Академический Документы
Профессиональный Документы
Культура Документы
São Paulo
2014
2
RA00077463
________________________________________________
São Paulo
2014
3
______________________________
Miguel Wady Chaia (orientador)
AGRADECIMENTOS
RESUMO
ABSTRACT
This dissertation aims to highlight the presence of the characteristics of Modernity in the play
"Hamlet", by William Shakespeare. Through analysis of the play, along with the explanation
of the historical and cultural context of the time, it was possible to demonstrate the reasons
why the character of Prince Hamlet is the most cited of Western literature since 1600. His
importance lies in the fact that he helped consolidating an image of a new man, no more
medieval. A new man that could question the moral, political and religious status quo of his
time, and that could propose actively new paths. To accomplish this work, eight books from
different areas were used, such as: Literature, Politics and Sociology. This variety of
approaches was needed to show different angles of interpretation of the play and the English
society of that time, constructing a thesis that could be complete and successful in proving
that Hamlet represents, above all, the emancipation of the Modern Man.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 8
1.1Objetivo ..................................................................................................................................................... 8
1.2 Justificativa.............................................................................................................................................. 9
1.3 Metodologia ........................................................................................................................................... 10
2 DESENVOLVIMENTO ................................................................Error! Bookmark not defined.
2.1 Contexto de produção de Hamlet ..................................................................................................... 11
2.1.1 O Renascimento Cultural e o pensamento moderno ....................................................................... 11
2.1.2 A Inglaterra de Shakespeare .................................................................................................................... 14
2.1.3 Vida e obra de William Shakespeare .................................................................................................... 18
2.2 A Obra .................................................................................................................................................... 23
2.2.1 Contexto de produção e resumo da obra .................................Error! Bookmark not defined.
2.2.2 Ser ou não ser, eis a questão ................................................................................................................... 30
2.2.3 Temáticas relevantes .................................................................................................................................. 32
2.3 Diálogo da obra com seu contexto externo..................................................................................... 36
2.3.1 Arte e Política ............................................................................................................................................... 37
2.3.2 Maquiavel e Shakespeare ........................................................................................................................ 39
2.3.3 Shakespeare e a invenção do humano ................................................................................................... 42
3 CONCLUSÃO .................................................................................................................................. 46
REFERÊNCIAS .................................................................................Error! Bookmark not defined.
8
1 INTRODUÇÃO
1.1 Objetivo
1.2 Justificativa
A importância de estudar este tema é, portanto, que este homem Moderno que
começou a ser desenhado no Renascimento foi quem construiu, tempos depois, o Estado
Moderno como conhecemos atualmente, o modelo de Estado centralizado e detentor do
monopólio legítimo do uso da violência. Este mesmo Estado foi responsável por provocar
duas guerras mundiais com outros Estados e, finalmente, por criar o diálogo entre si buscando
construir um Sistema Internacional harmônico. Desde novo Sistema nasce, também, a
disciplina das Relações Internacionais.
“Arte e política: trata-se de um paradoxal encontro, no qual as partes envolvidas
estabelecem instáveis equilíbrios, porém, sempre de fortes intensidades. Por vezes, uma
incômoda reunião, outras vezes, um surpreendente união.”(CHAIA, 2007, p.7). É no espírito
de entender a união entre Arte e Política que este trabalho se inicia. William Shakespeare é
tido como o principal dramaturgo de todos os tempos. Dentre suas inúmeras obras, estão os
consagrados clássicos Romeu e Julieta, MacBeth e o que iremos analisar nesta pesquisa,
Hamlet.
Os escritos de Shakespeare foram imensamente influenciados pelo contexto em que
vivia, o Século XVI. Tal período marcou a história como sendo um período de transição entre
o modelo de organização feudal e a organização do território em Estados centralizados. Essa
organização da vida política centralizada só foi possível graças a uma mudança na
mentalidade dos homens. Essas mudanças foram diversas. O Homem passou a questionar
premissas e dogmas antes aceitos como absolutos. A Igreja não mais seria o eixo de sua vida,
uma vez que passou a ser ativo, Sujeito de si. O Homem não queria mais aceitar que o Clero
ditasse suas formas de conduta e de pensamento. Esse é o processo denominado de
Secularização ou separação entre Igreja e Estado. Além dele, outros tiveram parte
simultaneamente, como o individualismo, a descoberta do homem como Sujeito, e o
heliocentrismo, a descoberta de que o mundo não gira ao redor da Terra e sim do Sol.
10
1.3 Metodologia
Para este trabalho acadêmico, utilizaremos como fonte de pesquisa livros que tratem
dos assuntos em questão, tais como: Vida de Shakespeare, História da Inglaterra,
Renascimento, Hamlet, Relação entre Arte e Política. O trabalho se divide em três partes:
“Contexto de produção de “Hamlet””, “A Obra” e, finalmente, “Diálogo da Obra com seu
contexto externo”.
Na primeira parte do presente trabalho, buscaremos adentrar neste contexto histórico
que Shakespeare vivia quando escreveu Hamlet. Primeiramente, faremos um parâmetro geral
do contexto histórico da época de Shakespeare, o do Renascimento. Para isso, utilizaremos
como base os escritos de Alain Touraine. Já no segundo capítulo, o foco será o de evidenciar
como era a Inglaterra renascentista. Como base temos a obra de Woodward. Por fim, a fim de
analisar vida e obra de Shakespeare contaremos com os estudos de Victor Kiernan. A partir
dele, contaremos um pouco da história da vida pessoal do dramaturgo e também de sua vida
profissional, diferenciando brevemente seus três estilos de escrita: os Dramas históricos, as
Comédias e as Tragédias. Trataremos também do período Elisabetano que a Inglaterra
vivenciava, e como Shakespeare convivia neste Estado. Além disso, pontuaremos também as
principais ideias que surgiam de filósofos da época, como Montaigne e Descartes.
Já na segunda parte da pesquisa, trataremos da obra de Hamlet em si. Isto é,
buscaremos explorar como ela foi constituída, sua forma e sua linguagem peculiar. Além
disso, entraremos nas cenas mais importantes de Hamlet, como por exemplo o famoso
soliloquy “to be or not to be”. A análise dos personagens-chave também será feita, tendo
como base de estudo a própria obra de Shakespeare.
Por fim, na terceira parte, que tem como base os escritos do autor Harold Bloom e de
Miguel Chaia, faremos o paralelo entre as duas primeiras partes, isto é, buscaremos
evidências de como o contexto vivido por Shakespeare influenciou sua obra e,
principalmente, a personalidade do personagem Hamlet.
