Академический Документы
Профессиональный Документы
Культура Документы
Rio de Janeiro
2015
Rodolfo Rodrigues de Souza
Rio de Janeiro
2015
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A
es CDU 316.6
___________________________________ _______________
Assinatura Data
Rodolfo Rodrigues de Souza
Banca examinadora:
__________________________________________
Prof.ª Dra. Ariane Patrícia Ewald (orientadora)
Instituto de Psicologia - UERJ
__________________________________________
Prof. Dr. Fernando José Gastal de Castro
Instituto de Psicologia – UFRJ
__________________________________________
Prof.ª Dra. Márcia Oliveira Moraes
Departamento de Psicologia – UFF
Rio de Janeiro
2015
Às narrativas míticas – mãe, pai, irmã e família de origem;
Aos contos – famílias que conquistei, amizades;
Às elegias – D. Lúcia;
À epopeia – Duda.
AGRADECIMENTOS
SOUZA Rodolfo Rodrigues de. The existentialist killer and other stories: Sartre’s
existentialism in Rio de Janeiro (1945-1955). 2015. 220 f. Dissertação (Mestrado em
Psicologia Social) – Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.
The motto of this research is to pursue the distributed meanings regarding the
existentialism, especially the one linked to Jean-Paul Sartre's ideas, in Rio de Janeiro
between 1945 and 1955. Strongly related to the French postwar environment, the
existentialism here is regarded as a product that not only is brought to Brazil, but that
as well passes by the sieve of a Carioca way, becoming related, for example, with
Carnival and the efforts of Vargas’ and Dutra’s governments. From the news collected
on A Manhã and Última Hora, both important newspapers in Rio at the time focused,
three main axes rise: the way this philosophy is enacted within the political and
religious arena; the circulation of this thought in amidst Brazilian intellectuals, as well
as a survey of cultural productions connected to existentialism that circulated by the
former Brazilian federal district; and, at last, the creation of certain existentialist
fashion in Rio and throughout the country, linked to certain gender ideas, crimes,
addictions, depravity. What is claimed, after all, is that existentialism circulating in the
city is less an "imported -ism", notion found in one of the collected newspaper
articles, than an also a Brazilian production.
INTRODUÇÃO............................................................................... 11
1 “ENTRE TAPAS E BEIJOS”: EXISTENCIALISMO E O CAMPO
POLÍTICO CARIOCA..................................................................... 47
1.1 O Existencialismo e a política institucional............................... 49
1.2 “Fé cega, faca amolada”: existencialismo e a Igreja Católica. 72
2 “MORA NA FILOSOFIA”: OS INTELECTUAIS APRESENTAM
O EXISTENCIALISMO................................................................... 78
2.1 Panorama cultural do existencialismo nos jornais cariocas... 81
2.1.1 Euríalo Canabrava.......................................................................... 91
2.1.2 Dinah Silveira de Queiroz............................................................... 96
2.1.3 Sérvulo de Melo.............................................................................. 100
2.1.4 Cyro dos Anjos............................................................................... 103
2.2 Produtos culturais relacionados com o existencialismo de
Sartre comentados pelos jornais carioca.................................. 108
2.2.1 Conferências.................................................................................. 109
2.2.2 Teatro.............................................................................................. 112
2.2.3 Literatura........................................................................................ 126
2.2.4 Cinema........................................................................................... 129
3 “CHIQUITA BACANA, LÁ DA MARTINICA”: SER
EXISTENCIALISTA, “COM TODA RAZÃO!”................................ 138
3.1 O existencialismo como moda na França.................................. 140
3.2 E a moda chega ao Brasil............................................................ 155
3.3 Existencialismo: uma questão de gênero.................................. 168
3.4 O existencialismo como “escola de criminalidade”................. 185
NARRATIVA DE UMA PAUSA FORÇADA.................................... 192
REFERÊNCIAS............................................................................. 197
11
INTRODUÇÃO
O poeta Décio Escobar não se tornou eterno por perder Vicente como
cogitava em sua poesia, mas como suspeito do assassinato que chocou a sociedade
mineira na madrugada de 05 de dezembro de 1946. O assassinato, conhecido como
“Crime do Parque” - por ter ocorrido no Parque Municipal de Belo Horizonte -,
vitimou o engenheiro Luiz Delgado, “figura de destaque na sociedade local”
Para vocês, repórteres dos jornais de Minas Gerais. Não façam isso comigo.
Eu nunca fui existencialista. Fui um boêmio como qualquer um de vocês
e sempre procurei ser bom. Se procurar ser bom, é ser existencialista, então
admito que me chamem de existencialista. Não sou um degenerado (…)
(CHEGOU A BELO HORIZONTE..., Última Hora, 05/05/1953, p. 12. grifos
meus)
3 A expressão é de Ariane Ewald (2005). Este livro foi recolhido pela autora por erro da editora no
título do mesmo. Alguns poucos exemplares estão em circulação, tendo sido a obra aqui utilizada,
com a devida correção no título do livro, com a permissão da autora.
5 Deacordo com Pierre Bourdieu (2011), o campo é um “lugar em que certo numero de pessoas, que
preenchem as condições de acesso, joga um jogo particular do qual os outros estão excluídos” (p.
197). No campo político, o jogo em cena é o da política, “uma luta em prol de ideias, mas um tipo de
ideias absolutamente particular, a saber, as ideias-forca, ideias que dão força ao funcionar como
força de mobilização” (p. 203). A ressalva é que, enquanto Bourdieu fala em um campo religioso
apartado do campo político, considero a existência de uma intersecção entre esses campos. Este
conceito será retomado nos dois primeiros capítulos.
6 Poreste termo, faço referência aos críticos dos costumes, das práticas sociais e de seus produtos,
como o cinema, o teatro, as artes em geral. Dialoga com a vasta discussão entre história cultural ou
história da cultura, em que esta considera principalmente os aspectos da alta cultura. Cf. SOIHET
(2003).
15
ce que la littérature? (SARTRE, 2010)7. Segundo ela, sem uma suavização do olhar
do leitor para este livro, tende-se a recolocar em cena críticas contemporâneas aos
textos. Uma dessas críticas, por exemplo, é a de André Gide, proeminente escritor
francês do período, que dizia haver naquela obra uma tentativa de submeter a arte –
literária, especificamente –, à atualidade do noticiário.
Além das relações com o campo político, religioso e com a crítica cultural,
certas apropriações do existencialismo de Sartre, como no caso de Décio Escobar,
foram corriqueiras e arrebatadoras em termos dos costumes. O existencialismo
causa estranheza e alguma indignação por ter sido apropriado como certa moda
existencialista. O termo faz referência, de modo muitas vezes pejorativo, aos
comportamentos socialmente considerados comuns aos jovens “partidários” da
filosofia de Sartre. Escreve Luiz Damon S. Moutinho (1995, p. 12) que “o uso
indiscriminado do termo estava assim associado, no imaginário da época, a uma
atitude libertária, rebelde, mas também individualista, solitária, quase
desesperançada”.
Os três aspectos acima apontados - diálogo com o campo político e religioso,
relação com a crítica cultural e a moda existencialista - têm se desdobrado como
foco dessa pesquisa. São as possibilidades de (re)construção das narrativas
postas em cena em dois jornais cariocas na primeira década do Período
Democrático que impulsionam tal desdobramento. Em Merleau-Ponty, Sartre
(1990b, p. 154) escreve que “Se a Verdade é uma, pensava, devemos [...] procura-la
não em qualquer lugar específico mas em todos os cantos. Cada produto social e
cada atitude [...] são encarnações que a indicam [a Verdade]”. Iluminado por essa
atitude fenomenológica como colocada em cena por Sartre, tenho deixado que as
próprias matérias coletadas orientem o trabalho, o que faz com o percurso dessa
pesquisa não seja linear: cada excerto de um periódico abre novos caminhos.
8 Expressão italiana que aponta para o papel de traição do original que engloba toda tradução.
9 Usoessa expressão para me referir à qualquer obra cinematográfica que guarde relação direta com
algum texto de Sartre. Ela engloba filmes roteirizados por Sartre e filmes adaptados de escritos
seus.
10 Sartre
se refere à peça, da qual o filme é adaptado, como La Putain Respectueuse (SARTRE,
1973). No entanto, o título do filme de Charles Brabant e Marcello Pagliero é La P... Respectueuse.
Quando em referência ao título da película, utilizarei a grafia com as reticências.
17
do roteiro Typhus de Sartre (2007b), que não deixou seu nome figurar nos créditos; e
Huis Clos (1954), adaptação da peça teatral homônima, dirigido por Jacqueline
Audry.
Foi depois do retorno ao Rio de Janeiro, quando pude revisitar com mais
tranquilidade os materiais levantados ao longo da viagem, que me dei conta dessa
“descoberta”. Inicialmente, senti arrependimento por não ter percebido este achado
ainda em Paris, onde poderia procurar os filmes para assistir em algum arquivo de
cinema. Pouco depois, o arrependimento deu espaço para a ideia de verificar o
acervo dos arquivos cariocas de cinema, como o da DVDteca do Centro Cultural
Banco do Brasil e da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
Como ambos não trouxeram respostas positivas, depois da tristeza, outra ideia: a
pesquisa nos jornais emergiu como possibilidade de saber se, ao menos, os filmes
tinham chegado ao país. Poderia não tê-los encontrado nos dias atuais, mas será
que foram exibidos em telas cariocas à época de seus lançamentos?
Especificamente, comecei a pensar em uma pesquisa que se debruçasse sobre a
recepção dos filmes inspirados na obra de Sartre no Rio de Janeiro. Cidade-capital,
o Rio de Janeiro era difusor interno e externo daquilo que era considerado a própria
nacionalidade brasileira, funcionando como “cadinho da nação” (MOTTA, 2004).
Analisar o modo como a crítica cultural carioca recebeu tais filmes, os dados
divulgados sobre suas bilheteria, os cinemas em que foram exibidos, tudo isso,
pensavam, era caminho profícuo para a pesquisa. Precisava verificar em alguns
jornais as críticas a tais filmes para confirmar a viabilidade da proposta.
A Biblioteca Nacional foi o local escolhido para este levantamento inicial,
principalmente pela abrangência de seu acervo. Ao longo dos dias que passei lá,
nova descoberta: os filmes de Sartre ficaram ausentes dos cinemas cariocas, ao
passo que outros aspectos de sua produção eram comentados – teatro, filosofia,
literatura e a moda existencialista, especialmente. Só encontrei material sobre a
estreia de um filme: La p... respectueuse (1952), com o recatado título A Respeitosa
e sem boa recepção da crítica, que parecia não lhe devotar muitos comentários.
Mas, em meio às buscas por matérias11 sobre as películas, encontrei volume
considerável de conteúdo que mencionava Jean-Paul Sartre – ou Jean Paul Sartre,
sem hífen, como seu nome foi registrado nos jornais muitas vezes - e suas
11Por este termo, refiro-me às colunas, editoriais, reportagens, notícias do cotidiano, críticas culturais
e todos as outras manifestações textuais ou não de um periódico.
18
produções, afora o cinema. Já que os filmes não chegaram por aqui, por que não
colocar em cena tal ausência e, em contraponto, a presença de comentários sobre
outros aspectos de sua produção?
A ideia da pesquisa mudou de configuração, mas ainda teria o cinema como
plano de referência a todo instante. Sua ausência seria o pano de fundo para a
análise dos comentários encontrados. A sétima arte seria pensada “como se”12 uma
“alteridade”, no sentido sartriano do termo (SARTRE, 2007a), diante da qual
questionamos quem somos, as escolhas que fizemos – e fazemos –, nossas
possibilidades e contingências. O filme seria encarado não como mero objeto, “rolo”
a ser projetado, mas um texto que utiliza um “suporte”13 diferenciado de
apresentação. O aspecto massificado da sétima arte seria contraposto à circulação
mais restrita do teatro e da literatura, com o objetivo de investigar a supressão ou
incentivo da possibilidade de leitura de cada tipo de obra desenvolvido por Sartre.
Afinal, haveria um setor social a quem as obras deste pensador estavam barradas?
Por que espaços da cidade circulavam seus livros, peças, filmes? Que tensões
(políticas, culturais, sociais) estavam em jogo e seriam acessadas por tal análise?
Apesar do uso recorrente de verbos no pretérito ou no futuro do pretérito, esta
proposta não foi completamente abandonada, mas “forçar” o material para manter o
cinema como pano de fundo de toda a análise seria correr o risco – e incorrer no
erro - de deixar de lado a riqueza daquilo que as fontes primárias faziam emergir.
Seria, portanto, abandonar a atitude fenomenológica como compreendida por
Sartre, um manejo da possibilidade de descobrir e se relacionar com o mundo com
que me identifico e me esforço por dialogar.
Orientado, então, pela fenomenologia de Sartre – com ênfase na relação
inexorável entre homem e mundo -, deixei que os “fragmentos circunstanciados”
(EWALD, 2005) encontrados nos periódicos orientassem o trabalho. Busquei neles
próprios a definição dos caminhos a trilhar. Os três aspectos indicados anteriormente
no âmbito mundial – política e religião, crítica cultural e moda existencialista –
começaram a emergir também no cenário brasileiro e se fixar com mais força na
medida em que percorria as matérias dos jornais A Manhã e Última Hora. Ao
A qualificação é, por assim dizer, o primeiro crivo pelo qual passa um trabalho acadêmico. Em
14
15A Portaria Nº 76, de 14 de abril de 2010, da CAPES, viabiliza, em seu décimo sexto artigo, tal
processo, afirmando que “a mudança de nível do mestrado para o doutorado deve resultar do
reconhecimento do desempenho acadêmico excepcional atingido pelo aluno, obtido até o décimo
oitavo mês de início no curso”.
20
exemplo disso, abrangendo do ano de 1947 a 1954. Apesar de ser uma justificativa
insuficiente, parti dela de modo a transitar por este período e ver se havia ou não
motivos suficientemente fortes para delimitar o trabalho neste recorto cronológico. A
partir de então, fiquei atento aos indícios da chegada do existencialismo, em
especial o de Sartre, na primeira metade do chamado Período Democrático (1945-
1964).
O primeiro deles diz respeito à produção de Sartre. Annie Cohen-Solal
(2008), biógrafa do filósofo, confere ao período de 1945 a 1956 o epíteto de “Os
anos Sartre”. Um dos motivos a destacar é que é naquele ano que ocorre a já
referida conferência O existencialismo é um humanismo, segundo Cohen-Solal, um
“sucesso cultural sem precedentes”. Neste mesmo ano, Sartre lança os dois
primeiros livros da trilogia Caminhos da Liberdade (A Idade da Razão e Sursis,
respectivamente) e a revista Les Temps Modernes, em parceria com Simone de
Beauvoir, Maurice Merleau-Ponty e outros. Esse ritmo produtivo se estende até
1956. São dezenas de livros, peças de teatro e, a não esquecer, o cinema.
Outra periodização da produção de Sartre é encontrada no livro A Obra de
Sartre, do filósofo húngaro István Mészáros (2012), que subdivide a trajetória de
Sartre em seis fases: os anos de inocência (1923-40); os anos de heroísmo abstrato
(1941-45); a busca da política no código da moralidade (1946-50); a busca da
moralidade no código da política (1951-56); a busca da dialética da história (1957-
62); a descoberta do universal singular (1963 em diante). É importante perceber que,
embora não tão coincidente quanto à periodização de Cohen-Solal, a divisão
proposta por Mészáros mantém correlação com a proposta de recorte cronológico
aqui exposta. Os anos de 1945-1955 englobam, de modo geral, a fase da busca da
política no código da moralidade e da busca da moralidade no código da política.
Aquela aponta “de uma política moralmente comprometida, ainda que conservando a
soberania do indivíduo. [...] representa uma ampliação [das fases anteriores] em
direção aos problemas sócio-históricos concretos” (MÉSZÁROS, 2012, Edição
Kindle, posição 1882); esta, por sua vez, aponta para a ação política direta,
aproximação com o Partido Comunista Francês (PCF), dando atenção, enfim, para a
política institucional que negligenciara na fase anterior.
Esta etapa da produção sartriana, como se pode intuir tanto pela periodização
de Cohen-Solal quanto de Mészáros, é também o de sua popularização. Muito
embora Sartre já fosse comentado por livros anteriormente publicados, como O Muro
21
16Período que vai de 1937 a 1945, tendo diante do poder Getúlio Vargas, que irá retornar por meio de
eleições em 1951. Vargas foi deposto em 29 de outubro de 1945, sendo substituído por José
Linhares, que ficou interinamente no cargo até Eurico Gaspar Dutra, vencedor das eleições do
mesmo ano, assumir.
22
com estratégias agenciadas pela imprensa e governo da época para criar uma
sensação de mudança de rumos na política varguista. Afinal, se até a década de
1990 se pensava em uma inflexão na postura do governo de Vargas, algum esforço
provavelmente ocorreu para que esse imaginário fosse criado. Opto, portanto, por
não descartar nenhuma das duas leituras sobre o período. Enfim, como fatos
marcantes no cenário brasileiro entre 1945-55, cito, por exemplo, a entrada do
Partido Comunista Brasileiro (PCB) na clandestinidade em 1947 e o recrudescimento
da política trabalhista a partir de 1953, durante o segundo governo Vargas, em
aparente oposição com as propostas liberais norte-americanas. O período também
foi conhecido pelo crescimento de movimentos de esquerda, com atuação destes
em diversos campos, inclusive na sétima arte: é neste momento que se inicia o
Cinema Moderno brasileiro, inspirado inicialmente no Neorrealismo italiano e,
posteriormente, na Nouvelle Vague, movimentos pautados por discursos de
esquerda. O filme Rio, 40 graus, de Nelson Pereira dos Santos (1955), pode ser
tomado como marco inicial deste Cinema no país (PINTO, 2010).
Sartre era um pensador com fortes vinculações com o marxismo e o
pensamento de esquerda (MOUTINHO, 1995; COHEN-SOLAL, 2008; MÉSZÁROS,
2012). A escolha do período se confirma, portanto, neste olhar para o campo político
nacional. As diferenças entre posicionamentos dos governos Dutra e Vargas
acendem uma discussão sobre marxismo, comunismo e esquerda política, sobre a
“moralidade na política” e “a política na moralidade”. A emergência destes temas me
levou a crer, mesmo antes de qualquer levantamento – que veio a confirmar a
intuição –, que seria muito provável encontrar nos periódicos cariocas alguma
problematização do existencialismo de Sartre.
Reiterando a decisão pelo enfoque temporal, há o surgimento na época da já
referida moda existencialista. Simone de Beauvoir (2009, p. 164), companheira de
vida de Sartre, fala sobre a concepção da alcunha de “existencialista” aplicada a
certa juventude:
As fontes primárias
17 Deste
ponto em diante, irei me referir aos periódicos pelas siglas correspondentes, quando houver -
de acordo com o índice de siglas. É o caso, por exemplo, de Última Hora, que será chamado de UH.
24
18 Disponível
em <http://hemerotecadigital.bn.br/>. Todas as referências à jornais, à exceção de O
Globo, são oriundas deste endereço eletrônico.
19 O que veio a se efetivar após março de 2013 – não há como precisar a data exata.
25
20 Segundo estudo realizado pela UNESCO (1951), os 18 jornais cariocas diários tinham uma tiragem
total de 1.245.335 exemplares.
26
As palavras-chave
21 Charles
Brabant codirigiu o La p... respectueuse com Marcelo Pagliero. Por se tratar de codireção,
considerei apenas o nome de um dos diretores, aquele que parecia mais comentado no Brasil.
27
Periódicos
Palavras-chave A Manhã Última Hora
Allegret 13 18
Audry 1 7
Dados estão lançados 0 0
Delannoy 5 15
Entre quatro paredes 0 0
Existencialismo 83 30
Existencialista 121 72
França-filmes do Brasil 9 43
Huis clos 1 4
Jeux sont fait 1 1
Orgueilleux 0 2
Orgulhosos 0 1
Mains sales 5 3
Mãos sujas 4 2
Náusea 0 0
Nausée 1 0
Pagliero 41 13
Respectueuse 0 1
Respeitosa 35 11
Sartre 141 81
TOTAL 461 304
Tabela 1 - Número de matérias por palavra-chave e por
periódico
Autores em diálogo
pensamento que se voltasse para as coisas como elas são, ou seja, para o
fenômeno. Em seu Questão do Método, lançado em meados da década de 1950
como artigos na revista Les Temps Modernes, escreve que, em 1925, quando tinha
vinte anos, já “exigíamos [ele e os demais de sua geração] uma filosofia que levasse
em consideração tudo” (SARTRE, 2002, p. 29). Segue o filósofo, “Entre nós, nessa
época, o livro de Jean Wahl, Vers le concret [lançado em 1932], obteve muito
sucesso. Ainda assim, ficamos decepcionados com esse ‘vers’ (...)” (SARTRE, 2002,
p. 29). Sendo vers uma partícula que indica movimento para dentro, Sartre acena
que aquilo que gostaria neste momento era já estar diante do concreto. De acordo
com Aliocha Wald Lasowski (2011), Wahl foi um pensador dedicado principalmente
ao diálogo com as obras de Hegel, Nietzsche e Kierkegaard, portanto, preocupado
com as questões da existência singular. Ora, este é o tema central dos primeiros
escritos de Sartre, culminando com O Ser e o Nada. Portanto vemos já no interesse
por Wahl o cerne da questão que o mobilizará por toda a vida: a compreensão do
homem concreto e seu fazer-se no mundo.
