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ENSINO A DISTÂNCIA

História
Licenciatura em

História Moderna II

André Luiz Joanilho


Igor Guedes Ramos
Mariângela Peccioli Galli Joanilho

pONTA gROSSA / pr
2010
CRÉDITOS
Universidade Estadual de Ponta Grossa
João Carlos Gomes
Reitor

Carlos Luciano Sant’ana Vargas


Vice-Reitor

Núcleo de Tecnologia e Educação Aberta e a Distância


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Sistema Universidade Aberta do Brasil Adilson de Oliveira Pimenta Júnior
Hermínia Regina Bugeste Marinho – Coordenadora Geral Juscelino Izidoro de Oliveira Júnior
Cleide Aparecida Faria Rodrigues – Coordenadora Adjunta Osvaldo Reis Júnior
Kin Henrique Kurek
Curso de História – Modalidade a Distância Thiago Luiz Dimbarre
Myriam Janet Sacchelli – Coordenadora Thiago Nobuaki Sugahara

Colaboradores Financeiros Colaboradores em EAD


Luiz Antonio Martins Wosiack Dênia Falcão de Bittencourt
Jucimara Roesler
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Silviane Buss Tupich Colaboradores de Publicação
Beatriz Aparecida de Góes – Diagramação
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Sozângela Schemim da Matta – Revisão

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Edson Luis Marchinski
Joanice de Jesus Küster de Azevedo
João Márcio Duran Inglêz
Maria Clareth Siqueira
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Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, Paraná, Brasil.

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2009
APRESENTAÇÃO INSTITUCIONAL
A Universidade Estadual de Ponta Grossa é uma instituição de ensino superior
estadual, democrática, pública e gratuita, que tem por missão responder aos desafios
contemporâneos, articulando o global com o local, a qualidade científica e tecnológica
com a qualidade social e cumprindo, assim, o seu compromisso com a produção e difusão
do conhecimento, com a educação dos cidadãos e com o progresso da coletividade.
No contexto do ensino superior brasileiro, a UEPG se destaca tanto nas atividades
de ensino, como na pesquisa e na extensão Seus cursos de graduação presenciais primam
pela qualidade, como comprovam os resultados do ENADE, exame nacional que avalia o
desempenho dos acadêmicos e a situa entre as melhores instituições do país.
A trajetória de sucesso, iniciada há mais de 40 anos, permitiu que a UEPG se
aventurasse também na educação a distância, modalidade implantada na instituição no
ano de 2000 e que, crescendo rapidamente, vem conquistando uma posição de destaque
no cenário nacional.
Atualmente, a UEPG é parceira do MEC/CAPES/FNED na execução do programas
Pró-Licenciatura e do Sistema Universidade Aberta do Brasil e atua em 38 polos de apoio
presencial, ofertando, diversos cursos de graduação, extensão e pós-graduação a distância
nos estados do Paraná, Santa Cantarina e São Paulo.
Desse modo, a UEPG se coloca numa posição de vanguarda, assumindo uma
proposta educacional democratizante e qualitativamente diferenciada e se afirmando
definitivamente no domínio e disseminação das tecnologias da informação e da
comunicação.
Os nossos cursos e programas a distância apresentam a mesma carga horária
e o mesmo currículo dos cursos presenciais, mas se utilizam de metodologias, mídias e
materiais próprios da EaD que, além de serem mais flexíveis e facilitarem o aprendizado,
permitem constante interação entre alunos, tutores, professores e coordenação.
Esperamos que você aproveite todos os recursos que oferecemos para
promover a sua aprendizagem e que tenha muito sucesso no curso que está realizando.

A Coordenação
SUMÁRIO
■■ PALAVRAS DOs PROFESSORes 7
■■ OBJETIVOS & ementa 9

A
■■
aventura da expansão européia
PARA INÍCIO DE CONVERSA 
11
12
■■ SEÇÃO 1- Mercantilismo 12
■■ SEÇÃO 2- As grandes navegações 18
■■ SEÇÃO 3- A ocupação de novos territórios 25


Os Estados Nacionais
■■ PARA INÍCIO DE CONVERSA 
37
38
■■ SEÇÃO 1- A centralização do poder 39
■■ SEÇÃO 2- A governamentalidade e o nascimento da biopolítica 45
■■ SEÇÃO 3- O absolutismo 50

As revoluções inglesas
■■ PARA INÍCIO DE CONVERSA 
65
66
■■ SEÇÃO 1- A Revolução de 1640 67
■■ SEÇÃO 2- A Revolução de 1688 75
■■ SEÇÃO 3- Política e sociedade 80

O Iluminismo
■■

para início de conversa
87
88
■■ SEÇÃO 1- Ciência e verdade 90
■■ SEÇÃO 2- A idéia de progresso 95
■■ SEÇÃO 3- O homem do Iluminismo 99

■■ PALAVRAS FINAIS 107


■■ REFERÊNCIAS  108
■■ NOTAS SOBRE OS AUTORES 111
PALAVRAS DOs PROFESSOREs
Neste volume de História Moderna vamos estudar aspectos de algumas
sociedades – principalmente as europeias – no período que abarca os séculos
XV, XVI, XVII e XVIII. Isso não quer dizer que estudaremos tudo o que
aconteceu – o que, de qualquer forma, nos é impossível –, mas estudaremos
aspectos que nos parecem mais importantes, de acordo com problemáticas
de nossa sociedade atual. Daremos destaque ao aspecto que a Escola dos
Annales denominou de mentalidades, bem como às práticas dos diversos
grupos socioculturais, responsáveis por construírem distintas configurações
socioculturais ao longo do tempo.
A nossa pretensão é fornecer um painel da era moderna e de
acontecimentos que foram marcantes para a história mundial. Nesse sentido,
devemos obrigatoriamente abordar determinados assuntos, como a formação
dos Estados Modernos, a expansão europeia, as revoluções inglesas do século
XVII e o Iluminismo.
A escolha deles não é aleatória, afinal esses eventos foram fundamentais
para a constituição das configurações históricas posteriores, ou seja, da nossa
sociedade. Por exemplo, hoje a organização política mundial está fundada na
existência de nações, mas não podemos nos esquecer de que o surgimento
delas foi um evento exclusivamente europeu e que se processou ao longo de,
pelo menos, cinco séculos, do XII ao XVII.
Outro exemplo é o Iluminismo. As idéias ligadas a esse movimento
artístico, filosófico, político e cultural viajaram por todos os cantos do planeta e
mudaram a forma de muitas sociedades “ver ” e “ser ” no mundo. Porém, cabe
aqui um questionamento: até que ponto o movimento iluminista é o embrião das
ciências atuais? Ou foi a historiografia tradicional que construiu esse sentido,
essa ligação perfeita entre eles e nós?
Atualmente, tomamos o Estado, os partidos e sindicatos como locais
privilegiados da ação política, mas no século XVII, durante as revoluções
inglesas, a “gente mesquinha” da Inglaterra mostrou outras formas de ação
política, igualmente eficientes. Ainda, é importante notar que foi nesse momento
que se acelerou o desenvolvimento do capitalismo inglês, o que futuramente
iria afetar toda a configuração mundial.
Esses e outros temas irão nos guiar na construção de nosso painel da
era moderna, que não tem a pretensão de ser uma verdade absoluta, mas uma
representação do passado – uma versão de história – que poderá nos ajudar a
compreender melhor nossa sociedade, seus problemas e, até mesmo, assinalar
possibilidades.

Bons Estudos!
OBJETIVOS DO LIVRO
Objetivo Geral
■■ Compreender configurações históricas do período moderno por meio da
discussão de temas correlatos.

Objetivos Específicos
■■ Estudar a estruturação dos Estados Nacionais.
■■ Discutir temas relativos à formação da sociedade moderna.

Ementa
■■ A aventura da expansão européia. Os Estados Nacionais. A Revolução
Inglesa. O Iluminismo.

Plano de Estudo
Unidade Horas
■■ Aventura da expansão europeia 17
■■ II – Os Estados Nacionais 17
■■ III – As Revoluções Inglesas 17
■■ IV – O Iluminismo 17
UNIDADE I
A aventura da expansão
europeia

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
■■ Conhecer aspectos da formação do mercantilismo.

■■ Estudar a expansão europeia.

■■ Entender as formas de ocupação dos territórios coloniais.

ROTEIRO DE ESTUDOS
■■ SEÇÃO 1 - Mercantilismo

■■ SEÇÃO 2 - As grandes navegações

■■ SEÇÃO 3 - A ocupação dos novos territórios


Universidade Aberta do Brasil

PARA INÍCIO DE CONVERSA


Durante muito tempo, parte da historiografia tratou a expansão euro-
peia – econômica, cultural, marítima, territorial, etc. – como resultado do de-
senvolvimento natural e, até mesmo, como fato independente da economia.
Em outras palavras, a existência humana estaria atrelada à produção mate-
rial; esta, por sua vez, tenderia a se desenvolver de forma natural, seria uma
“lei histórica”.
A historiografia mais recente tende a enxergar a economia como resul-
tado de práticas e visões de mundo. Assim, as formas econômicas não são
naturais ou universais, mas são construídas pela ação dos homens; são ex-
pressões de desejos e forças sociais. O capitalismo, por exemplo, não é uma
evolução econômica natural, mas resultado de forças sociais em torno de ob-
jetos de desejo: riqueza, abundância, felicidade fazem parte desses objetos
desejados.
Logo, a expansão europeia também se configura como resultado dos
desejos e das forças sociais que se enfrentaram para impor as suas vontades e
verdades inerentes. São esses aspectos que estudaremos nesta unidade: Ini-
ciaremos pela maneira como se constituiu outra forma econômica na Europa,
o mercantilismo (seção I); passando pelas grandes navegações (seção II) e
“aportando” na ocupação dos novos territórios (seção III).

seção 1
MERCANTILISMO

Quando se define um período histórico, como, por exemplo, a História


Moderna, não implica que ele comporte tudo aquilo que lhe diz respeito.
A divisão em períodos é uma invenção do século XIX e visava, dentro das
crenças da época, a delimitar a história em grandes compartimentos, na espe-
rança de que isso desse uma feição “científica” à nossa disciplina a partir da
composição de conjuntos homogêneos de acontecimentos. Assim, Histórias
Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea são convenções que na reali-

12
unidade 1
História Moderna II
dade não dizem respeito às temporalidades, mas traduzem expectativas de
historiadores europeus de dois séculos atrás.
Isso aconteceu, por exemplo, quando se procurou dar definições às for-
mas econômicas sociais. Relegar o feudalismo à Idade Média e o mercan-
tilismo à Era Moderna é uma forma simplista, para não dizer simplória, de
abordagem. Esses eventos não se limitam às eras: podemos perceber neles,
e em acontecimentos simultâneos, que as suas temporalidades não são tão
restritas. Existem ainda traços de uma economia feudal em sociedades do
século XX, como também há sinais de uma mentalidade mercantil no século
XI. Dessa maneira, se utilizamos periodizações nesta unidade de estudo, é
devido ao seu simples valor explicativo, e não a um valor heurístico encerra-
do nos períodos ou eras.

Heurístico: Em história podemos compreender esta palavra como


um procedimento de descoberta a partir da própria fonte, isto é, a fonte
portaria uma verdade intrínseca, o que contestamos, pois ela é fruto de
análise e interpretação por parte do historiador.

Portanto, é difícil especificar quando nasce o capitalismo, por exemplo.


Podemos verificar alguns sinais, atitudes, crenças, mas não o momento pre-
ciso. É comum os historiadores situarem o seu aparecimento por volta do sé-
culo XI, quando, na Europa, há um certo renascimento comercial e cultural.
É o que Jacques Le Goff chama de “o tempo das catedrais” (LE GOFF, 2005).
A circulação de dinheiro volta a ter alguma relevância na economia ocidental
e com isso cresce a importância dos mercadores e dos primeiros banqueiros,
que eram ainda confundidos com usurários.
Tal movimento ainda é tímido, mas o que realmente o dificulta é a
visão que se tem do dinheiro no período medieval. Em primeiro lugar, pesam
sobre ele os interditos da Igreja. Em segundo lugar, o menosprezo da aristo-
cracia com relação à moeda, pois via nela muito mais um valor de uso do que
troca. Quer dizer, a nobreza entesourava, buscando prestígio social; logo, não
via a moeda como forma de troca.
Devemos notar que o desprezo era com o dinheiro e não com a rique-
za, apesar de toda a pregação da Igreja contra os ricos, visando a salvação das
almas. A preocupação com os bens materiais era considerada um desvio do
bom cristão, que deveria cuidar da alma visando ao além-mundo. Portanto,

13
unidade 1
Universidade Aberta do Brasil

seguindo a tradição bíblica que rebaixava a existência terrestre a um simples


meio para atingir o paraíso, a Igreja condenava o lucro, sinal exterior de pe-
cados veniais e mortais.
Dessa forma, ganhar dinheiro é um problema, justamente num mun-
do que está terminado, como compreendia a própria Igreja. Deus havia feito
o mundo e descansado no sétimo dia, portanto esse mundo é finito. Nessa
compreensão, as próprias riquezas estão dadas. Isso quer dizer que para o
pensamento medieval existe uma quantidade fixa de riqueza. Assim, há pou-
cas possibilidades de se enriquecer: receber herança, ganhar por relação de
vassalagem (no caso de nobres), ou simplesmente pilhar. Conclusão lógica:
se alguém enriqueceu foi por uma dessas vias.
No caso da pilhagem há aquelas que são “justas”, como nas guerras,
e aquelas “injustas”, quando se tira de alguém simplesmente por cupidez.
Este é o problema na Idade Média: muitas pessoas acabam enriquecendo por
meios considerados pela Igreja como ilícitos ou, até mesmo, pecaminosos.
São os mercadores e os usurários os mais propícios a praticarem o pecado da
cupidez. Para a Igreja, o dinheiro é infecundo, quer dizer, ele não gera mais
dinheiro. Portanto, cobrar juros é fazer o dinheiro trabalhar, é uma ação con-
tra a natureza; ou, ainda, cobrar juros é cobrar por algo que não pertence às
pessoas: o tempo. O usurário está “roubando” o tempo que pertence a Deus
para enriquecer.
Porém, a expansão monetária iniciada no século XI continua se de-
senvolvendo e tornando o dinheiro necessário para a condução dos negócios.
O comerciante e o banqueiro passam a ter um papel de destaque na socieda-
de, logo se instaura uma longa luta para tornar o lucro lícito em detrimento
das proibições indistintas da Igreja:

A usura é um dos grandes problemas do século XIII. Nesta data, a Cristandade, no auge
da vigorosa expansão que empreendia desde o Ano Mil, gloriosa, já se vê em perigo. O
impulso e a difusão da economia monetária ameaçam os velhos valores cristãos. Um
novo sistema econômico está prestes a se formar, o capitalismo, que para se desenvolver
necessita senão de novas técnicas, ao mesmo do uso massivo de práticas condenadas
desde sempre pela Igreja. Uma luta encarniçada, cotidiana, assinalada por proibições
repetidas, articuladas a valores e mentalidades, tem por objetivo a legitimação do lucro
lícito que é preciso distinguir da usura ilícita. (LE GOFF, 1989, p. 10).

Durante séculos pesará sobre o comerciante e sobre o banqueiro

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unidade 1
História Moderna II
a desconfiança: até onde a riqueza é lícita? Podemos dizer que há uma
mentalidade multissecular com relação às riquezas e ao dinheiro, aquilo que
E. P. Thompson chamou com propriedade “economia moral da multidão”,
quer dizer, uma noção popular do que seria um preço justo. Evidentemente
que Thompson se refere aos séculos XVIII e XIX, mas podemos perceber tal
movimento na Idade Média quando “os dados fundamentais da atividade
econômica, da economia de mercado que começa a funcionar, são o justo
preço e o justo salário (...), a usura é um pecado contra o preço justo, um
pecado contra a natureza (...), tal foi a concepção dos clérigos do século
XIII e dos laicos influenciados por eles.”. (LE GOFF, 1989, p. 28).
Diante disso, como fica a consciência do mercador, do banqueiro?
De modo algum podemos dizer que isso se resolveu placidamente. Dúvidas
pungentes atingiam aqueles que se dedicavam ao comércio e à usura.
Contrições lancinantes, confissões espetaculares, arrependimentos sinceros,
enfim toda uma série de histórias contadas sobre usurários que retomaram
o “bom caminho”, mas também penas eternas, castigos exemplares,
sofrimentos infindos, quer dizer, o contra-exemplo também tinha a sua
eficácia para lembrar a danação daqueles que não se arrependiam.
Essa mentalidade serviu durante muito tempo como um obstáculo
para o desenvolvimento do capitalismo e das atividades mercantis. Foram
necessários alguns séculos para que tal resistência fosse dissipada, porém,
mesmo hoje em dia, podemos ver que ainda existe e ainda pesa sobre a
nossa sociedade alguma desconfiança sobre a riqueza. Mas, de que forma
essa mentalidade foi se modificando? É possível dizer que as mudanças na
confissão espelham as mudanças nas concepções de indivíduo no período
medieval. Vejamos:

... do final do século XI ao início do século XIII a concepção de pecado e de penitência


muda profundamente, se espiritualiza, se interioriza. De agora em diante, a gravidade
do pecado é medida pela intenção do pecador. É preciso, pois, pesquisar se essa
intenção era boa ou má (...). De coletiva e pública, excepcional e reservada aos
pecados mais graves, a confissão se torna auricular, da boca para o ouvido, individual e
particular, universal e relativamente freqüente (...). Uma frente pioneira está aberta: a da
introspecção, que vai lentamente transformar os hábitos mentais e os comportamentos.
É o começo da modernidade psicológica. (LE GOFF, 1989, p. 40).

Ou podemos dizer que é o início de uma sociedade atomizada, isto

15
unidade 1
Universidade Aberta do Brasil

é, calcada na ideia de indivíduo. A intenção é que conta. Assim, se um


mercador não tinha a intenção de espoliar os mais pobres e se praticou o
justo preço, cobrando juros normais, então ele pode ser salvo. Essa nova
conduta permite mais espaço social aos usurários e àqueles que viviam do
dinheiro. O comércio lentamente ganha proeminência assim como os próprios
comerciantes, chamados comumente de burgueses. O espírito do capitalismo
estava nascendo.

Figura
Jan Van Eyck, Casal Arnolfini, 1434, National Galery, Londres. A burguesia
busca marcar o seu lugar social no século XV.

Dessa forma, não podemos falar de uma configuração social, no


caso, o capitalismo, sem uma configuração mental que lhe corresponda.
Isso não quer dizer que uma antecede a outra: estamos falando de uma
relação de imanência, ou melhor, as duas se criam conjuntamente. A
estrutura social tem a estrutura mental como correspondente imediata.

16
unidade 1
História Moderna II
Este é o caso do capitalismo. A aceitação das práticas mercantis, do lucro,
da cobrança de juros, do pagamento do trabalho em forma de salário,
entre outras coisas, foram possíveis porque a sociedade assim se fazia;
por isso não podemos imputar somente a determinadas forças sociais as
causas das mudanças.
Podemos ver os seus resultados, mas estabelecer suas causas nos
resta como um problema. O sucesso social dos banqueiros, dos usurários
não dependeu unicamente das contradições inerentes ao sistema feudal ou
das necessidades materiais do próprio sistema. Também entraram em cena
desejos e paixões. Sonhos utópicos e promessas de futuro. O capitalismo
pôde, muito bem, preencher o desejo de uma terra de abundância. E é
sabido que vários grupos sociais cultivaram a ideia de uma terra sem
males, os movimentos heréticos podem comprovar isso. (COHN, 1981).
A promessa de riqueza inerente ao capitalismo preenche esses desejos,
pelo menos em parte, pois a promessa não se realiza para todos, somente
para alguns, mas isso é o suficiente para manter a utopia.
Mas um aspecto importante no avanço das práticas mercantis foi
o decisivo apoio que os poderosos lhe deram. O dinheiro de banqueiros
permitiu que muitos reis, príncipes ou potentados gerissem os nascentes
estados nacionais. Aliás, eles foram figuras centrais neste processo. As
riquezas permitiam a monopolização da força, isto é, os reis podiam
contratar exércitos e com eles centralizar o poder. Dessa forma, um
círculo vicioso se instaura, riquezas patrocinam o monopólio do poder e
este permite que os produtores de riquezas ganhem mais. É o princípio
da política mercantilista.
Os reis puderam perceber quanto podiam ter vantagens ao
proteger e permitir a expansão das práticas do nascente capitalismo. A
circulação de riquezas ampliava os recursos obtidos através de impostos
e, consequentemente, permitia que se impusesse o maquinário do
Estado a recalcitrante aristocracia, a qual não desejava abrir mão de seu
poder. Logo, banqueiros, comerciantes, grandes usurários se tornaram
fundamentais para os Estados, e os governantes praticavam o chamado
mercantilismo. Em termos comuns ele pode ser caracterizado da seguinte
maneira:
Metalismo – a riqueza de um Estado era mensurada em ouro ou
prata, portanto o objetivo era conseguir cada vez mais numerário nesses

17
unidade 1
Universidade Aberta do Brasil

metais.
Balança comercial favorável – para conseguir mais ouro e prata era
necessário manter a balança comercial sempre favorável, vendendo mais
e comprando menos dos outros Estados.
Protecionismo – devia-se estimular a produção interna e taxar
significativamente os produtos importados, pois assim seria possível
manter a balança de pagamentos sempre positiva.
Intervenção do Estado na economia – no mercantilismo uma
grande novidade surge: é a intervenção do governo na condução dos
negócios. Até então, os reis não intervinham na economia, mas com
as novas práticas comerciais se tornou importante estimular negócios,
controlar preços, regulamentar e monopolizar a cobrança de impostos.
Essa política seria perfeita se somente um dos Estados, que
concorriam entre si, conseguisse se impor sobre os outros, senão haveria
um jogo de somar zero, pois um anularia o outro, já que todos desejariam
ter vantagens no comércio. Em função disso, inicia-se uma intensa
competição militar e diplomática, na qual Estados buscam melhor posição
na disputa por espaços na Europa: “Entre 1600 e 1760, os exércitos da
Europa clássica quintuplicam em número, conhecem uma multiplicação
por cem do seu poder de fogo e, sobretudo, mudam radicalmente de
método e de técnica”. (CHAUNU, 1985, p. 52).
No entanto, os limites do continente europeu são muito claros
e dificilmente um Estado teria força suficiente para se impor sobre os
outros, já que eram comuns as alianças diplomáticas. Quer dizer, se um
Estado não tivesse força militar suficiente para enfrentar um inimigo, ele
recorria a um sistema de aliança.
Outra saída era o mar, ou melhor, buscar territórios além-mar. Dá-se
início a uma intensa busca por territórios em outros continentes.

seção 2
as grandes navegações

Durante muito tempo tentou-se determinar o motivo dos homens nos

18
unidade 1
História Moderna II
séculos XV e XVI com relação às viagens de descobrimento.
A historiografia marxista, por exemplo, acreditando ter elucidado
o problema, afirmou que as relações materiais de produção determinaram
o comportamento dos homens em relação às viagens. Buscava-se ouro e
riquezas, além do domínio de territórios e populações. Porém, se observarmos
bem, é possível perceber que as grandes navegações foram iniciadas por
Estados não tão poderosos - Portugal e Espanha.
Muitos historiadores procuram explicar de que forma esses Estados
empreenderam as navegações e a expansão colonial. Situam interesses
da burguesia, a necessidade de rotas alternativas para as especiarias, a
situação geográfica. Porém muitos se esquecem de que as navegações e as
conquistas coloniais vieram na esteira da Reconquista.

A Reconquista foi a longa guerra empreendida pelos reis cristãos


da Península Ibérica contra os mouros, isto é, povos muçulmanos de
origem africana e árabe que haviam ocupado boa parte da Península
a partir do século VIII a.C. Por volta do século XI, as frequentes
escaramuças entre árabes e cristãos ganham ares de guerra santa e
logo os reis cristãos se investem de cruzados. Somente em 1492 os reis
católicos espanhóis conseguiram expulsar os árabes da Península. No
caso de Portugal, a reconquista teria terminado bem antes, quando o
reino português, no século XIII, praticamente adquiriu suas fronteiras
atuais.

Assim, durante muito tempo as iniciativas militares na Península


tiveram um caráter de cruzada, o que continuou quando Portugal
empreendeu a sua expansão marítima, iniciada no século XV. A posição
geográfica efetivamente auxiliou muito, pois Portugal só tinha duas
fronteiras: o mar e a Espanha. Também colaborou para essa expansão o fato
de o Estado português estar unificado e sem enfrentar grandes problemas
militares, como ocorria com a Espanha, a França, a Inglaterra.
No entanto, é importante frisar que essa expansão não foi
repentina. O périplo africano durou todo o século, por isso é difícil falar
que simplesmente havia uma procura consciente de uma rota para as
Índias. Podemos dizer que havia uma busca por mercados, de expansão
territorial, de catequização, de riquezas. Enfim, o móvel era um misto de

19
unidade 1
Universidade Aberta do Brasil

aventura, salvação e enriquecimento. Mas, de maneira inequívoca, até o


último quarto do século XV não havia um plano deliberado de alcançar
as Índias. O plano do Infante D. Henrique era mais simples:

Por que razão o infante empreendeu a exploração das costas africanas? Não se poderia
atribuir-lhe, nessa época longínqua, o ‘grande projeto’ de contornar a África para chegar
às Índias. O mais provável é que, navegando o mais longe possível para o sul, o
Infante quisesse, por assim dizer, chegar ao Marrocos pela retaguarda. Essas primeiras
expedições faziam parte da mesma política que levaria à conquista de algumas praças
fortes marroquinas. (TEYSSIER, 1992, p. 14).

A expansão se iniciou em 1415 com a conquista da cidade de


Ceuta, hoje no Marrocos, para culminar com a expedição de Vasco da
Gama, em 1498, que chegou a Calicute. Entretanto, é necessário falar
sobre os avanços técnicos que permitiram as navegações em alto mar. Foi
o caso das caravelas. De origem obscura, elas serviram à empresa das
navegações:

Servindo de ligação, correio e abastecimento nas armadas da Índia, as caravelas eram


os navios que melhor podiam aproveitar os ventos contrários, ofereciam pequeno
alvo aos inimigos, eram ligeiras e fáceis de manobrar, adaptando-se perfeitamente às
viagens de descobrimento, pois ‘demandavam pouco fundo, podendo chegar-se bem à
terra’, acompanhando com certa facilidade a sinuosidade das costas e sofrendo menos
com o entra e sai nas enseadas e costas dos rios. (MICELI, 1994, p. 74).

____________________________________________________________________________________________
Principais rotas dos navegantes.

20
unidade 1
História Moderna II
As caravelas foram os principais navios utilizados pelos portugueses
nas viagens marítimas e “o que se pôde apurar até agora é que a caravela
dos descobrimentos foi concebida e construída pelos portugueses por
volta de 1430-1440, aperfeiçoando-se ao mesmo tempo dois outros meios
técnicos: a navegação astronômica e a cartografia.” (Idem, p. 75). Assim,
um conjunto de técnicas permitiu a viagem em alto mar.
Porém, essas viagens não podem ser limitadas ao seu caráter técnico.
Como foi dito acima, muitos outros elementos estiveram envolvidos. Para
alguns, a glória e a riqueza; para outros, a possibilidade de liberdade;
outros, ainda, desejavam expandir o catolicismo. Enfim, misturam-se
desejos e condições materiais para realizá-las. Vejamos:

Independentemente de os verdadeiros motivos da nobreza que guiaram a expansão


serem a ambição de glória e o enriquecimento de suas casas senhoriais, isto é,
imperativos econômicos que os impeliram à busca de fontes de riqueza longe dos
estreitos limites dos seus países, e restos de mentalidade cavaleiresca, provindos do
velho espírito da cavalaria medieval, as causas profundas eram sempre escondidas
sob essa retórica cavaleiresca, que misturava o espírito da cruzada (...) e o proselitismo
militante. (ROCHA PINTO, 1992, p. 112).