11
2 DESENVOLVIMENTO
Para este capítulo, utilizaremos como base a obra “Crítica da Modernidade”, de Alain
Touraine. Diversos conceitos são chave para compreendermos o que significou esta
Modernidade, atingida pelo Renascimento.
Primeiramente, a Modernidade tratou de dar maior importância à ciência, dando a ela
lugar de destaque no centro da sociedade. Ao fazer isso, acabou por retirar Deus deste posto.
Isto significou crescente importância da racionalização como meio de se conhecer o mundo.
A aceitação sem questionamentos dos dogmas religiosos perdeu espaço neste novo mundo. O
saber não mais poderia ser restrito ao Clero, mas toda a sociedade deveria ter acesso a ele.
Quanto a Deus, Descartes afirma sua existência, uma vez que se temos a ideia de
Deus, é Ele quem faz isso. Não é a partir de nenhum sentido que percebemos sua presença, e
sim pelo simples fato de imaginarmos sua existência. Deus não é, para o francês, um ser
histórico como é o homem. E o homem não é, como Deus, divino; estaria, assim, no meio
termo entre Deus e a natureza. Somos, ao mesmo tempo, corpo e alma.
Descartes defende, assim, que o Sujeito é aquele que controla as paixões, se baseando
na razão para obter conhecimento acerca do mundo. Das paixões não provêm conhecimento,
mas engano. É necessário, também, reconhecer o Outro como Sujeito, respeitando seu livre-
arbítrio.
A teoria do filósofo baseia-se, principalmente, no dualismo existente no homem.
“Estas duas faces do homem, a do conhecimento racional das leis criadas por Deus e
a da vontade e da liberdade, marcas de Deus no homem, não se opõe uma à outra;
elas se combinam no fato de a vontade e a generosidade serem dadas pela
razão.”(TOURAINE, p.53)
Por fim, adentrando mais especificamente no campo político, não podemos deixar de
mencionar a importância de Nicolau Maquiavel (1469- 1527) para a produção renascentista.
O cientista político realista tem grande proximidade com os escritos de Shakespeare,
conforme veremos na terceira e última parte deste trabalho.
Por ora, é relevante mencionar que Maquiavel foi por vezes interpretado como um
pessimista, quando na realidade o que o estudioso buscou fazer foi mostrar a política como ela
verdadeiramente é. Em sua obra-prima, “O Príncipe”, Maquiavel busca ensinar como
governar vitoriosamente um Estado, no caso a Itália. Seus conselhos são baseados numa
postura individualista e auto-interessada que o governante deveria adotar a fim de manter a
ordem, o que caracteriza o autor como sendo o grande expoente do realismo político, e o que
faz com que se enquadre muito bem no Renascimento, que, também por meio de outros
intelectuais, trouxe os conceitos de individualismo e racionalismo a fim de se obter a Ordem.
14
Sendo assim, a partir do século XIV na Inglaterra, passou-se a ter uma sociedade que
girava em torno do dinheiro, e na qual o trabalho escravo já não era mais central e nem
mesmo economicamente vantajoso. Os proprietários de terras alugavam seus espaços para
trabalhadores mais simples em troca de dinheiro, e contratavam seus serviços também em
troca dele. Era o embrião do Capitalismo.
15
Woodward nos mostra que a Peste Negra viria como catalizadora dessas mudanças em
1348. Ao matar grande parte da população europeia, a mão de obra tornou-se escassa e, sendo
assim, mais valiosa. Criou-se uma concorrência nunca antes vista para obter os produtos e
serviços assalariados.
As mudanças trazidas pelo período do Renascimento não foram apenas de ordem
econômica. Na verdade, elas começaram na Itália como mudanças de cunho cultural. Na
Inglaterra, era possível perceber mais lentamente uma mudança de postura da população com
relação ao estudo e ao conhecimento. A educação tornou-se mais acessível ao longo do
tempo.
Assim, a introdução de novos ensinamentos e de uma nova arte foi devida, em
grande parte, a uns tantos homens ricos, mais diletantes do que eruditos, de espírito
cosmopolita.(WOODWARD, 1962, p.78)
Com a morte de Henrique VII em 1509, seu filho Henrique VIII assume o trono. Fora
ele o responsável por iniciar a Secularização na Inglaterra, isto é, a separação entre Igreja e
16
Estado, uma das mais importantes características da Idade Moderna que estava se
consolidando com força na Inglaterra.
Tal separação se iniciou com a vontade do monarca de se divorciar de sua esposa,
Catarina de Aragão. Ao ter seu pedido negado pelo papado, Henrique rompeu com a Igreja.
Este passo ousado contudo só fora bem sucedido graças ao apoio popular que o Rei possuía
(WOODWARD, 1962)
A Inglaterra vinha, assim, seguindo os passos da Alemanha, que havia, com o
luteranismo, inaugurado essa separação entre Igreja e Estado. Em 1533, uma nova Lei vem
reafirmar a Inglaterra como um Estado Nacional independente, concretizando por fim, o
processo de Secularização.
Com a morte de Henrique VIII, assumiu como regente seu tio Eduardo, e,
posteriormente a ele, sua meia-irmã Maria, já em 1553. Ela foi a responsável por anular
diversas leis em vigor e retornou com uma postura católica bem forte. Seu reinado fora
conturbado mas, por fim, sucedido por Elisabete, o foco deste trabalho. Fora na Era
Elisabetana que viveu e produziu William Shakespeare.
A monarca era filha do antigo rei Henrique VIII, uma das figuras mais polêmicas de
toda a história europeia, por ter sido, como vimos acima, o responsável pela criação da Igreja
Anglicana e por seus inúmeros divórcios. Isabel nasceu de um dos casamentos do Rei com
Ana Bolena, que foi executada após o nascimento da garota, logo considerada bastarda e
excluída de seus direitos reais. No decorrer de sua adolescência, no entanto, Isabel retomou o
contato com seus irmãos, e, com muito desgosto a princípio, foi readmitida na corte. Quando
sua irmã e então rainha Maria adoece, a Inglaterra se vê sem herdeiros e declara Isabel como
sua legítima sucessora.
Isabel assume a coroa com 25 anos de idade e inicia um reinado que duraria 45 anos e
que foi denominado Era Dourada inglesa, visto que fora uma época marcada pelo ápice do
Renascimento, com uma produção cultural intensa na literatura e, principalmente, no teatro,
onde nosso objeto de estudos, Hamlet, se insere.