É movido por essa busca pelo concreto, portanto, que Sartre se debruça
sobre a Fenomenologia, de onde se apropriará, de maneira cada vez mais singular
ao longo de sua obra, da ideia de consciência intencional presente nos escritos de
Husserl. Esta noção, que aponta para a máxima “toda consciência é consciência de
alguma coisa”, é mais bem desenvolvida por Sartre no livro A transcendência do
Ego, que veio à público em 1936. Tal ideia estará presente em toda a obra de Sartre,
direta ou indiretamente, sendo o ponto de partida para a “ontologia fenomenológica”
proposta por ele em O Ser e o Nada (SARTRE, 2007a). A consciência intencional
é o que viabiliza que Sartre postule a indissociabilidade inequívoca entre homem
e mundo, fundamental para que consiga suprimir o dualismo que visava combater
(EWALD et al, 2008; MOUTINHO, 1994; PEREIRA, 2008; SASS, 1999; SILVA,
2010)22. Afinal, esse conceito aponta para a ideia de uma intrínseca relação do ser
da consciência com as aparições do mundo.
Pelo privilegio da noção de intencionalidade em detrimento de todo o caminho
que Husserl empreende – que, para Sartre, acena para uma recaída idealista no
23Que aqui não será remontado, mas que pode ser encontrado de modo bastante claro em: EWALD
et al. (2008); MOUTINHO (1994); e SILVA (2010)
A ideia de uma “filosofia alimentar”, que acredita que a consciência “adquire”, “deglute”, “engloba”
24
25 Esta
noção de Ewald será por vezes substituída pelos termos “indício” e “vestígio”. Todos os três
termos apontam para a relação indissociável entre homem e seu solo histórico.
26 Este
trabalho dialoga com Sartre. Ao mesmo tempo, outros autores – para além de comentadores
da obra de Sartre – são utilizados.
32
27 Dosautores apresentados até este momento, Mészáros é o único que não fez parte do pré-projeto
de pesquisa, sendo uma descoberta de caminhada, por sugestão de Ariane Ewald.
33
28Há discussões sobre o que é realidade em uma visada fenomenológico. Por ora, cabe apenas
indicar que os livros de João Francisco Duarte Júnior, O que é Realidade? (2011), e A construção
social da realidade (1973) e Modernidade, pluralismo e crise de sentido (2004), ambos de Berger e
Luckmann, são exemplares.
35
(...) temos que nos ensinar a ver o trabalho sendo realizado pelos
PowerPoints e resumos científicos. Precisamos encontrar meios de fazer
este mundo [criados por estas práticas] se tornar visível. Precisamos resistir
à propensão a tratar estes textos como transparentes, auto-evidentes, ou
janelas pouco interessantes a um mundo previamente dado. (Law, 2009, p.
4-5. grifos no original).
Para o autor, este ou aquele mundo posto em prática é fruto de uma escolha
política, uma política que ele chama “ontológica”. Não uma política
institucionalizada, mas aquela que confere ser a um e não-ser a outro objeto,
36
compondo uma realidade. De acordo com Mol (2005, p. VIII), outra autora da TAR e
parceira de Law, esta é “uma política que tem a ver com o modo como os problemas
são enquadrados, corpos formatados e vidas empurradas ou puxadas num sentido
ou noutro”. É neste sentido, também, que Law e Annemarie Mol (2011, p. 276. grifos
no original) afirmam que “(...) o social não é puramente social; e [...] se o fosse,
então não permaneceria como unidade por muito tempo. [...] a estabilidade reside na
heterogeneidade material”. Eles destacam a importância de atentar para a interação
entre todos os materiais, os mais diversos, que compõem uma rede. É por meio
desta interação que uma determinada realidade é posta em cena em detrimento de
outras. É por meio delas que podemos pensar aquilo que se revela e aquilo que se
esconde, na presença e na ausência, na política ontológica – que, neste
paradigma, não é casual.
Indiquei até aqui alguns pontos de aproximação entre o pensamento de Sartre
e de autores da TAR, o que pode ter dado a ideia de que se trata de uma relação
óbvia e de que ambas as propostas centralizam o homem. Afinal, afirmei poucas
linhas atrás que “a escrita de um jornal, a opção por este ou aquele modo de
narrar os fatos e, mesmo, a escolha de quais fatos narrar, indica um exercício de
criação de realidade”. Todos esses trechos em destaque apontam para uma ação
que é humana: escrever, escolher, narrar. Intencionalmente, deixei de lado o
jornal, a materialidade que me interpelou a todo instante na pesquisa e que me
exigiu respostas, manejo, compreensões. Trata-se da materialidade que me
conecta e me viabiliza certos modos de existir no mundo. Penso que Sartre frisa
em sua obra o caráter criativo da existência humana, ao passo que, ao pensar com
os autores da TAR, deveria ser capaz de engajar simetricamente atores não-
humanos – que, diga-se de passagem, não precisam ser materiais29.
Edwin Sayes (2013), sociólogo australiano que trabalha com a TAR,
estabelece quatro modos pelos quais essa abordagem considera que os não-
humanos agem: primeiro, podem ser tomados como condição de possibilidade para
a existência da sociedade humana; como mediadores, e não como meios, para um
fim; como agentes de associações morais ou políticas, ou seja, como participantes
ao lado dos humanos nas posições tomadas acerca dessas temas – o fato de
termos ou não acesso a internet na hora de comprar um ingresso para o teatro, por
29Um aroma, uma voz, o vento, são exemplos de atores não-humanos que carecem de materialidade
palpável.
37
exemplo, pode definir nosso final de semana; por fim, como parte integrante de uma
associação, o que aponta para o fato de que toda ação é sempre interação. A
simetria proposta entre humanos e não-humanos é tão evidente dentro desses
modos propostos por Sayes que ele afirma em certo ponto que “questões de
intencionalidade, autonomia e responsabilidade não podem ser endereçadas
partindo da linguagem simétrica dessa perspectiva”, tornando-se assim um limite
imposto pelo modo de proceder comuns aos autores da TAR (SAYES, 2013, p. 6.
grifos meus).
No entanto, outro intelectual que trabalha com a TAR, o dinamarquês Kasper
Schiolin (2012), afirma que, desde os anos 2000, pensa-se na proximidade entre as
propostas de Latour e de Heidegger, filósofo da existência cuja metodologia se
apropria da fenomenologia de Husserl. Mas não apenas com Heidegger, pois, em
certo ponto de seu texto, Schiolin (2012, p. 782, grifos meus) afirma que “Isso é o
motivo pelo qual Latour, em termos bastante filosóficos e com um aceno camuflado
para Sartre, expressa da seguinte maneira seu ponto de vista epistemológico, ‘A
essência é o existir, e a existência é associação’”. O que vemos aqui é uma
corruptela da máxima de que “a existência precede a essência” e de que o “homem
está condenado a ser livre” presentes na conferência de Sartre (1987), O
existencialismo é um humanismo. E, no entanto, na entrevista com Latour publicada
na introdução do livro de Don Ihde e Evan Selinger (2003), Chasing technoscience,
lemos a provocação de Ihde para Latour:
[Don Ihde diz] Parece-me que suas reservas tem a ver com o fato de que a
fenomenologia não considera os não-humanos.
[Bruno Latour responde] Isso deve ter a ver com minha ignorância e
preconceito. Consideremos a tradição fenomenológica que conheço melhor
– aquela de Merleau-Ponty. Trata-se de uma posição muito interessante
da ideia de corporificação. Mas é um ponto de vista absolutamente
antropocêntrico da corporificação. É muito difícil descentralizar o
humano nessa tradição e conectar Merleau-Ponty com questões
metafísicas clássicas, como aquelas que estou interessado e que foram
postas por Whitehead. Eu sei que isso é injusto. Mas na luta por revalidar
questões metafísicas num sentido pertinente ao pensamento de Whitehead,
não sei como a fenomenologia pode vir ao meu socorro. Certamente ela é
de maior ajuda que posições racionalistas, porque enfatiza a experiência
vivida, le vécu [...]. Mas a questão é: podemos acessar modos de
agenciamento que não sejam centrados no humano? Para isso, acho que a
fenomenologia não serve. [...] Então, para mim, mas você pode
compreender que este julgamento é uma posição que é a minha, para
aquilo que eu pretendo, sempre penso que as ferramentas da
fenomenologia aprofundam o tipo de lacuna que eu justamente quero
fechar. (IHDE; SELINGER, 2003, p. 16. grifos meus).
38
Leva poucos anos para que um livro se torne um fato social que
interrogamos como a uma instituição ou para que o façamos entrar como
um objeto nas estatísticas, é necessário pouco recuo para que ele se
confunda com os móveis de uma época, com seus hábitos, seus chapéus,
seus meios de transporte e sua alimentação.
30 Kracauerse volta para a crítica cinematográfica nos textos publicados em português, francês e
espanhol. Estendo essas reflexões para todos os tipos de críticas a produtos culturais, como teatro,
cinema, rádio, música e literatura.
31 Faço referência ao texto A modo de prólogo. La primera huella, que abre este livro de Kracauer. O
texto foi assinado por “El Editor”, não identificado.
40
indiscriminado das fotos nas revistas ilustradas, apontando para a função social que
esta arte adquire mais do que para uma visada crítica desta ou daquela imagem
(KRACAUER, 2009).
Deste modo, pode-se afirmar, com Philippe Despoix, que a visada de
Kracauer sobre os objetos estéticos se configura, precipuamente, como um olhar
para o social que se vale do produto cultural como pretexto (KRACAUER, 2008, p.
8)32. Creio que tal visada, por vezes, empobrece o objeto estético em si, que é posto
de lado em função da compreensão de seus sentidos sociais. Por outro lado, é a
preocupação com a função social da obra que torna a crítica kracaueriana
contundente. Ele transita entre diferentes objetos estéticos – Despoix, por exemplo,
nos fala das “viagens e danças exóticas, os teatros de revista e os desfiles
ginásticos, as competições esportivas, a fotografia de imprensa e o culto das
estrelas (...)” (KRACAUER, 2008, p. 8). Sobre todos eles, ele se volta com o
interesse de destacar o que cada um deles pode desvelar sobre o meio em que
foram concebidos e/ou desfrutados. Deste modo, Kracauer indica a relação
inequívoca e recíproca entre uma obra e seu tempo, no que incluo as matérias
jornalísticas.
Apenas para exemplificar como tal defesa aparece diretamente em um texto
dele, apresento As pequenas balconistas vão ao cinema, de 1927. Neste, Kracauer
faz uma análise sucinta de diversos filmes, buscando indicar aquilo que cada um
pretendia evocar em quem os assistia. Escreve ele que,
Para pesquisar a sociedade atual, seria necessário ouvir aquilo que revelam
os produtos da grande indústria cinematográfica. Todos eles revelam um
segredo rude sem que na realidade o queiram. Na sequência infinita de
filmes um número limitado de temas típicos retorna sempre e eles revelam
como a própria sociedade deseja ver a si mesma (KRACAUER, 2009, p
315).
É nesse intuito, de permitir “ouvir aquilo que revelam” os filmes, que seguem
alguns dos ensaios do autor. Em outro texto, A tarefa do crítico cinematográfico,
Kracauer indica aquilo que cabe ao crítico de cinema.
defende ser necessário um olhar situado deste livro naquele tempo, sem o quê
tende-se a recolocar críticas contemporâneas ao texto, principalmente incomodadas
com o tom da escrita. Segundo ela, o que Sartre visava nesse momento conturbado
– em 1947 era possível perceber sinais do que mais tarde chamaríamos de Guerra
Fria – era defender que “o livre intérprete do qual a coletividade carecia” era o
escritor (SARTRE, 2010).
Em Qu’est ce qu’écrire? (O que é escrever?), primeiro dos quatro artigos que
formam o livro, lê-se que “a palavra é certo momento particular da ação e não pode
ser compreendida fora dela.” (SARTRE, 2010, p. 26). Tal ideia concorda com trecho
de outro artigo da coletânea, Situation de l’écrivain en 1947 (Situação do escritor em
1947), em que Sartre (2010, p. 236. grifos no original) escreve que “o fazer é
revelador do ser, cada gesto delineia formas novas na terra, cada técnica, cada
ferramenta é um novo sentido aberto no mundo (...)”. Podemos inferir daí, que o
filósofo defende que a escrita é um projeto justamente por seu caráter de ação. Dito
de outro modo, pelo próprio Sartre (2010, p. 28),
Deste modo, um escritor “engajado” não ignora que sua ação tem uma
finalidade, ou melhor, uma responsabilidade, um compromisso. Portanto, tal escritor
é aquele que não apenas desenvolve seu trabalho ciente da responsabilidade
inerente a este, mas também aquele que o faz à luz de um projeto: tornar visível, aos
outros homens, a responsabilidade que eles têm diante do mundo. Tal ideia está
presente no texto de apresentação da revista Les temps Modernes, a 01 de outubro
de 1945 – logo, dois anos antes dos artigos sobre os quais discorro. Sartre (1945)
escreveu ali que Flaubert foi também responsável pela dissolução da Comuna de
Paris, uma vez que nada disse contra essa ação. Segundo ele, Flaubert não mediu
“sua responsabilidade de escritor” diante do movimento, em linhas gerais, de
instauração de um governo operário na Paris de 1871. Ainda nesta apresentação à
revista, Sartre (1945, p. 3) afirma que “[os escritores] não queremos ter vergonha de
escrever e nós não temos vontade de falar para nada dizer. [...] Todo escrito possui
um sentido, mesmo que este sentido esteja bastante distante daquele que o autor
quis dar ao texto (...)”. Ser um escritor requer, então, este compromisso último, que
não passa pelo momento da decisão voluntariosa: escrever é estar, de partida,
comprometido, por mais que o escritor ignore seu engajamento neste ato.
O que Sartre defende – ideia com que corroboro - não é uma ação que cada
escritor deve, singularmente, empreender para que seja engajado em seu tempo,
mas uma atitude de dar-se conta do compromisso desde sempre em cena quando
se escreve. O compromisso com aquilo que se escreve está em cena desde as
primeiras linhas do escrito.
Em diálogo com Sartre e Kracauer, o que dizer do papel e da
responsabilidade dos críticos culturais, colunistas, repórteres e editores dos jornais
analisados? O que dizer do diagramador, que escolhe unir lado a lado numa página
uma matéria sobre Sartre e outra sobre a opinião da Igreja acerca de seus
opositores – dentre os quais o próprio intelectual francês? Estes são modos pelos
quais os trabalhos destes dois pensadores fazem mover esta pesquisa.
43
Os objetivos da pesquisa
35 A
conferência ocorreu em 1960, na cidade de Araraquara, interior de São Paulo, na então
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, atualmente pertencente à UNESP.
45
1954) com o existencialismo de Sartre requer olhar para aspectos dessas gestões e
do período que as precedeu imediatamente. Cada presidente colocou em cena um
modo de relação com o PCB, por exemplo, até mesmo chegando a mudar de
posicionamento ao longo de um único mandato, como no caso de Dutra. Portanto,
aspectos intrínsecos ao campo político carioca serão aqui considerados: o embate
entre forças políticas antagônicas, as práticas sociais incentivadas ou inibidas por
este campo e o modo como este se situava diante dos demais campos com os quais
tinha que se relacionar. De modo específico, a política externa3 adotada por um ou
outro governo influenciou a recepção do existencialismo no país? E a relação que
estabeleceram com o Partido Comunista (PC) nacional?
As tensões entre o existencialismo de Sartre e a Igreja Católica poderiam ser
um capítulo à parte, mas fazer essa cisão significa admitir, tal qual Bourdieu (2011),
que o campo religioso e político são distintos. Prefiro considerar a intersecção entre
esses campos, já que as matéria jornalísticas encontradas apontam para isso: o
papado de Pio XII e o arcebispado de Dom Jaime Câmara no Rio de Janeiro se
confundem com o campo político daquele tempo.
3 Penso na noção de política externa como espaço de diálogo e disputa entre diferentes campos
políticos envolvendo dois ou mais países.
50
dava importância a algo que provocava o riso das pessoas de bom senso! Os
existencialistas eram uns doidos... Só isso. Então os brasileiros os levam a sério?”
(REACIONÁRIOS D’ALÉM MAR, A Manhã, 05/11/1947, p. 4). Dinah de Queiroz
efetivamente dava importância ao tema: não raras são as colunas dela em que
Sartre, seus romances e o existencialismo são comentados – embora a ideia de
“seriedade” possa ser questionada em alguns casos. Mas ela não é a única. O
existencialismo era “levado a sério” – o que não significa que se concordava com ele
- quando as colunas dizem respeito a suas proximidades e distanciamentos em
relação ao marxismo, ao materialismo histórico e ao comunismo.
Refiro-me aos três termos - marxismo, materialismo histórico e comunismo –
pois os periódicos cariocas de então os usam como se fossem sinônimos. Marxismo
diz respeito ao pensamento oriundo ou derivado das ideias de Karl Marx, sendo o
materialismo histórico “um quadro de referência para as explicações históricas”
desenvolvidas pelo pensamento marxista (BLACKBURN, 1997). O comunismo é o
sistema social e político discutido, dentre outros, por Marx – daí, talvez, certa
confusão entre marxismo e comunismo – e que encontra uma de suas instâncias de
institucionalização nos Partidos Comunistas (PC’s) pelo mundo. No Brasil, isso se dá
pelo PCB. No dicionário de filosofia estabelecido por Simon Blackburn (1997, p. 66),
encontra-se um lema para o comunismo que expressa bem o sentido deste sistema:
“de cada um de acordo com suas capacidades, a cada um de acordo com suas
necessidades”. O pensamento filosófico marxista ficou conhecido como materialismo
dialético e é pouco comentado pelos periódicos cariocas, que parecem compreender
não haver diferença entre os termos “materialismo histórico” e “materialismo
dialético”.
Mas porque é este o escopo em que os periódicos consideram com maior
seriedade o existencialismo entre os anos aqui analisados? É provável que a
associação feita entre Sartre, materialismo, marxismo e comunismo seja um
processo caudatário das próprias escolhas do filósofo francês. Simone de Beauvoir
(2009, p. 18. grifos meus) escreve sobre o ano de 1944 que
não está cem por cento de acordo [com a política do PC], e o mais
provável é que nunca o fique totalmente; porém lhe resultava difícil
continuar dizendo que o Partido Comunista é a única organização que
defende verdadeiramente os operários e permanecer na oposição
expectante e cômoda dos que aprovam mas não seguem.
Positivamente, não se pode concluir que Sartre renunciou à crítica.
Sua posição no pensamento contemporâneo francês impõem [sic] ao
escritor responsabilidades a que ele não pode fugir. O monolitismo
comunista não se coaduna muito bem com a ductilidade existencialista. O
tempo dirá se a liberdade “sartreana” [sic] aceita as conclusões comunistas
52
O homem não pensa sem corpo. O corpo não vive sem o espírito. O
existencialismo se funda nessa interdependência da organização
biológica do homem. A morte não existe propriamente, significa apenas a
integração do espírito no espírito do Cosmo e a volta o corpo ao corpo do
mundo. (REVOLUÇÃO SEMÂNTICA..., A Manhã, 12 junho 1945, p. 7. grifos
meus)
Vargas anuncia que tendo Dutra afirmado – daí o nome dado ao anúncio - que
seguiria a proposta trabalhista, merecia o voto do povo. Destaco aspectos do
pronunciamento que acenam para o perfil nacional-populista exercido por Vargas,
que será retomado no segundo governo getulista. Não se pode ter certeza quanto ao
impacto desta fala para a vitória de Dutra, entretanto pode-se conjecturar que o
PSD, ao decidir ler o pronunciamento de Vargas em seu último comício, acredita na
força que esta declaração tem. Se de acordo com a matéria de O Globo, o PTB se
ressentiu com o posicionamento de Vargas, segundo Mauro Malin (2010) e Rogério
Schmitt (2000) o partido apoiou a campanha pessedista6. Em um ato que pode ser
6 Referentes ao PSD.
59
7 É curioso que o pronunciamento de Vargas e a matéria sobre o comício ocupe, além da terceira
página, uma manchete na capa do jornal. O Globo havia se alinhado nos últimos anos do Estado
Novo com os movimentos partidários da deposição do governo (LEAL; MONTALVÃO, 2010). Já o
jornal A Manhã, fundado pelo Estado Novo, não exibe em suas páginas entre os dias 25 e 29 de
novembro de 1945 nenhuma referência ao nome do ex-presidente, embora Dutra e o comício do
PSD sejam notificados. O que se passava nos interstícios do campo político em relação a Vargas
para que dois representantes da imprensa tenham feito esta opção editorial opostas a suas
respectivas posições políticas? Suponho que, quanto ao A Manhã, o jornal tenha buscado se
manter neutro em relação ao ex-presidente por temer alguma represália. O Globo, por sua vez, não
parece partidário de Vargas na matéria comentada ao mesmo tempo que se mantém neutro em
relação à Dutra. De acordo com Carlos Eduardo Leal e Sérgio Montalvão (2010), essa será a
posição do periódico em relação ao novo presidente: certa neutralidade, evitando uma oposição
sistemática e endossando algumas ações conservadoras da gestão Dutra.