Portanto, o encontro fortuito de técnicas, necessidades materiais,


desejos de glória e salvação levaram os portugueses ao mar. No entanto,
ainda cabe avaliar se era uma empresa que valia a pena. Os navios eram
precários e as condições das viagens quase indescritíveis:

Muitos viajantes da época dos descobrimentos enfrentaram os mares como alguém que,
hoje, entrasse num avião sem a garantia do aeroporto no final da viagem: assim como
os passageiros não podem voar para salvarem-se caso o pouso não seja possível, além
da incerteza dos caminhos, rotas e portos, grande número daqueles navegantes sequer
sabia nadar, morrendo aos montes quando os navios afundavam, às vezes a poucos
metros das praias. Por isso, se o mar fazia-se agitado, olhos de desespero buscavam
os sinais menos evidentes que prenunciavam o naufrágio, provocando sentimentos de
medo e ódio capazes de pôr em disputa dois amigos por um pedaço de madeira que
poderia significar a salvação; cada um a seu modo, todos lutavam concentrando forças
de pânico, coragem ou covardia para escapar da morte – medo maior a assombrar a
vida a bordo. (MICELI, 1994, p. 17).

Relatos de naufrágios multiplicavam-se na época, com cenas de terror


que hoje custaríamos a acreditar, pois nada restava aos viajantes além de

21
unidade 1
Universidade Aberta do Brasil

apelar às graças de todos os santos existentes. A esquadra de Cabral, por


exemplo, que saiu de Lisboa com 13 navios, retornou com cinco (um deles
voltou para Portugal mais cedo do que o previsto para anunciar as terras
brasileiras recém descobertas), ou seja, na viagem à Índia sete navios
naufragaram. Um texto de Messer Leonardo da Ca’Masser, embaixador
veneziano em Portugal, nos dá a dimensão do empreendimento marítimo:

Ainda que essa viagem seja muito perigosa e que nela muito se sofra com a falta de
víveres e outros infortúnios – como muitos relataram – considerando-se entretanto o
grande lucro que se obtém, no caso em que a metade da frota se perdesse, nem por isso
se renunciaria a fazer essa viagem, pois – embora ainda menos navios se salvassem –
os ganhos seriam, de qualquer forma, enormes: assim, concluindo, direi que, apesar do
evidente perigo que correm as pessoas e as coisas, essa rota (das Índias) sempre será
freqüentada. (apud LANCIANI, 1992, p. 72).

Dessa forma, convive-se com o naufrágio, uma fatalidade que era


esconjurada, ou melhor, que se tentava esconjurar com apelos aos céus.
Rezas, procissões, exposição de relíquias, cruzes, tudo servia para afastar os
perigos e fazer a viagem chegar a bom termo: “As procissões quase sempre
eram feitas depois do pôr-do-sol, dando-se três voltas pelo convés. É possível
imaginar-se o efeito de um rito desenvolvido em alto-mar, iluminado apenas
por velas e tochas, enquanto o mar prometia surpresas e embates dificilmente
favoráveis aos navegantes.” (Idem, p. 73).
No entanto, se as intempéries e corsários eram causas comuns
dos naufrágios, a incúria e cupidez eram outras, como relatam muitos
sobreviventes:

Inextricavelmente ligada à sobrecarga e à deterioração, a ganância é o motivo


denunciado com mais freqüência pelos autores. Uma avidez que começa a se
manifestar quando a decisão de levantar âncora é tomada sem nenhum respeito
aos parâmetros temporais de segurança e às ordenações régias referentes à rota
a seguir, e quando se decide infringir a obrigação de navegar em comboio, a fim de
que houvesse socorro mútuo em caso de perigo: o importante era chegar ao destino
antes dos outros para vender sua mercadoria em melhores condições. Mas a cupidez
humana também pode se manifestar sob outras formas: calafates pagos por tarefas
para executarem reparos apressados, carpinteiros que não deixam secar previamente
os cascos ou utilizam madeira que não envelheceu o suficiente, e, mais ainda, cortada
em tempo impróprio (...) oficiais que preferem (...) embarcar um saco de canela a
mais, ao invés de peças de reposição para as bombas; nobres que, com ilimitada
arrogância, apoderam-se das poucas e precárias embarcações para salvar seus bens,
em lugar de vidas humanas. (LANCIANI, 1992, p. 74 e 75).

22
unidade 1
História Moderna II
Porém, a mortalidade nos naufrágios concorria com aquelas devidas
às doenças que grassavam nos navios. As péssimas condições de higiene e
acondicionamento dos alimentos causavam a morte de muitos. A expedição
de Fernão de Magalhães, por exemplo, “partiu de Sevilha, em setembro
de 1519, com cinco navios e 234 tripulantes. Após muitas peripécias e três
longos anos, somente uma nau retornou ao porto de origem, com 18 homens
a bordo, tendo o próprio comandante morrido em combate nas Filipinas.”
(JOANILHO, 2008, p. 48).
As doenças eram dos mais variados tipos, mas a que causava mais
medo era o escorbuto. Sem conhecer exatamente a causa, sabia-se, no
entanto, que alimentos frescos curavam a doença. Porém, era impossível nos
navios armazenar frutas e verduras que durassem mais do que alguns dias;
logo, somente nos portos de escala é que os navios podiam se abastecer. O
problema é que os víveres nunca eram suficientes para as longas viagens.
Além do escorbuto, outras doenças advinham das péssimas condições de
bordo e também aquelas que embarcavam com os marinheiros:

Embora atacassem principalmente os mais miseráveis, as doenças atingiam a maioria


dos mareantes. No navio em que viajava o padre Pedro Boaventura, após um início
tranqüilo, os mareantes foram atingidos por ‘uma febre maligna da qual adoecemos, de
seiscentos que éramos, 580, não ficando vinte pessoas que ou mortas [ou] enfermas
não haviam [estado]’, morrendo a cada dia seis, sete e, às vezes nove pessoas.
Como era freqüente, os padres também adoeceram: ‘ainda que meio enfermo e
fraquíssimo, fui forçado [a] sair em campanha por muitos que haveriam de morrer sem
os sacramentos ditos; e também por estar uma senhora muito principal muito ao cabo,
sendo muito moça e prenhe de oito meses, a qual no fim faleceu (parindo primeiro
mal), e no dia seguinte [morreu] um seu filho de ano e meio, ficando o marido muito
ao cabo, e as demais mulheres enfermas, as quais eram nove ou dez’. Enquanto isso,
os mortos eram estendidos no convés, à espera de alguém que os pudesse lançar ao
mar, sepultura dos que morriam durante as viagens. (MICELI, 1994, p. 159).

Nobres, oficiais e abastados levavam seus próprios alimentos,


enquanto que marinheiros e grumetes dependiam das rações fornecidas
pela coroa. Em pouco tempo, a ração (biscoitos, pão, arroz, vinho e
água) estragava, e a tripulação chegava a passar fome quando, por
ocasião de uma calmaria ou de outros fatores, o navio prolongava o
seu tempo de viagem:

Os que pior (...) passam são os pobres e desamparados, os soldados que é piedade

23
unidade 1
Universidade Aberta do Brasil

ver a má vida que levam, com um biscoito muito negro e às vezes cheio de gusanos,
como eu vi muitas vezes, e às vezes tão amargo, que mais sabe a fel: que o pão e a
água (...) é tão fedorenta pelo grande calor, que creio que nenhum deles por grande
preço, achando-se em terra onde houvesse [o] que comer, [por mais] que fosse
desejoso, a beberia. E têm eles tanta necessidade que não se queixam tanto de ser
ruim, [mas] de ser pouco. Algum vinho que se lhes dá é quase vinagre e muito sujo
(...). Nos dias de pescado não têm outra coisa mais para comer, senão molhar
neste vinagre este pão podre ou muito ruim e manter-se com isto (...). A carne, além de
ser muito pouca, também é muito salgada e não têm onde deixá-la de remolho, porque
na borda da nau ou a comem os peixes ou a tomam (...); finalmente são constrangidos
estes pobres homens a comer e beber da água salgada em que outros cozeram sua
carne. (Padre Marcos Nunes apud MICELI, 1994, p. 158).

Essas condições são espantosas, principalmente se levarmos em


conta a sociedade de higiene à qual pertencemos. É-nos impossível
mesmo imaginar as condições sob as quais estavam submetidos
viajantes daquele período. No entanto, a despeito de tudo, ainda
empreenderam a expansão territorial.
Navegantes portugueses, no início, e espanhóis, em seguida,
deram feição ao mundo do período moderno e foi atrás deste tipo de
conquista que outros Estados os seguiram, dando origem à colonização
europeia em vários continentes. Foram os ibéricos que formaram, de
fato, o que Fernand Braudel chamaria de economia-mundo, quer dizer,
formaram-se círculos concêntricos que emanavam de alguns centros
de caráter mundial, como foi o caso de Lisboa:

A imagem de grandeza projetada por Lisboa exercia forte atração sobre estrangeiros
e sobre os habitantes do restante do país, que procuravam a cidade talvez na crença
de que lhes sobrasse um pouco da riqueza movimentada pela empresa da expansão
e conquista.
Da componente estrangeira que, desde meados do século X, chegou a Lisboa, faziam
parte alemães e italianos, principalmente, além de flamengos, espanhóis e franceses.
Em sua maioria, dedicavam-se ao comércio, mas incluíam técnicos da marinharia,
artistas ou ‘simples aventureiros’. (MICELI, 1994, p. 49).

O mercantilismo proporcionava uma revolução comercial, pois,


embora não fosse novidade o tráfico de especiarias, sedas, ouro,
marfim, escravos etc., a sua escala foi em muito ampliada, alcançando
regiões do mundo que nem tinham sido antes sonhadas. Todavia para
conseguir essa revolução era necessário ocupar territórios.

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unidade 1
História Moderna II
seção 3
a ocupação de novos territórios

Jan Van Der Straet, 1575 in BRY, Jean-Théodore de, America décima pars.
Oppenheim 1619.

A imagem é unívoca, símbolo da civilização: Américo Vespúcio


diante da América nua, pronta para ser fecundada pelo conquistador.
Podemos acompanhar as reflexões de Michel de Certeau:

Américo Vespúcio, o Descobridor, vem do mar. De pé, vestido, encouraçado, cruzado,


trazendo as armas européias do sentido e tendo por detrás dele os navios que trarão
para o Ocidente os tesouros de um paraíso. Diante dele a América Índia, mulher
estendida, nua, presença não nomeada da diferença, corpo que desperta num espaço
de vegetações e animais exóticos. Cena inaugural. Após um momento de espanto neste
limiar marcado por uma colunata de árvores, o conquistador irá escrever o corpo do
outro e nele traçar a sua própria história. Fará dele o corpo historiado – o brasão – de
seus trabalhos e de seus fantasmas. Isto será a América ‘Latina’.
(...) Mas o que assim se disfarça é uma colonização do corpo pelo discurso do poder. É a
escrita conquistadora. Utilizará o Novo Mundo como uma página em branco (selvagem)
para nela escrever o querer ocidental. Transforma o espaço do outro num campo de
expansão para um sistema de produção. A partir de um corte entre um sujeito e um
objeto de operação, entre um querer escrever e um corpo escrito (ou a escrever) fabrica
a história ocidental. (CERTEAU, 1982, p. 9 e 10).

Signo da diferença, a alteridade torna-se o espaço no qual se

25
unidade 1
Universidade Aberta do Brasil

inscreveram as vontades do conquistador. Talvez pudéssemos resumir a


história da colonização da América e, por que não, de outros espaços,
como a imposição de uma história, de uma única narrativa possível para o
gênero humano. Nessa narrativa se dissolvem as diferenças e se estabelece
a igualdade. No entanto, se há igualdade na alma, não há no corpo.
Logo, a diferença no Ocidente não é a remissão ao outro, mas o sentido
do discurso do Mesmo. Confirma-se, assim, a sociedade hierárquica e
individual. A Conquista da América é afirmação do indivíduo mercantil.
Tanto a expansão portuguesa quanto a expansão espanhola se
fizeram em favor de povos autóctones. Mas tiveram variações em cada
parte do mundo e de acordo com modelo distintos entre espanhóis e
portugueses. Enquanto em Portugal se diz “descobrimento” (termo
contestado atualmente), na Espanha se diz “conquista”, o que caracteriza
melhor o empreendimento colonial.
A relação com os povos conquistados também tem diferenças,
apesar de que, na prática, resultou num desastre enorme para esses
povos. Os portugueses buscavam extrair rapidamente riquezas sem uma
preocupação profunda na catequização dos habitantes ou sem adentrar
nos territórios recém descobertos; enquanto os espanhóis, além das
riquezas, procuraram logo de início estabelecer empresas coloniais,
iniciando, assim, a ocupação da América.
Os portugueses deixaram de lado a empresa colonial na América
em favor do comércio com o Oriente. Somente quando esse comércio
entrou em declínio, houve preocupação em ocupar as terras americanas.
De qualquer maneira, a expansão para o Oriente obedeceu à mesma
lógica que imperava nos navios, quer dizer, foi feita de maneira dura e
violenta. Vejamos como os portugueses são descritos por um árabe:

Os muçulmanos de Malabar viviam no bem-estar e na comodidade graças à afabilidade


dos príncipes do país, ao respeito de suas tradições e aos favores ligados à sua
condição. Entretanto, eles esqueceram os benefícios, pecaram e se revoltaram contra
Deus. E por isso Deus lhes enviou como senhores os portugueses, franco cristãos
– que Deus os abandone! – que os oprimiram, corromperam e submeteram a atos
ignóbeis e infames. Não se contavam mais as violências, o desprezo, os sarcasmos
quando os obrigavam a trabalhar; punham suas embarcações a seco, lançavam-lhes
lama ao rosto e ao resto do corpo, e escarravam neles; eles os espoliavam de seu
comércio, proibiam a sua peregrinação [a Meca], os roubavam, queimavam suas
cidades, fiscalizavam seus navios, maltratavam o Corão e seus livros [de religião]
que pisoteavam e queimavam; profanavam o recinto sagrado das mesquitas (...);
capturavam os muçulmanos e impunham grossas correntes aos cativos, arrastando-

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unidade 1
História Moderna II
os para as praças dos mercados para vendê-los como escravos, e os violentavam
então de modo incrível para obter melhor preço (...). (Zaynuddin apud BOUCHON,
1992, p.229 e 230).

Hans Staden, 1557. Uma imagem que aterrorizava os exploradores era a do canibalismo. Ela
permite a desconstrução do Outro, apresentando-o como selvagem e antropófago, o que coloca o
europeu em situação de superioridade, pois é portador da civilização.

Essa situação se repetia em todos os locais nos quais os portugueses


fizeram praça. Porém, tais “métodos” de ocupação não funcionam por
longo tempo. As populações locais se revoltavam, tanto que o domínio
português no Oriente já enfrentava grandes problemas por volta de 1530,
até entrar em declínio e quase terminar por ocasião da União Ibérica
(1580-1640).
Começou, então, a ocupação das terras americanas, não de modo
totalmente satisfatório, pois diferentemente do que aconteceu com os
espanhóis, não foram encontradas grandes quantidades de ouro e prata,
metais tão desejados. Todavia procurou-se produzir nessas terras o que
mais dava lucros naquele momento: o açúcar. Foi assim que se iniciou a
exploração do Brasil.
Como é sabido, transplantou-se para cá a estrutura senhorial que
dominava Portugal. Os territórios da América portuguesa foram divididos
em capitanias e todo o poder foi entregue para os donatários, que deveriam

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unidade 1
Universidade Aberta do Brasil

agir em nome do rei. Mas eles trataram os nativos americanos do mesmo


modo que tratavam os nativos do outro lado do mundo, isto é, não faziam
diferença entre asiáticos, americanos ou africanos.
De início, os donatários procuraram explorar a mão-de-obra dos
indígenas. Em seguida, passaram a escravizá-los, tentando suprir a falta
de braços para as primeiras atividades extrativistas, principalmente de
pau-brasil. Com a implantação dos engenhos de açúcar, os senhores
de engenho recorreram à escravização dos indígenas. No entanto, os
interesses da coroa falaram mais alto e foi imposta a escravidão africana
como mão-de-obra, permitindo à coroa portuguesa um maior controle
do tráfico de escravos e, portanto, da cobrança de impostos sobre esse
comércio.
No caso brasileiro, a conquista foi possível porque os portugueses
encontraram sociedades tribais que, de início, tiveram dificuldade
para se organizarem e resistirem aos invasores. Como exemplo, temos
a Confederação dos Tamoios. Portugueses e franceses, que também
exploravam as costas brasileiras, se utilizaram das tradicionais rivalidades
entre tribos indígenas e insuflaram os nativos a combaterem entre si,
visando à dominação colonial de um em detrimento do outro.
Já os espanhóis se confrontaram com reinos altamente organizados,
como o Asteca e o Inca e é por isso que, apropriadamente, chamam a
ocupação da América de conquista. No caso do Império Asteca, havia
uma forte organização hierárquica e vários povos estavam sob o domínio
imperial.
Mas, cabe uma questão: por que os espanhóis, com algumas
centenas de soldados, conseguiram subjugar um Império vasto com um
exército bem organizado?A resposta comum dada pela historiografia é a
da superioridade técnica europeia face os ameríndios. Se levarmos isso
em conta, perceberemos que o avanço técnico não era tão díspar com
relação à quantidade. A vantagem técnica dos europeus era suplantada
pelo número de indígenas. Os arcabuzes eram imprecisos e difíceis de
serem rearmados, os canhões tinham alcance limitado e não causavam
estragos irreparáveis e, enfim, mesmo que essas armas tivessem efeitos
significativos, nada poderiam contra milhares de indígenas. A resposta
estaria em duas ações dos espanhóis: a primeira foi aproveitar as
dissensões entre os ameríndios, a segunda foi a utilização dos signos.

28
unidade 1
História Moderna II
Podemos observar essas duas ações através do trabalho de Tzvetan
Todorov. Ao estudar o sistema linguístico de europeus e indígenas do
período, o autor percebeu que se tratava de dois conjuntos mentais
diferentes. De início, coloca-se o problema da comunicação. Vejamos:

Seria forçar o sentido da palavra ‘comunicação’ dizer (...) que há duas grandes formas
de comunicação, uma entre os homens, e outra entre o homem e mundo, e constatar
que os índios cultivavam principalmente esta última, ao passo que os espanhóis
cultivavam principalmente a primeira? Estamos habituados a conceber somente a
comunicação inter-humana, pois o ‘mundo’ não sendo um sujeito, o diálogo com ele
é bastante assimétrico (se é que há diálogo). Mas talvez esta seja uma visão limitada,
responsável, aliás, pelo sentimento de superioridade que temos nesse campo. A noção
seria mais produtiva se fosse ampliada de modo a incluir, além da interação de indivíduo
a indivíduo, a que existe entre a pessoa e seu grupo social, a pessoa e o mundo natural,
a pessoa a o universo religioso. E é este segundo tipo de comunicação que desempenha
um papel predominante na vida do homem asteca, que interpreta o divino, o natural e o
social através de indícios e presságios, com o auxílio do profissional que é o sacerdote-
advinho. (TODOROV, 1993, p. 67).

Nesse sentido, o mundo passa a ser um texto com significado


estabelecido, portanto, ele deve ser lido. Não que esse tipo de pensamento
estivesse excluído dos conquistadores, pelo contrário. Os espanhóis
sempre procuravam sinais que a Providência enviaria, no entanto a forma
de comunicação se diferencia, pois a divindade dos cristãos é pessoal, isto
é, está numa relação entre o fiel e o próprio Deus. No caso dos astecas,
a divindade não se comunica diretamente, pois os indícios, os sinais,
estão estabelecidos desde sempre, tanto que: “A submissão do presente
ao passado continua a ser uma característica significativa da sociedade
indígena da época, e podemos observar indícios dessa atitude em vários
outros campos além do religioso”. (Idem, p. 80).
Esse traço essencial da mentalidade indígena é correlato da
concepção cíclica do tempo. Os acontecimentos do presente devem ser
repetições daqueles que já ocorreram no passado, é uma sociedade na
qual o inaudito não cabe:

Os livros antigos dos maias e dos astecas ilustram essa concepção do tempo, tanto por
seu conteúdo quanto pelo uso que deles se faz. São guardados, em cada região, pelos
adivinhos-profetas e são (entre outros) crônicas, livros de história; ao mesmo tempo,
permitem prever o futuro; já que o tempo se repete, o conhecimento do passado leva ao
conhecimento do futuro; ou melhor, são a mesma coisa. (Idem, p. 81 e 82).

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unidade 1
Universidade Aberta do Brasil

Já os espanhóis compartilham de outra experiência temporal. Para


eles, os acontecimentos são únicos e, do ponto de vista teológico, eles visam
a uma única história para toda a humanidade, a da salvação. Para eles não
há retorno; logo, o inaudito, o não comum, está inserido nas possibilidades
de futuro. Assim, não se imobilizam diante do Império Asteca. Pelo
contrário: veem nele uma oportunidade de ganhos materiais e, por que não,
espirituais.

Deste choque entre um mundo ritual e um acontecimento único resulta a incapacidade


de Montezuma em produzir mensagens apropriadas e eficazes. Grandes mestres
da fala ritual, os índios saem-se muito mal em situação de improvisação; e é esta,
precisamente a situação da conquista (...) Ora, a invasão espanhola cria uma situação
radicalmente nova, completamente inédita, uma situação onde a arte da improvisação
é mais importante do que a do ritual. Nesse contexto, é bastante notável ver que
Cortez não só pratica constantemente a arte da adaptação e da improvisação, como
também tem consciência disso, e o reivindica como princípio de seu comportamento.
(TODOROV, 1993, p. 84).

A imobilidade de Montezuma diante do invasor denota a


incapacidade da mentalidade indígena em lidar com o inaudito. É
notável como Montezuma pedia constantemente aos seus sacerdotes
para dizerem o que eram exatamente aqueles estranhos. Quer dizer, ele
tentou todo o tempo localizá-los dentro do conjunto de acontecimentos
do passado. Sem encontrar uma resposta deixou os espanhóis chegarem
até a sua presença, prendê-lo e dominar o Império:

Montezuma sabia colher informações sobre seus inimigos quando eles se chamavam
tlaxcaltecas, tarascos, huastecas. Mas o intercâmbio de informação era então
perfeitamente estabelecido. A identidade dos espanhóis é tão diferente, o comportamento
deles a tal ponto imprevisível, que abalam todo o sistema de comunicação, e os astecas
não conseguem mais fazer justamente algo que era especialidade deles: a coleta de
informações. (Idem, p. 17).

Quando se esboça uma reação, ela é tardia, porque os espanhóis


souberam sublevar povos que estavam sob o domínio asteca, fazendo
deles aliados. Imaginando se livrar da tirania dos astecas, os indígenas
aceitaram o comando dos espanhóis, caindo numa tirania ainda pior.
De qualquer forma, o confronto entre mentalidades deu uma
vantagem inicial aos europeus. Tanto que Cortez, ao desembarcar, busca

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unidade 1
História Moderna II
logo informações sobre os indígenas. O que ele quer “não é tomar, mas
compreender; são os signos que interessam a ele em primeiro lugar, não
os referentes. Sua expedição começa com uma busca de informação, e
não de ouro. A primeira ação importante que executa – a significação
deste gesto é incalculável – é procurar um intérprete.” (Idem, p. 96).
Enquanto Montezuma é informado quase que instantaneamente
do desembarque dos espanhóis e não age, o conquistador busca a ação
através da informação. Utiliza constantemente imagens - como cavalos ou
tiros de canhão - para provocar reações nos indígenas, impressionando-
os e obtendo o que desejava.
Nesse sentido, o europeu reconhecia o outro para torná-lo o mesmo,
isto é, para cristianizar o indígena; já o ameríndio não reconhecia o
outro, pois não fazia parte do seu sistema de signos. Na guerra entre
signos e significantes, quer dizer, entre sinais e acontecimentos, os
europeus levaram vantagem.
Porém, a conquista nunca foi completa. Nas palavras do
dominicano Diego Duran, “esta é nossa principal intenção: prevenir o
clero da confusão que pode existir entre as nossas festas e as deles. Os
índios, simulando a celebração das festas de nosso Deus e dos santos,
inserem e celebram as de seus ídolos quando caem no mesmo dia”.
Ou, ainda: “Superstição e idolatria estão presentes por toda a parte: na
semeadura e na colheita, na conservação do grão, inclusive na lavoura
e na construção das casas, nos velórios dos mortos e nos funerais, nos
casamentos e nos nascimentos”. (apud TODOROV, 1993, p. 202 e 203).
Esse é um dos traços principais da cultura que nasce do encontro
do europeu com o indígena. No lugar de uma sociedade europeizada,
encontramos uma cultura mestiça, fruto do sincretismo e das astúcias de
sobrevivência dos mais fracos. Por toda a América vamos encontrando
essa cultura mestiça. Se o conquistador impôs sua ordem social – Estado,
leis, mercado, religião – os conquistados impuseram suas formas de
reler e dar outro sentido ao que era imposto.

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unidade 1
Universidade Aberta do Brasil

Pudemos estudar nesta unidade alguns aspectos da expansão europeia e das mentalidades que
acompanham o esforço por conquista de novos territórios.
Assim, na seção I, vimos como a mentalidade capitalista se formou, apesar das resistências e
obstáculos.
Na seção II, estudamos a configuração social que permitiu a expansão, vendo de que forma os
europeus encaravam a viagem marítima e a exploração colonial.
Enfim, na seção III, pudemos ver como se estabeleceu a relação entre o europeu e as populações
indígenas. Os diferentes quadros mentais jogaram um papel fundamental no estabelecimento da
empresa colonial europeia.
Desse modo, foi possível organizar um primeiro painel do período estudado, História Moderna, e
verificar de que forma nesse momento vão se configurando as sociedades contemporâneas.

Para compreender melhor a constituição de outras formas econômicas, leia o texto de MATTOS,
Laura Valladão de. “As razões do laissez-faire: uma análise do ataque ao mercantilismo e da defesa da
liberdade econômica na Riqueza das Nações” in Revista de Economia Política, vol 27, nº 1, São Paulo,
março 2007. Disponível em: http://www.anpec.org.br/encontro2005/artigos/A05A005.pdf

1 – O protestantismo muitas vezes favoreceu o desenvolvimento de uma mentalidade comercial. Nesse


sentido, as idéias de Lutero e Calvino apresentam diferenças importantes: enquanto o primeiro está
embebido em uma mentalidade medieval, que denuncia os abusos econômicos, o segundo desenvolve
uma ética religiosa favorável ao comércio e, até mesmo, à usura. Leia o texto abaixo que compara o
pensamento de Lutero e Calvino e elabore um texto único, que relacione a seção I (Mercantilismo) com
esse texto.

