA; PINTO, 2012). Esse cenário, apontam os
autores, somou-se a liquidez no mercado internacional (saldo positivo na balança comercial,
devido aos elevados preços das commodities, esses por sua vez impulsionados pela franca
expansão do mercado chinês) e favoreceu o rápido desenvolvimento da economia brasileira,
que cresceu, em média, de 4% ao ano.
42
As políticas anticíclicas são aquelas derivadas da Teoria Geral de John M. Keynes,
chamadas keynesianas, em que os agentes acreditam que as expansões dos investimentos
públicos por parte do governo podem ser mais efetivas para combater os efeitos de um ciclo-
econômico (crescimento seguido de crise), ou seja, o Estado assume para si o papel de principal
promotor de desenvolvimento econômico (MOLLO, 2011).
Segundo Anderson (2016) e Cano (2012), o sucesso recente da economia brasileira foi
resultado de alguns “nutrientes”, que sintetizam o que já havia sido abordado:
1. O superciclo das commodities (elevação dos preços das matérias primas e da demanda),
protagonizado pela China, que expandiu o setor exportador brasileiro;
Figura 2 – Distribuição dos financiamentos do BNDES, por região e porte de empresa, entre
1995 e 2016.
Fonte: BNDES. Estatísticas por região, estado e porte de empresa.
44
De 1952-1979, o modelo econômico era de forte intervenção estatal na
promoção do desenvolvimento industrial, e banco atuava promovendo crédito
de longo prazo à inciativa privada, participando ativamente do crescimento
macroeconômico da época;
Nos anos de 1980, a chamada “década perdida” por conta do “choque do
petróleo” e das altas taxas de juros internacionais, a atuação do BNDES ficou
marcada por tentativas de ajustes econômicos internos e externos;
A década de 1990 marcou a implementação do ajuste fiscal através das políticas
neoliberais, e o banco atuou na finalização de projetos em andamento, na
desestatização (Programa Nacional de Desestatização) bem como no “socorro
financeiro às empresas em crise”. E mais recentemente o autor comenta:
Como se verificou durante a crise de 2008/2009, o banco atuou tanto para sustentar o
investimento como para compensar a retração de crédito por parte do sistema
financeiro privado. Em consequência, em pouco mais de dois anos, a participação do
BNDES no crédito bancário total passou de 16% para 21% ao mesmo tempo em que
o estoque de suas operações frente ao PIB saltou de 6% para quase 10% (TORRES
FILHO; COSTA, 2012, p. 996).
A Tabela 2 mostra, em %, que o setor da economia que mais conseguiu expandir sua
carga de investimentos do BNDES foi a Agropecuária, já que essa recebia em 2008 R$5,5bi, e
em 2016 recebeu R$13,8bi, ou seja, passando de 6,2% para 15,7% sua participação. De acordo
com o Sebrae (2017) esse setor representava, no primeiro trimestre (período de maior
45
participação do setor na economia anual) de 2008, 7,1% do PIB nacional, mas nos primeiros
trimestres dos anos de 2016 e 2017 representou, respectivamente, 6,4% e 6,8% do total da
produção nacional.
A indústria, em geral, participava com cerca de 27% do PIB em 2008, mas em 2016 e
2017 sua participação na economia caiu para 21%. O setor de serviços, entretanto, que durante
toda a primeira década do século XXI representava em torno de 62-67% da produção interna,
passa a partir de 2014 a ser responsável por mais de 70% do PIB, no segundo trimestre de 2017,
72,2% (SEBRAE, 2017).
Esses dados indicam que a economia brasileira tem se tornado, nos últimos anos, mais
dependente do setor de serviços, cada vez menos industrializada e, apesar da agropecuária ter
quase triplicado seus investimentos via BNDES entre 2008-2016, sua participação na economia
também sofreu redução. A consequência mais direta para a sociedade da ampliação do setor de
serviços na economia, que já era muito expressiva, é a relativa piora nas condições de emprego,
visto que é nesse setor onde encontram-se a maior parte dos trabalhadores part-time,
terceirizados e temporários, além dos salários e da estabilidade serem menores do que na
indústria (Antunes, 1999).
46
Anderson (2016) afirma que desde 2011 as matérias primas, que significavam cerca de
metade dos valores obtidos em exportações no país, com suas receitas eram usadas diretamente
em programas de desenvolvimento social do governo, sofreram bruscas quedas de preço, a citar
o petróleo cru que despencou cerca de 65%, e o minério de ferro, cerca de 70%.
14
12
10
8
6
4
2
0
2012 2013 2014 2015 2016 2017
Desemprego
Esse cenário que o autor chama de “fim da bonança do comércio exterior” culminou
com declínio do consumo doméstico, com políticas de austeridade fiscal e redução de gastos
por parte do governo, estagnando novamente o crescimento econômico e o desenvolvimento
social (ANDERSON, 2016).
12
10
8
6
4
2
0
-2 2012 2013 2014 2015
-4
-6
Gráfico 4 – Variações (em %) do PIB nacional e do PIB per capita entre 2012 e 2015.
47
Fonte: IBGE, 2017.
250
200
150
100
50
0
2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015
Gráfico 5 – Variações dos preços do minério de ferro e do petróleo para exportação, nos
meses de janeiro dos anos de 2008 até 2015.
Fonte: INDEX MUNDI, 2017.
Uma das principais medidas foi aumentar progressivamente a taxa básica de juros
(Selic), que sofria redução contínua desde 2011, o que impactou fortemente a economia
nacional, que já viva seus primeiros momentos de crise: queda no consumo, que gera queda na
produção, que impacta nos gastos do governo, etc. (ANDERSON, 2016; MENDONÇA, 2013).
48
16
14
12
10
0
2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017
Selic IPCA
49
modernizar. Segundo o autor, não se pode pensar em desenvolver-se plenamente no
capitalismo, abdicando da industrialização.
