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FAZER E REFAZER O IMPÉRIO:

Agências e Agentes na
A mérica Portuguesa
(SÉCS. XVII-XIX)

Organizadores:
Ariadne K etini Costa &
José Inaldo Chaves Júnior
FAZER E REFAZER O IMPÉRIO:

Agências e Agentes na
A mérica Portuguesa
(SÉCS. XVII-XIX)

Organizadores:
Ariadne K etini Costa &
José Inaldo Chaves Júnior

Departamento de Línguas
Departamento de Línguas
Biblioteca Setorial
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Todos os direitos reservados

Capa por Renan Birro


Editoração por Renan Birro

Primeira Edição, Dezembro 2011


Circulação de 1000 cópias
Impresso por Agbooks Press

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

COSTA, Ariadne K etini &


CHAVES JÚNIOR, José Inaldo.
Fazer e Refazer o Império : Agências e Agentes na América Por-
tuguesa (sécs. XVII-XIX). Vitória: DLL/UFES, 2011, pp. 316.
(História, 22).
1. ed.
ISBN 978-85-61857-02-8

HISTÓRIA; BRASIL; PORTUGAL; HISTORIOGRAFIA;


COLÔNIA; METRÓPOLE.
Índice

Abreviaturas, i
Apresentação, iii
Luiz Cláudio Moisés Ribeiro
Agradecimentos, v
Prefácio, vii
Maria Fernanda Bicalho

Parte I
Governabilidade, Elites e Poderes locais

I. La construcción política de la Amazonía portuguesa


en la Monarquía Hispánica (1612-1621), 1
Alírio Cardoso

II. Um Familiar do Santo Ofício em Colônia de Sacramento e suas


redes de relações: João da Costa Quintão (séc. XVIII), 25
Lucas Maximiliano Monteiro

III. Itamaracá: uma donataria entre as Capitanias


Reais do Norte, 45
Luciana de Carvalho Barbalho Velez

IV. Entre a defesa e a ordem: os corpos militares na Capitania


da Paraíba (1750-1777), 69
Bruno Cezar Santos da Silva
V. Elites luso-maranhenses nos quadros do Império Português:
mobilidade social e redes de sociabilidade no Maranhão
do século XVIII, 93
Ariadne Ketini Costa

Parte II
Negócios e Negociantes: mobilidade social e estratégias de poder

VI. Negócios que enobrecem: história e historiografia da mercan-


cia no Império Português (sécs. 17 e 18), 127
José Inaldo Chaves Júnior & Ariadne Ketini Costa

VII. A projeção social dos homens de negócio com a vinda da


Corte portuguesa para o Rio de Janeiro em 1808: o caso
do Conselheiro e Comendador da Ordem de Cristo
Elias Antonio Lopes, 161
Nilza Licia Xavier Silveira Braga

VIII. Fronteiras insubmissas: circuitos mercantis, elites e


territorialidades nas capitanias do Norte do
Estado do Brasil, c.1791-1797, 185
José Inaldo Chaves Júnior

IX. A “gente nobre” do Maranhão (século XVII), 221


Arlyndiane dos Anjos Santos
Parte III
História e Modernidade: algumas notas sobre história indígena
e os discursos jesuíticos da América Portuguesa

X. A retórica da edificação: o exemplo na “História”


de António Vieira, 251
Hadassa Melo

XI. “O Gênio, o engenho, e os costumes dos índios do


Maranhão”: representações jesuíticas sobre os indígenas
na crônica do padre Domingos de Araújo, 1720, 265
Roberta Lobão Carvalho
Abreviaturas

AHU – Arquivo Histórico Ultramarino


ACL – Administração Central
CU – Conselho Ultramarino
Cx. – Caixa
D. (doc.) – Documento
ACMRJ – Arquivo da Cúria Metropolitana do
Rio de Janeiro
ANTT – Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Portugal
HSO – Habilitações do Santo Ofício
JJM – Juizado da Índia e Mina
RGM – Registro Geral de Mercês
APEJE/PE – Arquivo Público Estadual Jordão
Emereciano/Pernambuco
OR – Ordens Régias
APEM – Arquivo Público do Estado do Maranhão
ABNRJ – Anais da Biblioteca Nacional/Rio de Janeiro
BNRJ – Biblioteca Nacional/Rio de Janeiro
ANRJ – Arquivo Nacional/Rio de Janeiro
Apresentação

A historiografia brasileira interroga-se e renova-se em novo ritmo.


É a resultante da inquieta postura investigativa das novas gerações
de historiadores de diferentes regiões do país que, voltados para
escrutinar sob novas perspectivas a história de seus estados e
cidades de origem, compulsam novos acervos documentais e
geram trabalhos que propõem uma história que trata o Brasil pela
ótica de sua diversidade e complexidade territorial desde o início
da colonização.
Esta obra bem traduz essa nova tendência da historiografia
colonial brasileira, tão bem representada pela iniciativa de dois
pesquisadores que instigaram seus pares a exporem em artigos
de refinada elaboração um somatório de múltiplas concepções
da formação do império português no trópico, tomando por
referência a documentação de seus lugares de origem e aquela do
Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa, recentemente trazida
para o Brasil pelo Projeto Resgate.
Ariadne Ketini Costa e José Inaldo Chaves Junior - com rara
habilidade - reúnem em Fazer e refazer o império: agências e agentes na
América Portuguesa (Sécs. XVII-XIX) um elenco de historiadores
– a maioria em formação no consagrado Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal Fluminense -
que expressam formulações teóricas e metodologias com a visão
crítica das histórias locais das antigas regiões coloniais brasileiras
que se transformaram (ou não) em urbes modernas, mas que
carecem de uma historiografia que assente, com elementos
próprios, a compreensão do papel jogado por suas elites dirigentes
frente à centralidade das elites cortesãs na condução do império
luso-ibérico no Brasil.
iv Apresentação

Tendo a tênue divisão do território colonial (Maranhão,


Grão-Pará, Paraíba, Itamaracá, Colônia de Sacramento etc.)
como referência os autores escrutinam para além das fronteiras
físicas as relações de poder, as redes de sociabilidade, as práticas
mercantis, os discursos sobre os “negros da terra”; enfim a
trajetória de homens, ideias e estratégias de enobrecimento e
mobilidade socioeconômica locais que, pelo que representaram
na afirmação daquelas unidades administrativas frente à Lisboa,
de Salvador e em seguida do Rio de Janeiro, realçam o papel ativo
das articulações de indivíduos e grupos locais numa sociedade
absolutista.
Tratando-se de uma história renovada do Brasil, a organização
desta obra traduz a viabilidade de uma história de duplo viés; isto
é, não foge ao entendimento de que o Brasil era um projeto de
um império governado d`além-mar e inserido na dinâmica das
relações de Portugal com as demais potências europeias. Por outro
lado, Fazer e refazer o império: agências e agentes na América Portuguesa
(Sécs. XVII-XIX) privilegia novos olhares sobre a composição da
periferia na historiografia brasileira e direciona o leitor para uma
história que, sem a pretensão da síntese abrangente, compõe o
Brasil-colônia por suas unidades constituintes (capitanias, cidades,
vilas, praças-fortes, etc.) reconhecendo-lhes o que é singular no
fazer e refazer o Império. Trata-se, portanto, de uma resposta da
historiografia brasileira a um desafio maior, qual seja, de pensar
o Brasil, passado e presente, sob o prisma das mais amplas
possibilidades históricas.

Luiz Cláudio M. Ribeiro


Departamento de História/UFES
Agradecimentos

Um trabalho dessa natureza não se efetivaria sem a colaboração


de muitas mãos. Fazer e Refazer o Império representa, além do
esforço de jovens pesquisadores na busca por pontos de reflexão
e diálogo comuns entre suas pesquisas, a contribuição direta e
indireta de inúmeras pessoas e instituições. Este reconhecimento,
per se, torna estas primeiras linhas ainda mais difíceis, tendo em
vista o temor do esquecimento que, indiscutivelmente, carregam.
De antemão, alertamos que as imprecisões, dúvidas e falhas
contidas neste livro são de nossa inteira responsabilidade e às
tomamos como oportunidades de amadurecimento intelectual e
intercâmbio acadêmico.
Temos plena consciência que este projeto jamais teria alçado
êxito sem o apoio, em primeiro lugar, de nossos professores
e orientadores. À eles, inclusive, dedicamos este livro como
gratidão pela paciência, dedicação e sugestões. Registramos nossa
dívida com a Dra. Maria Fernanda Bicalho, da Universidade
Federal Fluminense, que aceitou o desafio de prefaciar uma obra
escrita, em sua maioria, por jovens historiadores, ainda em início
de carreira. Os incentivos e preciosos conselhos desta erudita
historiadora foram decisivos no processo de organização da
coletânea, nos ajudando a enfrentar os impasses de nossa própria
inexperiência.
Não deixaríamos de agradecer o apoio recebido dos amigos
que compartilham (ou compartilharam) conosco as vitórias e
dificuldades da pós-graduação. A interlocução com estes parceiros
de ofício foi (e é) imprescindível ao desenvolvimento de nossas
vi Agradecimentos

pesquisas. Em especial, ressaltamos a participação do professor


Mtdo. Renan Marques Birro (PPGH/UFF) na editoração de
Fazer e Refazer o Império. Parceiro incondicional e entusiasta deste
projeto, ele acompanhou com rica contribuição todas as etapas de
sua elaboração.
À nível institucional, agradecemos a parceria do Departamento
de Línguas e Letras da Universidade Federal do Espírito Santo
(DLL/UFES), notadamente na pessoa do professor Dr. Luís
Eustáquio Soares, que viabilizou esta publicação. Na UFES,
também contamos com a leitura atenta e sensibilidade do
professor Dr. Luiz Cláudio Ribeiro (PPGHis/UFES), com quem
dividimos as alegrias deste momento único. Por fim, sem o apoio
institucional de agências de fomento, como a Capes, o CNPq e a
FAPEMA, através de suas bolsas de mestrado e doutorado, este
trabalho teria perdido muito em qualidade e rigor. À todos, o
nosso muito obrigado.

Niterói, dezembro de 2011.


José Inaldo Chaves Jr.
Ariadne Ketini Costa
Para os nossos professores.
Prefácio

Periferias, Fronteiras,
R edes e Agentes

“Aquilo que se constitui como um “centro” e uma “periferia”


é algo subjetivo, dependendo da perspectiva daquele que
realiza tal aferição”
A.J.R. Russell-Wood

A epígrafe deste prefácio é uma citação do historiador e renomado


brasilianista John Russell-Wood, um dos mais argutos intérpretes
de nossa história colonial. Em seu artigo, discussão experiente
sobre as diferentes centralidades – político-administrativas,
econômicas, culturais, espaciais e demográficas – no interior do
império português, o autor chama a atenção para que “o exame das
relações centro-periferia na América portuguesa abre uma espécie
de caixa de Pandora em termos de surpreendentes oportunidades
para os historiadores interessados”.1
O livro Fazer e Refazer o Império: Agências e agentes na América
portuguesa (séculos XVII-XIX) descortina algumas destas
oportunidades, partindo da análise de medidas administrativas,
trajetórias, discursos, redes mercantis e relações sociais
constituídas em regiões tidas como periféricas, para demonstrar

1 RUSSELL-WOOD, A.J.R. “Centros e Periferias no Mundo Luso-Brasileiro, 1500-


1808”. Revista Brasileira de História, vol. 18, nº38, 1998, p. 215.
x Prefácio

seu grau de centralidade e o protagonismo de suas elites, agentes


e agências na construção de sua própria história. Uma história
inelutavelmente imbricada às dinâmicas que fizeram e refizeram,
em diferentes espaços e em temporalidades distintas, o império
português.
É um livro que nos remete a noções de fronteiras, não
apenas territoriais – pelo fato de a maioria de seus capítulos se
debruçar sobre espaços fronteiriços, como a Amazônia, incluindo
o Maranhão, as capitanias do norte, como Paraíba e Itamaracá,
e, no extremo-sul, a Colônia do Sacramento – mas também
administrativas e sociais, estas últimas não raro transpostas
por jurisdições mal definidas, por trajetórias ascendentes, por
privilégios conquistados, por alianças e redes estabelecidas supra-
capitanias, por circuitos mercantis que não conheciam limites.
Apesar de seus autores elegerem como foco de discussão a
conquista e a apropriação do território, a dinâmica dos poderes
locais, as estratégias de elites senhoriais, os interesses da mercancia,
as ações e os discursos de governantes e agentes religiosos – e
tudo isso calcado em rigorosa pesquisa documental e no recurso
à consistente metodologia – Fazer e Refazer o Império nos traz uma
reflexão sobre diferentes regimes de historicidade presentes em
nossa historiografia, desde o século XVII até os dias de hoje. A
revisão e a discussão historiográfica, o propósito de ultrapassar
uma história e uma historiografia eminentemente locais, embora
voltadas para a identificação de evidências fragmentárias da
constituição de uma identidade nacional, faz deste livro um
exemplo e um ensaio de história global, ou seja, imperial.
Esta é, enfim, uma obra sobre as relações multidimensionais
– para usar um termo de Russell-Wood – entre o centro e as
periferias, ou melhor, entre estas e o centro, não só o representado
pela Coroa, seja em Madri, seja em Lisboa, mas por outros núcleos
que conquistaram indiscutível centralidade no ultramar, como as
cidades de Recife, de São Luís do Maranhão e, sobretudo, a do
M aria Fernanda Bicalho xi

Rio de Janeiro, quando nela se encontravam a família real e sua


corte. Se as análises desenvolvidas em seus capítulos se referem
a circunscrições político-administrativas e a espaços de produção
e de reprodução social das elites locais, suas fronteiras foram
invariavelmente transpostas por homens, mercadorias, vínculos
e negócios trans-fronteiriços, remetendo para a dimensão
supra-territorial e até mesmo aterritorial do império português,
composto por um sistema de comunicação e de trocas formado
e perpassado por redes. Redes que, como afirmam Maria de
Fátima S. Gouvêa e João Fragoso, se tecem como “networks de
relacionamentos, constituídos a partir das ações e das relações
vivenciadas entre diversos indivíduos com acesso a informações e
recursos diferenciados entre si. Essas diferenças potencializavam
a possibilidade de sua imbricação, tirando-se assim partido das
fraturas que cotidianamente eram identificadas nos diversos
cenários sociais que compunham o império português”.2
Relações, conflitos e negociações, construção política do
território, fronteiras permeáveis, poderes e elites locais, negócios
e cargos que enobrecem, múltiplos agentes e um número ainda
maior de agências. Enfim, como afirmou Russell-Wood sobre esse
vasto mundo em movimento, “enquanto, em teoria, se tratava de uma
estrutura altamente centralizada e dependente de Lisboa, com
Goa e Salvador (Rio de Janeiro, a partir de 1763) a actuarem como
centros subordinados respectivamente no Estado da Índia e no
Brasil, e com todas as nomeações feitas pela Coroa ou sujeitas à
aprovação real, a realidade era uma extraordinária descentralização
da autoridade que podemos atribuir a vários fatores”. Entre
eles, a “tirania da distância”, que levava a que poderes e elites
locais assumissem um elevado grau de responsabilidade sobre as

2 FRAGOSO, João & GOUVÊA, Maria de Fátima S. (orgs). Na Trama das Redes.
Política e Negócios no Império Português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2010, p. 23.
xii Prefácio

decisões políticas, originando uma sistêmica descentralização da


autoridade, somada à importância dos parentescos e às pressões
exercidas sobre o governo real pelos interesses corporativos.3
Distantes dos centros econômicos e políticos mais representativos
do império, as dinâmicas destes territórios, capitanias, cidades,
praças-fortes, corporações, em parte semelhantes em relação a
outras regiões da América portuguesa, em parte singulares, são
aqui discutidas com pertinência, oferecendo ao leitor um amplo
espectro de questões atualíssimas no debate historiográfico das
últimas décadas, demonstrando mais uma vez que a história se
constrói não só por meio das recorrências estruturantes, mas
também a partir de um inventário das diferenças.
Fazer e Refazer o Império constitui-se de três partes. A primeira,
“Governabilidade, Elites e Poderes Locais”, inicia-se com o
capítulo “La construcción politica de la Amazonía portuguesa
en la Monarquia Hispânica (1612-1621)”, escrito por Alírio
Cardoso. Numa análise acurada, Cardoso discute as primeiras
conquistas e migrações européias para a Amazônia, por volta
de 1615, seguidas de sua inserção no conjunto da Monarquia
Hispânica com a transferência de quadros burocráticos, militares,
eclesiásticos e produtivos para aquele território do extremo-norte
da América. Analisa, em tempos da união das Coroas ibéricas,
os elementos que atestam o lugar estratégico do Estado do
Maranhão no império dos Habsburgo. Discute os motivos e os
pressupostos que fizeram com que portugueses, súditos de Felipe
III e conquistadores da região, propusessem a separação política
do novo território, criando outro Estado distinto do Brasil.
O segundo capítulo, “Um familiar do Santo Ofício em Colônia
de Sacramento e suas redes de relações: João da Costa Quintão

3 RUSSELL-WOOD, J.A.R. “Governantes e Agentes”. In: BETHENCOURT, F.


& CHAUDHURI, K. (orgs). História da Expansão Portuguesa, vol. 3. Lisboa: Círculo
dos Leitores, 1997, p. 171.
M aria Fernanda Bicalho xiii

(século XVIII)”, nos transporta para o extremo-sul e para


outra temporalidade. Calcado em pesquisa empírica de fôlego,
Lucas Maximiliano Monteiro, ao inventariar a trajetória, a vida
e os negócios de sua personagem, discute a composição das
heterogêneas elites coloniais, relacionando cargos da governança,
negócios ultramarinos, relações parentais e os anseios de ascensão
social numa sociedade marcada pelo signo da desigualdade entre
os indivíduos. João da Costa Quintão mostra-se como uma
filigrana das complexas redes tecidas pelos principais da terra para
compor alianças que garantissem bons negócios, projeção social
e o exercício do mando. Seu processo de familiatura revela outros
pormenores, típicos de uma sociedade de Antigo Regime em que
a pureza de sangue e a inexistência de estigma mecânico eram
imprescindíveis à conquista de status e reconhecimento. Seus
passos e sua trajetória revelam-nos até que ponto os códigos
culturais e as classificações sociais em Portugal no Antigo Regime
eram efetivos e ressignificados nas paragens ultramarinas.
No capítulo três, “Itamaracá: uma donataria entre as
Capitanias Reais do Norte”, Luciana de Carvalho Barbalho se
debruça sobre uma circunscrição singular. Não a discute apenas
como entidade geográfica ou político-administrativa, mas se
enfronha em desvendar relações sociais transfronteiriças que
constituíram uma capitania donatarial profundamente articulada
às empresas de conquista e ao proveito açucareiro das matas do
Nordeste entre os séculos XVI e XVIII. Uma das contribuições
de seu trabalho consiste em analisar as complexas relações
que ensejaram a permanência histórica desta donataria. Doada
em 1534 a Pero Lopes de Sousa, irmão de Martim Afonso de
Sousa, Itamaracá prosperou a partir e a despeito de conflitos
jurisdicionais engendrados tanto no plano local, quanto no
Reino. Sua manutenção até os Setecentos foi tópica central de
querelas envolvendo as elites locais, casas nobres de Portugal e a
xiv Prefácio

Coroa. Com donatários ausentes, mas nunca displicentes quando


se tratava de manter seu senhorio no ultramar, esta capitania
assumiu contornos próprios em sua formação, tema ainda pouco
estudado por nós, historiadores.
Na confluência entre a história política, social e militar, no
quarto capítulo, “Entre a defesa e a ordem: os corpos militares
na Capitania da Paraíba (1750-1777)”, Bruno Cezar Santos da
Silva apresenta indícios da composição dos corpos militares na
Paraíba, articulados a projetos de reforma militar na Europa e, em
Portugal, à política dita “reformista e ilustrada” do marquês de
Pombal. Apesar de seu caráter muitas vezes casuístico e pontual,
é notório que Carvalho e Mello dedicara atenção especial ao tema
da defesa da colônia. No entanto, com parcos recursos e um
império gigantesco, como operacionalizar estratégias de longo
alcance que garantissem a proteção de possessões fundamentais
à própria existência da monarquia portuguesa? É precisamente
neste palco de impasses e dilemas que Bruno Silva constrói seu
argumento sobre a extensão das reformas militares para a capitania
da Paraíba, assim como da participação das elites e dos poderes
locais, agentes e agências indispensáveis a quaisquer planos de
defesa orquestrados pela Coroa.
Encerrando esta primeira secção de Fazer e Refazer o Império,
o artigo de Ariadne Ketini Costa, “Elites luso-maranhenses nos
quadros do Império Português: mobilidade social e redes de
sociabilidade no Maranhão do século XVIII”, discute a formação
das elites luso-maranhenses a partir da análise das estratégias de
ascensão social efetivada por meio de recompensas aos serviços
prestados à Coroa portuguesa. Ao se indagar em que medida
o projeto de colonização do Estado do Grão-Pará e Maranhão
definiu seu quadro sócio-econômico, a autora persegue a
elaboração de uma identidade social de suas elites, levando em
consideração quer sua origem sócio-profissional, quer as
M aria Fernanda Bicalho xv

múltiplas esferas de sociabilidade nas quais se inseriram seus mais


destacados representantes.
Em “Negócios que enobrecem: história e historiografia da
mercancia no Império Português (sécs 17 e 18)”, capítulo de
abertura da segunda parte do livro, José Inaldo Chaves Júnior
e Ariadne Ketini Costa assinam conjuntamente um trabalho de
revisão historiográfica que procura escrutinar a relação ambígua
mantida pela cultura política de Antigo Regime com as práticas
mercantis e seus mais notáveis agentes – os homens de grosso trato.
Seguem os passos de Charles Boxer que, em seu clássico O Império
marítimo português4, também pontuara essa relação diacrônica de
rejeição, acolhimento e dependência em Portugal e seus domínios
ultramarinos. Porém, os autores vão além, revisitando uma
historiografia de ponta – como os trabalhos de Simona Cerrutti,
Giovanni Levi, Fredrick Barth, para a Europa, os de Jorge Pedreira,
Joaquim Romero Magalhães, Nuno Monteiro, Fernanda Olival,
para Portugal, e os de João Fragoso, Antônio Carlos Jucá, Carlos
Gabriel Guimarães, Maria de Fátima S. Gouvêa, entre muitos
outros, para o Brasil, o que confere a este ensaio historiográfico
grande maturidade. Por outro lado, enunciam temas que serão
esmiuçados na segunda parte do livro, “Negócios e negociantes:
mobilidade social e estratégias de poder”, como o envolvimento
de elites locais, de funcionários régios e da aristocracia portuguesa
no comércio atlântico, assim como o interesse da Coroa na defesa
de tratos e contratos imperiais, as formas de acumulação de
capital nas sociedades de Antigo Regime e as diferentes estratégias
encetadas por negociantes tendo em vista a construção de
carreiras ascendentes num tempo em que a riqueza não possuía
valor absoluto, embora se articulasse a estratégias de projeção
social e à conquista de status.

4 BOXER, C. R. O Império Marítimo Português, 1415-1825. São Paulo: Companhia das


Letras, 2000.
xvi Prefácio

Em “A projeção social dos homens de negócio com a vinda


da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro em 1808: o caso do
Conselheiro e Comendador da Ordem de Cristo Elias Antônio
Lopes”, Nilza Licia Xavier Silveira Braga percorre a trajetória
deste português que, possuidor de grande fortuna advinda da
arrematação de contratos e da realização de negócios na praça
mercantil do Rio de Janeiro, doou sua propriedade da Quinta da
Boa Vista para residência da família real. As mercês recebidas em
retribuição a este e a outros serviços prestados a D. João – entre
elas a nomeação de Deputado da Real Junta de Comércio – são
o ponto de partida para a autora analisar as mudanças ensejadas
pela permanência da Corte na cidade. Seu trabalho lança luzes
sobre as trajetórias ascendentes de homens de negócio numa
conjuntura em que a permanência dos valores aristocráticos de
Antigo Regime e a necessidade de sobrevivência da monarquia
lusa nos trópicos vieram ao encontro das aspirações nobilitantes
daqueles que financiaram os projetos da Coroa.
No capítulo 8, “Fronteiras insubmissas: circuitos mercantis,
elites e territorialidades nas Capitanias do Norte do Estado do
Brasil, c. 1791-1797”, José Inaldo Chaves Júnior desmitifica os
argumentos de uma velha historiografia que, ao antever o papel
da Paraíba na construção de uma precoce identidade nacional,
reificou o veio autonomista de sua elite numa oposição inconciliável
aos interesses de seus pares em Pernambuco. Ao desvendar nas
práticas sociais dos principais da região de Mamanguape uma
trama que ultrapassava a arbitrária divisão político-administrativa
do Estado do Brasil, o autor discute as relações mantidas entre
os agentes e as agências das capitanias do Norte, uma vez
que a conquista e a ocupação da Paraíba esteve intimamente
vinculada à reprodução social da açucarocracia e do comércio
pernambucanos. Analisa com acuidade os interesses e negócios
que definiram outras territorialidades, construídas a partir de
M aria Fernanda Bicalho xvii

vínculos sociais, econômicos e políticos que ultrapassaram as


fronteiras entre ambas as capitanias, a despeito das instâncias de
governadores e agentes administrativos que viam seus poderes
e jurisdições subtraídos. Como em outras paragens do império
português, também ali a cultura política e as práticas de Antigo
Regime moldaram não só as relações econômicas, mas também
as interações sociais entre elites açucareiras e grupos mercantis,
assumindo, não obstante, contornos próprios e específicos.
No nono capítulo, “A ‘gente nobre’ do Maranhão (século
XVII)”, Arlyndiane dos Anjos Santos traz efetiva contribuição
ao debate historiográfico acerca das elites e dos poderes locais
na América Portuguesa, notadamente dos usos e das práticas
sociais em torno da categoria nobreza da terra, uma das grandes
controvérsias da atual historiografia luso-brasileira. Se, por
um lado, é preciso tomar cuidados com o uso deste conceito,
tendo em vista as distinções entre a nobreza fidalga do Reino
e os homens principais da América, é certo, por outro, que não
podemos rejeitar as ressignificações tecidas por estes últimos em
razão de fatores como a precedência na conquista, a defesa do
território e a ocupação de cargos na res publica. Reconhecidos ou
não pelas classificações emanadas do centro, filhos e netos de
conquistadores alardeavam seus feitos para compor discursos
e práticas próprios da nobreza. Por meio do levantamento da
extraordinária documentação do Senado da Câmara de São Luís,
sobretudo as riquíssimas listas de cidadãos no século XVII, como
Lista da Companhia da Nobreza – um compêndio de 92 nomes dos
“principais da terra”, elaborada especialmente para justificar e
assegurar, além de status, sua primazia no governo e nos negócios
–, cotejando-a com outros tipos de fontes, como correspondência
trocada com a Coroa, Arlyndiane tece uma acurada análise dos
interesses e das estratégias das elites maranhenses, mormente em
relação ao tráfico de escravos e ao comércio com outras paragens
xviii Prefácio

da América lusa.
Abrindo a terceira parte do livro, “História e Modernidade:
algumas notas sobre história indígena e os discursos jesuíticos da
América portuguesa”, o texto de Hadassa Melo, “A retórica da
edificação: o exemplo na ‘História’ de Antônio Vieira” detém-se
em um dos muitos discursos proclamados por Vieira no púlpito,
no sentido de discutir uma concepção de história que possuía
no exemplo um dos elementos norteadores do presente e do
futuro. A visão de história presente nas regras da escrita jesuítica,
calcadas na repetição e naquilo que poderia e deveria ser imitado,
era instrumentalizada pela Companhia de Jesus como veículo de
edificação dos ouvintes e dos próprios missionários. A autora,
partindo do texto de Vieira, se interroga sobre as relações entre
sua narrativa e o ideário oriundo de um sistema de organização
corporativa derivado da Segunda Escolástica.
O livro se encerra com o capítulo “‘O gênio, o engenho e
os costumes dos índios do Maranhão’: representações jesuíticas
sobre os indígenas na crónica do padre Domingos de Araújo,
1720”, de Roberta Lobão Carvalho. A Crônica da Companhia de
Jesus da Missão do Maranhão 1720 é analisada pela autora como
um inventário de notícias e informações sobre o modo de vida
dos primitivos habitantes do Novo Mundo, de grande circulação
na Europa. Guiada por padrões retóricos e ditada pela Ars
Dictamines medieval e moderna, sua narrativa – como tantas outras
dos escritos jesuíticos – ao invés de seguir tão somente uma
cronologia baseada na experiência vivida, incorporava episódios
bíblicos, construindo uma percepção linear do tempo, marcado
pela Criação e pela espera da Redenção.
Fazer e Refazer o Império é um convite à reflexão sobre temas atuais
e caros à nossa historiografía. Ao focar diversas territorialidades e
centralidades alternativas, seus diferentes capítulos nos guiam por
concepções e práticas de Antigo Regime, demonstrando que estas
M aria Fernanda Bicalho xix

não só sobreviveram, mas foram constantemente ressiginificadas


nos trópicos, criando uma nova gramática e um amplo inventário
de semelhanças e de singularidades.

Rio de Janeiro, dezembro de 2011


Maria Fernanda Bicalho
Parte I
Governabilidade, Elites e Poderes locais
Capítulo I

La construcción política de la
A mazonía portuguesa en la
Monarquía Hispánica (1612-1621)1
Alírio Cardoso2

Maranhão: la entidad geográfica

“El Maranhão no tenía nombre, ni siquiera se sabía lo que era”.


De manera sencilla, esta es la imagen hecha por el padre Jacinto
de Carvalho, de la Compañía de Jesús, sobre el conocimiento del
extremo norte de la América Portuguesa. (Carvalho, 1995: 24). De
hecho, lo que se ha llamado Maranhão no era algo simple de definir
antes del año de 1621, momento en que fue creado el estado de

1 Uma versão modificada deste texto foi publicada com o título: “Cerca de
Castilla, lejos de Brasil. La construcción política de la Amazonía brasileña
(Maranhão) bajo la Unión Ibérica (1600-1621)”. In: DALLA CORTE,
Gabriela; GARCIA JORDÁN, Pilar; LAVIÑA, Javier; MORAGAS,
Natàlia; PIQUERAS, Ricard; RUIZ-PEINADO, José Luis; TOUS,
Meritxell. (Orgs.). Sociedades diversas, sociedades en cambio. América
Latina en perspectiva histórica. Barcelona: Universitat de Barcelona, 2011,
v. 1, pp. 165-176. Agradeço aos professores Dr. José Manuel Santos
Pérez (Universidad de Salamanca) e Dr. José Luis Ruiz-Peinado Alonso
(Universitat de Barcelona). Agradeço também a Ariadne Ketini Costa pelas
sugestões.
2 Professor da Universidade Federal do Maranhão. Doutorando em História
da América pela Universidad de Salamanca (Espanha). Bolsista CAPES-
Brasil.
2 L a construcción política de la A mazonía portuguesa...

“Maranhão e Grão-Pará”, entidad separada de la jurisdicción del


Brasil. Antes, Maranhão era una suerte de entidad geográfica, algo
que transitaba entre formulaciones cartográficas y el imaginario de
los navegantes del periodo. La palabra Maranhão es, así, más antigua
que su estrecha construcción política. En verdad, hablamos de
un inmenso territorio que empieza a noroeste de la capitanía del
Ceará y sigue hasta la desconocida frontera con el Virreinato del
Perú. De acuerdo con la demarcación propuesta por el portugués
Simão Estácio da Silveira (1624), habría incluso un “padrón de
mármol”, construido por Carlos V, indicando donde terminarían
las tierras portuguesas y empezarían las castellanas (Estacio da
Silveira, 1974: 33).
Sin embargo, la Amazonía Brasileña del seiscientos siempre
fue un territorio impreciso. Hoy en día, el antiguo Maranhão sería
increíblemente grande, correspondiendo a los estados actuales
de Maranhão, Amazonas, Pará, Amapá, Rondônia, Roraima,
Acre, Tocantins, y a veces Piauí y Ceará. No es difícil encontrar
en planisferios, desde finales del siglo XVI, expresiones como:
Maraon, Maragnon, Maragnone o Maragnan. Estas palabras fueron
utilizadas a veces como oposición a “Terra de Santa Cruz” o
“Brasil”. Por otra parte, no es algo raro que esas tierras sean
identificadas simplemente como el “País de las Amazonas”,
repitiendo las viejas historias de los primeros navegantes españoles
(Adónias, 1993: 70-114).
A comienzos del siglo XVI, los hispanos fueron los primeros
a navegar sistemáticamente por aguas de la Amazonía colonial en
expediciones como las de Diego de Lepe (1500), Gonzalo Pizarro
(1541) y la famosa jornada de Francisco de Orellana (1541-
1542). También los españoles fueron los primeros a nombrar la
tierra y ríos, indicando conexiones intra-regionales y oceánicas
reales, pero también imaginarias. Hay, así, una fascinante
historia de los intentos de toma de conciencia de la región por
A lírio Cardoso 3

autoridades, eruditos y navegantes españoles, pero también hay


una multiplicidad de relatos sobre la navegación “extranjera” (ni
castellana, ni portuguesa), hecha por franceses, ingleses, irlandeses,
y holandeses (Gil Nunilla, 1952: 73-99; Cardoso, 2011: 317-338).
Debido a la presencia extranjera, las autoridades portuguesas
ya hubieran pensado en la posibilidad de ocupación efectiva
de este nuevo mundo, solo realizada en 1615 con la toma de la
ciudad de São Luis a los franceses. A partir de 1621 se vulgarizaba
la expresión Maranhão e Grão-Pará, que en el siglo XVIII cambiará
para Grão-Pará e Maranhão, debido a una mayor importancia
atribuida a la capitanía del Pará para la región.
Fechas importantes de esta nueva conquista son la ocupación
portuguesa de la ciudad de São Luis (1615) – capital de la capitanía
real del Maranhão – y la fundación de la ciudad de Belém (1616)
- capital de la capitanía real del Grão-Pará. Además, existían
capitanías particulares, constituidas por donación real. Las más
importantes eran Tapuitapera, Cametá, Caeté, Isla de Joannes
y Cabo do Norte (actual estado del Amapá), y fueron siempre
un problema debido a su presunta independencia, llegando a
producir cantidades considerables de tabaco, azúcar y cacao
(Chambouleyron, 2006). Rellenarían el espacio institucional: las
cámaras, de São Luis y Belém; las órdenes religiosas: franciscanos
(capuchos de Santo Antonio), jesuitas, carmelitas, después los
españoles de Nuestra Señora de la Merced (solo en 1639), y más
una multiplicidad de cargos militares menores.
En 1637, por ejemplo, la ciudad de São Luis ya tendría 250
habitantes portugueses y más 60 soldados. Además, existió
en el siglo XVII un gran número de mestizos y indígenas que
sencillamente huyen de los registros oficiales y del relato de
muchos cronistas. Desde la década de 1620, la corona de Castilla
incentiva la migración, sobre todo de familias de las islas de los
Azores, pero también ha llegado una cantidad de desterrados
4 L a construcción política de la A mazonía portuguesa...

cuya existencia llamó poco la atención de la historiografía local


(Chambouleyron, 2005: 20-36; Rodrigues & Madeira, 2003: 247-
263; Coates, 1998: 145-146).
El objetivo de este artículo es reflexionar sobre el periodo
anterior a la formación del estado de Maranhão y Grão-
Pará. Discutir los motivos y presupuestos que hicieron con
que portugueses, bajo el rey Felipe III (1598-1621), no solo
conquistasen la región sino que propusieran la separación política
de este nuevo rincón, creando al final otro estado distinto del
Brasil. La conquista de la Amazonía luso-brasileña, en 1615,
representaba una gran migración de hombres, armas y un cuadro
burocrático/militar/religioso que se desplazaba hacia el norte
en nombre y honor del “rey de Portugal, Dom Phelippe”. Esa
dignidad real ocurre en todos los relatos, cartas y crónicas sobre
la jornada del Maranhão, a poco más de tres décadas del fin de la
Unión Dinástica.

