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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 21: 165-185 NOV.

2003

DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL LOCAL


NA SOCIEDADE EM REDE:
O POTENCIAL DAS NOVAS TECNOLOGIAS
1
DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO

Klaus Frey

RESUMO
Face às crescentes críticas aos modelos predominantes de desenvolvimento voltados ou para soluções de
mercado ou para ações estatais centralizadoras e impositivas, este trabalho propõe uma investigação
teórica das possibilidades de fomentar um desenvolvimento local mais sustentável através do fortalecimento
de redes sociais e sua inserção progressiva nos processos político-administrativos locais. Partindo de uma
leitura crítica da concepção do capital social, o artigo evidencia a importância de estratégias de desenho
institucional capazes de mobilizar o capital social e garantir às comunidades locais acesso ao poder social
e político. Na seqüência, e considerando as condições sociais e políticas específicas do Brasil, o texto
discute as possibilidades e dilemas do uso das novas tecnologias de informação e comunicação para
revigorar processos de coordenação social no âmbito das comunidades locais e para revitalizar a
participação comunitária na gestão pública local. Por fim, discute-se o novo papel exigido pelos governos
locais visando explorar de maneira efetiva a opção comunitária para promover o desenvolvimento sustentável
na emergente sociedade em rede.
PALAVRAS-CHAVE: capital social; redes comunitárias; política local; sociedade em rede; desenvolvimento
sustentável.

I. INTRODUÇÃO nidades locais, respeitando as exigências de justiça


social. Faltam estruturas e instituições de gover-
Em função dos programas de ajuste estrutural
nança local apropriadas para estimular a ação co-
implementados em boa parte dos países nas últimas
letiva e articular os diferentes atores locais em torno
décadas, envolvendo políticas de austeridade,
de objetivos comuns de desenvolvimento local.
desregulação, privatização e uma retração geral do
Estado da esfera econômica, o setor público está Os recentes processos de transformação eco-
sofrendo grandes transformações, sobretudo um nômica e social parecem exigir novos modelos
aumento da dependência das decisões de agentes inovadores de gerenciamento, assim como novos
econômicos privados. Nas cidades, particular- instrumentos, procedimentos e formas de ação
mente nos países em desenvolvimento, observa- capazes de criar condições favoráveis que auxiliem
se uma crescente perda de governabilidade. Faltam os administradores públicos a lidar com os novos
condições e ferramentas adequadas de gestão para desafios da sociedade globalizada.
implementar iniciativas efetivas de desenvol-
Entretanto, a crescente complexidade dos pro-
vimento local, capazes de promover um desen-
cessos locais de tomada de decisão e uma agenda
volvimento sustentável no âmbito das comu-
urbana cada vez mais ampliada – tornando mais
relevantes temas como o desenvolvimento econô-
1 Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada no mico local, a geração de emprego, a segurança
Grupo de Trabalho “Sociedade da Informação: redes sociais, pública e a poluição e deterioração ambiental –
fundamentos da sociabilidade e transformações dos revelaram a incapacidade das instituições políticas
processos políticos”, no XXVI Encontro Anual da e administrativas locais em lidar com esses novos
Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em
desafios para as políticas públicas locais.
Ciências Sociais (ANPOCS), realizado em Caxambu (MG),
de 22 a 26 de outubro de 2002. Perante a percepção de uma aparente inca-

Recebido em 7 de março de 2003. Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 21, p. 165-185, nov. 2003
Aprovado em 17 de julho de 2003.
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pacidade sistêmica do setor público em enfrentar o desenvolvimento comunitário?


os efeitos negativos da globalização, dos mercados
Este trabalho propõe uma investigação teórica
livres e de sistemas enfraquecidos de segurança
das concepções de capital social, desenho
social, a “community option” (CLAVEL, PITT &
institucional e rede social no que tange à sua
YIN, 1997) apresenta-se como uma alternativa
relevância para a compreensão do papel de redes
promissora, particularmente em nível local, às
comunitárias em processos políticos locais e para
estratégias tradicionais baseadas ou na ação cen-
as potencialidades das TICs e de comunidades
tralizada do Estado ou nas soluções de mercado.
virtuais de impulsionar o desenvolvimento de tais
Neste trabalho estamos investigando a perspectiva
redes. As concepções teóricas são questionadas a
das comunidades como possíveis agentes de trans-
partir da perspectiva das condições sociais e
formação no contexto da atual sociedade da infor-
políticas brasileiras. Ênfase especial é dada às
mação ou “sociedade em rede”, levando em consi-
possibilidades de usar a internet como um meio
deração as condições de governos locais em países
para o fortalecimento das comunidades locais e
em desenvolvimento e, particularmente, no Brasil.
das práticas democráticas. Nas considerações
Um ponto de partida importante para a nossa finais, serão discutidos os principais desafios e
reflexão é a concepção da sociedade em rede de dilemas para explorar de maneira efetiva a opção
Manuel Castells, segundo a qual a sociedade comunitária para promover o desenvolvimento
moderna é caracterizada pela predominância da sustentável na emergente sociedade em rede.
forma organizacional da rede em todos os campos
II. CAPITAL SOCIAL
da vida social (CASTELLS, 1999; 2000; 2001).
Conforme a interpretação de Castells, os grupos A concepção de capital social recebeu grande
sociais mais poderosos adaptam-se de maneira destaque a partir do debate sobre desenvolvimento
cada vez melhor às novas condições da sociedade local desencadeado pela publicação do livro Making
da informação, utilizando as novas potencialidades Democracy Work, de Robert Putnam, em 19932.
abertas pela globalização e pelo acesso às novas Nesse estudo sobre os fundamentos da democracia
tecnologias da informação e comunicação (TICs) italiana, Putnam identificou uma grande densidade
em prol da consolidação de suas identidades de associações e a existência de relações sociais
grupais e do fortalecimento de sua capacidade de de reciprocidade como as principais premissas de
agir em um mundo cada vez mais interdependente. uma democracia vital e de um engajamento cívico
Essa situação, no entanto, contrasta fortemente efetivo. Estes fatores não apenas garantem o
com os processos de fragmentação e segmentação caráter democrático da sociedade civil, mas
que se observa entre os setores sociais mais também determinam o desempenho dos governos
fragilizados da sociedade, particularmente no nível locais e de suas instituições. Em analogia aos
comunitário dos países em desenvolvimento. No conceitos de capital financeiro e capital humano,
contexto brasileiro, em que os novos processos e para Putnam o “‘capital social’ refere-se a ele-
dinâmicas da sociedade em rede – mais nítidos e mentos de organização social como as redes, nor-
vigorosos nos países econômica e tecnologica- mas e confiança social que facilitam a coordenação
mente mais desenvolvidos – convivem com e a cooperação em benefício recíproco”
padrões tradicionais da vida social e econômica e (PUTNAM, 1995, p. 67). No intenso debate que
em que prevalecem fortes tendências de exclusão se seguiu o capital social foi considerado de
social e digital, o surgimento da sociedade em rede fundamental importância não apenas para a
parece reforçar ainda mais a exclusão social, polí- consolidação da democracia (PUTNAM, 1995;
tica e econômica, afrouxando os laços sociais no 2000a; 2000b; ver também: WILSON, 2001), mas
nível comunitário e colocando em risco a própria também para uma efetiva governança local e
democracia. urbana (MALONEY, SMITH & STOKER, 2000;
LOWNDES & WILSON, 2001), para sustentar
Colocam-se, portanto, as seguintes questões:
redes de inovação tecnológica e de políticas
como a opção comunitária pode ser explorada em
públicas (WEYER, 2000), para o desenvolvimento
um contexto de exclusão social e marginalização?
comunitário e social (ETZIONI, 2001; BRINT,
Quais os ingredientes necessários para tornar as
comunidades locais mais vitais e aptas para agir
de maneira coletiva em prol do bem comum? 2 A versão em português foi publicada sob o título:
Como condições externas promovem ou impedem Comunidade e democracia (PUTNAM, 2000a).