Curiosamente, no momento em que viveu Shakespeare, apesar de o Estado inglês já
ter quase um século de formação, ainda se tinha proprietários de terras que viviam em
maneiras semifeudais, de modo que a transição para a Modernidade não era ainda dada por
completa.
Shakespeare pertenceu a um período de transição, no qual uma ordem antiga e seu
panorama de vida estavam esmorecendo ou desmoronando, e uma nova ordem ainda
estava tomando forma. Havia uma convivência entre a história e a mitologia, a
magia e a ciência, a teologia e a razão. (KIERNAN, 1999, p.23)
17
Temos, assim, as evidências de que o teatro fora nesta época, não só importante
veículo de cultura, mas também de pensamentos políticos e sociais, mesmo que por muitas
vezes disfarçados em meio ao sarcasmo e sátira típicas das peças da época.
A Inglaterra elisabetana foi, em suma, muito forte, em todos os sentidos.
Elisabete, ainda mais do que Henrique VIII, foi o símbolo de um país favorecido
pela fortuna e capaz de se defender pelas suas ações. O orgulho nacional não era
injustificado. A Inglaterra salvara a si própria; havia indícios visíveis de seu bem-
estar.(WOODWARD, 1962, p.110)
Essa foi a Inglaterra em que Shakespeare nasceu, cresceu e produziu suas obras.
Foram todos os elementos mencionados neste capítulo os responsáveis por influenciar o
pensamento e o modo de expressão do dramaturgo. A partir desse contexto histórico, somos
capazes, então, de adentrar mais profundamente na vida e na obra de William Shakespeare.
19
Para Kiernan,
Desde o início, ele tinha um impulso para o trágico; seu “período trágico” seria uma
intensificação disso, um eclipse do espírito cômico e não uma nova criação. (...)
Shakespeare aprenderia gradualmente a destilar o espírito da tragédia, na forma mais
elevada que a humanidade já conheceu. (KIERNAN, 1999, p.353)
2.2 A Obra
2.2.1 Contexto de produção e resumo da obra
extremamente revoltado, como podemos ver no diálogo abaixo entre o jovem Hamlet e seu
amigo Horácio:
Logo nas primeiras cenas já podemos perceber que a peça de fato não se encaixava
nos padrões da época. Temos a aparição do fantasma do Rei Hamlet que conta a seu filho que
sua morte não fora acidente, mas assassinato, e que “ sleeping in my orchard, a serpent stung
me. (...) The serpent that did sting thy father’s life now wears his crown.”( SHAKESPEARE,
2012, p.119)2
Ou seja, fora seu tio, agora Rei Cláudio, que assassinara o então Rei Hamlet, seu pai, e
se casara com sua mãe. O fantasma pede ao filho que vingue sua morte, mas que não faça mal
a sua mãe. Neste momento temos uma importante afirmação, a de que algo estaria podre no
reino dinamarquês. (SHAKESPEARE, 2012)
Paralelamente ao sofrimento de Hamlet pela traição de sua mãe e morte de seu pai, há
um breve romance entre o jovem e Ofélia, que é desencorajado pelo pai da jovem, Polônio,
um dos Lordes dinamarqueses. A justificativa dada pelo pai a sua filha é a de que Hamlet não
nutria sentimentos sinceros pela garota.
Logo após encontrar o fantasma do pai, Hamlet age de forma estranha com Ofélia,
proferindo frases sem sentido, o que faz Polônio concluir que ele estava louco de amor por
sua filha. O lorde segue, então, para contar essa suspeita ao Rei Cláudio.
Chegando ao castelo, Polônio explica ao Rei e à Rainha que acredita ter descoberto o
motivo pelo qual Hamlet enlouquecera. A Rainha logo afirma que sabe qual era o motivo: a
morte de seu pai e o casamento abrupto de sua mãe com seu tio. O lorde, entretanto, afirma
1
Traduções da autora:
Horatio: Milorde, vim para o funeral de seu pai.
Hamlet: Espero que não esteja me zombando amigo, acredito que você veio para o casamento de minha mãe.
Horatio: De fato, milorde, um logo seguiu o outro.
Hamlet: As sobras do funeral foram reaproveitadas para este banquete de casamento.
2
Dormindo no pomar, uma serpente me picou. A serpente que tirou a vida de seu pai agora usa sua coroa.
26
que a loucura de Hamlet era o amor por sua filha, Ofélia. Para testar essa hipótese, Polônio
encontra o jovem e ele começa a falar frases desconexas, principalmente nesta importante
passagem:
“ POLONIUS: (...) what do you read, my Lord?
HAMLET: words, words, words.” (Hamlet, act 2, scene 2, p.139)3
De fato, não podemos afirmar se Hamlet realmente estava perturbado com as
revelações do fantasma de seu pai, ou se estaria fingindo a loucura. De qualquer modo, essa
passagem é suficiente para convencer sua mãe e seu tio de que o garoto realmente não estava
são.
Quando deixado sozinho, Hamlet tem um pequeno monólogo no qual sofre por se
pensar um covarde, pois ainda não começara a planejar como vingaria a morte de seu pai.
Após o sofrimento, ele se concentra e junta suas forças visando um objetivo: ter certeza de
que seu tio realmente matara o antigo rei. O jovem pensa em montar uma cena de teatro na
qual ocorresse uma morte igual a de seu pai. O Rei, ao assistir essa performance, demonstraria
ou não em sua expressão facial a sua culpa. Hamlet observaria até tirar sua conclusão, uma
vez que não era extinta a possibilidade de o fantasma não ser seu pai, mas um demônio
mentiroso.
Hamlet então pede ao Rei e a Rainha que assistam a uma peça de sua autoria, com a
ajuda de atores viajantes. Todos concordam, uma vez que poderia ajudar a curar a loucura do
jovem.
Antes da peça, Polônio e o Rei combinam de forjar um encontro entre Hamlet e
Ofélia, para tentar descobrir se a causa da loucura do jovem era o afeto pela moça. Hamlet
entra em uma sala sozinho enquanto Ofélia, seu pai e o Rei aguardam escondidos, e profere
seu mais importante monólogo, e um dos que ficariam marcados para sempre na história da
humanidade: o soliloquy “ser ou não ser”.