Antunes (1999) explica que após a reestruturação produtiva do capital que começa a
partir da crise do petróleo na década de 1970, há um processo de expansão das atividades
“improdutivas” (serviços em geral) e uma retração das atividades produtivas e industriais, em
países capitalistas desenvolvidos ou periféricos. De acordo com o autor, essa reestruturação
envolveu principalmente a desconcentração ou desterritorialização econômica do espaço físico
da produção em todo o mundo que, somada a inserção das novas tecnologias produtivas, tem
colaborado para reduzir o emprego fabril, e para expandir o desemprego estrutural e
consequentemente o trabalho precarizado.
Cano (2012, p.834) lista o que seriam os quatro principais fatores para a
“desindustrialização precoce e nociva, dando-lhe um sentido regressivo do progresso
econômico”, que a América Latina e o Brasil têm vivenciado nas duas últimas décadas,
principalmente:
50
2. Abertura e desregulação comercial que se inicia no ano de 1989, com baixa nas tarifas
e outros “mecanismos protecionistas”, o que desprotegeu o país da concorrência
internacional;
3. As altas taxas de juros afastam os investimentos, uma vez que confrontadas com o lucro
da economia industrial contemporânea que é relativamente “contido”, o empresário
nacional não investe, não se moderniza, reduzindo a produtividade e obstruindo o
desenvolvimento nacional;
4. Investimento estrangeiro que, segundo o autor, aumentou em números brutos e foi
celebrado por muitos economistas, mas o que predomina são investimentos de caráter
especulativos (em títulos privados ou dívida pública) que devem ser deduzidos;
5. China e, EUA adotam medidas “agressivas” no mercado de produtos manufaturados,
fazendo crescer suas exportações, e dificultando a concorrência dos produtos nacionais.
Segundo Hiratuka e Sarti (2016), a demanda doméstica foi capaz de absorver a produção
a ela destinada durante o período de crescimento da economia, gerando mais aumento da
produção e do emprego industrial, entretanto, após o aparecimento dos sinais da crise
51
econômica, a produção nacional perdeu competitividade e não é capaz de resistir a pressões de
produtos importados, como os chineses.
Este fato torna mais premente a adoção de políticas que reforcem a competitividade
estrutural da indústria brasileira, e que a tornem capaz de resistir à pressão competitiva.
Hiratuka e Sarti (2016) comentam que não somente políticas voltadas ao setor industrial devem
ser tomadas, mas que a taxa de câmbio no país é muito desfavorável à indústria, de modo que
precisa ser alterada.
40
35
30
25
20
15
10
5
0
52
Gráfico 7 – Spread bancário em alguns países “periféricos” em comparação com o Brasil, um
dos 5 maiores spreads do mundo.
Fonte: WORLD BANK, 2017.
O alto lucro das instituições financeiras sobre o crédito dificulta o acesso e o pagamento
de dívidas por parte do consumidor pessoa física, que paga mais caro, já que se entende ser uma
operação mais arriscada, e pode elevar o atraso nos pagamentos (que geram mais juros) e
também a inadimplência. Em janeiro de 2015, 57,5% das famílias brasileiras possuíam dívidas
com cheque pré-datado, cheque especial, cartão de crédito, carnês de lojas, empréstimos
pessoais, prestação de carro ou seguros (CNC, 2015). No mesmo ano, a pesquisa que avalia o
perfil do endividamento do consumidor brasileiro, revelou que 17,8% das famílias estavam com
contas atrasadas, e que 6,4% não possuíam condições de quitar essas dívidas.
Fortalecer o mercado interno foi uma das estratégias mais bem-sucedidas para que o
sucesso recente da economia brasileira fosse alcançado, a expansão do crédito expandiu o
consumo, que melhorou a atividade industrial, os salários, a renda das famílias, os
investimentos públicos e privados, enfim, o desenvolvimento econômico e social começou a
ser alcançado no país.
Entretanto a crise econômica brasileira não veio sozinha, mas aliada a um velho
problema nacional: uma crise política. Em 2014 a Polícia Federal iniciou a chamada “Operação
Lava-Jato” para investigar esquemas de corrupção envolvendo políticos e grandes empresários
brasileiros, principalmente construtoras, e muitas delas que multiplicaram suas receitas durante
o processo de expansão da economia nacional, com grandes obras principalmente de
infraestrutura, deixando o país em situação de caos político que se arrasta até 2017.
53
que a globalização financeirizou a economia mundial e o sistema financeiro em si, se fragiliza
durante o ciclo ascendente, ou seja, é “endogenamente” instável. A própria natureza dos bancos
é especulativa e instável, visto que contraem recursos à vista e à longo prazo, e realizam
investimentos e empréstimos de longo prazo, debilitando o suporte econômico.
Mollo (2011), ao analisar a inerência das crises junto ao capitalismo através das óticas
Marxista e Keynesiana, encontrou na especulação e na financeirização dos mercados um fator
de risco elevado para a instabilidade econômica. A autora lembra que a liberalização cambial
(negociação livre dos preços das moedas no mercado mundial) significou uma aceleração com
os ganhos especulativos, e assim, altas taxas de juros somadas a baixos índices inflacionários,
e fez com que os investimentos em produção crescessem pouco frente às aplicações financeiras,
dando um caráter altamente especulativo e instável à economia mundial.
Isso ocorre porque as condições de lucro do capital dentro dos países desenvolvidos são
muito significativas, e a produção de tecnologia também é alta, assim, os países
subdesenvolvidos, exportadores de matéria prima e de produção de baixa tecnologia, estão
sempre atrás na “corrida” pelos investimentos, e as chances que possuem de garantir grandes
lucros atraírem capitais estrangeiros, passam por sacrificar principalmente a classe
trabalhadora, por exemplo (CHESNAIS, 1996).
54
redução progressiva dos direitos trabalhistas e dos salários, precarização do trabalho, entre
muitas outras consequências negativas para as populações, especialmente de países
subdesenvolvidos.
A neoliberalização tem sido implantada nas sociedades de todo o planeta de modo que
aprisiona o setor produtivo e o submete ao rentismo, que para Costa (2009) é como o capital se
“auto acrescenta”, expondo os Estados à lógica da “especulação financeira” e aos ciclos das
crises, pois como o mesmo autor argumentou, “se o capitalismo desenvolvesse plenamente seu
potencial produtivo, haveria uma crise global de superprodução” (COSTA, 2009, p.21).