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História Moderna II
“Neste particular, o ensinamento dos moralistas puritanos que deriva mais diretamente de Calvino está
em marcante contraste com os teólogos medievais e com o de Lutero. A diferença não reside meramente
em uma das conclusões alcançadas, mas no plano em que a discussão é conduzida. O background. não
apenas da maior parte da teoria medieval, mas também de Lutero e de seus contemporâneos ingleses,
é a tradicional estratificação da sociedade rural. É mais uma economia natural, do que monetária,
consistindo nas barganhas miúdas de camponeses e de artesãos no estreito mercado do burgo,
onde a indústria é realizada para a subsistência da família e o consumo de riquezas segue-se quase
imediatamente à sua produção e onde o comércio e as finanças são incidentes ocasionais, mais do que
forças a manter todo o sistema em movimento. Quando criticam abusos econômicos, é precisamente
contra os desvios desse estado natural de coisas — contra a iniciativa, a cobiça do ganho, a competição
inquieta, que perturbam a estabilidade da ordem existente com clamorosos apetites econômicos – que
sua crítica é dirigida. Essas idéias eram o revide tradicional aos males do comercialismo inescrupuloso,
e deixaram alguns traços nos escritos dos reformadores suíços.
[...] Calvino, e mais ainda seus intérpretes posteriores, encetaram viagem rio abaixo. Ao contrário de
Lutero, que mirava a vida econômica com olhos de camponês e de místico, eles abordaram-na como
homens de negócios, nem dispostos a idealizar as virtudes patriarcais da comunidade camponesa, nem
a olhar com suspeita o mero fato da iniciativa capitalista no comércio e nas finanças. Tal como o antigo
cristianismo e o moderno socialismo, o Calvinismo foi em grande parte um movimento urbano; como
eles, em seus primeiros dias, foi levado de país a país em parte por comerciantes e trabalhadores que
emigravam; e seu baluarte residia precisamente naqueles grupos sociais para os quais o plano tradicional
da ética social, com seu tratamento dos interesses econômicos como um aspecto de muito pouca
monta nos negócios humanos, deve ter parecido irrelevante ou artificial. Como era de se esperar [...],
seus líderes dirigiam o ensinamento [...] às classes empregadas no comércio e indústria, que formavam
os elementos mais modernos e mais progressistas da vida da época. Agindo assim, naturalmente
começaram por um franco reconhecimento da necessidade do capital, do crédito e das transações
bancárias, do comércio e finanças em larga escala, e de outros fatos práticos da vida comercial.
Romperam assim com a tradição que, considerando a preocupação com os interesses econômicos
‘além do indispensável à subsistência’ como repreensível, havia estigmatizado o intermediário como um
parasita e o usurário como um ladrão. Colocaram os lucros do comércio e das finanças [...] ao mesmo
nível de respeitabilidade que os salários do trabalhador e as rendas do proprietário.” (TAWNEY, R. H. A
religião e o surgimento do capitalismo. São Paulo: Perspectiva, 1971, p. 109-111.)

2 – Após ler a seção II (As grandes navegações), analise o mapa abaixo e elabore um texto que
descreva as condições da expansão marítima européia do século XV.

Mapa
Mapa feito por Henricus Martellus, em 1490.
Representa o mundo que os navegantes do
século XV conheciam. (Fonte: www.google.
com)

3 – Após ler a seção III (A ocupação dos novos territórios), analise as imagens da seção e a partir delas
elabore um texto que descreva as diferenças entre europeus e ameríndios.

4 – Leia o documento abaixo, fragmento de um texto de Frei Bartolomé de LAS CASAS, defensor dos
povos ameríndios, e elabore um texto que incorpore as informações do documento com a idéia principal
da seção III, a ocupação dos novos territórios.

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Universidade Aberta do Brasil

Documento

“Depois das enormes e abomináveis tiranias que estes fizeram na cidade do México e nas cidades
e muitas terras que há por redor, dez, quinze e vinte léguas de México, onde foram mortas infinitas
gentes, passou adiante essa sua tirânica pestilência, e foi infeccionar e assolar a província de Pánuco,
admirável pela multidão de pessoas que tinha e os estragos e matanças que ali fizeram.
Depois destruíram da mesma maneira a província de Cututepeque, e depois a província de Ipilcingo e
depois a de Colima. Cada uma delas é maior que o reino de Leão e o de Castela. Contar os estragos,
mortes e crueldades que fizeram em cada uma será sem dúvida muito difícil e impossível de dizer e
trabalhosa de escutar.
É de se notar que o modo com que entravam e pelo qual começavam a destruir todos aqueles
inocentes e despovoar aquelas terras, que tanta alegria e gozo deveriam causar aos que fossem
verdadeiros cristãos com sua tão grande e infinita população, era dizer que viessem sujeitar-se e
obedecer ao rei da Espanha; caso contrário haveriam de matá-los e fazê-los escravos. E aos que
não vinham rapidamente cumprir tão irracionais e estúpidas mensagens e colocar-se nas mãos de
tão iníquos, cruéis e bestiais homens, chamavam-nos rebeldes e revoltados contra o serviço de sua
Majestade. E assim escreviam para cá ao rei nosso senhor.
E a cegueira dos que regiam as Índias não alcançava nem entendia aquilo que em suas leis está
expresso e mais claro que qualquer outro de seus primeiros princípios, a saber: que ninguém, é nem,
pode ser chamado rebelde, se primeiro não é súdito.
[...] E o que é mais espantoso é que, aos que de fato obedecem, colocam em áspera servidão, com
incríveis trabalhos e tormentos ainda maiores e que duram mais do que os que lhes dão enfiando-lhes
a espada, daí que no final eles perecem, suas mulheres e filhos e toda sua geração.” (LAS CASAS,
Frei Bartolomé de. “Brevíssima relación de la destrucción de las Indias”, in MARQUES, Ademar Martins
et alii (sel.). História Moderna através de textos. São Paulo: Contexto, 1994.)

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História Moderna II

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unidade 1
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Universidade Aberta do Brasil

unidade 1
UNIDADE II
História Moderna II
Os Estados Nacionais

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
■■ Compreender a sociedade de ordens do Antigo Regime.

■■ Estudar a problemática do governo na Era Clássica.

■■ Analisar a sociedade de corte na Europa.

ROTEIRO DE ESTUDOS
■■ SEÇÃO 1 - A centralização do poder

■■ SEÇÃO 2 - A governamentalidade e o nascimento da biopolítica

■■ SEÇÃO 3 - O absolutismo

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Universidade Aberta do Brasil

PARA INÍCIO DE CONVERSA


A formação dos Estados Nacionais na era Moderna, antes de
obedecer a alguma lógica da História, é o encontro fortuito de práticas
sociais em torno do poder. Durante muito tempo, pelo menos desde o
século XIX, a historiografia tratou o Estado Nacional como um evento
“natural” do tipo “há homens, então há governo”. Seguindo essa lógica, o
tratamento dado a qualquer forma de poder sempre foi o de governantes
e governados. Tanto que, em história, estudam-se somente sociedades
que, deste ponto de vista, tenham formações “políticas”, deixando-se
de lado outras formas de organização social, como sociedades tribais,
consideradas objeto de ciências como a antropologia.
É interessante observar os livros didáticos. Após uma rápida
passagem sobre a pré-história, a narrativa se desenvolve a partir da
formação de sociedades no Oriente Médio, dizendo que a civilização
“nasce” no Crescente Fértil. Podemos até considerar tal evento, mas a
grande questão historiográfica é que esse nascimento também é marcado
pelo que se chama de Estados, associando-lhes invariavelmente a escrita.
Assim, vemos nesses livros a sucessão de reinos e povos de nomes
estranhos que pouco ou nada dizem respeito a nós mesmos. Caldeus,
sumérios, assírios e babilônicos desfilam diante dos nossos olhos e são
denominações que têm tanta importância quanto saber de cor os nomes
dos afluentes da margem esquerda do rio Amazonas. No entanto, a história
se contenta em “apresentar” a sucessão desses povos como se houvesse
alguma conexão real e efetiva entre eles.
Bom, para tal compreensão histórica, o Estado é o grande
ator. Logo, a sucessão de reinos, governos, impérios, repúblicas que
avançam até nossos dias não deixa de ser a história do Estado e de seu
aperfeiçoamento ao longo do tempo, ou melhor, do que alguns historiadores
acreditam que seja a narrativa deste fenômeno que, no fim das contas, é
“naturalizado”.
Nesta unidade, não tomaremos o Estado como o ator principal,
mas sim as práticas sociais em torno do poder no período compreendido
do século XV até o século XVIII. Não nos é possível tratar de todas as
práticas, mas elencamos algumas que podem ser consideradas centrais na
configuração do Antigo Regime e que se projetam para o nosso presente.

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unidade 2
História Moderna II
seção 1
A centralização do poder

Já vimos como o mercantilismo foi fundamental para a centralização


e fortalecimento do poder. No entanto, devemos ter sempre em conta
que essa centralização não pode ser imputada simplesmente às causas
econômicas, mas também às mentalidades que, como já dissemos, são
correlatas às condições materiais de existência.
Diferentemente do poder no Império Romano, o poder no fim
da Idade Média se aproxima muito mais do modelo católico, isto é, o
soberano ungido deve se aproximar do exemplo divino: ser justo e sábio,
sendo a própria Corte um “reflexo” da Corte divina, na qual santos, anjos,
querubins, etc. gozam, de acordo com o seu grau hierárquico, das bem-
aventuranças do Paraíso.
Veja o quadro apresentado a seguir.

Cimabue, Maestá, 1285, Galleria degli Uffizi.

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Universidade Aberta do Brasil

Neste quadro podemos ver a representação de Maria com o menino


Jesus, cercada de anjos e profetas. Ela está sentada num trono e sendo
adorada por vários anjos. Essa imagem é também a representação de uma
corte medieval, na qual o soberano é apresentado como um duplo da
corte celeste.
Com efeito, esse espelho não se resume a uma pura função
ideológica, é o próprio do funcionamento das monarquias:

Um primeiro traço ‘central’ põe em relevo o caráter sagrado da instituição monárquica.


As cerimônias de sagração (...) e o toque régio das escrófulas, com seu efeito curativo
ou miraculoso, são-lhe a expressão conhecida (...) A essência sagrada da monarquia
se inscreve, por outro lado, no interior de um sistema de entidades simbólicas e de
funções. A Renascença as aclara: elas incluem as noções de dignidade real e de justiça,
esta fundamental em relação à instituição soberana em seu conjunto. Essa justiça e
essa dignidade são imortais ou, pelo menos, sobrevivem à pessoa efêmera dos reis
sucessivos. (LADURIE, 1994, p. 9 e 10).

A unção do rei tinha como função estabelecer a sacralidade do


reinado. Dessa forma, a cerimônia de sagração, que na França ocorria
na catedral de Reims, confirmaria, na forma de espetáculo, o lugar do rei
na sociedade de ordens. Nesse sentido, as representações do poder, já no
período moderno, eram de um rei que encarnaria em si o próprio reino e
o destino dos súditos, pois a monarquia é sagrada. Talvez nem tanto os
monarcas, pois muitos não foram modelos de boa conduta. Daí a teoria
do duplo corpo do rei, e foram “juristas ingleses da época elisabetana
(que) propuseram a teoria dos dois corpos do rei: um é mortal, como o de
qualquer um. O Outro, que encarna a instituição monárquica, é imortal;
é transmitido regularmente do rei predecessor ao sucessor.” (LE ROY
LADURIE, 1994, p. 11).
Aqui podemos compreender o lugar do rei na sociedade do Antigo
Regime. Como foi dito, sua função não é puramente ideológica, ou melhor,
não deve ser vivenciada como algo - dito e feito - que não traduza o que
é a realidade efetiva. Ele deve cumprir o que lhe foi designado, uma
missão sagrada: conduzir as almas à salvação. Por isso, o corpo duplo do
rei associa-se diretamente à sociedade entendida como tripartida, isto
é, compreendia-se que a sociedade era dividida entre nobreza, clero e
trabalhadores. Ele estaria no cume de uma sociedade completamente
hierarquizada e é por essa razão que ele tem de estar visível o tempo todo.
Portanto, uma questão central nessa forma de representação do poder é o
espetáculo. A todo o momento o rei é requisitado para “mostrar” o poder:

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unidade 2
História Moderna II
O cerimonial associado ao monarca tem por função tornar visível o imaginário do corpo
simbólico. Quando um soberano morre, seu sucessor não traja luto porque o Rei não
poderia morrer. A etiqueta exige que em tal circunstância esteja vestido de vermelho,
cor que também usarão os membros do Tribunal de Justiça. (...) Cada acontecimento da
vida particular do rei acarreta repercussões no plano de seu corpo simbólico. Quando se
casa, é a nação que cresce e recebe como dote os novos territórios. Quando o príncipe
é derrotado na guerra, é a nação que fica amputada. O delfim não pertence ao rei ou à
rainha, mas ao reino e, por isso, a rainha dá à luz em público. (APOSTOLIDÈS, 1993,
p. 15 e 16).

O poder, no período, deve constantemente se mostrar. Pode-


se dizer que a representação é muito mais visual do que efetiva.
A presença do poder se faz mostrando e não agindo. Hoje, não
precisamos associar o poder a uma imagem específica; não obstante,
o Estado é uma presença constante: água, luz, sistema de saúde,
sistema de transporte, impostos etc. fazem parte do nosso cotidiano
e não precisamos relacionar, a todo o momento, essa presença a uma
figura pública. Se isso ocorre, podemos dizer que é uma representação
de poder à moda do Antigo Regime em que se liga diretamente o
poder a uma figura, mesmo que ela não faça parte do cotidiano, ou
melhor, faça parte esporadicamente do cotidiano, como as periódicas
cobranças de impostos e as aparições espetaculares.
Nesse período, o monarca se imiscui pouco no cotidiano dos
súditos através de ações estatais: “No plano político, a boa cidade
ou simplesmente a cidade clássica é um misto de poder real e de
poder comunal, ‘uma sociedade mista’. Compromisso lógico. Duas
entidades coexistem, estatal e citadina: o rei nessas condições não
poderia sufocar nem mesmo enfraquecer completamente os notáveis
das cidades.” (LADURIE, 1994, p. 22). Assim, a presença do poder
monárquico não é efetiva e contínua. Ele se vale de agentes que,
muitas vezes, não mantêm um contato constante com os súditos. A
maior parte das decisões é tomada no nível local.
Não devemos nos esquecer que é outra a configuração do
poder e da compreensão de governo. O papel do rei é ser justo e bom,
pois assim ele garantiria as benesses divinas. Por isso a sacralidade
da função real; afinal, o soberano é o intermediário secular entre a
vontade divina e os súditos. Tanto que,

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unidade 2
Universidade Aberta do Brasil

Quando Francisco I morre, a perenidade da função suprema é representada pela


efígie do defunto, manequim em tamanho natural; assemelha-se-lhe a ponto de se
confundir com o caro desaparecido; o fantoche é vestido de vermelho à imagem de seus
parlamentares justiceiros; desfila em pé e alteado, boneco gigantesco, em bom lugar no
cortejo fúnebre do falecido rei (...) A ausência de luto ou de traje preto é sublinhada pela
vestidura brilhante usada pelos magistrados; melhor do que um discurso, ela lembra que
a justiça não morre jamais, como membro principal da Coroa ou como corpo exterior e
imperecível do rei. (Idem, p. 11).

Todos os instantes da vida real se convertiam em espetáculo.


Corpo da nação, não há privacidade para reis. Eles têm de estar
visíveis todo o tempo. Não havia um quarto privativo para dormir
como conhecemos hoje. Ele era povoado de pajens, arautos, serviçais,
nobres que atendiam o monarca. Afinal, a nação não se esconde.

A cura das escrófulas A cerimônia que melhor traduz a idéia de incorporação é a entrada real. Essa
ou o toque real era uma manifestação não possui um ritual inflexível como a sagração em Reims, por exemplo.
cerimônia de origem Estreitamente associada à instauração do poder monárquico na França, ela tornou-
obscura, mas que era se mais complexa à medida que a realeza conseguia impor sua ordem. Em fins do
ligada às realezas século XIII, período em que a vida urbana é ainda pouco desenvolvida, é uma simples
francesa e inglesa. cerimônia de acolhimento (...) O desenvolvimento da burguesia urbana transforma o
Acreditava-se que os reis cerimonial. A entrada torna-se um pacto entre a monarquia e a burguesia, que crescem
tinham o poder de curar paralelamente em detrimento dos senhores feudais e do campesinato. A partir do
as escrófulas tocando- século XIV a acolhida encarrega-se de um ritual mais elaborado: o rei é recebido fora
as. A cerimônia consistia dos muros da cidade, a exibição é ruidosa, animada. A entrada torna-se o equivalente
no toque direto seguido político da Festa do Corpo de Deus: o monarca desloca-se sob um pálio; oferecem-lhe
do sinal da cruz. Isso uma sobrepaliz no adro da igreja onde será nomeado cônego de honra. Trata-se (...) de
ocorria um dia após a uma verdadeira Festa do Corpo do Rei. (APOSTOLIDÈS, 1993, p. 17 e 18).
sagração do rei. A partir
do rei Luís IX, São Luís, o
toque se torna periódico. Isso quer dizer que é a própria nação que é entronizada,
Há na historiografia uma
discussão a respeito da
confundindo-se os dois corpos. Afinal, o rei é a nação. Esse é o sentido
decadência da monarquia da famosa frase de Luís XIV, quando diz “l’Etat c’est moi” (O Estado
a partir do reinado de Luís
XV, que, recusando-se
sou eu). Porém muitos historiadores tomaram a frase e a prática como
fazer a confissão pelo fato prova de que os reis eram monarcas absolutos, isto é, impunham a sua
de manter como amante
a Madame du Barry.
vontade em detrimento dos outros corpos da nação, o que não acontecia
Quer dizer: se estava em de fato. O rei devia obediência à sua sacralidade, portanto, não podia se
estado de pecado, não
poderia fazer a cerimônia.
furtar de cumprir todo o cerimonial que se lhe requeria e também devia
Por isso o rei recebeu satisfazer os corpos e comunidades do reino. Em última instância, o rei
enormes críticas além
de ser alvo de chacota,
devia obedecer à própria religião e às imposições do cargo: aplicação da
o que, segundo alguns Justiça, da Soberania, da cura das escrófulas.
historiadores, ajudou
bastante os adversários
A ideia de que o monarca era absoluto ou que tudo podia é quase
do regime monárquico. uma caricatura da configuração de poder do Antigo Regime. Isso não

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unidade 2
História Moderna II
quer dizer que monarcas não eram autoritários e até mesmo sanguinários,
mas a teoria dos dois corpos e da sacralidade do corpo real não implica
diretamente a caricatura que muitos historiadores cultivaram.

Na verdade, o próprio termo ‘absolutismo’ era uma denominação imprópria. Nenhuma


monarquia ocidental gozara jamais de poder absoluto sobre seus súditos, no sentido de
um despotismo sem entraves. Todas elas eram limitadas, mesmo no máximo de suas
prerrogativas, pelo complexo de concepções denominado direito ‘divino’ ou ‘natural’
(...) Nenhum Estado absolutista poderia jamais dispor livremente da liberdade ou da
propriedade fundiária da própria nobreza, ou da burguesia, à maneira das tiranias
asiáticas suas contemporâneas. Nem, tampouco, conseguiram atingir uma centralização
administrativa ou uma unificação jurídica completas; os particularismos corporativos
e as heterogeneidades regionais herdados da época medieval marcaram os Ancien
Régimes até a sua destruição final. Desse modo, a monarquia absoluta no Ocidente
foi sempre, na verdade, duplamente limitada: pela persistência, abaixo dela, de corpos
políticos tradicionais, e pela presença, sobre ela, de um direito moral abrangente.
(ANDERSON, 2004, p. 49 e 50).

Acima de tudo, o rei era o monarca de uma sociedade de ordens.


Para os contemporâneos, a sociedade do Antigo Regime era dividida em
três ordens: a primeira era a do clero; a segunda, da nobreza; e a terceira,
do restante do povo. A teoria das três ordens é de origem medieval: “As
três componentes desta sociedade tripartida são, segundo a forma clássica
de Adalbéron de Laon, nos princípios do século XI: oratores, bellatores,
laboratores, quer dizer os clérigos, os guerreiros e os trabalhadores.” (LE
GOFF, 1979, p. 75).
A sociedade tripartida deriva, ao longo do período medieval, para a
sociedade de ordens do Antigo Regime. Os oratores se tornam o Primeiro
Estado, composto pelo clero. Os bellatores formam o Segundo Estado,
composto pelos nobres. Os laboratores formam o Terceiro Estado, porém
a sua composição não é precisa, pois não se trata simplesmente do resto
da população, mas também não só da burguesia. Na sociedade do Antigo
Regime, ser do povo significava pertencer a alguma comunidade, a algum
corpo, por exemplo, a uma guilda ou a uma municipalidade. Aqueles que
não tinham nenhuma pertença estavam excluídos do conceito de povo.
Logo, o Terceiro Estado tinha limitações à participação. Evidentemente,
quando os reis convocavam os Estados Gerais, os principais representantes
de cada ordem eram os que seriam enviados. Logo, o Terceiro ficou
caracterizado pela burguesia.
O regime monárquico se valia dessas três ordens para completar a

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unidade 2
Universidade Aberta do Brasil

sua autoridade. Afinal, para as teorias políticas da época, era o consenso


entre os súditos que daria a legitimidade da ação real. Podemos dizer,
então, que o poder real tinha duas bases de sustentação: uma religiosa - o
caráter sagrado da instituição monárquica - e uma laica - a aceitação por
parte do “povo” do monarca como indivíduo.
Porém, durante o Antigo Regime, a introdução da economia
mercantil, como veremos, acelerou o esclerosamento da sociedade de
ordens. Cada vez mais as sociedades se constituíam em classes e não
ordens. Na Inglaterra, por exemplo, desde o século XVII, os nobres se
alinhavam muito mais com a burguesia do que com o clero. O mesmo
ocorria na França, mas em menor escala, isto é, a nobreza se aproximava
dos conceitos de riqueza da burguesia, mesmo ainda menosprezando os
endinheirados sem título de nobreza.
Assim, vamos encontrar quatro grupos principais que estão à frente
do que seria a classe dominante nos séculos XVI e XVIII: a aristocracia de
espada; funcionários públicos togados; os magistrados de posições mais
altas; e os financistas: “Esses diversos grupos são aliados uns aos outros
por casamentos, regulados segundo o princípio (majoritário, pelo menos)
da hipergamia feminina. (Com dotes substanciais, as filhas de financistas
desposam filhos de magistrados; e as filhas de magistrados se casam com
jovens aristocratas, bem situados na escala social).” (LADURIE, 1994, p.
29).
Dessa forma, a sociedade de ordens se manteve, pelo menos
nominalmente, até a Revolução Francesa, mas não possui nada de efetivo,
pois apesar de manter nomes e posições, ela já não representa o que ocorre
na própria sociedade. Esse será um traço específico do Antigo Regime, quer
dizer, a política mercantil e liberal que ele implantou serviu para solapar
um de seus sustentáculos. O outro, constituído pelas as representações
sociais de poder, também sofre grandes modificações quando o poder
real deixa, ao longo dos anos, de ser associado ao sobrenatural, pois a
sociedade deseja muito mais ações diretas do governo nas questões
cotidianas, deixando de esperar pela ação divina nos domínios humanos.
De certa maneira, o poder se humaniza, mas, em contrapartida,
torna-se mais efetivo e presente na vida cotidiana. No Antigo Regime ele
era descontínuo e pouco efetivo. No final do período, exige-se que seja
contínuo e ativo, no sentido de influenciar a vida das pessoas.

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unidade 2
História Moderna II
seção 2
A governamentalidade e o nascimento
da biopolítica

A ideia de um poder efetivo, contínuo e presente não é uma invenção


da sociedade democrática como os revolucionários de 1789 quiseram
crer. Ele nasce das próprias monarquias nacionais. Podemos dizer que o
modelo mercantil de economia é um grande instrumento dessa mudança,
mas não o único. A necessidade de financiamento da máquina estatal que
estava se organizando levou os monarcas a procurarem cada vez mais o
apoio das burguesias, as quais, por sua vez,
tinham como contrapartida a possibilidade
de expandir seus negócios.
Essa aliança permitiu, em parte,
diminuir o peso das interdições com
relação ao dinheiro (cf. Unidade 1),
pois os banqueiros ganhavam cada vez
mais importância social, participando
ativamente da constituição dos Estados
Nacionais. Muitos burgueses galgam altos
postos nesses Estados, seja por compra de
cargos, seja por arrivismo, seja por favores
Neste quadro de finais
reais, o que implica uma sensível mudança
do século XV, a riqueza
com relação à forma de governo. Combina- ainda é vista como
passível de perdição. O
se a capacidade de capitalizar impostos em
avarento, no seu leito de
proveito do monopólio da força, adquirida morte, ainda recalcitra
em abandonar os bens
por governantes.
adquiridos, mesmo
Na busca por consolidação do seu quando visualiza a morte
adentrando o seu quarto.
poder, os monarcas precisavam cada vez
mais de exércitos permanentes e estruturas
de arrecadação de imposto. Obviamente Hierronymus Bosch, “A morte do
precisavam também de erário para tal avarento”, 1492, National Gallery of
Art, Whashington.
empreendimento. Financiando os monarcas,
os burgueses aumentam sua importância
nas monarquias nacionais. Mudança fundamental, pois o poder medieval

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unidade 2
Universidade Aberta do Brasil

era pautado na capacidade de barganha e na posse de terras. Agora,


além do território, o poder se mede também pela capacidade de um reino
gerar riqueza, que é, claro, revertida em grande parte na manutenção de
tropas. É uma nova modalidade de poder, aquele que Foucault chamou
de “governamentalidade”:

De modo geral, o problema do governo aparece o século XVI (...): problema do governo
de si mesmo – reatualizado, por exemplo, pelo retorno do estoicismo no século XVI;
problema do governo das almas e das condutas, tema da pastoral católica e protestante;
problema do governo das crianças, problemática central da pedagogia, que aparece e
se desenvolve no século XVI; enfim, problema do governo dos Estados pelos príncipes
(...)
Todos esses problemas, com intensidade e multiplicidade tão características do século
XVI, se situam na convergência de dois processos: processo que, superando a estrutura
feudal, começa a instaurar os grandes Estados territoriais, administrativos, coloniais;
processo, inteiramente diverso, mas que se relaciona com o primeiro, que, com a Reforma
e em seguida com a Contra-Reforma, questiona o modo como se quer ser espiritualmente
dirigido para alcançar a salvação. Por um lado, movimento de concentração estatal, por
outro de dispersão e dissidência religiosa: é no encontro destes dois movimentos que se
coloca, com intensidade particular no século XVI, o problema de como ser governado,
por quem, até certo ponto, com qual objetivo, com que método, etc. Problemática geral
do governo em geral. (FOUCAULT, 1979, p. 277 e ss.).

É interessante notar que a questão religiosa irá se configurar


num grande problema pelo menos até fins do século XVIII, quando
a política começa a se separar da religião. Afinal, se um rei segue
determinada Igreja e o súdito outra, é legítimo obedecer ao monarca?
Questão que gera dúvidas e recusas, perseguições e exílios, alianças
e guerras durante grande parte do período moderno. Assim, durante
o período, com poucas exceções, os reis impunham a sua religião aos
seus súditos. Foi sob tal signo que se deu a expansão marítima que será
a marca de vários reinos durante séculos, como a Espanha e Portugal.
Essa característica está em consonância com as práticas do “bom
governo”, segundo a literatura da época sobre o assunto. O monarca
deve, como diz Foucault, preocupar-se com o governo das almas, fruto
da atribuição reservada aos monarcas da formulação da sociedade
tripartite. Afinal, sendo ungido pela Igreja, ele deve defendê-la e
conduzir à salvação o seu povo. Com a Reforma, a atribuição ainda
permanece; logo, soberanos reformados também buscam a salvação
de seus súditos. No entanto, o modelo de governar sofreu profundas
alterações, pois

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História Moderna II
A introdução da economia no exercício político será o papel essencial do governo. E
se foi assim no século XVI, também o será no século XVIII (...) Governar um Estado
significará, portanto, estabelecer a economia ao nível geral do Estado, isto é, ter em
relação aos habitantes, às riquezas, aos comportamentos individuais e coletivos, uma
forma de vigilância, de controle tão atenta quanto a do pai de família (...) A palavra
economia designava no século XVI uma forma de governo; no século XVIII, designará
um nível de realidade, um campo de intervenção do governo através de uma série
de processos complexos absolutamente capitais para nossa história. (Idem, p. 281 e
282).

Podemos dizer, por exemplo, que Maquiavel se situaria numa


encruzilhada na questão do governo. De um lado, formas medievais de
posse e gestão; de outro, formas modernas de usos políticos e de práticas
de leis, mas a grande questão é o governo das coisas:

Estas coisas, de que o governo deve se encarregar, são os homens, mas em suas
relações com coisas que são as riquezas, os recursos, os meios de subsistência, o
território em suas fronteiras, com suas qualidades, clima, seca, fertilidade, etc.; os
homens em suas relações com outras coisas que são os costumes, os hábitos, as
formas de agir ou de pensar, etc.; finalmente, os homens em suas relações com outras
coisas ainda que poder ser os acidentes ou as desgraças como a fome, a epidemia, a
morte, etc. (FOUCAULT, 1979, p. 282).