Esse monólogo, por sua importância, terá um capítulo a ele dedicado mais adiante
neste trabalho. Por ora, basta dizer que se trata de uma reflexão sobre a vida, a morte e o
destino afetando nossas existências.
Logo Ofélia entra e Hamlet nega que a ama, e ainda afirma que a jovem nunca deveria
ter acreditado em suas palavras, uma vez que ele, assim como todos os humanos, por mais
que tentem ser virtuosos, não o são. Hamlet completa seu discurso sugerindo que Ofélia vá
para um convento, visto que lá ainda teria uma chance mínima de ser virtuosa.
3
POLÔNIO: O que você está lendo, milorde?
HAMLET: palavras, palavras, palavras.
27
O Rei, diante do presenciado, afirma que Hamlet não ama Ofélia, e que não está
louco, mas sim muito triste e revoltado com algo, e que isto pode ser perigoso. Para evitar o
perigo, decide enviá-lo à Inglaterra para que pudesse respirar novos ares, mas fica de
combinar isso com sua mãe.
Chega, finalmente, o momento da peça de Hamlet. Todos se sentam para assistir e
Hamlet profere para Ofélia um discurso recheado de ironia a respeito de como sua mãe estava
tão feliz logo após a morte de seu pai.
Os atores performam, então, a cena de envenenamento que o fantasma descrevera a
Hamlet, e, imediatamente após o fim da cena, o Rei Cláudio se levanta passando mal. Hamlet
e Horácio logo concluem que ele foi, de fato, o assassino do Rei Hamlet.
O Rei Cláudio planeja enviar Hamlet à Inglaterra por considerá-lo fora de controle.
Polônio promete que, antes, tentaria ouvir a conversa de Hamlet com sua mãe para garantir
que ela não enfraqueça sua atitude. Em seguida, temos o marcante diálogo entre mãe e filho,
marcado por rancor e mágoa:
A rainha grita por socorro, assustada com a agressividade das palavras de seu filho, e
Polônio, escondido na cortina, grita também. Hamlet pergunta se ouvira um rato, vai até a
cortina e mata Polônio.
A rainha, apavorada, questiona seu filho, que resolve contar toda a verdade a ela,
causando, no entanto, bastante sofrimento por suas palavras duras. De repente, o fantasma do
Rei Hamlet reaparece e pede ao filho que ajude a fraca mãe e se vingue apenas em seu tio. A
rainha não vê o fantasma e Hamlet sai de cena.
Gertrudes conta ao Rei que Hamlet matara Polônio e que estava completamente louco.
O Rei, pensando politicamente, entende que prender Hamlet seria ruim para a imagem de seu
governo, visto que o jovem príncipe era muito querido por todos. Decide então, enviá-lo para
a Inglaterra e acobertar o assassinato de seu amigo. Planeja, além disso, pedir ao Rei da
Inglaterra que mate o jovem enquanto lá estiver.
4
Tradução da autora:
GERTRUDES: Você me esqueceu?
HAMLET: Não, não esqueci. Você é a Rainha, a esposa do irmão de seu marido e, embora eu quisesse que não
fosse, você é minha mãe.
28
Enquanto Hamlet se dirige para a Inglaterra, sofre novamente com sua inação, que
vemos durante boa parte da peça. Seu desejo de vingança não era ainda suficiente para fazê-lo
agir, e ele se pune se chamando de covarde, mas promete que efetivará sua vingança.
Paralelamente, na corte dinamarquesa, Ofélia enlouquece após a morte de seu pai, e
promete contar a seu irmão Laertes o ocorrido. O Rei teme vingança por parte do jovem. Um
mensageiro anuncia que, de fato, o irmão e Ofélia pretendem tomar o reino da Dinamarca
para si e que o povo os estaria apoiando.
Laertes entra de supetão no salão real e promete ao Rei vingar a morte de seu pai. O
monarca jura ao jovem que não foi ele quem matou Polônio, e conta que fora, na verdade, o
jovem Hamlet, e que estaria planejando algo para vingar a morte do pai de Laertes. Logo em
seguida, o príncipe Hamlet anuncia por carta que está voltando à Dinamarca.
Subitamente, surge mais uma morte: Ofélia havia se matado, afogada num rio.
Todos seguem para o cemitério, no qual um interessante diálogo entre dois coveiros
acontece. Um deles questiona se a jovem receberia um funeral cristão mesmo tendo cometido
suicídio. O amigo afirma que sim, por ordem do juiz e pelo fato de ela ser rica.
OTHER: Will you ha’ the truth on’t? If this had not been a gentlewoman, she should
have been buried out o’ Christian burial.
CLOWN: Why, there thou sayst – and the more pity that great folk should have
countenance in this world to drown or hang themselves more than their even-
Christen. (SHAKESPEARE, 2012, p.226)5
Apesar de os coveiros serem descritos como palhaços, fazem uma denúncia muito
grave na passagem acima. Podemos supor que Shakespeare escolheu retratá-los como bobos
justamente para disfarçar a gravidade daquilo que estavam dizendo, como que para amenizar,
ou mesmo anular, a crítica dura à aplicabilidade da moral e das leis de forma desigual para
classes sociais diferentes.
Em sequência, temos outra cena importantíssima: Hamlet, já de volta à Dinamarca,
reflete sobre a vida ao segurar um crânio humano. Fica perplexo ao pensar que aquilo que
tinha em suas mãos pode ter sido a cabeça de qualquer pessoa, de um político, de um
assassino, de um cidadão comum, e que, agora, pertencia às minhocas.
5
Tradução da autora:
OUTRO PALHAÇO: Você quer saber a verdade? Se ela não fosse rica, não teria um enterro cristão.
PALHAÇO: Agora você disse. É uma pena que os ricos tenham neste mundo mais liberdade para se afogarem
ou se enforcarem do que os pobres igualmente cristãos.
29
O príncipe caminha pelo cemitério, conversando com os coveiros e com seu grande
amigo Horácio e perplexo com todos aqueles restos mortais, que, uma vez que a vida os
deixou, não possuem mais valor algum.
O enterro de Ofélia se inicia e o padre mostra extrema relutância em enterrá-la com
todos os rituais cristãos, e afirma que só o está fazendo por ordens do Rei. Laertes e Hamlet
pulam na cova e começam a brigar.
Hamlet conta a seu amigo Horácio que descobrira, no caminho para a Inglaterra, que
havia uma ordem do Rei Cláudio para matá-lo, e como ele trocara a carta com a ordem por
outra. Horácio concorda que o príncipe deve matar o Rei imediatamente.