Extranjeros, invasores y piratas

La historiografía brasileña siempre ha enfatizado que la conquista


portuguesa del Maranhão fue una reacción automática de la
Corona Católica ante las incursiones extranjeras. Y de hecho, el
miedo de perder esas tierras y aguas para naciones enemigas va a
ser una constante hasta el siglo XIX, cuando aún se desconocía
algunos de sus límites territoriales (Ruiz-Peinado, 2008: 115-
131). Pero, poco ha sido dicho acerca del contexto geopolítico de
comienzos del siglo XVII. La historia de la primera Amazonía no
parece ser ni local, ni tampoco nacional, sino oceánica y global.
Así, los primeros relatos de portugueses y castellanos empezaban
a definir la región como una zona estratégica para el comercio
oceánico en la frontera de las dos partes del imperio Hispano-
Luso (Cardoso & Chambouleyron, 2003: 33-62). Eses primeros
A lírio Cardoso 5

relatos son importantes en la medida que comprendían nuevas


posibilidades económicas a partir de las oportunidades abiertas
por la Unión Ibérica.
En relatos como del jesuita portugués Luis Figueira la posibilidad
de la pérdida del Maranhão a manos de naciones extranjeras ya
era un tema bien constituido, en sus cartas y relaciones para la
Corte y para sus superiores de la Compañía de Jesús (Bettendorf,
1990: 66-67). Para este jesuita la invasión francesa u holandesa
era tan solo una cuestión de tiempo. Entre las muchas cartas y
memoriales escritos por Luis Figueira, a lo largo de la primera
mitad del siglo XVII, tal vez el más significativo sobre el tema sea
la Relação da Missão do Maranhão, del año de 1609 (Figueira, 1940:
108). La Relação fue producida, por otra parte, sin que el propio
Luis Figueira hubiera conocido de cerca la región. Es por lo tanto,
un relato del porvenir jesuítico en la Amazonía, tal como el padre
reconoce en el texto. Estos testigos potencializaban el clima de
miedo ante la posibilidad de pérdida de toda esta región para
naciones extranjeras. Figueira, por ejemplo, seguía conduciendo
el argumento hacia un detalle que sería más tarde crucial en
todo el proceso de reconocimiento político del Maranhão: que
por su localización geográfica y características la región debería
ganar, con el debido tiempo, una condición política distinta de la
capitanía de Pernambuco. En la Relação Luis Figueira afirma que
el Maranhão no podrá desarrollar comercio con Brasil, porque
“de lá não se navega para cá [Brasil] senão em tanto tempo que
é mais fácil ir às Ilhas [Caribe] ou ao reino e de la vir” (Figueira,
1940: 44).
Figueira sabía que, debido a la gran barrera de vientos del
anticiclón de Atlántico Sur (Mauro, 1989: 39-55), las naos tenían
enormes dificultades en establecer comercio y desarrollar un
sistema de protección hacia el Maranhão. Quedaba claro que con
el tiempo el Maranhão debería caminar por su cuenta. Años más
6 L a construcción política de la A mazonía portuguesa...

tarde, dos jesuitas sentirían en la piel tales dificultades. Fueron


los padres que acompañaron el capitán portugués Alexandre de
Moura en la jornada de conquista de la ciudad de São Luis (en la
época ocupada por franceses). Manoel Gomes y Diogo Nunes
tenían órdenes para regresar a Pernambuco. Durante el viaje, tras
recorrer parte del litoral, la embarcación que les transportaba había
sido sorprendida por un vendaval, llegando al cabo de treinta días
a las Antillas castellanas y dados por muertos en Pernambuco
(Studart, 1904: 284-5).
Hasta la década de 1620 los franceses eran considerados las
grandes amenazas al dominio hispano-luso en la región. De
hecho, establecieron una pequeña ocupación en la ciudad de
São Luis entre 1612 y 1615. La presencia de los vasallos del rey
Louis XIII (1610-1643) fue especialmente conocida en Europa
tras las famosas crónicas de los capuchinos Claude D’Abbeville
e Yves D’Evreux, en 1614 (D’Abbeville, 1975; D’evreux, 1874).
Aunque sin muchos hombres, armas y embarcaciones la presencia
francesa llamo la atención de la corona española que empezaba
a reflexionar sobre la posición de frontera del Maranhão en el
contexto suramericano. Pero, en este momento llegaban tanto a
Pernambuco cuanto a Bahía informaciones aún confusas sobre el
establecimiento extranjero.
Nos parece que los cronistas del siglo XVIII y XIX han
exagerado el carácter bélico y bien organizado de la toma de la
ciudad de São Luis. Varios relatos de la jornada del Maranhão
indican que la misma no fue un conflicto tan grandioso y lleno
de violentas peleas como se suele decir. El propio regimiento
militar de Gaspar de Sousa, gobernador de Brasil, estipulaba una
indemnización a los piratas franceses, en función de los presuntos
gastos que ellos hicieron en tierras portuguesas. En el relatório
enviado al rey Felipe, el capitán Alexandre de Moura lamentaba
justamente la idea de “pagar a corsarios o que eles mal tinham
A lírio Cardoso 7

feito em suas terras [las del rey] e a má posse e injusto título com
que possuíam, achando com forças bastantes para com brevidade
os poder sujeitar” (ABNRJ, II-32: 18-21). En sus escritos, el
capitán parece estar claramente decepcionado con el desarrollo
poco bélico de la expulsión de los franceses de la ciudad de São
Luis en 1615.
De hecho, hasta la expedición del piloto Martim Soares
Moreno – el mismo que había llegado a las Antillas, desde el
norte del estado de Brasil - solo se conocía la presencia francesa
por relatos de missioneros, como los del padre Luis Figueira. Es
muy significativo que Yves D’Evreux, uno de los cronistas de la
presencia francesa en la ciudad de São Luis, haya sido censurado
en Francia en 1615 (Opermeier, 2004: 33-50). Por todo eso, en una
consulta del Consejo de Hacienda, el rey Felipe III debería con la
máxima urgencia escribir al embajador para que “procure entender
em segredo como se toma em França o sucesso do Maranhão, se
trata de enviar allí socorro” (ABNRJ, 1904: 294). Sin embargo, la
corona sabía que los franceses eran una de las muchas amenazas
que navegaban por la región. Uno de los primeros mapas de
esta parte del mundo, hecho en 1615, se nos presenta un cuadro
dramático donde los ríos cercanos a las Guyanas estarían llenos de
centenas de holandeses, llamados de “anabatistas confederados”
y ya ocupando largos áreas pertenecientes a la corona Ibérica
(ABNRJ, 1904: 339-343).

Conocer, conquistar y convencer

La conquista del Maranhão debe ser entendida, en su conjunto,


como parte de un proyecto imperial hispano-luso de control y
valoración de zonas Atlánticas (Cardoso, 2011: 317-338). En el
caso portugués hubo una clara reorientación de interés hacia
el Atlántico Sur, experimentada con más vigor en los tiempos
8 L a construcción política de la A mazonía portuguesa...

de la Unión Ibérica. El proyecto imperial, sin embargo, no


era incompatible con las intervenciones particulares y hasta
improvisadas de los múltiplos sectores de la administración
portuguesa en el estado de Brasil. De hecho, la armada “milagrosa”
que salió desde Recife en 23 de agosto de 1614, bajo el mando
del “sargento-mor” Diogo de Campos Moreno, iba formada por
hombres que tenían rivalidades, acuerdos, alianzas políticas o
proyectos distintos sobre lo que debería ser el Maranhão.
La toma de la ciudad de São Luis fue hecha por militares,
autoridades, indígenas, misioneros y hombres pobres venidos
de Pernambuco con la orden del gobernador de Brasil, Gaspar
de Sousa, que a su vez provenían del Rey Felipe III. Fueron
ocho embarcaciones de pequeño y medio porte, cerca de 300
soldados lusos (Berredo, 1988: 71-72). El numero de indígenas
es desconocido, siendo común en este tipo de jornada una
cantidad superior en relación a los portugueses. Esos nativos
fueron llevados desde Pernambuco, Ceará y Rio Grande do
Norte y supuestamente tendrían parientes suyos en la región del
Maranhão. Sin embargo, esa imagen de supuesta organización, a
menudo encontrada en los cronistas portugueses del siglo XVII
y XVIII, acaba por informar poco sobre los problemas internos
de la jornada. Los cronistas hablan de una organización que, en
realidad había sido vacilante, y de una seguridad inexistente.
Los portugueses sabían muy poco sobre el camino a seguir.
A pesar de los avisos de Martim Soares, el militar más preparado
presente en la jornada, los lusos hicieron la peor parte de la
ruta por mar, enfrentando los vientos contrarios de los alisios
de la costa atlántica (Jean-Vanney, 1998: 75-97). También habían
calculado mal el mes de salida del puerto de Recife, llegando al
Maranhão durante el régimen de lluvias, ya fuerte entre los meses
de diciembre y enero. Además, toda la jornada seria marcada por
disputas internas entre dos grupos rivales. Todas competencias
A lírio Cardoso 9

traídas del viejo Brasil. Este es el primero escenario creado por


los portugueses en la región. La conquista del Maranhão fue una
forma de mantener esos territorios bajo el control efectivo de
Castilla, pero también ha sido una acción de transferencia de
poderes políticos, de honores militares, de cargos de confianza,
de oportunidades económicas, cosas cada vez más difíciles de
obtener en el estado del Brasil.
Como hemos visto, el Maranhão era definido como una
“frontera”: área desconocida o aun salvaje, lejos del dominio
efectivo europeo. De hecho, poco se sabía acerca de su geografía,
de las rutas hidrográficas, del régimen del agua, del régimen de
los vientos. Sérgio Buarque de Holanda, a pesar de admitir que en
los ríos del antiguo Maranhão las condiciones de navegabilidad
eran mejores que las encontradas en otras partes de la América
portuguesa, no deja de destacar que, en general, para los
portugueses la vía fluvial aparecía como un estorbo, comparable
a las florestas espesas.
En las incursiones al interior del Brasil, pocas veces los
luso-brasileños han utilizado grandes vías fluviales (Buarque de
Holanda, 1976: 24-25). Irving Leonard en su estudio sobre las
grandes jornadas por la América, admitía que en las rutas más
largas, “casi nunca había vías de agua que facilitaran el avance de
los viajeros”, por lo que: “las corrientes eran obstáculos en lugar
de ser medios de transporte” (Leonard: 1992, p. 17). Esta va a ser
una gran diferencia entre Brasil y Maranhão, ya que en este último
los ríos son casi el único medio de transporte para cumplir largos
caminos.
Durante toda la primera mitad del siglo XVII, recorrer los
caminos fluviales del Maranhão era una aventura que reclamara
siempre muchos hombres – sobre todo guías indígenas, llamados
línguas, y un número considerable de pequeñas embarcaciones,
también de origen indígena, las canoas, únicas que podrían pasar
10 L a construcción política de la A mazonía portuguesa...

por algunos estrechos producidos por el movimiento de la marea.


El propio capitán Alexandre de Moura que, en 1615, coordinaba
los esfuerzos de conquista, estaba de acuerdo de que los maestros,
marineros y pilotos que vinieron hacer la conquista “han dicho
que no tenían ningún conocimiento de ella, ni sabían cómo
podrían navegar en ella [la conquista]” (ABNRJ, 1904: 238-239).
Otro tema importante de estos primeros testigos ha sido
sobre la proximidad entre Maranhão y las Indias. A comienzos
del siglo XVII, el cosmógrafo D. Juan de Melo, basandose en
ciertas cartas de “marear” y en “noticias que daí se deducen”,
parecía convencido que “este Rio Marañón es un brazo del Rio
de la Plata, como también lo es el Rio de las amazonas y estos
dos ríos dividen y hacen como isla el Estado del Brasil” (ABNRJ,
1904: 273).
La reproducción cartográfica de Suramérica cortada por un
gran rio, dejando navegable el interior del continente, aparece en
ciertos planisferios entre la mitad del siglo XVI hasta las últimas
décadas del siglo XVII. Tratábase del “mito de la isla Brasil”, la idea,
popular entre cartógrafos portugueses y castellanos, que admitía
la existencia de una conexión posible entre el Amazonas y el Rio
de la Plata. La popularidad de esas ideas refleja bien la búsqueda
por una opción fluvial que huyese de los vientos contrarios de
la costa atlántica, el principal problema de la conexión Brasil-
Maranhão (Cortesão, 1957: 339-363; Horch, 1985: 225-238).
Exagerados o no, las noticias que llegan a la Península Ibérica,
daban cuenta de la presencia de un número considerable de
extranjeros, franceses, holandeses, ingleses e irlandeses. Hasta el
improbable Gran ducado de Toscana parecía tener interés en las
nuevas tierras. Los proyectos italianos para establecer comercio
con la costa brasileña constan de las cartas del Gran Duque de
Toscana, Fernando I (1587-1609), bien como los relatos acerca
de su navegante oficial, el ingles Robert Thornton (Zeron &
A lírio Cardoso 11

Camenietzki, s/d: 61-84). En razón del presunto interés extranjero,


aumentaba proporcionalmente el esfuerzo de reconocimiento
cartográfico de rutas y canales fluviales. También la preocupación
acerca de los potenciales económicos de la región ha ganado un
papel importante en cartas y crónicas del período.
A pesar del relativo desconocimiento, muchos sabían que
el Maranhão era una importante frontera entre Brasil y el
Virreinato del Perú. El miedo de perder una nueva y promisora
ruta económica está bien reflejado en la Relação do que ha no grande
Rio das Amazonas novamente descoberto (1616), hecha por el capitán
André Pereira sobre la Conquista del Maranhão. El motivo mayor
de las preocupaciones, segundo este capitán, era el “enemigo
holandés” que empezaba a producir azúcar y: “carregavam alguns
navios com o mais que a terra da de si” (ABAPP, s/d: 5-8). Otro
capitán, Manoel de Sousa de Eça, tenía también sus quejas.
Segundo escribe en 1615: “Los extranjeros que allí van cargan
tabaco, grano, o trigo, buenas maderas, mucha tierra en pipas”,
acrecentando después que ya lo navegaron, y “podrá el enemigo
irlo conquistando y poblando” (ABNRJ, 1904: 278). Por todo eso,
algunos de los consejeros de Portugal ya conocían la posición
estratégica de la región, una materia “muí grave e que pede que
não dilate o remédio” por ser aquellas tierras el límite que “divide
os Estados do Brasil e do Peru” (ABNRJ, 1904: 294). El Perú, tal
como informa Pierre Chaunu, se confundía entre los europeos,
tal su indefinición, con las propias Indias de Castilla (Chaunu,
1980: 175). Perú tenía una costosa conexión entre el Pacífico y
el Atlántico (desde Lima hasta los puertos de Panamá). La Idea
de que extranjeros pudieran constituir un comercio inter-regional
bien reglado entre Maranhão y Perú era una posibilidad verosímil,
a menos para los navegantes del periodo.
Cuando, en 1626, el capitán portugués Simão Estácio da
Silveira presento su teoría de que era posible reducir el tiempo
12 L a construcción política de la A mazonía portuguesa...

de viaje entre Perú y Sevilla – desde diez meses para solo cuatro
- ese capitán aún lamentaba los progresos que los extranjeros
habían hecho en las rutas maranhenses: “Las contrarias naciones
están peritas en pasar al mar del sul”, escribe en castellano. La
propuesta de Estácio da Silveira era substituir las antiguas escalas
en las Bahamas y Bermudas – peligrosas y lentas – donde los
navíos esperaban cerca de diez días para seguir viaje. Tal ruta sería
substituida con ventajas, segundo el capitán Estácio da Silveira, por
una vía a través de los ríos del Maranhão, para seguir naturalmente
el régimen del agua hacia el Atlántico (Saragoça, 2000: 257-8).
Antes, en 1624, el capitán Estacio da Silveira concluyo que por la
posición de los vientos, y la distancia hacia los puertos del Brasil,
el Maranhão seria una mejor escala para navíos que hacían la ruta
Angola y India (Estacio da Silveira, 1976: 38). En conclusión:
muchos de estos relatos atribuyen al Maranhão una orientación
oceánica y intra-regional (con relación a las Indias de Castilla),
pero para mejor desarrollar esta condición iba a ser necesario una
mayor autonomía política.
Sin embargo, el reconocimiento cartográfico y la ocupación
militar, aun improvisada, iba a ser constante. Para muchos de
los integrantes de la jornada, el primer paso sería la conquista, el
segundo paso sería convencer el rey de las supuestas ventajas de
construir allí una nueva unidad política para el imperio. Probar,
por lo tanto, que el Maranhão no podría estar integrado por
mucho tiempo políticamente al Brasil.

¿Ser Brasil o Maranhão?

Comentando la nueva Conquista hispano-lusa, Gaspar de Sousa,


gobernador general del Estado de Brasil, escribe: “o Maranhão é
um novo mundo que Deus foi servido mandar a V. Majestade”
(Studart, 1904: 124-130). Otras veces, el propio Gaspar de Sousa
A lírio Cardoso 13

realizo quejas sobre el poco interés, segundo su opinión, de la


Corona con el proyecto. En una carta suya enviada al rey Felipe
III, en 1614, lamentaba que no hubiera sido creada ninguna ley o
regimiento acerca del comercio con el Maranhão: “como se Vossa
Majestade ou não mandara fazer a conquista ou eu não tivera
escrito tantas vezes sobre ela”. Y decía más, que las “esperanzas de
riqueza” de las nuevas tierras ya era tema conocido por las naciones
extranjeras, donde no conquistar el Maranhão resultaría perder la
comunicación del Atlántico con el Perú (Studart, 1904: 102-3).
Exageradas o no, Gaspar de Sousa, hombre ya experimentado en
la administración portuguesa del Brasil, hizo un esfuerzo personal
en pro de la Conquista del Maranhão (Corrêa, 2011; Cardoso,
2002). A comienzos del siglo XVII el Maranhão representaba una
novedosa posibilidad para el acumulo de cargos, riquezas, poder,
pero también, honor y merced dentro del cuadro de la Unión
Ibérica (Marques, 2009). Estas esperanzas explican el empeño
personal de Gaspar de Sousa, pero también los gastos personales,
sin grande ayuda de la corona, de familias luso-brasileñas como
Castello Branco y Coelho de Carvalho que han empleado recursos
propios en la conquista. De hecho, los primeros conquistadores y
administradores del Maranhão son casi inevitablemente hombres
de la confianza de Gaspar de Sousa, incluso la primera “nobleza”
maranhense (Cardoso, 2002: 61-73).
Por su gran interés en las tierras del Maranhão, el gobernador
Gaspar de Sousa llego a cambiar temporalmente la capital del
Brasil, desde Bahia hacia Pernambuco. Este cambio, sin duda,
ofrecía al gobernador un mayor control sobre todas las acciones
relacionadas con la conquista. Segundo dice el propio Gaspar de
Sousa, sería imposible quedarse más tiempo en Bahia a causa de
su gran distancia en relación al blanco maranhense, “cessando
estes inconvenientes aqui em Pernambuco donde a Conquista fica
mais próxima e a navegação muito menos arriscada” (ABNRJ,
14 L a construcción política de la A mazonía portuguesa...

1904: 312)
A partir de las cartas de Gaspar de Souza, se puede recomponer
muchos de los problemas iníciales del proyecto de construcción
política del Maranhão dentro del cuadro filipino. Una parte muy
importante de este proyecto iba a ser la transferencia de parte
de la casa Albuquerque Coelho, una de las “mejores” familias
de Pernambuco, para rellenar el primer cuerpo burocrático de la
Amazonía brasileña.
En el caso del Maranhão, la posesión de este nuevo espacio
por los Albuquerque Coelho se halla simbolizada por la postura
de su más expresivo representante en suelo amazónico, el capitán
Jerônimo de Albuquerque. A partir de 1615, el capitán general
pasó a firmar en documentos oficiales como Jerônimo de
Albuquerque Maranhão (Cardoso, 2002). La idea ha sido incluso
copiada después por sus hijos y sobrinos. Así, Mathias, António y
Jerônimo de Albuquerque (hijo) pasaban a conectar el apellido a
sus respectivos nombres. El valor simbólico de ese cambio parece
decir mucho sobre las expectativas de esta nueva burocracia
ennoblecida del periodo filipino. Así, Jerónimo de Albuquerque
intentaba establecer una nueva geografía nobiliaria, asociando
su nombre a la administración y ejercicio del poder en la nueva
frontera.
Para Gaspar de Sousa, la gran ventaja en la tesis de la separación
del Brasil en dos estados distintos era de orden financiera. El
gobernador del Brasil tenía una preocupación constante en
cuanto al volumen de gastos de la hacienda en la sustentación de
nuevas capitanías. El gran problema de la creación de las nuevas
unidades del imperio estaba justo en los gastos concernientes a
su protección y a la instalación del cuerpo burocrático, además
de la propia viabilidad física y material de la conquista: fuertes,
palacios, iglesias, etc.
En el comienzo, como se ha dicho, fueron iniciativas
A lírio Cardoso 15

particulares, con gran participación de recursos privados, las que


animaron la conquista del Maranhão. Por otra parte, Gaspar de
Sousa sabía que para el mantenimiento financiero de la región,
bien como para su protección contra las invasiones extranjeras,
el Maranhão tendría que ganar una participación en el comercio
atlántico. Este nuevo reto, segundo la comprensión de muchos en
la época, sería facilitado debido al contexto de la Unión Dinástica
y la condición de co-vasallidad entre brasileños y peruanos.

Maranhão y la Unión Ibérica

La condición de frontera del Maranhão seria eje de la


nueva economía. Así, muchas proposiciones, sobre todo de
representantes de las cámaras, pero también de representantes
directos del rey, además de religiosos, reconocen que una de
las opciones sería la participación en la distribución de la plata
peruana. La creación de la novedosa ruta comercial, aunque no
utilizada, Quito-Maranhão-Sevilla, o aún Maranhão-Perú-Asia-
Sevilla, ha sido una de las proposiciones más interesantes en la
documentación del periodo (Cardozo, 2007: 60-63). Como apunta
Luis Felipe de Alencastro, el comercio poco reglado de la parte
atlántico-portuguesa del imperio dejaba margen para iniciativas
que a veces parecían ajenas totalmente al control monárquico,
incluso con el posible trato bilateral entre América y África
(Alencastro, 2006: 342).
Durante los sesenta años de la Unión Ibérica se fortalecieron
procesos anteriores de las relaciones entre portugueses y
castellanos (Curto, 2011; Cardim, 2004: 117-156; Schaub, 2001;
Bouza Álvares, 1994: 83-103; Ventura, 1997). Uno de los aspectos
más relevantes fue el refuerzo de la integración comercial, a
ejemplo de lo que ocurrió entre Rio de Janeiro y Buenos Aires,
interdependientes de plata, granos y esclavos (Tejerina, 2004).
16 L a construcción política de la A mazonía portuguesa...

Pero también la nueva aristocracia portuguesa, bajo los Austrias,


paso por un largo proceso de “castellanización”, al igual que las
elites de Aragón (Joan-Pau, 1999: 58). En tierras lejanas como
Maranhão y Pará hubo una búsqueda constante por nuevas
posibilidades de riquezas, pero también de un nuevo estatus
nobiliario. Tal como la nobleza de las guerras de la Reconquista
esta élite aún intentaba ganar honores a partir de hechos militares-
económicos-administrativos.
Mucho antes de la política reformista del Conde-duque
Olivares, ya hubo un evidente impacto desde Madrid sobre la
burocracia ultramarina, sobre todo en la organización de sus
instrumentos económicos y políticos (Lucas Villanueva, 2001:
173-198). Así, el Maranhão, su conquista y incorporación al
imperio en comienzos del siglo XVII, debe ser comprendido a
partir de un cuadro mayor ofrecido por la política filipina. Para
Guida Marques, por ejemplo, la propia conquista del Maranhão
reforzó la imagen que tenía Felipe III entre los portugueses que
habitaban el norte del estado de Brasil, ocasión de distribución
de honores, cargos y privilegios (Marques, 2009: 317-319). De
hecho, ese proceso de adhesión a la dignidad de la casa Austria,
momento en que la nobleza portuguesa ha encontrado ventajas
en unirse a la monarquía más poderosa del mundo, estaba en la
propia génesis de la Unión Ibérica a partir de 1580 (Valladares,
2000.).
El mejor ejemplo de este nuevo cuadro nobiliario creado con
la Unión tal vez sea la toma de la ciudad de Salvador, en 1625,
cuando hubo una gran participación de la nobleza portuguesa,
luchando contra el “enemigo” al lado de castellanos y napolitanos,
pero con intereses distintos sobre que debía ser hecho con la
conquista en el post-bellum (Schwartz, 1991: 735-762). También
la conquista del Maranhão puede, a partir de más investigaciones,
aclarar mucho acerca de la tacita alianza entre la “nueva” nobleza
A lírio Cardoso 17

portuguesa, ya castellanizada, y la Monarquía Hispánica. Tal


como afirma John Elliot, el principio de la Aeque principaliter, la
conformidad institucional de la Unión Ibérica, era sobre todo
garantizada por ese fino equilibrio entre la memoria y dignidad
del rey y la manutención de las iniciativas individuales, leyes y
fueros de los vasallos (Elliot, 1992: 52-58). Un principio que, para
Manuel Hespanha, Olivares con su política reformista había roto,
potencializando las pequeñas oposiciones que de hecho siempre
hubo en Portugal, Nápoles y Cataluña, pero que hasta aquel
momento no representaban gran amenaza a soberanía de los
Austrias (Hespanha, 1993: 29-62). También, como hemos dicho, a
partir de las proposiciones de conexión entre Maranhão y Indias de
Castilla es posible reconocer algo que la historiografía portuguesa
del siglo XIX y comienzos del siglo XX casi ha ignorado, las
expectativas muy favorable de ciertas élites portuguesas sobre la
Unión con Castilla (Valladares, 1993: 151-172; Subrahmanyan,
2007: 1359-1385). Para los portugueses de la Amazonía, antes
de resultar vergonzosa, la Unión se ha convertido en una gran
ventaja desde el punto de vista económico y político.
De hecho, la conquista de la Amazonía brasileña representa
un buen ejemplo de la capacidad inventiva de la burocracia
lejana. Hombres que, sin herir los principios básicos de la
soberanía monárquica, fueron capaces de reinventar estilos de
gobierno, resolver problemas internos y desarrollar estrategias de
supervivencia a partir de los recursos y características locales. En
el caso maranhense estaba claro que, a falta de oro o plata, el
mejor recurso a ser aprovechado eran sus canales fluviales que,
segundo relatos portugueses y castellanos, podrían conectar las
dos partes del imperio.
En 1626 todo el proceso formal de construcción política del
“estado do Maranhão” había sido concluido con la llegada del
primero gobernador general, Francisco Coelho de Carvalho,
18 L a construcción política de la A mazonía portuguesa...

sobrino de Jerônimo de Albuquerque “Maranhão”. Durante su


gobierno, el gran tema no era más la invasión francesa, sino el
impacto mundial de la guerra con Holanda (Santos Pérez & Cabral
de Souza, 2006). Tal como se ha dicho muchas veces, portugueses
y españoles que compartían el mismo soberano pasan a compartir
también los mismos enemigos (Boxer, 1961. Israel, 1977). En
1637, el capitán Pedro Teixeira va realizar su increíble jornada
desde la ciudad de Belém hasta Quito, recorriendo todo el rio
Amazonas-Marañon para la sorpresa tanto de portugueses cuanto
de castellanos, probando para sus contemporáneos, casi un siglo
después de Francisco de Orellana, que el rio podría ser todo ello
navegable entre las fronteras de Portugal y España. .
Pero en diciembre de 1640 terminaba la Unión Ibérica. El
impacto de la nueva situación es bien representado en una carta
del gobernador de Maranhão, Bento Maciel Perente, informando
en 1641 al capitán Francisco Cordovil Camacho sobre la
aclamación de D. João IV. Mientras felicita el nuevo monarca,
añade que los nuevos papeles que se enviaren al rey tendrán que
seguir el mismo estilo, sin grandes cambios, tan solo “mudando
a substancia da terra e nomes das pessoas”. (Berredo, 1988, 192-
193) ¿Qué, al final, ha cambiado con D. João IV, más allá de los
apellidos en documentos oficiales? Esta cuestión es para tratarla
en otro artículo. Sabemos que, por otra parte, portugueses y
españoles muchas veces de manera clandestina siguen haciendo
sus negocios después de 1640, incluso en el Maranhão. Pero, en
finales del siglo XVII y comienzos del siglo XVIII hubo una
novedosa reaproximación entre Maranhão y el Estado del Brasil,
ahora mirando posibilidades nuevas en la importación de esclavos
africanos de Guiné y Angola (Chambouleyron, 2005: 264-275).
La vocación atlántica, forjada en el periodo filipino, seguía siendo
el reto luso-maranhense.
A lírio Cardoso 19

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Capítulo II

Um Familiar do Santo Ofício em


Colônia de Sacramento e suas redes
de relações: João da Costa Quintão
(séc. XVIII)1
Lucas Maximiliano Monteiro2

O Tribunal do Santo Ofício de Lisboa atuou formalmente até


1821. Neste período devassou não apenas as vidas dos moradores
da Península Ibérica, mas também de muitos colonos presentes em
seus domínios na América. Segundo o levantamento realizado por
Anita Novinsky, houve 1.076 prisioneiros deste tribunal residentes
no Brasil (Novinsky, 2002: 25).3 Devido a sua estrutura, se fazia
presente mesmo nos mais distantes territórios sob a administração
lusa. Desta forma, o Tribunal de Lisboa atuou também nas regiões
mais distantes do centro econômico colonial, valendo-se de seus
agentes inquisitoriais – Comissários e Familiares do Santo Ofício
– e do auxílio fundamental da estrutura eclesiástica, que vigiavam,

1 Este texto é um dos resultados presentes em minha dissertação de mestrado


intitulada “A Inquisição não está aqui? A Presença do Tribunal do Santo Ofício no
extremo sul da América Portuguesa (1680-1821)”.
2 **
Mestre em História pelo PPGH/UFRGS. Endereço eletrônico: lucas.montei-
ro@ufrgs.br
3 Estes dados, no entanto, necessitam ser relativizados. O levantamento realizado
pela autora não cita os processos dos moradores do extremo sul, ou seja, de
moradores de Colônia de Sacramento e Rio Grande de São Pedro. Sobre esses
casos ver (Monteiro, 2011: 159-177).
26 Um Familiar do Santo Ofício em Colônia de ...

denunciavam e encaminhavam qualquer desviante religioso.


Contudo, a Inquisição não servia apenas para controlar
os costumes. Era também uma alternativa de distinção social
procurada por aqueles desejosos em se promover socialmente
em uma sociedade de Antigo Regime. Para isso, ingressavam
nos quadros de agentes inquisitoriais. Dentre eles esteve João da
Costa Quintão. Este homem de negócio, residente em Colônia
de Sacramento, adquiriu sua Carta de Familiar em 1738 e, para
isto, valeu-se de sua extensa rede de relações que incluía militares,
comerciantes de grosso trato e o governador daquela Praça.
Os Familiares do Santo Ofício eram membros da sociedade
local que faziam parte do corpo de funcionários da Inquisição.
Eram agentes “leigos”, pois não necessitavam ser eclesiásticos
para se candidatarem ao posto, bastava que encaminhassem
uma petição solicitando a habilitação ao Santo Ofício. Essa
petição seria endereçada ao Conselho Geral e deveria conter
informações como naturalidade, local de residência e ocupação.
Da mesma forma, era necessário conter o nome dos pais e suas
naturalidades, exigência estendida também aos avós paternos e
maternos. Essas informações seriam utilizadas pelo Santo Ofício
para averiguar e atestar a sua “pureza de sangue”. Se o candidato
fosse casado, deveriam constar os mesmos dados de sua esposa,
obrigatoriedade dada também em caso de o habilitando possuir
filhos, legítimos ou não.
Para se candidatar a familiar, era necessário atender a uma
série de requisitos exigidos pelo Tribunal do Santo Ofício.
Essas prerrogativas ao cargo estão descritas nos Regimentos
Inquisitoriais datados de 1640 e 1774. No primeiro regimento
constam os seguintes pré-requisitos aos candidatos a familiares:
“serão pessoas de bom procedimento e de confiança e capacidade
reconhecida”. Além disso, deveriam possuir “fazenda de que
possam viver abastadamente” e, como os outros ministros e
Lucas Maximiliano Monteiro 27

funcionários da Inquisição, serem:


[...] naturais do reino, cristãos-velhos, de limpo sangue, sem raça
de mouro, judeu ou gente novamente convertida à nossa santa fé
e sem fama em contrário, que não tenham incorrido em alguma
infâmia pública de feito ou de direito, nem fossem presos ou
penitenciados pela Inquisição, nem sejam descendentes de
pessoas que tivessem algum dos defeitos sobreditos [...] saberão
ler e escrever e, se forem casados, terão a mesma limpeza suas
mulheres e filhos que por qualquer via tiverem.4

Há ainda um regimento destinado especificamente aos familiares.


Embora não possua referências de quando foi publicado, é possível
deduzir que seja anterior ao regimento de 1774. No Regimento dos
Familiares há praticamente o mesmo já exigido nos anteriores.5 Os
Familiares do Santo Ofício tinham por obrigação prender, realizar
denúncias ou encaminhar aquelas recebidas aos comissários e
acompanhar os presos e penitenciados até o Santo Ofício. Não
poderiam realizar qualquer ação sem que tivessem recebido ordem
direta do Tribunal.
Os Familiares do Santo Ofício eram o meio de comunicação entre
a sociedade local e o Tribunal lisboeta, principalmente nas ocasiões
de denúncias de heresias, que poderiam ser recolhidas pelos agentes
inquisitoriais, as quais seriam remetidas aos comissários. Em algumas
localidades que estavam muito longe da sede do bispado ou do acesso aos
comissários, eram os familiares os únicos representantes da Inquisição.
Esses agentes estavam tão enraizados e participavam tanto da vida
social que, mesmo nos lugares mais distantes da sede da Comarca,
todos os moradores sabiam da sua existência e, principalmente, a quem
procurar. Desta forma, constituíam-se na principal estratégia do Santo
Ofício para exercer controle sobre a população (Rodrigues, 2007: 69,72

4 Os Regimentos Inquisitoriais de 1640 e 1774 estão publicados in Franco &


Assunção, 2004: 229-481.
5 O Regimento dos Familiares foi publicado in Mott, 1990.
28 Um Familiar do Santo Ofício em Colônia de ...

e Calainho, 2006: 129).