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2001), para a implementação de projetos de de- De acordo com Putnam, essas organizações
mocracia eletrônica e de comunidades virtuais básicas da vida social são essenciais para o esta-
(BLANCHARD & HORAN, 1998; COLEMAN & belecimento de normas e padrões comuns, para a
GOTZE, 2002) e, finalmente, para a proteção do promoção de confiança social e interpessoal e, no
meio ambiente e o uso sustentável dos recursos final, para o crescimento do engajamento cívico.
naturais (PRETTY & WARD, 2001). Isto é, sempre A suposição básica de Putnam é que membros de
que o individualismo e o comportamento de escolha associações tendem a ser política e socialmente
racional, que predomina no sistema de mercado, mais ativos, dando apoio às normas democráticas.
chegarem a exercer seus “efeitos cancerígenos Isto significa que a densidade de todos os tipos de
sobre a vida comunitária” (TAM, 1998, p. 3), associações em uma dada sociedade representa o
minando a possibilidade de alcançar metas cole- seu estoque de confiança e reciprocidade, isto é,
tivas, ou, ainda, quando organizações burocráticas seu estoque de capital social. Como conseqüência,
são identificadas como impedimentos de inovação, Putnam assume que o capital social pode ser medi-
advoga-se abordagens de capital social em função do por meio do levantamento quantitativo do envol-
de seu possível potencial para a superação dos vimento e da participação em associações (GRIX,
efeitos negativos do liberalismo econômico. 2001, p. 193).
Em seu estudo sobre a Itália (PUTNAM, As objeções contra a concepção de Putnam
2000a) e em seu mais recente livro sobre a socie- são variadas3. A seguir gostaria de levantar alguns
dade americana, Bowling Alone: The Collapse and aspectos dessas críticas que são particularmente
Revival of American Community (PUTNAM, relevantes do ponto de vista de países em desenvol-
2000b), Putnam coletou evidências empíricas vimento, caracterizados por grandes fricções e
significativas que parecem confirmar a suposta desigualdades sociais e condições culturais pecu-
correlação entre engajamento cívico e o desem- liares.
penho das instituições governamentais e sociais.
Adotando uma abordagem basicamente quan-
Para Putnam capital social é sinônimo da existência
titativa, Putnam enfrenta o dilema de como tratar
de confiança social, normas de reciprocidade,
os diferentes tipos de associações, cujas particu-
redes de engajamento cívico e, finalmente, de uma
laridades são ignoradas nas pesquisas existentes.
democracia saudável e vital. Segundo Reese-
Assim, ser membro de um clube de boliche ou de
Schäfer (2001), por meio de sua fundamentação
uma escola de samba é certamente algo muito
empírico-científica da tese da erosão do engaja-
diferente do que ser membro de um partido político
mento cívico público, Putnam está contribuindo
ou de uma associação de moradores, sobretudo
para as preocupações concernentes à atomização
em termos de exercício de cidadania. Apesar de
progressiva da sociedade contemporânea, que são
todos os tipos de associações, em princípio, contri-
particularmente fortes na vertente teórica do
buírem para aumentar as conexões sociais, existe
comunitarismo. Sobretudo em seu recente estudo
uma diferença muito significativa entre associações
sobre o declínio das comunidades americanas,
cujos objetivos limitam-se a praticar atividades de
baseado em um material estatístico expressivo,
lazer ou ritos religiosos, de um lado, e associações
Putnam detectou um crescente desinteresse dos
engajadas na solução de questões públicas e
cidadãos americanos em questões relacionadas às
problemas da coletividade, de outro. Ainda mais
comunidades locais. O diagnóstico constata um
curioso certamente seria a idéia de que orga-
declínio generalizado do engajamento político,
nizações “sociais” como, por exemplo, o Comando
taxas decrescentes de participação em eleições,
Vermelho nas favelas do Rio de Janeiro, o Primeiro
em encontros públicos sobre questões referentes
Comando da Capital de São Paulo, ou até a rede
a cidades ou escolas, a redução de todo tipo de
terrorista Al Caida – que certamente contribuem
engajamento direto em questões políticas e
para o aumento do grau de conectividade nas suas
governamentais e a diminuição da disposição de
respectivas populações, e, com isso, seguindo a
associar-se a partidos políticos e outras
interpretação de Putnam, aumentam o capital social
organizações sociais e políticas locais. Esse
declínio do engajamento cívico estende-se ao
envolvimento em grupos religiosos, sindicatos de
trabalho, associações de pais e professores e outros 3 Ver por exemplo o artigo de Grix (2001) sobre a concepção
tipos de organizações cívicas e fraternais. de capital social.

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–, representam uma contribuição para o forta- social dada, mas raramente dispostas a contribuir
lecimento da cultura cívica4. para a transformação social. Particularmente nos
países em desenvolvimento, as associações civis
Outro ponto crítico refere-se à suposição
tendem a reforçar as desigualdades existentes, as
implícita na concepção de Putnam de que ser
estruturas paternalistas e hierárquicas e privilégios
membro formal de uma associação significa, pelo
sociais e até a conviver com a corrupção.
menos até um certo nível, ser membro efetivo e
atuante. Nas sociedades ocidentais é um fato Com sua ênfase em redes baseadas em asso-
bastante conhecido a participação, de forma ciações cívicas tradicionais, o estudo empírico de
passiva, em igrejas e associações religiosas, Putnam dá apoio à versão mais conservadora do
freqüentemente resultado de uma pressão social e comunitarismo, que, ainda no início dos anos 1980,
moral existente que torna o não-pertencimento às advogou uma moralidade mais homogênea,
igrejas dominantes um empecilho à ascensão reclamando validade para toda a sociedade (VAN
social. Em contrapartida, observa-se em países DEN BRINK, 1995, p. 16). As organizações e
em desenvolvimento como o Brasil exatamente o associações que Putnam considera mais adequa-
contrário: pessoas, engajadas em atividades de das para a promoção do espírito comunitário são
grupos comunitários ou religiosos, mas sem exatamente aquelas que tendem a ser mais
pertencerem à categoria de membros formais de excludentes, a defender e preservar a ordem e os
tais organizações. Desse ângulo, esse tipo de privilégios existentes e que muitas vezes trabalham
análise quantitativa, que já deve ser considerado em prol da privatização dos espaços e questões
crítico no contexto das sociedades industriais públicos. Observa-se, sobretudo nos Estados
consolidadas, torna-se ainda mais questionável em Unidos, uma aliança estratégica entre comuni-
países em desenvolvimento, caracterizados pela tarismo e neoliberalismo, que ganhou influência
pouca tradição em associacionismo formal e, com expressiva tanto no campo da teoria como na vida
isso, a abordagem de Putnam parece pouco política e social e que defende o fortalecimento
apropriada para esclarecer as condições do das comunidades, acima de tudo, com o intuito
engajamento cívico em tais países. de mitigar os efeitos sociais nocivos da
liberalização econômica e da desestatização. Desse
Levando em consideração, além disso, que o
ângulo, a aposta nas comunidades locais, nas
ativismo associativo é mais característico das
associações sociais e no terceiro setor pode tam-
classes médias com nível educacional mais
bém ser vista como meio de compensação
elevado, é preciso estar ciente de que, sobretudo
indispensável para garantir a continuidade do
no contexto de desorganização social e de grandes
processo de transformação econômico-social
desigualdades, a busca pelo capital social nas
iniciado como o projeto neoliberal.
organizações civis tradicionais pode mostrar-se um
empreendimento pouco útil. Freqüentemente, as Enquanto, em princípio, todo tipo de ativismo
organizações tradicionais da classe média são por parte de associações pode mostrar-se
conservadoras, capazes de sustentar uma ordem importante para praticar e experimentar compor-
tamentos sociais e atitudes de solidariedade,
observa-se que muitas vezes essas oportunidades
4 Apesar de Putnam (2000b) reconhecer essa ambigüidade são apenas proporcionadas aos correligionários que
inerente ao capital social, dedicando inclusive um capítulo compartilham os mesmos interesses e visões de
inteiro a esse suposto “lado escuro do capital social”, ele mundo. Esses tipos de associações não necessaria-
rejeita essa percepção mais cética de cunho liberal, ao mente contribuem para a tolerância e uma melhor
remeter aos surveys realizados ao longo das últimas décadas
compreensão de outros e da diferença, o que se
que, segundo ele, todos confirmariam sua tese do impacto
gerador de solidariedade do capital social. Sua avaliação faz tão necessário em nosso mundo cada vez mais
não deixa sombra de dúvidas, tanto no que tange à questão complexo e diversificado, sobretudo em países
da liberdade e tolerância – “eu não encontrei nem um único em desenvolvimento, ainda mais do que nas
estudo empírico que confirma o suposto vínculo entre sociedades ocidentais com democracias
envolvimento comunitário e intolerância” (idem, p. 355), consolidadas e economias mais desenvolvidas,
concluindo que “capital social e tolerância têm uma relação
caracterizadas por um certo grau de homogenei-
simbiótica” –, quanto no que diz respeito à questão da
igualdade: “Comunidade e igualdade reforçam-se mutuamen- dade e coesão social, a questão de como lidar com
te e não são mutuamente incompatíveis” (idem, p. 358). as diferenças torna-se crucial.

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Nesses países os processos políticos costu- movimentos sociais e das organizações do terceiro
mam comportar mais conflitos em função das setor uma deterioração qualitativa, alegando que
profundas fricções existentes entre os grupos e muitas dessas novas relações sociais não passariam
classes sociais. No contexto da estrutura hierár- de afiliações de “talão de cheque” (PUTNAM,
quica de dominação que reina nesses países colo- 2000b, p. 158). Segundo Putnam, “tais organi-
cam-se as seguintes questões: existem possi- zações não providenciam nem conexão entre
bilidades de contribuir para a resolução de conflitos membros, nem engajamento direto em uma forma
sociais por meio do fortalecimento das comuni- cívica do dar-e-receber, e certamente elas não
dades locais e sem, necessariamente, seguir o representam ‘democracia participativa’. Cidadania
modelo habitual caracterizado pela cooptação dos por representação é um oximoro” (idem, p. 160).
pobres pela elite tradicional? Podem as comuni-
As principais objeções de Putnam contra os
dades locais tornar-se atores relevantes em um
movimentos sociais e as organizações do terceiro
processo de contestação e transformação social,
setor, enquanto fontes primordiais do capital
estimulando um processo de emancipação indi-
social, baseiam-se na suposição segundo a qual
vidual e coletivo?
os laços e obrigações que une os membros desses
Perante esse desafio é evidente que não movimentos seriam mais fracos do que em
podemos limitar nossas investigações à densidade organizações tradicionais. De acordo com Putnam,
das associações, mas que precisamos levar em é a vida social, o contato face-a-face que mantém
consideração os tipos de associações e grupos unidas as sociedades e não o ativismo político em
sociais, a profundidade do envolvimento dos movimentos sociais, a participação em associações
cidadãos em tais grupos, assim como a qualidade do terceiro setor, a colaboração em organizações
da relação estabelecida entre os cidadãos e grupos sem fins lucrativos ou o envolvimento em grupos
sociais, de um lado, e os governos e administrações de ajuda. Segundo Putnam, esses tipos de grupos
públicas, de outro (MALONEY, SMITH & falham no concernente à sua mais importante
STOKER, 2000; LOWNDES & WILSON, 2001). tarefa: a promoção de confiança social.
Com isso, surgem novas perguntas: em que medida
Do ponto de vista brasileiro, podemos levantar
as organizações cidadãs são capazes de
pelo menos duas objeções: Em primeiro lugar,
desempenhar um papel significativo em processos
movimentos sociais como o Movimento dos
políticos de tomada de decisão, sobretudo na luta
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) ou
contra as elites dominantes e em processos
organizações não-governamentais como a Pastoral
visando ao fortalecimento de comunidades locais?
da Criança certamente não são, como Putnam
Existem focos ou formas de organizações cidadãs
alega, desconectados da sua base social. Ao
capazes de superar as tendências de fragmentação
contrário, e apesar de certas contradições que tais
e atomização que caracterizam as comunidades
experiências sempre acarretam, são novas formas
locais no nível de vizinhança? E como tais
emergentes de vida social e de engajamento
organizações podem efetivamente influenciar
político, capazes não apenas de renovar os laços
processos políticos de tomada de decisão?
sociais das comunidades, mas também de
No Brasil, as organizações cívicas tradicionais promover novas formas de participação pública
não são vistas – pelo menos não por parte das visando à transformação das condições sociais e
Ciências Sociais – como atores muito promissores políticas. De fato, tais organizações atuam
nesses processos, ao passo que as expectativas localmente, mas, ao mesmo tempo, procuram
costumam ser mais direcionadas para os reconhecimento em âmbito nacional e até
movimentos sociais, os quais desempenharam um internacional. Adotando a categorização de Manuel
papel fundamental no processo de democratização Castells, podemos enquadrá-los até nos “mais
(CARDOSO, 1994). influentes movimentos sociais [que], simulta-
neamente, são enraizados no seu contexto local e
Putnam também considera os movimentos
visam a alcançar impacto global. Eles necessitam
sociais como uma das tendências contrárias ao
da legitimidade e do apoio provido pela relação de
declínio geral do capital social nos Estados Unidos.
confiança estabelecida com grupos locais; con-
Entretanto, em comparação com as associações
tudo, não podem permanecer locais, ou perdem
cívicas tradicionais com raízes fortes nas
sua capacidade de agir sobre as fontes reais de
comunidades locais, ele vê no fortalecimento dos