Essas crises localizadas, por sua vez, diante do atual cenário de globalização e conexão
ilimitada entre lugares podem, segundo Harvey (2011, p.136) “desencadear uma espiral fora de
controle e criar crises globais da ordem geográfica e econômica”, como ocorreu com as crises
imobiliárias da Flórida e do sudoeste dos EUA, que se tornaram globais em 2009, e que
repercutem até os dias atuais.
Amado e Caruso (2011) estudaram a fragilidade da economia brasileira pós Plano Real
(de 1994 até 2009), e concluíram que, mesmo nos anos mais recentes, em que a economia
acumulou superávits, a movimentação dos capitais “voláteis” foi ainda mais significativa,
situação que não foi transformada após esse período. Os saldos positivos na balança comercial
se deram devido à maior participação brasileira no mercado de commodities, ou seja, de
55
matérias-primas, ilustrando a conjuntura nacional frente a divisão internacional do trabalho, ou
seja, seu papel de economia periférica.
Conforme o que foi discutido pelos autores anteriormente, o Brasil resistiu à crise
internacional de 2008 graças aos mecanismos de intervenções estatais que não permitiram a
completa abertura financeira, especialmente através da ação dos bancos públicos na
manutenção da atividade econômica, criando um “colchão de proteção” frente à instabilidade
da lógica internacional de mercado, mas ainda esteve inserido na lógica da globalização, e
esteve assim suscetível, ainda que menos do que outros modelos de economia.
Para Amado e Caruso (2011), Harvey (2011), Costa (2009) e outros autores, essa
abertura “liberal” pode ser perigosa para as economias dependentes, pois estas estarão mais
suscetíveis às variações das economias internacionais, assim como ocorreu com o Brasil, que
se beneficiou da expansão da economia chinesa através da exportação de commodities, mas
quando esta também passou a desacelerar, foi afetado negativamente, perdendo capacidade de
resistir a crise do mercado interno nacional.
56
4. A RECENTE EXPANSÃO DO MERCADO IMOBILIÁRIO/HABITACIONAL
BRASILEIRO E AS CONSEQUÊNCIAS SOCIOESPACIAIS
57
financiamento pelo SFH, contam com a captação de recursos da caderneta de poupança, e
também do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS).
Entre a extinção do BNH (1986) e a criação do Ministério das Cidades (2003), o setor
do governo federal responsável pela gestão da política habitacional esteve
subordinado a sete ministérios ou estruturas administrativas diferentes, caracterizando
58
descontinuidade e ausência de estratégia para enfrentar o problema (BONDUKI,
2008, p. 76).
Durante esse “vazio” de política nacional voltada a habitação no país, explica Bonduki
(2008), especialmente naqueles municípios que estavam sob a administração petista, formas
alternativas de captação de recursos e também de construção de novas unidades habitacionais
foram colocadas em prática através de modelos de habitação social, tipo mutirões de
autoconstrução, urbanização de favelas, tudo em práticas de autogestão. Essa maior
participação das populações locais através principalmente dos movimentos de moradias, foi o
que pressionou o governo a descentralizar posteriormente para estados e municípios os
programas habitacionais, explica o autor.
Segundo Bonduki (2008, p. 82), o fato de o déficit habitacional ter permanecido alto,
mesmo após algumas décadas de diferentes políticas habitacionais “evidencia o fracasso dos
programas públicos e a incapacidade dos mecanismos de mercado para o enfrentamento do
problema” e deixava ainda mais clara a urgência em estratégias de democratização do acesso à
moraria focada nas populações de mais baixa renda, parcela da população onde em que
prevalecia o déficit até 2007 (TABELA 3).
Tabela 3 – Distribuição do déficit habitacional brasileiro, por região, por renda (em
salários mínimos), em 2007.
Região Até 3 Entre 3-5 Entre 5-10 Mais de 10
Norte 89,7 6,1 3,2 1,0
Nordeste 95,9 2,7 1,0 0,4
Sudeste 86,7 7,9 4,3 1,1
Sul 84,8 10,0 4,1 1,1
Centro-Oeste 88,4 7,0 2,7 1,9
Fonte: FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2007. Elaboração Própria.
Diante desse “fracasso”, no mês de dezembro de 2009 o governo federal retoma para si
a política habitacional, através da criação do Ministério das Cidades, da Secretaria Nacional de
Habitação, no âmbito da nova Política Nacional de Habitação, e lança o Plano Nacional da
Habitação, ou PlanHab, com intuito de propor metas e ações para começar a sanar o déficit
59
habitacional, enfrentar a “grande dívida social com a questão da moradia digna em nosso país”
e também contribuir com a demanda futura por moradias (BRASIL, 2010).
A expectativa era de que, com os cenários de melhorias econômicas e sociais que o país
observava até aquele momento, os investimentos que seriam feitos através do Programa Minha
Casa Minha Vida (PMCMV) para aquisição de moradia por parte especialmente das populações
de baixa renda, e também através das demais ações do Programa de Aceleração do Crescimento
(PAC), com investimentos em infraestrutura, esse déficit de habitação e condições de
urbanização poderiam começar a serem enfrentadas.
Figura 3 – Expectativa de demanda por habitação para o Brasil, por faixa de renda e por
região, entre 2007-2023.
Fonte: BRASIL, 2010.
Através de dados fornecidos pelo PlanHab (FIGURA 4), em valores brutos, percebe-se
que o governo já previa uma demanda maior para as regiões nordeste (27,5% do total) e sudeste
(38,7% do total). Essa previsão de demanda presente no PlanHab está coerente com o déficit
60
habitacional (que será representado adiante), que na região nordeste era de cerca de 30,4% em
2010, enquanto a região sudeste possuía um déficit bruto de 38% (FUNDAÇÃO JOÃO
PINHEIRO, 2013).