A conversa dos amigos é interrompida por um mensageiro que informa a Hamlet que
Laertes o está desafiando para um duelo de esgrima. O príncipe aceita imediatamente e se
dirige ao local da disputa. Pede desculpas a Laertes e diz que sua loucura foi responsável pelo
assassinato de Polônio. A luta, assim, se inicia.
Hamlet começa ganhando, e a Rainha bebe, por engano, uma taça de vinho - que havia
sido envenenada pelo Rei para dar a Hamlet- e cai morta. Hamlet troca de florete com seu
oponente no corpo a corpo, e o acerta. Laertes cai, morto pelo veneno de seu próprio florete.
Hamlet ataca o Rei com o florete envenenado e o obriga a beber também do vinho. O Rei
morre. Hamlet, que também havia sido envenenado pelo florete de Laertes, e, já sabendo que
morreria, ordena que se fechem as portas.
O príncipe, por fim, se despede do amigo Horácio e pede que ele conte a todos tudo
aquilo que acabara de acontecer.
Do lado de fora da sala, Fortinbrás chega e anuncia que tomara a Dinamarca para si.
A peça termina da seguinte forma:
FORTINBRAS: Bear Hamlet like a soldier to the stage, for he was likely, had he
been put on, to have proved most royal; and for his passage, the soldier’s music and
the rite of war speak loudly for him. (SHAKESPEARE, 2012, p.254)6
6
Tradução da autora:
FORTIMBRÁS: Tenham Hamlet como um verdadeiro soldado, pois ele teria provado, se tivesse tido a
oportunidade, muito mais realeza; e, para sua passagem, as musicas militares e seus rituais serão apropriados.
30
A expressão “ser ou não ser, eis a questão” é tão famosa que se aproxima de um ditado
popular. A maioria das pessoas nem imagina, no entanto, que essa curiosa frase, quase
humorística, é parte de um dos discursos mais densos e complexos da história da literatura
ocidental.
Chama-se de soliloquy uma reflexão feita por um personagem apenas a si mesmo e à
plateia por meio da qual são expressos sentimentos e questionamentos. É geralmente utilizado
em obras de Tragédia.
Shakespeare, em Hamlet, escreveu seis soliloquies, sendo o mais importante deles,
sem dúvida, o “to be or not to be. Não há um consenso a respeito da interpretação dessa
passagem, as análises são muitas e diversas. Para o presente trabalho, seguiremos a análise
feita por Philip Edwards na edição de Hamlet da Universidade de Cambridge.
To be, or not to be: that is the question:
Whether 'tis nobler in the mind to suffer
The slings and arrows of outrageous fortune,
Or to take arms against a sea of troubles,
And by opposing end them? To die: to sleep;
No more; and by a sleep to say we end
The heart-ache and the thousand natural shocks
That flesh is heir to, 'tis a consummation
Devoutly to be wish'd. To die, to sleep;
To sleep: perchance to dream: ay, there's the rub;
For in that sleep of death what dreams may come
When we have shuffled off this mortal coil,
Must give us pause: there's the respect
That makes calamity of so long life;
For who would bear the whips and scorns of time,
The oppressor's wrong, the proud man's contumely,
The pangs of despised love, the law's delay,
The insolence of office and the spurns
That patient merit of the unworthy takes,
When he himself might his quietus make
With a bare bodkin? who would fardels bear,
To grunt and sweat under a weary life,
But that the dread of something after death,
The undiscover'd country from whose bourn
No traveller returns, puzzles the will
And makes us rather bear those ills we have
Than fly to others that we know not of?
Thus conscience does make cowards of us all;
And thus the native hue of resolution
Is sicklied o'er with the pale cast of thought,
And enterprises of great pith and moment
With this regard their currents turn awry,
And lose the name of action. (SHAKESPEARE, 2012, p.158)7
7
Tradução da autora:
Ser ou não ser: eis a questão.
Será mais nobre sofrer
pedradas e flechadas de um destino ultrajante
31
8
Tradução da autora:
O suicídio não pode ser considerado como opção. O sono da morte se transforma em pesadelo, devido ao medo
da danação eterna.
32
neste ato. Shakespeare nos revela, então, a moral religiosa ainda presente, como impositora de
valores e medos aos humanos.
Esse soliloquy é muito importante para este trabalho pois evidencia justamente a tese
proposta, ou seja, a de que a obra representa a emancipação do Homem Moderno. Nesta
passagem, Hamlet assume uma postura questionadora, típica deste novo Homem. Age como
sujeito de sua vida, não mais aceitando de olhos fechados as imposições da religião. Ao
mesmo tempo em que o príncipe possui essa tomada de consciência nitidamente moderna, os
valores tradicionais, como o medo da danação eterna, continuam presentes em sua mente, a
ponto de impedi-lo de tirar sua própria vida. Ele estaria assim, bem na transição entre o
homem medieval e o homem moderno.
Outra análise crítica é cabível. Levando em consideração que a Rainha Elisabete
assistia às peças teatrais e aprovava sua representação ou não, a decisão do príncipe não
poderia ser a de se matar, pois isso seria ir contra o status quo moral-religioso em vigor na
Inglaterra. Era de agrado da rainha, portanto, que a escolha do personagem fosse a de resistir
ao seu destino, para que pudesse servir de lição a todos aqueles que assistissem à peça.
33
9
Tradução da autora:
Há mais coisas no céu e na terra, Horácio, do que sonha sua filosofia.
10
Mas por que Hamlet não obedecera o fantasma na primeira oportunidade, salvando, assim, sete daquelas oito
vidas?
34
anteriormente, a aprovação da Rainha Elisabete era necessária para que a peça prosseguisse
suas apresentações.
No entanto, Welsh acredita que a explicação não é tão simplista assim. Para ele, o
debate deve girar ao redor não do fantasma, mas sim da inação de Hamlet. Essa inação seria,
tanto para ele como para outros estudiosos como Margreta de Grazia, a temática central da
peça.
O motivo principal que justificaria essa inação quanto à vingança seria, para Welsh, a
descoberta do príncipe de que vingar a morte de seu pai não acabaria com o luto e o
sofrimento que sentia. Que, principalmente, não traria um sentimento positivo a ele, e sim, um
grande fardo: pois matar é sempre negativo, não importam as circunstâncias. Ou seja, em
última instância, a força motriz da inação do príncipe é sua moral, que impõe a ele o “não
matarás”.