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poder em nosso mundo” (CASTELLS, 2001, p. a possibilidade de mobilização do capital social em


143). benefício de um engajamento político e cívico
efetivo.
Em segundo lugar, o declínio das organizações
civis convencionais não precisa necessariamente III. DESENHO INSTITUCIONAL
ser interpretado como um mero declínio do
Se, como argumenta Putnam, tanto
engajamento cívico, mas pode representar um novo
comunidades cívicas como não-cívicas costumam
entendimento de engajamento cívico e o
reforçar-se cada vez mais, fortalecendo suas
reconhecimento da necessidade de reinventar as
próprias características, e se esses dois tipos dife-
formas de ativismo e envolvimento cívico em uma
rentes de equilíbrio têm raízes históricas e cultu-
sociedade crescentemente complexa, pluralista e
rais, as autoridades públicas não têm muito a fazer
– certamente também – individualista. Em lugar
para aumentar o estoque de capital social. Ao
de apostar exclusivamente nos grupos de interesse,
considerar o Estado um fator meramente exógeno,
que costumam defender apenas interesses grupais
Putnam “negligencia o papel desempenhado por
e tendem a promover condições de coesão e
estruturas políticas e instituições em moldar o
exclusão, simultaneamente, talvez seja pertinente
contexto da atividade associativa e, logo, da criação
pensar nas potencialidades de novas formas de
de capital social” (MALONEY, SMITH & STO-
organização e ação política capazes de promover
KER, 2000, p. 803). Uma outra objeção refere-se
tolerância, diálogo, compreensão mútua, pontes
a uma suposta correlação entre o número de asso-
entre os diferentes grupos sociais, mas também,
ciações e o acesso a informação e a redes sociais,
se for necessário, pressão, contestação e luta
de um lado, e o desempenho governamental, de
contra as injustiças existentes na sociedade
outro.
contemporânea.
Se, como salientam Maloney, Smith e Stoker,
Alguns observadores do processo de
“o capital social depende do contexto específico”
democratização no Brasil chegaram a uma
(idem, p. 804), temos de levar em conta os arranjos
avaliação positiva e otimista da atuação das
institucionais que afetam as relações entre o
organizações da sociedade civil no processo social
governo e as organizações da sociedade civil. Sem
e político. Segunda Vera Telles, a sociedade civil
canais de comunicação que proporcionem às orga-
assumiu progressivamente responsabilidade no que
nizações comunitárias condições favoráveis para
diz respeito à “constituição de espaços públicos
engajar-se nas questões públicas, o capital social
nos quais as diferenças podem se expressar e se
dificilmente pode ser mobilizado em prol da pro-
representar em uma negociação possível”
moção do bem comum. A percepção de Putnam é
(TELLES, 1994, p. 92) e “nos quais os conflitos
bastante fatalista na medida em que as raízes his-
ganham visibilidade e as diferenças se representam
tóricas e culturais são sobrevalorizadas. Entretanto,
nas razões que constroem os critérios de validade
as possibilidades governamentais para promover
e legitimidade dos interesses e aspirações
o capital social por meio de “políticas consti-
defendidos como direitos” (idem, p. 101). Isso
tuidoras” (“constituent policies”) (LOWI, 1972),
significa que, de uma perspectiva emancipadora,
isto é, políticas que visam a modificar as regras
a abordagem de Putnam sobre o capital social
do jogo político (BECK, 1993, p. 17), são subesti-
mostra-se equivocada na medida em que a ênfase
madas.
é dada na mera densidade das organizações cívicas
convencionais, negligenciando os avanços nas Nesse sentido, a análise de Putnam é “dema-
práticas e padrões de atuação política por parte siadamente centrada na sociedade, subvalorizando
dos novos grupos sociais. Desse ponto de vista, agências estatais e outros fatores políticos asso-
merecem maior atenção os movimentos e ciados” (LOWNDES & WILSON, 2001, p. 629).
organizações politicamente relevantes e a sua É imprescindível avaliar a relevância do desenho
capacidade de promover redes sociais e cívicas, institucional para a relação entre capital social e
bem como os fatores institucionais e a qualidade democracia e o desempenho governamental em
das relações estabelecidas entre os grupos inter- geral. As diferenças relativas à democracia e ao
mediários em uma sociedade e entre associações desempenho governamental certamente não estão
sociais e poder público (GRIX, 2001, p. 197). As relacionadas apenas às particularidades sociais e
qualidades dessas relações parecem cruciais para culturais de cada região, como alega Putnam em

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seu estudo sobre a Itália. Pelo menos, o que os destinação de recursos. Sendo as instituições inter-
recentes estudos sobre experiências brasileiras em mediadas por valores, para strong institucionalists
democracia local mostram é que inovações como Schelsky (1970), as instituições representam
concernentes ao desenho institucional fazem de a índole espiritual da sociedade como um todo.
fato a diferença, não apenas para a ampliação da Schelsky considera as instituições como positivas,
participação política mas também para o forta- por princípio, por garantirem a estabilidade de siste-
lecimento da sociedade civil local e, conse- mas. Conforme essa concepção, o desenvolvimen-
qüentemente, a criação de capital social5. to institucional assume o caráter de um modelo
geral de progresso (WASCHKUHN, 1994).
As críticas contra a concepção do capital social
de Putnam originam-se no institucionalismo que, Enquanto a abordagem de Putnam parece de-
por sua vez, costuma responsabilizar a fragilidade masiadamente centrada na sociedade e demasiada-
das instituições como um dos fatores principais mente fatalista no que diz respeito às possibilidades
para as dificuldades de países em desenvolvimento de engendrar mudanças por meio da ação gover-
em consolidar os seus jovens regimes demo- namental, a abordagem institucional, ao menos na
cráticos. Entre os cientistas políticos e adminis- sua versão mais radical, parece demasiadamente
tradores é bastante comum a convicção de que a idealista na avaliação dos supostos benefícios do
única maneira de “pôr ordem no caos” que supos- desenvolvimento institucional. As instituições não
tamente reina nos países em desenvolvimento seria desempenham apenas o papel de satisfazer ne-
com o auxílio de medidas de “desenho cessidades humanas e de estruturar interações so-
institucional” (PRITTWITZ, 1994, p. 239). Neste ciais. Ao mesmo tempo, as instituições “determi-
sentido, políticas constitutivas ou estruturantes nam posições de poder, eliminam possibilidades
visam não apenas à “manutenção”, mas também de ação, abrem chances sociais de liberdade e
ao “desenho” e à “renovação” das instituições erguem barreiras para a liberdade individual” (idem,
sócio-políticas (KOOIMAN, 2000, p. 158). Tal p. 188-189). A institucionalização implica elevados
compreensão dinâmica de políticas estruturantes custos em termos de burocratização e de exclusão
está na base de abordagens de construção e de muitas vozes (O’DONNELL, 1991, p. 30).
desenvolvimento institucional. No passado, essas Instituições políticas são padrões regularizados de
estratégias foram desenvolvidas e enfaticamente interação, conhecidos, praticados e em geral
advogadas pelas agências internacio-nais de reconhecidos e aceitos pelos atores sociais, ainda
desenvolvimento, que supunham que tais que não necessariamente por eles aprovados.
estratégias contribuiriam para um aumento de Logo, são produtos de processos políticos de
governabilidade e de eficiência da “administração negociação antecedentes, refletem as relações de
do desenvolvimento” nos países do “Terceiro poder existentes e podem ter efeitos decisivos para
Mundo”6. o processo político e seus resultados materiais
(PRITTWITZ, 1994, p. 239).
As teorias institucionais partem do pressuposto
de uma função relacional, reguladora e cultural Além disso, como supomos, arranjos institu-
desempenhada por instituições. Instituições estru- cionais influenciam também as condições para a
turam as relações e redes sociais, regulam a distri- mobilização do capital social. Seria ingênuo ignorar
buição de gratificações e de posições sociais me- os efeitos das condições legais e constitucionais,
diante a definição de metas e a determinação e das estruturas e procedimentos governamentais e
das tradições e práticas da vida política para
“moldar” a sociedade civil (LOWNDES & WIL-
5 Em relação à importância de desenhos discursivos na SON, 2001, p. 631). Em contraposição ao institu-
política brasileira local, ver Frey (1996; 2002a); em relação cionalismo tradicional, o neo-institucionalismo
ao caso do orçamento participativo e suas conseqüências “não explica tudo por meio das instituições. Quanto
para o desenvolvimento da sociedade civil: Abers (1998a;
1998b) e Santos (1998).
mais consolidado o processo político e quanto mais
fragmentadas as instituições, tanto mais o fator
6 Ver Goldsmith (1992) que analisa as abordagens de insti-
institucional tem força explanatória” (BEYME,
tution building, desenvolvimento institucional, sustentabili-
1992, p. 76). Especialmente no mundo em desen-
dade institucional e teoria neo-institucionalista em relação
a suas contribuições para políticas de desenvolvimento nos volvimento, onde os processos políticos são nor-
países do Terceiro Mundo. malmente mais voláteis e as instituições sujeitas a