No que diz respeito aos estratos de renda, percebe-se que, em famílias de renda
domiciliar de até R$1000,00 (ressaltando que a renda foi projetada em 2009, logo esses valores
de referência possivelmente seriam mais altos ao final do período projetado), ou seja, o mais
baixo estrato social, a demanda seria de 53% do total, revelando que o governo previa o foco
de suas ações em famílias de mais baixa renda, indo de encontro ao combate do déficit aonde
este era mais expressivo. Famílias com renda superior a R$4000,00 representavam para o
governo até então, apenas 6% da demanda total de habitação no país.
Para determinar os valores dos subsídios, o governo dividiu o programa em quatro faixas
de renda, sendo a III equivalente a maior renda, então com um subsídio menor. O teto limite
dos imóveis é variável de acordo com a localidade, sendo o maior em torno de R$240.000,00
para os estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Distrito Federal (BRASIL, 2017a).
61
1,5 De 1.801,00 - R$2.600,00 Até R$45.000,00 (imóveis até
R$135.00,00)
II De R$2.601,00 – R$4.000,00 Até R$27.500,00
III De R$4.001,00 – R$9.000,00 Condições especiais em taxa de juros
Fonte: BRASIL, 2017b. Elaboração própria.
Ao lançar o programa, foi estabelecida uma meta de 400 mil unidades para a Faixa I,
contratadas com recursos do Fundo de Arrendamento Residencial (FAR), administrado pela
Caixa Econômica Federal, em que os beneficiários pagariam prestações correspondentes a, no
máximo, 5% da renda familiar, em um período de 10 anos (JUNQUEIRA, 2015).
62
1800000
1600000
1400000
1200000
1000000
800000
600000
400000
200000
0
Sudeste Nordeste Sul Centro-oeste Norte
Entregues Contratadas
Gráfico 8 – Situação das unidades (contratadas e entregues) pelo Minha Casa Minha Vida até
o 5º balanço do PAC (2015-2018).
Fonte: BRASIL, 2017.
Não somente os novos moradores dos conjuntos habitacionais se beneficiaram das ações
do programa, mas também as empresas envolvidas nas construções das unidades habitacionais.
Segundo o ranking da ITC (Inteligência Empresarial da Construção) elaborado em 2016, 3 das
10 maiores construtoras do país no quesito m² se desenvolveram principalmente através das
construções que executaram dentro do programa. São elas: Casa Alta (4º), Grupo Pacaembu
(5º) e a HF Engenharia (7º).
Algumas mudanças também foram essenciais institucionais para tornar mais seguros os
investimentos imobiliários para o crescimento do setor, tais como a medida provisória (MP)
2.221/2001, que reduziu o risco de compra de imóveis na planta ou do financiamento de obra.
Além dela, a MP 2.223/2004 criou as Letras de Crédito Imobiliários (LCI) e as Cédulas de
Crédito Imobiliário (CCI), ou seja, novas formas (títulos) para ampliar a captação de recursos
pelos agentes envolvidos na concessão de crédito imobiliário, evidenciando o papel do Estado
na promoção de um ambiente favorável a financeirização (MENDONÇA, 2013).
64
financiamentos habitacionais no país passou de R$29bi em 2005 para R$103bi em 2010
(BEZERRA et al, 2013).
As estatísticas do Banco Central do Brasil (BCB) revelam uma enorme expansão nos
valores dos financiamentos dentro do âmbito do Sistema Financeiro de Habitação (SFH). Em
2007, os investimentos anuais eram de cerca de R$20 bilhões, alcançando a marca de mais de
R$100 bilhões anuais em 2014, representando um aumento de cerca de 500% (GRÁFICO 8).
Esse expressivo aumento refletiu diretamente no crescimento do setor imobiliário como um
todo, no faturamento e também na geração de empregos, direta e indiretamente.
Segundo Botelho (2005), o setor imobiliário é constituído por três subsetores, sendo: a
indústria da construção civil (obras de engenharia civil); a indústria dos materiais de construção;
e por fim, as atividades imobiliárias “terciárias”, envolvendo compra, aluguel, venda,
manutenção e loteamento.
120
100
80
60
40
20
0
2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014
65
15
10
0
2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015
-5
-10
Const. Civil PIB Brasil
10
0
2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016
-2
-4
-6
66
No que diz respeito à empregabilidade da construção civil, a CBIC divulgou que, em
2007, 6.514.359 pessoas estavam formalmente ocupadas nessas atividades, e em 2014,
9.149.114, ou seja, um aumento de 40%. A construção civil, entretanto, frente ao setor
industrial, tem uma representatividade significativa no que diz respeito à ocupação de pessoal,
uma importância de 6,89% em 2007, e 8,67% em 2014.
O Gráfico 10 engloba atividades referentes aos serviços ligados ao setor imobiliário, tais
como as próprias imobiliárias e seus agentes, por exemplo. O crescimento do ramo, apesar de
manter-se, via de regra, em crescimento coerente em relação ao PIB nacional, durante a
recessão econômica que inicia-se a partir de 2014, mantém o rendimento geral em alta em
relação ao PIB.
67
Camargo Corrêa (SP) 1.643.134 3.210.628
Direcional (MG) - 1.658.304
Rossi (SP) 264.266 1.250.023
Racional (SP) 515.447 812.678
Gafisa (SP) 706.002 1.219.969
Construcap (SP) 348.218 1.369.103
Carioca C. Nielsen (RJ) 602.206 1.458.489
Fonte: CBIC. Maiores empresas de construção.
A possibilidade de que a demanda por crédito imobiliário para o período mais recente
esteja menos relacionada aos fundamentos leva a preocupação de que cedo ou tarde o
equilíbrio deverá se estabelecer com consequências possivelmente adversas tais como
o aumento na inadimplência, queda no preço dos imóveis, perda de capital,
etc. (MENDONÇA, 2013, p. 459).
Conforme revela o índice, São Paulo, Rio de Janeiro e Recife são as cidades que mais
sofreram com o aumento expressivo dos preços dos imóveis. Num período de apenas 6 anos,
entre 2010 e 2015, os imóveis valorizaram em mais de 100% na capital pernambucana, mais de
200% na cidade do Rio de Janeiro e quase 200% em São Paulo. As demais capitais também
tiveram aumento de preços relativamente expressivos, entretanto mais “modestos”.