60
8 Os primeiros sinais deste movimento já eram sentidos a partir do final da Segunda Guerra, mas se
acentuam com a proximidade do fim da década de 1940. O nome Macarthismo faz referência ao
político Joseph McCarthy, um dos principais partidários do movimento.
9 As relações do existencialismo de Sartre com a Igreja Católica são tema do segundo capítulo.
61
homem atento não se deixar enganar por esses pretensos pacificadores do mundo,
cujo plano de dominação já está elaborado (CRIME CONTRA A PÁTRIA...,
17/04/1949, p. 1). Sartre só irá participar de um dos “congressos pela paz” em 1952,
em Viena, mas não estava excluído do rol dos perigosos segundo o arcebispo do
Rio de Janeiro. Na referida pastoral, como que para não restarem dúvidas, Dom
Jaime enumera todas as “instituições tendenciosas” que requerem um olhar atento:
em primeiro lugar, os já referidos congressos pela paz; em seguida, as “senhoras”
que fazem reuniões bem intencionadas com fins a “modificar programas e diretrizes
dos comunistas” e que com isso só atraem “o ódio e ataque de várias classes
sociais”; a “‘mocidade’ inexperiente e ardorosa”, que vê no comunismo uma boa
oportunidade de ação; os comitês femininos de bairro, que em suas reuniões para
discutir os problemas cotidianos das donas de casa trazem à tona insatisfações
diversas; e as
Dom Jaime Câmara não cita nomes: isso não é necessário. Em outro trecho
da pastoral, lê-se:
O conteúdo desse desfecho não difere das críticas feitas ao longo da coluna:
Sartre e seu existencialismo oscilam com a situação, colocando em cena uma
política de “ficar em cima do muro”, segundo Aragão. Penso em como carece de
argumentação a crítica de que o existencialismo é uma posição sem posição, uma
“multiforme hospedaria”. Afinal, é de 1945 a apresentação que Sartre escreve para a
revista Les Temps Modernes e de 1947 o livro “Que é a literatura?”, obras em que o
filósofo defende o engajamento do escritor, uma tomada de posição no mundo. Um
contraponto pertinente a essa leitura de Aragão pode ser encontrado na coluna
assinada por Heitor Moniz para A Manhã em 05 de novembro de 1950 (A POSIÇÃO
POLÍTICA DE SARTRE, segundo caderno, capa), a ser comentada de modo mais
completo no próximo capítulo. Na ocasião, Moniz, jornalista com sólida carreira
política, considera que há uma coerência “impecável” entre os diversos escritos de
Sartre, comenta a experiência política com o RDR e afirma que “nenhum escritor do
nosso tempo reflete melhor, em sua obra, a época que estamos vivendo”.
Outro aspecto do trecho que chama a atenção é o recurso à citação direta do
livro comentado, sem tradução. A Manhã é um periódico de grande circulação, mas
este trecho permite supor o perfil do público que o lê. Não é um jornal popular, ao
menos não como será UH, com suas estratégias para atrair as massas, como a
distribuição de brindes e o uso intensivo de fotografias.
Ainda relacionando existencialismo e política nesse período, mas de modo
diverso ao relatado até este ponto, temos a história da criação do Partido Naturalista
Brasileiro (PNB), de Luz del Fuego. Este nome, apelido artístico de Dora Vivacqua, é
bastante apropriado para o papel desempenhado por esta personalidade brasileira.
Conhecida no cenário artístico como dançarina, teve sua estreia no picadeiro do
circo Pavilhão Azul no ano de 1944. Tornou-se um sucesso por seu exotismo, sua
sensualidade e por suas insólitas parceiras de palco, duas serpentes e uma pomba.
11Em tradução livre, respectivamente: “todas as opiniões, da extrema-direita a extrema-esquerda” e
“passar um partido entre essas posições, criando blocos, aqui e ali”.
64
Mas não é apenas pelo cenário das artes que ela ficará conhecida. Luz del Fuego foi
uma defensora do naturalismo e do feminismo à época. Segundo ela, aliás, “O
naturalismo [...] nada tem de imoral. Não pode ser confundido com o
existencialismo, que é uma doutrina cínica, amarga e que glorifica a decadência e
a renúncia.” (O PARTIDO DE LUZ DEL FUEGO, 02/10/1949, p. 4 – 5. grifos meus).
Defender o naturalismo é, ao mesmo tempo, “separar o joio do trigo”, diferenciando
aquilo que deve ser rechaçado como imoral. Mas qual o contexto dessa fala de Luz
del Fuego?
Em 02 de outubro de 1949, a dançarina vira manchete (O PARTIDO DE LUZ
DEL FUEGO, p. 1; 4-5): a musa pretendia fundar um partido político. Nas páginas
internas do jornal, a matéria ocupa duas páginas, ilustradas por quatro fotografias
dela. As figuras abaixo (fig. 1 e 2), extraídas da reportagem, permitem notar o intuito
do texto: demonstrar que o campo político é mais sério do que qualquer proposta
feita pela dançarina.
Figura 1 Figura 2
O jornalista coloca em cena o partido político de Luz del Fuego, mas diante
dessa realidade, faz produzir diversas outras – colaterais, para usarmos o termo de
John Law (2009). Para apontar algumas delas: ele parece concordar com a política
conservadora do governo, por invalidar as ideias avançadas – para ele,
pretensamente, vide as aspas que usa - que se opõem à gestão Dutra; defende a
manutenção de um Estado atrelado à Igreja Católica: ele irá citar diretamente Luz
del Fuego defendendo a igualdade religiosa para, logo em seguida, invalidar a
defesa como “ideia de mulher bonita”; coloca em cena, principalmente, um modo
66
Quero que a juventude do meu país seja mais livre, mais feliz, mais natural.
Não quero afastá-la de Deus. O naturalismo que eu defendo nada tem
de imoral. Não pode ser confundido com o existencialismo, que é uma
doutrina cínica, amarga e que glorifica a decadência e a renúncia. O
naturalismo, pelo contrário, glorifica a vida e a beleza do mundo. (O
PARTIDO DE LUZ DEL FUEGO, 02/10/1949, p. 4 – 5. grifos meus)
possíveis encaixes. Ao falar sobre a extensa biografia que escreve sobre Flaubert,
Sartre, em certa ocasião, afirma que ali há uma espécie de “romance verdadeiro”, já
que entre os fatos precisa imaginar conexões que, embora não estejam diretamente
apresentadas pelos materiais coletados, podem ser intuídas a partir deles (SARTRE,
1972, p. 123). De modo similar, imagino que a fala de Aranha guarde alguma
conexão com o fato de que haja poucas matérias nesse período conectando o
pensamento de Sartre à política. No entanto, antes de apresentar minha hipótese,
passemos às demais matérias encontradas.
Um panorama político da Europa é traçado em A Rússia ocuparia a Europa
pelo telefone... (A Manhã, 10/05/1952, p. 1; 8) com base nos relatos do diplomata
brasileiro Paulo Silveira, que afirma que há temor generalizado de uma nova
ocupação do território europeu de modo similar aquele realizado pelos alemães
durante a Segunda Guerra Mundial, desta vez pelos sovietes. Quanto ao
existencialismo, segundo Silveira, os seguidores desta filosofia “que andam em
Saint-Germain-des-Prés e Rose-Rouge, têm mais caspa na cabeça do que ideias...”.
Vale notar que, mais uma vez, temos uma leitura que atrela existencialismo às ideias
de moda que veremos no terceiro capítulo mais do que ao tema política que é a
tônica da matéria.
Ainda em consonância com o cenário europeu, em Sartre aderiu ao
Congresso da Paz (UH, 24/12/1952), anuncia-se o retorno de intelectuais franceses
que foram ao evento, dentre os quais, Sartre. O agrupamento recém chegado à
Paris organizou uma manifestação no velódromo de inverno da capital francesa.
Sartre foi o mais aplaudido na ocasião: “Expressou energicamente sua esperança
em ver aumentar ainda mais o ‘Movimento Mundial Pela Paz’ e denunciou, com
violência, ‘as mentiras’ e ‘as calúnias’ da imprensa conservadora que, disse,
desfigurou completamente o aspecto do Congresso, quando não o ignorou
totalmente”. Este último é o caso de UH, uma vez que esta é a primeira nota sobre o
evento, que havia se realizado. Apenas em março do ano seguinte uma matéria
relata o encontro vienense. Congresso da Paz, centro de espionagem (A Manhã,
01/03/1953, p. 1;13) informa que “época de grande agitação e movimento para os
agentes do serviço secreto foi o recente congresso de Paz, que reuniu na cidade de
Viena aproximadamente duas mil pessoas”. O evento é descrito como verdadeiro
simulacro da situação mundial, tendo sido possível ali perceber toda a tensão
existente entre o bloco ocidental e oriental. Sartre é apenas mencionado como um
71
Vai ser, vai ser, vai ter de ser, vai ser faca amolada
O brilho cego de paixão e fé, faca amolada
Fé cega, face amolada - Milton Nascimento e Ronaldo Bastos
ofensiva vinda de várias revistas, sobretudo do setor católico, está sendo dirigida
contra essa filosofia”, informa o crítico. Mas a pista que nos dá o texto de Rousseaux
não basta.
Conheçamos, então, uma história que envolve Gustavo Barroso, imortal
brasileiro, ocupante da cadeira de número 19 da ABL dentre os anos de 1923 –
quando tinha apenas 35 anos - e 1959, quando faleceu. Ao lado de sua carreira
como escritor, pela qual chegou a dirigir a famosa revista Fon-fon, atuou também no
campo da política como deputado federal de 1915 a 1917 e como integrante do
movimento integralista a partir de 1933. A Ação Integralista Brasileira (AIB) foi
fundada em 1932 por Plínio Salgado, tendo como lema “Deus, pátria e família”.
Movimento de inspiração fascista e antiliberal, aproximava-se mais do regime
fascista italiano e português. Barroso adere ao movimento, que vira partido político
no mesmo ano de sua adesão, mas o posicionamento ideológico do escritor é um
pouco diverso, aproximando-se mais do fascismo alemão. Seu autodeclarado
antissemitismo lhe confere um período de ostracismo dentro do movimento, no qual
passou a concorrer pela liderança com Plínio Salgado. Quando Vargas desfere o
golpe que instaura o Estado Novo, em 1937, recebe apoio dos integralistas que,
contudo, mudam de posicionamento em relação ao regime já no ano de 1938
(TRINDADE, 2010). Após uma frustrada tentativa de golpe contra o regime varguista,
Salgado é exilado em Portugal, e Barroso, sem abandonar seu posicionamento
político, passa a se dedicar mais às atividades na ABL e à escrita. Se durante o
Estado Novo sua relação com o governo é ambígua, posteriormente será respeitado
por todos os presidentes, chegando a atuar como representante do país em
encontros no exterior a partir dos anos 1950 (COUTINHO, 2010).
No ano de 1948, o carioca que prosseguiu à página 4 de A Manhã - dedicada
aos colunistas -, pôde ler um artigo de Gustavo Barroso intitulado A filosofia
existencialista. Abre o artigo definindo o existencialismo como “uma doutrina de
decadência burguesa, nascida logo após a segunda guerra mundial” fundada por
Sartre e cujo slogan básico é “A Existência precede a Essência. É o penso, logo
existo de Pascal [sic] invertido e nada mais: existo, logo penso”. Prossegue Barroso
dizendo que se trata de uma “pretensa filosofia” e a expõe: apresenta as noções
sartrianas de Para-si e Em-si e a ideia de consciência como “uma presença para si
separada da existência bruta do em si [sic] por um nada. Esse nada é o que muitos
chamam de infinito” (A FILOSOFIA EXISTENCIALISTA, A Manhã, 01/06/1948, p. 4).
74
Tentador”, há uma nota informando que o papa conclamou o povo húngaro, por meio
de uma rádiotransmissão especial, a resistir contra aqueles que negam Deus.
Poucos meses depois, lia-se No “Index Prohibitorum” as obras de Sartre (A Manhã,
31/10/1948, p. 9). A pequena nota anunciava a conhecida inclusão da totalidade das
obras de Sartre na lista de livros proibidos aos católicos, com o intuito de
“resguardar-se a moral cristã contra as doutrinas perniciosas do existencialismo”.
Cerca de um mês depois, àqueles que não entenderam bem o recado ou a intenção
da Congregação do Santo Ofício, A Manhã preparou uma coluna mais extensa
explicitando as condições do decreto. Em Incluídos no “index” os livros de Jean Paul
Sartre (A Manhã, 01/12/1948, p. 5), primeiramente, o leitor pôde descobrir o que é o
Index: “um grande livro verdade [?] de 600 páginas impresso na tipografia poliglótica
do Vaticano sob o título [...] que quer dizer: Relação dos Livros Proibidos (...)”. Mas a
quem se proíbe a leitura? “Um autor, uma vez incluído no “index”, não mais poderá
ser lido pelos católicos (...)”. Pois bem. Mas o jornalista não para por aí e emenda,
“(...) pelo menos pelos católicos que ainda reconhecem a autoridade do Vaticano
nesse domínio”, o que, seguindo o texto, podemos imaginar que não são tantas
pessoas, já que afirma que “acredita-se que em face da proibição aumentará
consideravelmente a venda dos livros de Jean Paul Sartre, consoante que costuma
acontecer nos casos análogos”. Curiosamente, ainda de acordo com a matéria, a
Congregação foi mais específica quanto a que tipo de católicos uma tal proibição se
dirige, pois afirmou que “certas doutrinas, certas filosofias e certas obras podem ser
lidas e compreendidas pela elite, mas podem desorientar as massas de leitores
e assim devem ser subtraídas às suas mãos” (grifos meus). E mais, o autor indica
que, embora não se tenha certeza dos motivos exatos da inclusão das obras de
Sartre em tal lista, corria o boato de que o principal motivador foi o sucesso de sua
obra literária e não as noções de sua filosofia. É justamente, portanto, à divulgação
mais ampla do pensamento de Sartre - que vinha sendo obtida por meio de suas
obras literárias – que o Santo Ofício se mobilizava, temeroso de que a capilaridade
do pensamento de Sartre fosse tanta que saísse dos círculos de elite e passasse à
horda dos cidadãos comuns. Essa lógica parece também estar presente no modo
como circularam as peças e filmes de Sartre pela capital carioca, que será tema do
próximo capítulo.
Neste contexto, a já citada pastoral do arcebispo do Rio de Janeiro, Dom
Jaime de Barros Câmara, ganha um sentido mais claro. Embora não cite o nome de
76
Sartre, situa o “‘existencialismo’ cru e vergonhoso” no “nível cada vez mais baixo da
moral” (CRIME CONTRA A PÁTRIA..., 17/04/1949, p. 8. grifos meus). De modo
semelhante, em junho deste mesmo ano, o arcebispo inicia uma campanha pela
moralização da imprensa, descrita por A Manhã como tendo por finalidade se opor “a
dissolução familiar” (COMBATE SEM TRÉGUAS À CORRUPÇÃO, A Manhã,
01/06/1949, p. 10). A matéria noticia reunião ocorrida no Palácio Arquiepiscopal com
fins a “estabelecer os pormenores de uma Cruzada cristã contra a má imprensa e a
pornografia que se avoluma cada dia em certos periódicos de pequeno ou grande
curso no seio da opinião pública”. Dentre os tópicos defendidos, a excomunhão a
jornais e seus empregados que noticiarem eventos sensacionalistas “sob pretexto de
existencialismo”, bem como que publicarem trechos ou divulgarem “romances
imorais”. Embora este “existencialismo” aqui pareça estar mais conectado com a
“moda existencial”, é digno de nota a coerência com a ideia de uma “existencialismo
cru e vergonhoso” presente na pastoral de abril.
A vertente intelectual que advoga em prol do existencialismo cristão também
faz parte do libelo católico contra o pensamento de Sartre, principal representate do
existencialismo ateu então. Assim, em Maritain e o existencialismo (A Manhã,
19/05/1949, p.4), coluna assinada pelo político e escritor brasileiro Jorge de Lima,
lemos pensadores católicos alinhados com o pensamento existencial: é possível,
portanto, ser existencialista e cristão. Em linha similar, como será melhor
apresentado no próximo capítulo, são raras as conferências anunciadas no jornal
que digam respeito ao pensamento de Sartre. Discussões que visam o resgate do
valor cristão do existencialismo, como uma série de encontros ocorridos na
Faculdade Católica de Filosofia de Fortaleza em outubro de 1949, são mais comuns
(CONFERÊNCIAS SOBRE O EXISTENCIALISMO, A Manhã, 23/10/1949, p. 10)
O papa combate o exisntencialismo (A Manhã, 10/12/1950, p. 8) discorre
sobre a declaração do Papa Pio XII a representantes religiosos de 30 países de que
é necessário “‘fazer todo o possível para combater a falsa doutrina filosófica
moderna do Existencialismo’”. Poucos meses depois, O grande protesto (UH,
18/06/1951, p. 2) relata que, diante de uma possível visita de Sartre ao Brasil,
diversas congregações religiosas se reuniram em uma frente única de oposição.
Noutra ocasião, A obra de Gabriel Marcel (UH, 13/07/1951, p. 2) noticia a vinda do
pensador francês ao Rio de Janeiro, indicando que se trata de um “existencialismo
católico”, oposto ao de Sartre. A coluna Conferências (A Manhã, 14/07/1951, p. 5)
77
reitera a notícia da vinda de Gabriel Marcel ao Rio. Nesta, lê-se que o então ministro
do Tribunal Superior do Trabalho, Júlio Barata, irá abrir a conferência falando contra
o existencialismo ateu. Por fim, e ainda sobre Marcel, a nota No Brasil destacado
filósofo francês (UH, 17/08/1951, p. 3) é seguida imediatamente – em uma única
caixa de texto – do calendário litúrgico do Rio de Janeiro, o que nos permite levantar
a hipótese de que a própria Igreja pudesse estar por trás de algumas dessas
conferências propagadoras do existencialismo cristão.
A preocupação da Igreja em analisar detidamente todas as diferentes
posições da filosofia moderna é tematizada em A Igreja perante a filosofia (A Manhã,
07/12/1952, p. 4). Mas, uma ressalva, a Igreja analisa as filosofias e não os
modismos. Os adeptos do existencialismo, por exemplo, podem ser chamados de
existencialistas, mas jamais de filósofos. Afinal, não é necessário, segundo o autor,
que o Papa o afirme para que se note que o existencialismo nunca poderá ser uma
filosofia e, portanto, não merece ser analisada. O que podemos, no entanto, afirmar
é que, ao invés de indiferença, a Igreja se mostra bastante preocupada com a
filosofia de Sartre, bem como com os demais produtos deste intelectual, no Brasil.
A opinião do papa Pio XII foi muito bem resumida na fala do “rev. padre F.
Leme Lopes S. J. [sic]”, paraninfo da turma de bacharéis em Direito da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro do ano de 1952, e nos serve aqui de
conclusão a este capítulo. Exaltando o comportamento humanitário que espera que
a turma que se graduava demonstrasse diante do mundo, decide ensinar pelo
oposto. Apresenta, então, o existencialismo como o exemplo a ser evitado:
1 A gíria “mora na filosofia”, que intitula a canção de Arnaldo Passos, significa “preste atenção no que
vou dizer”.
79
Levi indica que o existencialismo estava presente na Itália, mas mais como
um modismo, “como quem pôs uma fita no chapéu”, do que como um modo pelo
qual os intelectuais italianos podiam pensar o mundo. O fato de que essa pergunta
tenha sido feita à Levi já é um sinal de que os brasileiros se interessavam por falar
em existencialismo. Mas teríamos ficado por aqui? O existencialismo também não
chegou a se constituir “como verdadeira estrutura do pensamento” no Brasil?