It suffices that revenge calls for reprocity, and that reprocity is not finally possible.
Shakespeare’s hero realizes that revenge is incoherent unless it possesses that
recapitulative power which the passage of experience makes impossible. (WELSH,
2001, p.29)11
Welsh, na citação acima, demonstra mais claramente como a vingança não pode ser
suficiente. Pois o sentimento que motiva a vingança é o de reciprocidade. Isso significa
submeter a pessoa aos mesmos males que causara a outra, a quem queremos vingar.
Entretanto, torna-se impossível atingir a vingança perfeita, uma vez que teríamos que ser
capazes de recapitular os momentos a fim de repeti-los com outra pessoa, e o tempo é algo
que não volta atrás.
Sendo assim, um misto de moral que faz com que o príncipe reconheça que matar não
é correto, aliado a um entendimento de que, mesmo que fosse contra essa moral, ainda assim
não sentiria que a vingança fora completa, fazem com que Hamlet não execute sua vingança
até o último momento possível, quando, ao descobrir que o Rei planejava matá-lo também,
finalmente concretiza sua ação.
Dando continuidade com outros temas, vimos, no capítulo em que analisamos o
soliloquy principal, como era central tratar da existência humana. Naquela passagem, Hamlet
reflete a respeito de como melhor lidar com ela: encarando os desafios e fardos que a vida nos
propõe, ou fugindo do sofrimento, por meio do suicídio. A importância de se discutir a vida
humana era tamanha para Shakespeare que tal temática surgirá em outros momentos da peça.
11
Tradução da autora:
É suficiente dizer que a vingança clama por reciprocidade, e que a reciprocidade não é possível. O heroí de
Shakespeare percebe que a vingança é incoerente a não ser que possua o poder recapitulativo que a passagem da
experiência torna impossível.
35
12
Tradução da autora:
Hamlet: Ali está outro. Poderia muito bem ser o esqueleto de um advogado, não? Onde estarão seus argumentos
agora, seu incansável jargão legal, seus casos, seus truques?
13
Tradução da autora:
Todas as expectativas legais indicavam que Hamlett II, de idade e forma adequados para governar, seria o
herdeiro do reino de Hamlet I. E, mesmo assim, na forma constitucional a peça se refere à Dinamarca, e é
perfeitamente legal para o reino passar para uma relação colateral ao invés de uma linear. Em uma monarquia
eletiva, o corpo eleitoral teria tido o poder de passar por cima do herdeiro esperado.
36
Mesmo assim, mesmo não estando no primeiro plano na narrativa, não implica que
não possamos analisar politicamente esta obra e suas ideias propostas. É o que faremos na
terceira e última parte deste trabalho.
37
No livro “Arte e Política”, organizado por Miguel Chaia com a contribuição de outros
onze estudiosos, é abordada a relação complexa e relevante entre arte e política. Relação esta
que é percebida desde a Grécia antiga, onde os escritores das famosas tragédias gregas se
utilizavam da vida política das polis para inspirar suas narrativas.
“A arte, assim como a sua relação com a política, constituem enigmas a serem
decifrados.” Esta parte final do trabalho busca, assim, tratar de decifrar essa bela e complexa
relação dos escritos de Shakespeare com todo o contexto político em que o autor estava
inserido e que, sem dúvida, influenciou enormemente sua obra. Foi por meio da Tragédia que
o dramaturgo, assim como outros – Maquiavel, Hobbes, Kafka- abordou o campo da política.
Hamlet é, então, como Tragédia, parte desse conjunto de obras que abordam o tema.
Tendo em vista que:
As diversidades de conceituação da política podem ser compreendidas numa larga
faixa que vai da sua imediata identificação com o social, o coletivo, o público –
conforme a tradição clássica – até as abordagens em torno da prática do sujeito, ao
se considerarem as recentes formulações da micropolítica (CHAIA, 2007, p.19)
não pretendo tratar apenas das relações de poder entre Estados e suas populações –
conceito de política clássico - pois este claramente não é um tema central em Hamlet.
Pretendo, sim, tratar das mudanças sociais e da emancipação do humano evidenciadas por
Shakespeare, mudanças essas que viriam a revolucionar completamente a estrutura política do
Ocidente. Isto é, da micropolítica, entendendo que o humano é Sujeito e que faz a política por
meio de cada ação. Ao modificarmos o homem, modificamos toda sua estrutura de
organização: modificamos os Estados, os estadistas e seu modo de se relacionar com seu
povo. Criamos o Estado laico, substituímos as monarquias absolutistas por Repúblicas
democráticas e criamos um Sistema Internacional de Estados soberanos. Todas essas
mudanças de cunho evidentemente político só foram possíveis graças a mudanças na
mentalidade europeia no Renascimento cultural. Essas mudanças sim, estão presentes em
peso na narrativa de Hamlet.
Chaia afirma que Arte e Política são dois domínios autônomos que dialogam nos
espaços de fronteira. Cabe, neste momento, uma comparação com as Relações Internacionais.
O universo que contempla os domínios da Arte e da Política pode ser visto como o Sistema
Internacional. Cada um desses domínios autônomos seria um Estado Nacional. Assim, a Arte
representaria um Estado Soberano. Já a Política representaria outro Estado Soberano, vizinho
38
do primeiro. Esses dois Estados fazem parte do Sistema Internacional e, apesar de serem
autônomos uns dos outros, não são isolados como ilhas. Existe a área de fronteira, uma área
que é comum a ambos, que ambos compartilham. Nesta área de fronteira, a separação entre
um e outro é difusa, parece que se misturam. As populações que vivem nessas fronteiras são
similares, e, não fosse aquela linha que se convencionou que divide os dois territórios, talvez
não saberíamos distingui-los. Assim também é a Arte e a Política: separados e independentes,
mas vizinhos que dialogam, ora concordando, ora discordando. Um tem uma opinião a
respeito do outro, uma interpretação. Do mesmo modo, Estados soberanos também
interpretam acontecimentos no seu vizinho, sendo favoráveis ou contrários a eles.
Ao se aprofundar na aproximação entre arte e Política, Chaia chega a quatro tipos de
situação em que isso ocorre: a “arte crítica”, a “politização da arte”, a “esterilização da
política” e a “presença política da obra”. Também enquadra Shakespeare na primeira situação,
ao afirmar que : “ Nesta primeira situação podem ser incluídos: a dramaturgia de Shakespeare
que, mesmo defendendo a legitimidade da monarquia inglesa, desnuda as relações de poder
que afetam cruelmente a vida.”(CHAIA, 2007, p.22).