171
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL LOCAL NA SOCIEDADE EM REDE

mudanças permanentes, as instituições parecem o desenvolvimento do capital social, “pode ser


muito menos decisivas para os processos políticos possível romper com círculos viciosos ‘não cívi-
e seus resultados materiais. cos’ e promover ativamente a ‘virtuosa’ com-
binação de engajamento cívico e boa governança”
O neo-institucionalismo mantém a rejeição do
(LOWNDES & WILSON, 2001, p. 631). Apesar
institucionalismo referente às abordagens de esco-
de existirem boas razões para assumir que as pos-
lha racional e afirma que é imprescindível levar
sibilidades de influenciar o capital social mediante
em conta, para além dos interesses pessoais, as
o desenho institucional podem variar significati-
instituições e identidades que influenciam o com-
vamente de acordo com o contexto cultural, a des-
portamento e as atitudes dos atores políticos nos
consideração do fator institucional – instituições
processos de tomada de decisão. Na prática, os
neste caso compreendidas na sua versão mais am-
atores políticos estão buscando estratégias apro-
pla – parece bastante problemática, até mesmo
priadas na base de regras, obrigações, direitos e
em regimes consolidados com estruturas formais
papéis institucionalizados. Portanto, o pensamento
estáveis.
neo-institucionalista defende uma compreensão
mais ampla do conceito de instituição: “A idéia cen- A opção de influenciar o desenvolvimento do
tral é que a vida é organizada por conjuntos de capital social por meio de intervenções governa-
práticas e significados compartilhados que são con- mentais envolve, certamente, também riscos no
siderados dados por um longo tempo. Ações inten- que tange à autonomia da sociedade civil, especial-
cionais e calculadas de indivíduos e coletividades mente em uma sociedade como a brasileira, carac-
são inseridas nessas práticas e significados com- terizada por uma tradição de atitudes e estruturas
partilhados, os quais podem ser chamados de iden- governamentais clientelistas e paternalistas. A mera
tidades e instituições” (MARCH & OLSEN, 1994, existência de organizações cívicas ainda não diz
p. 250). nada a respeito do grau de autonomia dessas organi-
zações ou da sua dependência de instituições go-
É exatamente na valorização das práticas e
vernamentais.
significados compartilhados que convergem a con-
cepção do desenho institucional e a abordagem de O exemplo brasileiro apresenta uma situação
Putnam sobre o capital social. No entanto, enquan- bastante difusa e variada de inter-relações estabele-
to para Putnam os lugares preferenciais para o cidas entre as organizações cívicas e as instituições
desenvolvimento de tais práticas e significados governamentais, como mostram os seguintes três
compartilhados são as organizações cívicas, a vizi- exemplos. Em primeiro lugar, podemos mencionar
nhança e a família – nos termos habermasianos uma situação bastante comum nas cidades brasi-
podemos denominá-los de esfera do mundo de leiras: organizações tradicionais de moradores que
vida (Lebenswelt) –, os neo-institutionalistas cha- dependem de práticas clientelistas e buscam fazer
mam a nossa atenção para as possibilidades de valer os seus interesses muitas vezes às custas de
influenciar significados e práticas mediante a ação outras organizações similares. Tais associações,
governamental e o desenho institucional. Segundo freqüentemente, mostram-se incapazes de engaja-
March e Simon (1994; 1995) e sua concepção da rem-se em atividades que exigem a colaboração
“governança democrática”, a formação e o delinea- com outras organizações semelhantes e, por outro
mento da vida política e social torna-se uma das lado, mostram-se bastante efetivas em obter recur-
tarefas primordiais de um governo democrático: sos públicos por intermédio de vereadores. De
“A governança democrática é mais do que o geren- fato, para os vereadores a atuação enquanto media-
ciamento da formação de coalizões políticas e de dores entre a administração pública e as organi-
troca política. Envolve também influenciar os pro- zações comunitárias locais é uma das fontes deci-
cessos pelos quais as restrições sobre a troca polí- sivas de legitimidade política.
tica são estabelecidas. Os processos pelos quais
Podemos encontrar uma outra situação pecu-
atores, identidades, significados, recursos, direitos
liar nas favelas do Rio de Janeiro ou nas favelas
e regras são criados e trocados não são exógenos
de outras grandes cidades brasileiras, onde a vida
à governança mas parte central dela” (MARCH &
social é dominada pelo crime organizado e onde a
OLSEN, 1994, p. 264).
regulação por meio da ação governamental é defi-
Apenas no caso de admitirmos a possibilidade ciente ou inexistente. Nesses lugares encontramos
de governos estarem em condições de influenciar formas consolidadas de interação social baseadas

172
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 21: 165-185 NOV. 2003

na condição de pobreza e na disseminação do zados em torno de redes: “As redes constituem a


medo, mas que ao mesmo tempo não deixam de nova morfologia social de nossas sociedades, e a
oferecer estrutura e um certo grau de estabilidade difusão da lógica de redes modifica de maneira
à convivência social. Nesse contexto de grandes substancial a operação e os resultados dos proces-
zonas de moradia popular abandonadas pelo sos produtivos e de experiência, poder e cultura”
Estado, a aceitação da ordem estabelecida pelo (CASTELLS, 1999, p. 497). O novo paradigma
crime organizado representa, na verdade, a única das tecnologias da informação é considerado por
fonte – apesar de precária – de segurança social e Manuell Castells como a base material para a
a única possibilidade de sobrevivência em uma expansão penetrante de redes em toda a estrutura
ambiente progressivamente ameaçador e funesto. social da sociedade moderna. Apesar de as redes
poderem ser consideradas formas antigas de con-
Por fim, existem no Brasil também experiências
vivência humana, “elas tomaram uma nova forma,
democráticas interessantes em que governos
nos tempos atuais, ao transformarem-se em redes
locais, comprometidos com a democratização do
informacionais, revigoradas pela internet” (CAS-
sistema político, procuraram reinventar as relações
TELLS, 2001, p. 1).
políticas por meio de inovações políticas institu-
cionais, como, por exemplo, por meio do orça- Todavia, as tendências gerais do ciberespaço
mento participativo. Tais inovações evidenciam um tendem a reforçar os já bem conhecidos processos
potencial elevado de solidariedade e aprendizagem de exclusão e de aumento de concentração de
institucional em casos de governos dispostos a poder, tanto no âmbito econômico quanto político
estabelecer processos públicos de participação e (CASTELLS, 1996; SASSEN, 1997). Em primeiro
deliberação política (FREY, 2002a). lugar, as TICs provocam tendências de segmenta-
ção e exclusão dentro do próprio ciberespaço. As
Essa variedade de situações demonstra que
novas redes não apenas distribuem poder, mas elas
tanto o fator institucional, a variável “capital social”
tornam possível a disseminação de novas e
como também o contexto cultural específico são
diferentes formas de poder. Uma das importantes
todos elementos cruciais que devem ser levados
manifestações de tais cibersegmentações é a
em consideração para entender as potencialidades
proliferação das intranets privadas que são
de mudança inerentes no nível comunitário. Por-
fortalezas excessivamente vigiadas e isoladas da
tanto, é fundamental direcionar a nossa atenção
internet aberta (SASSEN, 1997, p. 228). Mas essas
para a interface entre as instituições governa-
tendências de exclusão e concentração de poder
mentais e o capital social. Do mesmo modo como
não são exclusividade do ciberespaço, mas tendem
o capital financeiro pode ser desperdiçado e sim-
a determinar a vida social, política, cultural e
plesmente mantido fora de circulação, do mesmo
econômica no espaço real.
modo como propriedades de terra podem ser
improdutivas, também o capital social pode estar Na sua teoria do “espaço de fluxos”, Manuel
inativo, ou até prejudicial e contraproducente se Castells salienta não apenas as dimensões econô-
não for conduzido de maneira a fomentar o bem mica e política, mas também as dimensões cultu-
comum. Mas como será possível estimular o rais desses processos de segmentação, baseados
capital social de modo que o bem comum possa em estruturas sócio-técnicas. Sua interpretação
ser fortalecido? da dinâmica social da sociedade em rede revela
interessantes percepções sobre transformações so-
Na seção seguinte, procuraremos evidenciar o
ciais induzidas pelas TICs. Como resultado, pode-
potencial da abordagem de rede para proporcionar
se chegar a um melhor entendimento das perspec-
um referencial para um melhor entendimento dos
tivas de redes comunitárias e as possibilidades do
processos de desenvolvimento do capital social e
uso das TICs em prol do desenvolvimento susten-
das possibilidades de influenciar de modo positivo
tável de comunidades locais.
o capital social em prol do desenvolvimento comu-
nitário e do fortalecimento do bem comum. De acordo com Castells, a articulação espacial
das funções dominantes na sociedade em rede
IV. REDES SOCIAIS
acontece dentro de redes de interação viabilizada
Conforme já mencionamos na “Introdução”, pela utilização de equipamentos de telecomu-
os processos dominantes na sociedade moderna, nicação. A infra-estrutura pode ser vista como
segundo Castells, estão crescentemente organi- expressão dessa rede de fluxos, cuja arquitetura e