68
250
200
150
100
50
0
BH RJ SP BRASÍLIA FORTALEZA RECIFE SALVADOR
TOTAL
Nas capitais sulistas não foi diferente: apenas entre 2012 e 2016, Curitiba, Florianópolis
e Porto Alegre viram seus imóveis valorizarem-se acima dos 30%, conforme o Gráfico 12. Um
ponto a ser destacado sobre o Índice FIPEZAP, é que ele passa a coletar dados a partir de 2008
em São Paulo, e em algumas cidades importantes a partir de 2012, o que dificulta a ilustração
de dados acerca de todo o período estudado, entre 2007 e 2014/2015. Porém, ainda assim são
considerados válidos, uma vez que fornecem informações relevantes acerca de um período
relativamente significativo, e a valorização dos preços também é relevante.
40
38
36
34
32
30
CURITIBA FLORIANÓPOLIS PORTO ALEGRE
Variação
Gráfico 13 - Variação (em%) dos preços dos imóveis à venda nas capitais sulistas, entre 2012-
2015.
Fonte: Fipe. Índice Fipezap.
O Gráfico 13 ilustra a variação anual dos imóveis à venda nas principais capitais
brasileiras, o que permite identificar os anos em que houve maior valorização em cada uma das
69
metrópoles, e assim, permite também a correlação com os fatos e fatores de cada uma delas,
bem como o contexto nacional.
70
60
50
40
30
20
10
0
BH RJ SP BRASÍLIA FORTALEZA RECIFE SALVADOR
-10
-20
2010 2011 2012 2013 2014 2015
70
90 82
80
69 67 66
70 63
60 52
50
40
30
20
10
0
Brasil Sul Nordeste Sudeste Centro Oeste Norte
Gráfico 15 - Variação do custo médio do m² (em %), nacional e por região, entre 2007-2015.
Fonte: CBIC – PIB Brasil e construção civil.
40
30
20
10
0
PIB per capita
PIB nacional
Salário mínimo
2007-2010 2011-2014
Gráfico 16 – Variação (em %) do PIB nacional, per capita e do salário mínimo em dois
períodos: 2007-2010 e 2011-2014.
Fonte: VALOR, 2016; GUIA TRA BALHISTA, 2017.
O gráfico acima revela que quem mais se valorizou entre os elementos presentes foi o
salário mínimo, que em 2007 era de R$380,00, passando para R$724,00, o que representa uma
71
valorização nominal de cerca 68% em 8 anos. O PIB per capita e o PIB nacional da economia,
apesar de ser necessário considerar uma série de fatores para medir sua valorização real,
somadas as suas variações entre os respectivos períodos, não ultrapassam os 25%.
Por outro lado, ao somar as variações médias anuais dos preços dos imóveis à venda nas
cidades do Gráfico 13, que abrange apenas os anos entre 2010 e 2015, ou seja, apenas 6 anos,
e consequentemente dividir esse valor pelas 7 metrópoles, será obtida uma média anual de
valorização de imóveis de 106%.
Se por um lado pode-se imaginar que a valorização dos imóveis levará a uma redução
óbvia de demanda, por outro, argumenta Mendonça (2013), motiva um mutuário (recebedor do
empréstimo para a aquisição do imóvel) a revender seu bem por um valor mais alto, quitando
assim seu débito e obtendo lucro com o procedimento, por exemplo. Esse
movimento, assegura o autor, torna o investimento muito atrativo, pois traz a sensação de que
os valores se elevarão indefinidamente.
O déficit habitacional, citado por Schreiber (2014) como passível de aumento pela
valorização dos aluguéis, é medido pela Fundação João Pinheiro, ligada ao Ministério das
Cidades e à Secretaria Nacional de Habitação, e leva em conta quatro componentes para
caracterizar o déficit de moradia:
72
Os componentes são calculados de forma sequencial, na qual a verificação de um
critério está condicionada à não ocorrência dos critérios anteriores. A forma de cálculo
garante que não há dupla contagem de domicílios, exceto pela coexistência de algum
dos critérios e uma ou mais famílias conviventes secundárias (FUNDAÇÃO, 2013).
O estudo da Fundação João Pinheiro calcula o déficit total e o déficit relativo, uma vez
que leva em conta as particularidades demográficas de cada região do país. De acordo com o
relatório do déficit total ao ano de 2010, o mesmo encontrava-se em 6.490 milhões de unidades
habitacionais. No que diz respeito aos valores totais, o maior déficit concentrava-se na região
Sudeste (38%), sendo que mais da metade desse percentual, cerca de 1,495 milhões de unidade,
está presente apenas no estado de São Paulo.
Tabela 5 – Déficit habitacional, urbano e rural, total e relativo, por região, em 2010.
73
7000000
6000000
5000000
4000000
3000000
2000000
1000000
0
Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste Brasil
25
20
15
10
0
Norte Nordeste Sudeste Centro-Oeste Sul
Esse fato pode se justificar em números absolutos de compras de imóveis, uma vez que
a população da região é a maior do país, assim como pode ser relacionada a própria participação
74
da região na economia, ou também no valor dos imóveis financiados, mais altos. Entretanto, a
disparidade da aquisição de imóveis entre as regiões é muito significativa, o que pode ser
justificada também pela diferença no poder aquisitivo das populações entre as diferentes
regiões. Maricato (2009) afirma que apenas 30% da população brasileira consegue adquirir
imóveis via mercado, sem subsídios, pode-se crer que as regiões mais desenvolvidas
concentrem esse poder, e por isso atraiam mais investimentos, mais crédito.
Em números absolutos, o déficit habitacional total da região Sudeste é cerca 50% maior
do que o da região Nordeste, enquanto os valores de financiamentos obtidos para habitação
possuem uma diferença entre elas superior a 250% (FIGURA 5). Em relação a região Norte, a
disparidade de déficit habitacional total é pouco mais de duas vezes maior no Sudeste, enquanto
o déficit habitacional relativo na região Norte é duas vezes maior, porém, a região Sudeste
adquiriu seis vezes mais financiamentos. A região Sul, que possui o menor déficit habitacional
relativo, e um valor absoluto cerca de duas vezes menor que o Nordeste, obteve 14% dos
financiamentos, enquanto os nordestinos, 12%.