O que podemos perceber é o processo de centralização de poder


e também das formas de controle e vigilância - temas menores quando
tratamos da soberania medieval. A questão da riqueza estava ligada
unicamente à posse de territórios ricos. Já no período moderno, o
problema é transformar os territórios em territórios ricos através da posse,
mas também através da própria população. Dessa maneira:

A monarquia clássica é inseparável, em primeiro lugar, de certo tipo de demografia,


resumido em uma conjuntura longa. Digamos que ela diz respeito essencialmente a
um período aproximativo de três séculos e meio (1450-1789), no decorrer do qual as
catástrofes são, por certo, abundantes; mas já não tem o caráter desintegrador ou
ultratraumatizante de que se tinham revestido ao longo dos períodos anteriores (...) A
demografia não se reduz simplesmente à célebre fórmula: ‘Contai, contai vossos homens;
contai, contai-os bem’. Ela inclui também alguma consideração das estruturas familiares.
Ora, estas não são indiferentes à instituição monárquica. (LADURIE, 1994, p. 17).

O empreendimento espanhol na América não visava exclusivamente


a retirar toda a riqueza possível, mas também a catequizar e tornar os
índios súditos reais, expandindo, dessa forma, a própria territorialidade
do monarca, incluindo mais homens, logo, mais riquezas.

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unidade 2
Universidade Aberta do Brasil

Portanto, uma série de finalidades específicas que são o próprio objetivo do governo. E
para atingir estas diferentes finalidades deve-se dispor as coisas. E esta palavra dispor
é importante, na medida em que, para a soberania (período medieval), o que permitia
atingir sua finalidade, isto é, a obediência à lei, era a própria lei; lei e soberania estavam
indissoluvelmente ligadas. Ao contrário, no caso da teoria do governo não se trata de
impor uma lei aos homens, mas de dispor as coisas, isto é, utilizar mais táticas do
que leis, ou utilizar ao máximo as leis como táticas. Fazer, por vários meios, com que
determinados fins possam ser atingidos. Isto assinala uma ruptura importante: enquanto
a finalidade da soberania é ela mesma, e seus instrumentos têm a forma de lei, a
finalidade do governo está nas coisas que ele dirige, deve ser procurada na perfeição,
a intensificação dos processos que ele dirige e os instrumentos do governo, em vez de
serem constituídos por leis, são táticas diversas. (FOUCAULT, 1979, p. 284).

Assim, a arte de governar no período moderno esteve ligada às


estratégias de “bom governo”, quer dizer, formas de impor uma dominação.
Desse modo,

em primeiro lugar, a teoria da arte de governar esteve ligada desde o século XVI ao
desenvolvimento do aparelho administrativo da monarquia territorial: aparecimento dos
aparelhos de governo; em segundo lugar, esteve ligada a um conjunto de análises e
de saberes que se desenvolveram a partir do final do século XVI e que adquiriram toda
sua importância no século XVII: essencialmente o conhecimento do Estado, em seus
diversos elementos, dimensões e nos fatores de sua força, aquilo que foi denominado
de estatística, isto é, ciência do Estado; em terceiro lugar, esta arte de governar não
pode deixar de ser relacionada com o mercantilismo e o cameralismo. (Idem, 1979, p.
285).

Por outro lado, é importante notar que essa forma de governo,


essa arte de governar não se desenvolve de forma autônoma. Ela
está ligada às formas de pensar o indivíduo no período, ou melhor, às
mudanças que a noção de individualidade sofre desde finais da Idade
Média e que se acentuam. Em primeiro lugar, podemos pensar que a
Renascença é a “redescoberta” do universo humano em detrimento das
visões teocentristas que a Igreja havia cultivado durante séculos, mas, em
segundo lugar, trata-se de profundas alterações no modo como o próprio
indivíduo é visto socialmente. Assim, o que a Renascença marca não é o
retorno de valores da antiguidade clássica, mas outra concepção de ser.
A título de comparação, é Cortez diante de Montezuma. Cortez
se compreende já como indivíduo, evidentemente marcado pelas
representações sociais em que pesava a ideia de expansão do catolicismo.
Já Montezuma se compreende como um ser integrado a um todo, um ser
cosmológico, ou melhor, regido por forças cósmicas. Daí a sua inquirição,
todo o tempo, acerca da sua conduta (cf. Unidade 1). Cortez, por sua vez,

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História Moderna II
se vê como um ser criado e separado da própria criação, portanto, como
algo autônomo.
Neste breve exemplo podemos distinguir dois modelos sociais: o
holismo e o individualismo. Para o primeiro, vamos falar de um indivíduo
que só pode ser compreendido dentro de um todo social, ou seja, o
indivíduo é parte do todo. Para o segundo, vemos um indivíduo autárquico,
ou melhor, o indivíduo é à parte do todo. O que ocorreu na Europa desde
finais da Idade Média foi a mudança, em termos gerais, de um tipo de
sociedade, a holística, para uma individualista. Vejamos:

Para os antigos (gregos e romanos) – à exceção dos estóicos – o homem é um ser


social, a natureza é uma ordem, e o que se pode vislumbrar, para além das convenções
de cada polis, como constituindo a base ideal ou natural do direito, é uma ordem social
em conformidade com a ordem da natureza (e, por conseguinte, com as qualidades
inerentes ao homem). Para os modernos, sob influência do individualismo cristão e
estóico, aquilo a que se chama direito natural (...) não se trata de seres sociais mas de
indivíduos, ou seja, de homens que se bastam a si mesmos enquanto feitos à imagem
de Deus e enquanto depositários da razão. (DUMONT, 1985, p. 87).

Nesse aspecto, as sociedades modernas têm no indivíduo a sua


forma básica, por isso o modelo familiar vai deixando de ser o modelo do
Estado em detrimento da população:

...até o advento da problemática da população, a arte de governar só podia ser pensada


a partir do modelo da família, a partir da economia entendida como gestão da família.
A partir do momento em que, ao contrário, a população aparece como absolutamente
irredutível à família, esta passa para um plano secundário em relação à população,
aparece como elemento interno à população, e portanto não mais como modelo, mas
como segmento (...), a população aparecerá como o objetivo final do governo (...) A
população aparece, portanto, mais como fim e instrumento do governo do que como
força do soberano; a população aparece como sujeito de necessidades, de aspirações,
mas também como objeto nas mãos do governo. (FOUCAULT, 1979, p. 288 e 289).

Trata-se de uma profunda mudança na própria concepção de poder.


O poder da soberania, quer dizer, o poder medieval, residia unicamente
na figura do monarca ou do soberano (duques, condes, barões etc.). Na
época moderna, assiste-se à passagem desse poder a outro, que, apesar
de nominalmente ainda se referir ao monarca como o alto da pirâmide
social, torna-se cada vez mais difuso:

49
unidade 2
Universidade Aberta do Brasil

...nunca a disciplina foi tão importante, tão valorizada quanto a partir do momento em
que se procurou gerir a população. E gerir não queria dizer simplesmente gerir a massa
coletiva dos fenômenos ou geri-los somente ao nível de seus resultados globais. Gerir
a população significa geri-la em profundidade, minuciosamente, no detalhe. (Idem, p.
291).

É interessante observar que essas mudanças na concepção do


indivíduo que estão presentes na arte de governar coincidem também
com o próprio aparecimento da Economia Política no século XVIII, isto
é, com uma forma de gerir indivíduos nas suas atividades de trabalho.
O próprio Estado se afasta da gestão das almas, quer dizer, afasta-se da
questão religiosa e se torna o gestor econômico. Nessa configuração, o
poder perde, cada vez mais, aos poucos, o seu caráter de centralidade
para se tornar diluído na sociedade. Ou, como afirma Foucault, torna-se
um micropoder.

seção 3
O absolutismo

Outro aspecto do período em estudo deve ser observado, aquilo que


Norbert Elias chamou de processo civilizador, ou seja, de como numa
sociedade atomística as relações entre monarcas e súditos e entre súditos
se organizam numa nova lógica, numa nova configuração. No Estado da
soberania, as relações se mostram unicamente por obediência, de acordo
como o lugar que cada um ocupa na hierarquia social. Veja o quadro
abaixo:

• Imperador (Kaiser, Csar)


• Rei
• Regente
• Príncipe monarca
• Príncipe imperial

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unidade 2
História Moderna II
• Príncipe real
• Grão-príncipe
• Príncipe
• Infante
• Arquiduque
• Grão-duque
• Duque (mais importante se da Família Real)
• Conde-duque (título espanhol atribuído aos condes de
Olivares e aos duques de Sanlúcar la Mayor)
• Marquês
• Conde
• Conde-barão (título português oitocentista, atribuído
aos condes e barões de Alvito)
• Visconde
• Barão
• Senhor
• Baronete
• Cavaleiro e Chevalier
• Escudeiro

(Fonte: Wikipédia)

Cada um carregava consigo não só o título, mas também o modo


de tratamento. Assim, na sociedade medieval, o lugar ocupado era por
herança ou sangue, e o mesmo era válido para camponeses e citadinos. O
lugar social estava determinado pelo nascimento, por exemplo, o título de
nobreza era familiar, passando de pai para filho, ou por casamentos que,
naquele momento, eram feitos por conta de alianças familiares.
Já no período moderno há grandes mudanças. Em primeiro
lugar, a ascensão social pode ser feita por dinheiro, quer dizer, já não
depende exclusivamente de herança, mas por conta de bons préstimos,
como atender a necessidades financeiras dos reis. Títulos passaram a
ser concedidos em maior número para pessoas que não tinham origem
nobre, era a chamada nobreza togada, o que, em parte, desgostava a
antiga nobreza de espada.

51
unidade 2
Universidade Aberta do Brasil

A nobreza togada era, na sua maioria, de origem burguesa. Muitos


tinham comprado altos cargos necessários no Estado Nacional, outros
tinham adquirido notabilidade por conta de casamentos. No caso dos
cargos, podemos observar:

O cargo (...) permite a seu detentor cumprir em defesa do rei ‘funções essencialmente
ligadas às jurisdições e à administração destas’. O cargo existe em virtude de um edito
ou de ‘cartas de provisão’. Só pode ser criado pelo rei ou por seus agentes devidamente
autorizados (...). O cargo confere honra e privilégios, aí incluídas eventualmente
a nobreza e a isenção de impostos (...). O cargo é estável: o rei só pode destituir o
funcionário muito dificilmente, e isso limita na mesma proporção a arbitrariedade da
monarquia dita absoluta (...). No topo de sua carreira histórica (séculos XVII-XVIII), o
cargo, de maneira legal, pode ser comprado com toda a propriedade por aquele que
se tornará seu titular, depois será revendido, ou legado, herdado (...) Essa proliferação
pode ser encarada sob o ângulo oportunista das necessidades do Estado: de Luís XIII
a Luís XIV, ele cria e liquida sem cessar novos fragmentos de poder público. Lotei-os a
candidatos compradores, a fim de encher seus cofres. Simultaneamente, colocam-se
questões de princípio: o que assim se persegue é o crescimento do Estado monárquico,
e o enquadramento cada vez mais aprofundado da sociedade por este. (LADURIE,
1994, p. 26 e 27).

Assim, a ascensão social patrocinada pelo Estado permite alguma


fluidez no corpo social e ao mesmo tempo algum controle, pois se cria
uma relação direta de dependência do funcionário togado com o rei,
mesmo que essa relação não se dê de forma fisicamente direta. Essa é
uma preocupação das monarquias nacionais, as quais, saídas do poder
medieval, ainda temiam a rebeldia nobiliárquica que todo instante se
manifestava; então era necessário exercer algum controle.
O caso francês é mais sintomático. A venda de cargos tirava, aos
poucos, o poder da nobreza, distribuindo-o para não nobres e, enquanto
isso, os reis se cercavam de cortesãos. Quer dizer, os principais nobres
giravam em torno do monarca:

A monarquia, sob sua forma clássica, liga-se ao funcionamento de uma Corte, centrada
em torno do soberano. Itinerante no tempo dos Valois. Fixada em Paris, Fontainebleau,
e sobretudo Versalhes, sob os Bourbon (...). Na França, Luís XIV prende a si os grandes
senhores e os torna dóceis por uma outorga de pensões que implica a residência em
Versalhes, em tempo parcial pelo menos. Sistema caro, mas rentável em termos de
paz interna do reino. Doravante ‘os nobres estão agrupados em torno do trono como
um ornamento e dizem àquele que ali toma lugar o que ele é’. Apesar dessa evolução
ornamental, os senhores não se tornam por isso escravos do Rei-Sol. No máximo
marionetes! Sua reunião em Versalhes permite a Sua Majestade dominar os fios
aranhosos de uma teia clientelista: os grandes aristocratas (Harcourt, Condé, Villeroy)
estão à frente de uma rede piramidal de relações deferentes (...). Na França, mas
também na Espanha e em Viena, a Corte erige-se em lugar geométrico das hierarquias.

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História Moderna II
Elas sustentam o sistema monárquico ou são subentendidas por ele. (LADURIE, 1994,
p. 14 e 15).

De certa forma, a sociedade de corte instaura a cadeia de poder


no Antigo Regime. O rei controlaria a sociedade a partir da própria
corte. Ela funcionaria como uma correia de transmissão de alto a baixo,
estabelecendo as distinções sociais, ou melhor, a sociedade hierárquica. O
que aparece nesse quadro como característica principal é a disputa entre
os burgueses em ascensão e a antiga aristocracia, especialmente aquela
de espada. Assim, as relações na corte são sustentadas pelas posições
hierárquicas, as quais

nunca foram tão aparentes como na antevéspera de sua extinção revolucionária. O


espírito hierárquico fixa-se em alguns aspectos: subdivisão cada vez mais extensa das
posições, ao longo de um eixo vertical, que desce da família real aos simples fidalgos,
passando pelos duques e pares. Referência às distinções entre o sagrado e o profano;
e também entre o puro e o impuro, o bastardo e o legítimo. Divisão da Corte em cabalas
ou facções, que germinam em torno dos diferentes ramos e gerações da família real.
Contrafenômenos de renúncia cristã em relação à Corte ou ao mundo, de um lado. E
feitos de hipergamia feminina, de outro lado: as mulheres, graças ao casamento, obtêm,
pelo artifício de um grande dote, maridos mais distintos do que elas próprias, e uma
posição mais elevada que a de seu nascimento. Assim, como trutas, sobem ao longo da
torrente dos desprezos. Vindas de níveis relativamente modestos, mas endinheirados,
chegam de maneira regular aos planos altamente colocados da Corte. (Idem, p. 15).

As monarquias apoiam e sustentam essas diferenciações no interior


da corte. Isso ocorre, em primeiro lugar, porque os reis não podem contar
com uma lealdade perfeita da alta aristocracia, pois devido a casamentos
e alianças havia muitos pretendentes ao trono no seio dela. Em segundo
lugar, havia a clara tendência centrífuga da aristocracia, isto é, se ela
dispusesse de algum poder, ele seria revertido em proveito próprio. Assim,
um nobre ocupando um alto cargo se apropriava sem muitos problemas
de grande parte dos lucros advindos do próprio cargo. Neste caso, deve
ficar claro que a visão de poder no Antigo Regime é patrimonial, ou seja,
há uma apropriação pessoal do bem público e isso não era visto como um
grande problema:

Se os direitos de aproveitamento, serviços, etc., se converteram em propriedades que


se classificam com o valor de ‘tantas libras’, nem sempre se converteram, não obstante,
em mercadorias acessíveis para qualquer comprador no mercado livre. A propriedade
assumia seu valor, na maior parte dos casos, somente dentro de uma determinada
estrutura de poder político, influências, interesses e dependência (...). Os cargos titulares

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Universidade Aberta do Brasil

prestigiosos (...) e os benefícios que eles traziam podiam ser comprados e vendidos;
mas nem todo mundo podia comprá-los ou vendê-los (...). Foi uma fase depredadora
do capitalismo agrário e comercial, e o Estado mesmo era um dos primeiros objetos de
presa. O triunfo na alta política era seguido por um butim de guerra, assim como a vitória
na guerra era com freqüência seguida pelo butim político. (THOMPSON, 1979, p. 23).

A desconfiança real com relação à aristocracia levou à constituição


das cortes. Ali se tentava domesticar a nobreza, como vimos acima, e
ao mesmo tempo liberava à burguesia o acesso aos altos cargos. Dessa
maneira, o rei diminuía a sua dependência da aristocracia (a formação
de exércitos nacionais liberou o rei da necessidade de contar com o apoio
militar dos nobres) e contava com o apoio da burguesia. Abre-se, assim,
uma disputa entre a nobreza e a burguesia pela influência na condução
do Estado.

Figura
Michel Dahl, Sir Charles Shuckburgh, 2nd Baronet, 1690, coleção particular. A nobreza
abandona aos poucos o seu caráter bélico e se adapta à corte, adquirindo hábitos e
comportamentos cada vez mais estilizados, opondo a sua conduta àquela dos burgueses.

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História Moderna II
O interessante dessa disputa, que se inicia ainda na Idade Média,
foi a intensificação da diferenciação dos modos de comportamento e
conduta, especialmente por parte da nobreza. Esta, por sua vez, mesmo
necessitando dos préstimos burgueses, nunca deixou de demonstrar
com desdém a distância que existia entre os seus valores e os valores
burgueses:

Esse desdém visa os grandes togados, eventualmente esnobados pela nobreza de


Corte. Ele vale a fortiori para os financistas, destinatários de uma estima social que se
mostra menos ainda: ‘É preciso esterco nas melhores terras’, dizia a sra. De Grignan
a propósito das bodas de seu filho que desposava a filha ricamente dotada de uma
arrematante de impostos. Quando à duquesa de Chaulnes, ele declarou a seu filho,
duque de Picquigny, que acabava de casar com a filha do opulento financista Bonnier:
‘Bom casamento, meu filho [...]. É preciso que busqueis esterco para fertilizar vossas
terras.’ Desta vez, tratando-se de financistas, o menosprezo social chega a evocar o
caráter fecal de sua riqueza, como manipuladores do fisco e do crédito real. (LADURIE,
1994, p. 29 e 30).

O desprezo da nobreza não se reflete apenas nos discursos. Desde


cedo, a nobreza procurou a distinção, e isso quer dizer que a ascensão
burguesa teve como contrapartida o modo de vida cada vez mais estilizado
dos nobres. De acordo com Norbert Elias (1990), o processo de civilização
é resultado de dois movimentos interligados: o de repressão das pulsões
e o de competição na sociedade da corte:

A civilização não é apenas um estado, mas um processo que deve prosseguir. Este é o
novo elemento manifesto no termo civilisation. Ele absorve muito do que sempre fez a
corte acreditar ser – em comparação com os que vivem de maneira mais simples, mas
incivilizada ou mais bárbara – um tipo mais elevado de sociedade: a idéia de um padrão
moral e costumes, isto é, tato social, consideração pelo próximo, e numerosos complexos
semelhantes. Nas mãos da classe média em ascensão, na boca dos membros do
movimento reformista, é ampliada a idéia sobre o que é necessário para tornar civilizada
uma sociedade. O processo de civilização do Estado, a Constituição, a educação e, por
conseguinte, os segmentos mais numerosos da população, a eliminação de tudo o que
era ainda bárbaro ou irracional nas condições vigentes, fossem as penalidades legais,
as restrições de classe à burguesia ou as barreiras que impediam o desenvolvimento
do comércio – este processo civilizador devia seguir-se ao refinamento de maneiras e à
pacificação interna do país pelos reis . (ELIAS, 1990, p. 62).

Isso implica que o conceito de civilização tem sua origem nas classes
superiores e, mais ainda, ela parte da nobreza que vê a burguesia se
aproximar dela própria. A sofisticação dos costumes, a politesse, o modo
de falar, de se vestir, de se comportar visam a marcar a diferença entre

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Universidade Aberta do Brasil

aqueles estabelecidos e os recém-chegados. Até por volta do século XII, a


nobreza se distinguia das outras classes simplesmente pelo nascimento.
Não se via a necessidade de marcar a distinção social, pois ela estava
dada. A ascensão burguesa tende a confundir os papéis, pois os burgueses
endinheirados buscavam títulos de nobreza e procuravam agir como
nobres. Estes, por sua vez, veem a necessidade de estabelecer formas de
diferenciação mais claras e efetivas; daí surge o processo civilizador. O
refinamento dos costumes ao longo de século segue a mesma trajetória
da ascensão burguesa e pela disputa de espaços na corte:

Se madame du Châtelet pode ainda, no século XVIII, banhar-se nua em frente de seu
criado de quarto, não é apenas porque este não tenha tido acesso a dignidade humana,
mas também porque o corpo aristocrático possui uma imaterialidade que faz dele o
suporte da alma nobre. O cortesão aprende a controlar-se em todas as circunstâncias,
a modelar seu rosto e gestos em função do decoro (...). O cortesão constrói-se como
um castelo, todo de fachadas. Só produz efeito pleno quando olhado de certa distância.
Bem iluminado por velas de cera, a meio caminho do comediante e da estátua,
aprece possuir uma natureza diferente. Velho, não engorda, não se torna calvo, não
muda de aparência: o cortesão é uma essência que escapa à degradação histórica.
(APOSTOLIDÈS, 1993, p. 49).

Porém, de maneira contraditória, todo esse processo não levou mais


poder à aristocracia, e sim permitiu que a burguesia participasse cada
vez mais da administração estatal e aumentasse a sua importância social
em detrimento da nobreza:

A longa recusa real a conceder o exercício de funções políticas à nobreza francesa,


o envolvimento desde cede de elementos burgueses no governo e na administração,
o acesso deles até mesmo às mais altas funções governamentais, sua influência e
promoções na corte – tudo isto teve duas consequências: por um lado, o contrato social
íntimo e contínuo entre elementos de origem social diferente e, por outro, a oportunidade
de elementos burgueses se empenharem em atividade política logo que amadureceu a
situação social e, antes disso, um forte treinamento político e uma tendência a pensar
em termos políticos. (ELIAS, 1990, p. 53).

Portanto, a marca dessa maior participação burguesa na condução


dos negócios públicos foi a possibilidade de ela própria tomar o poder,
o que de fato aconteceu na Revolução Francesa, ou de se imiscuir tanto
na condução da política que não se diferenciou mais da própria nobreza,
como no caso inglês.
O absolutismo real que se valeu das disputas internas entre burguesia
e nobreza acaba sofrendo as consequências de sua própria política e, ao

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História Moderna II
longo do século XVIII, mostra as fissuras para culminar, num caso, na
Revolução, noutro, num processo de simbiose no qual a própria nobreza
assume valores burgueses.

Para a formação dos Estados nacionais, o enriquecimento material dos reis foi acompanhado
por um conjunto de representações que legitimava seu poder. Na França, por exemplo, a sociedade
terrestre era a representação da sociedade celeste, o rei aparece como representante de Deus na terra
e sua corte, a nobreza, como representante dos anjos, santos e outros personagens divinos.
Do século XVI até o XVIII, em muitos países europeus, o rei e a nobreza foram se associando
cada vez mais à burguesia, que fornecia capital essencial à manutenção da máquina estatal. Esse
capital se tornava essencial quando o Estado passa a ter a responsabilidade de “governar as almas”,
isto é, administrar eficientemente a sociedade.
A crescente participação da burguesia no Estado favoreceu, por um lado, sua ascensão política
e social e, por outro lado, o processo de distinção empreendido pela nobreza, que não queria perder
seu status. Neste sentido a França é exemplar, pois a Revolução Francesa foi o momento de ruptura,
de tomada do poder estatal pela burguesia; e foi a nobreza francesa que provavelmente mais se
esforçou para se distinguir da burguesia, tendo como maior exemplo maior o rei Luís XIV, conhecido
como Rei-Sol.

O processo civilizador
O texto abaixo é do livro de Norbert Elias, O processo civilizador (Jorge Zahar, 1990, p. 201). Nele há
a descrição do que o autor chama de diversão no início do período moderno. A descrição pode se encaixar
muito bem naquilo que historiadores dos Annales chamaram de mentalidades. O objetivo do autor é mostrar
como as sensibilidades mudaram ao longo dos séculos, sem cair em lugares comuns como “evolução”
ou “progresso”. Para Elias, simplesmente, as sensibilidades mudaram porque entraram em cena forças
históricas profundamente humanas, como vimos nesta unidade.

“Um exemplo do século XVI pode servir de ilustração. Foi escolhido entre grande número de outros
porque mostra uma instituição na qual a satisfação visual de ânsia pela crueldade, do prazer em observar a
dor sendo infligida, emerge com especial pureza, sem qualquer justificação racional ou disfarce como castigo
ou meio de disciplinar.
Na Paris do século XVI, um dos grandes prazeres nas festividades do dia de São João (24 de
junho) consistia em queimar vivos uma ou duas dúzias de gatos. Esta cerimônia era famosa. A população
se reunia, música solene era tocada e, sob uma espécie de forca, erguia-se uma pira enorme. Em seguida,
um saco ou cesta contendo gatos era pendurado na forca. O saco ou a cesta começava a queimar, os gatos
caíam na pira e queimavam até a morte, enquanto a multidão se regozijava em meio a enorme algazarra.
Geralmente o rei e a rainha compareciam. Às vezes, concedia-se ao rei ou ao delfim a honra de acender a

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Universidade Aberta do Brasil

pira. E sabemos também que, certa vez, atendendo a um pedido especial do rei Carlos IX, uma raposa foi
capturada e queimada também.

Certamente este não é, na realidade, um espetáculo pior do que a queima dos heréticos ou as
torturas e execuções públicas de todos os tipos. Apenas parece pior porque o prazer em torturar criaturas
vivas mostra-se tão nuamente e sem propósito, sem qualquer desculpa aceitável pela razão. O asco
despertado em nós pelo mero relato desse costume, reação que deve ser considerada ‘normal’ pelo padrão
moderno de controle de emoções, demonstra, mais uma vez, a mudança a longo prazo na estrutura da
personalidade. Ao mesmo tempo, permite-nos ver com grande clareza um aspecto dessa mudança: grande
parte do que antes despertava prazer hoje provoca nojo. Hoje, como naquela época, não são apenas
sentimentos individuais que estão envolvidos. A queima de gatos no Dia de São João era um costume social,
como o boxe ou a corrida de cavalos na sociedade moderna. E, em ambos os casos, os divertimentos
criados pela sociedade para seu prazer materializam um padrão social de emoções dentro do qual todos os
padrões individuais de controle das mesmas, por mais variadas que possam ser, estão contidos. Todos os
que caírem fora dos limites desse padrão social são considerados ‘anormais’. Por conseguinte, alguém que
desejasse gratificar seu prazer à maneira do século XVI, queimando gatos, seria hoje considerado ‘anormal’
simplesmente porque o condicionamento normal em nosso estágio de civilização restringe a manifestação de
prazer nesses atos mediante uma ansiedade instilada sob a forma de autocontrole. Neste caso, obviamente,
opera o mesmo tipo de mecanismo psicológico com base no qual ocorreu a mudança a longo prazo da
personalidade: manifestações socialmente indesejáveis de instintos e prazer são ameaçadas e punidas com
medidas que geram e reforçam desagrado e ansiedade. Na repetição constante do desagrado despertado
pelas ameaças, e na habituação a esse ritmo, o desagrado dominante é compulsoriamente associado até
mesmo a comportamentos que, na sua origem, possam ser agradáveis. Dessa maneira, o desagrado e a
ansiedade socialmente despertados – hoje representados, embora nem sempre nem exclusivamente pelos
pais – lutam com desejos ocultos.”