No entanto, não apenas no espaço da repressão religiosa agiam os
Familiares. Estes agentes inquisitoriais se aproveitavam das investigações
de linhagem, feitas durante seus processos de habilitação, para atestar sua
ascendência cristã-velha com o objetivo de se destacarem socialmente,
tendo como base a sua limpeza de sangue. É necessário destacar que,
a partir do final do século XVII, a Inquisição atuou mais no espaço da
promoção social do que na repressão religiosa. Promoção essa vinculada,
sobretudo, aos estatutos de pureza de sangue entre cristãos-velhos e
cristãos-novos, os quais marcavam a distinção social no período. Os
tribunais inquisitoriais se especializaram nas investigações de linhagem
e, com isso, tornaram-se legitimadores da promoção social dentre os
de pureza de sangue atestada (Torres, 1994: 114-118). Assim, com as
investigações genealógicas e a concessão da carta de familiar, aquele que
a obtinha passava a gozar de prestígio social por ter confirmado a sua
origem pura de cristão-velho.
Dessa forma, compreende-se porque o título de Familiar do
Santo Ofício foi algo tão procurado entre aqueles não pertencentes à
sociedade eclesiástica. Ao obterem a Carta de Familiar, eles afastavam
qualquer dúvida que poderia existir quanto à pureza de sangue de sua
família, pois haviam passado por rigorosas investigações feitas pelos
Comissários e, assim, poderiam se distinguir socialmente frente aos
demais.
Para poderem obter as suas Cartas de Familiar, os candidatos tinham
que contar com os testemunhos prestados aos comissários, responsáveis
por estas diligências. É a partir destes testemunhos, e considerando
as pessoas que os fizeram, que se torna possível estabelecer as redes
de relações nas quais estes agentes inquisitoriais estavam inseridos.
Em Colônia de Sacramento houve 19 Familiares do Santo Ofício,
habilitados entre 1736 e 1776. Traçando um breve perfil destes agentes
inquisitoriais, se tem o seguinte: a maioria era composta por homem
de negócio e solteiros no momento da petição, além de oriundos de
Lucas Maximiliano Monteiro 29

Portugal.
Analisando as suas testemunhas presentes nos processos de
habilitação, percebe-se que estes familiares tinham contatos com as
mais destacadas pessoas residentes de Colônia de Sacramento. Seus
vínculos continham desde militares de altas patentes e longos anos de
serviços prestados à Coroa, até homens de negócio de grande destaque
no ramo comercial. Sendo assim, foi possível identificar que estes
Familiares do Santo Ofício estavam inseridos em redes de relações
distintas: a primeira centrada nos militares e a outra na dos homens de
negócio. Em ambas as redes, possuíam vínculos que foram acionados
no momento do processo de habilitação. Ou seja, estes familiares se
valeram de seus vínculos para obterem a Carta de Familiar. Se, por um
lado, ser agente inquisitorial lhes conferia prestígio social, por outro,
eles já ocupavam destacadas posições sociais dentre a população de
Colônia de Sacramento (Monteiro, 2011: 110-128).
João da Costa Quintão foi um dos Familiares do Santo Ofício
de Colônia de Sacramento. Seu exemplo é aqui utilizado porque sua
trajetória representa o perfil destes agentes inquisitoriais e a sua maneira
de se relacionar com a sociedade local até aqui demonstrada.
Natural da Freguesia de São Pedro do Almargem do Bispo, em
Portugal, João da Costa Quintão era filho de pais também portugueses.
Nesta região, atuou como pasteleiro junto de seu tio, que tinha o mesmo
nome do sobrinho. Foi este mesmo tio que o enviou para o Rio de
Janeiro por volta de 1718, conforme consta na informação extrajudicial
de seu Processo de Habilitação realizada em 1733:

Informando-me nas freguesias do Almargem do Bispo, de


Montelavar e na Vila de Cheleiros sobre o conteúdo nesta lista
com pessoas fidedignas e antigas, que abaixo vão declaradas,
achei que João da Costa Quintão é natural do casal dos Priores,
e batizado na Igreja de São Pedro, no lugar de Almargem do
Bispo, o qual aprendeu a pasteleiro com João da Costa Quintão,
seu tio, na Rua nova de Almada, abaixo da Igreja da Boa Hora,
em Lisboa; e que haverá 15 anos que o dito tio o aviou para o
Estado do Rio de Janeiro [...].
30 Um Familiar do Santo Ofício em Colônia de ...

Pela data referida, Quintão veio para o Brasil com cerca de 15 anos
de idade. Na Colônia, começou a atuar como comerciante. Em 1727,
ele era capitão de um navio que transportava cerca de mil patacas, de
propriedade de José Meira da Rocha e Damião Nunes de Brito, de
Colônia de Sacramento para o Rio de Janeiro. É possível que ele tenha
atuado como assistente destes homens de negócio neste período. O
vínculo com Damião Nunes de Brito foi importante em fase posterior
de sua trajetória (Lisanti, s/d: 295).
Devido ao seu ofício iniciado na América, deve ter começado a atuar
no comércio em Colônia de Sacramento, criando vínculos pessoais e
fazendo residência. Em 1730, ele aparece como padrinho de nascimento
de Teresa de Figueiredo, futura esposa do Familiar do Santo Ofício de
Sacramento Simão da Silva Guimarães.6 Isso pode apontar que João da
Costa Quintão deve ter acumulado capital mercantil que o distinguisse
de alguma forma na sociedade local, uma vez que o compadrio era
utilizado por aqueles detentores de cabedal elevado.7 Tanto é que no
mesmo ano, conhecendo a possibilidade de distinção social que poderia
conseguir e percebendo que tinha cabedal suficiente, ingressou com a
petição ao Conselho da Inquisição, solicitando a Carta de Familiar.
João da Costa Quintão se declarou como solteiro, Almoxarife da
Fazenda Real e assistente em Sacramento. No mesmo ano de sua
petição, casou-se com Damásia Maria de São João. Como era necessário
que sua esposa passasse pelas mesmas investigações de linhagem que o
habilitando, Quintão da Costa fez uma nova petição a Inquisição:

6 O termo de batismo de Teresa de Figueiredo está anexado ao Processo de


Habilitação de Simão da Silva Guimarães. ANTT, HSO. Mç. 10, proc. 158.
7 A respeito das relações de compadrio, alguns trabalhos são essenciais, cf. Fragoso;
Almeida & Sampaio, 2007: 33-120 e Kuhn, 2006: 230-267.
Lucas Maximiliano Monteiro 31

Diz João da Costa Quintão, homem de negócio, natural do


Almargem do Bispo, termo da Vila de Sintra, e morador na
Nova Colônia do Sacramento nas margens do Rio da Prata,
[...] que ele Suplicante fez petição a V. Emª para o admitir ao
cargo de familiar do Santo Ofício, a qual foi V. Emª servido
aceitar, e porque neste meio tempo em que se lhe poderiam
andar tirando as suas inquirições lhe foi preciso casar com D.
Damásia Maria de São João [...] e porque lhe parece que as
inquirições do Suplicante se não puderam continuar sem que
ao mesmo despacho se proceda nas da Suplicada sua mulher,
pede a V.Emª seja servido mandar admitir a Suplicada às sua
inquirições, conforme o estilo do Santo Ofício.

Damásia nasceu no Rio de Janeiro em 1717 quando seus pais,


recém chegados do Reino, estavam naquela cidade a esperar uma nova
viagem para participarem dos contingentes de povoadores de Colônia
de Sacramento, o qual foi feito um ano depois, 1718, mesmo ano da
chegada de João da Costa Quintão à América. O pai de Damásia foi
para ocupar o posto de Escrivão da Fazenda Real e Matrícula daquela
localidade, e era detentor do Hábito de Cristo. É possível que João
tenha se casado com a filha de um representante da Ordem de Cristo
como uma forma de ascensão social e também como porta de acesso
à familiatura.
O processo para o ingresso como Cavaleiro do Hábito de Cristo era
considerado o mais rigoroso, assim como o Processo de Habilitação
de Familiar do Santo Ofício, principalmente no que se refere à pureza
de sangue (Rodrigues, 2007: 203).8 Dessa forma, aqueles candidatos

8 De fato, para ingressar nas Ordens Militares era necessário “não descender de
mouros, mas sobretudo de judeus”. Elas foram as primeiras instituições a exigirem
de seus candidatos a pureza de sangue, inserindo-se no contexto dos preconceitos
existentes contra os de sangue impuro, descrito anteriormente. Segundo Fernanda
32 Um Familiar do Santo Ofício em Colônia de ...

ao cargo inquisitorial, ao se casarem anteriormente com filhas de


Cavaleiros da Ordem de Cristo teriam a certeza da pureza de sangue
das suas esposas, afastando a possibilidade de terem seu pedido à carta
de familiar negada por serem casados com mulheres de sangue impuro.
João da Costa Quintão, após encaminhar sua solicitação à habilitação
inquisitorial, viu suas chances à carta de Familiar aumentarem por
ter como sogro alguém que já tinha passado pelas investigações de
linhagem.
Encaminhadas as petições, foi dado início ao processo de investigação
para atestar a sua pureza de sangue. Foram feitas diligências na sua
cidade natal e em Sacramento. As inquirições realizadas por Manuel de
Pimentel Rodovalho, em Colônia de Sacramento, vieram a confirmar
que ele vinha de família de cristãos-velhos, tinha o ofício de homem
de negócio e Almoxarife da Fazenda Real e que vivia abastadamente.
É deste primeiro trabalho de investigação do Santo Ofício que se tem
os nomes das primeiras testemunhas: Francisco de Oliveira, Manuel
Botelho de Lacerda, Ignácio Pereira da Silva, José Ferreira de Brito,
Teodósio Gonçalves, Manuel Pereira da Costa, Manuel Pinto Gonçalves,
João Nunes Ferreira e Damião Nunes de Brito.
Com exceção de Francisco de Oliveira, que era Padre, e Damião de
Nunes Brito, homem de negócio, o restante compunha o Regimento de
defesa daquela Praça. Aqui já se percebe que João da Costa Quintão era
homem muito bem relacionado. Como já mencionado anteriormente,
ele tinha vínculos comerciais com Damião de Nunes Brito, um grande
comerciante de Colônia de Sacramento, sócio de outro grande do ramo,

Olival, “por todo esse contexto, e pela cotação de rigor que tinham as provanças,
que, até 1773, o hábito das Ordens Militares veiculava limpeza. Para grupos sociais
podia ser muito importante, se não decisivo, ostentar uma cruz das Ordens:
reiterava um estatuto e uma condição, afugentava rumores” (Olival, 2001: 284-285).
Lucas Maximiliano Monteiro 33

José Meira da Rocha. Há diversos registros de negócios envolvendo


estes dois comerciantes, o que indica que Damião Nunes de Brito tinha
uma posição destacada entre os homens de negócio da região (Lisanti,
s/d: 282-382).
Das testemunhas que ocupavam cargos militares das quais encontrei
informação sobre a sua trajetória profissional, há Teodósio Gonçalves,
que no momento da inquirição era Ajudante de Infantaria. Um ano
depois ocupou o posto de Ajudante de Número e, posteriormente, foi
opositor ao de Capitão da Companhia. Teodósio atuou no Regimento
de Manuel Botelho de Lacerda durante a invasão castelhana de 1735-
1737. Consta também que serviu no Rio de Janeiro durante 26 anos,
antes de ir para Colônia de Sacramento.9
José Ferreira de Brito também serviu durante o conflito com os
espanhóis como Capitão dos Mercadores. Em 1737, ocupou o cargo de
Capitão de Ordenança. Possivelmente era um homem rico, pois em uma
certidão de seus serviços prestados durante a invasão castelhana, consta
o empréstimo de uma grande quantia em dinheiro, além de informação
da importância que ele tinha no comércio em Colônia de Sacramento:

sendo-lhe achados nesta ocasião muitos mantimentos e


apetrechos de guerra como consta das certidões f.6 e f.7 e
vendo-se aquela Praça com grande necessidade de ser socorrida
com dinheiro para pagamento da Infantaria e re-edificação das
muralhas supriu o suplicante voluntariamente esta falta com
cinqüenta mil cruzados no que fez um particular avantajado
serviço a V.M. sem reparar em prejuízo algum [...] e finalmente
pelo documento f.11 se manifesta que o suplicante foi um dos
homens de negócio da que não Colônia deu mais utilidade a
Real Fazenda com as muitas que despachou naquela Alfândega,

9 Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) – Nova Colônia do Sacramento, cx. 3, doc.


48; cx.4, doc. 22, 10, 40, 50, 55, 59; cx. 4, doc. 28; Rio de Janeiro, cx. 29, doc. 114.
34 Um Familiar do Santo Ofício em Colônia de ...

pois só dele desde junho de 1733 até 29 de Agosto de 1735


importaram os direitos que pagou em 8:735$000 reis, por
onde se pode julgar o grande cabedal que importariam os mais
direitos que o suplicante satisfez no decurso de 17 anos que
assistiu naquela Praça [...].10

Finalizando este primeiro quadro de testemunhas, temos Manuel


Botelho de Lacerda. Este homem também teve uma longa carreira
militar: filho de Constantino Lobo Botelho, capitão-mor na Vila de
Mursa, após servir no Reino com reconhecida distinção, foi para o Rio
de Janeiro com o posto de sargento-mor por volta de 1712. Chegou
à Colônia de Sacramento em 1718, como sargento-mor do Terço
de Infantaria da Companhia de Manuel de Almeida, tornando-se
responsável pelos contatos comerciais desta com Buenos Aires. Era
destacadamente um homem que possuía diversos vínculos e prestígio
em Buenos Aires, onde tinha negócios mercantis.
Este prestígio foi responsável por Manuel Botelho ser o principal
articulador do novo Governador Antônio Pedro de Vasconcelos,
integrando-o às redes de contrabando e auxiliando nos negócios do Rio
da Prata. Tamanho era seu prestígio junto às autoridades que, durante
o sítio de 1735, governou interinamente a colônia além de emprestar
quantias em dinheiro aos cofres da Fazenda Real. Assim, Manuel Botelho
de Lacerda se tornou um dos homens de maior distinção em Colônia
de Sacramento. A família de Manuel estava inserida em uma rede de
prestígio junto às autoridades locais.11 Devido a sua incapacidade física

10 AHU – Nova Colônia do Sacramento, cx. 8, doc. 12. As informações mencionadas


anteriormente constam em: AHU – Nova Colônia do Sacramento, cx. 3, doc. 38;
cx. 4, doc. 94.
11 AHU – Nova Colônia do Sacramento, cx. 4, doc. 12, 108. Sobre Manuel Botelho e
suas relações com o Governador Vasconcelos, cf. Prado, 2002: 161-164.
Lucas Maximiliano Monteiro 35

de continuar a gerir os negócios, seu irmão, Pedro Lobo Botelho, foi o


responsável por dar continuidade às ligações da família Botelho com os
governadores de Colônia de Sacramento. Quando da chegada de Garcia
Bivar, foi Pedro Lobo quem o inseriu nas transações e negócios com o
lado espanhol.
Voltando à Habilitação de João da Costa Quintão. Passada a fase
da investigação sobre a linhagem do habilitando, foram realizadas
inquirições em Portugal que se encerraram no ano de 1736. Um ano
depois, novas diligências em Colônia de Sacramento foram realizadas,
agora com o objetivo de verificar os cabedais do candidato à Familiar.
O ano desta nova inquirição coincidiu com o final do sítio castelhano.
Nas informações dadas pelas testemunhas, há diversas referências ao
ocorrido, principalmente no que se refere às perdas que João da Costa
Quintão teve com o conflito. José de Oliveira, por exemplo, foi um dos
que comentou que o habilitando teve prejuízos:

Vive ainda hoje limpa e abastadamente, ainda depois de ter


perdido tanto como perdeu na invasão desta Praça; e o cabedal
com que agora se acha não o pode dizer certamente, só sabe
que possui ainda umas famosas casas aonde vive com sua
mulher.

A participação de João da Costa Quintão no sítio de 1735 será tratada


em breve. No momento, nosso objetivo é analisar as testemunhas de
mais esta inquirição realizada pelo Santo Ofício. No caso do Processo
de Habilitação de João da Costa Quintão, o número de testemunhas
chegou a seis, quando o recomendado era cinco. A justificativa para
tal procedimento foi dado pelo próprio responsável pela diligência,
o Padre José de Mendonça: “Excedi à ordem de cinco, tirando seis
testemunhas, porque depois de estar já jurado o Capitão Plácido Alves,
36 Um Familiar do Santo Ofício em Colônia de ...

vim no conhecimento que eram parentes pelas mulheres, e por esta


razão pus a sexta”.
De fato, Plácido Alves de Magalhães era casado com a cunhada
do habilitando. Plácido, além de Cavaleiro da Ordem de Cristo, tinha
carreira militar. Quando serviu de testemunha no processo de João,
estava no posto de Capitão de Infantaria, posto este obtido em 1734.12
A participação de Plácido indica que João estava inserido em uma
família de distinção: da mesma forma que seu sogro, seu concunhado
possuía o Hábito de Cristo.
Nesta nova inquirição de 1737, todas as testemunhas tinham por
profissão serem dos Regimentos de Colônia de Sacramento: além dos
já citados Plácido Alves de Magalhães e José de Oliveira – sargento-
mor quando serviu de testemunha e, posteriormente, nomeado como
Governador da Fortaleza da Ilha das Cobras no Rio de Janeiro em 174613
–, Antônio Roiz Figueira (sargento-mor), Domingos Lopes Guerra
(capitão de Infantaria), Ignácio Pereira da Silva (capitão de cavalos) e
Manuel Félix Correia (capitão de cavalos) serviam no Regimento de
Sacramento.
O que chama a atenção nestas testemunhas é que metade delas
possuía o Hábito de Cristo: Plácido, José e Domingos. Não se sabe a
data em que eles ingressaram na Ordem, porém, é de se destacar que
o habilitando possuía vínculos com pessoas de reconhecida pureza de
sangue. Estes vínculos foram ativados no momento de sua habilitação
talvez como forma de atestar a sua linhagem pura. Um dos requisitos
destinados aos Familiares do Santo Ofício era que eles não poderiam

12 AHU – Nova Colônia do Sacramento, cx.4, doc. 22, 10, 40, 50, 55, 59; Rio de
Janeiro, cx. 29, doc. 114.
13 AHU – Nova Colônia do Sacramento, cx.5, doc. 20.
Lucas Maximiliano Monteiro 37

realizar negócios com pessoas de sangue impuro ou cristãos-novos.


Assim, ao ter em seu rol de testemunhas pessoas que já haviam tido
sua ascendência investigada para ingressar na Ordem de Cristo, o
habilitando comprovava a sua relação com quem não poderia impedir a
aprovação de sua petição.
Percebe-se que João da Costa Quintão possuía vínculos com pessoas
de destaque na sociedade de Colônia de Sacramento. Estas eram de
postos de comando do Regimento, inserindo-o na rede social centrada
no serviço militar. Da mesma forma tinha negócios com um importante
comerciante, Damião Nunes de Brito que, por sua vez, era sócio de um
dos maiores homens de negócio da região, José Meira da Rocha, o que
o inseria também na rede social dos homens de negócio. As duas redes
foram ativadas no momento de sua habilitação. De fato, não houve
problemas com seu processo. Em 1738, João da Costa Quintão teve
aprovada a sua petição, tornando-se Familiar do Santo Ofício.
A trajetória deste Familiar do Santo Ofício terminaria aqui não fosse
o contexto histórico de seu Processo de Habilitação. Todo o trâmite
de verificação das condições necessárias para ingressar no quadro de
Familiares foi realizado durante o período do sítio espanhol, entre 1735
e 1737. No momento em que teve a sua carta de familiar aprovada,
João da Costa Quintão havia perdido propriedades e fazendas que
ele mantinha na campanha que ficava no extramuros de Colônia de
Sacramento. Estas perdas foram atestadas, conforme demonstrado
pelas testemunhas de seu Processo de Habilitação, além do Padre José
de Mendonça que, em sua justificação, informou:
38 Um Familiar do Santo Ofício em Colônia de ...

[...] nesta guerra, vi e presenciei que nenhum com mais zelo e


valor serviu a El Rey e defendeu a Praça que ele, assim como
nenhum nesta geral destruição perdeu mais nem tanto como ele,
porque além de perder tudo o que tinha muros a fora, que era
muito, perdeu também no mar uma boa corveta que a tomou
o Inimigo vinda carregada de mantimentos para esta Praça [...].

Como informou o Padre, João havia servido no Regimento durante


o sítio. Seu nome consta na relação feita por Silvestre Ferreira da Silva
dos oficiais envolvidos na defesa daquela Praça como Capitão dos
Auxiliares (Possamai, 2001: 45).14
Embora tenha perdido muitos bens, uma das testemunhas informou
que João “ainda hoje se acha possuindo umas boas casas em que
mora e alguns escravos”.15 O Familiar do Santo Ofício aparece muito
tempo depois, em 1763, no registro do batismo de duas escravas suas,
o que mostra que depois do sítio espanhol ele conseguiu se reerguer
economicamente.16 Contudo, antes dessa reestruturação de suas
propriedades, ele padeceu de uma querela que o envolveu, inclusive, em
denúncia de deserção.
Após perder grande parte de sua propriedade situada extramuros,
João da Costa Quintão passou por dificuldades financeiras decorridas
da incapacidade de saldar as suas dívidas, uma vez que a fonte de
suas riquezas havia sido tomada pelos espanhóis. Após 1737, com
a assinatura do armistício entre as coroas portuguesa e española, as
tropas castelhanas permaneceram ocupando a região, o que impediu

14 Ver também a edição fac-similar desta relação in Sylva, 1993.


15 Todas as informações referentes ao Processo de Habilitação de João da Costa
Quintão até aqui mencionadas estão em: ANTT, HSO. Mç. 72, proc. 1331.
16 Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro (ACMRJ). Livros 3º e 4º de
Batismos de Colônia do Sacramento (1760-1774).
Lucas Maximiliano Monteiro 39

o Familiar de retomar os seus negócios.17 Essa condição fez com que


ele, junto com sua família, saísse de Colônia de Sacramento passando
para o campo de bloqueio. Segundo o próprio João da Costa Quintão,
o objetivo de sua ida era justamente conseguir dinheiro para saldar as
suas dívidas:

Diz João da Costa Quintão Almoxarife que foi da Fazenda Real


da Praça da Nova Colônia do Sacramento que se achando no
ano de 1735 ameaçavam de dar contas de despesa e Receita ao
meterem os castelhanos aquela Praça e no tempo que durou
a guerra lhe arruinaram diversas propriedades de casas, vilas,
e lavouras: me tomaram quantidade de gado, no que tudo
lhe causaram de perda [o valor] de quarenta contos de Reis;
e ficando o suplicante alcançado nas ditas contas em mais de
setenta e cinco mil cruzados, vendo-se impossibilitado para
satisfação da sua dívida se retirou para o lado de Buenos Aires,
de onde tem procurado pagar alguma coisa e começou. Pagou
a quantia de mais de seis mil cruzados por meio de sua agência
como consta das certidões juntas [...].

Contudo, aos olhos dos comandantes de Colônia de Sacramento, se


tratava de uma deserção do Familiar. Por essa razão, em 1742 os bens
deixados na sua saída foram confiscados e leiloados, exceto as casas,
enquanto o rei encaminhava requerimento ao Governador de Buenos
Aires, D. Miguel de Salcedo, para que o desertor fosse remetido preso de
volta ao lado português. Provavelmente na mesma época dos contatos
entre o rei luso e o governador castelhano, João da Costa Quintão,

17 Durante o bloqueio “as patrulhas espanholas tinham por obrigação vedar a


exploração da campanha da Banda Oriental pelos lusos brasileiros. As condições
para o comércio restringiram-se especialmente à via marítima, e o abastecimento
também passou a depender, essencialmente, do comércio fluvial com os castelhanos.
Todos os contatos deveriam possuir licenças específicas para isso: ‘passaportes’”
(Prado, 2002: 109).
40 Um Familiar do Santo Ofício em Colônia de ...

tomando conhecimento de como andava a sua situação nos lados da


Banda Oriental, encaminhou a carta citada acima em que informava os
motivos pelos quais ele foi para os lados de Buenos Aires. Na mesma
carta, ele solicitava que o mantivesse em liberdade para poder “pouco
a pouco satisfazer a quantia em que se acha alcançado”. Ao lado desta
carta, há anotações que possivelmente davam conta das condições para
que João tivesse suas dívidas perdoadas:

[...] V. Majestade se sirva de exercer com o suplicante a sua


inata clemência perdoando-lhe a deserção que fez para o campo
inimigo com a condição porém de que se restitua com toda
a sua família a Nova Colônia dentro em seis meses contados
do dia em que o Governador daquela praça lhe intimar [...] E
como a continuarem os bens do suplicante na administração
do seqüestro [...] se sirva de ordenar que restituído o suplicante
a Nova Colônia na forma dita, lhe serão entregues os devidos
bens de baixo do mesmo seqüestro em que estão para que os
administre e reduza a competente [dívida] [...].

João da Costa Quintão deve ter retornado para Colônia de


Sacramento nesta época, pois, em 1746, o Governador Antônio Pedro
de Vasconcelos encaminhou carta ao rei português intervindo a favor do
Familiar. Nesta carta, o Governador solicita perdão de parte da dívida
de João, além de encaminhar seu parecer a respeito da suposta deserção.
Segundo Vasconcelos, João da Costa Quintão não havia desertado nem
deixado de servir como leal português. Além das razões já citadas pelo
próprio João para ir a Buenos Aires, o Governador disse que o suposto
desertor havia dado inúmeras provas e ajuda aos portugueses durante
o campo de bloqueio:
Lucas Maximiliano Monteiro 41

Nunca o seu ânimo foi ser traidor a pátria de que deu justificadas
provas de leal português, nos avisos que expedia de Buenos
Aires de qualquer movimento contra o sossego da Praça, no
presente Bloqueio, principalmente quando o Governador
D. Domingos Ortiz de Rozas quis surpreender a Ilha de
Martim Garcia onde eu conservava a pequena guarda de um
sargento e quinze soldados para o expediente das lenhas que
dali transportavam as novas embarcações dizendo-me ficava
pronto a sair do Riachuelo o Paqueboot apresado aos ingleses
no qual estavam embarcados, cento e tantos Dragões, índios
tapes com ferramentas de mover terra; cujo aviso tive a tão bom
tempo, perto da meia noite que pude logo expedir ao Capitão
de Dragões José Inácio de Almeida com duzentos homens
e monções de Guerra nos Bergantins e Palhua em reforço
daquele posto [...].

Vasconcelos ainda cita a ajuda prestada por Quintão durante o


sítio de 1735. O fato é que, ao que tudo indica, o Familiar teve sua
dívida e deserção perdoadas, passando a viver novamente em Colônia
de Sacramento de onde reergueu seu patrimônio, como demonstrado
anteriormente. João da Costa Quintão morreu antes de 1775, data em
que sua mulher Damásia aparece no registro de batismo de uma escrava
sua como viúva.18
A trajetória deste Familiar exemplifica as características encontradas
entre estes agentes inquisitoriais de Colônia de Sacramento. Um
português que chegou do Reino e aqui estabeleceu fortuna como
comerciante. Morador de uma região de frontera, ingressou nos
quadros militares o que o colocava em contato com uma rede de
militares. Após ter acumulado capital suficiente, via negócios mercantis,
solicitou servir ao Santo Ofício em busca do prestígio social que isso

18 O conjunto de cartas mencionadas até aqui estão agrupadas em um único


documento. AHU – Nova Colônia do Sacramento, cx. 5, doc. 18.
42 Um Familiar do Santo Ofício em Colônia de ...

lhe conferiria. Prestígio este já alcançado por integrantes de sua rede


de relações sociais. Ao ativar os seus vínculos pessoais, conseguiu a
Carta de Habilitação tornando-se, assim, além de Familiar em Colônia
de Sacramento, mais um homem colonial com distinção social.
Lucas Maximiliano Monteiro 43

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Capítulo III

Itamaracá: uma donataria entre as


Capitanias R eais do Norte1

Luciana de Carvalho Barbalho Velez2

A doação da Capitania de Itamaracá a Pero Lopes de Sousa

A Capitania de Itamaracá foi instituída durante a divisão do


Brasil em capitanias hereditárias, em 1534. Localizada ao norte de
Pernambuco, seus limites se estendiam do rio Igarassu, ao sul, à
baía da Traição, ao norte. Foi doada a Pero Lopes de Sousa, irmão
do comandante da expedição colonizadora de 1532, Martim
Afonso de Sousa, que dividiu o Brasil em capitanias hereditárias,
dois anos depois. Pero Lopes de Sousa também participou da
referida expedição e foi responsável pela destruição de uma
feitoria em Itamaracá que estava sob domínio francês (Andrade,
1999; Jordão Filho, 1978).
Segundo Manuel Correia de Andrade (1999), a primeira
feitoria que foi instalada oficialmente no Brasil estava situada na

*
1 Este artigo é o resultado dos primeiros apontamentos da pesquisa de doutoramento
junto ao PPGH/UFF. Uma pequena discussão sobre este assunto foi iniciada em
minha dissertação de mestrado, defendida no PPGH/UFPB, sendo retomada e
aprofundada neste doutorado que teve início em 2011.
**
2 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal
Fluminense, sob a orientação da professora Dra. Maria Fernanda Bicalho. Possui
mestrado em História pela Universidade Federal da Paraíba (2009) e graduação em
História pela Universidade de Pernambuco (2004).
46 Itamaracá: uma donataria entre as Capitanias R eais...

Capitania de Itamaracá, construída por Cristóvão Jacques, com o


intuito principal da extração de pau-brasil. Esta feitoria foi atacada
algumas vezes por estrangeiros. Um destes ataques foi realizado
por franceses a bordo da nau chamada “La Pelerine”, pertencente
ao Barão de Saint Blancard, a qual estava sob o comando de Jean
Duperret. O fato ocorreu em 1532, durante a referida expedição
de Martim Afonso de Sousa. A partir do diário de navegação
escrito por Pero Lopes de Sousa, Manuel Correia de Andrade
(1999) observou que ele percorreu toda a costa na expedição
comandada por seu irmão e, ao chegar à região de Itamaracá,3
destruiu a feitoria que estava sob o controle do senhor francês De
La Motte, enforcando os prisioneiros. A nau, que havia partido
para a Europa carregada de pau-brasil e outras riquezas, foi
aprisionada próxima a Gibraltar pelos portugueses. Ao retornar
para Portugal em 4 de novembro de 1532, Pero Lopes de Sousa
deixou a ilha fortificada e a feitoria, a qual provavelmente foi
reconstruída, sob a administração de Francisco Braga. Entregou
o comando do forte ao Capitão Paulo Nunes.
Como recompensa pelo feito, Pero Lopes de Sousa recebeu,
em 3 de setembro de 1534, 50 léguas de costa litorânea, divididas
em três lotes de terra, os quais ficaram dispostos separadamente
da seguinte forma: 20 léguas ao sul do Brasil, terras em Santana,
na atual costa paranaense, a qual ele abandonou, e a Capitania
de Santo Amaro, entre os dois lotes da Capitania de São
Vicente, pertencentes ao seu irmão, que passaram boa parte em
administração conjunta; e 30 léguas ao norte, que compreendiam
a Capitania de Itamaracá (Andrade, 1999). Posteriormente, as
léguas recebidas ao sul foram aumentadas para 50, resultando em

3 Segundo Ângelo Jordão Filho (1978), Pero Lopes de Sousa não chegou a ir à
capitania de Itamaracá, o que entra em desacordo com o que afirma Manoel Correia
de Andrade (1999), de que ele esteve na capitania, mas que partiu logo em seguida,
não retornando mais, pois morreu em uma expedição ao Oriente.
Luciana de Carvalho Barbalho 47

um total de 80 léguas doadas a Pero Lopes de Sousa (Silva, 2009:


15).
Por causa da proximidade e dos períodos de administração
conjunta das capitanias de Santo Amaro e de São Vicente, as duas
Casas nobres, de Pero Lopes de Sousa e de Martim Afonso de
Sousa, entraram em litígio pela definição dos limites das capitanias
(Silva, 2009).
No caso da Capitania de Itamaracá, a região que ia do rio
Goiana até a Baía da Traição, na atual Paraíba, – aproximadamente
23 léguas das 30 que compunham Itamaracá – estava ocupada
pelos índios Potiguara, um grupo Tupi que se estabeleceu nesta
área havia pouco tempo.4 Estes indígenas mantinham aliança
com os franceses, inclusive através de concubinatos com as
índias, com os quais contrabandeavam o pau-brasil, considerado
dos melhores do Brasil (Gonçalves, 2007).
O início do povoamento da Capitania de Itamaracá foi
bastante difícil, tanto pelo fato do donatário não permanecer na
região para garantir seu desenvolvimento, como pelas constantes
invasões estrangeiras e guerras contra os indígenas. Por isso, a
Coroa portuguesa começou a enviar expedições para a conquista
desta região norte de Itamaracá em 1574, após o “massacre de
Tracunhaém”.5 No entanto, os conflitos entre os Potiguara e os
portugueses já aconteciam desde 1565, intensificando-se depois
do referido massacre (Andrade, 1999; Gonçalves, 2007).
Foi a partir deste episódio que a Coroa portuguesa enviou a

4 Os Tupi estavam em processo de ocupação desta região desde o início do século


XVI (Gonçalves, 2007).
5 Este massacre aconteceu quando do rapto de uma índia, filha de Iniguassu, o qual
foi instigado pelos franceses e seus aliados a invadirem a fazenda de Diogo Dias,
onde a índia estava escondida, matando aproximadamente 600 pessoas. Porém,
existe outra versão para a chacina, ocorrida como forma de conter o avanço do
povoamento português que já se encontrava nas fronteiras dos Potiguara e do “porto
dos franceses” (Andrade, 1999; Gonçalves, 2007).
48 Itamaracá: uma donataria entre as Capitanias R eais...

primeira de uma série de expedições para a conquista desta região:

Em 1574, depois da destruição do Engenho Tracunhaém, e


diante do fato consumado de que nem os donatários nem os
moradores de Itamaracá ou de Pernambuco teriam condições
de completar, com sucesso, a ocupação das terras até o Rio
Goiana, sem que o levante dos Potiguaras fosse contido, a Coroa
portuguesa, finalmente, resolveu tomar as rédeas da situação. Se
bem sucedida, tal ação também garantiria (...) a manutenção e
o reconhecimento internacional da sua soberania sobre aqueles
territórios, na medida em que os franceses fossem expulsos e
que se promovesse o povoamento português (Gonçalves, 2007:
71).

Porém, tanto a primeira como as três outras expedições enviadas


para a conquista desta região do rio Paraíba fracassaram. Inclusive
pelo fato de que, com a morte do rei D. Sebastião e o problema
de sucessão do trono, até a consolidação da União Ibérica, este
empreendimento ficou para segundo plano. Desta forma, apenas
em 1585, quando os portugueses firmaram um acordo de paz
com os índios Tabajara e juntos fizeram frente aos Potiguara e
franceses, é que as forças coloniais começaram a “virar o jogo”
e, enfim, conquistar o território, que só teve rendição final em
1599. Assim, a Coroa portuguesa resgatou para si a parte norte
de Itamaracá, fundando a Capitania Real da Paraíba (Gonçalves,
2007).6 As outras 7 léguas que restaram da capitania continuaram
sob poder da família Sousa (nas Casas de Cascais e Louriçal) até
meados do século XVIII.
A família Sousa era muito importante em Portugal e estava
muito próxima da Coroa, o que permitiu fácil acesso às mercês
régias. Inclusive, o primeiro governador-geral, Tomé de Sousa,

6 A questão da fundação da capitania da Paraíba a partir do desmembramento da


capitania de Itamaracá foi bem explanada na tese de doutorado de Regina Célia
Gonçalves, motivo pelo qual não nos determos nos seus pormenores.
Luciana de Carvalho Barbalho 49

pertencia a esta família (Andrade, 1999: 41).