173
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL LOCAL NA SOCIEDADE EM REDE

conteúdo são determinados pelas formas existentes discutidos em círculos fechados e, subseqüente-
de poder (CASTELLS, 1999, p. 437). Isto é, a mente, projetados para as macrorredes, sustenta-
base material desse espaço de fluxos é propor- das, por sua vez, pelas tecnologias de teleco-
cionada pela criação de infra-estrutura de tele- municação.
comunicação, que tende a excluir grandes seg-
Um segundo elemento mencionado por
mentos sociais dos benefícios da sociedade de
Castells, que contribui para a distinção cultural de
informação.
elites na sociedade da informação, está relacionado
No que diz respeito à organização social espa- à criação de um estilo de vida peculiar que dá
cial, Castells argumenta que a sociedade informa- homogeneidade à elite informacional e transcende
cional é organizada de uma forma assimétrica em as fronteiras culturais tradicionais de sociedades
torno dos interesses dominantes da elite econômi- nacionais. Em conseqüência, ocorre uma certa uni-
ca: “A forma fundamental de dominação de nossa formização do ambiente simbólico das elites no
sociedade baseia-se na capacidade organizacional mundo todo, substituindo as particularidades, his-
da elite dominante que segue de mãos dadas com toricamente condicionadas, de cada localidade.
sua capacidade de desorganizar os grupos da socie-
A interpretação de Castells da sociedade em
dade que, embora constituam maioria numérica,
rede e das estratégias e mecanismos utilizados pela
vêem (se é que vêem) seus interesses parcialmente
elite empresarial da nova economia informacional
representados apenas dentro da estrutura do atendi-
é bastante reveladora, especialmente se vista em
mento dos interesses dominantes. A articulação
contraste com os processos de fragmentação e
das elites e a segmentação e desorganização da
segmentação que podemos observar no âmbito da
massa parecem ser os mecanismos gêmeos de
sociedade civil, sobretudo em nível comunitário.
dominação social em nossas sociedades” (idem,
“Segue uma esquizofrenia estrutural entre duas
p. 440).
lógicas espaciais que ameaça romper os canais de
Conseqüência dessa tendência é um crescente comunicação da sociedade. A tendência
afastamento do mundo do big business e da política predominante é para um horizonte de espaço de
organizada – onde ocorre a acumulação de poder fluxos a-histórico em rede, visando a impor sua
e de riqueza e cujo espaço de referência é o mundo lógica nos lugares segmentados e espalhados, cada
como um todo – das comunidades locais, cujas vez menos relacionados uns com os outros, cada
experiências são criadas localmente e baseadas na vez menos capazes de compartilhar códigos
história e na suas culturas específicas. O poder culturais” (idem, p. 451-452).
global segue cada vez mais uma lógica peculiar,
Entretanto, não se trata apenas de (re)construir
esquivando-se das críticas das sociedades nacio-
as pontes culturais e físicas entre essas duas for-
nais e, mais ainda, das comunidades locais. Essa
mas de espaço, como sugere Castells, mas também
rede global de dominação garante sua exclusividade
de criar redes similares em nível comunitário com
não por meio da obstrução explícita do acesso,
o objetivo de promover identidade, solidariedade
mas pelo desenvolvimento de regras e códigos cul-
e novas formas de cooperação e interação em con-
turais específicos, cuja posse abre o acesso a essas
formidade com as particularidades da sociedade
estruturas e redes de poder.
informacional.
Isso significa que, de um lado, é preciso con-
Mas o que são essas características particulares
servar as instituições democráticas a fim de poder
que diferenciam redes de outros tipos de coor-
manter as aparências democráticas; de outro lado,
denação social, sobretudo o mercado e as orga-
são erguidas barreiras culturais para evitar a entra-
nizações? Os mercados são coordenados por me-
da de representantes políticos nos mais altos círcu-
canismos de preço, de uma forma específica e
los do poder onde são tomadas as decisões estra-
espontânea; as organizações, por meio de regras
tégicas. De fato, as principais decisões são toma-
formais, de uma forma não-específica e baseadas
das em microrredes pessoais, em comunidades
em regulamentos; já as redes são normalmente
simbolicamente segregadas que representam sub-
coordenadas por meio de discurso fomentando
culturas de pessoas interconectadas, ligadas a loca-
relações de confiança mútua.
lidades comuns. Essas comunidades privadas re-
presentam os pontos nodais nesse espaço de flu- Em relações de mercado os atores costumam
xos, onde preocupações e interesses privados são ser independentes. O contrário ocorre nas orga-

174
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 21: 165-185 NOV. 2003

nizações hierárquicas em que os atores são depen- apresentarem-se altos demais para cada um dos
dentes, ao passo que em redes é imprescindível a parceiros individualmente (idem, p. 11).
ocorrência de formas de cooperação entre seus
Essas qualidades da estrutura de rede é que
membros, viabilizadas e sustentadas por relações
tornam a opção comunitária tão atraente para a
de interdependência. O acesso aos mercados é
política local. No entanto, resultados positivos só
aberto, pelo menos para aqueles com poder aqui-
podem ser esperados se as comunidades locais
sitivo. No caso de organizações o acesso é regula-
conseguirem colocar em prática o modelo de inte-
mentado por normas, enquanto em redes o acesso
ração social da colaboração em rede. Infelizmente,
é restrito aos seus membros, excluindo os não-
como Castells argumenta, as condições gerais não
membros. O horizonte de tempo, nas relações de
são muito favoráveis para os processos de inovação
mercado, é de curto prazo; em organizações, de
social impulsionados de baixo para cima.
longo prazo; em redes, finalmente, de médio prazo.
O último critério refere-se à maneira como confli- Dado o fato de que as mais importantes deci-
tos são resolvidos. No caso de relações de merca- sões que afetam as comunidades locais são toma-
do, a arbitragem é garantida por lei; nas orga- das em espaços privados ou em redes globais por
nizações, pela distribuição de poder; em redes, os elites empresariais, sem um envolvimento político
conflitos são decididos via negociação (WEYER, das populações locais, as comunidades em todo o
2000, p. 5-10). mundo estão crescentemente expostas a uma in-
certeza geral. Esse aumento das incertezas não
Alega-se que as redes são capazes de propor-
tem apenas a ver com o “sistema da irresponsabili-
cionar resultados que normalmente só o mercado
dade organizada” que, de acordo com Ulrich Beck
ou as hierarquias são capazes de produzir, apre-
(1988, p. 104), caracteriza a sociedade de risco,
sentando porém vantagens adicionais. Em redes
levando a um “fatalismo industrial” e a uma aceita-
pode ocorrer todo tipo de troca sem os seus mem-
ção e um conformismo generalizados concernentes
bros serem expostos às incertezas e riscos das
aos riscos industriais. Além disso, parece que foi
transações de mercado. As redes facilitam um
estabelecido, em função dos recentes processos
comportamento coordenado, sem a necessidade
de desregulação e privatização, um sistema organi-
de aceitar a rigidez de organizações inflexíveis e
zado de incerteza social, baseado na disseminação
burocráticas. A rede mostra-se como a única
de insegurança e na ausência de garantias (BAU-
estrutura de ação capaz de cumprir duas funções
MAN, 2000, p. 14). Essa estratégia de criação de
básicas: primeiro, a função estratégica de reduzir
incerteza, conscientemente promovida, resulta em
as incertezas com relação ao comportamento de
medo e aflição que fomenta atitudes individualistas
outros atores, como competidores ou parceiros;
de sobrevivência, mina tentativas de ação coletiva
segundo, a função instrumental de melhoria do
e enfraquece os laços sociais que normalmente
desempenho, isto é, um aumento dos resultados
mantêm as comunidades unidas. Ambas as ten-
produzidos. Além disso, as redes parecem preser-
dências favorecem o conformismo e a apatia polí-
var a autonomia dos parceiros e aumentar sua
tica, impedindo a mobilização das comunidades
capacidade de aprendizagem.
com o objetivo de reduzir as incertezas.
Nesse sentido, as redes sociais podem ser
Para Beck (1993) e Bauman (2000), uma possí-
compreendidas como formas independentes de
vel solução para esse dilema passa necessariamente
coordenação de interações. A marca central da rede
pela politização como único caminho possível para
é a cooperação, baseada em confiança entre atores
superar o cinismo e o conformismo que costu-
autônomos e interdependentes. Estes trabalham em
mam estrangular os últimos canais de comunicação
conjunto por um período limitado de tempo e levam
existentes entre as esferas privada e pública.
em consideração os interesses dos parceiros
envolvidos, que estão conscientes de que essa forma Enquanto, conforme a interpretação de Cas-
de coordenação é o melhor caminho de alcançar seus tells, a elite informacional costuma discutir seus
objetivos particulares. É em função dessa capacidade interesses e preocupações em círculos privados
de agregação que as redes têm um grande potencial de negociação e tem à sua disposição meios para
para instigar processos de aprendizagem e são colocar em prática as suas resoluções, a grande
defendidas para a implementação de projetos de massa carece de tais espaços públicos/privados
inovação, nos casos em que os riscos envolvidos onde seus problemas particulares poderiam ser

175
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL LOCAL NA SOCIEDADE EM REDE

discutidos e tornados públicos. Conforme cráticas são ignoradas ou negligenciadas. A opção