70
60
50
40
30
20
10
0
Norte Nordeste Centro-Oeste Sul Sudeste
Gráfico 19 - Participação média (em %) no PIB nacional, por região, em comparação com a
proporção dos financiamentos do SFH, entre 2007-2014.
Fonte: IBGE. Contas regionais do Brasil.
76
Crédito 11,3 10,8 11,3 10,5 9,5
Pessoal
Apesar do financiamento com imóveis ser o tipo de dívida que mais cresceu entre os
brasileiros, o que também ilustra que a estratégia de expansão do mercado estava acontecendo,
é interessante notar que a mesma pesquisa revela que, no período atual, entre 2014-2016, quem
mais possui dívidas com financiamentos são indivíduos que possuem renda familiar mensal
superior a 10 salários mínimos.
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2015, cerca
de 18% das residências brasileiras são alugadas, sendo as regiões Centro-Oeste (23,7%) e
Sudeste (19,5%) aquelas com maior proporção de domicílios locados. A mesma pesquisa
mostra que 74,8% dos domicílios em 2015 eram próprios, sendo 69,9% destes quitados, e
apenas 4,9% ainda estavam sendo adquiridos Além de que cerca de 7,1% tratavam-se de
domicílios cedidos.
Além das condições precárias dos domicílios que permanecem em altos níveis mesmo
após alguns anos dos programas governamentais para sanar o déficit habitacional, outra questão
que traz preocupação são os alugueis. Como tratado anteriormente, são quase 20% das famílias
vivendo em imóveis alugados, assim, a inflação dos imóveis acima do “normal” pode ter
afetado diretamente essas famílias, já que a pressão nos preços não incide apenas sobre o preço
de venda, mas também sobre os aluguéis.
Segundo a Fundação João Pinheiro (2016), o ônus excessivo com aluguel, um dos
componentes do déficit habitacional que é relativo a famílias que dispendem mais de 30% de
seus rendimentos mensais com as parcelas da locação, representava em 2014 cerca de 48% do
déficit total. Ou seja, quase metade de uma das questões sociais mais importantes do país existe
por conta de comprometimento acima do adequado com aluguel.
77
De acordo com o IBGE (2016), a ocorrência de ônus excessivo com aluguel apresentava
queda entre 2005 e 2008, mas passa a uma tendência de elevação a partir de 2009. O
comprometimento excessivo com aluguel faz com que as pessoas deixem de atendar outras
necessidades, pois sua condição econômica é prejudicada. Em um trecho do documento, há a
síntese:
Os indicadores analisados ao longo deste capítulo indicam que, nos 10 anos entre 2005
e 2015, o Brasil logrou avançar nas condições de moradia, serviços domiciliares e
posse domiciliar de bens permanentes, em ritmo mais veloz no caso de alguns
indicadores, mais lento no caso de outros. O contrário ocorreu com a acessibilidade
econômica da moradia, como indica o crescimento das situações de ônus excessivo
com aluguel. Destaca-se também que permanecem, nesses indicadores, importantes
desigualdades: entre as Grandes Regiões, entre as áreas urbanas e rurais, entre brancos
e pretos ou pardos e entre homens e mulheres (IBGE, 2016, p. 109).
Entre janeiro de 2017 e outubro de 2017, as variações dos preços dos alugueis foram as
seguintes em algumas capitais e importantes cidades: Brasília (8,55%), Curitiba (1,54%), Porto
Alegre (-0,45%), Salvador (-2,07), Santos (5,72%), Campinas (-2,09%) e São Bernardo do
Campo (5,78%). Apenas entre janeiro de 2016 e outubro 2017: Belo Horizonte (-0,24%),
Florianópolis (2,63%), Fortaleza (-1,36%), Goiânia (-2,37%), Niterói (-5,26%), Recife
(2,25%).
O que estes dados informam é que, nas principais metrópoles do país, os alugueis quase
dobraram num período de 10 anos e, apesar do índice tratar-se apenas de São Paulo e Rio de
Janeiro, é possível imaginar que essa valorização tenha atingido as demais capitais, talvez de
forma mais “modesta”, mas assim como os preços de venda, acima da valorização do salário
mínimo, por exemplo.
Há uma tendência de queda nos alugueis em todas essas cidades, especialmente entre
2015 e 2016, mas apenas em Niterói a queda dos valores é acentuada, e em algumas cidades
como Florianópolis, Brasília e Santos os alugueis já voltaram a se valorizar, o que pode ser
resultado das expectativas de recuperação da economia nacional, e que pode refletir nas demais
capitais num futuro próximo.
78
Em 2016, a chamada “inflação do aluguel” que é medida através do Índice Geral de
Preços do Mercado (IGP-M) obteve uma alta acumulada de 7%, sendo que em 2015, havia
acumulado 10,54% (PORTAL BRASIL, 2017). Assim, considerando que a renda e o poder de
compra dos brasileiros estão em franco declínio desde 2015, a preocupação com o ônus
excessivo com aluguel é válida, já que ele pode, como está abordado na síntese do IBGE (2016),
prejudicar o atendimento de outras necessidades das famílias, assim como abordado por
Schreiber (2016), por Lopes (2017) e também por Máximo (2017), elevar novamente o déficit
habitacional.
Máximo (2017), através de dados da própria Fundação João Pinheiro, revela que esse
déficit já se elevou com a recessão, que pressionou os gastos com alugueis (3,8 milhões de
moradias com ônus excessivo), reduziu as ações do PMCMV, e como resultado, mostra Lopes
(2017), agora são 7,7 milhões de unidades que compõem o déficit habitacional brasileiro, que
havia ficado em torno dos 5-6 milhões na década anterior.