Tanto Martim Afonso de Sousa como Pero Lopes de Sousa eram
fidalgos da Casa Real, sendo que o primeiro ainda era Conselheiro
do rei D. João III (Silva, 2009: 14). Esta situação de proximidade
perpassou os séculos XVI a XVIII. Durante o reinado de Pedro
II, o segundo marquês de Cascais, D. Luís Álvares Pires de Castro
Noronha e Sousa, fora um dos 18 conselheiros reais, e, inclusive,
participou da cerimônia fúnebre do referido monarca “pegando
no caixão” (Lourenço, 2007: 243). Continuou com este cargo
palatino de Conselheiro de Estado e de Guerra no reinado de D.
João V (Silva, 2009: 17). Em meados do século XVIII, os bens da
Casa de Cascais foram herdados pela Casa de Louriçal, os quais
também eram agraciados pelo monarca com títulos importantes,
como o vice-reinado das Índias (Monteiro, 2001).
Talvez aí possamos entender o motivo porque a capitania
permaneceu por mais de 200 anos em posse da família, mesmo
com as mudanças políticas que ocorreram após a Restauração
(1640ss), tanto em Portugal, com a centralização política
crescente da corte, sobretudo durante o reinado de D. Pedro II
(Lourenço, 2007), como no “Estado do Brasil”, onde a Coroa
procurou resgatar ao máximo as possessões que ainda pertenciam
a particulares, como foi o caso da Capitania de Pernambuco,
resgatada da família donatarial que não havia permanecido fiel à
Casa de Bragança (Assis, 2001).
50 Itamaracá: uma donataria entre as Capitanias R eais...

A família Souza e a posse de suas donatarias

Como vimos, Pero Lopes de Sousa não permaneceu em nenhuma


das capitanias recebidas, pois, após o retorno a Portugal, partiu
para expedições no norte da África, comandadas pelo imperador
Carlos V, e no Oriente, numa missão à Índia, onde morreu em
um naufrágio de sua nau, a Esperança Galega, em 1539, com
apenas 37 anos de idade (Andrade, 1999; Jordão Filho, 1978).
No caso da Capitania de Itamaracá, havia nomeado como
governador Francisco Braga, “conhecido como ‘grande língua do
Brasil’ e amigo dos Potiguara”, e o comandante Paulo Nunes para
comandar o forte que se construiu junto à feitoria (Gonçalves,
2007: 65).
Ao retornar a Portugal, Pero Lopes de Sousa casou-se com a
filha de um antigo feitor da Casa da Índia, Izabel de Gamboa, e
teve três filhos, Pero Lopes de Sousa, Martim Afonso de Sousa
e Jerônima de Albuquerque e Sousa. Pero Lopes de Sousa (o
primogênito) era menor de idade quando o pai falecera. Por isso, o
domínio das capitanias ficou sob a tutela da sua mãe, D. Izabel de
Gamboa. Mas, como também veio a falecer ainda muito jovem, seu
irmão, Martim Afonso de Sousa, chamado de “o moço”, assumiu
o controle da capitania, quando da maioridade. Ocupado com
seus negócios na Índia, onde também faleceu ainda na juventude,
as capitanias voltaram para as mãos de D. Izabel. Foi durante o
controle da capitania por D. Izabel de Gamboa, em 1540, que foi
nomeado governador da capitania de Itamaracá João Gonçalves,
também pertencente à família Sousa, em substituição a Francisco
Braga, que havia abandonado a capitania após o episódio com o
donatário de Pernambuco (Andrade, 1999; Jordão Filho, 1978).
Desta forma, a única herdeira de Pero Lopes de Sousa era D.
Jerônima de Albuquerque e Sousa, que era casada com D. Antônio
de Lima Miranda. O casal tinha uma filha, Izabel de Lima de
Luciana de Carvalho Barbalho 51

Sousa de Miranda, que herdou as capitanias. Ela foi casada duas


vezes, a primeira com Francisco Barreto e, após a morte deste,
com André Albuquerque (Andrade, 1999; Jordão Filho, 1978).
Até aquí, podemos perceber que as capitanias recebidas por Pero
Lopes de Sousa estavam, na realidade, sob tutela das mulheres da
família Sousa.
Após a morte da neta de Pero Lopes de Sousa, sem também
deixar herdeiros, as capitanias passaram às mãos do seu primo,
Lopo de Sousa (neto de Martim Afonso de Sousa por linha
paterna, e então donatário da capitania de São Vicente), pois
Izabel havia assim estabelecido em testamento. Neste momento,
as capitanias de Santo Amaro e São Vicente novamente passaram
por problemas de delimitação de fronteiras, pois eram vizinhas
e estavam em posse do mesmo donatário, abrindo espaço para
um litígio. Outro neto de Martim Afonso de Sousa por linha
materna, D. Luís de Castro, o conde de Monsanto, requereu as
capitanias de Santo Amaro para si. No entanto, a pretensão só foi
conseguida após a morte de Lopo de Sousa, em 15 de outubro de
1610 (Costa, V. 2; Silva, 2009).
Lopo de Sousa, que também não possuía filhos, deixou como
herdeira a sua irmã, D. Mariana de Sousa da Guerra, a condessa
de Vimieiro, casada com o conde de Vimieiro, D. Francisco de
Faro, cuja confirmação régia para a sucessão foi concedida em
22 de outubro de 1612. Porém, seus direitos continuaram sendo
contestados por seu primo, o filho de Luís de Castro, D. Álvaro
Pires de Castro e Sousa, conde de Monsanto e, posteriormente, o
primeiro marquês de Cascais, que alegava ser morgado o senhorio
da capitania (Andrade, 1999; Costa, 1952, v.2; Jordão Filho, 1978;
Silva, 2009).
Este requereu não apenas os direitos de posse da capitania de
Santo Amaro, mas também da capitania de Itamaracá. O litígio
terminou em 20 de maio de 1615, com a concessão dos direitos
52 Itamaracá: uma donataria entre as Capitanias R eais...

ao conde de Monsanto e marquês de Cascais, e com confirmação


régia por alvará de 10 de abril de 1617. Durante este período, a
Capitania de Itamaracá ficou sendo controlada pelo governo da
Paraíba, e a Capitania de Santo Amaro pela condessa de Vimieiro.
A partir da vitória do conde de Monsanto e marquês de Cascais,
em 1617, o qual tomou posse da Capitania de Itamaracá em 20 de
julho de 1618, as capitanias ficaram sob seu controle até a invasão
holandesa no nordeste, em 1631, quando Itamaracá foi invadida,
permanecendo ainda em seu poder Santo Amaro (Andrade, 1999;
Costa, 1952, v.2; Jordão Filho, 1978; Silva, 2009).
A partir daí o conde de Monsanto e marquês de Cascais passou
a cobiçar, inclusive, a posse da capitania de São Vicente, que
pertencia à condessa de Vimieiro, mas que, com o litígio, havia se
esquecido de pedir a confirmação da sucessão ao monarca, o que
era estritamente necessário. Desta forma, o conde de Monsanto
intitulou-se donatário da capitania de São Vicente, em 1620.
Com isso, a condessa prontamente solicitou confirmação real da
sucessão, sendo atendida em 1621. As reivindicações perduraram
por todo o século XVII entre as casas de Vimieiro e de Monsanto,
com invasões de territórios, principalmente por parte da casa
de Monsanto na capitania de São Vicente, o que gerou diversas
situações dúbias (Silva, 2009).
Na Capitania de Itamaracá, por exemplo, houve a necessidade
de uma nova confirmação da posse na casa de Monsanto e Cascais,
concedida em 3 de julho de 1628 (Costa, 1952, v. 2). Por fim, em
1692, o monarca Pedro II confirmou para a casa de Monsanto e
Cascais as 80 léguas iniciais que foram doadas a Pero Lopes de
Sousa, tendo em vista a sucessão masculina:

Na base de toda a questão que dominou o século XVII estavam,


sem dúvida, o diminuto rendimento da Capitania de Santo
Amaro, escassamente povoada, e as rendas mais abundantes da
capitania que pertencera a Martim Afonso de Sousa. (...) Na
Luciana de Carvalho Barbalho 53

prática, as duas capitanias se confundiam e suas denominações


foram sendo alteradas com o tempo. Já nada era como em 1534:
a Capitania do Rio de Janeiro existia em terras que haviam sido
doadas a Martim Afonso de Sousa; para o sul, tudo se misturava
(Silva, 2009: 17-19).

Realmente, ao devolver as 80 léguas de direito ao conde de


Monsanto e marquês de Cascais, a Capitania de São Vicente também
ficou sob sua jurisdição. Isso pode ser comprovado observando
a documentação do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, em que
o segundo marquês de Cascais, D. Luís Álvares Pires de Castro
Ataíde Noronha e Sousa, faz mercê, em 29 de fevereiro de 1694,
dos ofícios de escrivão dos órfãos e tabelião da Ilha Grande de São
Sebastião da sua Capitania de São Vicente e São Paulo do Estado
do Brasil, a Gabriel Picão, morador da capitania e considerado de
bom procedimento, ofícios que vagaram quando do falecimento
de Jerônimo Francisco de Mello.7 Ou seja, a capitania estava sob
sua posse, tanto que provia cargos nela.
Já em 1709, o mesmo marquês cogitou a venda das 50 léguas da
Capitania de Santo Amaro (o que era permitido com autorização
do monarca) por 40$000 cruzados para José de Góis de Morais,
pedindo, assim, autorização ao rei D. João V, o qual, aconselhado
pelo Conselho Ultramarino, acabou comprando-as, por escritura
de 19 de setembro de 1711, afinal, a região era a mais próxima das
minas de ouro, que já haviam sido descobertas:

7 Cf. ANRJ, códice 77, livro 04, fls. 306-307v.


54 Itamaracá: uma donataria entre as Capitanias R eais...

Para que ela tivesse lugar (a escritura), D. João V permitiu


que estas cinquenta léguas se desligassem das outras trinta da
Capitania de Itamaracá, que juntas tinham constituído a doação
inicial a Pero Lopes de Sousa (Silva, 2009: 18).

No entanto, como a Capitania de São Vicente se confundia


com a de Santo Amaro, aquela também retornou para as mãos do
Rei, mesmo com as posteriores comprovações feitas pelo conde
de Vimieiro, D. Sancho de Faro e Sousa, de que a compra não
incluía São Vicente, mas apenas as 50 léguas de Santo Amaro.
Assim, através da provisão régia de 9 de novembro de 1709, a
Capitania de São Vicente passou a se chamar Capitania de São
Paulo e Minas do Ouro (Silva, 2009: 89).
Ora, aqui existe um problema, pois se destas 80 léguas que
foram devolvidas ao marquês de Cascais, 50 eram parte do
território de Santo Amaro, as outras 30 seriam as terras de
Itamaracá. No entanto, desde finais do século XVI, a capitania de
Itamaracá havia sido desmembrada e parte do seu território havia
se constituído na Capitania Real da Paraíba, não podendo, desta
forma, ter recebido o dito marquês as 80 léguas, já que suas terras
ao norte haviam sido reduzidas. O fato da criação da Capitania da
Paraíba e como isso repercutiu dentro da família Sousa devem ser
levados em consideração.
Retomando a questão da Capitania de Itamaracá que estava
sob domínio flamengo, durante este período, a família donatarial
manteve-se fiel à Portugal e, desta forma, toda a administração
ficou em mãos holandesas. Os holandeses iniciaram a invasão
pela ilha de Itamaracá, em 1631, só conseguindo conquistar o
continente em 1633 (Andrade, 1999).
Com a expulsão dos holandeses do Brasil, em 1654, iniciou-
se um período de reestruturação socioeconômica nas capitanias
conquistadas. Em Itamaracá, as modificações seriam relativamente
decisivas ao destino da capitania (Andrade, 1999). Engenhos
Luciana de Carvalho Barbalho 55

foram reivindicados pelos antigos proprietários que haviam


fugido durante a invasão flamenga e a administração da capitania
foi organizada nas mãos da Coroa novamente (Mello, 2003).
A capitania de Itamaracá foi incorporada à Coroa, enquanto
o primeiro marquês de Cascais e quinto conde de Monsanto, na
época D. Álvaro Pires de Castro e Sousa, não fizesse a restituição
da Fazenda Real de todas as despesas feitas nos 24 anos do
período holandês (Andrade, 1999; Mello, 2003).
A família donatarial do marquês de Cascais reivindicou a
posse por direito, de acordo com a carta de doação da capitania
de Itamaracá, e entrou em litígio com a Coroa. No entanto, só 38
anos após a expulsão dos holandeses a causa foi ganha para sua
família, pois, D. Álvaro Pires de Castro e Sousa faleceu em 11 de
junho de 1674, antes de conseguir a devolução, que ocorreu em
13 de janeiro de 1685. Durante este período foi o seu filho, D.
Luís Álvares Pires de Castro Ataíde Noronha e Sousa, segundo
marquês de Cascais e sexto conde de Monsanto, quem deu
continuidade às reivindicações do seu pai, conseguindo por fim
ao pleito (Andrade, 1999; Costa, v. 2 e 4, 1952).
No entanto, o segundo marquês de Cascais só pôde tomar posse
da capitania após a carta régia de 3 de março de 1692 mandando
empossá-lo. Foi surpreendido, contudo, com um levante contra a
devolução, levante que explanaremos melhor adiante (Andrade,
1999; Costa, v. 2 e 4, 1952).
Após a morte do segundo marquês de Cascais, em 27 de julho
de 1720, a posse da capitania passou ao seu filho, D. Manuel José
de Castro Noronha Ataíde e Sousa, terceiro marquês de Cascais,
por carta régia de confirmação da sucessão de 8 de julho de 1721,
permanecendo sob sua posse até sua morte, em 20 de agosto de
1742 (Andrade, 1999; Costa, 1952, v. 4 e 5).
A partir deste ponto as informações historiográficas
e documentais começam a ficar contraditórias e de difícil
56 Itamaracá: uma donataria entre as Capitanias R eais...

entendimento. De acordo com Manoel Correia de Andrade (1999)


e Pereira da Costa (1952, v. 4 e 5), D. Manuel José de Castro
Noronha e Ataíde e Sousa foi sucedido por seu filho, D. Luís José
Tomás de Castro Noronha Ataíde e Sousa, quarto marquês de
Cascais e também marquês de Louriçal, o qual manteve a posse
da Capitania de Itamaracá até seu falecimento, não se sabe ao
certo se em fins de 1755 ou início de 1756. Sem deixar herdeiros,
a capitania entrou novamente em litígio com a Coroa, a partir
de 1756. Durante o impasse, o governador de Pernambuco, Luís
Diogo Lobo da Silva, assumiu a administração da capitania em
nome da Coroa e com a aprovação desta. No entanto, a família
donatarial, na pessoa de José Góis e Morais, reclamou seus
direitos, e foi indenizada no valor de 40$000 cruzados, pela
Coroa, que teria promovido a anexação de Itamaracá à Capitania
de Pernambuco (Menezes, 2005: 64), devido à extinção da casa de
Cascais (Mello, 2003).
Fica difícil saber se houve confusão entre o acontecido no início
do século XVIII com a Capitania de Santo Amaro, cujo José Góis
e Morais foi cogitado pela família donatarial para comprar a dita
capitania pelo preço acima, ou se realmente houve uma nova oferta,
agora para a Capitania de Itamaracá. Esse assunto ficou pouco
esclarecido pela historiografia e ainda merece atenção. Mas, por
hora, o que se percebe pela documentação do Arquivo Histórico
Ultramarino e da Provedoria da Fazenda de Itamaracá é que, já
durante a década de 40 do século XVIII, assumiu o controle da
Capitania de Itamaracá o marquês de Louriçal, Francisco Xavier
Rafael de Meneses,8 último donatário da Capitania de Itamaracá,

8 É possível observar alguns requerimentos e cartas com referência ao marquês de


Louriçal, Francisco Xavier Rafael de Menezes, como donatário da Capitania de
Itamaracá, entre 1745 e 1763, tais como AHU_ACL_CU_015, Cx. 62, D. 5320
(Arquivo Histórico Ultramarino_Administração Central_Cota Pernambuco_Caixa
62, Documento 5320); AHU_ACL_CU_015, Cx. 63, D. 5380; AHU_ACL_
CU_015, Cx. 64, D. 5435; AHU_ACL_CU_015, Cx. 69, D. 5802; AHU_ACL_
Luciana de Carvalho Barbalho 57

o qual permaneceu com a posse até por volta da década de 1760,


quando houve a anexação a Pernambuco.
Ao que tudo indica, os bens da casa de Cascais foram herdados
pela casa de Louriçal, na pessoa da marquesa de Louriçal, D. Maria
Josefa da Graça Noronha, irmã do quarto marquês de Cascais, D.
Luís José Tomás de Castro Noronha Ataíde e Sousa, “[...] Que
succedendo na casa de Cascais por fallecimento do marquês D.
Luís José de Castro seu irmão requer a Vossa Majestade alvará de
manter em posse [...].9 Ela era casada com o marquês de Louriçal,
Francisco Xavier Rafael de Meneses, que administrava estes bens
e que, posteriormente, passaram a pertencer à filha do casal, a
marquesa de Cascais e Louriçal, D. Ana Josefa da Graça Noronha
Ataíde e Sousa.10
Ou seja, a documentação mostra que o quarto marquês de
Cascais não ficou com a posse da capitania até 1755, já que havia
falecido antes de 1745, data do documento citado acima. Por volta
do ano de 1746, a dita marquesa pedia repetição da ordem que
lhe concedia a posse dos bens da casa de Cascais pelo falecimento
de seu irmão. Essa posse necessitava de confirmação régia anual.
De acordo com documentos da Provedoria da Fazenda de
Itamaracá, 11 ao que parece, quando da morte do terceiro marquês
de Cascais, D. Manuel José de Castro Noronha Ataíde e Sousa, a
Capitania de Itamaracá foi confirmada na posse de seu herdeiro
“(...) o ilustríssimo e excelentíssimo marquez de Louriçal e Cascais
senhor donatário desta Capitania de Itamaracá (...)”.12 Mas, como
o mesmo faleceu, os bens da sua Casa passaram para a Casa de

CU_015, Cx. 75, D. 6247.


9 AHU_ACL_CU_015, Cx. 65, D. 5482.
10 AHU_ACL_CU_015, Cx. 82, D. 6800.
11 APEJE/PE (Arquivo Público Estadual Jordão Emereciano/Pernambuco), OR. 2.
12 APEJE/PE, OR. 2, fls. 206v.
58 Itamaracá: uma donataria entre as Capitanias R eais...

Louriçal, conforme mostra trecho de uma resposta do Rei D. João


V ao pedido do marquês de Louriçal de confirmação de posse:

(...) Faço saber a vos ouvidor da Parahiba que se viu a vossa carta
de vinte e oito de abril do prezente em que insinuais averião
tomado posse para minha Real Coroa da Capitania de Itamaracá
de que fora donatário o marqueis de Cascais em razão de se
achar findo o alvará de manter em posse a mesma capitania que
tinham concedido ao marques de Louriçal a quem por morte
do dito marquês passara a [ ] para sua casa e doação e que não
apresentou outro alvará de manutenção de mais tempo nem de
confirmação da dita capitania pello que suspenderás (...).13

Não há como afirmar com certeza, pois na documentação


não há nomes para os intitulados. Mas, possivelmente, o citado
marquês de Cascais e Louriçal que requereu a posse da capitania,
e que lhe foi concedido por D. João V, é D. Luís José Tomás de
Castro Noronha Ataíde e Sousa, o filho do terceiro marquês de
Cascais. No entanto, como ele faleceu, os bens de sua Casa foram
transferidos para a Casa da sua irmã, a marquesa de Louriçal. Seu
marido não pôde renovar a confirmação da posse da capitania, em
1749, pois havia ficado em falta com a documentação essencial
para esta confirmação, o “alvará de manter em posse”, e, por isso,
o requerente teve a sua petição negada. O referido documento
foi apresentado, então, pela marquesa, D. Maria Josefa da Graça
Noronha:

(...) Me representou a dita marqueza de Louriçal mostrando


pellos papeis que ajuntou a seo requerimento que em janeiro
do ano prezente alcançou novo alvará de manter em posse (...)
que por quanto eu fora servido concederlhe a dita provisão
para por tempo de mais hu ano semanter em posse das duaçons

13 APEJE/PE, OR. 2, fl. 207.


Luciana de Carvalho Barbalho 59

da caza de Cascais para se cumprir a respeito da Capitania de


Itamaracá.14

E assim seguiram-se várias vezes. A posse foi novamente


efetivada para o marquês de Louriçal, em 26 de junho de 1752,15
e encontramos nova confirmação para sua filha, D. Ana Josefa
da Graça Noronha Ataíde e Sousa, em 12 de novembro de 1756.
Como ela não tinha idade para assumir os bens que herdara da casa
de Cascais, seu pai a representava como legítimo administrador.16
No entanto, ainda ficam algumas dúvidas sobre quando se deu
o falecimento de D. Luís José Tomás de Castro Noronha Ataíde e
Sousa. O que se pode perceber apenas é que houve a transferência
dos bens da sua Casa à Casa de Louriçal, permanecendo até
meados do XVIII.
Devido à situação de donatários ausentes, as capitanias
sempre foram problemáticas. No caso de Itamaracá, sempre
houve problemas de jurisdição com as outras capitanias do
norte, sendo caracterizada por alguns historiadores como “uma
capitania frustrada” (Andrade, 1999). No entanto, ao passarmos a
vista na documentação consultada, percebemos que, apesar da
ausência física, não houve abandono das donatarias por parte
dos donatários. Encontramos diversos requerimentos, cartas e
petições deles sobre os mais diversos assuntos da capitania, tais
como ocupação de cargos e solicitação de informação sobre
rendas e situação das capitanias.

14 APEJE, OR. 2, fls. 207v e 208v.


15 APEJE, OR. 2, fl. 216.
16 APEJE, OR. 2, fls. 228-228v.
60 Itamaracá: uma donataria entre as Capitanias R eais...

O levante de Goiana em 1692 contra a restituição da capitania


de Itamaracá à família donatarial do marquês de Cascais

Retomando do momento da devolução da capitania à família


donatarial. A restituição ocorreu durante o governo de Pedro II,
momento em que a centralização política do Império português
já era bem maior (Lourenço, 2007). É interessante observar que
algumas capitanias continuaram como donatarias, apesar desta
centralização. No caso de Itamaracá, voltou a ser uma capitania
donatarial, mas agora, entre as capitanias reais de norte, a Paraíba,
que o era desde a sua criação, e Pernambuco, que havia sido
resgatada pela Coroa após a expulsão dos holandeses (Assis,
2001).
Mais interessante ainda é observar a atuação do poder local
nas decisões com respeito à situação política da capitania. Isso
aconteceu, inclusive, na Capitania de Santo Amaro, quando da
proposta de venda para José Góis de Morais, em que os habitantes
pediram a Coroa para pagar a quantia solicitada, passando, então,
à Capitania Real (Silva, 2009). No caso de Itamaracá também
podemos perceber isto.
Assim, com o fim do litígio entre a Coroa e a Casa de Cascais,
em 1685, D. Luís Álvares Pires de Castro Ataíde Noronha e
Sousa, segundo marquês de Cascais e sexto conde de Monsanto,
recebeu, em 3 de março de 1692, autorização para ser empossado
novamente como donatário da Capitania de Itamaracá (Mello,
2003). No dia 8 do mesmo mês e ano, foi enviada uma carta
do monarca ao capitão-mor de Itamaracá, Manoel Mesquita da
Silva, informando o fato e mandando “fasais dar a execução a
confirmação”.17
A cerimônia de restituição estava prevista para o dia 1º de

17 APEJE, OR. 2, fl. 30.


Luciana de Carvalho Barbalho 61

agosto de 1692, quando ocorreu o chamado “levante de Goiana”.18


Isto porque parte da elite camarária de Goiana – cabeça da
capitania de Itamaracá desde sua elevação à vila, em 1685 – era
contra a devolução. Para os senhores de engenho de Goiana era
mais interessante a devolução, pois com o donatário ausente,
como sempre ocorreu, eles teriam mais liberdade para agir de
acordo com seus próprios interesses. Porém, os comerciantes, que
já possuíam cargos camarários, não achavam o mesmo, visto que
perderiam os privilégios de acesso a estes cargos, como tinham
com a capitania nas mãos da Coroa (Mello, 2003).
A devolução da capitania à família donatarial deveria ser feita
por procuração passada do marquês de Cascais ao governador
de Pernambuco, o marquês de Montebelo. Este a repassou
para um dos pró-homens na capitania, Jerônimo Cavalcanti
de Albuquerque Lacerda. A posse deveria ser procedida pelo
Dr. Diogo Rangel, ouvidor-geral da Paraíba, que promovia as
correições em Itamaracá.19
Tanto Montebelo como Diogo Rangel foram surpreendidos
com o levante de Goiana. Os vereadores diziam não poder dar início
à cerimônia de restituição, pois mais de 1200 populares de armas
nas mãos os coagiam, exigindo a não execução da ordem régia.
Os vereadores acabaram elegendo um juiz do povo e mais quatro
representantes entre os principais da terra para conter os ânimos.
O marquês de Montebelo tentou entrar em um acordo com a
Câmara, ordenando que se restabelecesse a ordem pública em
troca de não serem punidos (Mello, 2003).

18 Evaldo Cabral de Mello (2003) tratou deste levante como uma das atribulações do
governador de Pernambuco, o marquês de Montebelo, que contribuíram para o seu
fracasso pessoal.
19 Os poderes do centro da Capitania de Itamaracá estavam imbricados com os
das Capitanias de Pernambuco e Paraíba. No caso da ouvidoria, estas correições
eram de responsabilidade do ouvidor da Paraíba, mesmo tendo ouvidoria própria
(Barbalho, 2009).
62 Itamaracá: uma donataria entre as Capitanias R eais...

Os goianenses acharam a proposta de Montebelo uma afronta


e mantiveram os vereadores presos na Câmara durante os quinze
primeiros dias de agosto. Tendo em vista os acontecimentos,
o corregedor, pressionado pelo governador de Pernambuco,
foi obrigado a entrar em Goiana. Segundo informou, a única
maneira de resolver o problema era dar o perdão geral e esperar
nova decisão régia, mas Montebelo não concordava e exigiu que
Diogo Rangel concretizasse a restituição em cerimônia de posse.
O governador suspeitava que o corregedor havia exagerado a
situação para conseguir o perdão do motim e o adiamento da
devolução. A certeza do levante forjado se comprovou com o
fato de que, mesmo com o “motim”, a câmara ainda promoveu
arrematação do subsídio do açúcar e do fumo (Mello, 2003).
Diogo Rangel tentou negociar com a Câmara, mas até a
própria milícia de Itamaracá já estava empolgada pelos sediciosos,
não podendo o corregedor se valer delas para conter a agitação.
O sargento-mor, Jerônimo Cavalcanti de Albuquerque Lacerda,
procurador do donatário, havia fugido após o tumulto. O marquês
de Montebelo não quis se valer das tropas pernambucanas, o que
deixaria Pernambuco desguarnecido. Para Mello (2003), o levante
foi instigado pelos inimigos de Montebelo em Pernambuco, com
o intuito de, usando as tropas de Pernambuco, desguarnecer a
capitania e dar espaço para eles promoverem um levante contra o
governador (Mello, 2003).
Após entrar em acordo com a Câmara, Diogo Rangel
conseguiu sossegar o povo com a promessa de não se punirem os
sediciosos – foi passada uma “carta seguro” – e de que se esperaria
nova resolução da Coroa sobre a transferência, que ficava, então,
suspensa. Desta forma, Diogo Rangel retornou para a Paraíba
(Mello, 2003).
Como nos esclarece Mello (2003), a situação ainda não estava
controlada. Para ele, o levante, na verdade, foi forjado por dois pró-
Luciana de Carvalho Barbalho 63

homens, um deles, Jorge Cavalcanti, com apoio da Câmara – ao


que tudo indica, era composta, em sua maioria, por comerciantes
reinóis – e dos carmelitas reformados – encabeçados pelo frei
João de São José – que em Goiana eram protetores dos mascates.
Então, a Câmara, que se dizia coagida pelo povo, era, em realidade,
cúmplice ou aliciadora deste.
Jorge Cavalcanti era juiz ordinário da Câmara de Goiana e
tinha muitos inimigos entre a sua parentela, o que faz com que
entendamos a sua ligação com os reinóis e sua reivindicação de
manter a capitania nas mãos da Coroa (Mello, 2003). Assim, não
favorecia aos seus parentes inimigos, os Cavalcanti.
O clima ainda estava tenso por volta do Natal de 1692, e
Montebelo não conseguiu resolver o problema, ficando a tarefa
para o seu sucessor, Caetano de Melo e Castro (Mello, 2003). O
próprio marquês de Cascais escreveu uma carta ao Rei D. Pedro
II, em janeiro de 1693, relatando que a capitania tinha sido doada
aos seus avós para sempre, e que as cartas de sucessão passadas
eram sempre atendidas de maneira pacífica pelos moradores da
capitania até a ocupação holandesa. Expressando sua indignação
pelo levante, o marquês insinuou punição aos sublevados,

(...) Pois se ficar impunida e disimulada esta desobediência será


o meio para que abuzando da prolongada distância da real
prezença de Vossa Majestade se estenda a sua ousadia a huma
desobediência só tal dos Estados do Brasil.20

Chegou, inclusive, a fazer algumas acusações de que o levante


foi incitado por alguns. Percebeu que estes quatro representantes
eleitos eram, na verdade, os instigadores do povo contra a
devolução, e citou o frei carmelita calçado, João de São José,
como um dos levantados que induziu os moradores através

20 AHU_ACL_CU_015, Cx. 16, D. 1590.


64 Itamaracá: uma donataria entre as Capitanias R eais...

de um manifesto falso. Por fim, solicitou que a capitania fosse


finalmente restituída, ficando aos cuidados do novo governador
de Pernambuco, Caetano de Melo e Castro.21
Como o levante não foi considerado contra o monarca,
visto que os levantados queriam continuar sob a sua tutela, não
deveriam ser castigados. Porém, foram advertidos, já que tinham
desobedecido a uma ordem real de reintegração, e avisados de
que, caso ocorresse novamente outro levante, seriam severamente
castigados (Mello, 2003). Em carta de 13 de março de 1693, o Rei
mandou o provedor da fazenda de Itamaracá entregar

(...) as rendas e direitos dominicais que lhe pertencem na forma


do seu foral (...) vos ordeno façais entregar ao dito Marquez
de Cascais por seo procurador tudo o que tiver descoberto e
estiver em ser tocante as rendas da dita capitania (...).22

As ditas rendas tinham sido arrecadadas durante o ano de 1692,


mas com o levante e a não restituição da capitania, não foram
entregues ao marquês como de direito. A reintegração, feita em
meados de 1693 à família do donatário, ficando como procurador
Jerônimo Cavalcanti de Albuquerque Lacerda, garantia que, na
ausência e negligência do donatário, El Rei viria em seu socorro.
Os pró-homens continuariam a receber os privilégios régios.
Assim, os levantados aceitaram, portanto, a restituição e as coisas
se acalmaram (Mello, 2003).

21 Idem.
22 APEJE, OR. 2, fls. 31 e 31v.
Luciana de Carvalho Barbalho 65

Considerações Finais

A família Sousa fazia parte dos Grandes de Portugal, possuindo


ofícios junto à Coroa, e por isso foram agraciados por tanto tempo
com a posse da Capitania de Itamaracá. Os seus donatários eram
ausentes, mas apenas no sentido de que não estavam pessoalmente
na capitania, afinal, não podiam ausentar-se de Portugal já que
possuíam aí cargos importantes. Mas, participavam ativamente
das decisões referentes aos assuntos socioeconômicos e políticos
da capitania, o que indica que a família não abandonou a capitania,
mas tentou mantê-la, apesar da distância.
Na verdade, a família donatarial, como uma maneira de superar
os problemas causados pela distância, principalmente no que diz
respeito ao alargamento do poder local nesta localidade, solicitava
apoio dos agentes régios em Pernambuco e na Paraíba, através
das procurações passadas a estes para agirem em seu nome. E
isso acabava dando margens à invasões de jurisdições por parte
destes agentes.
A Capitania de Itamaracá permaneceu por mais de duzentos
anos como uma donataria (1534-1763), desenvolvendo aí não só
uma sociedade, uma política e uma cultura próprias – dentro da
dinâmica do Antigo Regime Português, que, de várias formas,
fazia e refazia o Império –, mas também uma economia que
provocava a cobiça das outras capitanias. Isso torna questionável
a afirmação de Manuel Correia de Andrade, de que era uma
“capitania frustrada”. Só a partir de meados do século XVIII,
quando as Capitanias do Norte foram anexadas à Capitania de
Pernambuco, é que Itamaracá perdeu sua autonomia. O fato
de não ter sido desanexada como as outras capitanias, no final
do referido século, contribuiu para que, por muitos anos, fosse
estudada apenas como parte de Pernambuco.
66 Itamaracá: uma donataria entre as Capitanias R eais...

Referências Bibliográficas

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Capítulo IV

Entre a defesa e a ordem: os corpos


militares na Capitania da Paraíba
(1750-1777)

Bruno Cezar Santos da Silva1

Esse artigo visa, essencialmente, identificar as transformações


ocorridas nas forças armadas assentadas na Paraíba à luz da refor-
ma militar empreendida por Sebastião José de Carvalho e Melo,
o marquês de Pombal. Época, inclusive, caracterizada por várias
transformações no âmbito do império ultramarino português e
que abrangeu parte do período no qual a capitania da Paraíba es-
teve subordinada – militar e administrativamente – a Pernambuco
(1755-1799).
Para tanto, tomaremos como base de investigação o
levantamento feito nos documentos avulsos do Arquivo
Histórico Ultramarino (AHU), cota Paraíba, disponibilizados
pelo Projeto Resgate Barão do Rio Branco. Contudo, antes de
problematizarmos os impactos da dita reforma militar para o
Brasil e, em particular, para a Paraíba, iniciaremos a discussão
apresentando, em linhas breves, a estrutura organizacional dos
corpos militares luso-brasileiros em meados do século XVIII.

1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal


da Paraíba, sob orientação do professor Dr. Acácio José Lopes Catarino. Bolsista
Capes. Endereço eletrônico: brunoc2s@hotmail.com
70 Entre a defesa e a ordem: os corpos militares na...

A composição das forças armadas coloniais no século XVIII

Com efeito, as forças armadas coloniais, neste período, estavam


dispostas da seguinte forma: tropas de primeira linha, tropas
auxiliares (ou milícias) e ordenanças. As tropas de primeira linha eram
o exército regular, isto é, as tropas de base permanente, formadas
por oficiais e soldados profissionais, todos com direito a soldo.
Em tese, recebiam, também, fardamento, armamento, farinha,
azeite, capim, cavalos e assistência hospitalar (Cotta, 2010: 41).
Porém, o repasse tanto da remuneração quanto destes materiais
citados, era parcamente observado pela Coroa (Silva, 2001).
Segundo a legislação militar vigente, seus regimentos deveriam
ser compostos apenas por soldados portugueses, conservando o
mesmo nome do lugar de onde tinham sido formados.2 Contudo,
a demanda de reinóis nas áreas coloniais nunca era suficiente,
sempre carecendo complementá-la com soldados locais. No caso
do Brasil, as tropas pagas eram formadas, via de regra, por um
contingente de moradores, sendo escolhidos preferencialmente
homens brancos ou mulatos. Podiam se constituir em Terços de
Infantaria e Regimentos de Cavalaria (Prado Júnior, 2004: 310-
311).
As tropas auxiliares que, nesta centúria, seriam comumente
denominadas de milícias, tinham o papel de defender e lutar pelos
anseios da Coroa, além de suprir o trabalho que os pagos deviam
fazer, quando estes não podiam acudir ao Real Serviço; em outras
palavras, tratava-se também de um serviço obrigatório, sendo que,
neste caso, desempenhado por civis; não logravam remuneração
(com exceção dada ao Sargento-mor e ao Ajudante que, em geral,
provinham das tropas pagas e eram militares de ofício), ademais,

2 Como exemplo, temos os Regimentos de Bragança e Moura, estacionados em fins


do século XVIII no Rio de Janeiro, e o de Estremoz, em Santa Catarina, Parati e
Angra dos Reis.
Bruno Cezar Santos da Silva 71

deveriam patrocinar seu próprio fardamento e armamento.