Bauman, “a chance para mudar isso depende da comunitária tem que levar em consideração as
ágora – esse espaço nem privado nem público, condições institucionais, as relações de poder locais
porém, mais precisamente, público e privado ao e a necessidade de um grande esforço no que con-
mesmo tempo. Espaço em que os problemas cerne à revitalização da democracia local e de base.
particulares encontram-se de modo significativo
Uma das principais exigências refere-se à
– isto é, não apenas para extrair prazeres nar-
ampliação dos espaços públicos para a deliberação
cisísticos ou buscar alguma terapia por meio da
pública e esforços de incluir amplas partes da
exibição pública, mas para procurar coletivamente
população em processos de tomada de decisão
alavancas controladas e poderosas o bastante para
políticas e sociais, já que no Brasil a política sempre
tirar os indivíduos da miséria sofrida em particular;
foi uma questão de uma elite social e política muito
espaço em que as idéias podem nascer e tomar
pequena.
forma como ‘bem público’, ‘sociedade justa’ ou
‘valores partilhados’” (idem, p. 11). Tomando as formas de coordenação
mencionadas acima como referencial analítico,
Na sociedade contemporânea, a opção
podemos tentar enquadrar as relações sociais e
comunitária está confrontada com dois desafios
políticas nessa tipologia proposta. Curiosamente,
principais, ambos em aparente conflito: em
podemos constatar que no Brasil os processos
primeiro lugar, trata-se de aprender com a elite
sociais parecem bem mais alinhados com o modelo
empresarial no que diz respeito à sua estratégia de
de rede do que com o mercado ou o modelo
organizar-se em redes e aumentar, desse modo, a
organizacional de coordenação social. De fato, a
capacidade para a ação coletiva e a cooperação
lógica do mercado costuma contrastar fortemente
por meio da promoção de confiança e reciprocidade
com as redes de interesse que determinam as
entre os membros das redes; em segundo lugar,
relações sociais no Brasil e que, freqüentemente,
trata-se de evitar as tendências de exclusão – muito
baseiam-se em laços familiares ou de amizade. Em
comuns nas redes empresariais – e garantir
geral, esses tipos de redes operam em prol da
procedimentos democráticos e práticas coletivas
anulação das leis do livre mercado. Correspon-
baseadas em deliberações públicas e interativas,
dentemente, as regras e normas, que, em acordo
de modo que condições para a promoção do bem
com o modelo hierárquico, definem o acesso a
comum possam ser efetivamente melhoradas. No
organizações, são também habitualmente anuladas
contexto de crescentes conflitos sociais e
por essas dominantes forças sociais. Podemos
culturais, em uma sociedade cada vez mais
dizer que as tradicionais redes sociais minam as
complexa e diversificada, e em face de novas e
funções originais dos mercados e organizações
inusitadas potencialidades de criação de redes em
burocráticas. Sendo assim, elas podem ser inter-
função da disseminação dos TICs, os riscos
pretadas como elementos fundamentais dentro de
relacionados à segregação, à exclusão e a um
um modelo de dominação em que uma pequena e
possível aumento de conflitos e de intolerância
poderosa elite explora as vantagens das relações
devido à proliferação dessas novas estruturas de
em rede, em seu próprio interesse e em detrimento
rede não devem ser subestimados.
dos excluídos dessas redes.
No que tange às redes comunitárias, é
As redes sociais que existem no nível da vizi-
importante reconhecer as novas potencialidades
nhança e das comunidades locais, especialmente
que a internet proporciona para fomentar estruturas
em comunidades pobres, são igualmente baseadas
de rede no âmbito da vizinhança e de cidades e,
em laços familiares ou de amizade, mas em geral
dessa maneira, fortalecer comunidades locais e
têm pouco a opor a essas redes dominantes. Nesse
melhorar as condições de vida locais7. No entanto,
âmbito, podemos distinguir dois tipos de redes
simultaneamente, torna-se crucial estar ciente dos
locais. Em primeiro lugar, observam-se redes
riscos que tais estratégias acarretam para a socie-
sociais nascidas das necessidades materiais. Nesse
dade como um todo quando as exigências demo-
caso, a cooperação é resultado de estratégias de
sobrevivência pessoal e o objetivo primordial é ten-
7 Relativamente à experiência da cidade de Bolonha, ver tar evitar ou restringir a degradação social. Muitas
Guidi (2002); para a de Amsterdã, ver Castells (2001, p. vezes tais redes dependem de sua capacidade de
146-155); para as de outras cidades européias, Frey (2002b). estabelecer relações efetivas com as elites dominan-

176
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 21: 165-185 NOV. 2003

tes nas administrações locais, em geral caracteri- vencidos de que na nova sociedade da informação
zadas por estruturas paternalistas e clientelistas. as redes globais de infra-estrutura de comunicação,
Em segundo lugar, ganham espaço novas redes exploradas por atores privados, serão instrumentos
sociais que surgem como novos focos de concen- decisivos para a promoção da democracia, do
tração de poder, muitas vezes relacionados ao cri- desenvolvimento e da solidariedade, bem como
me organizado e ao tráfico de drogas. Esses tipos para solucionar as grandes desigualdades sociais
de redes representam uma ameaça à elite tradicio- em nosso planeta (SFEZ, 2000, p. 51). Castells
nal. Como conseqüência, alianças entre redes do acredita “que a internet é um instrumento fun-
crime organizado e do tráfico de drogas, de um damental para o desenvolvimento do Terceiro Mun-
lado, e redes das elites políticas e sociais tradicio- do” (CASTELLS, 2001, p. 5). E, de fato, enquanto
nais, de outro, são traços cada vez mais comuns as instituições territoriais tradicionais são mais
do atual modelo de dominação social. hierárquicas e rígidas, a internet tende a privilegiar
modos de relacionamento transversais e estruturas
Até aqui é possível constatar que redes difi-
mais fluidas, em maior sintonia com as estruturas
cilmente representam uma panacéia para os proble-
de redes, que caracterizam os processos sociais e
mas que as comunidades locais estão enfrentando
políticos nas sociedades democráticas modernas.
nos países em desenvolvimento. Como mostra o
Sendo assim, deve-se esperar efeitos significativos
caso brasileiro, elas podem sustentar e perpetuar
dessas redes de telecomunicação não apenas no
um sistema de dominação e de controle incom-
âmbito do big business, mas também nos âmbitos
patível com os princípios da democracia e da parti-
da sociedade, da cultura e das instituições políticas
cipação política. As reflexões sobre redes comuni-
(POSTER, 1997, p. 215). De acordo com
tárias demonstram que é preciso ficar atento para
Wellman, na sociedade em rede, “fronteiras são
o fato de que uma concepção aparentemente
permeáveis, interações acontecem com diversos
democrática pode facilmente ser transformada em
outros, conexões mudam entre múltiplas redes e
uma ferramenta capaz de reforçar as relações de
hierarquias podem ser reduzidas e recursivas”
poder existentes, sobretudo se não houver esfor-
(WELLMAN, 2001, p. 227).
ços explícitos para superar impedimentos institu-
cionais e culturais. Não há dúvidas de que as redes eletrônicas
transformam as dimensões de tempo e espaço. A
Como alega Castells, a concepção de rede é
informação é transmitida em tempo real e pode-se
diretamente relacionada ao novo paradigma das
estabelecer contatos imediatamente, independen-
tecnologias de informação. Da perspectiva brasilei-
temente da distância espacial. A comunicação em
ra, essa constatação tem que ser relativizada. Uma
rede garante, em princípio, um acesso universal,
influência forte de atitudes e padrões pré-moder-
confortável, não-filtrado e de baixo custo a infor-
nos, em um contexto de uma sociedade industrial
mações e processos políticos. Entretanto, o poten-
moderna, pode também apoiar estruturas de rede.
cial democrático específico da internet baseia-se
No entanto, de acordo com a argumentação de
em sua estrutura não-hierárquica e cibernética que,
Castells, a localidade e a proximidade física perdem
em princípio, favorece a interatividade.
sua importância para sustentar redes sociais em
função da disseminação da internet. Enquanto Cas- Um outro possível efeito democratizante
tells frisa a ambivalência dessa transformação para- consiste na expectativa de que os fatores idade,
digmática, existem outros autores com visão muito sexo, cor ou raça perdem relativamente impor-
mais otimista, alegando um efeito democratizante tância no ciberespaço, uma vez que “a entrada
geral dessas novas tecnologias. A seção seguinte dos atores na internet não depende de uma situação
apresenta esse debate bastante controverso, no pré-estabelecida, mas apenas da sua ação no pre-
intuito de ajudar a reflexão acerca das possibilida- sente momento” (SFEZ, 2000, p. 52). Finalmente,
des de uso dessas novas tecnologias como instru- existem expectativas de que cidadãos que
mentos fomentadores e sustentadores das redes normalmente são mais relutantes em engajar-se
sociais em uma perspectiva democrática e eman- em debates públicos poderiam acabar envolvendo-
cipatória. se mais diretamente em processos de deliberação
e tomada de decisão política, visto que a comu-
V. REDES COMUNITÁRIAS E TECNOLOGIAS
nicação pelo correio eletrônico reduz os riscos da
DA INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO
exposição pessoal que caracteriza tanto a comuni-
Defensores do novo mundo virtual estão con- cação face-a-face quanto debates em arenas públi-