A partir da passagem acima, podemos ver claramente a obra de Hamlet. Nela, como
visto anteriormente, o status quo político da Rainha Elisabete é reafirmado. Lembrando que
tal postura escolhida pelo dramaturgo pode ser apenas visando a autorização da exibição de
sua peça, visto que a monarca era muito participativa do teatro e poderia censurar narrativas
que a descreditassem.
Ao mesmo tempo, em Hamlet temos, como nunca, o destrinchar da vida humana, o
questionamento do sentido da vida, dos valores, da felicidade. Em suma, temos um homem
que é Sujeito, é ator, é protagonista.
Este tipo de arte crítica se caracteriza na medida em que o artista age de forma
política, ao invés de sua obra possuir diretamente um conteúdo político. É assim com
Shakespeare.
De maneira geral, Arte e Política se relacionam de duas formas possíveis: a Arte à
serviço do status quo e a Arte de resistência ao status quo. A primeira forma ocorre quando o
artista, seja por crença própria, seja por qualquer tipo de pressão, usa de sua obra de arte para
enaltecer o status quo político que vive, podendo ser a figura de um monarca, por exemplo.
A outra forma possível de Arte e Política dialogarem é quando a obra de arte é usada
como forma de questionamento do status quo, seja ele uma forma de governo, um governante,
o poder de determinada classe social. Seja como for, alinhada ou emancipatória, a relação
entre Arte e Política sempre esteve e sempre estará presente nas sociedades. Veremos, no
39
capítulo seguinte, como Shakespeare em seu papel de artista estava bastante alinhado com o
pensamento político de Maquiavel.
40
Seria possível relacionar a obra de Hamlet com o pensamento político da época por
meio de diversos filósofos. Na primeira parte desse trabalho, foi usada a obra de Alain
Touraine “Crítica da modernidade” para mostrar mais a fundo o contexto político no qual
Shakespeare viveu. Foi abordado Martinho Lutero e Descartes, além de Maquiavel. É do
último, entretanto, que este capítulo tratará. O motivo é simplesmente o de ser o mais focado
na Ciência Política propriamente dita, que é o principal campo das Relações Internacionais.
Nicolau Maquiavel nasceu em 1469 em Florença, Itália. Viveu o auge do
Renascimento Cultural. É importante lembrar que, como o movimento se iniciou na Itália,
ocorreu em séculos diferentes do que o resto da Europa, em especial da Inglaterra, que, como
também já vimos anteriormente, foi das últimas a receber o movimento renascentista. Quando
por fim chegou, encontrou-se com Shakespeare, entre 1500 e 1600. Podemos assim, afirmar
que Shakespeare e Maquiavel viveram o mesmo momento cultural, mesmo que em diferentes
tempos cronológicos.
De volta à Maquiavel, podemos classifica-lo como um historiador, poeta e músico.
Suas contribuições são mais expressivas, no entanto, no campo da Ciência Política, com sua
obra-prima “O príncipe”, publicada postumamente em 1532. A importância dessa obra é
tamanha que ainda hoje é o primeiro livro lido na graduação de Relações Internacionais.
Nele, Maquiavel ensina como um Príncipe deve governar a fim de manter seu poder
político dentro e fora do território. Algumas passagens da obra tornaram-se eternas, como “é
melhor ser temido que ser amado” e “os fins justificam os meios”. O livro foi dedicado a
Lorenzo de Medici. Como sabemos, os Medici foram a família mais rica e poderosa da Itália,
e muitos estudiosos afirmam que, não fosse os Medici para patrocinar os artistas, o
Renascimento Cultural jamais teria ocorrido.
Miguel Chaia, em “Arte e Política”, dirige um capítulo para o diálogo entre
Shakespeare e Maquiavel, que usaremos a seguir para aprofundar a análise. Temos, para o
estudioso, que tanto o dramaturgo como o cientista político concordam que a Política possui
um papel central na vida humana. Shakespeare mostra isso em suas peças: das 37 que
escreveu, 22 abordam diretamente assuntos políticos.(CHAIA, 2007) Já Maquiavel nos
mostra essa valorização da política por meio da quantidade de material que escreveu sobre o
assunto, em especial a obra mencionada acima, “O Príncipe”.
41
Percebemos assim, que os autores enfatizam as ações dos indivíduos como políticas.
Seja uma ação movida pelas paixões irracionais, seja uma decisão racional, ambas possuem
uma conotação política.
Uma lição comum dos dois autores é que ninguém sai incólume de uma experiência
política – nem governante, nem povo-, na medida em que a política é uma esfera em
que se defrontam natureza e qualidades humanas contra lógica e forças
políticas.(CHAIA, 2007, p.88)
Novamente, no trecho acima, temos a centralidade da Política nas obras dos dois
autores. Entretanto, ambos não a encaram da mesma maneira. Chaia nos mostra que, para
Maquiavel, “a política é, metaforicamente, uma arte de homens em liberdade” (CHAIA
(2007, p.87). Já para Shakespeare, a política que está presente no dia a dia de nossas pequenas
ações é que garantem o sentido para a Arte.
A diferença essencial dos dois, é que, embora ambos queiram mostrar a Política,
Maquiavel prefere fazer isso partindo do núcleo detentor do poder. Já Shakespeare o faz
partindo do receptor desse poder, dos cidadãos, da vida cotidiana.
42
Mais interessante ainda é a importância em especial de Hamlet. Bloom nos mostra que
o príncipe da Dinamarca criado por Shakespeare influenciou a construção da personalidade do
homem Moderno Ocidental.
He seems not to be just a literary or dramatic character. His total effect upon the
world’s culture is incalculable. After Jesus, Hamlet is the most cited figure in
Western conciousness; no one prays to him, but no one evades him for long either.
(BLOOM, 1998, p.21)15
Lembremos, também, que nem sempre as referencias feitas a Hamlet são conscientes.
A maioria das pessoas que citam falas ou reproduzem discursos da obra jamais a leu, e nem
imaginam que aquilo que reproduzem vem do ano de 1600, tamanha a atemporalidade de seus
14
Tradução da autora:
Os personagens dominantes de Shakespeare - Falstaff, Hamlet, Rosalind, Iago, Lear, MacBeth, Cleopatra entre
outros – são exemplos extraordinários de como a criação de sentido começa, ao invés de repetir-se, mas também
de como novos modos de consciência se criam.