Os fatores determinantes na sua estrutura eram a divisão
territorial – comarcas e freguesias – e a posição econômico-social
de seus membros, uma vez que a concessão das patentes para
o oficialato respeitava e considerava o lugar social do indivíduo.
Estavam organizadas em Terços de Infantaria e Regimentos de
Cavalaria; no que diz respeito aos treinamentos, eram realizados,
majoritariamente, aos domingos, após as missas, devido à ocupação
de seus componentes em diferentes atividades produtivas (Silva,
2001: 78; Cotta, 2010: 41-44). Outra característica relevante é que
não existia muita uniformidade entre as capitanias, no que tange à
sua composição numérica e ao tipo de milícias.3
Já as Ordenanças constituíam uma força local que, ao contrário
das milícias, não podiam ser deslocadas do lugar onde residiam seus
efetivos. Eram compostas por toda população masculina, entre
18 e 60 anos, que não estava na lista dos recrutados para as tropas
pagas ou de auxiliares; também permaneciam organizadas em
Terços, comandados por um capitão-mor. No mais, possuíam as
mesmas características das Auxiliares: não recebiam remuneração,
custeavam sua farda e armamento, treinavam eventualmente e o
pertencimento ao oficialato conferia e legitimava status e respeito
(Silva, 2001: 78-79; Cotta, 2010: 44-46; Prado Júnior, 2004: 312-
313).

3 Caio Prado Jr. (2004: 312) nos apresenta dois exemplos de organização dos
Auxiliares: o da Bahia e o do Rio de Janeiro. “Na primeira, eram as milícias
conhecidas por tropas urbanas, compostas dos seguintes regimentos: dos Úteis,
formado por comerciantes; de Infantaria, no qual entravam artífices, vendeiros,
taberneiros, todos brancos; o de Henrique Dias, composto por pretos forros e o
Quarto Regimento Auxiliar de Artilharia, formado de pardos e mulatos. No Rio de
Janeiro, as milícias são divididas em terços que tomam o nome das freguesias em
que se formavam; Candelária, São José e Santa Rita, e mais um dos homens pardos
libertos”.
72 Entre a defesa e a ordem: os corpos militares na...

Diante do exposto, podemos afirmar que tal configuração


buscava tornar a sociedade colonial um espaço “militarizado”,
uma vez que visava incluir boa parte dos homens no contexto das
hierarquias militares. No entanto, era comum a fuga de moradores
para os vastos sertões, quando se anunciavam os “famigerados”
períodos de recrutamentos. Não obstante, ainda havia aqueles
que, por algum motivo especial, eram dispensados dos serviços
das armas,4 os que eram apadrinhados ou mesmo aqueles que
lançavam mão do suborno.

A Reforma Militar portuguesa no período pombalino

É importante sublinhar, de imediato, que no século XVIII iria


ocorrer, em toda a Europa, um gradual desenvolvimento das
atividades ligadas à ciência e à arte da guerra (Keegan, 1995). Tal
fato provocaria um aprimoramento das práticas de adestramento,
das táticas e estratégias de organização das tropas em combate.
Levaria, outrossim, a um aumento da eficiência técnica, sobretudo
no que concerne ao uso das armas de fogo.
Segundo Michel Foucault, o soldado deste século teria uma
roupagem diferente daquele do século XVII, que se caracterizava,

4 Christiane Figueiredo Pagano de Melo (2006: 23) aponta que, segundo o Alvará de
24/02/1764, os privilegiados com a isenção militar, no Reino e no Ultramar, eram:
“os criados domésticos dos fidalgos e dos ministros que os serviam cotidianamente
com ração e salário; os estudantes de colégios e universidades, exclusivamente,
aqueles que apresentassem aplicação e aproveitamento; os comerciantes e seus
caixeiros e feitores que o ajudassem em seu negócio cotidianamente; os homens
marítimos, exclusivamente, os assentados nos livros de matrícula; os filhos únicos
de lavradores; os filhos e os criados dos mais consideráveis lavradores; os artífices
e dois aprendizes, no caso de que o artífice fosse mestre de loja aberta ou obras;
os filhos únicos de viúvas; os Tesoureiros da Bula da Cruzada; os estanqueiros do
tabaco e os feitores, criados domésticos e mais pessoas empregadas por contrato da
real fazenda”.
Bruno Cezar Santos da Silva 73

fundamentalmente, pela força, coragem e honra; ao passo que o


soldado setecentista passaria a ser:

Algo que se fabrica; de uma massa informe, de um corpo inapto,


fez-se a máquina de que se precisa; corrigiram-se aos poucos
as posturas: lentamente uma coação calculada percorre cada
parte do corpo, se assenhoreia dele, dobra o conjunto, torna-o
perpetuamente disponível, e se prolonga, em silêncio, no
automatismo dos hábitos; em resumo, foi ‘expulso o camponês’
e lhe foi dada a ‘fisionomia de soldado’ (Foucault, 2009: 131).

Contudo, ao mesmo tempo em que se verificava esse processo


de maior disciplinamento do soldado, é sabido que Portugal,
neste período, se caracterizava no cenário diplomático europeu
pela sua tradicional neutralidade, evitando, sempre que possível,
envolvimentos mais diligentes nas disputas dinásticas que
abrangiam as principais casas reais do continente. Entretanto, as
vicissitudes que matizavam este século obrigaram-no a integrar,
desde o começo, o palco principal (mesmo que como coadjuvante)
das contendas e batalhas então emergidas.
É o caso da Guerra de Sucessão Espanhola, disputada entre
1702 e 1714, que colocara Portugal – aliado da Inglaterra, da
Áustria e dos Estados Neerlandeses – contra o bloco liderado
por Espanha e França. Em razão deste arranjo, o rei Felipe V de
Espanha declarou-lhe guerra no ano de 1704 e, como uma das
conseqüências deste imbroglio, o Rio de Janeiro foi invadido por
corsários franceses em duas ocasiões: uma em 1709, malograda;
a outra, em 1710, causando acentuados estragos à cidade (Boxer,
2000: 111-131). Ademais, outra tensão despertada nos trópicos
foi o acirramento das querelas rivalizando luso-brasileiros e
hispano-americanos, em torno do controle da região Platina, no
extremo meridional da América do Sul (Possamai, 2006). Eventos
estes que só foram minorados com a assinatura do tratado de
Ultrecht (1714), que pôs fim à Guerra.
74 Introdução

Vale destacar que, dentro desta lógica de aperfeiçoamentos


bélicos, D. João V (1706-1750) promoveu uma mudança na
estrutura do exército português, ao substituir, nas tropas regulares,
os terços espanhóis pelos regimentos de base francesa. Assim,
Portugal inscrevia-se na utilização dos exércitos regimentais, que
modificariam a forma de fazer guerra no século XVIII. Esta
estrutura de organização militar inventou, dentre outras coisas,
o quartel5 e preconizou a intervenção dos engenheiros militares
e dos artilheiros na dinâmica das cidades e casernas (Catarino,
2001).
Outro conflito marcante da época foi a Guerra dos Sete
Anos, travada entre os anos de 1756 e 1763, no qual Portugal
fora compelido a entrar em 1761, quando teve seu território
invadido por forças franco-espanholas. A investida só não logrou
êxito graças à veemente mobilização popular, em especial, dos
alentejanos, e ao apoio dos britânicos, que contribuíram através
do envio de tropas e oficiais (Belloto, 2007: 49-50). No entanto, o
episódio, que teve impacto absolutamente secundário no enredo
e resultado da guerra, lançou luzes para um problema fulcral de
Portugal, qual seja: a precariedade das suas forças armadas –
seriamente desmanteladas.
É neste contexto que entra em ação a figura de Sebastião José
de Carvalho e Mello na época, ainda conhecido como Conde de
Oeiras, e que promoverá – a expensas da fragilidade econômica
da Coroa Bragantina – uma verdadeira reforma no exército
lusitano, tanto no Reino quanto nas possessões no Ultramar.
Nesta empreitada, o ministro contou com o exponencial apoio

5 Sobre a instalação de quartéis na Europa setecentista, Michel Foucault (2009: 137)


afirma que “era preciso fixar o exército, essa massa vagabunda; impedir a pilhagem
e as violências; acalmar os habitantes que suportam mal as tropas de passagem;
evitar os conflitos com as autoridades civis; fazer cessar as deserções; controlar as
despesas”.
Bruno Cezar Santos da Silva 75

de oficiais do Exército Inglês, membros da vanguarda militar


europeia, como o Conde de Lippe6 e Johann Heinrich Böhm,7
homens que permaneceram no país após a Guerra dos Sete Anos
e executaram consideráveis melhoramentos nas tropas lusitanas
(Maxwell, 1996: 126; Bebiano, 2000: 424-435).
Neste ínterim, a política colonial continuava a receber alta
prioridade por parte da Coroa. E a retomada das dissensões com
a Espanha se refletiu, mais uma vez, nas questões deste lado do
Atlântico; em outras palavras, no acirramento das disputas em
torno das terras e riquezas da Bacia Platina. Isto ficou explícito
quando se verificou a revogação do Tratado de Madri (1750), por
meio do Tratado de El Pardo, em 1761 (Maxwell, 1996: 51-55); a
expulsão dos jesuítas de todos os domínios portugueses (1759);
bem como a invasão da Colônia de Sacramento pelo governador
de Buenos Aires, D. Pedro Cevallos, em 1762, que, inclusive,
recusou-se a devolver parte do território do qual se apossou,
malgrado a assinatura do Tratado de Paris (1763), que pôs fim a
Guerra dos Sete Anos (Garcia, 2009; Mello, 2004: 54-81).
Estes são apenas alguns dos problemas que D. José I, com
todo o seu séquito de ministros, conselheiros e funcionários reais,
além dos cidadãos comuns, engajados a partir do recrutamento
nas companhias militares, haviam de enfrentar para manter e

6 Guilherme de Schaumburg-Lippe, conhecido em Portugal como Conde de


Lippe, depois de várias atuações em escaramuças pela Europa, é convidado por
Sebastião José de Carvalho e Mello a comandar as forças portuguesas. A verdadeira
contribuição de Lippe, no entanto, veio depois do fim da Guerra dos Sete Anos:
reorganizou as forças militares portuguesas nos dois anos em que permaneceu em
Portugal. Introduziram-se as diretrizes da escola militar prussiana de Frederico II
tanto no sentido da organização como no emprego da estratégia. Ver Belloto, 2007:
50.
7 O General austríaco Johann Böhn foi, inclusive, transferido para o Brasil, onde
fora nomeado chefe do Estado Maior, juntamente com outro militar, o perito
em fortificações Jacques Funck, que ficou responsável pelo cargo de chefe da
engenharia e artilharia da Colônia. Ver Maxwell (1996: 126).
76 Entre a defesa e a ordem: os corpos militares na...

demarcar territórios na América do Sul.


Com o intuito de elevar a capacidade defensiva do Brasil, a
Coroa criou uma série de medidas que, por sua vez, se articulava
perfeitamente com a quase obsessiva preocupação de Sebastião
José em relação à estrutura militar colonial (Magalhães, 2011:
174). Uma das primeiras iniciativas foi a transferência da capital
para o Rio de Janeiro, em 1763. O objetivo era eminentemente
militar, haja vista que objetivava aproximar o aparato político-
administrativo da principal área econômica da Colônia, que era as
Minas Gerais, dando-lhe maior proteção e suporte para engendrar
o escoamento da produção. Além disso, havia o problema da
fronteira meridional, constantemente ameaçada. Mais tarde, a
guarnição colonial foi reforçada por três dos melhores regimentos
portugueses – Moura, Bragança e Estremoz (Maxwell, 1996: 126).
Ainda dentro desta lógica, houve uma preocupação especial
com a dispersão interna das tropas nos vastos territórios coloniais,
uma vez que eram comuns as deserções e evidentes os atos de
resistências ao serviço militar vindos da sociedade, notadamente,
das camadas populares. A indisciplina nas tropas era notória. Não
obstante, eram também característicos a falta de armamento,
munição, fardamentos e demais apetrechos bélicos. As fortalezas,
principais chaves de defesa, estavam, em quase todas as capitanias,
em estado periclitante. Em suma, urgia, inexoravelmente, que
reformas fossem feitas.
Sebastião José também pensou na elaboração de um sistema de
segurança integrado entre às capitanias, que estivesse centralizado
na capital – Rio de Janeiro; bem como em se agregar os grupos
sociais marginalizados (negros forros, pardos e índios), tornando-
os igualmente súditos por meio de sua integração aos corpos
militares, assim como às outras instituições coloniais, como as
irmandades e confrarias religiosas.
Em meio a toda a fragilidade econômica da Coroa, o aumento
Bruno Cezar Santos da Silva 77

do contingente só seria possível sem altos custos. Sendo assim, era


inviável a constituição de tropas pagas, ou seja, de primeira linha.
Nesta perspectiva, foram criados, em todo o Brasil, vários Terços
de Infantaria e Regimentos de Cavalaria Auxiliares, caracterizados
por serem gratuitos e organizados a partir de critérios étnico-
sociais (Maxwell, 1996: 128).
Paralelo a estas medidas, Pombal encetou uma política calcada
no povoamento. Para tanto, incentivou a fundação de diversas
vilas, arquitetou o Diretório dos índios, passando a tutela dos
gentios para as mãos de leigos; trouxe casais dos Açores para
povoar a região sul, mais precisamente, a ilha de Santa Catarina.
Enfim, eram todos projetos de notável caráter econômico, mas
também – na mesma intensidade – de natureza militar.
Para finalizar este subitem, vale evidenciar que a implementação
das referidas ações não se materializaram na sua plenitude. Muito
pelo contrário, as mesmas exigiam de Lisboa e da própria Colônia
um dispêndio financeiro e humano que estava bastante além de
suas possibilidades. Provocando, assim, a manutenção de muitos
destes problemas. A seguir, apresentaremos, a guisa de síntese,
algumas das mudanças ocorridas na capitania da Paraíba em razão
da dita reforma militar.

Algumas notas sobre a reforma militar na Paraíba

Começaremos expondo as características das tropas pagas. Com


respeito à composição numérica de suas companhias e à divisão
do seu oficialato, verificamos que, durante toda a segunda metade
do século XVIII, houve certa estabilidade. Isto é, a reforma
militar engendrada por Pombal não trouxe mudanças capitais
no seu contingente. Eram três as companhias que guarneciam
a Capitania: uma na fortaleza de Cabedelo e as outras duas, na
78 Entre a defesa e a ordem: os corpos militares na...

praça da cidade da Parahyba do Norte – maior núcleo urbano da


Capitania (as demais vilas e freguesias ficavam sob jurisdição das
tropas de Auxiliares e Ordenanças).
Com efeito, as verdadeiras mudanças ocorreriam no tocante
às tropas Auxiliares. Em maio de 1740, é expedido um despacho
do Conselho Ultramarino informando a criação de um Terço na
capitania, reformulando o existente.8 À época, exercia o cargo
de capitão-mor Pedro Monteiro de Macedo (1734-1744). O dito
terço seria composto de 10 companhias, sendo o seu mestre-de-
campo escolhido entre os “principais desta terra”, ou seja, pessoa de
cabedal e que fosse bem quista na sociedade, já o sargento-mor e
os ajudantes do número e supra, provenientes das tropas pagas,
receberiam soldo à “proporção ao que venciam os referidos oficiais
em Pernambuco”9. Ademais, era indicado que os outros oficiais
superiores fossem de reconhecida experiência e provenientes das
tropas pagas. Quanto à distribuição, estas se espraiariam pelos
principais “portos do mar” da capitania, isto é, pelas vilas e suas
respectivas freguesias localizadas em áreas litorâneas, a saber:
Mamanguape e Baía da Traição (três companhias), Ponta de
Lucena (uma), Forte Velho (uma), cidade da Paraíba e distrito do
Cabo Branco (cinco).
O mencionado Terço era composto por uma média de 564
membros, contando praças e oficiais, como mostra um documento
de 1756.10

8 Despacho do Conselho Ultramarino ao governador da Paraíba, Pedro Monteiro de


Macedo, informando da criação do Terço de Auxiliares, datado de 19 de maio de
1740 (AHU_ACL_CU_014, Cx. 11, D. 911).
9 Receberiam o Sargento-mor a vinte e seis mil réis, por mês, e os Ajudantes do
Número a quatro mil réis e os supra, a três mil réis.
10 Carta do governador da Paraíba, coronel Luís A. de Lemos de Brito, ao rei, D. José
I, remetendo as listas dos moradores que servem nas Companhias de Ordenanças
e Auxiliares, datada de 17 de mai. de 1756 (AHU_ACL_CU_014, Cx. 19, D. 1490;
Arquivo Histórico Ultramarino_Administração Central_Conselho Ultramarino_
Terço Auxiliar da Paraíba – 1756

1ª 2ª 3ª 4ª 5ª 6ª 7ª 8ª 9ª 10ª
Cia Cia Cia Cia Cia Cia Cia Cia Cia
Cia
Mestre de 0 1 0 0 0 0 0 0 0 0
Campo
Capitão- 1 0 1 1 1 1 1 1 1 1
mor
Ajudante 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1
Alferes 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1
Sargento- 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1
supra
Sargento 2 2 2 2 2 2 2 2 2 2
do nº
Cabos de 4 4 4 4 4 4 4 4 4 4
Bruno Cezar Santos da Silva

Esquadra
Praças 39 42 43 57 53 50 41 50 56 34
79

Efetivo 48 51 52 65 62 59 50 58 65 43
Fonte: Arquivo Histórico Ultramarino (AHU_ACL_CU_014, Cx. 19, D. 1490).

Cota Paraíba, Caixa 19, Documento 1490).


80 Entre a defesa e a ordem: os corpos militares na...

Para os próximos governadores, como Luís Antônio de Lemos de


Brito (1753-1757) e Jerônimo José de Melo e Castro (1764-1797),
um terço de Auxiliares com dez companhias já era excessivo. Os
mesmos sugeriam a sua diminuição e a consequente ampliação das
companhias de ordenanças para que “todos gozem o alívio que
por elas he concedido”.11 A razão estava no prejuízo econômico
que as obrigações militares suscitavam para a capitania.12
Sobre a questão, Lemos de Brito, no ano de 1755, diz o
seguinte:
Visto não se acharem completas algumas companhias deste
terço de auxiliares e não tendo alguns capitães patentes de
Vossa Magestade, informe com o meo parecer se deve reduzir-
se o mesmo terço a menor número de companhias, atendendo
a que a maior parte dos moradores deve ficar nas ordenanças,
e que estes hão de ser moradores dentro das sete legoas dos
portos do mar e, hão de servir somente cinco annos e hão de
entrar outros auxiliares em seo lugar.13

Seguindo as mesmas ideias, arrazoa Melo e Castro, onze anos depois:

Não foi bem ordenado a creação de hum terço destas tropas


em hum destricto de tampoucos moradores, [pois, é] prejudicial
aos povos occuparem-se tantos moradores neste serviço,
faltando achar suas cazas e fazendas. [...] Pelo que se vos ordena
que reduzaes estes Auxiliares da Vossa Capitania a quatro
Companhias de 48 soldados, com quatro Cabos de Esquadra,
dous sargentos, e hum alfares cada huma, que serão governadas,
huma pelo Mestre de Campo, outra pelo Sargentomor e as
outras duas pelos Capitaens.14

11 Ofício de Jerônimo José de Melo e Castro a Francisco Xavier de Mendonça


Furtado, datado de 28 de maio de 1766 (AHU_ACL_CU_014, Cx. 23, D. 1803).
12 Idem; Carta de Luis Antônio de Lemos de Brito, ao rei D. José I, sobre a redução
do Terço de Auxiliares da Capitania, de 28 de abr. de 1755 (AHU_ACL_CU_014,
Cx. 18, D. 1433).
13 AHU_ACL_CU_014, Cx. 18, D. 1433.
14 AHU_ACL_CU_014, Cx. 23, D. 1803.
Bruno Cezar Santos da Silva 81

No entanto, a documentação mostra que tais pretensões jamais


foram contempladas. Ao contrário, quando em 1766, o conde da
Cunha, vice-rei do Brasil, emite do Rio de Janeiro uma carta régia
a todos os capitães-governadores exigindo uma inteira reforma
nas milícias – no que tange à disciplina, competência e ampliação
das tropas –, Jerônimo José de Melo e Castro agiu exatamente em
conformidade com as diretrizes emanadas da Coroa.
Assim, mudanças substanciais ocorreriam na composição
das tropas Auxiliares. Em primeiro lugar, foi criado, no mesmo
ano, o terço de Pardos, a exemplo do que já havia acontecido
na Bahia e Pernambuco. Com isso, dividir-se-iam, os Auxiliares,
fundamentalmente, a partir de critérios étnico-sociais. Tal criação
esteve, em larga escala, relacionada à insatisfação destes pardos
com o preconceito imposto pelos brancos e com o desconforto
de se sentirem igualados aos negros. Como é denunciado por
Melo e Castro em missiva de 17 de abril:

Na Praça e Recinto desta cidade há inumeráveis pardos que


mais satisfeitos de servirem no Regimento dos Henriques e de
serem desprezados nas ordenanças dos Brancos, me requerem,
com grandes instâncias que para evitarem o abatimento que
tem na Companhia dos pretos e desprezo que experimentão
nas dos brancos, lhe crie hum corpo de Companhias que os
comprehenda, onde haja officiais e postos aqui elles possão
aspirar, assim como se prattica em Pernambuco e Bahia.15

Com a reforma, as Milícias passariam a ser formadas por cinco


corpos: três terços de Infantaria, cada um com dez companhias
– um de brancos, um dos Henriques e outro dos pardos –, e
por dois regimentos de Cavalaria. É interessante sublinhar que
sua composição aumentaria vertiginosamente em decorrência

15 Carta de J. J. de M. e Castro, ao rei D. José I, sobre a necessidade de se criar uma


companhia de Pardos, datado de 21 de abril de 1766 (AHU_ACL_CU_014, Cx. 23,
D. 1778).
82 Entre a defesa e a ordem: os corpos militares na...

desta reformulação. Em 1769, os três terços de Infantaria


apresentariam, juntos, 1.592 praças, triplicando o seu contingente;
já os dois regimentos de Cavalaria – o novo e o velho – teriam 864
membros.16
Escrevendo carta ao rei, em 5 de maio de 1770, Jerônimo José
expõe a situação das companhias Auxiliares, após as alterações
feitas. Segundo ele:

Achão se completos os dois Regimentos da Cavalaria Auxiliar


e os dois Terços de Brancos e Pardos e quase completo o dos
Henriques por notória falta de homens pretos17.

O capitão-mor, além de demonstrar a dificuldade de completar


o terço dos Henriques, ainda denuncia, em julho do ano anterior,
o problema das tropas estarem desprovidas de armas para o
exercício de suas atribuições: “Os três Terços e os dois Regimentos
novamente Auxiliares desta Praça, e seus subúrbios tão bem se
achão dezarmados, e fogem ao exercício por peso de o fazerem
sem armas”.18

16 Carta de J. J. de Melo e Castro ao rei, informando de várias questões militares,


datada de 27 de julho de 1769 (AHU_ACL_CU_014, Cx. 24, D. 1856).
17 Carta de Melo e Castro sobre o estado das tropas na Paraíba, 5 de fevereiro de 1770
(AHU_ACL_CU_014, Cx. 24, D. 1872)
18 Carta de J. J. de Melo e Castro, ao rei, sobre a necessidade de reparos e
pólvora para a fortaleza de Cabedelo, 27 de julho de 1769 (AHU_ACL_
CU_014, Cx. 24, D. 1856).
Bruno Cezar Santos da Silva 83

Terços Auxiliares da Paraíba - 1769

Tipos Total de membros

Brancos
Terços de Pardos
1592
Infantaria
Henriques

Regimentos de Velho
Novo 864
Cavalaria
Fonte: Arquivo Histórico Ultramarino (AHU_ACL_CU_014, Cx. 24, D.
1856).

Consoante Silva (2003: 497-500), um dos fatores que podem


explicar a ampliação dos corpos auxiliares está assentado no
aumento da população. O autor afirma que entre a segunda
metade do século XVIII e inícios do seguinte, “nenhuma parte
da América portuguesa registrou maior crescimento populacional
que a região compreendida pela capitania de Pernambuco e suas
anexas – Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, incluindo a
comarca das Alagoas”. Na mesma direção, aponta Ribeiro Junior
(2004: 72), mostrando que a população destas capitanias, nos
anos de 1762-1763, girava em torno de 169.582 habitantes19 e
que, quinze anos depois, este número havia mais que duplicado,
apresentando um total de 363.238 habitantes, em 1777, e
chegando, cinco anos mais tarde, a 367.431 pessoas.
Escrevendo no começo do século XX, Ireneu Pinto (1977:
165-66), que incorre no problema de não identificar as suas

19 Distribuídos da seguinte forma: Pernambuco, 90. 109 habitantes; Rio Grande,


23. 305; Paraíba, 39. 158; Ceará, 17. 010. Deste total, o número de escravos e a
população livre de cada capitania, são respectivamente: Pernambuco, 23. 299 e 66.
810; Rio Grande, 4. 499 e 18. 806; Paraíba, 9. 293 e 29. 865; Ceará, 2. 128 e 14. 882.
84 Entre a defesa e a ordem: os corpos militares na...

fontes, também traz informações acerca da população paraibana.


Partindo da descrição feita pelo padre Domingos Loreto Couto,
em 1754, assinala que, na capital, habitavam aproximadamente
três mil pessoas e que, em seu termo, isto é, em todo o resto
da Capitania, existiam mais de vinte mil almas. Já duas décadas
depois, o estudioso assinala haver mais de trinta mil almas, sendo
10.050 residentes na capital.20
Outro aspecto interessante e que se atrela, sensivelmente, a esta
conjuntura de crescimento demográfico, diz respeito à elevação
de alguns povoamentos indígenas à categoria de vilas – processo,
inclusive, que teve abrangência em todas as partes do Brasil. No
caso da Paraíba, até 1758, todo o termo da Capitania pertencia
à cidade da Parahyba do Norte, existindo, apenas, núcleos
populacionais que eram subordinados a ela, como freguesias e
aldeamentos. Contudo, no final do século, seguindo as diretrizes
da política pombalina de povoamento, de incentivo à produção e
de aumento da arrecadação, já existiam sete vilas além da cidade
da Paraíba, a saber: Vila Nova do Pilar (fundada em 1758), Vila
Nova de São Miguel da Baía da Traição (1758), Vila Nova de
Alhandra (1758), Vila Nova de Monte-mor da Preguiça (1762),
Vila Nova do Conde (1768), Vila Nova de Pombal (1772) e Vila
Nova da Rainha, futura Campina Grande (1790).21
De fato, além do aumento demográfico demonstrado, a ereção
destas vilas pôde ter contribuído para o aumento das tropas
de milícias da capitania, haja vista que as instâncias militares
caracterizavam-se como um dos marcos legitimadores da estrutura

20 Notem a fragilidade destes números. Enquanto Ribeiro Jr. assinala que, entre os
anos de 1762-1763, a Paraíba contava com uma população de 39. 158 habitantes.
Irineu Pinto aduz que a população paraibana tinha, em 1774, 30 mil habitantes,
mesmo tendo em vista estas circunstâncias de crescimento demográfico.
21 Sobre a fundação de vilas, na Paraíba, confere: Pinto (1977); Almeida (1977: 69-71
e 137-40).
Bruno Cezar Santos da Silva 85

colonial, sinalizando que a presença do Estado se fazia efetiva


naquele espaço. Não obstante, é interessante salientar, como aduz
Gomes (2010: 166), que este processo de emergência de novas
vilas também promoveria “a disseminação de uma ‘economia
política de favores’, baseada na negociação informal de dons e
contradons, como substrato de caráter funcional na trama das
relações políticas estabelecidas localmente”. Em suma, a criação
de vilas suscitava o estabelecimento de um corpus burocrático, que,
por sua vez, suscitava a implementação de companhias militares
que, via de regra, eram comandadas por oficiais advindos das
chefias locais.
No entanto, malgrado a importância desses elementos
supracitados, nós inferimos, tomando como base a consulta
documental, que a maior causa deste adensamento dos corpos
auxiliares (pelo menos, neste primeiro momento) esteja ligada
a uma política de intensificação das práticas de recrutamento,
que se via perfeitamente corroborada ao projeto pombalino de
fortalecimento do sistema defensivo da colônia e que, inclusive,
materializou-se, como assinalado, ratificando o poder de mando
dos potentados locais, pois, eram estes, em grande medida, os
responsáveis pela execução dos alistamentos, bem como pelo
comando das tropas (Fragoso, 2005: 133-168).
Para reforçar esta ideia, lançamos mão de uma declaração do
próprio Jerônimo José de Melo e Castro que revela restarem “ainda
muitos moradores que só poderião ser alistados se se creasse
mais alguma companhia de ordenança”.22 Em outras palavras, o
capitão-mor, mesmo não defendendo a inclusão destes homens
em tropas de segunda linha, temendo os prejuízos econômicos
advindos, afirmava que havia vários moradores “inativos” e que
poderiam ser usados no serviço militar.

22 AHU_ACL_CU_014, Cx. 23, D. 1803.


86 Entre a defesa e a ordem: os corpos militares na...

Outro motivo relevante para a ampliação das milícias concerne


a um ponto já referenciado anteriormente, qual seja: o risco
iminente de invasão, a preocupação com a segurança interna e o
envolvimento da Cora portuguesa em conflitos bélicos, sobretudo,
aqueles deflagrados na fronteira meridional (Belloto, 2007: 229-
273). No caso da querela com os espanhóis em torno da Colônia
de Sacramento e do território das Sete Missões, no extremo sul
do Brasil, sabe-se que várias tropas foram criadas nas capitanias
brasileiras e enviadas para aquelas paragens.23 Neste contexto, vale
evidenciar que se preconizou a mobilização de soldados pardos
e negros, usados, essencialmente, como “buchas de canhão” e
grosso do exército (Silva, 2003: 500).
Sobre a atuação e distribuição das tropas de ordenanças,
aferimos que seu campo de ação – até a emergência das
primeiras vilas – restringiu-se às freguesias localizadas dentro
e nas proximidades da cidade da Parahyba do Norte, ou seja,
eram companhias que assistiam as áreas litorâneas. Já nos
sertões, ainda parcamente explorados, o aparato defensivo era
colocado em vigor ou por grupos de particulares, que armavam
tropas privadas com a finalidade de proteger suas possessões –
geralmente, estabelecidas em sesmarias outorgadas pela Coroa;
ou por aldeamentos indígenas, chefiados por leigos e padres
missionários, que se constituíam de tribos tapuias aliadas.
Nesse sentido, a composição das companhias de 3ª linha
espargidas pelo litoral paraibano, na década de 1750, estava assim
disposto:

23 Acerca do envio de tropas para as fronteiras no sul do Brasil, não encontramos


nenhum indício na documentação que demonstrasse a alocação para o Sul de
companhias provenientes da Paraíba.
Companhias de Ordenanças da Paraíba – 1756
1ª Cia 2ª Cia 3ª Cia 4ª Cia 5ª Cia
Capitão-mor 1 1 Não há referencia 1 1

Alferes 1 1 1 1 1
Sargento 2 2 2 2 2
Cabo de Esquadra 4 4 4 4 4

Soldados 55 56 45 48 63
Efetivo 63 64 52 56 71
Fonte: Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa (AHU_ACL_CU_014, Cx. 19, D. 1490).
Bruno Cezar Santos da Silva
87
88 Entre a defesa e a ordem: os corpos militares na...

Com efeito, após a ratificação de medidas como a ampliação


dos Auxiliares e a fundação de vilas, as ordenanças sofreriam
algumas alterações. Primeiro, as companhias alocadas na capital
seriam desarticuladas para poderem remanejar seus membros aos
corpos de milícias. Vale salientar que, em razão disso, só voltariam
a compor tropas naquelas cercanias, por volta da década de
1770. Todavia, ao que parece, estas apresentariam um numerário
bastante insuficiente, estando, segundo Melo e Castro, “sem
soldados, e só com alguns oficiaes”,24 pois, os homens alistados
continuavam a servir, majoritariamente, na segunda linha.
Na verdade, os registros assinalam que sua existência só se
verificará com mais evidência, nas vilas e povoações – sobretudo as
do sertão. Mesmo assim, seu principal objetivo estava relacionado
à conquista de patentes régias, como as de coronel, por parte dos
potentados destas localidades, preocupados em maximizar o
prestígio e o poderio que exerciam em suas áreas de influência.
Era com as cartas patentes que, em larga medida, estas elites da
terra auferiam os direitos necessários para exercer sua autoridade,
encampar diligências militares nas “vastíssimas” terras do sertão,
bem como estabelecer formas de negociação com agentes da
Coroa, visando à consecução de honras e mercês régias.
Nesse sentido, não se pode deixar de levar em consideração o
fato de que as ordenanças e os terços auxiliares se configuravam
como excelentes meios de ascensão e de legitimação social na
Colônia. Mais a mais, o pertencimento ao alto escalão de um
destes corpos militares indicava, a rigor, o lugar social destacado
do indivíduo. Logo, certos cargos, como os de oficiais superiores
(sargento-mor, mestre-de-campo, comandante, capitão-mor,
ajudante, engenheiro militar), só poderiam ser ocupados por

24 Ofício de Jerônimo José, ao secretário de Estado da Marinha e Ultramar,


informando da composição das tropas da praça e subúrbio, datado de 14 de agosto
de 1784 (AHU_ACL_CU_014, Cx. 28, D. 2133).
Bruno Cezar Santos da Silva 89

homens provenientes da nobreza, seja da terra, seja da Coroa


(Mello, 2009: 12-16).
Portanto, numa sociedade colonial com matizes sociais
hierárquicas, possuir uma patente militar correspondia a uma
titulação real que impunha notável respeito. Com efeito, além
de ratificar o mandonismo local das grandes famílias nas vilas
e cidades, contribuíram, indubitavelmente, para soerguer
socialmente alguns grupos marginalizados, como o dos mulatos,
brancos livres pobres e dos negros forros (Faoro, 2004, 192-195).
Para concluir, é importante salientar que a reforma granjeada
pelo Marquês de Pombal, na década de 1760, não alterou
significativamente a realidade das forças armadas paraibanas
no que diz respeito ao provimento das tropas. Com efeito, os
problemas com o envio de fardas, armamentos e munição, bem
como o atraso no pagamento dos soldos continuaram a fragilizar
os corpos, sendo recorrentes as reclamações dos capitães-mores
e demais instâncias governativas no sentido de solucionar tais
impasses. Ademais, a conservação e reparo da fortaleza de
Cabedelo25 também ficaram a revelia, onde quase nada foi feito
para evitar seu estado de adiantada calamidade e ruína.

25 A fortaleza de Cabedelo, localizada na barra de mesmo nome, no estuário do rio


Paraíba, era, no próprio dizer da época, “a principal chave de defeza” da capitania. Na
verdade, era a sua única fortaleza, uma vez que o projeto de construção de um
fortim na Baía da Traição, divisa com o Rio Grande do Norte, efetivamente, nunca
saiu do papel.
90 Entre a defesa e a ordem: os corpos militares na...