O povo e a nação
No texto abaixo, Jean-Marie Apostolidès descreve a participação dos indivíduos nos desfiles
monárquicos feitos por ocasião da entrada do rei nas cidades. Era um ritual comum desde a Idade Média,
quando as cortes eram itinerantes. O rei chega à cidade e seus súditos o acolhem. Com o passar dos anos,
o ritual ganha em pompa, tornando-se um espetáculo da monarquia. Nesse espetáculo realizam-se todas as
formas de distinção e exclusão de ordens e indivíduos, como veremos.

“A nação é constituída pelos indivíduos das três ordens que possuem a maior quantidade de bens.
Forma o embrião da burguesia, na acepção da palavra no século XIX. No momento da entrada, somente
uma minoria vinda das três ordens é chamada para desfilar com o príncipe, a fazer parte do espetáculo
diante do povo que ela representa. O cerimonial monárquico acentua assim uma polarização social que ele
traduz concretamente. A sociedade francesa cristaliza-se através de um ritual festivo cujas imagens servirão
de suporte à nova consciência: conforme se desfila ou não. Pertence-se à nação ou ao povo. Não se trata de
negar a diversidade dos subgrupos que constituem o povo e a nação, mas a separação em dois blocos, latente
na vida diária, tornou-se manifesta à época da entrada. A festa vem a ser uma ocasião para exprimirem-se as
novas divisões sociais. Fornece-lhes um brilho que as sanciona à vista de todos. O visual precede o escrito,
servindo-lhe de esboço: a imagem permite a tomada de consciência de uma dicotomia que a lei mais tarde
reforçará. De um lado, aqueles que tomam parte da procissão, o alto clero, a nobreza da corte, a minoria
poderosa do terceiro estado; na frente, os espectadores comprimidos ao longo da passagem do cortejo. A
milícia burguesa, formando uma ala de honra nas ruas, enfatiza a separação entre os que estão associados à
cerimônia e os que são apenas espectadores. Estes, nos jornais, são genericamente designados como povo,
ou um de seus derivados de conotação pejorativa.
Os detentores de cargo, os que juntaram dinheiro suficiente para conseguir um emprego, são
associados ao desfile, ao passo que são relegados para o lado do público os que exercem trabalho
‘mecânico’, os produtores diretos e os indivíduos que apenas vendem a força de seus braços. Esta separação
em dois blocos concretiza os desejos de Charles Loyseau, um dos principais escritores políticos do início do
século (XVII). Em seu Traité dês ordres, a fim de situar os beneficiários da acumulação primitiva oriundos
da terceira ordem numa relação igualitária com a aristocracia, traça uma linha que separa as profissões

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História Moderna II
honoríficas das ocupações vis. Para ele, é a possibilidade de exercer um cargo que caracteriza, como
escreveu Boris Porchnev, a natureza iminente de cada burguês, aquilo que o distingue do povo’. No seio
da nação, indivíduos provenientes de horizontes diversos perdem sua especificidade. Experimentam, em
relação uns aos outros, uma espécie de indiferenciação que os define como semelhantes, adquirindo uma
equivalência na honorabilidade que contrasta com a rudeza do povo. São a presa do desejo mimético que se
apoderou de George Dandin ou do senhor Jourdain (personagens de Molière). Participam do mesmo sistema
de compreensão do mundo, enriquecendo segundo as mesmas práticas. Assim se compreende o lugar que
ocupa a cultura no nascimento do espírito burguês: após haver cortado os vínculos que a prendiam ao Antigo
Regime, a classe burguesa encontrará uma nova transcendência na universidalidade de seu gosto e de sua
cultura.
Por sua vez, a massa dos desfavorecidos submete-se ao mesmo processo de indiferenciação. O
povo não se unifica na partilha dos mesmos costumes. Encontra sua equivalência no despojamento de seu
saber e modo de vida tradicionais, despojamento que acompanha uma exclusão da cultura erudita. Possui,
do espetáculo monárquico, uma compreensão diferente da nacional. Para os indivíduos instruídos, a entrada
real guarda um sentido que se trata de reconhecer: as alegorias, as inscrições latinas lhes são familiares, pois
são encontradas em todas as manifestações do espetáculo. É através desse saber que a nação se define,
recuperando em seu benefício o modo de compreensão da aristocracia feudal. Fecha-se nela mesma quanto
à partilha de um saber inacessível. Na alegoria, o importante não é visível de imediato, o significante sugere
algo que não é mostrado. O povo não tem acesso às sutilezas alegóricas recebendo a cerimônia como um
todo. O poder monárquico não lhe dirige conteúdo algum, impondo-se através do monopólio dos signos do
espetáculo.
Os raros representantes do povo admitidos no cortejo desfilam como sinais de riqueza, como posses
dos membros da nação. Na comitiva de Mazarino, os pajens, os cavalos ou os objetos de arte não são
expostos em razão do seu valor de uso, mas como manifestações ostentatórias de poder. Homens, animais
e objetos já não têm função específica, equivalem-se. Coisificados, manifestam equivalência abstrata, aquela
do ouro que o cardeal possui. Todos têm o verniz do espetáculo que os torna inconsumíveis, isto é, sem
valor de uso. A exposição das posses não é senão uma exibição quantitativa do poder social, uma ocasião
para manifestá-lo e aferi-lo. Se Mazarino manda desfilar seus cavalos, seus burros e serviçais em grupos
de 24, o rei manda desfilar os seus em grupos de trinta. No século XVII, as posses não determinam ainda
a classe social, mas são exibidas como sinais de poder. A economia não constitui uma categoria separada
do real. Só se expressa através de um código do espetáculo, como o encenado no dia da entrada do rei.”
(APOSTOLIDÈS, Jean-Marie. O rei-máquina: espetáculo e política no tempo de Luís XIV. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1993, p. 21 e 22).

O povo e a sagração do rei


O texto a seguir é um trecho da obra de Peter Burke, A fabricação do rei: a construção da imagem
pública de Luis XIV. Nele Burke descreva a importância das cerimônias de coroação e de cura das escrófulas,
para o imaginário popular e consolidação do poder real.

“A coroação e sagração (lê sacre) de Luís ocorreram em 1654 [...]. O ritual teve lugar, segundo
rezava o costume, na catedral de Reims [...]. A cerimônia incluía um juramento prestado pelo rei, prometendo
conservar os privilégios de seus súditos; perguntava-se também à congregação se aceitava ou não Luís
como rei. Seguiam-se a benção dos emblemas reais, entre os quais a chamada ‘espada de Carlos Magno’,
esporas e o anel que o historiador Denys Godefroy descreveu como ‘a aliança com que o dito senhor esposa
o Reino’ [...]. A seguir veio o momento da sagração. O corpo do rei foi ungido com o crisma, o santo óleo da
âmbula sagrada, um frasco que se dizia ter sido trazido do paraíso por uma pomba quando Clóvis, o primeiro
rei cristão de França, foi balizado por São Rémy. O bispo pôs o cetro na mão direita do rei, na esquerda pôs
a ‘mão da justiça’
e na cabeça a ‘coroa de Carlos Magno’. Seguiram-se a homenagem da alta nobreza do reino e a
revoada de um bando de pássaros no ar. O ritual foi assistido por embaixadores estrangeiros e (com mais
dificuldades, do lado de fora da catedral) por uma multidão de gente do povo. [...] Os que perderam os atos
puderam ler as descrições em muitos panfletos e ver as gravuras da coroação oficialmente encomendadas
ao artista Henri d’Avice. [...] O ritual foi assistido por embaixadores estrangeiros e (com mais dificuldades,
do lado de fora da catedral) por uma multidão de gente do povo. [...] O que o historiador precisa descobrir

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Universidade Aberta do Brasil

não é tanto ‘o que realmente aconteceu’, mas o que aconteceu na interpretação da gente da época. Não
podemos presumir que todos viram as cerimônias sob a mesma luz. Ao contrário, o sacre parece ter sido
interpretado sob duas luzes muito diversas por diferentes tipos de pessoa. O significado do sacre para a
dinastia relativamente nova dos Bourbons era certamente mostrar sua legitimidade, estabelecendo contato
com soberanos anteriores, de Clóvis a São Luís. A cerimônia projetava também a imagem da monarquia
sagrada. Poderíamos dizer — e a gente da época de fato dizia — que o crisma tornava Luís semelhante
a Cristo e o sacre o tornava sagrado. Mais tarde, em suas memórias, Luís afirmou (tal como os teóricos
da monarquia absoluta) que sua sagração não o fizera rei, simplesmente o declarara rei. Acrescentou, no
entanto, que o ritual tornara sua realeza ‘mais augusta, mais inviolável e mais santa’. Essa santidade pode
ser ilustrada pelo fato de, dois dias depois, o jovem rei ter desempenhado pela primeira vez o ritual do toque
real. [...] O poder curativo do toque real constituía um poderoso símbolo do caráter sagrado da realeza.
Nessa ocasião, Luís tocou três mil pessoas. Ao longo de seu reinado, tocaria muito mais.” (BURKE, Peter. A
fabricação do rei: a construção da imagem pública de Luís XIV. Rio de Janeiro: Zahar, 1994, p. 51-55.)

1 – Após ler o texto principal e a seção “Saiba mais” da unidade II, elabore um texto analítico
sobre as imagens abaixo, que descreva como é possível a partir delas perceber as formas de legitimação
do poder e diferenciação do rei e da nobreza em relação aos outros grupos socioculturais, na época
do absolutismo.

Luís XIV e sua família,


retratados como deuses romanos
por Jean Nocret, em 1670.
(Fonte: www.google.com)

Luís XIV, retratado por Hyaconth Rigaud, na


época de seu reinado. (Fonte: www.google.com)

60
unidade 2
História Moderna II
2 – Após ler a seção II (A governamentalidade e o nascimento da biopolítica) e a seção “Saiba
mais” da unidade II, analise o documento apresentado a seguir e produza um texto que explique a
que tipo de governo o documento se refere. Busque utilizar citações do documento e dos textos da
apostila.

“[...] [Damiens fora condenado, a 2 de março de 1757], a pedir perdão publicamente diante
da porta principal da Igreja de Paris [aonde devia ser] levado e acompanhado numa carroça, nu, de
camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; [em seguida], na dita carroça, na praça
de Greve, e sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas
das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo
de enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche
em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado
por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas
lançadas ao vento. Finalmente foi esquartejado [relata a Gazette d’Amsterdam]. Essa última operação
foi muito longa, porque os cavalos utilizados não estavam afeitos à tração; de modo que, em vez de
quatro, foi preciso colocar seis; e como isso não bastasse, foi necessário, para desmembraras coxas do
infeliz, cortar-lhe os nervos e retalhar-lhe as juntas... Afirma-se que, embora ele sempre tivesse sido um
grande praguejador, nenhuma blasfêmia lhe escapou dos lábios; apenas as dores excessivas faziam-
no dar gritos horríveis, e muitas vezes repetia: ‘Meu Deus, tende piedade de mim; Jesus, socorrei-me’.
Os espectadores ficaram todos edificados com a solicitude do cura de Saint-Paul que, a despeito de
sua idade avançada, não perdia nenhum momento para consolar o paciente. [O comissário de polícia
Bouton relata]: Acendeu-se o enxofre, mas o fogo era tão fraco que a pele das costas da mão mal e
mal sofreu. Depois, um executor, de mangas arregaçadas acima dos cotovelos, tomou umas tenazes
de aço preparadas ad hoc, medindo cerca de um pé e meio de comprimento, atenazou-lhe primeiro a
barriga da perna direita, depois a coxa, daí passando às duas partes da barriga do braço direito; em
seguida os mamilos. Este executor, ainda que forte e robusto, teve grande dificuldade em arrancar os
pedaços de carne que tirava em suas tenazes duas ou três vezes do mesmo lado ao torcer, e o que
ele arrancava formava em cada parte uma chaga do tamanho de um escudo de seis libras. Depois
desses suplícios, Damiens, que gritava muito sem, contudo, blasfemar, levantava a cabeça e se olhava;
o mesmo carrasco tirou com uma colher de ferro do caldeirão daquela droga fervente e derramou-a
fartamente sobre cada ferida. Em seguida, com cordas menores se ataram as cordas destinadas a
atrelar os cavalos, sendo estes atrelados a seguir a cada membro ao longo das coxa, das pernas e
dos braços. O senhor Lê Breton, escrivão, aproximou-se diversas vezes do paciente para lhe perguntar
se tinha algo a dizer. Disse que não; nem é preciso dizer que ele gritava, com cada tortura, da forma
como costumamos ver representados os condenados: “Perdão, meu Deus! Perdão, Senhor”. Apesar
de todos esses sofrimentos referidos acima, ele levantava de vez em quando a cabeça e se olhava
com destemor. As cordas tão apertadas pelos homens que puxavam as extremidades faziam-no sofrer
dores inexprimíveis. O senhor Lê Breton aproximou-se outra vez dele e perguntou-lhe se não queria
dizer nada; disse que não. Achegaram-se vários confessores e lhe falaram demoradamente; beijava
conformado o crucifixo que lhe apresentavam; estendia os lábios e dizia sempre: “Perdão, Senhor”. Os
cavalos deram uma arrancada, puxando cada qual um membro em linha reta, cada cavalo segurado
por um carrasco. Um quarto de hora mais tarde, a mesma cerimônia, e enfim, após várias tentativas,
foi necessário fazer os cavalos puxar da seguinte forma: os do braço direito à cabeça, os das coxas
voltando para o lado dos braços, fazendo-lhe romper os braços nas juntas. Esses arrancos foram
repetidos várias vezes, sem resultado. Ele levantava a cabeça e se olhava. Foi necessário colocar dois
cavalos, diante dos atrelados às coxas, totalizando seis cavalos. Mas sem resultado algum. Enfim o
carrasco Samson foi dizer ao senhor Lê Breton que não havia meio nem esperança de se conseguir e
lhe disse que perguntasse às autoridades se desejavam que ele fosse cortado em pedaços. O senhor
Lê Breton, de volta da cidade, deu ordem que se fizessem novos esforços, o que foi feito; mas os
cavalos empacaram e um dos atrelados às coxas caiu na laje. Tendo voltado os confessores, falaram-
lhe outra vez. Dizia-lhes ele (ouvi-o falar): ‘Beijem-me, reverendos’. O senhor cura de Saint-Paul não
teve coragem, mas o de Marsilly passou por baixo da corda do braço esquerdo e beijou-o na testa.
Os carrascos se reuniram, e Damiens dizia-lhes que não blasfemassem, que cumprissem seu ofício,
pois não lhes queria mal por isso; rogava-lhes que orassem a Deus por ele e recomendava ao cura

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unidade 2
Universidade Aberta do Brasil

de Saint-Paul que rezasse por ele na primeira missa. Depois de duas ou três tentativas, o carrasco
Samson e o que lhe havia atenazado tiraram cada qual do bolso uma faca e lhe cortaram as coxas
na junção com o tronco do corpo; os quatro cavalos, colocando toda força, levaram-lhe as duas coxas
de arrasto, isto é: a do lado direito por primeiro, e depois a outra; a seguir fizeram o mesmo com os
braços, com as espáduas e axilas e as quatro partes; foi preciso cortaras carnes até quase aos ossos;
os cavalos, puxando com toda f orça, arrebataram-lhe o braço direito primeiro e depois o outro. Uma
vez retiradas essas quatro partes, desceram os confessores para lhe falar; mas o carrasco informou-
lhes que ele estava morto, embora, na verdade, eu visse que o homem se agitava, mexendo o maxilar
inferior como se falasse. Um dos carrascos chegou mesmo a dizer pouco depois que, assim que eles
levantaram o tronco para o lançar na fogueira, ele ainda estava vivo. Os quatro membros, uma vez
soltos das cordas dos cavalos, foram lançados numa fogueira preparada no local sito em linha reta
do patíbulo, depois o tronco e o resto foram cobertos de achas e gravetos de lenha, e se pôs fogo à
palha ajuntada a essa lenha. [...] Em cumprimento da sentença, tudo foi reduzido a cinzas. O último
pedaço encontrado nas brasas só acabou de se consumir às dez e meia da noite. Os pedaços de carne
e o tronco permaneceram cerca de quatro horas ardendo. Os oficiais, entre os quais me encontrava
eu e meu filho, com alguns arqueiros formados em destacamento, permanecemos no local até mais
ou menos onze horas. Alguns pretendem tirar conclusões do fato de um cão se haver deitado no dia
seguinte no lugar onde fora levantada a fogueira, voltando cada vez que era enxotado. Mas não é difícil
compreender que esse animal achasse o lugar mais quente do que outro. (apud FOUCAULT, Michel.
Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 9-10.)

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unidade 2
História Moderna II

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unidade 2
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Universidade Aberta do Brasil

unidade 2
UNIDADE III
As revoluções inglesas

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
■■ Compreender a mentalidade religiosa e política presente na Inglaterra do

século XVII.

■■ Estudar os grupos socioculturais e as relações de forças presentes nas

revoluções inglesas.

■■ Refletir a respeito das relações entre política e sociedade.

ROTEIRO DE ESTUDOS
■■ SEÇÃO 1 - A Revolução de 1640

■■ SEÇÃO 2 - A Revolução de 1688

■■ SEÇÃO 3 - Política e sociedade


Universidade Aberta do Brasil

PARA INÍCIO DE CONVERSA

Durante o século XVII, ocorreram profundas mudanças


socioeconômicas, políticas e culturais na Inglaterra. Em geral,
esse momento é denominado de Revolução Inglesa ou, quando
subdividido, de Revolução Puritana e de Revolução Gloriosa, com
seus respectivos marcos cronológicos em 1640 e 1688. Neste texto,
pelo valor explicativo, adotaremos a segunda denominação. Isso não
significa que entendemos esse momento revolucionário de forma
independente ou isolada de todo um conjunto de mudanças que
aconteciam na Europa.
Como assinala Edward P. Thompson, as revoluções da era
moderna ocorridas na Inglaterra foram um processo de “longa
duração”, o qual, com momentos indefiníveis, avanços (1640 e 1688)
e retrocessos (1660 – restauração do rei), acaba por estabelecer
uma estrutura socioeconômica e política que garante a dominação,
primeiramente, de uma burguesia fundiária (gentry) e, posteriormente,
se alia ao capital comercial e industrial (THOMPSON, 2001, p. 203-
207).
A interpretação de Christopher Hill buscou demonstrar que
não existiram contornos claros durante as revoluções inglesas,
como costumamos projetar a partir de concepções posteriores.
Havia diversos grupos socioculturais em luta, buscando impor suas
concepções políticas, religiosas e econômicas, como os levellers,
diggers, anabatistas, familistas, quacres e muitos outros, além da
gentry e da alta nobreza inglesa. Isto é, o presente era enevoado e o
futuro incerto (HILL, 1987, p. 29-35).
Daí, podemos dizer que as revoluções inglesas de 1640 e 1688
fazem parte de um processo de “longuíssima duração”, a saber:
a instituição das representações de mundo e práticas que hoje
denominamos capitalistas. Como já mencionado, esse processo não foi
claro e nem irremediável (como querem algumas vertentes marxistas).
Forjadas por diversos grupos socioculturais, existiram inúmeras
possibilidades “não capitalistas”, práticas e representações religiosas,
econômicas, políticas etc. que acabaram sendo “dominadas”.

66
unidade 3
História Moderna II
seção 1
a revolução de 1640

Em 1603 morreu Elizabeth I, último representante da Casa de Tudor


que reinou na Inglaterra desde 1485. Tanto o reinado de Elizabeth I quanto
o de seu antecessor e pai Henrique VII são considerados um período de
prosperidade econômica e, principalmente, de harmonia entre o Parlamento
e o poder Real. Pelo menos é o que pensava a gentry, às vésperas da
Revolução de 1640:
Na Inglaterra a gentry
é a pequena nobreza
[...] a gentry parlamentar sonhava com uma idade de ouro de harmonia política entre (nobilitas minor)
Coroa e Parlamento, e uma política interna e externa de caráter protestante, que ela geralmente agrária,
acreditava ter existido nos velhos bons tempos da rainha Elisabeth e aos quais esperava empreendedora
retornar. (STONE, 2000, p. 104). e protestante. Os
gentlemen (membros da
gentry) não possuíam
os privilégios jurídicos
Segundo muitos historiadores, foi esse grupo social que mais se
da alta nobreza, mas
beneficiou com a Revolução Inglesa (HILL, 1987, p. 29; ARRUDA, 1990, dominavam a chamada
Câmara dos Comuns
p. 15; ANDERSON, 2004, p. 125-126 & THOMPSON, 2001, p. 213).
no Parlamento. Era
Certamente, a vontade dos gentlemen de (re)construir uma época de ouro necessário ter uma
vida “gentil” – isenta de
de caráter religioso, econômico e político favoreceu a queda da monarquia
trabalho manual – e ser
inglesa. Porém, que época de ouro era essa que deveria ressurgir? aprovado pelo Colégio
Heráldico para se tornar
Os governos Tudor, de certa forma, favoreceram a ascensão
um gentleman (fidalgo,
política, econômica e religiosa desse grupo de pessoas, pois, como forma cavalheiro, gentil-
homem).
de reduzir o poder que a alta nobreza possuía sobre suas regiões, os
primeiros Tudor conferiram cargos administrativos nas cidades e nos
campos à gentry. Quando Henrique VIII rompeu com a Igreja de Roma
e confiscou suas terras na Inglaterra, em meio a guerras externas e com
os cofres vazios, se pôs a angariar fundos, vendendo essas propriedades
eclesiásticas, direta ou indiretamente, para gentry. Além disso, no processo
de desenvolvimento da Igreja nacional (Anglicana), a Coroa cedeu ou
vendeu a leigos – grande parte membros da gentry – o padroado sobre
muitos benefícios eclesiásticos como, por exemplo, a nomeação do clero.
Destarte, em muitas regiões o rei perdeu o controle sobre sua própria
Igreja (STONE, 2000, p. 123-127).
Nesse sentido, em um primeiro momento a estratégia dos Tudor
atingiu seus objetivos: redução do poder local da alta nobreza e

67
unidade 3
Universidade Aberta do Brasil

arrecadação de fundos. Porém, em longo prazo, fortaleceu imensamente


a gentry, cuja lealdade dependia do carisma real e sua capacidade de
articular as necessidades e aspirações de seus súditos com as do Estado:

Por volta de 1640, a gentry não era constituída nem por fiéis seguidores de um conde
local, nem por obedientes servidores da facção política que controlava o poder na Corte.
Eram cidadãos de pleno direito da nação, homens independentes e com recursos.
Eram eles que lotavam as universidades e os Inns of Courts [Tribunais do Direito
Consuetudinário], que enchiam as fileiras dos Juízes e que na Camâra dos Comuns
começavam a predominar sobre outros grupos sociais. Eram uma força a ser levada
em conta, e todo governo que contrariasse seus interesses ou afrontasse suas crenças
e valores deparar-se-ia certamente com sérios problemas políticos. (STONE, 2000, p.
141).

Entretanto, na Inglaterra do século XVI e XVII, as questões


materiais e terrenas, econômicas ou políticas, frívolas ou colossais, tinham
um fundamento “transcendental”. Da nomeação dos Reis às enchentes
sazonais, era melhor que a vontade de Deus fosse cumprida, sendo a Bíblia
a principal fonte de Sua palavra (HILL, 2003, p. 28).
É nessa “atmosfera” que os Tudors se depararam com a Reforma.
Então, buscaram na Igreja Anglicana articular o conteúdo protestante ao
católico, isto é, “um papismo disfarçado, ou algo que não é carne nem peixe”
(CECIL, Sir Willlian apud STONE, 2000, p. 126). Por um lado, essa atitude
satisfez e manteve sobre controle seus súditos católicos e protestantes;
mas, por outro lado, a incerteza doutrinária e a referida venda do patronato
dificultaram a constituição de uma Igreja nacional sólida (STONE, 2000,
p. 124 -126; HILL, 2003, p. 82). De qualquer forma, a Reforma gerou pelo
menos dois conflitos importantes: O primeiro, em relação à interpretação
da Bíblia e, o segundo, em relação ao “direito divino” dos reis.
Durante a Reforma, Lutero deu especial importância para a liberdade
de leitura da Bíblia, ou seja, introduziu a noção de que todos tinham o
direito e o dever de conhecer a “verdade bíblica”, evitando os desvios
criados pela Igreja durante séculos de exclusividade sobre a interpretação
dos textos sagrados. Isto é, “conferira o sacerdócio a todos os fiéis” (HILL,
1987, p. 107). Logo, a Igreja de Roma perdeu seu rígido controle sobre a
interpretação bíblica e, consequentemente, parte de sua influência política
e religiosa sobre a Europa.
Dessa forma, não é de se estranhar que “muitos ingleses do século
XVII acreditavam estar em contato direto com Deus, coisa que as autoridades

68
unidade 3
História Moderna II
da Igreja e do Estado rejeitavam completamente” (HILL, 2003, p. 92). O
absenteísmo da Igreja Anglicana, a tradução para o inglês, a impressão
e divulgação da Bíblia e dos textos de seus comentadores levaram um
grande e diversificado número de ingleses a buscarem outras experiências
religiosas e políticas de caráter católico, protestante ou herético radical.
A leitura disseminada da Bíblia favoreceu, também, o questionamento
da doutrina do direito divino dos reis. Em linhas gerais, essa doutrina
entende que a autoridade régia era de “direito divino”, os reis haviam sido
eleitos por Deus para governar o seu povo. A sua realeza era absoluta,
independente de qualquer poder ou autoridade da terra, e só perante
Deus teria que prestar contas do modo como exercera o seu poder. Já no
século XVI, o texto do Salmo 105,14-15, “não toqueis nos meus ungidos”,
foi interpretado por alguns estudiosos como “não toque àqueles que Eu
santifiquei para serem Meu povo”, ou seja, essas palavras serviam para
repreender os reis. Em 1642, durante a Guerra Civil, panfletos anônimos
diziam que essas palavras fariam com que “a monarquia se transformasse
em democracia e eram repetidas para o povo, como se somente eles fossem
sagrados e mais ninguém” (HILL, 2003, p. 94).
Nesse sentido, a Bíblia de Genebra exaltava a submissão pela
consciência. Isto é, “enquanto se tratar de algo legal nos é permitido:
para tudo aquilo de ilegal que nos for ordenado, devemos responder
como ensinou São Pedro, é melhor obedecer a Deus do que aos homens”
(apud HILL, 2003, p. 95). Destarte, a incontestabilidade da realeza cai por
terra, suas ordens ficam submetidas à consciência individual. Entretanto,
adverte Hill: “a ênfase na interpretação individual não deve ser confundida
com um individualismo absoluto. Era na congregação dos fiéis que tais
interpretações se viam testadas e aprovadas” (HILL, 1987, p. 107). Em
relação a questões econômicas, a congregação de Thomas Beard, da qual
fazia parte o jovem Oliver Cromwell, pregava “’Não é justo nem pela Lei
de Deus nem pela dos homens’ que os reis taxem ‘além do possível’”
(HILL, 2003, p. 100). O “possível” era determinado pelo acordo entre as
“consciências da congregação”.
Durante o reinado de Elizabeth I, os conflitos religiosos foram
contidos, mas se difundiu na Inglaterra uma interpretação bíblica de caráter
protestante (presbiteriano e puritano). Não que fosse unânime perante os
ingleses ou da vontade da Coroa e da Igreja Anglicana. Principalmente, não

69
unidade 3
Universidade Aberta do Brasil

fazia parte da representação de mundo e de futuro presente na mentalidade


dos Stuart e de seus auxiliares:

[...] Carlos I e seus autoritários partidários, olhavam para o passado, para os reinados
dos ricos e fortes Henrique II, Eduardo I, ou Henrique VIII, quando os poderes do
executivo estavam no seu ápice. Laud pensava com inveja na riquíssima Igreja tardo
medieval, politicamente poderosa e socialmente bem relacionada, enquanto Carlos I e
alguns de seus conselheiros sonhavam restaurar um passado antediluviano, quando a
hierarquia social era mínima e cada qual sabia o lugar que lhe correspondia. (STONE,
2000, p. 104-105).