177
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL LOCAL NA SOCIEDADE EM REDE

cas (GRAHAM, 1999, p. 68). Portanto, parece as variáveis culturais que são 5) percepções de
que a relevância democrática da internet relaciona- similaridade com as características físicas, o estilo
se, antes de qualquer coisa, ao seu potencial para particular, a forma de vida, ou as experiências
promover uma comunicação direta, descentrali- históricas dos outros e 6) crenças comuns em
zada e interativa entre o poder político e o elei- relação a um sistema compartilhado de idéias, uma
torado. ordem moral, uma instituição ou um grupo
(BRINT, 2001, p. 3-4).
Além disso, proporcionam-se novas possibili-
dades para processos informais de deliberação O que mostram estudos empíricos sobre
política (DAHLBERG, 2001, p. 1). A comunicação comunidades é que freqüentemente “comunidades
de mão dupla, que se torna possível na internet, não parecem muito com comunidades. Elas são
contrapõe-se à comunicação de mão única, que tanto penetradas por interesses, poder e divisões
prevalece nos meios de comunicação de massa. quanto mercados, corporações ou governos muni-
Enquanto, por exemplo, na televisão os debates cipais” (idem, p. 6). Na prática, os contatos entre
públicos são conduzidos em geral pelos líderes de membros de comunidades não são necessa-
opinião, sem uma participação ativa dos cidadãos riamente mais intensos do que com pessoas de
comuns, surgem com a internet novas possibili- fora da comunidade. Muitas vezes comunidades
dades de criação de uma esfera pública interativa, caracterizam-se por estratificação social e as
um tipo de “ágora eletrônica”, sobretudo devido à decisões relevantes são tomadas pelo grupo de
vantagem da dissolução do espaço enquanto con- status dominante. Nem são as comunidades,
dição de comunicação (ROESLER, 1997, p. 182). necessariamente, baseadas em quaisquer laços
sociais sobremaneira intensos ou altamente foca-
Da perspectiva das comunidades locais, as
lizados. Devido a uma crescente contestação da
TICs representam um possível novo canal por que
“imagem de relações comunitárias calorosas e de
as comunidades podem expressar as suas deman-
apoio recíproco” (ibidem) por parte de estudos
das e expectativas, por que cidadãos podem ser
empíricos, ganha cada vez mais atenção o refe-
envolvidos em processos de tomada de decisão
rencial de redes sociais. Wellman “define ‘comu-
política e, finalmente, por que uma esfera pública
nidade’ como redes de laços interpessoais que
local pode ser sustentada e a democracia local
proporcionam sociabilidade, apoio, informação,
fortalecida8 . Neste artigo estamos enfocando não
um senso de pertencimento e identidade social”
apenas as relações entre cidadão e governo, mas
(WELLMAN, 2001, p. 228).
também as potencialidades comunicativas entre
os próprios cidadãos, e com isso as possibilidades Ao contrário das definições tradicionais de
de fazer uso das TICs em prol do desenvolvimento comunidade, a idéia da comunidade enquanto rede
comunitário e da mobilização do capital social. frisa mais as vantagens em termos de benefícios
práticos e materiais conferidos aos membros de
No entanto, antes de abordar a possível
tais redes, e menos à idéia de crenças comuns e
contribuição das TICs para o fortalecimento das
de uma ordem moral unificadora ou até de um
comunidades locais, é preciso refletir sobre as
tipo de “vontade natural” inerente às comunidades.
características de comunidades e as implicações
Uma contribuição importante para essa discussão
dos processos de segmentação e fragmentação para
vem dos estudos sobre comunidades eletivas. De
a sua mobilização. Abordagens teóricas sobre
acordo com Brint, comunidades de escolha são
relações sociais comunitárias mencionam, em
baseadas em interesses comuns e apoio mútuo.
geral, seis propriedades de comunidades, elen-
As interações entre os seus membros mostram-
cadas a seguir. Diferencia-se entre as variáveis
se em geral bem mais intensas e efetivas do que
estruturais, que são: 1) laços sociais densos e
aquelas em comunidades que são definidas
fortes; 2) envolvimento e integração social pro-
exclusivamente pela propinqüidade física.
porcionado por meio de instituições comuns; 3)
eventos rituais; 4) grupos de tamanho reduzido; e Brint identifica diversas razões para a tendência
das Ciências Sociais em privilegiar as redes sociais
8 Partindo do referencial teórico da esfera pública e da
em detrimento da abordagem da comunidade.
democracia deliberativa eu abordei essa questão em dois
Primeiro, parece que as formas mais estáveis de
outros trabalhos recentes (FREY, 2001a; 2001b); ver comunidades territorialmente delimitadas tendem
também Coleman e Gotze (2002). a desaparecer gradualmente na sociedade moderna.

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 21: 165-185 NOV. 2003

Segundo, observa-se um avanço da escolha racio- porâneo, capaz de criar condições para as pessoas
nal como pensamento predominante nas últimas atuarem na busca de seus interesses coletivos, sem
décadas. Finalmente, ele menciona o fato de que permanecerem presos a um cânone de normas
os próprios cientistas sociais e os profissionais éticas e morais das comunidades tradicionais.
altamente qualificados vivem em um mundo em
Existe, no entanto, o perigo de “que ‘comu-
que as interações de curto prazo e a pluralidade de
nidades virtuais’ e comunidades particulares de
contatos sociais são valorizados e vistos como
interesse – enquanto elas ganham sua grande força
fatores fundamentais para o sucesso social e
da sua capacidade de criar conexões – podem ser
econômico. Essa percepção pode, no entanto,
também excludentes e elitistas” (OAKLEY, 2001,
basear-se em uma apreensão equivocada,
p. 3). Essa argumentação torna-se ainda mais
especialmente se vista da perspectiva de
convincente face à tendência de tais grupos de
comunidades pobres e da necessidade de superar
correligionários de discutir apenas seus interesses
situações de risco social. Segundo Brint: “A
específicos, fortalecendo, dessa maneira, as opi-
tendência atual de focalizar rituais de interações
niões e convicções existentes no grupo e ignorando
de curto prazo relacionados a estruturas de redes
a pluralidade de tópicos e opiniões que existem
sociais corre o risco de distorcer (e apagar) a
em sociedade. Isso se torna mais evidente no que
realidade daquelas estruturas de tipo Gemeinschaft
Robert Bellah chama de “‘lifestyle enclaves’, as
que continuam existindo” (BRINT, 2001, p. 8).
quais celebram o ‘narcisismo da similaridade’ por
Sobretudo no contexto de países em desenvol-
meio do estilo de vida comum de seus membros”
vimento com sistemas de segurança social extre-
(DOHENY-FARINA, 1996, p. 50). Teme-se que
mamente precários, as comunidades locais con-
as novas oportunidades para a formação de comu-
tinuam desempenhando um papel importante na
nidades, guiadas exclusivamente por interesses,
luta diária das pessoas pela sua sobrevivência.
possam fortalecer a intolerância e o consumismo,
Na sua conclusão, Brint constata que os além de fomentar a retirada da esfera pública, o
mecanismos integradores de comunidades são desencantamento com a política e até mesmo a
fortemente relacionados a interações face-a-face proliferação do fundamentalismo.
e a processos de monitoramento visando a alcançar
Tendo à nossa disposição novas tecnologias
a conformidade, ao passo que “um ambiente de
para selecionar aquelas informações que queremos
iguais autônomos, comprometidos com um
acessar e para escolher as pessoas com quem
conjunto de normas morais comuns, só é possível
queremos comunicar-nos, nossa percepção da
em um mundo em que membros estão raramente,
realidade tende a limitar-se cada vez mais. Nós
ou nunca, co-presentes” (idem, p. 20)
poderemos sentir-nos confortáveis e bem entendi-
São exatamente essas as condições que podem dos estando entre os membros de nosso grupo de
ser observadas em comunidades virtuais de escolha, porém inseguros e ameaçados fora dele.
interesse, em que os membros dificilmente se Como a sociedade depende de um tipo de soli-
encontram e as interações costumam limitar-se dariedade que transcende o engajamento em favor
àqueles tópicos específicos que motivaram a dos correligionários, a opção comunitária pode
criação da comunidade (BLANCHARD & entrar em oposição com a própria idéia de socie-
HORAN, 1998, p. 295). dade, reduzindo a comunicação e a compreensão
entre grupos em sociedades cada vez mais mar-
Brint tem a expectativa de que esses tipos de
cadas pela diferença.
grupos, baseados em atividades comuns e
conectados de modo menos firme e permanente Comunidades virtuais podem contribuir para
– uma característica cada vez mais dominante nas cultivar uma outra tendência crítica: na medida
organizações sociais das sociedades industriais em que os temas eletivos determinam cada vez
contemporâneas – levam “algumas das virtudes mais a atenção das pessoas e podem ser ampla-
de comunidades para o mundo moderno, evitando mente satisfeitos devido às novas tecnologias, o
ao mesmo tempo seus vícios característicos e suas interesse e a disposição de engajar-se em favor
conotações puramente místicas” (BRINT, 2001, das comunidades locais reais pode diminuir. Como
p. 20). Assim, a comunidade de escolha surge sugerimos anteriormente, comunidades locais reais
como uma forma de organização promissora para continuam desempenhando um papel importante,
o dinamismo da vida social no mundo contem- especialmente em condições locais de risco social.

179
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL LOCAL NA SOCIEDADE EM REDE

Do ponto de vista de países em desenvolvimento providenciam ferramentas promissoras para o