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Capítulo V

Elites luso-maranhenses nos


quadros do Império Português:
mobilidade social e redes de
sociabilidade no M aranhão do sé-
culo XVIII

Ariadne Ketini Costa1

O Maranhão e o caráter social da colonização amazônica

Para muitos especialistas em História Colonial do Brasil, o extremo


norte da América Portuguesa parece ser um território pouco
conhecido, por vezes entendido como um espaço integrante do
Estado do Brasil, sem levarem em consideração sua formação
como Estado independente. Inicialmente, o que constatamos
é que há um defasado conhecimento do que, de fato, era o
Maranhão.2 No entanto, alguns estudos recentes tem avançado

1 Mestranda em História Social pela Universidade Federal Fluminense, orientada


pela Professora Doutora Maria Fernanda Baptista Bicalho. Agradeço a orientação
da professora Fernada Bicalho, que contribuiu substancialmente para este traba-
lho, bem como as indicações de leituras propostas nos cursos dos professores
Carlos Gabriel Guimarães e Marcelo da Rocha Wanderley.
2 No capítulo primeiro deste livro, Alírio Cardoso faz uma apresentação do
território da capitania do Maranhão para o período colonial, referindo-se ainda à
nomenclatura usada em mapas e na documentação da época, bem como traçando
sua localização e limites. Alguns outros trabalhos também abordam a colonização
94 Elites luso-maranhenses nos quadros do Império...

consideravelmente na argumentação de que tanto Portugal como


outras nações estrangeiras tinham um interesse aguçado na região
amazônica.
A ideia, muitas vezes afirmada, de uma falta de projeto colonizador
para aquela região é, ao meu ver, equivocada. Em um recente
trabalho, Alírio Cardoso refere-se aos projetos de colonização
que tanto os hispanos-lusitanos, como ingleses e holandeses,
tinham para a exploração das riquezas daquela área. Assim, o
autor afirma que “desde o final do século XVI, portugueses e
espanhóis tinham consciência da existência de outros projetos
europeus para a América Portuguesa, com ênfase no Norte
do Brasil”. O autor ainda cita que “(…) diversos documentos,
inclusive planisférios do período, informam sobre o avanço
militar, o comércio e a ocupação civil de não-castelhanos e não-
portugueses, principalmente nas zonas de fronteira dessa parte da
América” (Cardoso, 2010: 28).
A clássica historiografia que tratou do período inicial da
colonização do Maranhão apontou para um quadro de articulação
entre as primeiras tentativas de exploração da porção setentrional
do Brasil e para a necessidade de concretizar sua ocupação e
povoamento definitivo. Artur César Ferreira dos Reis, em sua
introdução ao primeiro volume do Livro Grosso do Maranhão,
assinala que no início do século XVII a coroa portuguesa
começou a inteirar-se da conquista da região amazônica que
estava, na maior parte do seu território, sob jurisdição espanhola.
Diante das ameaças francesa, inglesa e holandesa, Portugal
colocou em andamento o seu antigo projeto de colonização para
uma área considerada estratégica, fosse pelo seu valor comercial
– em observância às drogas do sertão – fosse pela sua localização

do que hoje chamamos de Amazônia Legal, e que compreende os estados do


Amazonas, Pará, Maranhão, Tocantins, Piauí e Ceará. Para mais informações, ver
Ruiz-Peinado Alonso & Chambouleyron, 2010; Reis, 1993.
A riadne K etini Costa 95

fronteiriça. Para Artur Reis, a integração do Maranhão ao “(…)


Império português na Sulamérica, foi obra política conduzida
com habilidade, com segurança, após as reflexões do Conselho
Ultramarino, dentro, portanto, de propósitos firmes, mantidos
incessantemente” (Reis, 1948: 9).
Apesar de alguns autores recorrerem à ideia de abandono do
extremo norte da América Portuguesa, a farta documentação
constante no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) e em outros
tantos fundos da Biblioteca Nacional (BNRJ), revelam que o
Maranhão sempre despertou o interesse da Coroa, principalmente
quando esteve unificada sob o reinado dos Filipes.3 No entanto, a
observação mais instigante feita por Artur Reis se refere ao caráter
da ação da coroa na dinamização do povoamento e articulação do
Estado aos interesses do Reino. Neste sentido, o autor afirma que

A incorporação do Maranhão e da Amazônia não constituiu,


porém, uma surpresa realizada, “grosso modo”, pelas ordens
religiosas. Empresas oficiais, nela se empenharam, ao lado dos
religiosos, com resultados magníficos, sertanistas, colonos,
soldados, governantes, que se mostraram capazes nas tarefas a
que se entregaram (Reis, 1948: 10).

O quadro social definido pelas necessidades geradas no


povoamento traduz com clareza em que circunstâncias o
contingente migratório se deslocou para aquela área. Na
realidade, a diversidade de interesses que movia levas de pobres e
desterrados às terras americanas pode ser igualmente justificada
pela obrigação e motivação que fazia embarcar oficiais régios e

3 Alírio Cardoso destaca que foi durante a União Ibérica que as capitanias da
Amazônia reforçaram sua integração a uma “rede comercial interdependente entre
portugueses e espanhóis”. Para o autor a administração castelhana daquela área
dinamizou sua projeção para o mercado mundial e o “trato bilateral América-
África, mas também América-América” (Cardoso, 2010).
96 Elites luso-maranhenses nos quadros do Império...

religiosos. Ainda atraídos pela riqueza de recursos nativos e pelo


sonho de encontrar a cidade dourada de Manoa (Urgarte in Priore
& Gomes, 2003), a imigração para a Amazônia concentrou-se em
dois núcleos de povoamento, ou seja, São Luís do Maranhão e
Santa Maria de Belém. O estudo de José Damião Rodrigues e
Artur Boavida Madeira sobre as correntes de imigração açorianas
para o Maranhão e o Pará, apresenta algumas conclusões sobre a
configuração social desta região nos séculos XVII e XVIII.
A arquitetura daquela sociedade confirma a funcionalidade
da presença de indivíduos capazes de viabilizar o governo das
conquistas ultramarinas. Assim,

Ao lado do missionário, que vencia a resistência do gentio,


penetraram a hinterlândia a tropa de resgate, a tropa de guerra,
o funcionário encarregado do tombamento das realidades da
mesma hinterlândia, o técnico que ia estudar a possibilidade da
construção da casa-forte e depois vinha a edificação, o colono
que coletava a espécie nativa ou abria a clareira (…) criava a vida
econômica, lançava os fundamentos da colonização, iniciava,
destarte, a experiência do domínio do homem sobre as florestas
tropicais do Maranhão e da Amazônia (Reis, 1948: 11).

Neste sentido, o objetivo deste artigo é compreender o quadro


social da capitania do Maranhão no que tange ao entendimento
das categorias sociais envolvidas no processo de colonização,
mormente no século XVIII. As considerações acerca das trajetórias
de ascensão e decadência social das famílias e indivíduos compõem
nossa análise na medida em que discutiremos a mobilidade social
que envolvia os agentes da conquista e governo da capitania do
Maranhão. Este recorte conjuntural pretende deixar bem claro
a pluralidade de interpretações possibilitadas pela abordagem da
dinâmica política e econômica que davam base aos movimentos
de oscilação social.
Portanto, considero pertinente um contraponto entre
A riadne K etini Costa 97

categorias determinadas a partir do universo de relações e da


ocupação sócio-profissional dos indivíduos que classifiquei
como elites luso-maranhenses, dado seu prestígio e destaque
naquela sociedade. A análise de fontes que permitem uma noção
particular dos grupos e suas hierarquias é de interesse central
para este debate, no entanto, para uma abordagem considerada
sócio-política, é necessário compreender inicialmente como o
Maranhão está localizado neste debate. Em suma, em que medida
o projeto de colonização do Estado do Grão Pará e Maranhão
definiu o quadro social de suas elites?
Para Roberto Southey, este quadro social só começou a ser
definido após as respectivas expulsões dos franceses e holandeses,
dando início a uma efetiva fixação do colono português. São Luís,
cabeça da capitania do Maranhão, contava assim, em 1648, com
apenas 400 portugueses, número que se elevou, em 1685, para
700 residentes na cidade. A observação mais importante feita
por Southey é, no entanto, sobre a designação social de muitos
moradores que, segundo o autor, “eram fidalgos: parece que quem
quer que servia com alguma patente na ordenança, embora fosse
por três meses somente, adquiria nobreza, gozando de distinções
sobre o povo” (Southey, 1862: 390). A priori, poderíamos
considerar que a classificação social para essa parte da América
Portuguesa se resumia à nobreza, povo e clero, seguindo o modelo
bastante tradicional segundo o qual as sociedades européias do
período em questão estavam estratificadas.4 Porém, os critérios
de classificação usados nas várias partes do Império parecem ser
bem mais complexos.
Raimundo Gaioso, em seu Compêndio histórico-político dos
princípios da lavoura do Maranhão de 1818, aponta para uma divisão
dos moradores de São Luís que, ao seu ver, estavam distribuídos

4 Para um maior entendimento sobre a classificação social em Portugal na época


moderna, ver Hespanha, 1993.
98 Elites luso-maranhenses nos quadros do Império...

em cinco classes: a primeira eram os filhos do reino; a segunda,


os nacionais ou descendentes dos filhos do reyno; a terceira era
a geração dos misturados ou mestiços; na quarta estavam os
negros; e na quinta, os índios (Gaioso, 1972: 115-121). Os critérios
usados inicialmente por Gaioso parecem ser a origem familiar e
a raça, porém o autor não deixar de considerar a ocupação destes
indivíduos que, em sua classificação profissional, são definidos
de acordo com o primeiro critério, ou seja, o nascimento. Desta
forma, o nascimento parece ser o critério para a ocupação dos
cargos mais “honrosos” da governança municipal, e com ele todo
um estereótipo é construído a partir da raça e origem. Está claro
que Gaioso utiliza um referencial pertinente à época e que definiu
sua “Taboada das Misturas”. Na tentativa de designar os lugares e
posições da sociedade luso-maranhense, o autor se reporta a um
modelo que reflete a necessidade da coroa em estabelecer uma
ordem social que

Em todas as cortes que tem domínios na América, é um sistema


de política inalteravelmente observado, para conservar […] as
diferentes capitanias na dependência, de somente conferirem
os primeiros empregos aos que vem da Europa, e entre estes é
que se acha dividido o peso da administração pública (Gaioso,
1972: 118).

A nomenclatura social e suas atribuições, utilizadas para


classificar os moradores da cidade de São Luís do Maranhão,
é o ponto de partida para o entendimento da dinâmica da elite
luso-maranhense, na medida em que esta categoria possui um
código social que a caracteriza pelo seu estatuto e seus padrões de
recrutamento. Deste modo, o estudo sobre as elites coloniais, e, em
particular, a do Maranhão, requer uma definição da sua identidade
social, que além do caráter sócio-profissional, leva em consideração
as múltiplas esferas em que estão inseridos seus representantes.
Segundo Bartolomé Yun-Casalilla, o sentido do Império para estas
A riadne K etini Costa 99

elites se traduz na “[...] oportunidade de circulação e ascensão


social alcançada por meio do reconhecimento régio dos serviços
prestados no ultramar (Yun-Casalilla, 2009).
O entendimento do itinerário que compõe um perfil social
construído a partir das experiências no além-mar passa a ser
um constante instrumento para a análise das elites coloniais.
Em suma, o que se pretende analisar neste artigo é justamente
a formação de uma elite luso-maranhense partindo-se dos
itinerários visualizados através da ascensão social dos indivíduos
que se identificavam com um estatuto privilegiado, mormente a
condição de vassalo e servidor real.

Concepções e conceitos do Antigo Regime: o Maranhão nas


franjas do Império Português

Em um projeto bastante pertinente para a apreciação dos


conceitos que permeavam o Antigo Regime, o Diccionario político
e social del mundo iberoamericano, apresentou em sua mais recente
edição um conjunto de noções sobre a cultura política das
monarquias ibéricas, bem como a transposição destes conceitos
para seus domínios ultramarinos. Na sessão de abertura, Javier
Fernández Sebastián chama nossa atenção para a importância
do vocabulário utilizado na época moderna, de acordo com o
significado de algumas palavras que acabam por se transformar em
conceitos sem a devida análise histórica que, em suma, determina
sua utilização e sentido (Sebastián, 2009). Ou seja, os conceitos e
categorias sociais usados normalmente para caracterizar o mundo
ibero-americano do Antigo Regime são regularmente construídos
sem uma dialética histórica que tangencie as experiências dos
indivíduos analisados. Algumas categorias usadas aleatoriamente
100 Elites luso-maranhenses nos quadros do Império...

não dão conta da dinâmica em que estão imbricados os grupos e


indivíduos, de acordo com seu referencial sócio-político.
Porém, esta problemática é bem mais intrincada do que se
imagina. Reinarth Kosselleck já ressaltou algumas vezes o cuidado
que se deve ter com a interpretação do significado das palavras,
uma vez que estas só se convertem em conceitos quando “o
conjunto de um contexto sócio-político no qual e para o qual
se utiliza esta palavra passa a forma-lá integralmente” (Koselleck
apud Sebastián, 2009: 26-27). Reiterando a ideia da pluralidade
semântica das palavras, Javier Sebastián considera ainda que o
estudo da linguagem é essencial para a compreensão do discurso
dos atores históricos, e que parece ser “(…) contraditório
estabelecer uma separação muito rígida entre palavra e ação,
prática e discursos, realidade e linguagem” (Sebastián, 2009: 27).
A importância destas observações se concretiza na medida que
analisamos algumas categorias presentes na América Portuguesa
que davam sentido à classificação social nas várias partes do Mare
Lusitano. Este trânsito de palavras e significados, é claro, teve
efeitos variados em lugares tão distintos como a Goa hinduísta
e o litoral brasileiro, clivado de nações indígenas que mantinham
crenças e rituais diversos. Porém, parece ser alusiva a incorporação
de um conjunto de práticas, ao que muitos chamam de cultura
política ou social, que, se destacarmos, sobretudo, o vocabulário,
aproximam-se de algumas noções como, por exemplo, a ideia de
vassalo ou serviço.
Considerando que a produção historiográfica mais recente
tem dado uma atenção especial para o uso mais contextualizado
de categorias que definem a sociedade colonial, verificamos que
há uma tendência à revisão de certos conceitos que integram
o vocabulário do Antigo Regime. Tanto os investigadores
da monarquia portuguesa como espanhola, tem insistido na
reinterpretação de alguns termos-chave, importados e adaptados
A riadne K etini Costa 101

da sociologia, mas que, mormente ao seu uso, não tem considerado


as variações impostas pela conjuntura histórica, social, política e
econômica das áreas ultramarinas.
No panorama da produção latino-americana, destacam-se
trabalhos que se concentram na análise da atuação de grupos
e atores sociais entendidos para além de um determinismo
sistemático. O objetivo central desta historiografia que trata
das elites coloniais é uma reflexão sobre seu perfil e estrutura,
incorporando ainda problemáticas como a mobilidade social e
suas “estratégias” de ascensão; o caráter da composição familiar
e suas formas de sociabilidade, bem como a constituição de
redes sociais. Segundo Michel Bertrand, é necessário abordar um
contexto social que não se encerre no aspecto sócio-profissional,
afinal, deve-se considerar a capacidade de interação do indivíduo
com outros grupos de interesses (Bertrand, 2004). A mesma
ressalva faz Simona Cerruti ao citar a definição de classe feita,
normalmente, como “(…) categoria isolada de outros campos
distintos da vida social” (Cerruti, 1998: 173). Neste sentido, a
micro-análise propõe-se a investigar os percursos individuais
“afim de reconstituir a variedade da sua experiência nos diferentes
campos da vida social” (Cerruti, 1998: 174).
O caso da capitania do Maranhão no século XVIII tem
algumas peculiaridades que vão ao encontro da discussão sobre
a revisão de certos conceitos, na medida em que pontuaremos
como algumas categorias que circulavam na América Portuguesa
foram incorporadas ao vocabulário sócio-político de grupos
que compunham uma espécie de elite luso-maranhense. Neste
campo de atuação dos indivíduos e grupos, observamos dois
movimentos que se tangenciam e que se referem à lógica de
reprodução das categorias sociais. Em primeira instância, temos
a busca por prestígio, o que resultou num progressivo aumento
da mobilidade social que configura um constante movimento de
102 Elites luso-maranhenses nos quadros do Império...

ascensão e digressão social. Em segundo plano, a observação


que a dinâmica deste processo de renovação de posições sociais,
compreendida a partir da formação das redes de sociabilidade
entre os vários segmentos da sociedade, no sentido vertical e
horizontal, foi proporcionada, de forma mais imediata, pela ação
ou graça emanada do centro, ou seja, do rei (Albuquerque, 1978;
Hespanha, 2006).
Neste sentido, a economia do dom, ao que parece, tem sido um
conceito bastante caro aos historiadores que se dedicam ao mundo
português. Para o debate aqui proposto, esta tendência é, portanto,
considerada, na medida em que observamos um verdadeiro
sistema que é constituído em torno do serviço real (Souza, 2007;
Xavier, 1998; Cañeque, 2004). Segundo Fernanda Olival, o que
determinaria o caráter do “Estado Moderno Português” seria a
“(…) ideologia do serviço/recompensa, os laços múltiplos de
interdependência e valias, muitas vezes ditos clientelares” (Olival,
2001: 3). Na capitania do Maranhão são inúmeros os pedidos
de recompensas pelos serviços prestados à Coroa, no entanto,
o que é importante mencionar é a natureza destes serviços, e
quais privilégios eram concedidos a quem se dedicava a eles. Esta
análise nos remete a um debate sobre os critérios de classificação
social feita a partir do serviço régio. Assim, consideramos que o
serviço real criava laços de dependência que unia os vassalos ao
rei e que resultava numa cadeia de ações e reações, dom e contra-
dom, que cerceava a noção de fidelidade e interdependências.
Não foi difícil deparar com documentos que atestavam
a relevância dos serviços prestados na municipalidade ou
que resgatavam o lugar do governo das conquistas e seu
reconhecimento como parâmetro para o enobrecimento. Por
exemplo, em requerimento de 20 de junho de 1655, o procurador
do Estado do Maranhão, Paulo da Silva Nunes denuncia, ao rei
D. João IV, a falta de cumprimento dos privilégios concedidos
A riadne K etini Costa 103

aos cidadãos das cidades de São Luís e Belém. O requerimento


traz em anexo uma cópia do modelo em que foi inspirado estes
privilégios, neste caso, os mesmos destinados aos cidadãos da
cidade do Porto, instituídos por carta do rei D. João II em 1490.
Na carta, el rey determina que aqueles conhecidos por cidadãos
nas cidades portuguesas, fossem

Para sempre sejão privilegiados e que eles não sejão mexidos


atromentados, por nenhum maleficio, que sejão feitos e
cometidos e cometerem, e fizerem daqui por diante, salvo nos
feitos e daquelas qualidades e nos modos em que se devem e
são os fidalgos de nossos reinos e senhorios. E isso mesmo
não possão ser presos por nenhum crime somente sobre suas
homenagem, e assim como são e devem ser os sobreditos
fidalgos (AHU, Maranhão, Cx. 3, Doc. 361).

As isenções concedidas àqueles que eram considerados


“fidalgos” conferiam foro especial perante à ação da justiça local,
no entanto, estes cidadãos não estavam isentos da justiça do
rei. As liberdades conferidas à “nobreza da terra”5 limitavam-
se aos assuntos locais que não interferiam no bom andamento
da conquista e do comércio. Como ressalta Maria Fernanda
Bicalho, ao mencionar o mesmo foro conferido por D. João II
aos cidadãos da cidade do Rio de Janeiro, estes privilégios que
também se estenderam aos cidadãos de Évora e Lisboa, estavam
pautados “(…) na fidelidade e por terem se destacado no ato
de servir ao rei” (Bicalho, 2005: 29). No caso dos moradores de
Belém e São Luís, a consideração real veio como recompensa da
ação conjunta para a expulsão dos holandeses em 1622, ao que D.

5 Existe um amplo debate sobre o caráter desta “nobreza da terra” que resulta de
vários posicionamentos sobre uma efetiva existência ou não desta categoria na
América Portuguesa. A discussão leva em consideração a incorporação do estatuto
da nobreza do reino e suas adaptações nos espaços coloniais. Desta forma, ver:
Bicalho, 2003; Costa, 2010.; Fragoso, s/d: 11-35; Furtado, 2009.
104 Elites luso-maranhenses nos quadros do Império...

João IV reconheceu por provisão em 1655, deste modo,

Havendo mandado ver os serviços e razões que por parte em


nome dos oficiais da camera da cidade de Bélem Capitania
do Grão Pará se me representarão, e tendo respeito ao amor,
fidelidade e satisfação com que me servirão na ocasião em que
os holandeses, nos anos passados entrarão a cidade de São Luís
do Maranhão aonde forão de socorro e assititrão atê de todo
os expulsarem dela e daquele Estado (AHU, Maranhão, Cx. 3,
Doc. 367).

Os privilégios concedidos aos “moradores” de São Luís


restringiam-se, no entanto, a uma parcela mínima da população,
que a documentação se refere como “cidadãos da república”,
embora esta categoria se confunda com a ideia de povo e se
estenda, simbolicamente, a todos os moradores do Estado do
Maranhão. A tentativa de uma definição da composição social da
elite luso-maranhense pode ser uma tarefa complexa, visto que há
um amplo universo de possibilidades de caracterização do caráter
multifuncional destes indivíduos. Ao compartilhar de direitos e
privilégios comuns em outras partes do Mare Lusitano, a elite luso-
maranhense é assim inserida num sistema de valores e categorias
constantes aos cidadãos ultramarinos considerados a “nobreza da
terra”, de acordo com o referencial relativo à condição de colônia
e da posição do Maranhão na arquitetura imperial.
Neste sentido, John Kicza apresenta os contornos das elites
ibero-americanas destacando a pluralidade da representação social
perpetrada por esta, ressaltando, sobretudo, sua participação na
conquista e a obtenção de encomiendas, que por conseqüência,
resultava na ocupação de cargos no governo. Deste modo, estas
elites são bem diversificadas e parecem seguir um itinerário
bastante comum no ultramar, a partir de uma combinação entre
A riadne K etini Costa 105

a carreira administrativa,6 o casamento nas principais famílias e a


participação em investimentos mercantis variados (Kicza, 1999).

Itinerários da Ascenção Social: famílias e indivíduos na


geografia dos serviços reais

Os estudos sobre a mobilidade social demonstram como havia


um dinamismo em todas as ordens sociais e como a cultura política
do Antigo Regime proporcionava uma expressiva movimentação
entre os estados constantes no Absolutismo. A ascensão social
do chamado terceiro estado foi um processo expressivo nas
sociedades ibéricas, sobretudo nos séculos XVII e XVIII, não
deixando, porém, de ser cerceado por ambiguidades e conflitos.7
A significativa presença da mobilidade social não eliminou, no
entanto, a reprodução de um padrão social baseado em castas;
em suma, as sociedades ibero-americanas não se eximiram da
hierarquização dos segmentos sociais (Vincent, 2007).
Embora se observe uma abertura para o enobrecimento de
indivíduos provenientes do terceiro estado, não houve, de fato,
uma eliminação de critérios de ascensão social que, em geral,
se baseavam no nascimento e nos méritos pessoais – serviços
prestados à Monarquia. Alguns fatores ainda eram imprescindíveis
para se alcançar uma posição de destaque social. Segundo Alberto
Martín, que analisa os processos de mobilidade ascendente e
descendente em Castela entre os séculos XVI e XVIII, a mudança
de status social era definida a partir de alguns critérios como a
atuação na magistratura – principalmente durante os séculos XVI
e XVII; a carreira militar; a ocupação de cargos da burocracia;

6 Sobre a configuração das carreiras administrativas, ver dois trabalhos pontuais:


Gouvêa in Bicalho & Ferlini, 2005; Herzog, 1995.
7 Ver: González, 2007: 19-48; Hespanha & Xavier in Hespanha, 1993.
106 Elites luso-maranhenses nos quadros do Império...

o monopólio de postos de mando locais e, sobretudo durante o


século XVIII, a ocupação em atividades industriais e no comércio
(Martín, 2007).
Neste sentido, podemos considerar que os contornos das
elites ibero-americanas são o resultado da pluralidade de sua
representação social, mormente a sua participação na conquista
e na ocupação dos cargos da república. Deste modo, estas elites
apresentam-se de forma bem diversificada e parecem seguir
um itinerário bastante comum no ultramar, a partir de uma
combinação entre a carreira administrativa8, a posse da terra, o
casamento nas principais famílias e participação em investimentos
mercantis variados (Kicza, 1999).
Os pareceres do Conselho Ultramarino emitidos em resposta
às petições dos vassalos da capitania do Maranhão deixam claro
qual era a justificava para que os serviços no ultramar fossem
remunerados. A descendência do capitão general Bento Maciel
Parente é um caso típico. Governador do Pará, em 1621, e do
Maranhão, de 1638 a 1641, quando São Luís foi invadida pela
armada do almirante holandês Jan Cornelizoon Lichtardt
(Meireles, 1991), a família deste oficial régio é localizada durante
quase dois séculos na documentação do Conselho Ultramarino.
No entanto, os rastros deixados por Bento Maciel Parente
apresentam-se de forma conflituosa, o que resultou em uma
bibliografia confusa sobre seu governo na época da invasão
holandesa.9 Localizamos algumas notas biográficas sobre os

8 Sobre a configuração das carreiras administrativas, ver dois trabalhos pontuais,


Gouvêa in Bicalho & Ferlini, 2005 e Herzog, 1995.
9 A tomada da cidade de São Luís ocorreu em 1641, permanecendo os flamengos
na capital do Estado do Maranhão até 1644. Neste período, as incertezas da
Restauração portuguesa resultaram em acordos de reconhecimento do VIII Duque
de Bragança, o que permitiu uma certa liberdade aos holandeses em Pernambuco.
Como resposta a este armistício e ao relativo clima de acordos entre portugueses
e holandeses, Maurício de Nassau invadiu a capitania do Maranhão na tentativa de
A riadne K etini Costa 107

Maciel Parente no Dicionário das Familias Brasileiras, que faz uma


referência à família de “povoadores de Bélem” já na década de
1590 (Bueno & Barata, 1999: 1397).
Bento Maciel iniciou seu ramo familiar no Maranhão de forma
ilícita e escandalosa, tendo dois filhos com uma nativa, cujos
nomes seus biográfos nunca localizaram. Apenas Vital Maciel
Parente, primeiro filho do governador, é citado por Mílson
Coutinho, como herdeiro universal e administrador das suas
propriedades. A origem mameluca de Vital não o impediu, no
entanto, de assumir alguns dos principais cargos da municipalidade
de São Luís. Foi, sucessivamente, alferes, tenente, capitão,
capitão-mor e governador interino do Maranhão, entre 1678 e
1680; uma trajetória militar e política que teve a chancela do pai
que se revezava entre as capitanias do Grão Pará e do Maranhão
(Coutinho, 2005). O caso dos Maciel Parente suscita uma gama
considerável de questões. Em primeiro plano, observamos como
a esfera familiar é definidora de posições sociais e de alianças que
facilitavam a atuação sócio-política, na medida em que o estatuto
que regulava a composição dos principais cargos da capitania
proporcionava uma continuidade das principais famílias da região.
Para Jean-Paul Zúñiga, a análise das famílias do Antigo Regime
é passível de algumas observações, pois há um constante diálogo
entre a esfera local e o reino, o que proporciona a montagem
de amplas redes familiares ultramarinas. O autor situa a atuação
dos grupos familiares como a “verdadeira coluna vertebral de
todas as redes sociais do Antigo Regime”, que monopolizavam
“a administração imperial, fonte de distinções, títulos e cargos
em audiências, governanças, real fazenda, etc” (Zúñiga, 2000: 57).
A distinção familiar justificada pela atuação de Bento Maciel
Parente é mantida ainda por algumas gerações segundo estipulava

alargar o domínio flamengo na porção setentrional da América portuguesa. Lisboa,


1976.
108 Elites luso-maranhenses nos quadros do Império...

as regras de fidelidade real estabelecidas para aqueles que serviam


à república. Em atestação feita ao rei D. João V, em 1722, o então
governador da capitania do Maranhão, Cristovão Costa Freire,
nos apresenta um testemunho importante das bases definidores
da nobreza da terra e seus respectivos privilégios e direitos. Na carta,
o governador apresenta justificativas para o reconhecimento dos
serviços de Egídio Ferreira de Lemos e José Maciel de Lemos,
ambos filhos de Ignácio Ferreira de Lemos, e netos de outro
Ignácio Ferreira, “cidadão desta cidade São Luis do Maranhão
em a qual servio os cargos honrosos da república por cuja razão
ficam os suplicantes gozando da mesma nobreza e privilégios
concedidos ao seu avô”. Cristovão Freire destaca ao rei os direitos
concedidos na ocasião da guerra contra os flamengos, ficando
registrado que tanto os cidadãos como as próximas gerações,
recairia os “ditos privilégios que abrangem não só os filhos e
netos dos cidadãos mas também a todos seus descendentes como
se mostra de acordo os ditos privilegios que estão registrados nos
livros da Câmara” (AHU, Maranhão, Cx. 13, Doc. 1351).
No entanto, este documento traz uma observação importante
sobre os limites da concessão de foros privilegiados aos vassalos
ultramarinos. Em sua apresentação a D. João V, o governador do
Maranhão não deixa de fazer uma ressalva quanto à observância
dos critérios impostos no decorrer da concessão, ressaltando que
apesar das distinções concedidas ao avô dos suplicantes, fossem
estendidas aos filhos de uniões ilícitas, porém reconhecidos,
como era o caso de Egídio Ferreira de Lemos e José Maciel de
Lemos, descendentes de Bento Maciel Parente pela linha paterna,
“(…) por que as leis do mesmo conformando-se com o direito
comum concede aos ditos filhos e netos naturais a fidalguia e
nobreza de seus pais e avôs”, ponderava o uso do distintivo Dom,
“(…) especificação que insinua a Monarquia Portuguesa” (AHU,
Maranhão, Cx. 13, Doc. 1351, Fl. 93).
A riadne K etini Costa 109

As reservas que a Coroa possuía em relação à nobilitação de


seus vassalos nos domínios do além-mar são, neste caso, pautadas
no “direito comum” que regulamentava um conjunto de princípios
e regras criados para um maior controle da reprodução social no
Mare Lusitano. Segundo Zacarias Moutoukias, a cultura política
do Antigo Regime, apesar de estar amparada por estatutos, não
tinham nenhuma regra específica, quando se tratava do espaço
colonial, estes estatutos davam lugar a um peculiar código de
lealdade, regulado pela margem de liberdade e ação de cada
indivíduo (Moutoukias, 1998).
Um dos casos mais emblemáticos da formação de um grupo
familiar com ampla influência no cenário local, e que utilizou
vários mecanismos de ascensão social disponíveis, foi o da família
Souto-Maior. A análise dos componentes desta família traz à luz
discussões pertinentes ao entendimento da noção de estratégia,
tão cara à historiografia mais recente. No Catálogo de Documentos
Manuscritos Avulsos referentes à capitania do Maranhão, localizamos
inúmeros requerimentos referentes aos processos que envolviam,
de alguma forma, membros da família Souto-Maior, fossem em
caráter de petição de sesmarias, atestações dos serviços prestados
nos domínios portugueses, petição de remuneração, ou mesmo
alguns processos judiciais que envolviam a família.
Aires Carneiro Homem Souto-Maior, o primeiro a chegar
nas terras maranhenses, aparece inúmeras vezes envolvido em
vários escândalos que colocavam em pauta sua imagem como
“homem distinto” da nobreza da terra. Em requerimento ao rei
D. João V, passado em 1792, Aires Carneiro apresenta um rol
de serviços prestados na Ásia, América e Portugal, destacando
sua chegada no Maranhão em 1772, onde seguiu carreira militar
até o posto de mestre de campo (AHU, Maranhão, Cx. 79, Doc.
6756). Elencamos também várias pedidos de datas de terras na
região do Itapecuru, nas localidades do riacho Mutum, do riacho
110 Elites luso-maranhenses nos quadros do Império...

Peritóro, no Campo de Barbados, no lugar de Pacova Bravas,


além das léguas de terras próximas às vilas do Mearim e Iguará
(AHU, Maranhão, Cx. 82, Doc. 6952; Cx. 83, Doc. 6993; Cx. 88.
Doc. 7297; Cx. 112, Doc. 8740; Cx. 138, Doc. 10078).
A suspeita de obtenção ilícita de sesmarias por parte de Aires
Carneiro causou reações levadas ao conhecimento de D. João V,
através da denúncia feita pelo capitão José Marques Guimarães
que, em 1798, mantinha um processo judicial para revisão da
demarcação de suas terras que faziam fronteira com as de Aires
na região do Itapecuru. Na ocasião, o capitão José Marques
denunciou ao rei o envolvimento de uma das filhas de Aires
Souto-Maior com o juiz de fora, responsável pela demarcação
das terras, Raimundo de Brito Magalhães e Cunha e que, por
esse motivo, o referido juiz teria favorecido o suposto sogro em
detrimento do suplicante (AHU, Maranhão, Cx. 128, Doc. 9626).
A ligação da família de Aires Souto Maior com oficiais da
administração da capitania não parava por aí. Em vários processos
de demarcação de terras na região do Itapecuru é denunciado o
envolvimento das filhas do mestre de campo com funcionários
régios. Além dos casos amorosos que não resultaram em uniões
oficiais, houve aqueles que renderam largas faixas de terras na
região do Itapecuru à Aires e sua família. Os Souto-Maior aliaram-
se, ainda, através do matrimônio, com as principais famílias locais,
dentre elas, os Belfort, os Brito, os Lamagnére, os Burgos, além
do celebrado casamento de Ana Joaquina Souto-Maior com
o governador D. Fernando António de Noronha. Com este
argumento, alguns desafetos de Aires denunciaram Ana Joaquina,
quando esta, em 1793, foi beneficiada com três léguas de terras
no lugar de Pacovas Bravas (AHU, Maranhão, Cx. 82, Doc. 6952).
O próprio Aires Carneiro já havia se aproveitado de associações
vantajosas para a ampliação do seu patrimônio quando, ao chegar
a São Luís, casou-se com Maria Joaquina Belfort, filha do mestre
A riadne K etini Costa 111

de campo Lourenço Belfort, “até então o maior latifundiário


do Maranhão” (Coutinho, 2005: 72). Incorporado, por via
matrimonial, à mais rica família da capitania na primeira metade
do Setecentos, Aires Carneiro não encontrou dificuldades de
alcançar o posto de capitão na milícia comandada pelo sogro, o
que posteriormente lhe rendeu a vaga de mestre de campo por
ocasião do falecimento, em 1777, de Lourenço Belfort (Sousa,
1976).
A compreensão da formação das elites coloniais parece ser
bem mais plausível se destacarmos pontualmente algumas
trajetórias que, frequentemente, funcionam como modelos
de análise social. No entanto, a maior vantagem do estudo de
trajetórias é a capacidade de observar os contrapontos entre
norma e prática, ou seja, a redução da escala de análise demonstra
que não há uma uniformidade no comportamento social, pois as
escolhas dos indivíduos dependem de um conjunto de fatores.
Sendo assim, o estudo das redes sociais propõe a consideração
de uma multiplicidade de sentidos encarados pelas elites, o que,
por vezes, limita uma definição estrita em elites “políticas” ou
“econômicas”. Como resalta D. Branding, há que se considerarem
as várias facetas de um grupo social definidos fundamentalmente
em termos sócio-econômicos” (Branding apud Bertrand, 2000:
66).