15
Tradução da autora:
Ele parece ser não somente um personagem literário ou dramático. Seu completo efeito sob a cultura mundial é
incalculável. Depois de Jesus, Hamlet é o personagem mais presente e citado na consciência occidental; ninguém
reza para ele, mas ninguém escapa dele por muito tempo.
44
conteúdos. Mas o fazem. O fazem porque Hamlet participou da criação do Sujeito racional, de
seu modo de pensar e de enxergar o mundo. De criticar a ordem das coisas e de se questionar,
o tempo todo, se essa ordem é a mais adequada.
Bloom aborda também uma grande dúvida que nos permeia: Por que Shakespeare é
tão importante? O que o diferencia de tantos outros autores memoráveis? A resposta é a de
que foi ele quem conseguiu criar a maior quantidade de personagens distintos. Cada um de
seus personagens possui vida própria, valores próprios, identidade própria. É essa riqueza que
faz do dramaturgo o criador do Sujeito moderno, pois exemplificou em suas obras tantos tipos
humanos até chegar na concepção comum de sujeito pensante e questionador. Foi
Shakespeare, assim, o responsável por nos fazer entender a natureza humana, natureza essa
que vem da essência, bem antes de ser afetada pela cultura.
Shakespeare é tão importante porque tem uma abordagem universalista, do mesmo
modo que a Bíblia tem. Em tempos de Secularização, Bloom afirma que Shakespeare assumiu
o papel de propagar essa nova consciência universalista, que não poderia mais ser veiculada
por meio da religião.
Yet I hardly see how one can begin to consider Shakespeare without finding some
way to account for his pervasive presence in the most unlikely contexts : here, there,
and everywhere at once. He is a system of northern lights, an aurora borealis visible
where most of us will never go. Libraries and playhouses ( and cinemas) cannot
contain him, he has become a spirit or “spell of light”, almost too vast to aprehend.
(BLOOM, 1998, p. 27) 16
16
Tradução da autora:
Mal posso entender como alguém pode abordar a obra de Shakespeare sem levar em consideração sua presença
pervasiva nos contextos mais inesperados: aqui, lá, e em todo lugar ao mesmo tempo. Ele é um sistema de luzes
guia, uma aurora boreal visível onde a maioria de nós jamais irá. Livrarias e cinemas não são suficientes para
contê-lo, ele se tornou um espírito ou um “feitiço de luz”, quase vasto demais para entender.
45
opiniões religiosas ou políticas. Muito se questiona, inclusive, quais seriam essas opiniões, e
se é que o dramaturgo algum dia chegou a ser devoto de alguma religião. Bloom nos indica
que não : mesmo seu pai tendo sido bastante católico, não vemos indícios de que Shakespeare
teria sido ligado a qualquer doutrina.
Bloom dedica um capítulo inteiro de seu longo trabalho para tratar com exclusividade
de Hamlet. Começa por afirmar que o personagem Hamlet é complexo demais para a história
de fundo da peça. Ele é denso demais para a obra que o comporta. Ele é, sem dúvida, a obra-
prima de Shakespeare. Dotado de carisma, o príncipe da Dinamarca causa um sentimento de
identificação com todo o público. Outro traço bastante marcante do personagem é sua ironia
brilhante. Ele é a união perfeita entre essas duas características, o que o torna indestrutível.
Ele não é o herói da luta física, mas sim o herói do discurso, cuja palavra chave é, sem
dúvidas, questionamento.
Hamlet é a superação do próprio Shakespeare e, como ninguém nunca conseguiu ir
além de Shakespeare, nada conseguiu ir além de Hamlet. Para Bloom, o próprio dramaturgo
reconhecia isso, e tratava a obra de modo diferente das outras. Estima-se, por exemplo, que
Shakespeare passou cerca de 20 anos escrevendo Hamlet, passando por diversas versões,
numa obsessão pelo personagem que o fazia aprimorar constantemente a narrativa, chegando
na versão final de 1601/02 que estudamos neste trabalho.
O fato é que Hamlet foi construído por Shakespeare para, justamente, transcender a
peça, ele é a peça, a grande atração. Ele foi feito para preencher o palco com sua presença, e é
por meio de suas reflexões acerca da consciência humana, da consciência de si e da
consciência da realidade que ele constrói essa força como personagem. E é essa tomada de
consciência que o faz sujeito de si, que o faz um homem moderno. Essa consciência, embora
traga dor, envelhecimento e sofrimento, o liberta de todas as amarras da passividade. Ele é
assim, um homem mais livre que os homens que vieram antes de si. É, propriamente, a
emancipação do homem como Sujeito que causa essa liberdade, como vemos no trecho
abaixo.
Consciousness itself had aged him, the catastrophic consciousness of the
spiritual disease of his world, which he has internalized, and which he does not wish
to be called upon to remedy, if only because the true cause of his changeability is his
drive toward freedom. Critics have agreed, for centuries now, that Hamlet’s unique
appeal is that no other protagonist of high tragedy still seems paradoxically so free.
(BLOOM, 1998, p.454)17
17
Tradução da autora:
A consciência em si o envelheceu, a catastrófica consciência de que o mundo é espiritualmente doente foi
internalizada por ele, e ele não deseja remediá-la, justamente porque a grande causa de sua mutabilidade é seu
direcionamento à liberdade. Os críticos concordaram, durante séculos, que o traço único de Hamlet é que
nenhum outro personagem de uma grande tragédia parece paradoxalmente tão livre.
46
18
Tradução da autora:
A consciência torna todos nós covardes.
19
Tradução da autora:
O conhecimento mata a ação; a ação requer os véus da ilusão: essa é a doutrina de Hamlet.
47
3 CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
BLOOM, Harold. Shakespeare: The invention of the human. 1ª edição. Nova Iorque:
Riverhead Books, 1998. 745 páginas.
CHAIA, Miguel. Arte e Política. 1ª edição. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2007. P 1 -41
e 73-91.
KIERNAN, Victor. Shakespeare: Poeta e Cidadão. Trad. Álvaro Hattnher. 1ª edição. São
Paulo: Editora Unesp, 1999. 360 páginas.
WELSH, Alexander. Hamlet is his modern guises. 1st ed. Princeton: Princeton University
Press, 2001.
WOODWARD, E.L. Uma história da Inglaterra. Trad. Zahar editores. 2ª edição. Rio de
Janeiro: Zahar, 1962. P.70 – 124.