Em 1603, quando Jaime Stuart assumiu o trono inglês, encontrou algo


muito diferente do passado imaginado por Carlos I e edificado a partir da
doutrina do “direito divino” dos reis. Os cofres da Coroa estavam vazios, as
Os tribunais
do “direito propriedades eclesiásticas confiscadas da Igreja de Roma, em vez de serem
consuetudinário”
conservadas e exploradas, foram vendidas e seus lucros consumidos em
(common law)
– controlados guerras externas e conflitos internos; diversos monopólios – como do alume
especialmente
(uma espécie de alumínio) – foram perdidos em sentenças desfavoráveis,
pela gentry – eram
responsáveis por proferidas pelos juízes dos tribunais consuetudinários. Assim, as finanças
enunciar as tradições
da Coroa dependiam de uma importante função do Parlamento inglês,
e os costumes
oralmente, defendendo votar os impostos (STONE, 2000, p. 119-121).
as antigas liberdades;
O rei não tinha a sua disposição um aparato administrativo eficiente e
em oposição ao “direito
romano” escrito e subordinado, ou seja, a administração do reino estava nas mãos, geralmente,
controlado mormente
da gentry; que não recebia pelo encargo e dispunha de considerável
pela Coroa (HILL,
1987, p. 32). independência simbólica e material em relação à Coroa. O Parlamento
era formado pela “Câmara dos Lordes, composta pela alta nobreza,
geralmente realista e católica; e pela Câmara dos Comuns, composta pelos
proprietários rurais, a gentry, geralmente parlamentarista e protestante –
presbiterianos e puritanos”. Principalmente em relação aos impostos, era
preciso o consenso entre o rei e ambas as Câmaras, pois todos possuíam
idêntico poder de veto. Por isto, diversas vezes a vontade do rei era freada
ou bloqueada pelo Parlamento (ARRUDA, 1990, p. 66-67).
Durante a dinastia Tudor, membros do governo consideraram a
possibilidade de criar um grande exército permanente, mas as condições
financeiras não permitiram. Destarte, a Coroa dependia da milícia local –
pequena em volume, mal treinada e mal armada – ou, em casos extremos, da
convocação das forças tradicionais – da alta nobreza, que há tempos vinha
se dissociando da função militar e se dedicando a atividades comerciais

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unidade 3
História Moderna II
(ANDERSON, 2004, p. 124-125) – ou de exércitos mercenários. Isto é,
“Os reis Tudor e Stuart não tinham a mínima possibilidade de lançar uma
ofensiva em grande escala contra rebeldes internos sem o suporte militar
voluntário dos seus próprios súditos” (STONE, 1990, p. 122).
Talvez, o pior dos “pesadelos” de Carlos I, tenha sido a desestruturação
da hierarquia social. Na sociedade feudal não existiam homens sem senhor:
sua essência era hierárquica e estável, seu fundamento era a lealdade e a
dependência do servo ao senhor. Porém, lembra Hill:
É claro que a realidade jamais correspondeu a este modelo, e pelo século XVI a sociedade
estava-se tornando relativamente móvel: não eram mais foragidos da lei homens sem
senhor, porém existiam em números alarmantes [...] trinta mil só em Londres, segundo
uma suposição menos cuidadosa, de 1602. (HILL, 1987, p. 55)

Entre esses homens sem senhor estão os vagabundos, mendigos e


ladrões que perambulavam pelos campos e pelas cidades – especialmente
Londres – em busca de ganhos fáceis e, segundo o comentário da Bíblia de
Genebra, “à disposição de quem lhes pagar para cometer qualquer crime”
(HILL, 1987, p. 55). Outro tipo de homens sem senhor eram aqueles que
formavam as diferentes seitas protestantes – predominantes nas cidades –
formadas por pequenos artesões, aprendizes, trabalhadores temporários,
Esforços? Nem
etc.; o elo que os unia era a completa independência em relação a qualquer tanto: Os cercamentos
(enclosures) –
senhor terreno e a aceitação da soberania de Deus: “Quem teme a Deus está
privatização das terras
livre de qualquer outro temor; não teme homens de alto escalão” (William comunais que muito
beneficiou a gentry –, as
Dell, 1645 apud HILL, 1987, p. 59).
drenagens dos pântanos,
Por fim, temos os homens idealizados nas histórias de Robin Hood, “os os desmatamentos e a
ampliação dos controles
camponeses pobres (cottager) e os ocupantes ilegais (squatters) dos terrenos
sobre as florestas (todas
comunais, áreas incultas (wastes) e florestas” (HILL, 1987, p. 59). Eram as de propriedade real
segundo as leis inglesas
populações que viviam “fora da vista, fora da escravidão” (Winstaley apud
da época), apesar das
HILL, 1987, p. 63), livres do controle do pároco e do fidalgo; e seus apêndices alegações em contrário
de Jaime I e de alguns
como os artesões itinerantes, carroceiros e intermediários comerciais em
estudiosos – que diziam
geral: “essa gente vive sem lei, sem ninguém para governá-la; ela não se beneficiar os pobres –,
provocou a destruição
importa com ninguém, pois não depende de ninguém” (Aubrey apud HILL,
do estilo de vida e
1987, p. 63). desconsiderou todos
os direitos da plebe.
Os “esforços” reais, da alta nobreza e mesmo da gentry, para
Destarte, ampliou o
controlar as “massas móveis” da sociedade inglesa foram infrutíferos. Esses número de “homens sem
senhor” e o ódio da plebe
homens, em um ambiente espiritual e político favorável, se transformavam
pelos grupos governantes
em elementos subversivos da ordem, separatistas religiosos, pregadores (HILL, 1987, p. 37, 67, 68,
passim).

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unidade 3
Universidade Aberta do Brasil

itinerantes, disseminadores de idéias radicais e podiam até pegar em armas


e se oporem igualmente a realistas e parlamentaristas (HILL, 1987, p. 42,
65-66).
Há tempos existia uma grande hostilidade entre a plebe e os grupos
dominantes, que foi exacerbada entre os anos de 1620 a 1650. Homens
do povo ameaçavam “fazer os fidalgos em pedaços” (Plebeu apud HILL,
1987, p. 39), blasfemavam contra a realeza: “O diabo carregue o rei e seu
monte de convencidos” (Ferreiro de Yorkshire apud HILL, 1987, p. 38);
e não entendiam a razão de uns terem tanto e outros pouco, devido à
nascença e à descendência (HILL, 1987, p. 36-42).
Essa hostilidade também era expressa contra o clero e a religião
oficial. Entre os plebeus era tradicional e comum encontrar aqueles que
diziam: “se um bezerro estivesse sobre o altar, eu preferiria adorá-lo do
que ao [...] santo sacramento [...]. Passou o tempo em que Deus decidiu
estar presente em forma de pão” (Homem de Wakefield em 1512 apud
HILL, 1987, p. 42). A religião oficial já não atendia – se é que um dia
atendeu – os desígnios de Deus e o clero era inútil e corrupto: “No campo
corria um dito [...] segundo o qual um homem poderia alçar o seu coração
e confessar-se a Deus Todo-Poderoso, e não precisava confessar-se com
um padre” (Homem de Yorkshire em 1542 apud HILL, 1987, p. 43) e,
ainda, os homens deveriam tomar cuidado quando confessassem a um
sacerdote os pecados cometidos com uma mulher, pois “em três ou quatro
dias o padre estaria pronto para usá-la como ele a usou” (Tosquiador de
Dewsbury apud HILL, 1987, p. 43). Sob o reinado de Elizabeth e dos Stuart
existiram muitos casos semelhantes, de “gente negando a ressurreição, a
existência de Deus [...] ou a do diabo; ou afirmando que todas as coisas
vêm da natureza” (HILL, 1987, p. 43).
É nesse contexto que os Stuart sobem ao trono e tentam concretizar
seu sonho absolutista. Desvirtuam a política do Rei no Parlamento –
articulada pelos Tudor, mais pelas condições históricas do que por sua
vontade –, opondo-se principalmente à Câmara dos Comuns; aliam-
se a países católicos e tradicionalmente inimigos da Inglaterra, como
a Espanha; expulsam os protestantes da Igreja Anglicana, que ganha
cada vez mais o feitio da Igreja Romana; impõem formas de organização
episcopal à Igreja presbiteriana escocesa; para agradar a alta nobreza,
operam gastos exorbitantes; e para ampliar suas rendas sem o apoio do

72
unidade 3
História Moderna II
Parlamento, se utilizam de velhas leis e costumes. Todas essas atitudes
foram extremamente impopulares e colocaram vários setores da sociedade,
mormente a plebe e a gentry, contra a monarquia (ARRUDA, 1990, p. 66-
73; HILL, 1987, p. 12-18).
A política Stuart foi praticável em tempo de paz, mas em 1640, sem
exército e vendo o norte da Inglaterra sendo invadido por um exército
escocês, Carlos I foi obrigado a convocar o Parlamento em busca de
recursos. Logo, o Parlamento exige reformas e retribuição pelas vexações;
indignado com as exigências, em três semanas o rei dissolve o chamado
Parlamento Curto. Em desesperada necessidade, reconvoca o Parlamento
ainda em 1640; esse é o chamado Longo Parlamento, que dá início a
Revolução Puritana de 1640 e ordena mudanças no Estado e nas leis.
Segundo Lawrence Stone:

É absolutamente certo que a gentry e a nobreza rural, que se reuniram em 1640, em


Westminster, eram reformadoras e não revolucionárias. Não tinham qualquer intenção Entre as mudanças
de alterar a estrutura social, e embora desejassem fazer mudanças de grande alcance resultantes da
nos organismos essenciais da Igreja e do Estado, estavam bem longe de planejar a Revolução Puritana
derrubada das instituições estabelecidas. Em 1640, ninguém sonhava com a abolição estavam à abolição
da monarquia ou da Câmara dos Lordes, e apenas uma minoria esperava abolir o das assessorias reais
episcopado ou os dízimos. Noções de democracia participativa estavam começando a – Câmara Estrelada,
entre as congregações puritanas mais radicais, mas ninguém na elite via isso como algo Corte de Alta Comissão,
mais do que uma pequena nuvem no horizonte distante. (STONE, 2000, p. 105) Tribunais eclesiásticos,
etc. –, convocação
regular do Parlamento,
Os puritanos, provavelmente os mais radicais do Parlamento, estavam políticas tributária e
religiosa controladas
interessados no retorno do que acreditavam ser o estado primitivo da Igreja
pelo Parlamento e
cristã, sem os acréscimos pecaminosos da Igreja Romana; e da sociedade proibição da existência
de exército permanente
imaculada, sem representações teatrais, fornicações e cabelos cumpridos.
sobre controle dos reis
Acreditavam que “‘Deus estava deixando a Inglaterra’, porque a nação (ARRUDA, 1990, p. 74).
não mais se fazia merecedora de sua confiança e ajuda” (HILL, 2003,
p. 104). Resultado da inaptidão real e de um complô do papado contra a
independência da Inglaterra, essa crença levou puritanos e ingleses em
geral a emigrarem para a Nova Inglaterra, na década de 1620 (STONE,
2000, p. 103-102 & HILL, 2003, p. 104).
Em 1642, Carlos I decide resistir e começa o contra-ataque, junto com
os realistas do Parlamento. Após sua retirada para Oxford e organização
do exército real, tem início a Guerra Civil. Como de costume, o conde de
Manchester e outros oficiais da nobreza lideram o exército do Parlamento,
mas a inaptidão militar destes fica clara com as sucessivas derrotas.

73
unidade 3
Universidade Aberta do Brasil

Assim, Oliver Cromwell – cidadão com fama de incorruptível, puritano,


membro da gentry, eleito para o Parlamento pelo condado de Cambridge
e que tentara ir para a Nova Inglaterra em 1634 – fica responsável por
organizar o Exército de Novo Tipo.
O New Model Army (Exército de Novo Tipo) revoluciona por excluir
do comando a nobreza e instituir como principal critério de ascensão na
linha de comando o valor e o mérito dos soldados (ARRUDA, 1990, p. 73-
87). Logo, as forças realistas foram derrotadas, a Câmara dos Lordes foi
abolida e todos os elementos do Parlamento, favoráveis ao rei – em sua
maioria presbiterianos – foram expulsos, formando-se assim o “Parlamento
A República Toco” (Rump Parliament). Após julgamento, Carlos I foi decapitado por
Puritana favoreceu o
traição ao seu povo, em 30 de janeiro de 1649.
desenvolvimento do
capitalismo inglês, por No dia 7 de fevereiro de 1649, a Câmara dos Comuns emitiu o
exemplo, com os Atos de
seguinte comunicado: “Ficou provado pela experiência que a função do
Navegação, que acabou
com a intermediação Rei neste país é inútil, onerosa e um perigo para a liberdade, a segurança
de terceiros (como os
e o bem estar do povo; por isso, de hoje em diante, tal função fica abolida”
holandeses) no transporte
de produtos importados (apud ARRUDA, 1990, p. 81). Em maio do mesmo ano foi proclamada a
e exportados para e
República Puritana. Entretanto, a “caixa de pandora” estava aberta, há
da Inglaterra. Contudo,
foi extremamente muito a “força da multidão” tinha sido evocada e paralisá-la era uma
conservadora e radical,
árdua tarefa.
quando proibiu a exibição
de peças teatrais,
principal atividade de
lazer dos ingleses, desde
o reinado de Elizabeth I.
Essa proibição durou de
1642 até 1661.

74
unidade 3
História Moderna II
seção 2
a revolução de 1688

Fonte: ARRUDA, 1990, p. 75

A imagem é de um panfleto de 1644 que satiriza a morte do


cachorro poodle, denominado Boy, de propriedade do príncipe
Rupert – comandante do exército realista. Segundo os puritanos,
o cachorro encarnava o espírito do mal, de tal forma que o valente
soldado que o matou possuía “habilidade em necromancia”. Nesse
panfleto fica expresso o invólucro religioso das hostilidades entre
realistas e puritanos, bem como a desmistificação da realeza. O
rei e seus pares nobres já não eram a representação terrena das
divindades celestiais, mas seu oposto; “o mundo estava de ponta-
cabeça”.

No decorrer da Revolução Puritana, a plebe não se voltou apenas


contra a Coroa e a alta nobreza; o Parlamento e todas as instituições se
tornaram alvo da gente “mesquinha”. Quando o Longo Parlamento se
viu frente a um rei que não aceitava suas reivindicações, foi obrigado
a apelar para a plebe. Nos momentos de crise, a multidão “desabava

75
unidade 3
Universidade Aberta do Brasil

sobre Londres”. A imprensa possibilitou a publicação dos discursos


importantes do Parlamento, que eram lidos e discutidos com exaltação
nas tavernas e cervejarias. Ainda, as petições de apoio ao Parlamento e as
novas leis circularam intensamente pelos condados; as pessoas comuns
as debatiam e assinavam. Essas práticas favoreceram a introdução da
plebe nos debates políticos do período (HILL, 1987, p. 39-40).
Os membros do Parlamento, a realeza, os grupos dominantes em
geral conheciam os risco de apelar para a “gente mesquinha”; suas falas
revelam que essa atitude seria um último e perigoso recurso. O parlamentar
Prestwich, em outubro de 1642, afirmava: “As feições dos homens estão tão
alteradas, especialmente dos grupos médios e mesquinhos, que bastaria
mexer numa palha para pôr em chamas um condado inteiro e ocasionar o
saque da casa ou dos bens de qualquer homem” (apud HILL, 1987, p. 40).
Sir John Potts, em agosto de 1642, demonstrava preocupação semelhante:
“Sempre que a necessidade nos forçar a usar a multidão, não me sentirei
capaz de prometer segurança a mim mesmo” (apud HILL, 1987, p. 40).
Às vésperas da Guerra Civil, Carlos I advertiu o Parlamento quanto ao
perigo de permitir ao povo proclamar suas pretensões (HILL, 1987, p. 40-
41).
Quando começou a Guerra Civil, imediatamente eclodiram
rebeliões populares em vários condados e a preocupação com a “gente
mesquinha” se tornou real. O que ninguém esperava era o surgimento
dos “agitadores oficiais”, um agrupamento de homens sem senhores,
bem armados e treinados, motivados politicamente e composto por uma
amostra bastante representativa da plebe inglesa, denominado de Exército
de Novo Tipo.
Depois de muitas reviravoltas, em 1647, havia a seguinte situação
em relação ao Exército de Novo Tipo: os soldados rasos haviam elegido
dois representantes por regimento para compor o Conselho do Exército,
pagavam contribuições para financiar sua organização, tinham uma
estreita relação com grupos civis de quase toda a Inglaterra, possuíam
uma editora própria – do leveller John Harris – e redigiam petições de
caráter político e militar (HILL, 1987, p. 72-77).
O Exército havia atravessado o país “misturando populações”,
seus membros ascendiam socialmente e apreendiam diferentes costumes
e pensamentos. Tornaram-se pregadores de idéias radicais, tais como:

76
unidade 3
História Moderna II
“O interesse do povo no reino de Cristo não é apenas um interesse de
[...] submissão, porém de consulta, de discussão, de aconselhamento,
profetização e voto” (John Saltmarsh, 1646 apud HILL, 1987, p. 73-74),
ou “‘esses que são chamados ministros’ não tinham ‘maior autoridade
para pregar em público do que qualquer outro indivíduo cristão que
tenha recebido o dom’” (William Erbery, 1646 apud HILL, 1987, p. 74).
Ainda, muitos membros da soldadesca questionavam a propriedade da
terra e profetizavam o dia em que haveria um limite para esta (Cf. HILL,
1987, p. 73-74).
Assim, a partir de 1647, os Levellers (Niveladores) londrinos, uma
espécie de partido político formado por pequenos produtores, viram a
possibilidade – já iniciada espontaneamente – e a necessidade de se
“unificarem ao exército” para concretizar seus “sonhos de futuro”. Ou
seja, é na “organização democrática” do Exército que as ideias dos
Levellers vão se tornar praticáveis. Suas vontades foram expressas no
Acordo do Povo (Agreement of the People), um contrato social leveller,
discutido entre os oficiais e os soldados do Exército e “conformado” por
um de seus lideres, Lillburne:

[...] propunha o comércio livre para os pequenos produtores; a extinção dos monopólios;
a separação entre a Igreja e o Estado; a abolição dos dízimos eclesiásticos, com
indenização; a proteção à pequena propriedade; a reforma da lei dos débitos, proibindo-
se o aprisionamento por dívida; o sufrágio universal masculino, proposta radical do
Coronel Rainborowe, amenizado pelo grupo de Lillburne para o voto familial, com
exclusão dos criados, pedintes e assalariados. Propunham também o fim do cercamento
[...], dando ao seu projeto político um amplo espectro social e, apesar de não se dirigir à
classe dos pobres sem propriedades, o projeto dos Niveladores [Levellers] ficava bem
perto de suas aspirações. (ARRUDA, 1990, p. 81).

Contudo, o Acordo do Povo não foi unânime entre os soldados rasos,


favorecendo ainda mais a desunião destes, que já se manifestava havia
algum tempo. Os Grandes do Exército (oficiais superiores) se aproveitaram
da situação para restaurar a hierarquia e a disciplina: os representantes
da soldadesca foram afastados do Conselho do Exército, alguns líderes
radicais foram executados ou presos por motim, os últimos regimentos
revoltosos foram massacrados em 1649. Desta forma, foi destruído o
“sonho leveller”, nas palavras de Oliver Cromwell: “gente que não temos
por que recear” (apud HILL, 1987).

77
unidade 3
Universidade Aberta do Brasil

Os Diggers ou True Levellers (Escavadores ou Niveladores


Verdadeiros) foi um movim ento formado principalmente por camponeses
expropriados, artesões e comerciantes pobres e dissidentes dos Levellers.
Liderados por Gerrard Winstanley, eram pacifistas e sonhavam com
uma Inglaterra organizada em cooperativas agrárias, na qual todos os
bens fossem comunitários. A partir de 1649, buscaram efetivar suas
propostas, chegaram a formar cerca de doze colônias espalhadas pela
região sul e central da Inglaterra, mas foram desarticulados pelas tropas
governamentais ainda em 1649 (ARRUDA, 1990, p. 84).
Certamente, havia no pensamento dos Levellers e dos Diggers a mais
poderosa força motivadora dos homens da época, isto é, a religião. Nas
palavras de John Selden: “Se os homens dissessem que pegaram em armas
por qualquer coisa que não fosse a religião, poderiam ser dissuadidos de
seu intento pela razão; mas da religião não há como dissuadi-los, porque
não acreditarão numa palavra só do que vós lhes disserdes” (apud HILL,
1987, p. 49). Contudo, é nas “seitas ou religiões radicais” que o conteúdo
religioso se manifesta mais claramente.
É o caso dos anabatistas, separatitas e familistas, grupos difíceis de
definir até para seus contemporâneos. Muitas vezes esses títulos eram
utilizados de forma pejorativa, para nomear aqueles que iam contra a
ordem social, religiosa e política. No entanto, podemos dizer que os
anabatistas se caracterizavam por rejeitarem o batizado de crianças,
uma vez que a aceitação do batismo deveria ser um ato voluntário de um
adulto; propunham a formação de congregações religiosas; opunham-
se ao pagamento de dízimo; e defendiam o igualitarismo, alegando que
não existiam diferenças entre senhores e servidores. Ainda, muitos deles
rejeitavam prestar juramentos em cerimônias religiosas para fins judiciais
ou seculares, se opunham à guerra e ao serviço militar e negavam o direito
à propriedade.
Os separatistas defendiam a eleição dos ministros pelas
congregações, o pagamento voluntário de dízimos, a tolerância com todas
as seitas protestantes, o fim de todas as formas eclesiásticas de jurisdição
e censura e de outras práticas que poderiam levar ao desmoronamento
da Igreja nacional.
Os familistas eram os seguidores das idéias do mercador e religioso
alemão Henry Niclaes, divulgadas na Inglaterra por Christopher Vittels,

78
unidade 3
História Moderna II
um marceneiro itinerante. Acreditavam que as pessoas podiam resgatar
aqui na terra a pureza e a inocência existente no Paraíso antes da “Queda”,
defendiam a propriedade coletiva e afirmavam que somente o fiel
abençoado pelo espírito de Deus compreende corretamente as Escrituras.
Em suma, era um credo leigo e anticlerical (HILL, 1987, p. 42-54).
Existiam, ainda, as seitas que se destacavam por serem extremistas
ou por terem propostas políticas mais acabadas. Estas floresceram na
década de 1650, formadas por antigos Levellers ou Diggers, eram os
Ranters, Seekers e Quakers. Podem ser definidas da seguinte forma:

Todas as seitas tinham em comum a rejeição do pecado e do inferno, e a ética


protestante, que era central nos ensinamentos calvinistas. Os Ranters formavam o grupo
mais extremista, chegando a rejeitar a Deus e a imortalidade. Pregavam uma relativa
liberdade sexual, extremamente avançada para os meados do século XVII, pregando
mesmo o pecado com uma forma de libertação. Recrutados principalmente entre os
jovens aprendizes de Londres, chegavam a condenar os ricos em suas pregações. Para
alguns autores os Ranters tinham uma postura ‘proletária’. C. Hill sugere que os Ranters
e os Seekers tinham uma mensagem específica pra os aprendizes dos ofícios urbanos,
ressentidos com o excesso de autoritarismo das corporações. (ARRUDA, 1990, p. 85)

Independentemente das diferenças existentes entre aqueles que


constituíam a plebe, com suas maneiras de ver o mundo e suas práticas,
buscava-se inverter a ordem da sociedade inglesa da época. Como em um
carnaval, entre os anos de 1640 e 1688, a “gente mesquinha” buscou se
apossar do trono real, do Parlamento, ou simplesmente destruir todos. Em
síntese, o Exército de “Novo Tipo foi o fósforo que ateou fogo à pólvora.
Porém, uma vez acessa esta, verificou-se que havia grande quantidade de
material combustível nas proximidades” (HILL, 1987, p. 97).
Dessa forma, a jovem República inglesa estava ameaçada por
todos os lados. Em 20 de abril de 1653, Cromwell – por necessidade ou
oportunismo – dissolve o “Parlamento Toco”, criando uma Assembléia
de seus partidários (Barebone Parliament). Esta lhe dá o título de Lorde
Protetor (Lord Protector) e elabora uma constituição bastante radical para
a época. Algumas de suas propostas eram: “ensino gratuito, liberdade
de imprensa, voto secreto, voto feminino, porém censitário [200 libras
de renda] e um único Parlamento para a Irlanda, Escócia e Inglaterra”
(ARRUDA, 1990, p. 86).
Com a morte de Oliver Cromwell, em 1658, e a aparente ineficiência
da República em conter as ameaças da “multidão mesquinha”, surgiu a

79
unidade 3
Universidade Aberta do Brasil

possibilidade dos setores mais conservadores – formado principalmente


pela gentry presbiteriana – e dos realistas restabelecerem a monarquia.
Assim, o General Monck, ex-realista que governava a Escócia, apoiado por
esses conservadores e com um exército depurado de elementos politizados,
instaurou em 1660 uma monarquia limitada por uma complexa legislação,
na figura de Carlos II. Em um ato simbólico de destruição da República, o
corpo de Oliver Cromwell foi exumado, enforcado e decapitado em praça
pública.
Durante o reinado de Carlos II, a monarquia se manteve obediente e
estável. Porém, seu sucessor Jaime II buscou reeditar o sonho absolutista
e católico de Carlos I. Dessa vez os grupos dominantes estavam bem
articulados. Em uma “manobra cirúrgica”, afastaram o rei, mas mantiveram
a monarquia na figura de Guilherme de Orange – holandês, protestante,
casado com Maria, filha de Jaime II –, evitando assim convulsões sociais,
radicalizações democratizantes e derramamento de sangue. Esse “golpe
de Estado” ficou conhecido como Revolução Gloriosa de 1688 (Cf.
ARRUDA, 1990, p. 87-88).
Por fim, foi elaborada a Declaração de Direitos (Bill of Rights), que
decretava que as leis parlamentares eram incontestáveis. O Parlamento
decidiria o sucessor após a morte do rei, haveria reuniões parlamentares
e eleições regulares, o Parlamento votaria o orçamento anual, inspetores
controlariam as contas reais, era ilegal a manutenção de um exército
em tempo de paz, entre outras medidas que limitavam enormemente os
“sonhos absolutistas”.

seção 3
Política e sociedade

Durante o século XX, muitos debates foram travados a respeito


da Revolução Inglesa e um dos temas debatidos foi sua “natureza
revolucionária”. Já se argumentou que as atividades mentais e materiais
dos grupos socioculturais da época buscavam um retorno a uma época
de ouro, um passado imaginário. Isso se opõe a uma noção de revolução

80
unidade 3
História Moderna II
que necessita da introdução de um “elemento novo” nas práticas e
representações sociais para se concretizar.
Hoje em dia, já não se encontram argumentos para contrariar a
característica revolucionária da Inglaterra do século XVII. Mesmo a
introdução de um “elemento novo” deve ser pensada no contexto do
período, e está claro que durante a Revolução Inglesa ocorreu uma
profunda reorganização social, política e cultural. Acompanhada por uma
enorme atividade mental – entre 1640 e 1661 foram publicados mais de
22.000 panfletos, discursos, sermões e jornais – e material, durante esses
anos uma expressiva e diversificada parcela da sociedade inglesa “praticou
política” e alterou suas instituições (STONE, 2000, p. 102-105).
Na tradição marxista, ocorreram inúmeras comparações entre
as Revoluções Inglesa, Francesa, Russa e outras da “Era Moderna e
Contemporânea”. Como mencionado anteriormente, Thompson – e
parte da Nova Esquerda inglesa – descarta o “modelo de interpretação”,
presente na tradição marxista-leninista e fundado na Revolução Francesa,
como um modelo eficiente para se compreender a Revolução Inglesa.
Parte do problema está na descontinuidade do processo revolucionário
inglês, com avanços e retrocessos que não ocorrem em outras revoluções
(THOMPSON, 2001, p. 203-211). Outra parte está na concepção de política
presente na vertente marxista-leninista, que relega ao segundo plano toda
a efervescência popular do período, atribuindo-lhe o estatuto de práticas
espontaneístas, pré-políticas, reacionárias ou arcaicas.
Segundo uma vertente da concepção materialista da história,
representada em especial por Lênin, as classes trabalhadoras – em sua
acepção objetiva – existem desde as sociedades arcaicas que romperam
com as relações de parentesco. Entretanto, “a consciência de classe
é um fenômeno da era industrial moderna”, ou seja, somente com o
desenvolvimento do capitalismo os trabalhadores começam a adquirir
consciência de si próprios e produzem movimentos sociais genuinamente
políticos e coesos.
Por isso, as classes trabalhadoras provenientes das sociedades arcaicas,
ao adentrarem as sociedades modernas – por vontade própria ou por coerção
–, tendem a apresentar uma consciência de classe indeterminada, ambígua
e/ou conservadora. Gradativamente, já participando das sociedades
modernas, essas classes trabalhadoras começam a se formar como classe

81
unidade 3
Universidade Aberta do Brasil

consciente de si própria. Apesar de esse ser um momento importante à


constituição de práticas revolucionárias, é também um momento propício à
proliferação de ideologias e movimentos sociais, pré-políticos ou primitivos
(HOBSBAWM, 1970, passim).
Destarte, levellers, diggers, anabatistas, familistas, quacres, a plebe
em geral estavam desde sempre fadados ao fracasso político, já que não
estavam “maduros” para participarem e/ou compreenderem a instância
político-formal, local efetivo de transformação social, “cristalização” de
práticas socioeconômicas e culturais. A “inconsciência” seria, em parte,
culpa do acanhado desenvolvimento capitalista – das forças produtivas –
do período.