Lembro-me da já citada matéria em que o escritor paraibano Allyrio Meira Wanderley
diz, em 1946, que o existencialismo no Brasil seria mais um dos “nossos ismos de
importação” (QUATRO SÉCULOS..., A Manhã, 14/04/1946, p. 8). A fala de
Wanderley, engrossada pelas teorias do nacional-popular, como visto no capítulo
anterior, pode ser analisada criticamente se nos colocarmos diante da recepção pela
intelectualidade de um produto cultural advindo de outra nação. Afinal, o que temos
é de fato uma “importação” ou há um “processamento” dos elementos
existencialistas em território nacional? E se o que se passa for o segundo caso, isso
é suficiente para falarmos, por exemplo, em um “existencialismo brasileiro”?
É forçoso ressaltar que a dimensão política está presente nesta discussão.
Não mais em seu sentido institucional, foco do capítulo anterior, mas em um sentido
mais amplo, ontológico (LAW, 2009) que, aliás, perpassa todo esse trabalho. O que
está em cena aqui é como a apropriação e a apresentação que a intelectualidade faz
do existencialismo e de produtos culturais e ele atrelados dão ou não visibilidade,
promovendo certos modos de ser em detrimento de outros. Neste ponto, é
importante indicar que há sobreposição de temas em algumas matérias e, portanto,
retomaremos textos apresentados no capítulo anterior quando forem importantes
para a discussão empreendida aqui. O mesmo se dará em relação aos textos do
terceiro capítulo.
Estruturei a apresentação que segue em torno de duas grandes áreas:
80
2 Embora seu nome seja, nos dias de hoje, mais comumente grafado como Ciro, manterei a grafia
utilizada unanimemente no jornal.
81
SUBTOTAL 172
possibilita admitir, por vias indiretas, que há divulgação das obras de Sartre em um
meio letrado, que saberia sobre aquilo que ele vinha falar em suas conferências. O
escritor da Academia Francesa de Letras nos deixou um rastro interessante: há uma
espécie de “mundo invisível” – ao menos para A Manhã - em que Sartre e sua
literatura – nada posso afirmar ainda sobre sua filosofia – percorria pelas ruas da
capital nacional.
Quão invisível era esse mundo? Essa nova curiosidade me motivou a
pesquisar em todos os jornais cariocas disponíveis na Hemeroteca Digital Brasileira
pelo termo Sartre. Encontrei possíveis 19 matérias entre 1930-40, duas das quais
referentes ao pensador francês. Em 12 de agosto de 1938 o Jornal do Brasil
reproduziu uma lista de novos livros franceses, dentre os quais “La Nausée, de Jean
Paul Sartre” (LIVROS NOVOS FRANCESES, JB, 12/08/1938, p. 6); em 02 de
outubro de 1938, Alfredo M. Lage escreveu a coluna O valor do conhecimento
poético (Diário de Notícias, 02/10/1938, primeiro suplemento, capa) em que cita a
obra L’imagination, de Sartre, diretamente em francês, numa exposição bastante
coerente da ideia - tão cara ao filósofo - de intencionalidade da consciência. As
demais 17 ocorrências se dividem entre notícias sobre a saída ou chegada do navio
cargueiro inglês Sartre; sobre o cavalo de corridas Sartre – quase sempre segundo
colocado nos turfes - e a uma falha do sistema de buscas da Hemeroteca Digital,
que reconheceu o termo desastre como se fosse desartre.
Entre os anos de 1940-44, Sartre não é mencionado nos jornais cariocas, só
reaparecendo com a matéria referida de 1945, mais um motivo que acena para a
adequação do recorte temporal dessa pesquisa. Portanto, podemos agora afirmar
que a fala de Henriot e a matéria Chamfort indicam a existência de um mundo que
não é apenas “pretensamente invisibilizado”, mas realmente ignorado pelos jornais
cariocas entre 1938 e 1945. Paralelamente, o escritor Sartre existia para certo grupo
que, por ora, podemos afirmar ser aquele dos literatos e do público frequentados da
ABL e para quem falaria Henriot.
O existencialismo de Sartre vai se tornando gradativamente assunto
incontornável entre a intelectualidade, em um movimento tão rápido que, em 1953, a
coluna Do Rio e do Mundo adverte aos turistas brasileiros com malas prontas para
Paris: “(...) não fale de Montmartre, Champs Elisées [sic] e do existencialismo de
Sartre, porque são motivos batidos e mais do que explorados” (DO RIO E DO
MUNDO, A Manhã, 22/02/1953, p. 4). O interesse por aqui parece tanto que até uma
84
vista do homem concreto – que Monnerot chama de “ponto de vista subjetivo” - para
o existencialismo, ideia presente, por exemplo, em Matérialisme et Révolution
(SARTRE, 1946). Beauvoir (2009, p. 17) afirma que “contra um certo marxismo —
aquele que o PC professava —, ele [Sartre] fazia questão de salvar a dimensão
humana do homem”. O próprio filósofo, a seu turno, menciona, em 1945, na
conferência O Existencialismo é um Humanismo (SARTRE, 1987, p. 3) as críticas
que recebe dos marxistas, dentre as quais justamente aquela acenada por
Monnerot: “partirmos da pura subjetividade [...] o que me tornaria incapaz de
retornar, em seguida, à solidariedade com os homens que existem fora de mim (...)”.
Isso denota que, longe de ingênuo, o filósofo francês está ciente das tensões
existentes entre ele e marxistas. Aliocha Wald Lasowski (2011, p. 9) escreve de
maneira acertada que “entre violência e amizade, os comunistas são para Sartre
interlocutores políticos privilegiados”.
O primeiro artigo em jornal escrito por um brasileiro apresentando de modo
panorâmico o existencialismo de Sartre é o já citado texto de Gustavo Barroso
publicado em junho de 1948 em A Manhã. Barroso, imortal brasileiro, define o
existencialismo como “uma doutrina de decadência burguesa, nascida logo após a
segunda guerra mundial”, uma “pretensa filosofia” (A FILOSOFIA
EXISTENCIALISTA, A Manhã, 01/06/1948, p. 4). Embora nem todas as opiniões
concordem com a de Barroso, suas críticas, em geral, permanecem. Horácio Lafer,
por exemplo, vira notícia quando recebe o título de doutor honoris causa da
Universidade de São Paulo. No discurso que fez quando da cerimônia de
homenagem, afirma que, na tentativa moderna de solucionar a tensão entre
idealismo e realismo, incorreu-se no existencialismo, espécie de irracionalismo “de
consequências imprevisíveis” (LAFER, DOUTOR “HONORIS CAUSA” DA
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, UH, 13/08/1951, p. 8). Noutra ocasião, a coluna
Maritain e o Existencialismo (A Manhã, 19/05/1949, p. 4), assinada pelo poeta Jorge
de Lima, comenta a posição do filósofo Jacques Maritain acerca do existencialismo
de Sartre no Congresso de Filosofia católico realizado em Roma. Pensador néo-
tomista, Maritain foi protestante e se converteu ao catolicismo por influência de
Bergson. Sua postura diante do existencialismo de Sartre é, segundo Jorge de Lima,
“a mais corajosa e compreensiva”, uma vez que para os demais pensadores
católicos o “movimento existencialista [é] ora uma espécie de Confederação Mundial
de exibicionistas e obscenos, ora uma escola meramente literária”. A proposta de
87
4 O texto de Lima é reprisado, com alguns pequenos cortes, em 07 de junho de 1950, também em A
Manhã, com o título de À Margem do Existencialismo. Não raras são as ocasiões em que este
periódico repete colunas inteiras sem qualquer indicação de que o faz.
88
(...) tudo se resume em conservar a vida e tirar dela os prazeres que pode
proporcionar. Para isso, entretanto, é preciso que o indivíduo se liberte do
seu falso ‘eu’, que adquiriu com os hábitos, a educação e as ideias do seu
século e volte ao seu ‘eu’ primitivo, pura massa existencial, vazia de
significação porque desobrigada de compromissos (...) (O
EXISTENCIALISMO – UMA RELIGIÃO, A Manhã, 12/09/1950, p.4)
A liberdade, tão cara ao existencialismo de Sartre, fica com uma cara tão feia
que imagino que o próprio filósofo iria abdicar dessa noção caso a encontrasse por
aí com tal forma. A discussão sobre o engajamento do escritor na introdução já nos
permite afirmar, sem mais, que a ideia de que o existencialismo de Sartre defende
uma liberdade “desobrigada de compromissos” é equivocada. Já a compreensão de
que esta filosofia pretende, ao valorizar a vida, tirar dela todos os prazeres e apenas
isso, está mais afinada com a “moda existencialista” do que com a filosofia de Sartre,
como veremos no capítulo seguinte. A liberdade de Sartre é, por assim dizer, tão
engajada quanto sua escrita: ela se exerce apenas em situação e em diálogo com
esta.
Diante de críticas ferrenhas e, ao mesmo tempo, pouco embasadas, é um
alívio encontrar um texto como o de Heitor Moniz, A posição política de Sartre,
publicado por A Manhã em 05 de novembro de 1950. O primeiro parágrafo já é
suficiente para recobrar meu ânimo após os textos de Jorge de Lima, Mario Salviano
Silva e Gustavo Barroso. Moniz era jornalista, foi convidado a formar o gabinete do
Ministério do Trabalho estadonovista quando da criação desse órgão e tornou-se,
mais tarde, diretor do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) da ditadura de
Vargas. Em seu texto, comenta a noção de engajamento de Sartre e, além de ser a
89
5 Este trecho é integralmente repetido em outra coluna de Canabrava alguns meses mais tarde.
Aventura metafísica no mundo da arte (A Manhã, 14/04/1946, suplemento literário, capa) parece,
embora isso não seja admitido, uma combinação das já citadas colunas de sua autoria de janeiro e
março/1946, Introdução à linguagem da filosofia (A Manhã, 06/01/1946, p. 2) e As palavras em
Joyce (A Manhã, 10/03/1946, suplemento Letras e Artes, capa).
94
Euríalo Canabrava não aceita, mas a leitura em conjunto das colunas que publicou
permitem considerar esta uma hipótese bastante provável.
A última aparição de Euríalo Canabrava nos jornais relacionado ao
existencialismo é, no mínimo, uma excelente “fofoca histórica”. Até os dias de hoje,
os Colégios Pedro II, espalhados por alguns bairros da cidade do Rio de Janeiro, em
Duque de Caxias e em Niterói, são escolas de referência na rede pública da
Educação Infantil ao Ensino Médio. No ano de 1952, mais que referência nesse
nicho educacional, a instituição concorria com universidades conceituadas pelo
interesse de profissionais não menos conceituados do que as tais instituições. Tanto
era que o processo seletivo para uma cadeira era muito similar a uma seleção para
cátedra universitária na atualidade. Segundo a reportagem Matéria, espírito e justiça
acendem a rixa dos filósofos (UH, 23/09/1952, p. 2), eram esses “os ‘rounds’ da
batalha” de seleção: prova escrita, prova oral - “cerrado tiroteio de perguntas” -,
prova de títulos e, por fim e ao invés da fatídica “prova de aula” dos dias de hoje,
uma defesa de tese. Sim, os candidatos deveriam escrever uma tese
especificamente para o concurso e a mesma deveria ser defendida diante da banca
de seleção. Mesmo com todas essas etapas, algumas delas eliminatórias, como
indica a referida reportagem, havia espaço para dissensos. Em 1952, Canabrava
protagonizou, ao lado de Júlio Barata, uma rixa pela cátedra de filosofia da dita
instituição.
Júlio Barata, como vimos no capítulo anterior, foi um dos conferencistas na
ocasião da vinda de Gabriel Marcel ao país, em 1951. Neste ano, ele era nada
menos que ministro do Tribunal Superior do Trabalho da gestão Dutra. Em 1952,
participava, com Euríalo Canabrava e outros “rivais”, da seleção para o Colégio
Pedro II. Assim noticiou UH sobre o processo seletivo:
7 Bibliothèque rose é uma série de livros infanto-juvenis da editora francesa Hachette, lançada em
1856. O nome provém da capa rosada das edições. A expressão usada por Barata significa que a
literatura existencialista é uma “biblioteca rosa às avessas”.
96
A tese de Barata, que, como nos diz a reportagem de UH, teve vantagem
sobre a de Canabrava, hoje soa como um libelo anti-existencialista que carece –
embora cite inúmeros textos de Sartre – de um olhar menos apaixonado para a obra
do filósofo. Não que a paixão seja maléfica ao pensamento – penso que este
trabalho é, ele próprio, fruto de um encantamento -, mas Barata deixa de lado os
dados da filosofia de Sartre, deturpando-os para que encaixem em sua concepção
de uma filosofia ideal, mais moralista do que ética. Enfim, deixemos o concurso do
Colégio Pedro II de lado, bem como seus candidatos. As opiniões de Dinah Silveira
de Queiroz sobre o existencialismo de Sartre também pedem que sejam “colocadas
na balança”.
“Meu caro Camus: nossa amizade não era fácil, mas eu a lamentarei. Se a
rompeis hoje, é sem dúvida porque ela se deveria acabar mesmo. A
amizade – ela também – tende a se tornar totalitária. Será necessário o
acordo total, ou a briga, e os próprios sem-partido nela se comportam como
os militantes de partidos imaginários. [...] A nossos inimigos comuns, que
são legiões, nós nos prestaremos a fazer rir. Isso é que é certo...” (CAFÉ DA
MANHÃ, A Manhã, 02/11/1952, p. 4; 7).
8 Este texto, aliás, é reprisado na íntegra em Esvaziam-se as palavras (A Manhã, 18/06/1948, p. 4).
9 Texto também reprisado, sob o título de A vida supera os esquemas (A Manhã, 02/02/1950, p. 4).
Essas duas reprises aqui indicadas reforça a constatação de que esta é uma prática corrente do
periódico: a retomada de textos antigos sob novo título e sem menção ao fato de que são repetições
integrais de conteúdo anteriormente publicado.
Sua obra La princesse des Clèves é considerada um romance inaugural da literatura moderna na
13
lado a estética. Minha leitura da proposta de Sartre é que ela pesa como uma
condenação, tal qual a liberdade, tornando assim a não escolha uma escolha: não
impregnar-se de política não é uma opção para a arte, pois toda a arte é política.
Não se trata de prefixar uma finalidade ao texto ou à obra de artre, mas de
reconhecer que há política em qualquer ato, sendo a ação preponderante daquele
que escreve a sua própria escrita. O texto de Cyro não concorda com minha leitura,
definindo um limite para garantir o caráter estético da arte: opta pela ideia de
“espontaneidade”, afirmando que “uma das leis supremas da criação artística será a
da espontaneidade. Havendo fim prefixado, teremos obra didática, obra política,
atividade de natureza diversa, e não obra de arte” (NOTAS DE LEITURA, A Manhã,
02/02/1947, p. 4).
A obra Qu’est-ce que la littérature? se torna incontornável para discutir o
tema, que é retomado por Cyro em uma sequência de quatro artigos publicados
semanalmente entre 25 de junho e 16 de julho de 1950 sob o título de A criação
artística. Em todos esses textos, o colunista segue a mesma linha das duas colunas
intituladas O Existencialismo. Se nestas apresentava resumidamente o livro O
Existencialismo é um Humanismo, naquelas resenha o conjunto de textos que
compõem a obra de Sartre sobre a função do escritor, do leitor e da literatura. Por se
tratar, novamente, de resumo “duro”, sem intervenções de Cyro, irei me ater aqui aos
poucos momentos nestes quatro textos em que o autor emite suas opiniões. No
primeiro deles (A CRIAÇÃO ARTÍSTICA XVIII, A Manhã 25/06/1950, p. 4), diz que
Sartre, ao contrário de Kant, entende que a arte deve ter uma finalidade, qual seja a
de um engajamento em partidos políticos. Até este ponto, espero que já tenha ficado
clara minha discordância quanto a essa interpretação da proposta de Sartre. Na
segunda parte de seu texto (A CRIAÇÃO ARTÍSTICA XIX, A Manhã, 02/07/1950, p.
4), critica o filósofo por entender que a ideia de engajamento é da ordem da
“algaravia existencialista”, mais uma forma de se fazer aparecer do que uma
verdadeira defesa coerente de ideias. Nessa linha, escreve no terceiro texto (A
CRIAÇÃO ARTÍSTICA XX, A Manhã, 09/07/1950, p. 8) que “Sartre [...] perde toda a
objetividade e fica a embriagar-se com palavras”, buscando suporte em Euríalo
Canabrava, para quem, como visto, o existencialismo usa uma linguagem confusa
para iniciados (INTRODUÇÃO À LINGUAGEM DA FILOSOFIA, A Manhã,
06/01/1946, p. 2). Disso, conclui que Sartre é meramente um “filósofo do Café de
Flore”, o que me remete à citada problemática da separação que o filósofo francês
107
2.2.1 Conferências
14O título correto seria Le Canada Français d’aujourd’hui, que significa O Canadá francês na
atualidade.
110
2.2.2 Teatro
em específico, não poderia ficar de fora das salas da cidade. Indício desse interesse
geral dos cariocas pelos palcos franceses são matérias como Promete ser brilhante
a temporada dramática de 1950-1951 (A Manhã, 12/12/1950, p. 4) e As estrelas (do
teatro) (UH, 03/10/1951, segundo caderno, capa), que traçam um panorama das
estreias da temporada teatral parisiense. Essas reportagens, menos do que matérias
turísticas, tem um tom de expectativa quanto aos espetáculos que, esperava-se,
estreariam também no Rio.
Outro indício dessa relação é a temporada anual de comédia francesa
ocorrida na capital federal. Numa dessas temporadas que, no ano de 1948, a peça
Huis clos fez parte do repertório importado com a Companhia Francesa de Comédia
(TEMPORADA DE COMÉDIA FRANCESA, A Manhã, 09/06/1948). O público alvo do
evento, que teve início em 21 de junho, pode ser inferido por dois detalhes: o palco
utilizado - o do Teatro Municipal - e o idioma das representações – o francês. Em 20
de junho, noticia-se a estreia da temporada para o dia seguinte (COMPANHIA
FRANCESA, A Manhã, 20/06/1948, p. 8), com as peças Huis Clos e Double
inconstance, de Marivaux, iniciando os trabalhos. Em 23 de junho, sabemos da
decepção do público: as peças de Sartre e Marivaux não foram as primeiras a ser
representadas como prometido, mas sim “Le fleuve etincelant”, de Charles Morgan
(A Manhã, 23/06/1948, p. 5). De qualquer modo, o crítico considerou essa peça um
“presente” e se contentou com o fato de que as peças desejadas estreariam nesta
mesma noite de 23 de junho. Como foi o espetáculo de Sartre? Eu adoraria saber,
mas nenhum comentário foi lançado em A Manhã e UH. Curioso, pesquisei em
outros jornais e não encontrei novidades. No Diário de Notícias, a última propaganda
do evento é em 06 de julho de 1948. Em A Noite, periódico do mesmo grupo de A
Manhã, consta que a peça foi traduzida para o português por Cyro dos Anjos e seria
encenada no nosso idioma (TEATRO, A Noite, 22/06/1948, p. 6), mas não consegui
encontrar confirmação disto nem em outros periódicos nem em textos que versam
sobre a produção de Cyro. A Noite também demonstra descontentamento com o fato
de que a abertura da temporada não ocorreu com as peças de Sartre e Marivaux
(PRIMEIRAS TEATRAIS, A Noite, 24/06/1948, p. 6). Enfim, nada que indique como o
espetáculo foi recebido na capital federal.
Em 1949, outra companhia francesa, a Compagnie d’Art Dramatique
(Companhia de Artes Dramáticas), vem ao Rio para uma temporada no teatro do
Hotel Copacabana Palace. Novamente Huis Clos é encenada e não há referência à
115
Sua primeira peça de grande sucesso foi “La P... Respectueuse”. “Huis
Clos”, inferior sob o ponto de vista teatral, é uma obra literária de grande
fôlego. Depois apareceu “Les Mouches”, que, no meu fraco entender, é
obra-prima do francês, que talvez tenha morrido mesmo em Belém...