surgem com isso algumas questões cruciais: fortalecimento das comunidades locais e dos laços
podemos realmente esperar que comunidades com sociais e para a experimentação com o exercício
poucas possibilidades efetivas de interação possam da cidadania e o aperfeiçoamento de processos de
contribuir para a melhoria das condições de vida democracia local. Mas mesmo nas cidades mais
no nível da vizinhança? Será que elas reforçam avançadas estamos ainda distantes de uma situação
ainda mais a tendência das pessoas a preocu- em que a nova interconectividade da internet possa
parem-se cada vez mais com seus interesses promover novos padrões de tomada de decisão
individuais e cada vez menos com o ambiente físico política e uma transformação substancial no tocante
e com seus vizinhos, que residem ao lado? Existem às desigualdades sociais.
possibilidades de fazer as vantagens de comu-
VI. CONSIDERAÇÕES FINAIS
nidades virtuais de interesse trabalhar em favor
da intensificação de interações sociais e da coope- A sociedade civil global está organizando-se
ração entre comunidades reais? Como comu- para preparar propostas para a Conferência Global
nidades on-line deveriam ser organizadas e sobre a Sociedade da Informação, que se realizará
estruturadas para fortalecer, simultaneamente, em Genebra (2003) e Túnis (2005)9. O movi-
relações de longa distância e laços sociais locais mento das redes cívicas adquiriu uma dimensão
(HORRIGAN, 2001)? E, finalmente, qual deveria igualmente global, visando a renovar a vida social
ser o papel desempenhado pelas agências e democrática na sociedade da informação
governamentais na criação e promoção de comu- contemporânea a partir do âmbito local10. No nível
nidades interativas locais? local, o número de iniciativas governamentais e
não-governamentais, experimentando novas for-
As experiências com a criação de redes cívicas
mas de participação via internet, está aumentando
locais, apoiados em aplicativos de internet,
constantemente. Apesar da tendência dominante
mostram a importância da ação governamental em
de um ciberespaço crescentemente privatizado e
projetos de democracia eletrônica local que visam
comercializado e de um desenvolvimento do setor
fortalecer tais redes dentro de uma perspectiva
de telecomunicação marcado pela lógica do mer-
emancipatória e democrática (CASTELLS, 2001;
cado e do lucro rápido, todas essas iniciativas dão-
FREY, 2002b). Em todas as cidades engajadas na
nos motivos para crer que o ciberespaço possa
criação de redes cívicas observa-se uma preocu-
operar “como um bem comum, [...] como um
pação grande em relação a como promover um
espaço de acesso público em que cidadãos criam
ambiente mais interativo nas comunidades locais.
e compartilham bens públicos livres” (LEVINE,
Em boa parte dos casos analisados, consi- 2002, p. 13) e como um espaço de experimentação
derou-se a tecnologia uma ferramenta, de um lado, democrática capaz de sustentar práticas demo-
para a criação de uma administração mais eficiente cráticas em geral.
e melhor adaptada às necessidades dos usuários
Se, como salienta Castells, “o Estado na era
de serviços públicos e, de outro lado, para o forta-
da informação é um Estado organizado em redes,
lecimento das comunidades locais, o aumento da
um Estado composto de um complexo web de
solidariedade e a ampliação dos laços sociais e da
instituições internacionais, multinacionais, nacio-
participação política nos processos locais de
nais, regionais, locais e não-governamentais, ne-
tomada de decisão.
Para alcançar esses objetivos “macro” as
iniciativas governamentais concentram-se em 9 Mais informações sobre a plataforma da sociedade civil
quatro campos de ação preferenciais: 1) criação estão disponíveis no seguinte sítio: http://
de pontos de acesso público à internet; 2) www.geneva2003.org.
campanhas de alfabetização digital; 3) apoio a 10 O movimento global de redes cívicas organizou diversos
comunidades virtuais locais e 4) fortalecimento congressos nos últimos anos: o primeiro em Barcelona, em
de redes “reais” de vizinhança por meio do uso 2000; o segundo em Buenos Aires, em 2001 (http://
das TICs. www.globalcn2001.org) e o último congresso em Montreal,
em outubro de 2002 (http://www.globalcn2002.org). O
As experiências européias sugerem que a movimento GlobalCN Partnership mantém uma plataforma
internet e outras tecnologias informacionais de cooperação no sítio http://www.globalcn.org.

180
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 21: 165-185 NOV. 2003

gociando a partilha de poder e a tomada de deci- possa tomar o seu destino em suas próprias mãos.
são” (CASTELLS, 2000, p. 14), então os cidadãos A promoção de redes cívicas pode ser considerada
e os agentes sociais precisam estar preparados e uma opção importante dentro dessa abordagem
treinados para essas novas práticas de coordenação de ação estatal. Face à incapacidade das autori-
social e de tomada de decisão. Iniciativas como dades estatais em providenciar os produtos e ser-
redes cívicas, fóruns de discussão e sistemas de viços sociais necessários, a concepção de um Esta-
mediação on line são fundamentais para preparar do facilitador e estimulador de inovação social e
as instituições e organizações para essas novas mediador de conflitos sociais não é apenas uma
formas de uma “governança social negociada” opção mais realista. Sendo o foco da atenção con-
(HIRST, 2000, p. 19), além de treinar os cidadãos centrado no indivíduo e no desenvolvimento de
na arte de conversação, negociação, argumentação suas capacidades pessoais, assim como na melho-
e deliberação. ria das condições para ação coletiva, por meio do
fortalecimento de movimentos sociais e organiza-
Enquanto as democracias representativas
ções não-governamentais, a concepção tem um
liberais parecem funcionar melhor no contexto de
forte viés emancipatório, tornando os cidadãos
uma civic culture, em que o cidadão não é ne-
mais autônomos frente às agências estatais.
cessariamente racional e ativo, mas “pode combi-
nar algum grau de competência, envolvimento e Esse modelo encontra, entretanto, limites,
atividade com passividade e não envolvimento” particularmente em países em desenvolvimento
(ALMOND & VERBA, 1963, p. 487), dando apoio com suas desigualdades extremas com relação à
a um modelo elitista de tomada de decisão política, estrutura de oportunidades, de modo que o Estado
a emergente sociedade em rede mostra-se bem continua com uma grande responsabilidade con-
mais severa: ou faz-se parte da rede e habilita-se a cernente à provisão dos serviços básicos. No en-
explorar as oportunidades que as novas tecnologias tanto, esforços adicionais são indispensáveis para
e as redes sociais oferecem, ou está-se condenado estimular as comunidades locais e as organizações
a ficar à margem dos processos sociais e políticos. da sociedade civil na busca de estratégias locais
A primeira concepção é mais alinhada com o apropriadas para superar os problemas sociais.
modelo do Welfare State, em que um Estado
Uma outra questão fundamental tem a ver com
relativamente forte com suas instituições políticas
a necessidade de uma renovação das práticas
e administrativas assume responsabilidade social
democráticas. Perante a incapacidade das institui-
para proporcionar os serviços públicos e arbitrar
ções políticas e administrativas tradicionais de
em conflitos sociais. O segundo modelo é mais
solucionar os problemas que afetam o eleitorado,
alinhado com o modelo neoliberal de um Estado
a democracia liberal, sobretudo na sua forma atual,
mínimo em um mundo interdependente e globa-
sofre graves problemas de legitimidade política, o
lizado, que cada vez menos dispõe dos meios e
que demonstram os recentes números decres-
mecanismos necessários para responder às cres-
centes de participação nas eleições em boa parte
centes demandas sociais.
das democracias ocidentais consolidadas.
Esse novo contexto social, político e econô-
No futuro deve-se esperar que formas alter-
mico exige novas abordagens e padrões políticos
nativas de participação cidadã, alinhadas às neces-
de ação estatal. Uma possibilidade seria tentar
sidades e expectativas dos cidadãos e das organi-
reverter as recentes tendências de liberalização e
zações da sociedade civil, desempenharão um papel
globalização, buscando reforçar o modelo do
muito mais importante para a legitimidade política
Estado do Bem-estar Social e da ação estatal
do que o sistema representativo tradicional. A par-
centralizada e, no campo político, tentar revigorar
ticipação política via internet pode-se tornar um
as democracias liberais, baseadas em partidos polí-
canal adicional dentro de uma variedade de novas
ticos fortes, e os meios de comunicação de massa.
formas de engajamento cívico e participação demo-
Entretanto, tendo em vista a globalização e a
crática. A democracia eletrônica certamente não
diversificação social e cultural, essa opção torna-
substituirá a forma tradicional do processo político
se cada vez menos realista. A segunda possibi-
representativo, mas pode sim complementá-la de
lidade consiste na perseguição de um modelo de
uma maneira que novos padrões democráticos
um “empowering State” (WRIGHT, 1996, p. 15),
possam emergir, ampliando o envolvimento públi-
engajado em preparar o cidadão para que este
co na deliberação democrática.

181
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL LOCAL NA SOCIEDADE EM REDE

Redes comunitárias, sustentadas por espaços medidas de desenho institucional garantem o


virtuais de deliberação pública, podem contribuir estabelecimento de fortes funções de mediação,
para a criação de capital social. Na sociedade da que no melhor dos casos serão desempenhadas
informação não é a mera densidade de organizações pela sociedade civil e pela esfera pública.
cívicas que determina a capacidade para ação
O progresso nessa direção, sobretudo em paí-
coletiva. Muito mais importante é a efetividade das
ses com uma sociedade civil pouca organizada,
redes sociais que unem essas organizações e
depende ainda da vontade dos governos locais em
capacitam-nas a agir de maneira coordenada.
dar primazia à promoção da emancipação das co-
Arranjos institucionais e procedimentais munidades e dos cidadãos. Como a experiência
correspondentes, que oferecem possibilidades de dos movimentos sociais e ambientais globais mos-
engajamento cívico e de participação política, são tra11, a estratégia de rede pode ser também uma
cruciais para assegurar que essas redes cívicas ferramenta efetiva de resistência e contestação
possam alcançar efetividade social e política. O contra as forças dominantes que determinam a
desenho institucional precisa desempenhar um atual sociedade em rede. A proliferação de redes
papel importante na provisão de canais de comunitárias pode também representar a aspiração
participação e oportunidades de interação social. das pessoas no que se refere a uma forma renovada
Se acompanhadas por medidas que garantam de vida social, baseada na confiança e na reciproci-
transparência, acesso aberto e participação demo- dade, capaz de desafiar os processos globais de-
crática, comunidades virtuais e redes comunitárias satados pelas redes transnacionais e hegemônicas
não precisam necessariamente sofrer os perigos das elites econômicas. Sob tais circunstâncias, a
de tornar-se excludentes e elitistas. Porém, isso opção comunitária pode, de fato, transformar-se
exige, particularmente em comunidades mais em uma alternativa realista na busca de um modo
pobres, esforços para assegurar acesso e sustentável de desenvolvimento e de vida social.
campanhas de qualificação para a população, de
modo que esta possa beneficiar-se efetivamente
das novas promessas da era digital. 11 Segundo a análise de Castells sobre as redes de
movimentos sociais (CASTELLS, 2001, p. 138-143), as
Além disso, desvantagens causadas por uma quais se originam da resistência de sociedades locais, elas
estrutura desigual de oportunidades e de poder só “visam superar o poder das redes globais, assim,
podem ser mantidas em limites razoáveis se reconstruindo o mundo a partir das bases” (idem, p. 143).

Klaus Frey (kfrey@rla01.pucpr.br) é Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Konstanz


(Alemanha) e Diretor do curso de Mestrado em Gestão Urbana da Pontifícia Universidade Católica do
Paraná (PUC-PR).

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