Outro dado importante, obtido agora através do Censo de 2010, realizado pelo IBGE, e
que deve ser abordado com preocupação, refere-se a qualidade e adequação das moradias no
período, que afeta diretamente no déficit habitacional. Essa adequação, medida através da
presença de abastecimento de água por rede geral, esgotamento sanitário por rede geral ou fossa
séptica, coletas de lixo direta ou indireta, e também a condição de até dois moradores por
dormitório, não foi percebida de modo satisfatório em nenhuma das regiões nacionais,
conforme a tabela abaixo.
A completa inadequação dos domicílios é dada quando o mesmo não satisfaz nenhuma
das três condições expostas anteriormente. A precariedade das residências, que prevalece
79
expressivamente nas residências de famílias de baixa renda, é uma das condições para a
caracterização de déficit habitacional.
Apesar do alto índice de moradias não-adequadas nas regiões, o déficit habitacional não
reflete em números equivalentes essa realidade, o que leva a hipótese de que muitos dos
domicílios estão em condição de subadequação, ou seja, atende pelo menos uma das condições,
e assim não entram nas estatísticas do déficit. A Tabela 8 traz as condições de atendimentos dos
serviços básicos nas grandes regiões do país, e revela que ainda existem muitos desafios a serem
enfrentados pelo país no que diz respeito à melhorias nas condições de habitação da população,
não somente a construção de novas unidades, mas a implantação universal de saneamento
básico adequado, para assim voltar a combater o déficit habitacional.
Ribeiro et al. (2015) utilizaram-se de um estudo elaborado pela Fundação João Pinheiro
em parceria com o Ministério das Cidades para caracterizar o déficit habitacional municipal em
Minas Gerais. Segundo os autores, o estado possui o segundo maior déficit absoluto da região
Sudeste, sendo a coabitação e o ônus excessivo com aluguel são, de longe, as principais causas
do déficit no estado, assim como no país em geral.
O déficit habitacional total é geralmente maior em áreas mais populosas grandes cidades
e regiões metropolitanas (assim como o ônus excessivo com aluguéis), como Belo Horizonte e
Uberlândia, por exemplo. Entretanto, assim como no quadro nacional, o déficit relativo, que
revela a proporção do déficit pela população, as maiores taxas deslocam-se principalmente para
as regiões mais carentes do estado, como a norte (RIBEIRO et al, 2015).
As grandes cidades, entretanto, permanecem com altos níveis em déficit relativo, o que
pode ser justificado pelo modelo de ocupação dessas cidades no país, em que a ocupação ilegal
e precária, a grande valorização dos preços de venda dos imóveis e também os altos aluguéis,
80
fazem com que as classes mais populares vivenciem grandes dificuldades de habitar em
metrópoles e grandes cidades.
Por todas as informações e dados que foram abordados, é importante frisar que os
esforços para combater o déficit habitacional no país são muito grandes, e os resultados não são
satisfatórios mesmo assim. Em contrapartida, em apenas 2 anos de recessão, em números
absolutos, os ganhos com expansão de moradias e de urbanização são perdidos por altos valores
de aluguéis, ou seja, parece ser muito mais fácil perder do que vencer a batalha contra a histórica
questão habitacional no país.
No que diz respeito aos ganhos sociais, ainda há muito a se pensar e repensar, corrigir
os erros dos modelos adotados e ressaltar os sucessos, para que as camadas populares possam
sim compartilhar dos ganhos dos períodos de expansão, mas que ela não pague o maior preço
em períodos de recessão.
81
As autoras acreditam que o modelo de democratização da habitação seguido pelo Brasil,
principalmente a partir do lançamento do Programa Minha Casa Minha Vida em 2009, segue a
tendência latino-americana de produção em massa e “subsídios diretos à demanda”, com uma
ação que é orientada pelo próprio mercado, papel limitado do poder público municipal, o que
para elas não favorece a produção de cidades mais equitativas (função cabível ao Estado),
apenas maior oportunidade para acumulação capitalista (ALMEIDA; MELCHIORS, 2017).
82
empreendimentos totais até 2014, e visto que na segunda fase, entre 2012 e 2014, as construções
por faixa de renda se equipararam.
No que diz respeito a localização das moradias, nas áreas mais periféricas a sul (Peruíbe,
Itanhém, etc.), de “terrenos mais baratos e de grandes dimensões” é onde concentram os
maiores empreendimentos, principalmente os da Faixa 1, enquanto os das Faixas 2 e 3
localizavam-se em áreas mais próximas de Santos, São Vicente e Bertioga (KLINTOWITZ;
RUFINO, 2014). As autoras comentam:
Apesar dos problemas, o programa conseguiu fornecer moradias para pessoas que
haviam ficado desabrigadas por conta de habitações ilegais próximas aos trilhos férreos dos
trens, o que é extremamente positivo para essas famílias (PEQUENO; ROSA, 2015).
Entretanto, ainda assim mantém-se a necessidade de repensar a localização muito periférica e
os tamanhos dos lotes e apartamentos, dessas moradias, pois isso gera gastos extras para os
84
governos, e ganhos extras para as empresas, que conseguem reduzir ao máximo os custos,
ampliando os lucros.
Para Maricato (2003), somente investimentos não irão colaborar positivamente para a
superação dos problemas de habitação no país, especialmente nas metrópoles, e afirma:
O que Maricato (2003) se refere como “terra urbanizada” está diretamente ligado com
o “direito à cidade”. A autora argumenta, não somente nesse, mas em outros trabalhos, que a
qualidade das ocupações populares no Brasil, quando não legalizadas e sem investimentos
estatais, são localizadas em áreas de não interesse imobiliário, longínquas e sem infraestrutura,
dificultando o acesso das populações aos serviços e equipamentos oferecidos pelo poder público
e privado nas áreas de interesse do capital imobiliário.
O conteúdo da entrevista traz à tona uma preocupação da autora que, segundo ela, se
materializa com as manifestações de junho de 2013 que tomou as ruas, inicialmente da cidade
de São Paulo, e em seguida, das demais capitais nacionais: as “melhorias econômicas” que
foram alcançadas especialmente após 2003, não resultaram em melhora na qualidade urbana
das cidades brasileiras, mas o contrário, trouxe piora em questões, principalmente, de
especulação imobiliária e de mobilidade urbana.