(MORTO OU VIVO!, UH, 04/04/1952, p. 4. grifos meus)
Falava-se que uma refletia a outra, que a literatura era popularização das ideias
filosóficas ou, mais sofisticadamente, que essas produções mantinham coerência
com o todo da obra de Sartre. Essa variações não incluíam a opinião de que “Sartre
nunca fez de seu teatro tribuna das ideias defendidas nos seus livrinhos de
filosofia”, sendo esta aqui a primeira vez que tal opinião é expressada, o que entra
para o rol das informações distorcidas deste texto. O que nos importa aqui,
entretanto, é um outro trecho, em que o jornalista afirma que Sartre, tendo ou não
morrido em Belém, tem afinidades com o Brasil e que se chegou a anunciar,
falsamente, que ele viria ao país. Depois da circulação desta falácia,
deixa uma pista que encerra a questão: comentando o factoide de que Sartre teria
morrido em Belém, o jornalista afirma que não se tinha notícias de que o filósofo
tinha vindo “nem no Rio, quanto mais no Pará...”, ressaltando sua opinião sobre a
capitalidade da cidade. Penso o quanto a matéria, pelos diversos desencontros de
informação, parece ter sido escrita sem verificação dos dados afirmados e o quanto
a opinião do repórter sobre o Rio de Janeiro pode ter feito com que transmutasse a
confusão de Pirituba para o bairro de Copacabana. Ainda assim, verifiquei em três
periódicos cariocas se a reportagem de UH estava certa. Diário de Notícias, Diário
da Noite e Diário Carioca não noticiaram nenhuma divulgação do espetáculo no
Distrito Federal, mas comentários elogiosos sobre a empreitada do TBC em São
Paulo. De todo modo, podemos dizer que o espetáculo estreou no país, mas, ao que
tudo indica, restringiu-se à plateia paulista ou àqueles que puderam ir à cidade
conferir o espetáculo. Não há também registros de que tenha sofrido com a censura,
sendo o texto citado de Sálvia Coelho no Caderno Mais! outro indicativo de que não
houve proibições à peça.
Cronologicamente, após Huis Clos o próximo espetáculo de Sartre a ser
divulgado no Rio de Janeiro é La Putain Respectueuse. A matéria “La Putaine [sic]
Respectueuse”, uma das obras mais representadas em todo o mundo, estreará
sexta-feira, dia 5, no Teatro Fênix (A Manhã, 02/11/1948, p. 5) é a primeira a
mencionar o espetáculo. A nota afirma que essa é a “primeira oportunidade de
apreciar em teatro uma obra de Jean-Paul Sartre”, o que sabemos não ser verdade,
já que em 1946 houve apresentação de Les Mouches e em junho de 1948, de Huis
Clos. O trecho pode ser compreendido se nos lembrarmos de que, nestes dois
casos, a peça foi representada no idioma original, sendo então esta representação
de A prostituta respeitosa realmente a primeira vez em que um texto de Sartre
seria encenado em português. A tradução ficou a cargo de Miroel da Silveira,
diretor e critico teatral, sendo esta a mesma versão do texto que conhecemos até os
dias atuais. A encenação ficou a cargo das companhias de Sandro Polônio, do
Teatro Fênix e da companhia do teatro Maria Della Costa. O investimento no
espetáculo parece ter sido grande, afinal duas notas são publicadas em A Manhã em
um só dia. Assim, à página 5 leu-se que “a companhia de Sandro [Polônio, diretor
teatral] continuará [...] no [Teatro] Fênix, pois já está sendo ensaiada a famosa peça
de Sartre ‘A respeitosa prostituta’, com Olga Navarro no personagem principal” (“A
RESPEITOSA PROSTITUTA”, A Manhã, 02/11/1948, p. 5). Reforçando a percepção
119
Les mains sales, a peça considerada “pueril” por Dinah Silveira de Queiroz
(SARTRE E A GARRAFINHA, A Manhã, 04/06/1950, p. 4), aparece pela primeira vez
no jornal A Manhã em agosto de 1948, como atividade extra após a já citada
conferência sobre o Canadá francês (CONFERÊNCIAS, 19/08/1948, p. 5). Essa
mesma montagem volta a ser encenada em setembro de 1949 (MUNDO SOCIAL,
23/09/1949, p. 5), no Teatro Ginástico – atual SESC Ginástico, no centro do Rio de
Janeiro. Em outubro de 1949, outra nota registra que o espetáculo foi encenado
também no início de outubro (SUAREZ MENDOZA, A Manhã, 01/10/1949, p. 5) e, no
dia 12 do mesmo mês, lê-se que “para atender a numerosos pedidos, a peça de
Jean-Paul Sartre ‘Les Mains Sales’ será representada pela terceira e última vez, em
francês, no domingo 16 de outubro” (“LES MAINS SALES” DE JEAN-PAUL
SARTRE NO TEATRO GINÁSTICO, A Manhã, 12/10/1949, p. 5. grifos meus). Desta
vez, podemos ter certeza de que a peça não apenas foi anunciada com o título
original, mas também que foi encenada em seu idioma de origem. Essa
apresentação de 16 de outubro acabou sendo adiada em virtude do adoecimento de
um dos atores (“LES MAINS SALES” NO GINÁSTICO, A Manhã, 14/10/1949, p. 5).
Contudo, não foi a última oportunidade que os cariocas tiveram de assistir ao
espetáculo.
Em 1950, a Companhia Jean Barrault veio à América do Sul para uma
temporada. A Manhã anunciou a chegada da trupe para “catorze de maio vindouro”
(VEM AÍ A COMPANHIA JEAN BARRAULT, A Manhã, 29/04/1950, p. 5). Dentre os
espetáculos que trariam consigo, encenariam “versões francesas de Shakespeare,
até as obras modernas de Jean Paul Sartre”. A peça que veio para a representação
no Teatro Municipal foi anunciada, nessa mesma nota, como “‘Mãos Sujas’, de Jean
Paul Sartre” e, em nova divulgação em 04 de maio, como “‘Les Mains Sales’, de
Sartre” (A TEMPORADA DE COMÉDIA FRANCESA, A Manhã, 04/05/1950, p. 5).
Como venho afirmando, o modo como o nome da peça é apresentado pode ser
indicativo do idioma em que foi encenada e, por conseguinte, do público que pode
assistí-la. Em 01 de junho, já com a temporada da Companhia Jean Barrault em
curso no Municipal, foi novamente anunciada representação da “peça de Jean-Paul
Sartre ‘Les mains sales’”, outro indício de que não houve traduções (“LES MAINS
SALES”, A Manhã, 01/06/1950, p. 5). A coluna Black tie, de João da Ega, descreve a
plateia presente numa das sessões da temporada de 1952 dessa companhia no Rio:
dentre os doze parágrafos que compõem o texto, cinco são ocupados por uma
123
com base em todo o material levantado é que a peça marca a carreira de Bollini, que
continuará sendo referido até 1955 (NOVO DIRETOR PARA “VESTIDO DE NOIVA”,
UH, 05/01/1955, p. 3) como o responsável pela representação deste espetáculo no
TBC.
Quanto ao Rio de Janeiro, a única notícia que se refere a uma apresentação
de Mortos sem sepultura na cidade é homônima ao espetáculo (“MORTOS SEM
SEPULTURA”, UH, 08/11/1954, p. 3). Nesta pequena nota, lê-se que a companhia
amadora Teatro da Coruja estava representando a peça na capital e que sua
próxima apresentação seria no dia 09 de novembro “em homenagem ao Prefeito do
Distritor Federal”, Alim Pedro. Fico imaginando como foi receber um espetáculo de
Sartre, considerado como vimos um autor comunista, como presente de aniversário
em pleno macarthismo e poucos meses após o suicídio de Getúlio Vargas. Será que
os amadores do Teatro da Coruja queriam dizer algo com essa homenagem? Não há
mais registros do espetáculo nos jornais e no período consultado.
O próximo espetáculo de Sartre a ser comentado por estas paragens foi O
diabo e o bom deus, mas, a princípio, não como peça encenada por aqui e sim como
notícia da forte polêmica gerada pela representação deste texto em Paris. Na coluna
de D. Renault, lemos que “Jean Paul Sartre está escandalizando os católicos de
Paris, com a sua nova peça ‘Le Diable et le Bon Dieu’, que tem a duração de quatro
horas e se passa na Alemanha em 1520. A nova obra de Sartre tem atraído
multidões ao ‘Teatro Antoine’” (DO RIO E DO MUNDO, A Manhã, 26/07/1951, p. 4). A
duração do espetáculo, aliás, é o conteúdo principal de uma pequena crítica
publicada ao final da coluna Black-Tie, de João da Ega, em UH, em abril de 1952.
Informa a coluna que Bernardo Silveira, membro da alta sociedade carioca, afirmou
ter visto Le diable et le bon dieu em Paris e que “com muita propriedade declarou
que não há peça capaz de resistir a quatro horas de exibição” (BLACK-TIE, UH,
30/04/1952). Este é o último texto que se refere a essa peça de Sartre nos jornais
pesquisados e, portanto, podemos afirmar que a peça não estreou na capital federal
até 1955.
Por fim, Nekrassov, de 1955, foi anunciada em UH na nota um tanto quanto
“desavisada”, Nova peça de Sartre (UH, 08/06/1955, p. 2). Desavisada porque a
peça estreou nesse mesmo dia, 08 de junho, no Teatro Antoine, ao passo que a nota
de UH informa, no melhor estilo “disseram por aí”, que “uma nova peça de Jean Paul
Sartre [...] será apresentada este mês (...)”. Diz ainda que “como sempre, as
125
2.2.3 Literatura
jovens escritores, Jean Paul Sartre e Albert Camus, prenderam por sua vez
a atenção geral. Colocados diante do impasse que a autora de “Rivages du
Néant” [Denise Fontaine] havia denunciado por sua própria morte,
proclamavam eles também, com uma sóbria elegância, a inadaptação
fundamental do homem ao universo. Portanto, como aceitavam viver, não
sem surpresa para sua inteligência, o fato de existir lhes parecia um fim em
si e a única certeza em que o espírito se podia apoiar. Assim surgiu o grupo
“existencialista”, ao qual se filiaram Simone de Beauvoir e Marguerite Duras
(...) (CRÔNICA LITERÁRIA DE PARIS, A Manhã, 23/12/1945, segundo
caderno, capa)
citada.
Em 29 de maio de 1949, a primeira propaganda da literatura de Sartre. Em
Existencialismo Sartre, uma pequeníssima nota aqui reproduzida integralmente,
lemos que “Acaba de sair o novo livro ‘A Idade da Razão’, do mesmo autor d’‘O
Muro’, o mestre do existencialismo. À venda nas boas livrarias ou pelo telefone 42-
7535” (A Manhã, 29/05/1949, p. 10). De modo similar, mas sobre lançamento literário
parisiense, lemos em O livro pelo preço quase de um maço de cigarros (UH,
10/07/1953, p. 6), que na capital francesa está saindo “de formato cômodo, em capa
de verniz plástico, as obras-primas da literatura contemporânea francesa e
estrangeira [...] ao preço de 150 francos o exemplar. Livros que serão, a um só
tempo, baratos e duráveis”. Dentre os lançamentos da coleção figura o texto teatral
de As mãos sujas de Sartre, mas sem destaque no texto de UH.
A relação do filósofo com a literatura é evidenciada na extensa matéria Sartre,
seus hábitos e suas atitudes: como o filósofo responde a um inquérito literário (A
Manhã, 25/03/1951, suplemento Letras e Artes, p. 4), sobre a entrevista concedida
pelo intelectual à revista Les Nouvelles Literaires, mas, novamente, sem referências
diretas aos livros de Sartre publicados. Em “Sartre é um criminoso” (UH, 03/01/1955,
p. 3), que relata conversa do jornal com o escritor italiano Gian Passeri, a lógica da
aproximação do nome de Sartre com a literatura sem citar obras do intelectual entre
em cena novamente. A diferença aqui é que Passeri afirma que a literatura de Sartre
“é de evasão, inteiramente inumana”.
A publicação de Sartre no Brasil entre 1945 e 1955 engloba apenas três
livros: O Muro e A Idade da Razão, ambos pelo Instituto Progresso, de São Paulo,
em 1948 e 1949, respectivamente, e Entre quatro paredes, em 1950, também em
São Paulo, mas pela Revista dos Tribunais16. Esse quantitativo reduzido poderia
justificar a ausência de comentários nos jornais, mas o que dizer das peças que não
estreiam por aqui e são comentadas? Ou então dos filmes que, como veremos
adiante, são apresentados, embora não sejam lançados? É de se estranhar que, por
exemplo, A Náusea, livro que provoca intensos comentários em Paris na época de
seu lançamento, em 1938, não apareça ao lado do nome de Sartre como sinônimo
de sua literatura.
Por fim, decidi verificar exclusivamente a fortuna crítica desta obra em A
2.2.4 Cinema
17 Refiro-me à Apologie pour le cinéma: defénse et illustration d’un Art International (SARTRE, 1990a).
132
defende o cinema. Cabe ressaltar que, até então, a sétima arte era vista com
ressalva pelos meios acadêmicos e por parte da elite. A possibilidade de pensá-la
como forma estética nos meios intelectuais iniciada por Kracauer na Alemanha no
início da década de 1920 apenas começava a ganhar espaço (KRACAUER, 2009).
Portanto, é compreensível o escândalo causado por Sartre na ocasião, ao dizer que
o cinema era “realmente uma arte” ou, ainda, que os pais dos alunos poderiam “ficar
tranquilos: o cinema não é uma escola perniciosa” (COHEN-SOLAL, 2008).
Como afirmei na introdução, em 2012, nos quatro meses em que pude
pesquisar em Paris, me deparei com roteiros cinematográficos cuja existência
desconhecia. Dentre os exemplares mais conhecidos no Brasil dessa produção de
Sartre para o cinema, estão: o roteiro Freud (SARTRE, 1986), encomendado pelo
cineasta norte-americano John Huston e, justamente, Os dados estão lançados,
encontrado em edição de 1995, da Papirus, que não faz referência ao fato de se
tratar de um roteiro cinematográfico. Encontrei ainda, dentre outros: Typhus
(SARTRE, 2007b), Joseph Le Bon (cujas anotações - o roteiro não chegou a ser
finalizado - foram organizadas por Gilles Philippe e Vincent Coorebyter e lançadas
em 2006), Les sorcières de Salém (filme de 1957 em que Sartre adaptou a peça de
Arthur Miller) e com um projeto de adaptação de Huis Clos no qual a câmera atuaria
em cena como o olhar de uma das três personagens centrais (SARTRE, 1973, p.
24). Também “descobri” a produção cinematográfica baseada nesses roteiros ou nos
romances e peças de teatro sartrianas. Les Jeux sont faits (1947), dirigido por Jean
Dellanoy; La p... respectueuse (1952), dirigido por Marcello Pagliero e Charles
Brabant, adaptado da peça homônima; Les orgueilleux (1953), de Yves Allegrét,
inspirado no roteiro Typhus de Sartre (2007b), que não deixou seu nome figurar nos
créditos; e Huis Clos (1954), a já citada adaptação da peça teatral homônima,
dirigido por Jacqueline Audry.
No Rio de Janeiro, como já vimos, Les jeux sont faits passa despercebido, o
que é digno de nota não necessariamente por se tratar de um roteiro de Sartre, mas
sim por ser um filme de Delannoy. Mantendo conosco o dado de que o filme Les jeux
sont faits foi lançado em 02 de julho de 1947, vamos resgatar um pedaço da carreira
desse diretor e como ela chegou ao Brasil nesse período. Entre 1946 e 1949,
Delannoy lançou três filmes: La Symphonie Pastorale (1946), Les jeux sont faits
(1947) e L’Eternel Retour (1948). Em abril de 1949, a matéria O resultado do pleito
da A.B.C.C. (A manhã, 01/04/1949, p. 10), indica que a Associação Brasileira de
133
Críticos de Cinema (ABCC) conferiu o terceiro lugar de melhor diretor para Delanoy
e o segundo lugar de melhor filme estrangeiro para o seu Sinfonia pastoral. Em
11 dezembro do mesmo ano, L’eternel retour (Além da vida, em português) é
lançado, saltando a produção de 1947, o filme baseado no roteiro de Sartre. Não
acho que esse salto seja ocasional. As distribuidoras de filmes franceses no Rio
naquele período eram duas: França Filmes do Brasil e Art Filmes e, juntas,
conseguiam inserir um grande volume de obras francesas nas salas cariocas. A
atuação dessas empresas é tão expressiva que conseguem espaço nos jornais,
inclusive, como no caso de Martine Carol a ser comentado no próximo capítulo. em
que uma coluna é cedido à atriz como modo de torna-la mais conhecida pelo público
brasileiro. Penso que seria natural apresentar as produções de Delannoy em
sequência e trazer em 1949, o filme de 1947, assim como em 1948 se trouxe o filme
de 1946, mas há uma opção por saltar Les jeux sont faits e trazer L’eternel retour,
obra mais recente. Os únicos que tiveram a oportunidade de ver a película de
Delannoy com roteiro de Sartre, mesmo que de modo significativamente tardio,
foram os críticos de cinema e sócios do Clube de Cinema do Rio de Janeiro (CCRJ).
Na segunda-feira, 11 de julho de 1955 (!) o filme foi exibido em sessão exclusiva. No
anúncio, em UH, lemos que o filme é “uma história escrita especialmente para o
cinema pelo escritor Jean Paul Sartre” (“CLUBE DE CINEMA DO RIO DE JANEIRO”,
UH, 08/07/1955, segundo caderno, p. 3). A estratégia do “salto” funciona como um
controle do regime expectatorial: sendo o cinema uma arte popular, a não exibição
de um filme vale como forme de assegurar que as massas não terão contato com
aquele conteúdo.
. O próximo filme inspirado na obra de Sartre a ser comentado por UH é A
Respeitosa, nome adotado no Brasil para a adaptação da peça La putain
respectueuse para o cinema. Em 1952, ano de lançamento do filme, que foi dirigido
por Marcello Pagliero e Charles Brabant, a matéria Figueroa, mestre do cinema
mexicano, filmará no Brasil (UH, 26/09/1952, segundo caderno, capa; p. 3), assinada
por Vinícius de Moraes relata um pouco do Festival de Cinema de Veneza daquele
ano. A Respeitosa participa do festival e o poetinha nos conta o que achou da
película.
No dia seguinte, Vinícius reitera sua opinião, embora de modo mais sucinto.
Afirma em Um gato que fuma e usa óculos ‘mefistofelinos’ [sic] (UH, 27/09/1952, p.
9) que “‘A P... Respeitosa’ de Marcelo Pagliero (um filme mal realizado, mas de forte
conteúdo social)”. Nesta ocasião, o diplomata usa outra tradução, mais literal, do
título do filme, originalmente chamado de La P... Respectueuse. Se no dia anterior
Vinícius escrevia sobre A respeitosa, parecia antever o título que seria adotado no
Brasil quando de sua estreia por aqui. As duas matérias de Vinícius criam certa
expectativa quanto à obra de Pagliero, que já era conhecido como ator por Roma,
cidade aberta no distrito federal brasileiro. Mas é só em junho do ano seguinte, 1953,
que os cariocas irão ler algo mais sobre a obra do diretor-ator italiano. A coluna Em
foco (UH, 25/06/1953, p. 3) noticia que “‘A Respeitosa’, filme dirigido por Marcel
Pagliero e inspirado na famosa peça de Jean-Paul Sartre também deverá ser
programado para breve”. No entanto, é apenas no dia 28 de setembro deste ano que
encontrei o primeiro anúncio do filme, em cartaz nos cinemas “Azteca, Rex, Leblon,
Rydan [na verdade, Cine Rian] e Odeon”, este último, em Niterói (HOJE NOS
CINEMAS, UH, 28/09/1953, p. 3). O primeiro, localizado na Rua do Catete, ficava a
poucas quadras da residência presidencial; o Rex fica na Cinelândia, próximo ao
Teatro Rival e, assim como o Cine Leblon, existe até os dias de hoje; o Rian era um
dos cinemas mais conceituados da cidade, situado na Avenida Atlântica, em
Copacabana, que estava no auge de seu “principado do mar”; o Odeon, por fim, foi o
primeiro “palácio” do cinema de Niterói, em estilo art déco, ficava no centro, em
frente ao atual Shopping Bay Market. Todas essas salas era consideradas nobres e
cabe notar que nenhuma delas se situa na região industrial do Rio. Não há indícios,
por exemplo, de exibição de A Respeitosa na praça Saens Peña, na Tijuca, também
repleta de salas de cinema como a Cinelândia, ou em outros bairros da Zona Norte,
onde poderia atrair trabalhadores e a população dos subúrbios.