112 Elites luso-maranhenses nos quadros do Império...

As redes de sociabilidades na configuração da elite luso-


maranhense

As novas formas de abordagem da composição das elites coloniais


tem, ultimamente, se concentrado no estudo das redes socias,
reconstituídas, sobretudo, a partir da identificação das estratégias
de sociabilidades que situam o indivíduo em hierarquias e seus
respectivos estatutos sociais (Barth, 1981; Bertrand, 1999; Dedieu
& Castellano, 2002). Estes pressupostos tiveram um efetivo
sucesso entre os estudiosos das elites ibero-americanas, uma vez
que a dinâmica social das monarquias portuguesa e espanhola e,
consecutivamente, dos seus domínios coloniais, constituíram-
se através da tessitura de redes de sociabilidades presentes na
pluralidade das práticas sociais, o que direciona a análise para a
observação das imbricações entre os fatores econômico, politico
e social.
Por este viés passam questões que suscitam a redefinição
de algumas noções e a utilização mais apropriada de outras,
discuntindo-se as possibilidades de composição social através
do movimento de ascenção das elites ibero-americanas,
entendido através das alianças familiares, consócios profissionais,
experiências administrativas que sustentavam a formação de
extensas redes de sociabilidades estabelecidas entre a Europa e o
ultramar. Em suma, estas abordagens direcionam os estudos das
redes sociais a partir da observação das hierarquias, pois, segundo
Bertrand, “a partir dos indivíduos se pretende reconstituir suas
trajetórias e, ao identificar suas decisões pessoais, interrogar-se
sobre o que estas nos revelam de suas experiências sociais (…)”
(Bertrand, 2004: 53).
Há, no caso da capitania do Maranhão, um conjunto de
famílias cuja dinâmica das associações matrimoniais, políticas
e econômicas, revelam a pertinência do uso da noção de redes
A riadne K etini Costa 113

para a análise dos mecanismos de mobilidade social. A trajetória


da família Belfort é um exemplo plausível para considerarmos
algumas conclusões verificadas de acordo com o itinerário social
de seus membros. Esta abordagem é possível, pois, através
deste estudo, identificamos a formação de uma ampla rede de
sociabilidade, composta pelas ramificações parentais resultantes
de casamentos e compadrios, além do seu aspecto clientelista
através do qual identificamos uma significativa teia de relações
interpessoais.10
As alianças matrimoniais entre os Belfort e as principais
famílias da capitania do Maranhão proporcionaram a formação
de uma rede de sociabilidade que funcionou como ponto de apoio
para a ascensão de muitos individuos, situados nos círculos sociais
que recebiam influência deste grupo familiar. Se considerarmos a
ocupação de cargos administrativos da municipalidade e postos
de comando nas milícias da capitania, constatamos que estes
itinerários foram definidos ainda pela formação acadêmica,
verificada principalmente na segunda e terceira geração, sobretudo
nos cursos de Direito e Letras da Universidade de Coimbra. Em
uma listagem feita por Francisco de Moraes para os anais da
Biblioteca Nacional, em 1940, constam os nomes dos brasileiros
que passaram por Coimbra entre os anos de 1772 e 1872, estando
entre eles alguns membros da família Belfort, que em diferentes
épocas ingressaram nos cursos de Direito, Letras, Matemática,
Medicina e Filosofia daquela instituição (Morais, 1940).
O ingresso em um curso superior, mormente na Universidade
de Coimbra, era a porta de entrada não apenas para a carreira de

10 Ângela Barreto Xavier e António Hespanha apresentam uma versão bem pertinente
da ideia de redes clientelares, destacando “as estratégias de ganho simbólico”
como componente indispensável na sustentação das redes de poder clientelar. Ver:
Hespanha & Xavier in Hespanha, 1994. Sobre o caráter interpessoal destas relações,
que ressaltam ainda a importância da formação de laços de amizade, afinidade,
afetividade, compadrio, ver: Bell, 1991; Bertrand, 1999.
114 Elites luso-maranhenses nos quadros do Império...

bacharel, mas também era uma oportunidade de ingressar em um


dos principais círculos de sociabilidade do Reino, o qual servia
de esfera mediadora para a circulação na corte e, possivelmente,
para a ocupação de algum cargo de destaque nas municipalidades
do reino. A presença de alguns membros da família Belfort em
Portugal serviu de ponto de apoio para vários outros familiares
que também circularam por Lisboa. Estas redes de solidariedade
concentraram-se, principalmente, na mediação feita por Antônio
Joaquim da Silva Belfort e Joaquim Gomes da Silva Belfort, pois
ambos tiveram uma atuação mais efetiva no Reino.
Antônio Joaquim era bisneto materno do mestre de campo
Lourenço Belfort – o primeiro a chegar no Maranhão por volta de
1736 – e de Isabel Andrade Ewerton – filha do capitão Guilherme
Ewerton. Ao concluir o curso de Direito na Universidade de
Coimbra, em 1802, passou à juiz do crime da primeira comarca
de Andaluz, chegando à desembargador no Tribunal da Relação
da Corte (Fonseca, 1951). Seu irmão, Joaquim Gomes da Silva
Belfort, filho de Felipe Marques da Silva e de Inácia Maria Freire
Belfort, atuou como juiz de fora na comarca de Ourém, a partir
de 1801, e como juiz de órfãos da vila de Repartição do Meio,
também no Reino, até chegar à desembargador da Corte em 1812
(Coutinho, 2005: 139).
Apesar de ambos não terem uma efetiva participação na
administração das municipalidades da capitania do Maranhão,
é possível concluir que tenham atuado como interlocutores
de assuntos de interesse da família Belfort. Esta afirmação é
pertinente tendo em vista que tanto Joaquim como Antônio
Gomes da Silva Belfort aparecem como testemunhas e atestadores
de vários processos de habilitação em ordens militares, processos
de execução de heranças, licenças para viajar ao reino e para o
Maranhão, confirmação de postos militares, confirmação e
A riadne K etini Costa 115

demarcação de sesmarias de seus parentes.11 Mediante esta rede


de colaboração em que os interesses do círculo familiar e social
estavam representados, foram beneficiados diversos indivíduos
que, apesar da ampla ramificação, continuavam a se identificar com
o espaço de influência conquistado pela família Belfort. A partir
da análise da tabela abaixo, é possível mensurar a abrangência das
relações deste grupo, levando-se em consideração a diversidade
das esferas sociais pelas quais transitavam.

11 No Catálogo do Arquivo Ultramarino foram encontrados vários documentos


referentes a estes processos em que os irmãos Belfort são citados como testemunhas
e atestadores das justificações, entre eles: João Andrade Belfort promovido a posto
de capitão da 3ª companhia de Pedestres do Maranhão (AHU, Maranhão, Cx. 56,
Doc. 5252); Maria Lina Furtado Belforte solicitando confirmação de sesmaria
junto ao rio Itapecuru (AHU, Maranhão, Cx. 98, Doc. 7937); António Norberto
Belfort justificação de maior idade e capacidade para administrar os seus bens
(AHU, Maranhão, Cx. 104, Doc. 8309); José Joaquim Vieira Belfort solicitação
da concessão do Hábito da Ordem de Cristo, em atenção aos serviços prestados
(AHU, Maranhão, Cx. 117, Doc. 9028); Lourenço de Castro Belfort, confirmação
do posto de alferes do Regimento de Milícias (AHU, Maranhão, Cx. 129, Doc.
9640); Manuel Gomes da Silva Belfort ao príncipe regente D. João, solicitação de
licença para frequentar a Universidade de Coimbra, conservando a sua antiguidade
e o seu soldo (AHU, Maranhão, Cx. 140, Doc. 10218).
Cargos exercidos por membros da família Belfort
Nome Cargo/ Local/ Ano do mandato/
Lourenço Belfort • Almocaté em São Luís em: 1744, 1750
Elites luso-maranhenses nos quadros do Império...

e 1754
• Vereador na Câmara de São Luís – 1753
e 1759
• Juiz Interino – Maranhão
Joaquim Gomes da Silva Belfort • Juiz de Fora na Comarca de Ourém
(Portugal) – 1802
• Juiz dos Órfãos na Vila da Repartição
do Meio – 1807
• Desembargador da corte de Lisboa
-1812
Sebastião Gomes da Silva Belfort • Vereador na Câmara de São Luís – 1805
e1807
• Secretário da Junta Provisória e
Administrativa do Maranhão – 1822
116
Antônio Marcelino Nunes Belfort • Juiz Municipal nos termos de Codó e
Gonçalves Coroatá (Caxias) – 1847 a 1848.
• Delegado da Instrução Pública em
Codó – 1849
• Deputado Provincial pelo Maranhão –
1848-1849; 1850-1851; 1852-1853 e 1854-1855.
• Deputado geral do Império – 1855 a
1859
• Presidente de Província do Ceará – 1859
• Presidente de Província de Fortaleza –
A riadne K etini Costa

1859
• Presidente de Província de Pernambuco
117

-1861
• Senador do Império – 1865
Antônio Raimundo Teixeira • Senador do Império – 1853 a 1856
Vieira Belfort • Desembargador da Relação do
Maranhão
Joaquim Raimundo Nunes • Vereador da cidade de Rosário
Belfort • Subdelegado de polícia na vila de São
Elites luso-maranhenses nos quadros do Império...

Miguel do Rosário.
Manuel Gomes da Silva Belfort • Deputado Provincial – 1835-1836;
1837-1838
• Presidente da Assembléia Legislativa –
1854 à 1859.
• Tesoureiro – Maranhão
• Inspetor da Fazenda Publica Provincial
do Maranhão.
• Presidente da Província, Maranhão –
1857
Fonte: Documentos avulsos do Catálogo Ultramarino; Testamento de Sebastião Gomes da Silva Belfort (Arq. TJMA,
liv. Reg. Test., anos 1824-1825); Testamento de Inácia Maria Freire Belfort (Arq. TJMA, liv. Reg. Test., anos 1816-1819);
Testamento de Lourenço Belfort retirado de: COSTA, John Wilson da. A Casa de Belfort no Brasil. In: ENZO, Silveira
(Org.). Revista do Instituto Heráldico e Genealógico, nº 9, 1942-1943, p. 373-418.
118
A riadne K etini Costa 119

A ocupação dos cargos da república não foi, no entanto, a


única interface do perfil social das elites luso-maranhenses.
O estabelecimento da família Belfort na ribeira do Itapecuru,
matizou-se pela obtenção de inúmeras sesmarias e na implantação
de engenhos e fazendas com produção de diversos gêneros
destinados à exportação. Lourenço Belfort é referido pelo
governador Joaquim de Melo e Póvoas – em carta de 1775, ao
Secretário do Estado Martinho de Mello e Castro – como “maior
lavrador desta Capitania que custuma colher os seus quatro a cinco
mil alqueires de arroz” na época de plena expansão da economia
maranhense (Maranhão, 2009: 195). O irlandês12 é ainda celebrado
por suas constantes investidas no aperfeiçoamento de técnicas
agrícolas e no beneficiamento de arroz, pois foi Lourenço que
“primeiro introduziu os Costumes de Sola; o que inventou os
engenhos de descascar arroz” (Maranhão, 2009: 195). A dedicação
à produção de arroz e algodão era compartilhada pela ocupação
de cargos de almotacé, entre os anos de 1744 e 1754; de senador
da câmara, em 1753 e 1759; sendo ainda diversas vezes juiz de
fora interino (Coutinho, 2005: 98).
A pluralidade da composição do perfil social da família Belfort
confirma a perspectiva de que não havia uma separação muito
nítida das funções políticos, econômicas e profissionais. Ao meu
ver, estas ocupações se complementavam formando um cadinho
que configurava o itinerário social indispensável àqueles que
pretendiam ascender à posições mais distintas da esfera local. Da
mesma maneira, Antônio Jucá, que analisa as elites mercantis do Rio
de Janeiro no século XVIII, toma como exemplo os negociantes
da praça carioca, afirmando que “a identidade de homem de
negócio […] não se impõe a outras identidades sociais, mas, ao

12 Segundo Mílson Coutinho, Lourenço Belfort declarou em seu testamento que


“nasceu em 5.7.1708, em Dublin, capital da Irlanda, e foi batizado na paróquia de
vila de Saint Michans, arcebispado de Dublin”. Coutinho, 2005.
120 Elites luso-maranhenses nos quadros do Império...

contrário, ainda se subordina fortemente a elas” (Sampaio, 2007:


232). Assim, consideramos que a classificação da elite colonial
como política, econômica ou militar é meramente ilustrativa, pois
a tentativa de uma homogeneização destas categorias esbarra
na complexidade e na pluralidade de identidades que os grupos
sociais assumiram no período colonial.
A riadne K etini Costa 121

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Parte II
Negócios e Negociantes: mobilidade social e
estratégias de poder
Capítulo VI

Negócios que enobrecem: história e


historiografia da mercancia no
Império Português (sécs. 17 e 18)1

José Inaldo Chaves Júnior2 &


Ariadne Ketini Costa3

Desde as mais clássicas interpretações historiográficas acerca da


expansão ultramarina na época moderna e da constituição dos
domínios coloniais lusitanos na América, Ásia e África, logo ficou
evidente o caráter fundamental do comércio na constituição do
Império Português. Segundo Caio Prado Júnior, o descobrimento
e a colonização da América se originaram de “[...] simples empre-
sas comerciais levadas a efeito pelos navegadores [...]” europeus
(Prado Júnior, 2008: 19). Por seu turno, Fernando Antônio No-
vais, ao teorizar o sistema colonial, reiterou que esse esteve travejado
por relações econômico-sociais específicas, “[...] assumindo assim
a forma mercantilista de colonização”. Para este historiador, é o
“sistema colonial do mercantilismo que dá sentido à colonização

*
1 Agradecemos as contribuições de Maria Fernanda Bicalho (PPGH/UFF), Carlos
Gabriel Guimarães (PPGH/UFF) e Marcelo da Rocha Wanderley (PPGH/UFF).
2 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal
Fluminense. Bolsista Capes.
3 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal
Fluminense.
128 Negócios que enobrecem: história e historiografia...

européia entre os Descobrimentos Marítimos e a Revolução In-


dustrial” (Novais, 1995: 58).
Uma historiografia recente, em crítica ou contribuição a estes
postulados, apontou outros elementos igualmente importantes na
construção das sociedades coloniais modernas, como o impulso
de uma teologia política, sem a qual seria impossível compreender
os códigos culturais, em parte motivadores do processo de
expansão marítima, entendido como propagação da fé cristã
(Daher, 1998).4 Além das permanências e reinvenções de um
Portugal de Antigo Regime, falam-se também das construções
sociais próprias do viver em colônia. Por sinal, diferentes pesquisas
tem demonstrado a peculiaridade da composição social, dos
negócios e da atuação política das elites da América lusa.
Por outro lado, essa peculiaridade das elites coloniais não nos
deve enganar, haja vista que até os caracteres aparentemente
mais típicos da sociedade colonial, como a composição das
heterogêneas elites5 e a escravização, não deixaram de se integrar
e reproduzir-se à luz das dinâmicas do Antigo Regime português,
como sua cultura política e o ideal aristocrático de sua sociedade
que, ao serem retomados no além-mar brasílico, ganharam em
complexidade para forjar uma nova sociedade, igualmente
solidária com a desigualdade e com a exclusão (Fragoso &
Florentino, 2001: 235).
Assim, muito além do destino de empresas comerciais
ou o resultado óbvio do processo de desenvolvimento do
capitalismo europeu (Prado Júnior, 2008: 19), o Mare Lusitano foi
o palco privilegiado onde se constituíram pelo confronto, pela
negociação e pelas trocas culturais entre muitos sujeitos – de

4 Cf. também Kantarowicz, 1998.


5 Para uma pertinente discussão sobre a historiografía das elites coloniais, cf.,
sobretudo, o artigo de Maria Fernanda Bicalho in Monteiro; Cardim & Cunha,
2005.
José Inaldo Chaves Júnior & A riadne K etini Costa 129

indígenas, livres pobres e funcionários reais à homens de negócio,


escravos africanos e senhores de terras – saberes e experiências
diversificadas, bem como práticas de governança formais e
informais, que viabilizaram a permanência histórica deste império
secular.6
Destarte, em todos os casos concorda-se que o comércio e
seus agentes variados acompanharam de perto as dinâmicas
sociais no Império Português, mormente nos espaços atlânticos,
cruzando, em múltiplas interfaces, elites locais, funcionários
reinóis, negociantes e escravos. Isto, per se, faz das trocas
e circuitos mercantis um tema central nos debates sobre a
mobilidade e a construção de hierarquias sociais, redes de
poderes, enriquecimento e acumulação em paragens forjadas por
uma economia política de Antigo Regime, regulada pela política –
ou aquilo que Antônio Carlos Jucá denominou produção política da
economia (Sampaio, 2003).
Entretanto, interessante é notar o quanto o comércio foi
uma prática repudiada nas sociedades ibéricas que, segundo
historiadores do porte de Sergio Buarque de Holanda (1995),
se constituíram voltadas para o Atlântico e de costas para o
continente, numa clara alusão ao seu ambíguo ímpeto mercantil.

***

6 Segundo Maria Fernanda Bicalho, o conceito de Império é especialmente útil por


permitir a “compreensão do conjunto das relações que deram vida à dinâmica
ultramarina portuguesa nos tempos modernos”, além do que “discute a construção
da soberania portuguesa em áreas distintas e distantes, do Maranhão a Macau,
conjugando redes comerciais, incursões missionárias, campanhas militares e
administração imperial” (Bicalho in Souza; Furtado & Bicalho, 2009: 91).
130 Negócios que enobrecem: história e historiografia...

Charles Boxer afirmou ser sintomático o fato de uma


“sociedade que dava tanta importância ao status militar,
eclesiástico e senhorial depender em tão grande medida para o
seu desenvolvimento e sobrevivência do negócio e do comércio”.
O repúdio à mercancia encontrava seu germe na hierarquia cristã
medieval que a colocava na posição mais baixa do rol das chamadas
sete artes mecânicas, quais sejam: os camponeses, os caçadores,
os soldados, os marinheiros, os médicos, os tecelões e os ferreiros
(Boxer, 2002: 331). O sentimento antimercantil da sociedade
lusitana perdurou a despeito da extensa legislação promulgada no
sentido de estimular e proteger o comércio.
Na verdade, desde o século 16, a Coroa portuguesa demonstrou
ciosa preocupação com o comércio marítimo, do qual provinha
grande parte de seus rendimentos. Embora tal atenção nem
sempre tenha motivado projetos de longo prazo para o incentivo
à produção e circulação das fazendas coloniais e metropolitanas,
fora ela ressaltada em momentos de crise política ou econômica,
como por exemplo na conflituosa conjuntura internacional do
final do século 16, quando Portugal, em virtude da união das
coroas ibéricas (1580-1640), sofrera as conseqüências das guerras
da Espanha e dos boicotes dos Países Baixos ao fornecimento de
materiais para a construção naval (Lobo, 1963: 39).
Segundo a historiadora Eulália Lobo, o alvará de 1592, que
autorizou a criação do Consulado de Mercadores na cidade de
Lisboa, revelou a preocupação régia diante das “muitas perdas
que recebe[ram] no mar nos roubos dos corsários” os negociantes
portugueses, vítimas de um cenário de vulnerabilidade dos
domínios lusos, atingidos duplamente pelo perigo do corso inglês e
do acirramento das rivalidades entre as potências européias. Numa
época em que os mercados eram jurídica e institucionalmente
regulados por fatores extra-econômicos, os ganhos e prejuízos
do comércio variavam de acordo com tais conjunturas.
José Inaldo Chaves Júnior & A riadne K etini Costa 131

Criado em moldes semelhantes aos já existentes em Castela,


o Consulado ou Mesa do Bem Comum dos Mercadores, em
Portugal, constituiu-se num tribunal especial para o julgamento
de litígios envolvendo seus integrantes, para a administração do
subsídio destinado à organização da armada mercante, além de
gozar de privilégios e concessões régias.7
Os motivos da autorização Real para o funcionamento do
Consulado e Casa Mercantil em Portugal versaram sobre a “[...]
necessidade de defesa de navegação, vantagem de se utilizar o
foro comercial simplificado nos pleitos entre comerciantes e
demais privilégios para manter e estimular o comércio” (Lobo,
1963: 40). Para Eulália Lobo, a intenção primeira de Felipe II teria
sido transferir para uma corporação de mercadores – neste caso,
a medieval Mesa do Espírito Santo dos Homens de Negócio ou
Mesa do Bem Comum, institucionalizada a partir da criação do
Consulado de Lisboa – a responsabilidade da defesa do comércio
marítimo português. A Mesa do Bem Comum dos Mercadores
funcionou até meados do século 18, quando de sua extinção por
Sebastião José de Carvalho e Melo, após entrar em rota de colisão
com os interesses da Coroa e dos grandes negociantes a ela
aliados, ao contestar o monopólio das companhias de comércio
pombalinas (Pedreira, 2006).
Grosso modo, diga-se que a sociedade portuguesa de Antigo
Regime era clivada por aspectos mercantis, e os seus mais diversos
agentes praticavam o comércio, da Coroa e seus representantes,
à Igreja e às ordens religiosas, passando naturalmente pelos
execrados mercadores. O Vocabulario portuguez e latino, datado do
início do século 18 e escrito pelo padre jesuíta Raphael Bluteau,
define “mercador” como “[...] Aquele que mercadeja comprando,

7 Porém, cabe ponderar que o Consulado de Mercadores de Portugal não teve, nem
de longe, a mesma projeção e a destacada atuação que o seu congênere de Sevilha
(Lobo, 1963: 8-10).
132 Negócios que enobrecem: história e historiografia...

e vendendo” (Bluteau, 1728: 429). Ao tratar da prática de


mercadejar, Bluteau, completa:

Com muitas razões pertendem [sic] muitos desacreditar o ofício


de mercador [...]. Jesu Christo hûa única vez que se mostrou
irado, foi, quando lançou do Templo aos mercadores, com suas
próprias mãos fez e instruiu o instrumento do castigo (Bluteau,
1728: 429).

Todavia, no mesmo parágrafo, esse dicionarista não hesitou


em conclamar a utilidade da mercancia para os povos, a despeito
dos abusos usurários de seus mais visíveis praticantes.

Sem embargo destas e outras razões, muita utilidade tem a


mercancia. Sem Ella no cittado da vida temporal, serião os
homens de pior condição que os brutos, porque a natureza lhes
deo tudo o que lhes convem e só com o commercio podemos
suprir as faltas da natureza. Com esse conhecimento Thales,
Solon, e Hippocrates fizeram elogios da mercancia (Bluteau,
1728: 430).

As palavras de Rafael Bluteau permitem entrever que o


enjôo do mercantil não residia tanto na prática do comércio per se,
mas nas mãos sujas ou mecânicas de quem os praticava. Numa
sociedade marcada pelo signo da desigualdade entre cristãos-
novos e cristãos-velhos e entre nobres e mecânicos, eram
essas classificações fundamentais na construção diuturna das
hierarquias sociais, inclusive no mundo dos negócios. É neste
sentido porque, até o século 17, inexistiu uma distinção clara entre
cristãos-novos, mercadores e homens de negócio, sendo que o
ofício de mercadejar, associado historicamente ao judeu usurário,
contribuía no reforço da impopularidade do comércio (Vainfas,
2000: 286). Apenas no século 18 assistir-se-ia à edificação de
diferenciações que modificaríam o lugar social dos agentes do
José Inaldo Chaves Júnior & A riadne K etini Costa 133

comercio.8
Não obstante, os monarcas das casas de Avis e Bragança se
intitulavam “senhores do comércio” de Índia, Etiópia, Arábia
e Pérsia. De fato, a Coroa mantinha interesses primordiais no
comércio, basta lembrar dos monopólios e contratos reais, como
o do tabaco, o do sal e o da baleia, para ficarmos apenas nos
de maior vulto. Além disso, o arrendamento de cargos públicos
ligados à Fazenda Real era uma prática antiga e costumeira no
Portugal moderno que só foi extinta pelos idos de Setecentos, o
que não impediu os oficiais régios – dos altos cargos às inserções
mais locais, como os oficiais das escrivanias e alfândegas da
Fazenda Real – de manterem seus vínculos com o comércio lícito
ou não. Deste modo, afora os ganhos da Coroa com contratos e
arrendamentos, a relação entre seus fiéis servidores e os tráficos
mercantes era perpassada pela venalidade e pelo estabelecimento
de redes clientelares com dimensões imperiais (Gouvêa & Santos
in Abreu et all, 2007).
Neste sentido, considerem-se os altos oficiais metropolitanos

8 Há que se considerar, contudo, que em paragens distantes onde o dominio


portugués ainda era incerto, as classificações sociais do Reino podiam assumir
contornos próprios e variados, compondo hierarquias sociais autênticas, embora
não totalmente disssociadas daquelas vigentes no Reino. A colonização lusitana e o
aproveitamento açucareiro nas capitanias do Norte do Brasil, por exemplo, contou,
desde o seu início, com a participação assídua de homens de negócio judeus ou
cristãos-novos, muitos dos quais chegaram a se instalar nas “terras de açúcar”
em Pernambuco e Paraíba, como foi o caso de Ambrósio Fernandes Brandão,
mercador, cristão-novo e senhor de engenho na Capitania da Paraíba no século 17.
Contudo, a participação de capitais cristãos-novos na empresa açucareira no Brasil
sofreria um impacto significativo após a expulsão dos neerlandeses das capitanias
do Norte, em meados de Seiscentos. Sendo assim, ressalte-se que, até 1763 (quando
foi, oficialmente, extinta a diferença entre cristãos-velhos e cristãos-novos), a
perseguição aos cristãos-novos variou de acordo com conjunturas específicas de
Portugal, apertando ou abrandando os inquéritos de acordo com a necessidade
que tinha a Coroa dos auxílios financeiros da endinheirada “raça infecta”. A esse
respeito, cf. Mello, 1995; Gonçalves, 2007.
134 Negócios que enobrecem: história e historiografia...

agraciados por um nobre nascimento, porém como secundogênitos


de suas casas. Estes encontravam no serviço d’El Rey no além-
mar a oportunidade de amealhar fortuna que dificilmente
conseguiríam doutro modo.9 Notável fora a trajetória de António
Teles da Silva, inventariada por Virgínia Rau. Filho secundogênito
da primeira nobreza lusa, o destino lhe reservara nada mais que
dois caminhos: a carreira eclesiástica ou o mar chamado Oceano.
Optara por este último diante da expectativa de fazer fortuna e
conduzir os rumos de sua própria casa. E assim o fez, construindo,
pela “integração econômico-social ultramarina na vida e carreira”,
um exemplo dos vínculos da nobreza portuguesa com o comércio
marítimo. António Teles da Silva era o filho não-primogênito de
Luís da Silva, Alcaide-mor e comendador de Seia, governador da
Relação do Porto e do Conselho de Estado, e de sua esposa D.
Mariana de Lencastre. Na acepção de Virgínia Rau, esta era uma
das “mais gratas famílias de Portugal” (Rau, s/d: 29).
Desde cedo, Teles da Silva seguiu carreira militar, como de
práxis na fidalguia lusa, participando de duas destacadas armadas
do Reino – sendo uma delas aquela responsável pela restauração
da Bahia em 1625, por ocasião da expulsão dos batavos. Em mercê
desses valorosos serviços, recebera d’El Rey uma viagem como
capitão-mor de navios da carreira da Índia, na qual seguiu, em
1635, após emissão do alvará de 10 de maio de 1634. Retornando
a Portugal, apoiou o movimento de restauração portuguesa sob a
liderança da Casa de Bragança. Em recompensa por mais serviços
prestados, foi nomeado conselheiro de guerra, em 1641, e feito
governador e capitão-geral do Estado do Brasil no seguinte ano.
Em nenhum momento deixara de fazer negócios e, ao fim da
vida, possuía portentosa riqueza, angariada ao longo de vinte e
três anos operando os prestigiados cargos do Império (Rau, s/d:

9 Sobre os secundogênitos da nobreza titulada portuguesa, cf., por exemplo,


Monteiro, 2003.
José Inaldo Chaves Júnior & A riadne K etini Costa 135

31).
A princípio, sua fortuna começara a ser conquistada já na Índia,
por meio de proventos e propinas de cargos da governança, além
de negócios efetuados naquelas plagas. Ao regressar a Portugal,
continuou traficando na venda de caixas de açúcar e rolos de
tabaco, porém o fazia por meio de correspondentes que agiam
em seu nome e quase sem restrição de clientela, emprestando e
mercadejando até com perseguidos da Inquisição. Também atuou
como financista, cedendo à juros tanto aos pares aristocratas
quanto aos negociantes portugueses. A vida de António Teles
da Silva, que falecera sem deixar filhos, herdando seus bens o
irmão, Fernão Teles de Meneses, permite ainda entrever duas
considerações cruciais.
Em primeiro lugar, confirma-se aquilo que Charles Boxer já
endossara: o envolvimento dos mais diversos segmentos sociais
com o comércio, inclusive a sobredita austera nobreza. Neste caso,
os negócios realizados por correspondentes da nobreza podem
dar a falsa impressão de um grupo social enquadrado pela noção
de ócio e pela distância dos ofícios mecânicos, indecorosos ao viver
nobremente. Contudo, ao passo que a atuação desses comissários
revela a permanência do enjôo e vergonha mercantil no Antigo
Regime luso, igualmente sugere ressalvas nas concepções muito
herméticas de uma sociedade que, embora hierarquizada, não se
encerrava nos estamentos da tradição medieval – os que oram, os
que guerreiam e os que trabalham.
Doravante, embora se reconheça a necessidade de caracterizar
os atores sociais, prefere-se aqui privilegiar a possibilidade
de entender o conceito de grupo social não como uma mera
“gaveta teórica” em que as ciências sociais costumam enquadrar
indivíduos que, teoricamente, compartilham atributos comuns,
mas como uma chave explicativa que deve ser ponderada à
luz das interações sociais, que nem sempre se enquadram nas
136 Negócios que enobrecem: história e historiografia...

generalizações macro-estruturais, como é o caso de uma nobreza


lusitana mascaradamente envolvida com o comércio.10
Segundo Vírginia Rau, as atividades ultramarinas que
mesclavam os negócios com o desempenho em cargos da
governança, renovavam e dinamizavam a nobreza portuguesa a
partir destes secundogênitos que, tais como António Teles da
Silva, ao regressarem à Ibéria, podiam constituir suas próprias
casas, reproduzindo continuadamente as estruturas sociais
aristocratizantes (Rau, s/d: 34).
Em segundo lugar, nota-se que, ao retornarem a Portugal,
estranhamente esses nobres oficiais não reinvestiam o grosso
de suas fortunas em novos empreendimentos comerciais que
pudessem proporcionar mais lucros, como imaginaríamos para
um capitalista da atualidade, porém não descuidavam da aquisição
de imóveis e terras, os ditos bens de prestígio ou de raiz (Boxer,
2002: 340).
Neste sentido, faz-se oportuno o mapeamento das trajetórias
e estratégias construídas tanto por Grandes da corte, no caso dos
vice-reis e governadores-gerais que desejavam o acrescentamento de
suas casas, quanto por pequenas nobrezas e oficiais régios do reino
que, quando inseridos nas capitanias-mores, precisaram compor
redes sociais, abrindo caminhos graças às alianças matrimoniais
com as elites da colônia, dos contatos importantes na Corte e dos
diversos negócios em que se metiam.
Exemplo disso foi, sem dúvida, António Luís Gonçalves de
Câmara Coutinho, personagem inventariada por Marília Nogueira
dos Santos (2009). Oficial régio no século 17, ele construiu uma

10 É precisamente nessa crítica que se inserem historiadores como Simona Cerutti e


Giovanni Levi, i.é., contra a reificação dos conceitos de “classe” e “grupo social”,
típicas em perspectivas atributivas e interessadas mais em perfilar os grupos do que
em entender suas dinâmicas e os conteúdos das relações ensejadas pelos indivíduos.
Cf., por exemplo, Barth, 1981; Revel, 1998.
José Inaldo Chaves Júnior & A riadne K etini Costa 137

trajetória ascendente e bem sucedida, a despeito da exceção de ser


um nascido fora de Portugal, ocupando cargos importantes como
o de governador de Pernambuco (1689-90), o governo-geral do
Estado do Brasil (1690-98) e o governo-geral da Índia (1698-
1702), a mais proeminente possessão do Império luso à época.
Porém, o mais interessante a destacar é a estratégia encetada por
Câmara Coutinho para fazer de seu primo, João de Lencastre,
então governador de Angola, seu sucedâneo à frente do governo-
geral do Brasil, a partir de 1698.
Analisando as correspondências escritas por Câmara
Coutinho, Marília Nogueira dos Santos notou a sua intenção em
“apresentar” e interceder por Lencastre junto aos prestigiados
contatos que possuía na Corte, desde os conselheiros do
Ultramarino até o próprio rei. A estratégia de convencimento e
articulação de interesses comuns em favor do nome de João de
Lencastre também foi seguida na colônia, junto às elites locais da
Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro, conectadas, à época, pelos
negócios com a África, notadamente o tráfico de escravos.
Em A Fronda dos Mazombos (1995), Evaldo Cabral de Mello
já destacara os inúmeros, no mais das vezes escusos, negócios
envolvendo os governadores de Pernambuco e os mercadores
da Praça do Recife. Ocioso dizer que os contatos estabelecidos
por muitos governadores e capitães-mores do Império Português
tiveram outras faces, além da comercial, viabilizando grandes
investimentos em capital político e social a partir de estratégias
diversas, como os matrimônios e a utilização de seus cargos para
o benefício de suas clientelas e amizades.
Neste sentido, as “leis do mercado”, tão propagadas pela
economia clássica de Adam Smith e David Ricardo, não eram
uma realidade em sociedades onde o mercado coexistia com uma
série de regulações sociais com estatuto jurídico, dentre elas, a
política, garantidora de condições privilegiadas de enriquecimento
138 Negócios que enobrecem: história e historiografia...

para alguns poucos. Na época moderna, a riqueza ou o lucro não


constituíam valores per se. Nos espaços coloniais, por exemplo, à
garantia das melhores condições de negócios vinculava-se também
o exercício do mando em paragens escravagistas e marcadas por
relações de dependência e pessoais, tanto com os pares quanto
com os subalternos (Fragoso in Oliveira & Almeida, 2009: 157ss).
Ao longo do século 18, os negociantes, setor cada vez mais decisivo
na estruturação das sociedades coloniais, buscaram ingressar nos
palcos políticos do Império, como as câmaras municipais e os
cargos vinculados ao comércio, tecendo alianças com elites locais
e funcionários da Coroa.
De acordo com Karl Polanyi, ainda que houvesse uma
pressão deliberada para criar mercados, na economia política da
época moderna, o trabalho e a terra não estavam subjugados ao
mercado, antes faziam parte daquilo que ele denominou “estrutura
orgânica da sociedade”. Terra e trabalho não eram concebidos
ontologicamente para a venda, logo, não eram mercadorias. Não
se quer com isso dizer que inexistiu a intenção do lucro, pois
esta esteve sempre associada a outros valores socialmente mais
importantes. Neste caso, torna-se impreterível considerar as
diferentes formas de acumulação na época moderna, muitas das
quais funcionando “fora do mercado”, i.é, tingidas por relações
sociais mais amplas. Segundo Antônio Carlos Jucá:

[...] um bom pedaço da reprodução econômica dava-se fora do


mercado, através de mecanismos como a apropriação de terras,
o aprisionamento de índios, a ocupação de cargos públicos
etc. E, por outra parte, porque mesmo nas relações ditas “de
mercado” não cessavam de interferir relações sociais mais
amplas, como as políticas e familiares, entre outras. O que torna
bem pouco útil o estudo dos fenômenos econômicos de forma
isolada, sem que se busque inseri-los no contexto social em que
se moviam (Sampaio, 2003: 279).
José Inaldo Chaves Júnior & A riadne K etini Costa 139

Noutros termos, na prática, o período moderno, mormente os


territórios do Império Português, não conheceu uma separação
nítida da esfera econômica como zona autônoma, ainda que esta
distinção tenha começado a ser pensada pela filosofia política e,
depois, pela escola histórica inglesa e pela fisiocracia de Setecentos
(Rosanvallon, 2002). Para Polanyi,

[...] o homem não é um ser econômico, mas um ser social. Ele


não procura salvaguardar o interesse que tem, como indivíduo,
na aquisição de bens materiais, mas antes a garantia da sua
consideração social, do seu status social e dos bens socialmente
valorizados que detém (Polanyi, 1978).