Maricato aponta para um tripé de poder dentro das cidades: a política baseada nos
automóveis, as grandes empreiteiras da construção “pesada” e o capital imobiliário. Segundo a
professora, essas são as três forças que dirigem as cidades, deixando de lado os interesses
85
públicos. No que diz respeito aos automóveis, por exemplo, a professora argumenta que o
acesso facilitado aos veículos não veio em um momento em que as cidades suportassem o fluxo,
prejudicando a mobilidade, e ainda, paralelamente, ocorria o colapso do transporte público nas
grandes cidades brasileiras, que foi a gênese das manifestações de junho de 2013.
86
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS DO PROCESSO
Ermínia Maricato, importante figura no que diz respeito à luta pelo direito à cidade e à
urbanização socialmente justa, acredita que as melhorias econômicas do país e a expansão dos
setores habitacional e de infraestrutura em geral, agiu em certo ponto, “contra a cidade”. Era
preciso que os esforços governamentais, que foram obviamente extremamente válidos,
estivessem acompanhados de parcerias entre o Estado e a sociedade civil, e menos entre o
Estado e a iniciativa privada.
O transporte coletivo, que precisaria ser muito eficiente e com custo acessível para a
melhor locomoção desses moradores está cada dia mais caro no país, e tende a aumentar ainda
mais se considerado que os combustíveis em 2017 sofreram aumentos recordes. Isso certamente
irá deixar ainda mais difícil à população dos conjuntos habitacionais, principalmente das
grandes cidades, se locomover e exercer seu direito à cidade.
A supervalorização dos imóveis, para venda ou para aluguel, que foram percebidas em
todas as grandes cidades em que os índices foram medidos e é realidade também nas cidades
87
médias, principalmente entre 2010 e 2015, se reflete no aumento do déficit habitacional (que
havia reduzido entre 2010 e 2014) em 2016 e 2017, resultado da crise econômica que reduz a
renda das famílias, mas que mantém altos os preços acumulados ao longo dos períodos de
crescimento.
O poder de compra e o nível de renda dos brasileiros caiu, mas os preços dos alugueis e
dos imóveis, dos terrenos, não caiu da mesma forma, e faz com que as pessoas dispendam
grande parte de suas rendas com habitação, reduzindo seus gastos com outros bens,
prejudicando a recuperação econômica que está ligada ao poder de consumo, e também levando
as coabitações para economizar com alugueis, habitação em imóveis precários de valores
acessíveis, o que eleva o déficit habitacional.
É óbvio que a valorização do país é reflexo da melhora nas condições de vida, mas a
inserção cada vez mais enraizada na lógica do capital tem feito com que os períodos de
desenvolvimento e as conquistas sociais tenham prazo de validade encurtados, transformando-
se em problemas ou crises, seja nos países desenvolvidos ou subdesenvolvidos.
Essa lógica só pode começar a ser combatida com o fortalecimento dos poderes locais,
dos esforços comunitários, para que sejam combatidos os usos não sociais da terra, dos recursos
naturais e humanos, e as ferramentas que a globalização fornecem, precisam começar a serem
usadas em favor das pessoas.
O governo subsidiou grande parte das aquisições de imóveis durante a expansão, mas o
resultado não foi suficiente para combater significativamente o déficit habitacional, mas
enriqueceu de modo muito expressivo as empresas ligadas, tanto ao setor habitacional, quanto
ao setor de infraestrutura (principalmente). Além disso, na aquisição de imóveis via mercado,
como o SFH, por exemplo, as famílias com rendas mais altas se mostraram as que mais
adquiriram imóveis, enquanto o déficit habitacional é em mais de 80%, para famílias de mais
baixa renda.
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O que se pode concluir desse balanço, é que o combate a questões tão importantes e
históricas para o país, a da habitação e infraestrutura urbanas, não podem continuar sendo
majoritariamente promovidas via parcerias público-privadas (principalmente a habitação), pois
os interesses e as necessidades sociais não serão o objetivo principal do processo, mas a
maximização dos lucros e os desempenhos econômicos positivos.
A construção civil pode ser um ramo importante para o crescimento do país, e a falta de
infraestrutura e o alto déficit habitacional do país resguardam um importante espaço de atuação
do setor para a promoção de mais desenvolvimento social, entretanto, os governos precisam
repensar a forma como essa expansão será executada, como controlar os lucros empresariais
para que eles sejam investidos em melhores localizações dos empreendimentos, melhor
qualidade das moradias, e uma valorização da terra que seja compatível com a valorização da
renda nacional, ou seja, o combate à especulação tem que estar no centro da questão urbana e
habitacional do país.
É o que pensa também Ermínia Maricato (2009), quando lembra que a especulação
imobiliária, resultado da “retenção de terras improdutivas é uma das características do
patrimonialismo e um dos maiores problemas do campo e das cidades latino-americanas, pois
dificulta a ocupação sustentável e justa do território”.
Menor dependência de exportações de commodities para não ficar sob risco de crise
cada vez que o mercado internacional mostrar sinais de queda, como foi o caso com a atual
crise econômica, e isso só pode ser conquistado através da continuidade dos investimentos em
ciência, tecnologia aliada à expansão industrialização nacional, para conseguir atingir um nível
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cada vez maior de independência. Ou seja, como a globalização se mostra um fenômeno que
tende a produzir balanço negativo aos países subdesenvolvidos, o Brasil precisa se dirigir para
a contramão disso.
De acordo com Maricato (2009), o governo possui três linhas de interesses distintas para
investir em urbanização: atender interesses especulativos do mercado imobiliário, atender as
necessidades de visibilidade através do “marketing urbano” (pode-se pensar em reformas de
praças, por exemplo), e também para a autopromoção de interesses eleitorais (investimentos
em áreas periféricas geralmente sem planejamento urbano). Esses “interesses” precisam ser
repensados, e a construção de uma sociedade desenvolvida precisa ser a principal razão quando
as questões são habitação, infraestrutura, educação, saúde e alimentação.
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6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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