A crítica à película é lançada poucos dias após a estreia, em 01 de outubro de
1953 (“A... RESPEITOSA”, UH, 01/10/1953, p. 3). Considerado “entre fraco e
razoável”, Pagliero e Brabant são criticados por não terem conseguido “aproveitar
135
A Chiquita, moça bacana que veio da Martinica, estava na boca dos cariocas
no carnaval de 1949 e dos europeus no ano de 1952 (CHIQUITA BACANA
CONQUISTOU A EUROPA, UH, 15/09/1952, p. 4). A marchinha carnavalesca havia
sido gravada por Emilinha Borba no Brasil e foi entoada por Linda Batista em um
show realizado na boate parisiense Carroll’s. O curioso é que a tal moçoila
martiniquense era um tanto quanto libertina: se vestia com uma casca de banana
nanica – trajes mínimos! Suficiente para que ela fosse “existencialista”, termo que
não apenas faz referência ao seu modo de se vestir, mas também ao fato de que ela
faz o que bem entende, levando ao paroxismo certa ideia de liberdade que, apesar
de distinta daquela defendida por Sartre, acabou sendo confundinda com seu
existencialismo. Se na canção ela tem “toda razão!”, nas páginas dos jornais
cariocas desta época não é dessa maneira que os existencialista são encarados.
Dentre as 378 matérias levantadas pela pesquisa, 162 (42,8%) trazem noções
que chamarei aqui “de divulgação” em relação ao existencialismo19. Elas não estão
preocupadas em analisar politicamente as ideias de Sartre como aquelas
apresentadas no primeiro capítulo, nem discutir a filosofia, literatura, teatro ou
cinema conectados ao existencialismo sartriano, como no segundo capítulo. Mas,
então, de que elas falam? Divido a totalidade dessas matérias em quatro grupos:
19Este percentual não é absoluto. Há matérias em que mais de um tema ocorre e que, portanto,
podem aparecer em todos os três capítulos. O que indico aqui é que 42% das matérias levantadas
mantém alguma relação com os grupos que apresentarei neste capítulo.
139
Um “culto” diferente, claro, pois seu criador, Sartre, vai “peregrinando de tasca
em tasca até irromper a madrugada”. Assim, essa filosofia toma as ruas e dá corpo a
uma série de costumes. Ainda segundo a matéria – bem informada, diga-se de
passagem – essa “nova moda” teve por base a literatura de Sartre e acabou
dominando a cidade, englobando não apenas certos comportamento, “como toda
seita”, mas também “um uniforme-maneira de se vestir de acordo com as ideias
em causa”. Vejamos melhor do que fala o autor. Ilustrada por fotografias, a figura 3
abaixo nos dá uma visão geral da primeira página da reportagem. As figuras 4 e 5
são detalhes ampliados.
142
Figura 3
Figura 4
Figura 5
143
Por mais que a qualidade das imagens dificulte, ela não impede a
compreensão do conteúdo. Na primeira fotografia (fig. 3) é curioso perceber que
aquele que encabeça a reportagem é o próprio Sartre, imagem que escolho ampliar
(fig. 4), e em cuja legenda se lê “Aqui tem Jean-Paul Sartre, o verdadeiro patriarca
do Existencialismo, numa de suas expressões mais características” (grifos
meus). Descontando-se a impressão um tanto cômica de que Sartre está com um
batom preto (efeito causado, acredito, pela qualidade da fotocópia), sua “expressão
característica” me parece um tanto quanto autoritária, com um gesto indicativo como
quem ordena e se impõem. Afinal, como a própria legenda indica, trata-se do
“patriarca”. Curiosamente, à direita do filósofo (fig. 3), em posição de similar
destaque, vemos Juliette Gréco, considerada – como veremos adiante – a musa do
existencialismo. Penso que a imagem de Sartre encabeçando a reportagem mantém
diálogo próximo com o título, que diz que “Paris perdeu a cabeça com o
existencialismo” (grifo meu). É forçoso perceber o quanto essa relação fortalece a
ideia de que Sartre orienta, coordena - com seu dedo indicador em riste - aquilo que
acontece em torno desse movimento.
Em uma visada geral, pode-se notar a predominância de tons escuros, o que
também não me parece casual. Quem registrou a relação entre existencialismo e as
vestes escuras foi Simone de Beauvoir (2009, p. 164). Ao mencionar como Anne-
Marie Cazalis se aproveitou do interesse da mídia e batizou de existencialista “a
juventude que ficava entre o Tabou e a Pergola”, ela fala de como se deu a
importação de certa moda para esses bares: “Os músicos das adegas e seus “fãs”
haviam descido no verão para a Côte d’Azur; tinham trazido de volta a moda
importada de Capri — ela mesma inspirada pela tradição fascista — suéteres,
camisas e calças negras” (BEAUVOIR, 2009, p. 164. grifos meus). Outro aspecto
dessa moda pode ser percebida na crônica da escritora Terezinha Éboli, Um caso de
exegese literária (A Manhã, 09/09/1950, p. 2): o uso de boinas como referente ao
existencialismo. Conta-nos Éboli que sempre teve desejo de ir à Europa, sonho
que iria realizar em breve. Numa brincadeira com a ideia de que, apesar de poder
viajar para o velho continente, ela é uma mulher modesta, diz que aceita
encomendas e que pode trazer “a boina de algum existencialista autêntico”.
Já no campo do comportamento, a legenda do tríptico (fig. 5) nos dá uma boa
ideia. A imagem central da trinca mostra Sartre com alguns jovens e, uma vez que a
fotografia não fala, temos que nos contentar com a legenda, que afirma que ele
144
conversava sobre “o magno problema da alegria de viver”. Mas, ora, o que vemos
são semblantes sérios, que pouco remetem à tal joie de vivre, o que permite
estabelecer uma ligação com outro trecho da reportagem. Afirma o jornalista que
“quando aparece [o existencialista] traz os olhos ansiosos, como se procurasse um
sonho perdido, sonho que nunca encontrará, pois isso é fundamental na sua
filosofia” (PARIS PERDEU A CABEÇA COM O EXISTENCIALISMO, A Manhã,
18/04/1948, p. 2. grifos meus). Parece então que a “alegria de viver” é ao mesmo
tempo a “alegria que não pode ter”. Talvez seja por isso que o jovem, última imagem
do tríptico (fig. 5), “procura afogar as amarguras da vida em álcool e experiência”.
Afinal, como define Edmundo Gregorian, empresário pioneiro do rádio e do Brasil
que viajou à Paris no início 1950 (A VOLTA DE UM TURISTA SEM PRESSA, A
Manhã, 21/04/1950, p. 8) e foi entrevistado quando de seu retorno, o existencialismo
é “a náusea do absurdo, o absurdo da náusea e a náusea mais o absurdo”.
Sobre a conexão entre esta filosofia e a vida noturna, a reportagem com
Gregorian menciona os “‘bars’ silenciosos que Sartre descobriu”, dentre os quais se
destaca “o endemoinhado ‘Tabu’, já mundialmente conhecido” (A VOLTA DE UM
TURISTA SEM PRESSA, A Manhã, 21/04/1950, p. 8). Os existencialistas são então
descritos como amargurados que seguiam noite à dentro à cata de um bar que os
recebesse, daí o sucesso do Tabou, que ficava aberto até bem depois de 0h. Dentre
outros nomes famosos das “noites existencialistas”, o jornalista menciona a já citada
Juliette Gréco e Ane-Marie Cazalis, escritora e atriz parisiense, amiga de “La Gréco”,
como aquela ficaria conhecida por aqui. Mas nem só de “Tabou” viveram os
“existencialistas”. Saindo de Paris, por exemplo, o turista que visitasse a Côte D’Azur
poderia muito bem “ficar na moda” frequentando o “Caixão de lixo”. Edmundo
Gregorian, ainda ele, foi enviado à Europa por A Manhã em 1948. É sua a assinatura
da coluna Notas de um turista sem pressa na Côte D’Azur (A Manhã, 14/11/1948, p.
6), onde informa que a cada temporada novas boates são inauguradas por lá: “A
última, e que mais sucesso vem conseguindo, é um cabaret existencialista chamado
‘Caixão de lixo’. Nesse ‘clube’ as mulheres se apresentam vestidas com tomates,
rabanetes, cebolas, bananas e repolhos”. Ai, que saudades da Chiquita!
Os cariocas já haviam lido sobre as conexões de Sartre com a “semântica dos
termos políticos” (REVOLUÇÃO SEMÂNTICA NOS TERMOS POLÍTICOS, A Manhã,
12/06/1945, p. 4; 7), sobre a literatura francesa do pós-guerra (A LITERATURA DA
NOVA FRANÇA, A Manhã, 15/09/1945, capa; p. 6), a filosofia existencialista de
145
A fala de Sr.ª Schweitzer - e não Sr.ª Sartre, como supôs inadvertidamente Luiz
Iglézias -, imiscuída na defesa de que todos os dramaturgos mentem, produz uma
realidade: as posições de Sartre no campo da política – tema das peças - são
também um embuste. Neste esforço, em primeiro lugar, Iglézias repete uma crítica
que, como veremos abaixo, é constante nos jornais cariocas: Sartre como cínico,
sádico, repulsivo. Menos comum nos jornais brasileiros é a crítica de que o pensador
é um burguês. Essa ideia pode ser encontrada sendo citada pelo próprio Sartre na já
comentada conferência O existencialismo é um humanismo (SARTRE, 1987),
quando disse que os comunistas criticam sua filosofia de imobilista e, portanto, de
burguesa. Sartre teve que se haver com a classe social da qual emergiu, era
cobrado por isso. Em A Obra de Sartre, Mészáros (2012, Edição Kindle, posição
924) indica que na busca por unidade entre vida e produção, o filósofo “recusa-se a
aceitar a responsabilidade e os encargos da vida de família. Nega-se a ficar preso às
condições do conforto burguês e procura eliminar de sua vida pessoal o dinheiro e
as posses”. O próprio Sartre se definiria mais tarde, como indica Mészáros (2012,
Edição Kindle, posição 6.239. grifos no original), como um “burguês com uma
aguda consciência crítica”.
Cabe à fala da mãe de Sartre, ainda, salvaguardar o papel de bom moço para
seu filho. Ele não era tudo aquilo que os críticos diziam, mas um rapaz de modos
educados – “morigerado” -, caseiro e, principalmente, sem vícios. Podemos inferir,
por essa fala da Sr.ª Schweitzer que seu herdeiro era considerado, no ano de 1946,
na França, o oposto daquilo que ela defende e, portanto, um rebelde, amoral,
assíduo frequentador de bares e boates e viciado. São essas concepções que
veremos neste subcapítulo: aquelas que associam existencialismo a estas
“qualidades” atribuídas à Sartre.
Conteúdo similar foi encontrado no texto Avitaminose Poética, de Sérvulo de
Melo (A Manhã, 20/05/1949, p. 4), em que o jornalista analisa a produção poética
brasileira que, em sua opinião, estava em franco declínio. Para Melo, o Brasil
carecia de motivos para viver essa “avitaminose poética”, ao passo que a França,
onde a produção poética ainda mantinha sua qualidade, tinha motivos de sobra para
ser “decadente em nosso dias, anêmica ou atrofiada”. “Sua juventude poética [da
França] podia apenas ter o olhar ‘flou’, usar ‘slack’ existencialista, os cabelos em
desalinho e praticar todos os vícios”. Melo deixa-nos entrever alguns preconceitos
associados à juventude francesa, mas não chama o conjunto de existencialista.
Parece compreender que a juventude assimilou elementos de um modo de vestir
reputado aos existencialistas, que, por sua vez, soma-se ao vício e ao desalinho.
Mesmo em Paris há alternativas. É o caso, por exemplo, do Café de Flore ou
o La Reine Blanche, ambos em Saint-Germain-des-Prés, indicados como sucessos
parisienses na coluna Venham ouvir minha canção ‘Criole’ (A Manhã, 05/03/1949, p.
2). O título faz referência ao convite que faz a proprietária de um novo espaço, a Sra.
147
Moune de Rivel, que entoava em seu bar no Quartier Latin, a certa altura das noites,
canções da terra de seus pais são-tomenses21. O bar de Moune é considerado
melhor que aqueles por uma única razão: não é existencialista como os dois de
Saint-Germain.
Figura 6
Paris no ano 1951 e, segundo A Manhã (EM SAINT GERMAIN DES PRÉS,
01/11/1951. grifos meus), fez amizade com Sartre. “Desde seis meses atrás, Beatriz
Costa, a portuguesinha que o Brasil adotou, está ocupando sem cerimônia a mesa
do ‘Café de Flore’, em Paris, onde Jean-Paul Sartre compôs antes da guerra o seu
hoje famoso coquetel filosófico chamado ‘existencialismo’”, lê-se na chamada da
reportagem. Embora não possa afirmar categoricamente, imagino que seja também
nesse bairro que o embaixador da Colômbia na França, Augusto Ramirez Moreno,
tenha sido flagrado enquanto “dançava alegre num clube existencialista” (O
EMBAIXADOR ADERIU AO EXISTENCIALISMO, A Manhã, 26/10/1948, p. 2). A
figura de Sartre é diretamente implicada nesse processo. Segundo Sérvulo de Melo,
“já se fala maldosamente em Paris que o grande Sartre ganha mais dinheiro como
elemento de atração em ‘night-clubs’ e ‘boites’ do que com as colossais edições dos
seus livros” (A GLÓRIA E O BAR, A Manhã, 18/03/1949, p. 4).
Por meio dessas notícias, espalhadas ao longo de toda a década aqui
analisada, os “bares existencialistas” vão, pouco a pouco, ganhando ares de atração
turística para os brasileiros. Estabelece-se assim uma ideia que, como minha
experiência pessoal em Saint-Germain me mostrou, persiste até os dias atuais,
mesmo que reelaborada. Luís Antônio Contatori Romano (2002, p. 24-5) comenta
brevemente como, por exemplo, nas matérias publicadas no Brasil na ocasião da
morte da Sartre, em 1980, há ainda resquícios da polêmica em torno desses
estabelecimentos.
partir desse ano nos dois jornais cariocas analisados, é uma oscilação entre
comentários laudatórios – mesmo que indiretamente – e difamatórios sobre a moda
existencialista em Paris. Em 1952, por exemplo, lemos uma “propaganda” de si
mesma enviada por Linda Batista, famosa “cantora do Rádio”. Em turnê pela Europa,
a cantante enviou um telegrama à UH em que noticia que Ali Khan, embaixador da
ONU pelo Paquistão, foi ver seu show e cantou com ela. Na sequência, anuncia: “Já
fui até a uma ‘noite’ existencialista” (ALI KHAN NUM “SHOW” COM LINDA BATISTA,
UH, 27/03/1952). Por se tratar de um telegrama com tons elogiosos sobre sua
carreira, é de se imaginar que Linda Batista achou de bom tom informar que “já”
tinha ido a tal “noite existencialista”. Talvez, Linda ignorasse que nem só de glamour
travestiu-se o noticiário sobre essas noites aqui no Brasil. Neste mesmo ano, a
famosa atriz francesa Arletty passou por São Paulo e Rio de Janeiro e, ainda no
avião que a trazia daquela para esta capital, afirmou que “essa filosofia boêmia [o
existencialismo] contagiou o mundo de maneira assustadora. Mas estão mal
informados os que pensam que Sartre é o estandarte máximo do espírito da
França...” (UM CLIMA DE RENOVAÇÃO CONSTANTE EXIGE A CINEMATOGRAFIA
FRANCESA, UH, 14/02/1952, p. 2). Mais adiante nessa entrevista, a musa
acrescenta que “Sartre é um excêntrico”, ecoando a coluna citada de Dinah Silveira
de Queiroz (REACIONÁRIOS D’ALÉM MAR, A Manhã, 05/11/1947, p. 4). Essas
duas matérias, aquela sobre Linda Batista, que se vangloria de ter ido à “noite
existencialista, e esta em que Arletty fala de Sartre como excêntrico e do “contágio”
existencialista, são bons exemplares da oscilação que indiquei.
A noção de contágio é também presente em outras reportagens, afirmando-se
a existência de um movimento “sartrista” (EM SAINT GERMAIN DES PRÉS, UH,
01/11/1951) ao lado do “existencialista”, tendo aquele um foco mais direto na figura
de Sartre. Antes mesmo de 1951, já se falava do existencialismo como uma religião,
diferenciando-se, contudo, um viés que não é “louco e imoral” daquele que segue o
pensamento de Sartre (O EXISTENCIALISMO – UMA RELIGIÃO, A Manhã,
12/09/1950, p.4). O argumento é de que
Antes de ser uma filosofia, a obra sartriana tem um caráter religioso, porque
se dirige ao sentimento dos homens. ‘As religiões não uniriam os homens –
diz Anatole France na ‘Vida Literária’ – se se dirigissem á inteligência, pois
esta é soberba e ama a controvérsia. Os cultos falam aos sentidos; eis
porque congregam os fiéis’. (O EXISTENCIALISMO – UMA RELIGIÃO, A
Manhã, 12/09/1950, p.4)
150
grande, gente que a gente vê que não vê banho desde a libertação de Paris” (O
CINEMA ESTÁ MORTO, UH, 29/05/1952, p. 12).
Sartre também não escapa a tal oscilação entre comentários laudatórios e
difamatórios sobre a moda existencialista em Paris. Para o bem ou para o mal, sua
figura é tão associada ao universo cultural francês que chega-se ao paroxismo da
metonímia em que se substitui o idioma francês pela expressão “a língua de Sartre”
(UM CAÇADOR DE BORBOLETAS, UH, 26/08/1952, p. 2). Em outra ocasião, uma
matéria não assinada salva o filósofo e sua companheira de vida, Simone de
Beauvoir, da “moda existencialista”. O autor critica o “submundo” parisiense, no qual
inclui os bares e boates existencialistas, mas diz que isso nada tem a ver com “os
responsáveis por toda uma corrente do pensamento moderno, os grandes lúcidos da
atualidade. Não vamos repetir aqui que esses chamados ‘existencialistas’ nada
têm a ver com o existencialismo nem conhecem Sartre” (NEM SÓ DE APACHES
E BISTRÔS VIVE O HOMEM DE PARIS..., UH, 25/11/1955, p. 6. grifos meus).
Opinião semelhante apresentou o político e professor de medicina e filosofia Raul
Bittencourt em 1950, quando regressava da Europa, em conversa com o periódico A
Manhã (TORNANDO MAIS CONHECIDA A CULTURA DO BRASIL, A Manhã,
09/02/1950, p. 2). Bittencourt distingue a moda criada em torno do existencialismo e
os escritos de Sartre, afirmando existir três tipos de existencialismo, “o literário, o
filosófico e o caricatural”. Este nada tem a ver com os dois primeiros, nos quais
Sartre se destaca, embora para Bittencourt nem sempre tenha produzido obras
magistrais. Diferencia, ainda, para o leitor leigo as correntes essencialista e
existencialista: “a base da filosofia Essencialista é a conceituação pelo universo –
isto é, pelo geral, enquanto que a Existencialista se preocupa, preferentemente, com
a validade concreta da existência, particularmente com a vida do indivíduo
humano” (grifos meus). Essa fala de Bittencourt em sua entrevista para A Manhã não
dá conta da complexidade daquilo que está em questão em tal diferenciação. Sendo
interrogado sobre seu livro O Idiota da família, biografia que estabelece sobre
Gustave Flaubert, Sartre distingue noção e conceito, esclarecendo melhor não
apenas aquilo que está implicado na tensão entre essencialismo e existencialismo,
mas também o trabalho que desenvolvo nesta pesquisa. Perguntado se seu livro é
uma obra científica, Sartre responde que não, pois isso implicaria um “rigor
conceitual”, ao passo que
152
As noções são como um corpo vivo: construídas numa dada situação e sobre
algo sobre o que se interessa, em seguida perdem-se e precisam ser novamente
reconstituídas. Daí, talvez, o incômodo causado pela filosofia de Sartre que, como
bem afirma István Mészáros, não pode ser tomada em separado, mas apenas na
interação orgânica entre as diversas noções22 colocadas em cena pelo filósofo
(MÉSZÁROS, 2012, Edição Kindle, posição 1520). Sem isso, corre-se o risco de
acreditar que o pensamento de Sartre é contraditório, maleável segundo as
vontades, dualista, dentre outras críticas, algumas das quais tematizadas pelos
jornais cariocas nos anos aqui analisados. É o caso da reportagem Não viu a Europa
com olhos de turista (UH, 20/07/1951, p. 11), em que Vania Orico, aspirante a atriz e
filha do deputado e imortal da ABL Osvaldo Orico, narra suas “aventuras” no velho
continente. Segundo ela, causa espanto em Paris o fato de que há interesse por
Sartre e Juliette Gréco no Brasil, já que são vistos como figuras míticas e
escandalosas por lá. Sartre é definido, então, como um “péssimo escritor, um
confuso, um vaidoso, querendo criar uma maneira de pensar original”.