Fonte: www.imagens.google.com.br

A imagem retrata o Parlamento inglês no século XVII e essa é


a instância político- formal de que fala a vertente marxista-leninista.
Nela podemos perceber representantes da realeza, do clero, da alta
nobreza e da gentry. A plebe e seus distintos grupos socioculturais não
possuem representantes – quando possuem é uma minoria. Advém
daí a dificuldade ou mesmo impossibilidade de concretizarem suas
representações de mundo, o futuro utópico do país da Cocanha.

Para Thompson, as classes (ou os grupos) sociais devem ser


compreendidas por meio de evidências históricas tratadas, isto é, o
historiador deve iniciar sua análise pelos dados empíricos e, posteriormente,
organizá-los por meio da teoria. Dessa maneira, a classe é expressa como
uma “categoria histórica”, em oposição à parte da tradição marxista
(especialmente leninista), que muitas vezes define as classes por meio

82
unidade 3
História Moderna II
de um modelo ideal – que precede as evidências históricas – e medidas
quantitativas, produzindo uma noção de classe como “categoria estática”.
A noção de classe como “categoria histórica” manifesta dois sentidos
distintos. O primeiro refere-se à classe como conteúdo histórico real,
presente apenas nas sociedades capitalistas, onde as classes se reconhecem
como classes, com interesses opostos e em luta entre si. O segundo diz
respeito à classe como categoria heurística, capaz de organizar evidências
históricas que não possuem correspondência direta com o termo, isto é,
como categoria alternativa de explicação do processo histórico universal
e manifesto de conflito entre “grupos humanos” em sociedades pré-
capitalistas, onde os “grupos humanos” não se reconhecem como classe
(THOMPSON, 1989, p. 33-39).
Desse modo, é por meio da noção de classe como “categoria histórica
e heurística” que se torna possível compreender a ação da plebe durante a
Revolução Inglesa. A “gente mesquinha” não necessita de uma identidade
política formal para mudar o curso da política inglesa, basta possuir
uma identidade cultural e práticas sociais que se opõem à dos grupos
dominantes:
Uma plebe, sem dúvida, não é uma classe operária. Seria necessário para isso que ela
desse de si mesma uma definição consistente, que tivesse uma consciência de classe
afirmada, objetivos claros, uma organização de classe estruturada. Mas a presença
política da plebe, do “populacho” ou da multidão é evidente. Ela pesava sobre a alta
política em um certo número de ocasiões [...]. (THOMPSON, 2001, p. 219).

No século XVII, a religião ou a irreligião era um fator significante


na constituição da identidade cultural dos grupos sociais. As “facções”
da plebe e os grupos dominantes podiam ser definidos por meio de suas
concepções religiosas. Muitas vezes a Bíblia – ou sua negação – foi usada
como arma dos grupos heréticos: estes evocavam as palavras bíblicas para
atestar a verdade e incontestabilidade de suas ideias políticas, econômicas
e, muitas vezes, revolucionárias (HILL, 2003, p. 24-27). Já que, como
assinala Christopher Hill:

No século XVII, a Bíblia era aceita como elemento central a todas as esferas da vida
intelectual: não era aceita como um livro ‘religioso’, no sentido moderno e restrito da
palavra religião. A Igreja e o Estado na Inglaterra dos Tudor [e dos Stuart] eram um
só; a Bíblia era, ou deveria ser, o fundamento de todos os aspectos da cultura inglesa.
(HILL, 2003, p. 28).

83
unidade 3
Universidade Aberta do Brasil

Desta forma, a religião e a política – Igreja e Estado – se completam,


uma dá significado à outra. Como mencionado anteriormente, a Corte
real é a representação da corte divina. Quando um anabatista defendia a
aceitação do batismo, subvertia a Igreja nacional e a política oficial; quando
um familista afirmava que só o espírito de Deus presente no fiel é capaz
de compreender a Escritura, ou quando um separatista defendia a eleição
dos ministros pela congregação, eliminavam a necessidade do clero oficial
e, consequentemente, da estrutura hierárquica do Estado. Todos, por meio
de “instâncias políticas informais”, questionavam a própria organização
política do Estado inglês.
Algo semelhante pode ter ocorrido a respeito da história da classe
operária, pois a industrialização sintetiza um campo cultural dentro de
uma sociedade. Destarte, se constitui um saber a respeito da fábrica e,
também, métodos para imposição desse mesmo saber. A economia política,
o taylorismo, industrialismo, fordismo, etc., que tanto produzem um saber
como mecanismos de coerção que atuam sobre a organização da vida e do
trabalho, estariam na base desse campo cultural (DECCA, 1983, p. 47-59).
Assim, a fábrica – como foi a Igreja – é o centro de um saber e de uma
prática que cria uma organização dos corpos, do espaço e do tempo e retira
do trabalhador – como a Igreja retirou do fiel – o seu próprio saber sobre o
processo de trabalho, sobre a religião. O taylorismo, por exemplo, é uma
forma de organização do processo de trabalho que despolitiza a fábrica.
O questionamento da organização do processo de trabalho, por parte do
trabalhador – por meio da destruição de máquinas, operação tartaruga,
organização de comissões de fábrica –, busca politizar a fábrica, tornando-a
um local de conflito e de luta operária, fora da instância político-formal dos
sindicatos e do partido.
Enfim, para compreender a relação entre política e sociedade, os
historiadores devem estar atentos às distintas formas como os diferentes
grupos socioculturais participam da política, seja por meio das instâncias
político-formais (Parlamento, assembléias, sindicatos e partidos) ou
informais (seitas radicais, comissões de fábrica, etc.) - estas agem em
surdina “pesando sobre a alta política” - e às mudanças históricas do campo
político. No século XVI, a política era homóloga à religião. Atualmente,
poderíamos dizer que é homóloga às ciências?

84
unidade 3
História Moderna II

Nesta unidade estudamos as revoluções ocorridas na Inglaterra do século XVII. Demos ênfase
à forma como os diferentes grupos sociais entendiam o mundo e projetavam o futuro. Foi por meio da
luta travada entre realistas, parlamentaristas, radicais, etc. que a sociedade inglesa se modificou. Não
foi o desenvolvimento das forças produtivas que gerou as mudanças socioculturais, mas as vontades e
as práticas dos diversos grupos em oposição, que “conformaram” a Inglaterra de 1688.
Ainda pudemos refletir a respeito das diferentes formas ou instâncias políticas. Isto é, não é
necessariamente por meio de um “Partido”, presente no Parlamento, que a plebe vai impor suas vontades
aos grupos dominantes. Na Inglaterra do século XVII, as práticas religiosas eram tão importantes quanto
às práticas políticas formais, como forma de transformar a sociedade e a organização do Estado.

Para compreender melhor os grupos socioculturais e as relações de força durante a Revolução


Inglesa de 1640, leia o livro: HILL, Christopher. O mundo de ponta cabeça: idéias radicais durante a
revolução inglesa de 1640. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
A respeito das diferentes formas (instâncias) de luta política e da formação da classe operária inglesa,
ver: THOMPSON, Edward Palmer. A formação da classe operária inglesa. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1987, v.3.

1 – Após ler a unidade 3, faça uma resenha (resumo comentado e crítico) do conteúdo
apresentado, dando ênfase ao debate em torno das “instâncias informais de luta política” descritas
no texto da unidade. Para elaborar os comentários e/ou crítica, pesquise em revistas, textos e jornais
atuais exemplos das diferentes instâncias de luta política.

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unidade 3
86
Universidade Aberta do Brasil

unidade 3
UNIDADE IV
O Iluminismo

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
■■ Compreender ciência e verdade no período Clássico.

■■ Estudar a noção de progresso.

■■ Saber mais sobre as mentalidades dos homens do período.

ROTEIRO DE ESTUDOS
■■ SEÇÃO 1 -Ciência e Verdade

■■ SEÇÃO 2 - A Idéia de progresso

■■ SEÇÃO 3 -O Homem do Iluminismo


Universidade Aberta do Brasil

PARA INÍCIO DE CONVERSA


Quando pensamos no homem do Iluminismo, usualmente nos
vem à mente a imagem do filósofo, do cientista (ainda obsoleto) ou do
artista, todos revolucionários. Isto é, indivíduos de mentes esclarecidas,
que descobriam o mundo “ real” e a verdade, fundados na razão e nas
evidências científicas, afastados das visões mágicas e religiosas da
“Idade das Trevas”. Nesse sentido, o Iluminismo é representado como
o movimento que possibilitou o progresso humano rumo à felicidade,
à igualdade, à justiça e ao desenvolvimento científico.
No entanto, um olhar mais acurado não deixa de nos revelar
grandes surpresas. Os clichês do Iluminismo se esvanecem quando
descobrimos que os grandes intelectuais tinham pouco em comum
conosco. Podemos dizer, não tinham quase nada em comum. Não
compartilhavam a mesma visão de mundo, de ciência, de filosofia
ou, ainda, do casamento, do amor, do trabalho, etc. Eram seres
completamente diferentes de nós, mesmo que a historiografia os tenha
erigido como semelhantes.
A grande questão é esta: por que, em história, constrói-se um
discurso do Mesmo e evita-se a alteridade? Isso é algo corriqueiro
em antropologia, mas que muitos historiadores têm dificuldade em
encarar.
A alteridade, tema comum em salas de aulas de graduação,
torna-se assunto escasso nos escritos dos historiadores. É o caso dos
homens cultos dos séculos XVII e XVIII. Por mais que pensemos
encontrar nossos antepassados mais diretos, na realidade eles não
veem o mundo como nós o vemos. Certo, dirão alguns, eles viveram
antes de nós, por isso não tinham o que temos agora. É justamente essa
forma de pensar que os coloca como antecessores que portavam, em
gérmen, tudo aquilo que somos. NÃO, não se trata disso: a questão é
que eles não tinham gérmen nenhum do que somos hoje. Foi parte da
historiografia “tradicional” que construiu esse sentido para a história,
no qual o iluminismo aparece como embrião e os iluministas como
fundadores da sociedade atual, científica e racional.
A noção de progresso é uma invenção do século XVIII e,
como veremos, foi em parte criada pelo movimento iluminista; e foi

88
unidade 4
História Moderna II
a historiografia do século XIX que a utilizou à exaustão. Ora, se a
história é progresso, então TODAS as sociedades do passado, cada
uma da sua maneira, representavam uma versão obsoleta da nossa
sociedade. Essa concepção de história e de passado resulta em uma
visão linear dos acontecimentos, apaga todas as outras possibilidades
e as diferenças, transforma a sociedade atual no resultado natural e
racional do progresso humano.
É desse modo que o discurso histórico constitui uma única
narrativa, evitando a questão da alteridade. Porém, se tomarmos outra
atitude em relação aos homens da Era Clássica, veremos que nossa
sociedade não é resultado do desenvolvimento racional e natural das
sociedades passadas, mas de relações de força, de disputas entre
grupos socioculturais distintos e de rupturas. Como são os vencedores
que contam história – pelo menos assim era no século XIX e parte do
XX –, apagaram tudo aquilo que não os enaltecia, que não dava um
sentido racional e natural à história.
É claro que temas que hoje nos são caros apareceram naquela
época, mas não podemos simplesmente colocá-los num degrau abaixo
do nosso, porque, pretensamente, acreditamos que evoluímos. Os
temas aparecem, mas estão naquela sociedade e não nesta, portanto
merecem outro tipo de compreensão, que é o da distância entre o
sujeito do conhecimento e seu objeto. Assim, poderemos reconhecer a
alteridade e aquilo que os fez diferentes de nós e, por que não, aquilo
que nos faz diferentes. Nesta alegoria de
Regnault vemos o
ser humano, alado,
apresentando as opções
da humanidade. De
um lado, a Liberdade
segurando o barrete
frígio, símbolo da
Revolução Francesa, e
com os signos da razão;
e de outro, a Morte,
desprovida de saber,
tenebrosa. Não há acordo
entre as duas opções.
Entretanto, como veremos
adiante, a noção de razão
aqui simbolizada não é
Figura a mesma que a atual,
Jean-Baptiste Regnault, La liberté ou la não estamos no mesmo
mort, 1795, Hamburguer Kunsthalle. “regime de verdade”.

89
unidade 4
Universidade Aberta do Brasil

seção 1
Ciência e verdade

Para compreendermos as distâncias entre os homens da Era Clássica


e nós mesmos, devemos nos ater àquilo que Michel Foucault chamou de
“regime de verdade” ou, ainda, formas de “veridicção”. Por formas de “ve-
ridicção” podemos compreender a transformação de um discurso ou práti-
cas em verdade, ou seja:

Trata-se (...) de reconstituir uma verdade produzida pela história e isenta de relações
com o poder, identificando ao mesmo tempo as coerções múltiplas e os jogos, na
medida em que cada sociedade possui seu próprio regime de verdade, isto é, ‘os tipos
de discurso que elas acolhem e fazem funcionar como verdadeiros; os mecanismos
e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros ou falsos, a
maneira como uns e outros são sancionados; as técnicas e os procedimentos que
são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o poder de
dizer aquilo que funciona como verdadeiro [FOUCAULT, Dits ET Écrits, vol. 3, texto nº
184]. (REVEL, 2005, p. 86).

Nesse aspecto, a verdade não é algo que está estabelecido desde o iní-
cio dos tempos. Ela é, antes de tudo, uma forma de discurso sobre algo, so-
bre determinado objeto, sobre o mundo, sobre nós mesmos. O que é verda-
de irrefutável em uma determinada época, em outra é quimera. As crenças
dos gregos em seus deuses se tornaram um grande engano na nossa Era e,
se temos algum respeito pelas suas crenças, não é porque acreditamos que
também possam ser verdades, mas simplesmente porque é politicamente
correto aceitar suas crenças. Tanto que a palavra mito, para nós, significa
histórias inventadas ou ilusórias (vide o dicionário Aurélio).
O mesmo se passa com o século XVIII. Eliminamos das nossas nar-
rativas tudo aquilo que poderia ser ruído. Tudo aquilo que não soa muito
bem. Por que, ao falarmos de Newton, devemos também dizer que ele acre-
ditava na alquimia? Isso não é de bom tom, afinal ele fundou as bases da
matemática moderna, logo suas crenças na alquimia constituíam um desvio
do verdadeiro caminho. Mas qual caminho, o nosso? Se assim compreen-
dermos, é evidente que Newton ainda tinha alguma coisa de atraso; porém,
se nos ativermos às representações sociais, vemos que não havia nenhuma
contradição. O pensamento científico do período estava pleno daquilo que
hoje chamamos de magia.
Os regimes de verdade dos séculos XVII e XVIII não estavam numa

90
unidade 4
História Moderna II
posição hierarquicamente inferior aos nossos, simplesmente eram outras
formas de acreditar e, por isso, não devem ser colocados como parcialmente
incapazes, mas como outra forma de pensar a realidade. A questão é que
o pensamento científico do século XIX impõe a sua lógica como a única
possível para explicar as coisas. Logo, tudo aquilo que não comunga da
sua forma é inapto, falso, irrisório ou incompleto. Toda e qualquer forma de
pensamento fora do discurso científico não responde àquilo que se entende
por verdade. Os pensamentos mitológico, mágico, fabuloso, religioso face à
ciência não passam de quimeras ou formas rudimentares de compreender
a realidade. Esta deve passar pelo crivo do pensamento científico para ser
plausível e compreensível.
No entanto, compreendendo que essa forma de pensamento não
deixa de ser uma construção discursiva, quer dizer, uma forma de verdade
construída historicamente, então é possível constatar que outras formas de
verdade são possíveis e que são tão efetivas quanto as que se colocam para
nós hoje. Nesse sentido, a produção de verdades na Era Clássica não era
simples erro ou uma forma ingênua de perceber a realidade. Era outra for-
ma de pensar.
As bases da ciência não estavam calcadas na pura experimentação,
conforme os procedimentos modernos. Os chamados cientistas da Era Clás-
sica acreditavam não só nas forças físicas como também nas forças metafí-
sicas, aquelas que não vemos e agem sobre a matéria, sobre os homens e
sobre os destinos. A lógica é simples: não existem coisas que os olhos não
veem, como os germens, e que a todo instante os microscópios nos atestam?
O mesmo não poderia acontecer com outras forças que estão em ação no
universo? A gravidade não é uma força invisível e que atua sobre a matéria?
O mesmo não poderia se passar na astrologia, pois os planetas não exerce-
riam também influência sobre as pessoas? É por isso que determinadas for-
ças não visíveis são consideradas nos experimentos e no conjunto teórico.
Para que caibam essas forças invisíveis nas teorias científicas dos
séculos XVII e XVIII, devemos compreender como a ciência era pensada.
O conhecimento foi descrito por Foucault como “mathêsis”,

isto é, a busca por um conhecimento total e sem interrupções, ou seja, a noção de que,
do campo da matemática, o conhecimento passasse para o da filosofia, da medicina,
astronomia e assim por diante, sem descontinuidade, sem quedas. A idéia é a de uma
superfície a ser percorrida, sendo que as paisagens que se modificam ao redor nada
seriam além do cenário familiar inicial. (JOANILHO, 2004, p. 73).

91
unidade 4
Universidade Aberta do Brasil

O conhecimento se daria por totalidade e não por justaposição, como


acreditamos hoje; quer dizer, a ciência total é uma somatória das ciências
particulares, se isso for possível. Para os cientistas a “mathêsis” é a chave
para a compreensão do todo e também a possibilidade de o conhecimento
ser único:

Sabe-se que o quadrivium medieval continha a aritmética, a geometria, a música e


a astronomia. As discussões relativas à mathesis universalis concerniam, desde a
origem, à unificação desses domínios assim que a sua extensão eventual a outros. A
riqueza da noção é grande durante todo o século XVII e, a despeito das transformações
importantes, sempre tende a permitir pensar a unidade das matemáticas associando-
as à filosofia. (BLAY, 1998, p. 610).

A “mathêsis” é a matematização do próprio conhecimento. Assim, ha-


veria uma disposição geral de tudo que o conhecimento universal poderia
alcançar, pois ele é unificado.

Os homens dos séculos XVII e XVIII não pensam a riqueza, a natureza ou as línguas
como o que lhes fora deixado pelas idades precedentes e na linha do que logo viria a
ser descoberto; pensam-nas a partir de uma disposição geral que não lhes prescreve
apenas conceitos e métodos, mas que, mais fundamentalmente, define um certo
modo de ser para a linguagem, os indivíduos da natureza, os objetos da necessidade
e do desejo; esse modo de ser é o da representação. Consequentemente, aparece
todo um solo comum, onde a história das ciências figura como um efeito de superfície.
(FOUCAULT, 1981, p. 223).

Logo, os homens de ciência não conhecem a especialidade, ou pelo


menos não acreditam nela. O conhecimento é total; portanto, se alguém
deseja ter uma formação de cientista deve aprender todas as ciências. É o
que Voltaire acredita, citado por Chartier quando diz:

que ‘não merece semelhante título (letrado) aquele que, com escassa doutrina, cultiva
apenas um gênero de estudos’: ‘A ciência universal deixou de estar ao alcance do
homem; mas os verdadeiros letrados encontram-se na situação de deslocar os seus
passos pelos diversos campos, apesar de não os poderem cultivar todos.’ Neste
aspecto, o homem de letras representa a figura moderna do gramático antigo que ‘era
não só um homem versado na gramática propriamente dita, que é a base de todos
os conhecimentos, mas um homem a quem a geometria, a filosofia, a história geral
e particular não eram estranhas; que fazia sobretudo da poesia e da eloqüência o
seu estudo’. A definição do homem de letras apresentada na Enciclopédia é, então,
a de um enciclopedista: não é um erudito que adquiriu saber profundo sobre uma
determinada disciplina, mas um homem que possui conhecimentos em todas as áreas
do saber. (CHARTIER, 1997, p.119).

Assim, o homem de letras ou letrado deve ser versado em todos os

92
unidade 4
História Moderna II
campos de ciência, ou pelo menos do que se acreditava ser a ciência. Por
isso, a ciência não lhes era estranha quando investigavam coisas tão próxi-
mas de nós, como a composição do ar, e tão distantes, como o peso da alma.
Cientistas

muitas vezes encaravam a gravidade como um poder oculto, talvez aparentado à


alma elétrica do universo ou ao fogo vitalista que ardia no coração, segundo Harvey e
Descartes, produzido pela fricção do sangue contra as artérias, segundo teóricos mais
modernos. Até que Lavoisier assentasse os fundamentos da química moderna, os
cientistas geralmente esperavam explicar todos os processos vitais com um pequeno
número de princípios e, uma vez crendo terem encontrado a chave para o código da
natureza, frequentemente deslizavam com lirismo para o terreno da ficção (...) Eles
liam fatos onde seus descendentes lêem ficção. (DARNTON, 1988, p. 20).

Daí, para esses cientistas, serem possíveis conceitos que, aos nossos
olhos, parecem confusos e inocentes, quase pueris, mas que, naquele regi-
me de verdade, eram perfeitamente plausíveis e de modo algum lhes eram
estranhos.

No final do século, um dicionário jurídico permitiu-se algumas dúvidas sobre o caso


de bastardia em que uma mulher declarava ter concebido um filho de seu marido, a
quem não via há quatro anos, durante um sonho. ‘Supõe-se que a noite do sonho
da dama de Aiguemerre era uma noite de verão, que sua janela estava aberta,
seu leito exposto ao poente, sua coberta em desordem e que o zéfiro do sudoeste,
devidamente impregnado de moléculas orgânicas de fetos humanos, de embriões
flutuantes, tinha-a fecundado. (Idem, p. 21).

É-nos quase que totalmente difícil acreditar que tal fato seria plausível;
no entanto, ao compreender as representações sociais podemos perceber
que os homens da Era Clássica têm suas próprias maneiras de explicar
as coisas. Reafirmando, isso não quer dizer que eles se encontravam num
estágio inferior do conhecimento, era simplesmente outra forma de explicar
e acreditar. Mas eles próprios produziam as formas de elucidação do seu
conhecimento. Para eles, o projeto Iluminista se opõe àquilo que consideram
atraso. Os segredos dos alquimistas, por exemplo, não devem mais imperar
na transmissão do conhecimento. Ele deve ser acessível a todos. É dessa
percepção que nasce a Enciclopédia, quer dizer, a possibilidade de trazer à
luz todos os conhecimentos:

Os iluministas crêem na possibilidade de transmitir e acumular saber científico. O que


conta no indivíduo já não é a linhagem, mas a contribuição que ele dá ao edifício da
ciência. Esta é entendida como um empreendimento baseado na cooperação, e seu
constante incremento tem por meta o progresso e a felicidade do gênero humano. Em
função desse objetivo, não se podem mais tolerar nem os segredos corporativos nem

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unidade 4
Universidade Aberta do Brasil

os mistérios dos antros alquimistas; assim, o caminho para a manufatura vai sendo
calçado com os cacos das corporações.
Com a progressiva decadência da concepção de casta do saber, caem também as
barreiras entre cientista e cientista. Para facilitar a circulação das idéias, trata-se de
reuni-las em academias e esboça-se uma federação de academias que unifique o
saber da humanidade. (LOSANO, 1992, p. 76).

William Blake, Glad Day, 1794, British Museum.


O quadro de William Blake apresenta uma figura nua irradiando
luz. Podemos compreendê-lo como uma alegoria da idade da Razão
humana, isto é, o próprio homem exala a luz que o conduzirá pela
história. Contudo, não é a mesma noção de homem ou de história que
temos atualmente.

Portanto, para os Iluministas a sua posição era clara: levar conhecimento


e ciência para a humanidade. Talvez seja a este aspecto que grande parte
da historiografia mais se apega, esquecendo as diferenças entre as práticas
sociais do período e colocando-o como imediatamente anterior à nossa
própria sociedade. Assim, havia uma intensa vontade de transformar o
mundo pelo conhecimento:

Quando Diderot declara solenemente em 1761 que a ‘Europa racional’ vai certamente
suceder à ‘Europa selvagem’, ‘pagã’ e ‘cristã’, ele exprime uma convicção muito

94
unidade 4
História Moderna II
difundida entre todos os filósofos esclarecidos do continente, mas também uma
autêntica vontade, de uma larga parte do mundo político e intelectual, de transforma
o Antigo Regime. O progresso da civilização européia e a difusão do Iluminismo são
dois fenômenos inextricavelmente ligados junto a Lessing, junto ao abade Raynal ou
junto a Cesare Beccaria: não se trata de puras fórmulas retóricas vazias de sentido,
pois elas encarnam algumas crenças desses homens e pelo o quê eles lutam, como o
cosmopolitismo e a referência à idéia de humanidade nas obras de Kant e Condorcet.
(ROCHE, 1999, p. 499).

O desenvolvimento dessa consciência, que foi um fato notável no


período, pode ser considerado a grande conquista daquela época. É isso
que veremos a seguir.

seção 2
A idéia de progresso

A ciência anterior ao período Iluminista não conseguira grandes


ganhos, pois, antes de tudo, ela se pautava na ciência da Antiguidade
Clássica. O Renascimento trouxe consigo uma grande valorização dos feitos
gregos e romanos, mas isso não significou que apenas artistas releram a
produção desses povos. Os próprios homens da ciência retomaram os
escritos antigos e acreditavam que, por estarem no começo da humanidade,
gregos e romanos tinham um saber superior.
Essa crença implica um problema crucial para a ciência: qualquer
experiência era retomada do ponto de vista dos gregos, assim como qualquer
explicação. Por exemplo, um médico sempre faria um diagnóstico baseado
nas ideias de Hipócrates, e, se alguma coisa não desse certo, ele retornaria
à teoria antiga procurando algum erro que teria cometido ao interpretá-
la. Dessa forma, não havia uma perfeita comunicação entre os praticantes
de ciência, pois experiências imediatamente anteriores não serviam de
base para as posteriores, ou se serviam ajudavam muito pouco, pois a base
continuava sendo a filosofia grega e romana.
Até o século XVI a consciência de que a ciência avançava graças
ao acúmulo de experiências ainda era fraca. Algumas descobertas técnicas

95
unidade 4
Universidade Aberta do Brasil

puderam mostrar que os homens dos séculos XVI e XVII estavam mais
avançados do que os gregos. É interessante observar que a questão do
acúmulo do conhecimento foi objeto de longas discussões que culminaram
na chamada Querela dos Antigos e Modernos:

E é bom lembrar que havia uma discussão já exaustiva entre filósofos acerca da
superioridade dos modernos sobre os antigos (...) Hoje, pode-se considerar um pouco
exagerada a preocupação com esse debate que animou salões e academias na Europa
moderna, principalmente na França e Inglaterra, e que aconteceu a partir de meados
do século XVII. Contudo, a querela foi de importância fundamental para discussões
posteriores acerca da noção de progresso e conseqüentemente de história. Ela opôs
pensadores de certo peso na época como Racine, La Fontaine, Boileau, do lado
dos antigos, e Fontenelle, Perrault, Bayle e d’Aubignac, do lado dos modernos, para
ficarmos apenas nos franceses. A questão principal era: os antigos eram superiores em
sabedoria em relação aos modernos ou não? Até o século XVII não havia uma clara
percepção sobre a distância entre os filósofos da antiguidade e os contemporâneos e a
noção de que eles eram ainda superiores estava muito presente. Foi a partir do Novum
Organum, de Francis Bacon, que a geração seguinte pôde pensar que ‘os antigos
representavam a juventude do mundo, enquanto o seu próprio tempo era glorificado
pelo conhecimento acumulado pelas épocas. (JOANILHO, 2004, p. 71).