Aliás, a ideia de que a maneira de pensar de Sartre é original é também
atacada em algumas matérias. Dinah Silveira de Queiroz, por exemplo, lamenta-se
que o “dano existencialista” já tenha sido causado, e por meio de uma “nova,
velhíssima filosofia” (NAMORADOS, NA PAISAGEM, A Manhã, 15/08/ 1948, p. 8). É
com essa filosofia “velha” que, lamenta-se o escritor espanhol Antonio Botin Polanco
(ALTO E BAIXO COTURNO DO EXISTENCIALISMO, A Manhã, 16/09/1951, p. 4), “o
homem da rua” e “a desornada juventude parisiense” se conforma. No mesmo
sentido, uma nota propagandística intitulada “Filet Mignon” para todos (UH,
06/05/1955, p. 4) anuncia a chegada ao Rio de “mais um presente da ciência
moderna”: o “SALAC”, um produto que tempera e amacia as carnes a uma só vez.
Para justificar a invenção, recorre-se – pasmemo-nos! – à filosofia: a propaganda diz
que Descartes e Sartre “sustentavam que quando se monta uma indústria de
22Mészaros usa o termo “conceitos”, tanto na tradução quanto no original em inglês. Penso que,
seguindo a lógica apresentada por Sartre no texto citado, o uso do termo “noção” é mais adequado.
153
cortadores de papel é porque existe quem [os] compre (...)”. Enquanto Descartes
dispensa introduções no anúncio, Sartre é apresentado como aquele que imita “mal
e porcamente o primeiro”. De modo menos direto, interessa destacar o uso da
filosofia em uma matéria tão prosaica: imagine ler hoje em dia sobre Sartre,
Descartes ou qualquer outro pensador numa propaganda de tempero/amaciante de
carne? Acredito que esse, dentre outros, é um sinal claro do nível de divulgação a
que o pensamento de Sartre atingiu em terras cariocas e brasileiras – embasado
pela ideia de que o Rio é uma cidade-capital (MOTTA, 2004).
Curioso é que, concomitante à balbúrdia que dispersa e promove certa moda
em torno do existencialismo, há também uma série de matérias que afirmam a morte
do movimento na França. É o caso da coluna Primavera em Paris, em que Sérvulo
de Melo escreve sobre sua viagem à capital francesa, afirmando que “nessa
primavera ele [o povo francês] já esqueceu completamente que houve uma guerra
terrível e que Paris esteve ocupada pelo inimigo (...)” e que “não se fala mais em
existencialismo em Paris” (PRIMAVERA EM PARIS, A Manhã, 25/05/1950). Mas o
que dizer, então, da matéria já citada sobre o festival de Cannes assinada por
Vinícius de Moraes em 1952, em que se menciona a juventude existencialista de
Paris (O CINEMA ESTÁ MORTO, UH, 29/05/1952, p. 12)? Ou então, daquela que
anuncia o movimento “sartrista” e que data de 1951(EM SAINT GERMAIN DES
PRÉS, UH, 01/11/1951)? Vinciane Despret (2012) estabelece uma cara distinção
entre “versão” e “tradução”: se optarmos por tomar a versão da moda existencialista
como uma tradução, assumimos que a realidade é unifacetada e não conseguiremos
lidar com a coexistência de diferentes versões sobre esse momento e como ele era
vivido na França. A “cola” que une as versões é sempre provisória e parcial. O que
podemos afirmar é que as versões que advogam a “morte do existencialismo” – no
que seria melhor dizer “da moda existencialista” – começam a aparecer com mais
força a partir de 1950.
“As barbas, as cabeleiras longas e despenteadas, as calças pretas e
apertadas e as sandálias imundas, que eram a característica de Saint-Germain-des-
Prés, estão desaparecendo”, anuncia Haroldo Sieve, jornalista da Agência Periodista
Latino-Americana (APLA)23, em matéria exclusiva para UH (OS
Causa estranheza que Sieve mencione o ano de 1943 como seminal para a
moda existencialista, afinal Paris ainda estava sob ocupação alemã e embora Sartre
e sua filosofia já estivessem nas ruas – a peça As moscas, por exemplo, estreia
nesse ano, bem como é lançado O Ser e o Nada – não muito se falava sobre ela.
Não foi possível verificar nos jornais parisienses se há comentários sobre uma moda
existencialista anterior ao ano de 1947, ano indicado por Beauvoir (2009), ou mesmo
de 1945, quando do mencionado furor causado pela conferência de Sartre O
existencialismo é um humanismo. Os jornais brasileiros aqui pesquisados não
mencionam a existência de tal moda antes do ano indicado por Beauvoir. Sobre o
be-bop e sua relação com o existencialismo, contudo, há uma menção em Morre o
existencialismo na França (A Manhã, 10/11/1951, capa; p. 8). A matéria afirma que o
movimento é alvo apenas de interesse turístico , não mais fazendo parte da vida dos
parisienses. A causa do declínio da moda em Paris: o escândalo em torno do
155
movimento.
Não deve ter sido fácil ser mãe de uma figura tão polêmica quanto Sartre.
Posso apenas imaginar como se sentiria a Sr.ª Schweitzer se tivesse lido o jornal A
Manhã no dia 04 de abril de 1952... Ou melhor, se a notícia ali publicada tivesse sido
reproduzida em algum jornal parisiense. À pagina 3 do referido periódico, a notícia
que poderia fazer Sr.ª Schweitzer desmaiar – ou pior: “Trouxeram” Sartre ao Brasil e
“mataram-no” em Belém... (A Manhã, 04/04/1952, p. 3). Será que ela aguentaria
prosseguir até o subtítulo para compreender que as aspas do título servem
justamente para indicar que tudo não passava de um factoide? Pois segundo A
Manhã, no dia 03 de abril, circulou por Belém, no estado do Pará, a notícia de que
Sartre morreu por lá em um acidente de carro. O jornal procurou a Secretaria de
Segurança, que não confirmou a informação; em seguida, verificou-se a Inspetoria
de Veículos, o Pronto Socorro, o necrotério, as delegacias de cada distrito, todos
sem resposta positiva. Por fim, concluíram que Sartre não apareceu em Belém, nem
ao menos no Brasil, como informou à redação o Secretário da Embaixada da
França.
Desde 1951 era noticiada a vinda de Sartre ao país, que acabou ocorrendo
156
Figura 7
Fato é que mesmo sem ter vindo ao país a presença de Sartre e seu
existencialismo nos costumes e moda brasileiros não aparece apenas em
comentários sobre o movimento na França. Os termos “existencialista” e
“existencialismo” são apropriados em terras tupiniquins e fazem-se presente num
A documentação dessa visita é o tema do livro A passagem de Sartre e Simone de Beauvoir pelo
24
25À diferença das atuais escolas de samba, as sociedades carnavalescas eram formadas por
membros da elite, que se reuniam em um clube. O grupo, durante o carnaval, organizava luxuosos
desfiles pelas ruas da cidade. O remanescente mais famoso na atualidade carioca dessa
sociedades é o Clube Democráticos, na Lapa.
158
crimes eram representados. Assim, podemos admitir que a coluna Rio Alegre indica
que houve crimes “existencialistas” no baile de carnaval do Teatro João Caetano.
O carnaval de 1953 também não careceu de existencialismo, ao menos para
aqueles que podiam entrar no Baile dos Artistas, no Hotel Glória. Em pequena nota
em UH (RONDA DA MEIA NOITE, UH, 07/02/1953, p. 5), lemos que, neste ano, o
baile teria uma sala existencialista. Já na cena momesca de 1952, chegou a notícia,
via Última Hora, que a querida Chiquita fazia estrondoso sucesso em Paris, pela voz
da cantora Linda Batista, que fazia um show no Carroll’s, bar comparado pela
matéria à então boate Vogue do hotel Copabacana Palace (CHIQUITA BACANA
CONQUISTOU A EUROPA, UH, 15/09/1952, p. 4). No período que estive em Paris
pesquisando sobre Sartre, vivi uma experiência incômoda: em todos os espaços da
cidade, até mesmo no bar que ficava logo abaixo do apartamento em que eu
morava, a cada instante podia ser ouvida a canção “Ai, seu eu te pego” na voz do
cantor brasileiro Michel Teló. Não suportava mais ouvir a canção no Brasil e não
esperava encontra-la também por lá. Narro isso pois me identifiquei com o relato que
faz essa matéria.
cena de ciúme havia de marcar a primeira confusão (...)”. A cena prosseguiu até que
o delegado apareceu, “recebera numerosos telefonemas das famílias da vizinhança”,
que pediam alguma atitude “contra uma ‘festa existencialista’” (GRITO DE
CARNAVAL A 90º, UH, 25/01/1954, p. 2). Serge Singer, “cantor existencialista” que
vem ao Rio em 1954 fazer shows na boate do Hotel Glória, Beguin, diferencia
existencialismo e samba. Diante da afirmação de que era existencialista, afirmou:
“Que existencialista que nada... Eu sou é do samba, que é a coisa mais maravilhosa
do mundo” (O SAMBA E O EXISTENCIALISMO, UH, 30/06/1954, p. 3). Estamos
aqui diante de uma versão distinta, em que samba e existencialismo não se
misturam. Talvez ainda faltasse a Serge Singer – nome sugestivo para um cantor,
diga-se de passagem -, poder ver as tais “sereias de Copabacana num qualquer
desfile do Momo. E, por falar em “sereias”, a edição de 28 de novembro de 1948
exibiu pela primeira vez fotografias (figuras 9 e 10) de “modelitos existencialistas”:
Figura 10 Figura 9
161
26O Ser e o Nada – ensaio de uma ontologia fenomenológica é o título completo da obra (SARTRE,
2007a)
27Os anúncios foram publicados em pequenas notas até o final de dezembro. Por serem várias e de
conteúdo quase idêntico, opto por referenciar apenas a primeira, já indicada.
28 Este diário também está disponível na Hemeroteca Digital Brasileira da Biblioteca Nacional.
29Gênero teatral de gosto popular, mistura números musicais, sensualidade e texto bem-humorado,
com algumas pitadas de crítica social. Por haver alguma aproximação das chanchadas do cinema
com o teatro de Revista, aquelas acabam sendo um bom parâmetro na atualidade para
164
existencialista” na história narrada pelo programa indica que a população carioca era
capaz de compreender que tipo de baile era esse.
Em 1952, o UH trazia como manchete a matéria Causou prejuízos à França o
Existencialismo de Sartre (UH, 09/04/1952, p. 6). Focada na vinda ao Brasil do
jovem jornalista Roland Faure, que ganhou o prêmio da Association de Presse
Latine, a matéria relata as impressões dele sobre a França. Faure – que, mais tarde,
chegou a dirigir a rede Radio France, se tornando um jornalista ilustre – comenta
que no Rio e “em qualquer grande capital do continente americano” havia “uma falsa
impressão de Paris”. Ele critica Sartre e Juliette Gréco, a “cantora existencialista”,
afirmando que aquele é um “velho epicurista” e que seu existencialismo trouxe para
a França um tipo de fenômeno alimentado pela depravação, pelo vício e pela miséria
humana. Mas, ressalva, “felizmente, a sua [de Sartre] influência não se fez sentir
ainda aqui profundamente como ocorreu na França”. Depois do que viemos lendo,
fica difícil concordar com Faure. No entanto, em uma coisa ele tem razão: para além
das festas, moda e marketing, o existencialismo é também sinônimo de vício,
depravação, libertinagem. Não que estes sentidos estejam ausentes de algumas das
matérias apresentadas até aqui, mas há um conjunto de ocorrências em que tais
significações ficam mais evidentes. A mais leve talvez seja a esse trecho publicado
em UH:
30 É curioso saber que quem irá “solucionar” a questão da falta d'água na cidade do Rio é Carlos
Lacerda, em sua gestão como prefeito, e que foi ele um dos principais opositores de Varga, bem
como o responsável pelo jornal Tribuna da Imprensa, concorrente do UH.
167
banho, coisa que existencialista não faz, se consideram existencialistas “no duro”?
Prefiro não arriscar uma opção, uma vez que a matéria não fornece elementos
suficientes para tanto.
Além de sujo, “existencialista” poderia ser sinônimo também de enfermidade
psíquica. Na notícia sobre uma conferência do psiquiatra espanhol Dr Lopes Ibor (“O
EXISTENCIALISMO VISTO DO MUNDO DA ENFERMIDADE”, A Manhã,
16/03/1950, p. 7), afirma-se que, embora o existencialismo não seja uma categoria
nosológica, é importante frisar que “nos doentes se encontrem manifestações muito
parecidas às descritas pelos seus [ do existencialismo] filósofos”, o que aponta para
uma relação entre existencialismo e enfermidade. Kierkegaard, por exemplo, é posto
na berlinda, pois padecia “de uma grande melancolia, e o sofrimento lhe
proporcionou filosofar”.
As relações entre ideias pejorativas e o termo existencialista no Rio são
tantas que, em uma enumeração breve, temos os “existencialistas” sendo descritos
como pessoas que: desprezam os demais (PACHA ASCENSO FERREIRA, A
Manhã, 27/05/1951, p. 4); não se importam em viver à margem da sociedade (NA
SUPERFÍCIE DA MISÉRIA, A Manhã, 27/12/1950, p. 4; 8); usam linguagem “crua”,
como no criticado livro de Nilo Bruzzi sobre Casimiro de Abreu, em que o autor diz,
por exemplo, que certa “Luiza não passou [...] de um órgão genital” (CASIMIRO DE
ABREU EM VERSÃO DE NILO BRUZZI, A Manhã, 25/12/1949, p. 2); entreguistas e
sem vontade própria (“AMANHÃ SERÁ DIFERENTE”, UH, 21/12/1951, p. 4);
preguiçosas (PARA A COREIA, NÃO! PARA A EUROPA, TALVEZ!, UH, 21/06/1951,
p. 6).
Festas, moda e marketing, vício, desvios da norma, libertinagem: estes são
sentidos que foram constituindo um existencialismo à brasileira que, embora
encontre paralelos na França e em outros países, é específico da terra brasilis.
Poderíamos ficar com Allyrio Meira Wanderley e acreditar que essa filosofia é, aqui,
apenas mais um “ismo de importação” (QUATRO SÉCULOS..., A Manhã,
14/04/1946, p. 8. grifos meus). Embora não tenha encontrado tantos elementos para
afirmar que há uma produção autóctone influenciada pelo existencialismo, tema que
pretendo ainda pesquisar, posso dizer, após tantas matérias jornalísticas, que ao
menos em termos dos costumes podemos falar de um existencialismo
abrasileirados. Afinal, a Chiquita Bacana pode até ter vindo da Martinica, mas
168
sambava por meio do corpo dos foliões brasileiros de 1949, tal qual o
existencialismo de Sartre.
Aparentemente, nada demais. Melo não traça um perfil tão claro quanto as
matérias seguintes nos permitirão fazer. Mas o fato de que Alta teve a ideia de
misturar whisky com abacaxi em calda – o que contribuiu para que todos se
embebedassem -, de que flertava e atraía todos homens da reunião e de que tinha
opiniões bastante definidas, inclusive sobre política, certamente contribuíram para
seu apelido. Luís Antônio Contatori Romano (2002) indica como, ao longo de suas
169
orientem.
Na mesma direção segue a coluna A arte de seduzir os homens, lançada ao
longo de 1951 no jornal UH. Trata-se de uma espécie de campanha elaborada pela
França Filmes do Brasil para criar interesse por uma atriz francesa, Martine Carol,
que teria filmes lançados no país mais tarde neste mesmo ano. Em seus textos,
Carol faz recomendações às mulheres sobre como o vestir-se, o maquiar-se, o
portar-se, para atingir o objetivo máximo de seduzir os homens, como indica o
próprio título da coluna. Nesse sentido, afirma em sua “segunda lição” (A ARTE DE
SEDUZIR OS HOMENS, UH, 24/10/1951, segundo caderno, capa), embasada –
segundo ela – na definição de coqueteria do dicionário Larousse, que “a mulher
deve ser naturalmente ‘coquete’”, com o objetivo de “reter o maior tempo possível a
criatura que amamos. Os homens são tão distraídos que muitas vezes lhes acontece
esquecer que nos adoram [...] os tornamos um pouquinho ciumentos [...] unicamente
com o fito de lembra-lhes a nossa existência a seu lado”. Para tanto, é necessário
não exagerar, deve-se “evitar as ‘coquetteries’ supérfluas”: “as que adotam um
certo ‘existencialismo de indumentária’ também estão erradas” (A ARTE DE
SEDUZIR OS HOMENS, UH, 24/10/1951, segundo caderno, capa. grifos meus). Tal
vulgaridade pode chamar a atenção por alguns instantes, mas a impressão que
deixará no longo prazo não será benéfica para uma moça.
Em sua décima primeira lição (!) (A ARTE DE SEDUZIR OS HOMENS, UH,
06/11/1951, p. 3), o tema é a maquiagem. E, novamente, aponta-se um prejuízo
causado pelo existencialismo para as mulheres.
colunas da série: a primeira defesa que faz é que “mesmo que uma mulher não
tivesse braço, nem rosto, nem quadris, ainda assim valeria pelas pernas. Se
fossem ‘boas’, naturalmente” (grifos meus). Mais adiante, dirá que a mulher deve
saber a hora de falar e a hora de calar e que o “bikini” chama a atenção à primeira
vista, mas que se decepciona quando olha o rosto daquela que o veste. Coerente
com essa linha de raciocínio, Pablitos se mostra avesso à mulher “chamada
existencialista”, pois pensa que devem usar saias, “imaginem se os homens dessem
para usar godês e plissés”. O bikini, por sinal, é considerado noutra matéria como
uma peça “existencialista” (CORTES DE CÂMARA, A Manhã, 28/10/1949, p. 6).
Outra recomendação contra o existencialismo nas mulheres foi feita pelo
descendente da família real portuguesa no Brasil, João de Orleans e Bragança. A
repórter, Dulce Rodrigues, relata que temeu entrevista-lo: como lidar com um homem
da realeza? Acabou encontrando-se com “o mais democrata dos fidalgos”, que
respondeu suas perguntas “com uma espontaneidade de menino”. Sobre as
mulheres modernas, Orleans e Bragança as dividiu em dois subgrupos
incomodou um jovem rapaz, que, irritado, disse: “Nunca vi uma estrela tão próxima à
boca do sapo”. Nisso, um outro jovem interpela, dizendo que Altair, a moça, já havia
atingido “‘L’âge de raison’, aquela superconsciência dos valores da vida” permitindo
as mulheres ultrapassarem a moral convencional, “como prega o Jean-Paul
Sartre”, conclui o jovem (grifos meus). O texto, por sua riqueza, merece que nos
detenhamos um pouco mais.
Poderíamos pensar que essa é a opinião dos jovens cujo diálogo é transcrito
na crônica, mas não a defesa final de Sérvulo de Melo. Estaríamos enganados. A
história segue concordando com as suspeitas do jovem interessado pela moça.
Acontece que o homem grisalho, sem mais poder sustentar “os seus sessenta anos”,
retira-se, abrindo espaço para que o rapaz se aproxime de Altair.
Figura 12
Figura 11
Figura 13
176
Figura 14
Uma trajetória bastante exemplar dessa estratégia que separa uma versão
177
16/11/1950, p. 9).
Neste mesmo mês, a coluna do repórter Miguel Curi, Rádio, narra a conversa
que teve com Juliette Gréco (EU E A JULIETTE GRECO, A Manhã, 21/11/1950, p.
8). Primeiramente, Curi diz entender que ser existencialista “é ser aquilo que se
sente e se almeja”, o que engloba poder não cortar o cabelo ou andar de cabeça
raspada, “sendo homem ou mulher”, ir descalço a um velório (?!) ou outras coisas
que denotam desconexão com os valores sociais. Mas surpreendeu-se com “La
Gréco”: “vendo e ouvindo[-a], ontem, fiquei pensando que o existencialismo de
Sartre deve ser bem diferente desse que anda por aí na boca de todo o mundo”.
Mas isso porque ela é mais burguesa do que ele imaginava que um existencialista
deve ser. Deixando de lado essa observação curiosa, Curi informa que a cantora irá
se apresentar na Rádio Nacional por oito dias consecutivos, o que aponta para o
sucesso e a grande expectativa em torno da vinda da cantora para a capital do país,
sendo a Rádio Nacional um veículo popular e que alcançava, como o próprio nome
indica, todo o país.