Um dos lugares em que mais se sentia o avanço das ciências era


“as chamadas ‘armes savantes’, artilharia e engenharia”. E, com efeito,
“em redor do universo militar e dos seus problemas giravam também
interesses econômicos e exigências administrativas muito concretas
que diziam directamente respeito a questões relevantes do campo das
inovações científica e tecnológica.” (FERRONE, 1997 p. 162). Isso quer
dizer que os avanços promovidos na arte da guerra e de problemas
gerados na gestão de obras públicas puderam aclarar, pelo menos do
ponto de vista técnico, a questão do acúmulo de saber. No século XVII
despertava uma consciência de que os homens modernos estavam acima
dos homens da antiguidade clássica. Na Inglaterra, por exemplo, “o
milenarismo que animava o protestantismo inglês captou facilmente a
dimensão utilitarista do novo saber. Bacon e muitos pensadores puritanos
depois dele atribuíam à ciência a tarefa de produzir riqueza, melhorar a
saúde, desenvolver o comércio, cria na terra a ‘Grande Instauração’, o
regresso ao Éden originário” (Idem, p. 158).
Há um intenso otimismo nos homens de letras acerca do
conhecimento, algo herdado pelo século XIX, mas transformado em
verdade absoluta a ponto de ser irrefutável o pensamento científico, pelos
menos dentro do seu próprio discurso. Bom, qualquer verdade se coloca

96
unidade 4
História Moderna II
como irrefutável. De qualquer maneira, os homens de ciência da Era
Clássica viam o mundo se transformar e isso graças aos conhecimentos
adquiridos de maneira formal, isto é, por aprendizado especializado.
Tanto que:

A época das Luzes é, por todos os lados, um momento de intensas transformações


materiais cujas conseqüências não foram ainda totalmente mensuradas. A figura do
engenheiro e a do arquiteto mostra a importância das políticas de obras públicas para os
Estados e a economia para o conjunto da sociedade. Estradas, canais, grandes rotas,
equipamentos portuários, pontes, são os instrumentos de uma mudança profunda nos
hábitos de todos. A estrada chega aos locais isolados; ela leva as novidades. Os correios,
que se aproveita dos grandes trabalhos das rotas, acelera a circulação de homens e
de produtos (...) Mas sem dúvida são as cidades e suas ligações que catalisaram o
desenvolvimento. Das grandes cidades do Estado às metrópoles da província (...) vê-se
brilhar com todo fulgor as Luzes da civilização das trocas. (ROCHE, 1999, p. 556).

Esse orgulho e essa certeza do conhecimento levam muitos


iluministas a pensarem em projetos políticos para a Humanidade; afinal o
homem de letras não é apenas cientista, mas também um filósofo. Aliás, é
este termo o mais utilizado por esses homens para se designarem. Assim,
dos movimentos dos corpos celestes à ordenação política da sociedade
não há distância a ser percorrida; muito pelo contrário, uma coisa levava
à outra. Se o universo é perfeição, a humanidade pode almejá-la também.
Deste ponto de vista,

o século XVIII é um século de transição, um século a caminho das Luzes: o ‘caminho


da humanidade para a sua melhoria’ será idealmente completado apenas quando a
sociedade cosmopolita universal dos homens deixar de ‘estar aos pés dos direitos
sagrados da humanidade’ e quando ela tomar por modelo a República das Letras, a
única referência social concreta na qual é historicamente encarnado o uso público e
crítico da razão dentro de todos os domínios e onde todos os cidadãos emancipados
vivem livres e iguais, pensem de forma autônoma, lêem, escrevem e comunicam
livremente entre eles. (Idem, p. 503).

Essa percepção não deixa de ter consequências para nós, mesmo


estando apartados no tempo, mesmo estabelecendo todas as diferenças e
distâncias entre nós e os homens da Era Clássica. A primeira consequência
é a “descoberta” da noção de progresso; a segunda é a “descoberta” da
história.
A noção de progresso que aos poucos vinha se impondo somente
atingiu o espírito humano no século XVIII, isto é, da consciência de
que a humanidade havia progredido materialmente para a conclusão

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unidade 4
Universidade Aberta do Brasil

de que a humanidade havia progredido filosoficamente, moralmente


e socialmente foi um passo. O grande expoente desse pensamento foi
Condorcet, o qual, inspirado por seu amigo Turgot, desenvolve a idéia de
que a humanidade avança em espírito. Tal idéia, cultivada especialmente
na segunda metade do século XVIII, traduz a fé que muitos homens de
letras tinham com relação aos homens.
Assim, Condorcet, escondido durante meses de seus perseguidores
que desejavam condená-lo à guilhotina, aproveitou o tempo e escreveu a
obra “Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano”,
acreditando, apesar da sua condição, no futuro.

Tal é o objetivo da obra que escrevi, e cujo resultado será de mostrar, pela razão e
pelos fatos, que a natureza não colocou nenhum término para o aperfeiçoamento
das faculdades humanas; que a perfectibilidade do homem é realmente indefinida;
que o progresso dessa perfeição, não obstante independentes das forças que as
querem fazer parar, não tem outro fim que a duração do planeta no qual a natureza
nos colocou. Sem dúvida, esse progresso poderá seguir uma marcha mais ou menos
rápida; mas nunca retrocederá, enquanto a terra ocupar o mesmo lugar no sistema do
universo, e que as leis gerais desse sistema não produzirem sobre o planeta nem uma
transformação geral, nem mudanças que não permitam mais a existência da espécie
humana. (CONDORCET, 1822, p. 3 e 4).

Essa posição de Condorcet coaduna com a de outros iluministas. A


sua trajetória é típica de um homem de letras. Educado em colégio jesuíta,
é tomado como pupilo por d’Alembert. Ingressando na Academia Real de
Ciências, em 1769, como matemático, a sua primeira obra é sobre cálculo
integral. Logo se envolve com questões sociais, tornando-se entusiasta da
Revolução Americana (1776) e, depois, revolucionário de primeira hora.
Tal trajetória não deixa de ser comum, pois, como foi dito acima, a
perfeição da matemática, por exemplo, pode inspirar a busca de perfeição
pela humanidade. Isso quer dizer que a melhoria da sociedade pode e
deve ser obra dos próprios homens, diferente das crenças comuns de que
os homens somente usufruiriam da felicidade no outro mundo.
Iluministas acreditam que a felicidade poderia ser construída
neste mundo e deveria ser obra dos homens. Daí, muitos homens de
letras, como Condorcet, produziram textos que tratam da política e da
sociedade. É o caso de Rousseau, que traduz o modelo do homem de
letras.
Nascido em Genebra (1712), Rousseau era filho de um relojoeiro

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História Moderna II
calvinista. Aprendeu a ler e escrever cedo. Com a morte do pai, quando
ele tinha dez anos, foi trabalhar. Adolescente, resolveu sair da cidade
natal. Após vagar foi recebido por uma rica senhora, madame de Warens,
tornando-se amante dela. Assim empreendeu os seus estudos. Já adulto
chega a Paris e logo faz amizades no círculo dos letrados. Diderot o convida
para escrever sobre música na Enciclopédie. Participa de concursos de
academias e ganha vários prêmios, o que lhe dá fama, e torna-se parte
integrante da República das Letras.
A sua obra de maior sucesso é a Nova Heloísa, romance no formato
epistolar, gênero em desuso hoje em dia. Ao referir-se ao amor entre dois
personagens, Julie e Saint-Preux, o romance trata da busca da felicidade
através de virtudes e uso da razão, diferenciando o amor da paixão. Foi
um dos livros mais lidos do século XVIII.
Mas, o que nos chama a atenção é o fato de Rousseau ser
lembrado, hoje, pelo seu livro O contrato social, que, no entanto, foi um
grande fracasso de vendas quando lançado. Nele o autor trata da vida do
homem em sociedade e como atingir um estado de felicidade através da
reordenação política da própria sociedade.
O fracasso de seu livro mais lembrado coloca em questão a própria
noção que temos do século XVIII. Toma-se a trajetória de Rousseau como
exemplar, pois, para os historiadores, ele alcançou um lugar de destaque
social, tornando-se um grande filósofo graças a seus méritos. Mas, se
observarmos mais de perto, veremos que não é bem assim.

seção 3
O homem do Iluminismo

Podemos, de início, partir da constatação de Robert Darnton sobre


a encomenda de um livreiro de Poitiers a uma editora na Suíça. A relação
é surpreendente, mas o mais interessante é o tipo de pedido. O livreiro
deseja livros filosóficos:
Vênus no claustro ou a freira em camisola
O cristianismo desvendado

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Universidade Aberta do Brasil

Memórias da marquesa de Pompadour


Investigação sobre a origem do despotismo oriental
O sistema da natureza
Thérese, a filósofa
Margot, a companheira dos exércitos (DARNTON, 1989, p. 14).

A lista, aos nossos olhos, no mínimo incomum, coloca juntos livros


que nada têm a ver uns com outros como filosóficos. Duas questões
podem surgir para os historiadores. A primeira pode ser sobre a intenção
do livreiro de esconder livros claramente obscenos (como “Thérese, a
filósofa” ou “Vênus no claustro ou a freira em camisola”), entre livros
mais sérios e obviamente filosóficos (como “O sistema da natureza” ou
“Investigação sobre a origem do despotismo oriental”), fugindo dessa
maneira de possíveis sanções. A segunda, mais inquietante, pode referir-
se ao fato de que talvez o livreiro tivesse outra noção sobre o que era
filosofia.
A primeira questão trata, obviamente, da forma como nós mesmos
pensaríamos, pois a pornografia traz uma carga, ainda hoje, de contrafação,
de ilegalidade, de ilicitude; portanto, esconderíamos livros pornográficos
entre livros mais respeitados. Porém, o problema é justamente transferir
a nossa maneira de encarar determinado objeto para outra época. Isso
acarreta, no mínimo, num anacronismo, pois acharíamos que um homem
do século dezoito pensaria da mesma forma que nós e, como discutimos
acima, essa é uma forma de não compreender a alteridade.
A segunda questão trata da diferença. Pode, a princípio, não
parecer uma boa hipótese, mas se observamos o conjunto das práticas,
ela nos auxilia a compreender melhor aquele século. O livreiro pediu
livros para uma editora que publicava obras clandestinas, portanto, já
que se tratava de ato ilícito, não teria por que ele disfarçar o pedido
escondendo obras pornográficas entre livros filosóficos. Esses livros
seriam contrabandeados, pois havia o monopólio da distribuição de livros
nas mãos dos livreiros de Paris. Havia, portanto, mais uma razão para não
se esconder livros pornográficos, já que também se praticava o que seria
considerado na época crime, correndo-se o risco de ter a carga apreendida
e ser, como se dizia naquele período, “embastilhado”, isto é, tendo que ir
para a Bastilha. Assim, a pequena lista compreende

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História Moderna II
uma noção do filosófico partilhada por homens cujo negócio era saber o que os
franceses queriam ler. Se a colocarmos em contraste com a visão do movimento
filosófico que piamente vem sendo passada de manual para manual, impossível não
sentir um certo desconforto: a maioria dos títulos é absolutamente desconhecida e
parece sugerir que um monte de lixo acabou se juntando, de alguma forma, à idéia
de filosofia do século. Talvez o Iluminismo fosse mais banalizado que o rarefeito clima
de opinião descrito pelos autores de manuais faz suspeitar, e devêssemos questionar
a visão pretensiosa, sumamente metafísica, da vida intelectual no século XVIII.
(DARNTON, 1989, p. 14).

Logo, o conceito de “filosófico” era muito mais abrangente do


que o nosso; aliás, como vimos, homem de letras é uma categoria
abrangente. Portanto, tratamos de outro universo mental.
Voltando ao caso de Rousseau, historiadores viam nele o protó-
tipo do homem moderno. Indivíduo que galgou os degraus da escala
social pelos seus méritos. Todavia, se observarmos melhor a sua bio-
grafia, ele sempre contou com “protetores”, especialmente na figura
de Diderot. Após a sua consagração, ele teve o apoio de vários mem-
bros da aristocracia, pois a vida da República das Letras acontecia
principalmente nos salões aristocráticos:

A condição de homem de letras é incompatível com o retiro, a solidão, o afastamento


da capital da república das letras. Pressupõe, pelo contrário, a conivência em que
assentam as pequenas sociedades onde os letrados adoram conversar e discutir.
O salão é a expansão fundamental destas sociedades que a Europa inteira inveja a
Paris (...), o salão distingue-se de todas as outras formas de encontro intelectual pela
posição dominante, directiva, que as mulheres ocupam. Se, por outro lado, ocupam
um lugar modesto nos recenseamentos de autores (...), o seu papel é decisivo na
sociedade literária que reúne letrados e gente mundana. Inúmeros freqüentadores
dos salões parisienses recordam, nas memórias que escreveram após a Revolução,
como era exercido esse predomínio feminino. (CHARTIER, 1997, p. 129 e 130).

Assim, os homens de letras gozavam da proteção de aristocratas,


quando até mesmos estes se tornavam também “filósofos”, como Holbach
ou Lavoisier. Estendia-se uma longa teia de proteção e pagamento de
pensões para muitos letrados, criando-se o chamado Grand Monde. De
certa forma, era um circuito fechado ao qual somente alguns “filósofos”
tinham acesso. O principal eram as qualidades para se adentrar nessa
“república”: “boa aparência, boas maneiras e um tio parisiense”
(DARNTON, 1989, p. 15), quer dizer, era necessário um “protetor” ou
um “agente”, como se diz hoje. Muitos nobres colocavam filósofos sob
sua “proteção”, somente para se exibirem diante de seus pares. Algo do

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unidade 4
Universidade Aberta do Brasil

gênero: “vejam tal filósofo, eu o protejo”.


Tal prática nos leva a verificar que o Iluminismo foi possível, em
grande parte, graças à proteção da aristocracia. Ao contrário do que
os manuais de história apregoam, o Iluminismo foi uma ideologia da
nobreza. A questão, para nós, é a seguinte: de que forma a nobreza pode
adotar pensamentos filosóficos que puseram fim ao Antigo Regime?
O Iluminismo em si não era revolucionário. Ele não deseja extinguir
o Antigo Regime, mas reformá-lo, o que era completamente compatível
com as crenças de parte da nobreza. Esta, por sua vez, buscava na ciência
da época um meio de se “iluminar”, tornar-se mais esclarecida. Esse tipo
de prática estava compatível com aquilo que Norbert Elias chamou de
sociedade de corte. Os nobres buscavam adquirir mais conhecimentos
para se distinguirem socialmente da burguesia que lutava para galgar a
escala social. Assim, as boas maneiras no Antigo Regime “vão ser usadas
para se conquistar uma posição destacada (...). O resultado é que, da
pequena burguesia para cima, começa a haver desesperada tentativa de
enobrecer-se, entre outras estratégias, pela dos gestos. A apropriação da
etiqueta pela burguesia é uma forma, dentre várias, que adquire a luta
pela ascensão social” (RIBEIRO, 1983, p. 103). Desse modo, a busca por
formas de distinção por parte da nobreza se tornou uma luta por espaço
social.
Mas, de que forma o Iluminismo se tornou uma ideologia burguesa?
Os revolucionários se apropriaram das Luzes como forma de legitimar a
sua ação e ancorá-la no social. Não é por simples heroísmo que Voltaire
e, logo após, Rousseau foram inumados no Panteão. Essa apropriação
tornava os filósofos “precursores” dos revolucionários que pautaram a
sua ação na razão, nas Luzes. Por conseguinte, não havia irracionalidade
no ato, pelo contrário. Essa apropriação do Iluminismo foi tomada como
fato pela historiografia do século XX, o que completa a obra iniciada pelos
revolucionários.

102
unidade 4
História Moderna II
Anicet-Charles-Gabriel Lemonnier, Leitura no salão de
Madame Geoffrin em 1755, 1812, Château du Malmaison, Rueil.
Neste quadro o autor, saudosista, retratou a antiga sociedade
de corte. Nobres, artistas, filósofos reunidos numa dos mais famosos
salões do século XVIII em torno do busto de Voltaire.

De qualquer forma, nem Rousseau, muito menos ainda Voltaire


pensavam em revolucionar a sociedade aristocrática. Eles participavam
do Grand Monde (Rousseau nem tanto, pois no final da vida se isolou sob
a proteção do marquês de Girardin, em Ermenonville) e dependiam dele
para a divulgação de seus trabalhos.
Os homens do Iluminismo não anteviram a Revolução e muito
menos a prepararam de modo consciente. Somente desejavam modificar o
mundo pelo uso da razão, torná-lo mais justo melhorando os governantes,
transformando os reis em monarcas esclarecidos. Também participaram
da corte instruindo a aristocracia. A alta burguesia, que desejava
profundamente ingressar nos quadros da nobreza, procurava por todos os
meios adquirir tudo aquilo que os nobres adquiriam, inclusive a ilustração.
Assim, sem o desejar, os homens de letras tornaram possível o conjunto
ideológico da Revolução, antecipando os homens do século XIX.

103
unidade 4
Universidade Aberta do Brasil

Nesta unidade estudamos o homem dos séculos XVII e XVIII e pudemos observar como era a noção
de verdade e ciência do período. De certa forma, o chamado Iluminismo foi precursor dos conceitos
de ciência que portamos hoje.Por mais que se faça referência ao período como aquele que trouxe
a ciência e a verdade para o seu devido lugar, na realidade vemos pessoas com crenças e práticas
completamente diferentes daquelas dos homens contemporâneos. Isso quer dizer que elas tinham
outras formas de verdade e que eram tão críveis quanto aquelas que temos hoje.
Devemos compreender a distância temporal que nos cerca como a distância da alteridade, ou
seja, quando tratamos do passado, estamos falando do outro e não do mesmo. Os homens do século
XVIII são nossos antepassados apenas em termos genéticos, em termos históricos eles pertencem a
outra categoria de humanos, como os nossos índios. É dessa forma que devemos compreender as
sociedades do passado.

Mesmerismo e ciência popular


No texto que segue, Robert Darnton nos apresenta um mundo diferente, o da ciência do
século XVIII. Acostumamo-nos a considerar o período como simples precursor do que viria, o século
XIX, porém ele nos apresenta um mundo diferente, no qual as verdades não são eternas.

“O fracasso estrondoso do Contrato social, o livro menos popular de Rousseau antes da revolução,
levanta um problema para os estudiosos que investigam o espírito radical na década de 1780: se
o maior tratado político da época não conseguiu despertar interesse entre muitos franceses cultos,
qual foi a forma das idéias radicais que efetivamente se adaptou aos seus gostos? Uma forma tal
apresentou-se sob os inverossímeis traços do magnetistmo animal ou mesmerismo. O mesmerismo
suscitou um enorme interesse durante a década pré-revolucionária; embora originalmente não tivesse
qualquer relevância para a política, ele se tornou, nas mãos de mesmeristas radicais como Nicolas
Bergasse e Jacques-Pierre Brissot, uma teoria política camuflada, muito semelhante à de Rousseau.
O movimento mesmerista, portanto, serve como exemplo do emaranhamento, em nível vulgar, entre
política e modas passageiras, proporcionando aos escritores radicais uma causa que poderia prender
a atenção dos leitores sem atrair a da censura (...).
Em fevereiro de 1778, Franz Anton Mesmer chegou a Paris e anunciou sua descoberta sobre
um fluido ultrafino que penetrava e cercava todos os corpos. Mesmer não vira realmente esse seu
fluido; chegou à conclusão de que ele devia existir como o meio para a ação da gravidade, visto que os
planetas não poderiam se atrair num vácuo. Além de imergir todo o universo nesse ‘agente da natureza’
primordial, Mesmer trouxe-o para a Terra, a fim de abastecer os parisienses com calor, luz, eletricidade
e magnetismo, e exaltou particularmente sua aplicação na medicina. Ele sustentava que a doença
resultava de um ‘obstáculo’ ao fluxo do fluido através do corpo, o qual se assemelhava a um imã. As
pessoas poderiam controlar e fortalecer a ação do fluido ‘mesmerizando’ ou massageando os ‘pólos’ do
corpo, e com isso superar o obstáculo, induzir uma ‘crise’, muitas vezes sob a forma de convulsões, e
restaurar a sáude ou a ‘harmonia’ do homem com a natureza.
O que emprestou força a esse apelo ao culto da natureza no século XVIII foi a capacidade de
Mesmer de operar com seu fluido, lançando seus pacientes em espasmos de tipo epiléptico ou transes

104
unidade 4
História Moderna II
sonambúlicos e curando-os de males que iam desde a cegueira até o tédio produzido por um excesso
de atividade do baço. Mesmer e seus seguidores encenavam apresentações fascinantes: sentavam-
se cingindo com seus joelhos os joelhos do paciente e corriam os dedos por todo o corpo da pessoa,
procurando os pólos dos pequenos imãs que compunham o grande imã do corpo como um todo. A
mesmerização exigia habilidade (...).
Por mais extravagante que pareça hoje em dia, o mesmerismo não justifica a negligência
dos historiadores, pois correspondeu perfeitamente ao interesse dos franceses cultos na década de
1780. A ciência conquistara os contemporâneos de Mesmer revelando-lhes que viviam cercados por
forças invisíveis e maravilhosas: a gravidade de Newton, que Voltaire fizera inteligível; a eletricidade
de Franklin, popularizada por uma voga de pára-raios e demonstrações nos liceus e museus elegantes
de Paris; e os gases miraculosos dos aeróstatos Charlière e Montgolfière que assombravam a
Europa ao elevar o homem ao ar pela primeira vez em 1783. O fluido invisível de Mesmer parecia
igualmente miraculoso, e ninguém poderia afirmar que era menos real do que o flogisto que Lavoisier
vinha tentando expulsar do universo, ou do que o calórico pelo qual ele aparentemente vinha tentando
substituí-lo, ou do que o éter, o ‘calor animal’, a ‘natureza interna’, as ‘moléculas orgânicas’, a alma do
fogo e as outras potências fictícias que se encontram como fantasmas a habitar os tratados mortos dos
cientistas do século XVIII tão respeitáveis como Bailly, Buffon, Euler, La Place e Macquer. Os franceses
podiam ler descrições de fluidos muito semelhantes ao de Mesmer nos verbetes ‘fogo’ e ‘eletricidade’
na Encyclopédie [Enciclopédia]. Se quisessem se inspirar numa autoridade ainda maior, poderiam ler
a descrição de Newton sobre o ‘espírito extremamente sutil que permeia e se oculta em todos os
corpos densos’, no fantástico último parágrafo dos seus Principia [Princípios, 1713] ou nas indagações
posteriores de sua Opticks [Óptica].”

1 – Elabore um texto analítico a partir do documento abaixo – trecho de um texto de Jean-Jacques


Rousseau. Adotando a perspectiva da “alteridade”, aponte as diferenças entre a visão de Rousseau e
a nossa.

“Concebo na espécie humana duas espécies de desigualdade: uma, que chamo de natural ou física,
porque é estabelecida pela natureza, e que consiste na diferença das idades, da saúde, das forças do
corpo e das qualidades do espírito, ou da alma; a outra, que se pode chamar de desigualdade moral
ou política, porque depende de uma espécie de convenção, e que é estabelecida ou, pelo menos,
autorizada pelo consentimento dos homens. Consiste esta nos diferentes privilégios de que gozam
alguns com prejuízo dos outros, como ser mais ricos, mais honrados, mais poderosos do que os outros,
ou mesmo fazerem-se obedecer por eles. [...]
O primeiro que, tendo cercado um terreno, se lembrou de dizer: Isto é meu, e encontrou pessoas
bastantes simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil.
Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano
aquele que, arrancando as estacas ou tapando os buracos, tivesse gritado aos seus semelhantes:
“Livrai-vos de escutar esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos,
e a terra de ninguém!.” (ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da
desigualdade entre os homens. 1755, p. 12, 29-30. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/)

2 – Após a leitura da unidade II, os Estados Nacionais, e da unidade IV, o Iluminismo, assista ao filme
Vatel: Um banquete para o rei (Roland Joffé, França: Miramax Films, 2000) e elabore um texto que
descreva as características e as relações entre a sociedade de corte, o Grand Monde e o Iluminismo.

3 – Após ler a unidade IV, o Iluminismo, elabore um texto que relacione Iluminismo, idéia de progresso,
revolução burguesa e historiografia “tradicional”.

105
unidade 4
106
Universidade Aberta do Brasil

unidade 4
História Moderna II
PALAVRAS FINAIS
Na disciplina de Moderna II pudemos observar, pelo menos em parte,
as mentalidades e as práticas dos homens do período que abarcaria os séculos
XV, XVI, XVII e XVIII. Devemos compreender que as mentalidades não
manifestam uma unidade de pensamento. Muito pelo contrário, expressam
diferentes matizes e crenças “encarnadas” em práticas igualmente diversas,
uma não existe sem a outra, uma não é mais ou menos importante que a
outra.
São os diferentes grupos socioculturais que fundam e empregam as
distintas mentalidades e práticas. Estas – como aqueles – estão em constante
concorrência, para se imporem como verdade histórica, natural e universal.
As navegações, por exemplo, nos mostram os temores e os desejos
de muitos europeus em torno da riqueza, conforto, salvação da alma e
dominação. Já os modos de governo nos apontam para as formas de imposição
de vontades, enquanto a ciência do século XVIII nos diz bastante sobre as
verdades e crenças.
Diante disso, esta disciplina não enveredou pelos caminhos tradicionais,
apesar da temática; buscaram-se maneiras de compreender o período que
pudessem nos dizer mais a respeito dos homens da época e, talvez, de nós
mesmos.

107
PALAVRAS FINAIS
Universidade Aberta do Brasil

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REFERÊNCIAS
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NOTAS SOBRE OS AUTORES

André Luiz Joanilho


Doutor em História Social pela UNESP/SP e fez pós-doutorado
na École des Hautes Études en Sciences Sociales. É autor, entre outros,
de Revoltas e Rebeliões (São Paulo: Contexto, 1989); História e Prática
(Campinas: Mercado das Letras, 1997); O Nascimento de uma nação
(Curitiba: Aos quatro ventos, 2004) e também co-autor da coleção Hoje
é dia de história (Curitiba: Positivo, 2007). Atualmente é professor asso-
ciado da Universidade Estadual de Londrina.

Igor Guedes Ramos


Graduado em História, especialista em Ensino de História e
História Social e mestre em História Social pela Universidade Estadual
de Londrina. Tem experiência nas áreas de História Cultural e Produção
Acadêmica Brasileira. Atualmente é professor do ensino fundamental,
contratado pelo Governo do Estado do Paraná.

Mariângela Peccioli Galli Joanilho


Doutora em linguística pela Unicamp e fez seu estágio de pós-
doutorado na École Normale de Lyon. Tem vários artigos publicados e
pesquisa a formação da língua nacional no Brasil. Ela é professora ad-
junta da Universidade Estadual de Londrina.

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AUTOR

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