O sucesso da empreitada pode ser constatado pela matéria que anuncia que
Despede-se do Brasil Juliette Greco (A Manhã, 01/02/1951, p. 7). De acordo com o
jornalista, a “musa existencialista”, “rainha de St. Germain des Prés, protegida de
Jean-Paul Sartre”
(...) aceitou uma proposta do “Vogue” para vir cantar no Rio. Aceitou com
entusiasmo e se preparou para a grande aventura. Cantou em São Paulo,
no Rio, e foi um sucesso. O “Vogue”, cheio toda noite, elogios, até um
convite do Presidente Getúlio Vargas para cantar no almoço dos
governadores. (DESPEDE-SE DO BRASIL JULIETTE GRECO, A Manhã,
01/02/1951, p. 7. grifos meus)
É ela feliz? Não. Nasceu já com angústia, acha que a nossa época não
tem graça e tem um imenso amor, longe, longe, no passado. E o
existencialismo, perguntamos? Greco disse-nos: deram-me esse nome
não sei por que, e me darão outros nomes no futuro, quem sabe. No
entanto, pretendo continuar cantando aqui e lá, contando histórias do meu
coração. (DESPEDE-SE DO BRASIL JULIETTE GRECO, A Manhã,
01/02/1951, p. 7. grifos meus)
179
Figura 15
Ela esteve no Rio durante algum tempo. Veio aqui como uma autêntica
musa do existencialismo, ostentando nas roupas “diferentes”, nos cabelos
180
Figura 16
soma de 40 mil francos anuais como pensão alimentícia (FIM DE ROMANCE, UH,
25/08/1955, segundo caderno, capa). Como se ainda fosse necessário termos mais
elementos para afirmar que há um modo prescritivo quando se trata de relacionar
existencialismo e mulheres, aqui novamente Gréco volta a ser referida como “‘papisa
do existencialismo’, que criou fama por sua maneira peculiar de cantar e de suas
extravagâncias na maneira de se vestir e se portar”. Afinal, já não era mais mãe e
boa esposa, mas uma “desquitada”.
Antes de passarmos ao próximo tema, há outra uma dimensão de gênero
atrelada ao existencialismo: a homossexualidade, sobretudo masculina. Embora em
número reduzido, essas matérias jornalísticas existem e opto não deixa-las de lado.
O caso que intitula esta dissertação é um deles: Décio Escobar, o suposto
“assassino do parque”, se defende não da acusação de ter assassinado o
engenheiro Luís Delgado, mas do epíteto de “existencialista”. Este epíteto que, como
veremos no próximo subcapítulo, acaba sendo coligado à ideia de criminalidade,
para Décio traz também outra significação, que considero mais significativa neste
caso. Retomando a carta que escreveu para a imprensa, citada na introdução, o
poeta afirma: “nunca fui existencialista. Fui um boêmio como qualquer um de
vocês e sempre procurei ser bom. Se procurar ser bom, é ser existencialista, então
admito que me chamem de existencialista. Não sou um degenerado (…)” (“AQUI
ESTOU PARA DEFENDER-ME”, UH, 04/05/1953, p. 6. grifos meus). Ao dizer que
nunca fora existencialista, sim um boêmio, nunca um degenerado, o poeta indica um
dos sentidos do termo que vigorava naquele tempo. Ser chamado de existencialista,
“sussurra” a carta, valia como referência a sua suposta homossexualidade, sua
“degenerescência”.
O crime do Parque, como ficou conhecido o acontecimento que vitimou Luís
Delgado, tem profunda conexão com a rede de sociabilidade dos homossexuais da
capital mineira. O traçado dessa rede é ensaiado por Luiz Morando (2008), que
afirma que o Parque Municipal de Belo Horizonte, apesar de ter sido construído com
fins a divertir a elite belo-horizontina, passa a ser ocupado por outro público a partir
da década de 1920, em virtude da inauguração de outra praça, a da Liberdade. Esta
passa a ser o espaço privilegiado do footing, momento de flerte entre moças e
rapazes, enquanto o Parque “servia a encontros clandestinos [...] curvando-se a dois
interesses: durante o dia, às atividades voltadas para a ‘gente bem’, e ao cair da
tarde, adentrando a noite, para encontros amorosos diversos” (MORANDO, 2008, p.
182
27). Tendo o corpo de Luís Delgado sido encontrado dentro do Parque e os indícios
apontando que o crime ocorreu durante a madrugada, as investigações passaram a
seguir a linha de que se tratou de crime passional entre homens ou de que foi
cometido por algum rapaz interessado em seduzir gays que frequentavam o local
para roubá-los. Dentre as diversas tentativas de solução do caso, chegou-se a Décio
Escobar, reputado como um dos homens a ter relações com Delgado.
Não apenas isso pesava sobre Décio. Quando de sua chegada na capital
mineira em 04 de maio, o delegado do caso, Mário Pinto Correia, deu entrevista à
imprensa ressaltando ter ficado impressionado com a frieza do acusado (CHEGOU A
BELO HORIZONTE..., UH, 05/05/1953, p. 6). Tudo isso contribuiu para que Décio
dissesse que não era existencialista, já que era apenas boêmio, mas não
degenerado. Poderíamos imaginar que degenerado serviria aqui como sinônimo de
assassino, frio, impassível. No entanto, a matéria pulicada em UH em 23 de
dezembro de 1953 não deixa dúvidas: Décio estava em processo litigioso de
separação conjugal e sua esposa alegava que ele não havia consumado o
casamento por ser “invertido” (CONTESTA DÉCIO ESCOBAR A ANULAÇÃO DE
SEU CASAMENTO, UH, 23/12/1953, p. 8. grifos meus): “Na contestação, afirma
[Décio] que sempre teve vida doméstica normal e que não é invertido sexual”. De
acordo com a mesma matéria, sua mulher alegava que ele frequentava “cabarés
existencialistas” na Bolívia, onde viviam. E assim somos informados que
“existencialistas” são também os espaços onde há encontros de homossexuais.
Décio é inocentado ao final do processo e, por meio de intenso investimento
de seus familiares – bem relacionados -, obtém êxito em dissociar sua imagem do
“existencialismo”. Algumas matérias citadas por Morando (2008), mas não
reproduzidas em UH, falam do poeta como um rapaz inteligente, de boa moral,
buscando dar suporte à construção de outro imaginário para o sobrenome Escobar.
Décio, contudo, não escapa à imortalidade como “existencialista”: é encontrado
morto em seu apartamento no bairro da Urca, Rio de Janeiro, em 1969. As
investigações concluem que foi assassinado por um jovem amante, que mantinha
relações com Décio em troca de dinheiro e favores.
Em 1951, outra pista que aponta para a relação entre existencialismo e
homossexualidade. A Coluna de Dr. Renault (A Manhã, 06/03/1951, p. 4. grifos
meus) informa que turistas observadores dizem que Rio e Roma estão vivendo
semelhantes “abastardamento de Costumes [sic]”, mas só a capital italiana teria
183
motivos para tanto, pois vivenciou a guerra. Porque essa impressão? A nota na
coluna prossegue assim:
Não apenas nós, cariocas desse início de século XXI, vivemos o chamado
“Choque de Ordem Urbana”, política “moralizadora” levada adiante pelo secretário
de segurança da cidade do Rio na primeira gestão da administração Eduardo Paes.
O carioca de 1951 também lidou com uma “campanha” similar da polícia. A
diferença, talvez, é que a polícia de 1951 era convocada pelo jornal a reprimir
encontros homossexuais, enquanto o alvo principal da campanha recente foram a
população de rua e os vendedores ambulantes. A matéria faz referência a um termo
cujas origens poderiam ser também traçadas: ao dizer que se trata de uma “fauna”,
animalizando os homens que se encontravam ali, o colunista acrescenta “(ou
flora?)”, referência ao apelido pejorativo que se refere aos homossexuais como
“florzinhas”.
Uma última ocasião conecta existencialismo, homossexualidade e
assassinato, como no caso do crime do Parque. Trata-se da morte do advogado
Wilson de Assis Pereira, delito que ficou conhecido como “crime do castiçal”, no
edifício Paraopeba da Praia de Botafogo, 142. De acordo com a reportagem O
marido da milionária deixava a porta aberta para o amigo (UH, 02/06/1954, capa; p.
6), o casal formado por Wilson e a milionário Cecília Paes Leme não dormia no
mesmo quarto. Cecília foi acordada com gemidos vindo do quarto do esposo, mas
não foi averiguar o que acontecia, pois achou, segundo seu relato para a polícia, que
ele estava tendo pesadelos. Na verdade, Wilson estava sendo golpeado com um
castiçal que adornava seus aposentos; faleceu dois dias depois do ocorrido, sendo
enterrado em 04 de junho, em São Paulo (SEPULTADA A VÍTIMA DO CRIME DO
CASTIÇAL, UH, 04/07/1954, p. 4).
Abaixo do título da primeira reportagem sobre o caso, lê-se: “Revolvido o
mundo existencialista da alta grã-finagem boêmia” (O MARIDO DA MILIONÁRIA
DEIXAVA A PORTA ABERTA PARA O AMIGO, UH, 02/06/1954, p. 6. grifos meus). Tal
184
mundo existencialista vai sendo melhor exposto ao longo da matéria: tudo indicava
que Wilson foi assassinado por um dos jovens amantes que deixava entrar à noite
em sua casa – daí o título da reportagem. As investigações têm tantas reviravoltas
que seria interessante alguma pesquisa que traçasse um paralelo àquela realizada
por Morando (2008) sobre o crime do Parque31. As intensas movimentações em
torno da história parecem exemplares da sociedade carioca naquele período. Por
ora, cabe apenas chamar a atenção para o fato de que Wilson de Assis é reputado
“existencialista”, bem como o “mundo” em que vivia, por provavelmente ter sido
assassinado por um jovem amante de modo bastante similar ao que ocorreria anos
mais tarde com Décio Escobar também no Rio de Janeiro.
O último indício da relação do adjetivo “existencialista” com a
homossexualidade é mais modesto – e ambíguo - que os anteriores. Em 1953, o
poeta Jorge Jaime não teve a remessa de livros entregue de acordo com o
pagamento que efetuou para a editora. O título do livro em questão é Ternura,
definido pelo próprio autor como “uma miscelânea existencialista” (O POETA VIVIA
NA LUA E FOI ROUBADO NA TERRA, UH, 19/09/1953, p. 4). A matéria cita os
títulos de dois livros já publicados de Jaime, Poemas da fome e Homossexualismo
masculino. Num primeiro momento, penso que o segundo título é elucidativo quanto
aos motivos que levam o poeta a definir a poesia de Ternura como existencialista.
Um artigo online assinado por Antônio Naud Junior (2007) afirma que Jorge Jaime
publicou em 1957 Monstra que chora (Dramas homossexuais), volume com duas
obras e em cuja capa um rapaz fita outro que, por sua vez, demonstra indiferença
em relação ao primeiro. Por outro lado, a tese de doutoramento de Thiago Ianez
Carbonel (2012), informa que Jorge Jaime era médico legista e que o livro
Homossexualismo masculino foi a tese acadêmica que apresentou para conseguir a
cátedra de medicina legal da Universidade do Brasil em 1947. Nesta, Jaime defende
que os homossexuais são impelidos por razões fisiológicas ao delito que cometem,
assim como um outro criminoso qualquer, e sugere a “extração de glândulas como
cura para o desejo homossexual” (CARBONEL, 2012, p. 20). Diante desses indícios,
titubeio em afirmar que o sentido de “miscelânea existencialista” faça referência ao
fato de se tratar de literatura homoerótica, mas também não há elementos para
31No livro A Última Hora: como ela era, de Pinheiro Júnior (2011), o autor narra o crime de modo
sucinto. Repórter do jornal de Samuel Wainer, a obra memorialista de Pinheiro Júnior é tão falha
quanto ao “crime do castiçal” que opto por não considera-la. Afirma, inclusive, que o crime ocorreu
em 1955, quando o próprio UH noticia o crime em junho de 1954.
185
Há que se destacar que a referida mulher, pertencente à elite, uma vez que
estava no hotel com o ex-ministro e outras figuras da “alta roda”, tinha acesso, já em
1946, a um texto de Sartre e que tinha uma opinião – negativa – formada sobre o
pensamento dele. E, no entanto, nada na pesquisa indica que já tivesse havido
algum caso de suicídio atrelado ao existencialismo de Sartre no Brasil. O uso do
termo “filosofista suicida” aponta para uma dupla crítica: à filosofia, que impele ao
suicídio, uma vez que apregoa a “inutilidade da vida”; e ao seu criador, que não deve
186
32Talvez haja aqui um trocadilho com “sofista”, termo que, embora inicialmente se referisse a homens
sábios, acabou ganhando o sentido, a partir das críticas de Platão a alguns pensadores em relação
aos quais discordava, de charlatanismo filosófico.
187
Figura 17
Política 39
Capítulo 1 Religião 16
SUBTOTAL 55
20
12
13
Panorama cultural
16
8
5
Capítulo 2 18
50
Produtos culturais 14
10
6
SUBTOTAL 172
SUBTOTAL 166
TOTAL 393
Nesse percurso trabalhoso e entre tantos papéis, fiz minhas escolhas. Esta
pesquisa também encena uma política ontológica (LAW, 2009) e não apenas por
meio da decisão de quais matérias iriam aparecer e quais ficariam de lado – ao
menos neste trabalho. Entre todas essas opções, muitas questões foram se
erguendo. Algumas busquei responder aqui e outras, aglutinei para futura pesquisa -
principalmente, a questão sobre o que a chegada do existencialismo produziu no
território brasileiro em termos culturais. Como afirmo, não acredito que a filosofia de
Sartre tenha sido apenas mais uma matéria de importação: os jornais da época me
permitiram contestar essa hipótese. Mas como o processamento de tais ideias
evidenciado aqui participou na produção de movimentos autóctones? E em
que medida esses movimentos podem ser considerados nacionais se sofreram
influência do pensamento francês? Para responder a tais questões é necessário
mapear os movimentos sociais, artísticos e culturais que o existencialismo pode ter
influenciado em território nacional – e não apenas no Rio de Janeiro – e ampliar o
194
A nomenclatura, adotada por Daniel Aarão Reis Filho (2004), aponta para o apoio civil à ditadura,
34
1955 no Teatro Universitário de Porto Alegre, com Fernando Peixoto, não tendo
encontrado até o momento trabalhos acadêmicos que tematizem o fato.
Outro traço da influência exercida pelo pensamento de Sartre na produção
cultural do período pode ser encontrada na música “Alegria, alegria”, de Caetano
Veloso (1967). Na letra da canção, lê-se: “Sem lenço e sem documento, nada no
bolso ou nas mãos” (grifos meus). Sartre, no último parágrafo de seu livro “As
Palavras”, escreveu que “minha única preocupação era me salvar – nada nas mãos,
nada nos bolsos – pelo trabalho e pela fé” (SARTRE, 2011. grifos meus). Não há
coincidências neste caso. Caetano escreve em “Verdade Tropical” (2008, p. 162.
grifos meus) que
Embora pudesse ter sido utilizado ao longo deste trabalho por sua temática e
estilo, um detalhe impediu que o texto acima fosse considerado ao longo dos
capítulos. Acontece que o texto não é do arcebispo do Rio de Janeiro Dom Jaime
Câmara, nem de Sérvulo de Melo, nem de Cyro dos Anjos, nem de Dinah Silveira de
Queiroz ou de Euríalo Canabrava. Não data da década de 1940 ou 1950. Nem de
nenhuma das imediatamente anteriores ou posteriores. Foi escrito pelo colunista do
JB Sérgio Sebold em 31 de janeiro de 2014 e evidencia o quanto ainda há que se
investigar no campo da chegada e apropriação do existencialismo em território
nacional. Mas, por enquanto, é preciso acabar – esta é a última narrativa. Até que a
próxima comece.
197
REFERÊNCIAS
“AQUI ESTOU PARA DEFENDER-ME”. Última Hora. Rio de Janeiro, 04 maio 1953,
p. 6.
“FILET MIGNON” PARA TODOS. Última Hora. Rio de Janeiro, 06 maio 1955, p. 4.
“O CINEMA ESTÁ MORTO”. Última Hora. Rio de Janeiro, 29 maio 1952, p. 12.
ALI KHAN NUM “SHOW” COM LINDA BATISTA. Última Hora. Rio de Janeiro, 27
março 1952, capa.
ARGAN, Giulio. A Europa das capitais. In: ______. Imagem e persuasão: ensaios
sobre o Barroco. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
BEAUVOIR, Simone de. A força das coisas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
CHAGAS, Carlos. O Brasil sem retoque (1808-1964): a História contada por jornais
e jornalistas, v.1. Rio de Janeiro: Record, 2001.
COHEN-SOLAL, Annie. Sartre: uma biografia. Porto Alegre, RS: L&PM, 2008.
DESPRET, Vinciane. Que diraient les animaux, si... on leur posait les bonnes
questions ? Paris : Empêcheurs de penser en rond, 2012.
ERA UMA VEZ UMA MUSA DO EXISTENCIALISMO... Última Hora. Rio de Janeiro,
19 maio 1954, p. 3.
EWALD, Ariane P.; DANTAS, Jurema Barros; GARCIA, Fernanda Alt Fróes;
GONÇALVES, Rafael Ramos. Merleau-Ponty, Sartre e Heidegger: três concepções
de fenomenologia, três grandes filósofos. In.: Estudos e pesquisas em Psicologia,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, ano 8, n. 2, p.
402-435, 2008.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
1995.
KRACAUER, Siegfried. La tarea del critico cinematográfico. In.: ______. Estética sin
territorio. Traduzido por Vicente Jarque. Múrcia: Colegio Oficial de Aparejadores y
Arquitectos Técnicos de la Región de Múrcia, Consejería de Educación y Cultura de
la Región de Múrcia, Fundación Cajamúrcia, 2006. p. 347-50.
LASOWSKI, Aliocha Wald. Jean-Paul Sartre: une introduction. Paris : Pocket, 2011.
LAW, John; MOL, Annemarie. Notes on Materiality and Sociality. The Sociological
Review, nº 43, jan. 2011. p. 274-294.
209
LEAL, Carlos Eduardo; MONTALVÃO, Sérgio. O Globo. In.: ABREU, Alzira Alves de
et al (coords.). Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro – Pós-1930. Rio de
Janeiro: CPDOC, 2010.
LIMA, Jorge de. Invenção de Orfeu. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
MALIN, Mauro. Eurico Gaspar Dutra. In.: ABREU, Alzira Alves de et al (coords.).
Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro – Pós-1930. Rio de Janeiro: CPDOC,
2010.
MORAIS, Fernando. Chatô – O rei do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
1994.
NAÇÃO QUE SE ISOLA NÃO PODE SOBREVIVER. Última Hora. Rio de Janeiro,
29 dezembro 1951, p. 4-5.
211
NÃO VIU A EUROPA COM OLHOS DE TURISTA. Última Hora. Rio de Janeiro, 20
julho 1951, p. 11.
NUDISMO E PÂNICO numa “gafieira” de São Paulo. Última Hora. Rio de Janeiro,
04 fevereiro 1953, p. 4.
212
NUNES, Benedito. Narrativa histórica e narrativa ficcional. In.: NEVES, Luiz Felipe
Baêta (org.). Narrativa: ficção e história. Rio de Janeiro: Imago, 1988.
O CINEMA ESTÁ MORTO. Última Hora. Rio de Janeiro, 29 maio 1952, p. 12.
O QUE ELES DIZEM DAS MULHERES. Última Hora. Rio de Janeiro, 09 setembro
1952.
O QUE ELES DIZEM DAS MULHERES. Última Hora. Rio de Janeiro, 28 junho
1952.
O QUE ELES DIZEM DAS MULHERES: o grande cômico Palitos fala seriamente
das mulheres. Última Hora. Rio de Janeiro, 21 junho 1952, p. 6.
PARA A CORÉIA, NÃO! PARA A EUROPA, TALVEZ!. Última Hora. Rio de Janeiro,
21 junho 2951, p. 6.
PARA O FILÓSOFO VON FRITZ Sartre é radical e ateu. Última Hora. Rio de
Janeiro, 04 agosto 1954, p. 6.
PINHEIRO JÚNIOR. A Última Hora: como ela era. Rio de Janeiro: Mauad X, 2011.
RENAUT, Alain. Sartre: le dernier philosophe. Paris: Grasset & Fasquelle, 1993.
______. Les communistes et la paix. Les Temps Modernes, Gallimard, Paris, nº 81,
ano 6, julho 1952. p. 1-50.
______. Freud, Além da Alma : roteiro para um filme. Rio de Janeiro: Ed. Nova
Fronteira, 1986.
______. Apologie pour le cinéma: defénse et illustration d’un Art International. In.:
______. Écrits de Jeunesse. Edição estabelecida por Michel Contat e Michel
Rybalka. Paris: Gallimard, 1990a. p. 385-402.
SAYES, Edwin. Actor-Network Theory and methodology: just what does it mean to
say that nonhumans have agency?. In.: Social Studies of Science. 2013.
Disponível em : sagepub.co.uk/journalsPermissions.nav . Acesso em 10/06/2014.
SCHIOLIN, Kasper. Follow the verbs! A contribution to the study of the Heidegger-
Latour connection. Social Studies of Science, nº 42, ano 5. 2012. p. 775-86.
VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
VIAN, Boris. A espuma dos dias. São Paulo: Cosac Naify, 2013.