No caso do comércio e de seus agentes mais visíveis – os


negociantes de grosso trato, os financistas e os mercadores a
retalho –, a afirmação de Polanyi é bastante considerável, tendo
em vista a iniciativa, durante o reinado de D. José I (1750-1777),
de institucionalizar um vocabulário social das práticas mercantis,
associada à criação de uma hierarquia social no mundo dos
negócios, ambas igualmente assentadas sobre o antigo ideal
aristocratizante, ainda que modificando os léxicos e alargando os
espaços sociais naquela sociedade de Antigo Regime.

***

Foi ao longo do século 18 que se instalou uma diferenciação


significante (Bourdieu, 2010) entre as expressões “homem de
negócio” e “mercador”, ou comerciantes de loja aberta. Isto se
processou, sobretudo, na segunda metade de Setecentos, a partir
da institucionalização da distinção entre grosso trato e retalho, numa
clara tentativa de aproximar os grandes negociantes dos interesses
140 Negócios que enobrecem: história e historiografia...

da Coroa portuguesa.
Tratou-se, então, do fomento da diferenciação social dos
homens de negócio em relação a outros agentes mercantis, em
especial os comerciantes comuns e retalhistas (Pedreira, 1992).
Cabe, porém, avaliar a penetração dessa nova taxonomia para o
mundo dos negócios e seus agentes que, afora os elementos de
permanência de uma tradição aristocrática, foi diacronicamente
reflexo de um tempo de mudanças nas concepções de governo da
fazenda em Portugal (Subtil, s/d).
Os meados do século 18 português foram historicamente
associados à controversa personagem de Sebastião José de Carvalho
e Melo (1699-1782), primeiro conde de Oeiras, feito marquês de
Pombal em 1770. Não é raro encontrar quem considere Sebastião
José o verdadeiro dirigente de Portugal durante o reinado de
D. José I (1750-1777) (Machado, 1977: 441ss). No entanto, na
mesma medida, não são poucos aqueles que põem dúvidas acerca
do perfil reformador do poderoso ministro de D. José. O saudoso
historiador português Jorge Borges de Macedo, seguindo os
passos de Lúcio de Azevedo, procurou demonstrar a inexistência
de um programa ou de um plano coerente de reformas condutor
das ações de Carvalho e Melo (Pedreira, 1992: 408).11
Outras interpretações destacam, para o período in foccum, o
fortalecimento do comércio lusitano, apontando a desagregação
do Antigo Regime pela expansão e fortalecimento da burguesia
mercantil. Miriam Halpern Pereira destacara mesmo o chamado
“surto burguês” como característica fundamental daqueles

11 O historiador portugués do Oitocentos, João Lúcio de Azevedo, não poupou


críticas ao analisar a gestão financeira do marquês de Pombal: “[…] é lícito afirmar,
por outra parte, que em geral não presidiu à administração pombalina o critério
nem a justa economia, de que dependem as boas finanças. Podia supor-se que o
dinheiro, regateado às dívidas do príncipe, zelosamente se aplicava aos serviços da
nação, de sua natureza mais importantes. Longe disso: o tesouro esvaía-se por mil
canais em despesas inutéis” (Azevedo, 2004: 345).
José Inaldo Chaves Júnior & A riadne K etini Costa 141

tempos de mudança. (Pereira, 1979). Todavia, o fortalecimento


dessa burguesia, como aspecto central de Setecentos, pode
ser atribuído à ação deliberada de Pombal? Além disso, em
termos historiográficos, como podem ser lidos os procesos
de destacamento social e político dos grandes negociantes no
Império Português do século 18? Se é verdade que eram tempos de
mudança, não descuidemos, porém, que estes possuíam seus níveis
e ritmos que nem sempre apontaram para rupturas decisivas.
O que parece ser um ponto de confluência historiográfica é
a ideia de que, por essa época, “[...] a velha ordem parece estar a
ceder” (Pedreira, 1992: 407). Cabe-nos, porém, interrogar acerca
dos efeitos das ações coordenadas por Sebastião José de Carvalho
e Melo – muitas das quais com nítidas influências do chamado
reformismo ilustrado português12 que, se não foram coerentes
nem se revelaram concatenadas à uma política de Estado concisa,
demonstraram cabalmente o pragmatismo duma época ansiosa,
germe das “tormentas oitocentistas” de independências e
revoluções (Godinho, 1975: 116).13

12 Entende-se o reformismo ilustrado português a partir daquelas contradições


que lhe foram próprias, como as tensões entre o seu ímpeto transformador e o
seu conservadorismo, típicas de um movimento heterogêneo e encabeçado por
membros das elites do Império Português, conscientes que estavam de que “se
quisermos que tudo fique como está é preciso que tudo mude” (Fragoso; Almeida
& Sampaio, 2007: 377). Cf. também Novais, 1984.
13 Sobre esse pragmatismo, característico da segunda metade do século 18, observado
a partir do campo da filosofia e das ciências exatas e naturais no Portugal moderno,
cf. Dias, 2005: 39ss. Para o filósofo português António Nunes Ribeiro Sanches,
o verdadeiro sentido da produção científica residiria no fomento do progresso
material dos homens. Dizia ele, “O inútil não é filósofo: é um atrabiliário, é um
fantástico, nutrido na soberba e formado na vaidade” (apud Dias, 2005: 45). Em
Portugal, a defesa de uma ciência útil e urgente expressou-se, sobretudo, nos
estudos sobre a agricultura, vista como a “[...] a Mãe do gênero humano e a origem
primária e inesgotável de toda a prosperidade pública” (Feijó apud Dias, 2005: 46).
Por aqui, há que se perceber como o sobredito pragmatismo da segunda metade de
Setecentos consubstanciou-se nas políticas da Coroa portuguesa, mormente no que
142 Negócios que enobrecem: história e historiografia...

Neste sentido, para Francisco Falcon, as ações reformistas do


reinado de D. José I expressaram-se em três campos distintos.
Em primeiro lugar, no fomento à produção metropolitana
que, segundo o autor, motivara, por exemplo, os privilégios
e concessões de mercado conferidas à Companhia Geral da
Agricultura das Vinhas do Alto Douro (1756). Esta companhia
reinol recebera, pelo alvará de 6 de agosto de 1776, o comércio
exclusivo para seus vinhos, aguardentes e vinagre no Rio de
Janeiro e demais capitanias da repartição Sul. Cita, ainda, a política
de incentivo às manufaturas que, ao encarar o mercado colonial
como “exclusivo” de Portugal, projetou leis, como o Estatuto da
Fábrica das Sedas (1757), que direta ou indiretamente vetavam a
presença de fábricas nos trópicos.
Um segundo campo de atuação reformista e mercantilista de D.
José I, na acepção de Francisco Falcon, teria sido a efetuação de
uma política comercial e colonial assente em três postulados
centrais, quais sejam: o monopólio das exportações, uma balança
comercial equilibrada e o pacto colonial. Ou seja, uma política
comercial que previa, isto sim, o arrocho do exclusivo colonial a
partir da defesa contra concorrências estrangeiras e do fomento
à produção no ultramar, sobretudo com o intuito de promover a
diversificação da pauta de exportações do Brasil.
Notável destas intenções metropolitanas teria sido a criação
das companhias de comércio de Grão-Pará e Maranhão (1755)
e de Pernambuco e Paraíba (1759), instituições forjadas pelo
mais autêntico espírito mercantilista para alavancar o comércio
marítimo e o tráfico de escravos, mas, sobretudo, para fortalecer
os grupos mercantis reinóis em detrimento dos coloniais, como
pontuara o historiador José Ribeiro Júnior (1976).
Por último, Falcon destaca que as práticas reformistas da

tange ao governo das finanças e ao comércio marítimo nos anos de reinado de D.


José I.
José Inaldo Chaves Júnior & A riadne K etini Costa 143

chamada “época pombalina” também compreenderam uma


política monetária e fiscalista com o objetivo de responder
a duas ordens de problemas: a arrecadação e os descaminhos e
contrabandos numa época em que a produção aurífera encontrava-
se em franco declínio, exigindo da Coroa ações urgentes para o
reequilíbrio das finanças do Estado (Falcon in Tengarrinha, 2001:
234). Não foi à toa que o fiscalismo régio tenha sido, talvez, um
das faces mais clarividentes das ditas reformas pombalinas nas
possessões do ultramar.
A criação do Erário Régio, em 1761, órgão chefiado diretamente
por Sebastião José de Carvalho e Melo, esteve no centro das
preocupações da Coroa com a arrecadação. Para José Subtil, o
Real Erário refletiu a intenção de efetuar mudanças estruturantes
no governo das finanças em Portugal, intentando o incremento
das atividades de controle e vigilância do sistema financeiro a
partir da eliminação dos focos de dispersão da arrecadação e
depósito das rendas reais.

[...] sem se fazer effectiva, e prompta a entrada das sobreditas


rendas, para serem com o mesmo effeito, e promptidão às
respectivas destinações; nem a Authoridade Régia se pode
sustentar com esplendor, que he inseparável da Magestade;
nem os Ministros de que compoem os Tribunais, Auditorias
de Graça, e Justiça, podem manter decorosamente a dignidade
[...] nem os Militares que constituem a força, e o respeito dos
soberanos, e a segurança dos Povos se podem conservar [...]
(Alvará de 22 de Dezembro de 1761 apud Subtil in Hespanha,
1994: 173).

Essas três ordens de medidas reformistas, encaminhadas nos


vinte e sete anos de reinado de D. José I, na interpretação de
Francisco Falcon, poderíam bem ser expressas na intenção de
implementar o pacto colonial em sua forma mais ideal – a reserva
de mercado colonial para os produtos metropolitanos e o
144 Negócios que enobrecem: história e historiografia...

exclusivismo das relações comerciais entre a colônia e a metrópole.


Contudo, há que se considerar que as medidas concernentes ao
Brasil nestes anos expressam uma grande ambição de fins, seguida
da trágica escassez de meios para efetivá-los. Por seu turno, nota-
se a permanência de uma endêmica ambiguidade da política régia,
acentuando seu caráter casuístico e pontual.
Em 1761, criou-se o Erário Régio pretensamente para coibir
os descaminhos dos direitos reais, mas as novas regras de
centralização fiscal só chegaram ao Brasil por ocasião do início
do vice-reinado do marquês do Lavradio, em 1768. O próprio
combate ao contrabando nos portos coloniais jamais obteve
o êxito desejado, o que em grande parte pode ser atribuído às
deficitárias forças de defesa do Atlântico Sul portugués (Pinjning,
2001). Todavia, também há que se convir que a Coroa não
conseguira evitar nem mesmo a intromissão de seus funcionários
nos contrabandos.
Por outro lado, escasseavam-se as orientações metropolitanas
aos governadores sobre os assuntos econômicos. O próprio vice-
rei do Brasil, marquês do Lavradio, queixara-se da demora das
respostas da Coroa em pleitos tão importantes, concernentes
ao fisco e à administração fazendária (Lavradio, 1975). Tal
malemolência obrigava os governadores e capitães-mores
a tomarem suas próprias decisões em matérias econômicas
primordiais, como o comércio, muitas vezes entrando em conflito
aberto com outros oficiais régios (Magalhães, 2011: 191).14
Em artigo recente, Joaquim Romero Magalhães advertiu que,
a rigor, apenas a partir de 1760 pode-se falar numa política ou
administração “pombalina”. E, mesmo assim, ela não pode ser
“tomada como homogênea nem sequer coerente ao longo dos
anos” (Magalhães, 2011: 173-4). Além disso, não seria possível ao

14 A esse respeito, cf. o capítulo 8 deste livro.


José Inaldo Chaves Júnior & A riadne K etini Costa 145

Ministro abarcar tudo e mandar em todos. Homens do porte de


Diogo de Mendonça Corte Real, ministro da Marinha e Negócios
Ultramarinos, não tiveram um papel meramente figurativo nas
decisões do Império. (Magalhães, 2011: 180). Destarte, certas
ações da monarquia lusa no período revelam o caráter ambíguo,
embora efetivamente pragmático da política metropolitana.
Se, por um lado, a extinção das capitanias-donatárias indicaria a
intenção régia de concentrar as jurisdições senhoriais, reduzindo-
as apenas ao poder real, em sentido inverso, a partir de 1758,
passou-se a fazer a arrematação de alguns ofícios da Justiça,
largando a sua gestão ao acaso dos compradores. A própria
transferência da capital do Estado do Brasil da Bahia para o Rio
de Janeiro, em 1763, escancarava esses impasses. A despeito de
ser a nova cidade ocupada pelo vice-rei, custou muito até que
todas as funções administrativas do vice-reinado fossem, de fato,
transferidas para as plagas fluminenses, à exceção do Rio de
Janeiro já constituir, à época, o principal pólo político-econômico
do Atlântico Sul (Bicalho, 2003).
É neste sentido que Magalhães afirma, “Nada menos racional
– palavras que tantas vezes surge na pena de Sebastião José – do
que a administração do Brasil durante a vaga que se diz reformista”
(Magalhães, 2011: 182), referindo-se à pouca sincronia da maioria
das ações adotadas para o Brasil que, segundo esse historiador,
teriam obedecido às oscilações dos tempos e às necessidades
urgentes, i.é., conjunturais e pontuais, sem uma necessária razão
de continuidade.
Não obstante, dois temas parecem ter ocupado os intentos
de Sebastião de Carvalho e Melo desde o início do reinado de
D. José I: as preocupações militares com o Brasil e o comércio
ultramarino. Para Magalhães, ao tema da defesa da colônia brasílica
fora dada bem mais atenção que às necessidades econômicas e
146 Negócios que enobrecem: história e historiografia...

fiscais do Império.15 Manter a paz interna e o sossego dos povos


era uma prioridade, e isso se consubstanciava, sobretudo, no uso
da cautela como instrumento de governabilidade, ainda que o
tema em litígio fosse o fisco.
Parece-nos que o apregoado despotismo pombalino estava
submetido a um pragmatismo evidente frente à paragens vastas
e distantes, onde difícil seria controlar “excluídos que punham
em causa a ordem por aqueles sertões: vádios e facinorosos,
que neles vivem como feras, separados da sociedade civil e do
comércio humano” (Magalhães, 2011: 184). Deste modo, evitar
prisões e meios coercitivos para cobrar aquilo que se devia
à Coroa era visto como, talvez, a melhor forma de exercer o
fiscalismo metropolitano e garantir o recebimento dos direitos
reais, fundamentais à manutenção da Monarquia.
Foi, precisamente, na cobrança dos ditos direitos reais que se
materializaram as principais estratégias metropolitanas quanto ao
comércio marítimo durante o reinado de D. José I. Muito esmero
era dispensado aos monopólios, especialmente os administrados
pelas companhias de comércio e o do contrato do tabaco, sendo
este o mais lucrativo à época. Por seu turno, a Junta de Comércio16
e as Mesas de Inspeção foram órgãos criados para garantir a
otimização das cobranças reais. Todavia, a despeito do reiterado
caráter fiscalista das práticas econômicas pombalinas (Falcon in
Tengarrinha, 2001: 232), isso não significou políticas diretas de
incentivo ao comércio e à produção.

15 Sobre o tema das reformas militares realizadas no reinado de D. José I, sob a


condução de Sebastião José de Carvalho e Melo, cf. o artigo de Bruno Cezar Santos
da Silva (capítulo 4) neste livro.
16 Criada em 1755, à Junta de Comércio competia “[...] controlar a saída das frotas,
fazer cumprir a proibição dos comissários volantes irem aos portos do Brasil,
combater os descaminhos e contrabandos, fiscalizar o peso e qualidade dos rolos
do tabaco e das caixas de açúcar [...]”, de modo que praticamente todo o comércio
marítimo estava sob sua jurisdição (Falcon in Tengarrinha, 2001: 232).
José Inaldo Chaves Júnior & A riadne K etini Costa 147

Ainda que os tráficos atlânticos tenham se constituído


em assunto prioritário para a Coroa nos anos de ministério
de Sebastião José, o que comprova o vastíssimo número de
disposições reguladoras do comércio com o Brasil, não é possível
afirmar a existência de uma planilha definida para estimular as
trocas mercantis. As orientações legais para o comércio durante
o ministério pombalino trazem as mesmas marcas casuísticas
doutras medidas e políticas da época, mas com o intuito de
aproveitar conjunturas ótimas de arrecadação de tributos.

O propósito do governo do Reino é, sempre aumentar as


receitas do Estado e eliminar as fugas e os contratempos
fiscais, nomeadamente os levantados pelo contrabando. Mas
não se consegue ver que isso seja sustentado por um projeto
coerente, pensado e articulado. Há flutuações notórias. São
decisões avulsas, sem correspondência a uma concretização
que configurasse um projeto geral, menos ainda um plano
(Magalhães, 2011: 191).

Por isso, nem mesmo a visível diversificação produtiva da


colônia no período pode ser atribuída ao aclamado ímpeto
reformista do marquês, mas foi, ao contrário, uma resposta
produtiva às demandas do mercado internacional que soprava
bons ventos ao Brasil. O próprio pacto colonial, tão apregoado nas
palavras de Sebastião José de Carvalho e Melo, recebera em seu
cumprimento diferentes exceções, resultando na instalação de
fabriquetas nos vários cantos do Brasil, que preparavam de rapé na
Bahia e anil no Estado do Grão-Pará e Maranhão, a couros e solas
no Rio de Janeiro e navios em Pernambuco e Paraíba (Magalhães,
2011: 192). De acordo com as conveniências de arrecadação do
Reino, não houve qualquer constrangimento em infringir do dito
“pacto colonial”, que mais consistiu em norma que em prática.
Na verdade, segundo Joaquim Romero Magalhães, o
interesse fiscalista e, pretensamente mercantilista da Coroa lusa
148 Negócios que enobrecem: história e historiografia...

identificava-se, isto sim, com a “prosperidade comercial que se


queria resultante da prosperidade de virtuosos comerciantes”.
Neste sentido, reitera-se que a maior preocupação do reinado de
D. Jose I foi o comércio dos gêneros coloniais, porém, não por
meio do incentivo à produção, mas pelo controle da circulação e,
por conseguinte, da arrecadação. Por exemplo, não há qualquer
indício que relacione o aumento da produção de algodão e arroz
no Brasil, na segunda metade de Setecentos, à quaisquer ações
pombalinas de incentivo direto, senão que teriam sido resultado,
em parte, da atuação da Companhia de Grão-Pará e Maranhão,
bem como de uma conjuntura internacional favorável a esses
produtos.
Todavia, considerar-se que foi a aproximação de Sebastião
José de Carvalho e Melo com os homens de negócio do Império
aquilo que mais acentuou o seu pragmatismo econômico, no
intento de canalizar aos cofres do Estado os tributos do comércio.
Ocioso dizer que Sebastião José acumulou importantes cargos
ligados ao comércio, dentre eles o de Inspetor do Comércio em geral,
com referência especial ao Brasil. Pombal tinha consciência que “a
navegação mercantil he a base da marinha, o fundamental do
Estado, e a fonte donde se derivão as riquezas dos povos” (apud
Magalhães, 2011), e para tanto intentou aproximar os interesses
dos negociantes de grosso trato daqueles do Estado português,
fazendo uso, inclusive, dos canais de nobilitação.
Os negociantes com tratos imperiais movimentavam vultosas
rendas, especialmente aquelas oriundas dos contratos reais,
como os da arrematação de monopólios e a cobrança de direitos
e tributos da Coroa. Segundo Myriam Ellis, a administração
pombalina teria atuado claramente em defesa do grande comércio,
do lucro monopolístico. Os grandes contratadores do tabaco,
por exemplo, compunham, em sua maioria, o círculo restrito de
amigos do marquês de Pombal. Eram homens do porte de João
José Inaldo Chaves Júnior & A riadne K etini Costa 149

Gomes de Araújo ou João Marques Bacalhau, e famílias opulentas,


como os Cruz e os Quintela (Ellis, 1982: 100)
Segundo Carlos Gabriel Guimarães e Fábio Pesavento, a
arrematação de contratos era uma prática que remontava “aos
primeiros tempos da monarquia”, mas que no século 18 esteve
umbilicalmente associada à figura do grande negociante. Deste
modo, nos anos de atuação do marquês de Pombal, a aproximação
entre a Coroa e os homens de negócio denotou uma objetiva política
de recuperação das rendas reais, haja vista a constante necessidade
da Monarquia em remediar-se financeiramente (Guimarães &
Pesavento in Chaves & Silveira, 2007: 107).
Por sua vez, como já se disse, até o século 17, os termos cristão-
novo, mercador e homem de negócio eram sinônimos tanto no
senso comum como nos documentos oficiais (Vainfas, 2000).
Foi ao longo de Setecentos que se instalou uma diferenciação entre
“homem de negócio” e “mercador” ou comerciantes comuns e
de loja aberta. Isto se processou a partir da institucionalização
da distinção entre grosso trato e retalho, uma diferença que
nunca foi muito rigorosa no plano prático, mas que produziu
efeitos estruturais nas hierarquias sociais portuguesas, como a
possibilidade real de ascensão social dos grandes negociantes em
sociedades marcadas pelo ethos aristocrático tanto no Reino quanto
no além-mar. A segunda metade do século 18 acelerou esses
processos graças ao ingresso dos negociantes em espaços sociais
que antes lhes eram vetados.

***
150 Negócios que enobrecem: história e historiografia...

É preciso, porém, indagar-se acerca da penetração dessa


nova taxonomia para o mundo do comércio e seus agentes, cuja
maior assertiva fora o léxico “homem de negócio”, referindo-se
àqueles que gerenciavam grandes somas do comércio marítimo,
arrematavam importantes contratos reais e investiam seus
recursos numa multiplicidade de negócios, jamais se concentrando
num único ramo (Pedreira, 1996). Entender as classificações
sociais no Portugal moderno a partir da institucionalização de
um vocabulário social valorativamente modificado para o grosso
trato e os financistas, sobretudo no pós-1750, é indagar-se sobre
a possibilidade de mobilidade social daqueles comerciantes
numa sociedade lusitana antimercantil (Boxer, 2002), ao passo
que também indica caminhos possíveis na percepção de uma
hierarquia, em construção, para o mundo dos negócios, a partir da
separação entre grosso trato e retalho.
Ainda sobre esse vocabulário social positivado para os
negociantes de grosso, é preciso considerar que, conforme adverte
Pierre Bourdieu, “[...] os esquemas de percepção e de apreciação
suscetíveis de serem utilizados [...] e sobretudo os que estão
sedimentados na linguagem, são produto de lutas simbólicas [...]”.
Veja a esse respeito a crítica dos negociantes de tecidos de Lisboa,
dirigida à Coroa contra o desmerecimento de suas atividades,
em 1689, o que aponta para a existência de lutas acirradas pela
reclassificação social.

[...] nesta cidade capital de Vossa Majestade, os comerciantes


são tão pouco beneficiados, e o comércio é tratado com tanto
desprezo, que não só os homens se desencorajam de se tornar
mercadores, como também os homens de espírito se recusam
a ter seja lá o que for a ver com ele, uma vez que vêem com
os próprios olhos que, no conceito dos portugueses, um
comerciante não é nada mais superior a um carregador de
peixes (apud Boxer, 2002: 332).
José Inaldo Chaves Júnior & A riadne K etini Costa 151

Tal processo não se deu espontaneamente, bem como a


institucionalização do léxico “homem de negócio” não representou
uma aceitação social rápida do mesmo, ainda que já avançados os
Setecentos. A luta simbólica pelo poder de produção do senso
comum, ou seja, pelo monopólio da nomeação legítima como
“imposição oficial”, fez com que a Coroa operasse as construções
institucionais no sentido de forjar uma denominação capaz de dar
conta da ascensão social dos comerciantes de grosso trato.
Contudo, a recepção dessa inovação deve ter considerado
outros pormenores que podiam muito bem subverter as
taxonomias oficiais. O que estava em jogo era uma relação de
força entre agentes a respeito de seus nomes de ofício – sou
homem de negócio e diferente de... Segundo Jorge Pedreira (1996),
a indistinção em grosso e retalho não era mais possível e isto se
constituiu num poderoso elemento de identidade social.
Destarte, pode-se entrever a afirmação de uma distinção significante
(Bourdieu, 2010), haja vista os homens de negócio portugueses
terem se esforçado para operacionalizar suas diferenças enquanto
grupo socialmente reconhecido e prestigiado, buscando os títulos
de nobreza que lhes eram acessíveis, mormente os hábitos das
Ordens Militares. No parágrafo 39 dos estatutos da Companhia
Geral de Grão-Pará e Maranhão lia-se: “E o comércio, que nela
se fizer [...] não só não prejudicará a nobreza das pessoas que
o fizerem, no caso em que a tenham herdado, mas antes pelo
contrário será meio próprio para se alcançar a nobreza [...]” (apud
Olival, 1998: 74). Portanto, o comércio de grosso e financista
passava de prática repudiada à serviço digno e nobre de Sua
Majestade.
A legislação pombalina que enobreceu os grandes negociantes
através de mecanismos como as companhias de comércio (Olival,
1998), assim como a inserção influente nos palcos políticos do
reinado de D. José I de homens como Ignácio Pedro Quintela,
152 Negócios que enobrecem: história e historiografia...

amigo e conselheiro de Sebastião de Carvalho e Melo, atestam


essas substantivas transformações. Deste modo, acentuar as
diferenças com os retalhistas era, assim, fundamental ao êxito
daquele novo sistema simbólico que só favoreceu parcela diminuta
dos negociantes.
Entretanto, deve-se destacar que uma taxonomia oficial,
segundo Bourdieu, embora acionada pelo Estado, detentor do
monopólio da violência simbólica, não engendra ou aprisiona
outras classificações sociais. Para os grandes negociantes
portugueses, construir um vocabulário social positivo para o
comércio de grosso não representou uma tentativa de implosão
dos velhos ordenamentos sociais, mas a iniciativa de alargá-los,
redefini-los e, sobretudo, reproduzi-los. Eles ainda queriam os
títulos de nobreza.
Acrescente-se que para os negociantes residentes na colônia,
muitos dos quais com intensos contatos com seus congêneres
metropolitanos, o melhor caminho rumo ao prestígio e
acrescentamento social num mundo senhorial e escravista,
que vivia a lei de uma nobreza sui generis, era se tornar senhor de
terras e homens, mesmo que isso pudesse representar, à luz do
cálculo capitalista contemporâneo, um contra-senso em termos
de lucratividade dos negócios. Comentando acerca da escassa
historiografía das formas de acumulação no Império Português,
destacando, por seu turno, os trabalhos pioneiros de João Fragoso
e Manolo Florentino, Sampaio reitera que:

Se tomarmos o trabalho de João Fragoso e Manolo Florentino,


veremos que o grande comerciante que investe seu capital
acumulado na agricultura transforma-o em riqueza não-
capitalizada, cuja função não é mais a de se reproduzir, mas a
de “produzir” o seu dono, transformá-lo em membro da elite
colonial. Além disso, tal transformação é muitas vezes facilitada
pela concessão, por exemplo, de sesmarias, também esta uma
forma de acumulação não-mercantil (Sampaio, 2003: 278).
José Inaldo Chaves Júnior & A riadne K etini Costa 153

Neste sentido, é notável que, tanto no reino quanto por


todo o Império atlântico, a transmissão geracional do ofício de
negociante não fora uma prática comum. Filhos de homens de
negócio quase sempre não seguiam as carreiras de seus pais,
passando, isto sim, às magistraturas ou à proprietários de terras e
homens (Sampaio in Fragoso; Almeida & Sampaio, 2007). Deste
modo, tornar-se senhor ainda constituía uma etapa fundamental
para a ascensão social no Império Português de Setecentos. No
Reino ou no ultramar, o ideal nobiliárquico e aristocrático parece
ter resistido bem, apesar das substantivas alterações apresentadas
acima.
A historiadora portuguesa Virgínia Rau advertira, ainda, que
a história das sociedades luso-brasileiras do Antigo Regime
ficaria incompleta, caso desconsiderássemos as personagens
emblemáticas dos negociantes de grosso trato e seus negócios.
Opinião semelhante teve Myriam Ellis (1982), que, por sua vez,
estendeu essa ressalva aos demais agentes do comércio, além
dos financistas e dos dedicados ao grosso trato, considerando
também os caixeiros, correspondentes e pequenos comerciantes
de loja aberta. Está em plena execução a escrita de uma história
empresarial do mundo atlântico do Antigo Regime. Este constitui
um desafio fundamental à historiografia luso-brasileira.
154 Negócios que enobrecem: história e historiografia...

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Capítulo VII

A projeção social dos homens de


negócio com a vinda da Corte
portuguesa para o R io de Janeiro
em 1808: o caso do Conselheiro e
Comendador da Ordem de Cristo
Elias Antonio Lopes1

Nilza Licia Xavier Silveira Braga2

A transferência da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro em


1808 representou um marco nas relações entre a metrópole
e colônia americana, pois transformou esta última no centro
do Império português. O período foi marcado por mudanças
sociais, econômicas, políticas e culturais no Rio de Janeiro. Logo,
“A criação do grande Império (...) exigia, porém uma profunda
transformação tanto na capital, o Rio de Janeiro, quanto nas
engrenagens que faziam mover o mundo luso-brasileiro” (Neves

1 Este artigo é parte de um estudo monográfico realizado no ano de 2009 na


Universidade Gama Filho (UGF) e que abordou a trajetória do negociante de grosso
trato Elias Antonio Lopes, no período de 1790 a 1815. Este estudo encontra-se em
andamento e será aprimorado e amadurecido nas pesquisas de Mestrado, iniciado
em 2011.
2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal
Fluminense, sob a orientação do professor Dr. Carlos Gabriel Guimarães.
162 A projeção social dos homens de negócio com a vinda...

& Machado, 1999: 30).


Concernente às engrenagens que fariam mover a nova capital
do Império luso-brasileiro, houve a criação de instituições
semelhantes às de Lisboa. Entre elas, a Intendência Geral de
Polícia, o Conselho Supremo Militar, a Mesa do Desembargo
do Paço, a Mesa de Consciência e Ordens, a Casa de Suplicação
do Brasil e a Real Junta de Comércio, Agricultura, Fábricas
e Navegação, sendo este último um órgão importante para o
comércio e a atuação dos negociantes. No âmbito cultural, houve
a vinda de naturalistas da missão artística francesa e a criação de
instituições culturais e científicas enquadradas ao estilo da nova
sociedade de corte. Portanto, a criação dessas instituições teve
como objetivo principal afirmar a posição do Rio de Janeiro
como lugar da capital do Império Luso-brasileiro, comprovando
a importância da cidade nesta conjuntura histórica (Neves &
Machado, 1999: 30-35).
Esta conjuntura representou um momento ímpar para os
empreendimentos mercantis dos homens de negócio, com o
desenvolvimento do abastecimento interno,3 a demanda de
novos produtos na Corte e o contato dos negociantes com outras
praças internacionais, através do Porto do Rio de Janeiro. Segundo
Riva Gorenstein, o período é caracterizado pelo enraizamento
dos interesses mercantis na colônia, quando os negociantes “A
partir de 1808, (...) encontram no Rio de Janeiro uma conjuntura
específica que aumentou consideravelmente as suas probabilidades
de ascender na hierarquia social e participar ativamente na vida

3 Um estudo significativo sobre a vinda da corte, bem como as mudanças


ocorridas no comércio, é a obra de Alcir Lenharo. O autor estuda o
comércio de abastecimento após 1808 no Rio de Janeiro. Segundo ele “(...)
1808 serve de baliza, principalmente nas transformações que o comércio
de abastecimento do Rio de Janeiro sofreu sobre o impacto das mudanças
decorrentes da instalação da Corte no Centro-Sul” (Lenharo, 1993:33).
Nilza Licia X avier Silveira Braga 163

política e administrativa da corte” (Gorenstein, 1993: 129). Esta


participação dava-se por meio da atuação dos negociantes em
órgãos do governo. Por exemplo, os mais influentes negociantes
eram deputados da Real Junta de Comércio, Agricultura, Fábricas
e Navegação. Esses também eram acionistas do Banco do Brasil.
Por serem detentores de grandes fortunas em 1808, a coroa
recorreu aos cabedais dos negociantes em épocas de dificuldades
financeiras, e quando precisou de recursos para transformar o Rio
de Janeiro na nova capital do Império (Gorenstein, 1993: 148).
Por isso, Theo Piñeiro (2002) caracteriza-os como os “donos do
dinheiro”, por possuírem uma autonomia econômica que vinha
sendo construída desde a segunda metade do século XVIII, por
meio do tráfico de escravos e da diversificação dos seus negócios.4
Esta riqueza dava-lhes “(...) um perfil que permitia exercer o
controle sobre as atividades urbanas e interferir diretamente na
economia” (Piñeiro, 2002: 274). Portanto, ao se utilizarem de seus
cabedais para ajudar financeiramente a coroa “(...) encontraram
novas e maiores oportunidades de acesso ao exercício do poder
dentro das estruturas governamentais” (Gorenstein, 1993: 145).
O negociante Elias António Lopes teve sua trajetória ligada
não apenas aos negócios mercantis. Também prestou serviços
para a corte de Dom João ao atuar como deputado na Real Junta
de Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação.5 Ademais, ele

4 A diversificação dos negócios por parte da elite mercantil também é explorada


por João Fragoso na obra Homens de Grossa Ventura (1998). Ver principalmente o
capítulo 3 que trata especificamente da praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-
1840) e da diversificação promovida pelos negociantes de grosso trato.
5 Dom João, por meio de decreto de 3 de Setembro de 1808, nomeia o negociante
como deputado da Instituição. Em 18 de maio de 1809, Lopes toma posse como
deputado junto com o Presidente Dom Fernando José de Portugal e mais oito
deputados. In: Arquivo Nacional. Fundo: Real Junta de Comércio, Agricultura,
Fábricas e Navegação. Códice 520: Posses e juramentos dos deputados da Real Junta de
comércio. 1°volume: 1809 – 1832.
164 A projeção social dos homens de negócio com a vinda...

arrecadou impostos para a Coroa em diferentes regiões.6 Lopes


também foi corretor da Companhia de seguros Indennidade7 e
atuou no Banco do Brasil.8
A acumulação mercantil dos homens de negócio constituiu um
meio de se fazerem presentes nas estruturas governamentais da
corte Joanina, distinguindo-os socialmente. Contudo, o simples
fato de promoverem a acumulação mercantil fazia com que
ascendessem na hierarquia social, segundo as considerações de
João Fragoso (1998). Para o autor, os negociantes almejavam status
social devido aos valores herdados do Antigo Regime europeu,
presentes na sociedade colonial brasileira. Esta característica é
encontrada nos negociantes portugueses estabelecidos no Rio
de Janeiro, principalmente na segunda metade do século XVIII e
primeiras décadas do século XIX.9 Portanto, a busca deles por

6 Arrecadou impostos nas seguintes regiões: Rio Grande e São Pedro do Sul (1810
-1812), São João Marcos e freguesias anexas (1812 -1814), São Gonçalo (1812 -
1814), Ilha de Santa Catarina e vizinhanças (1811 - 1813). Também arrecadou:
Subsídio literário e real da carne da corte (1812 - 1814), Contrato da Dízima da
Chancelaria da corte (1810 -1812), Contrato do Equivalente do Tabaco e Subsídio
Pequeno (1814 - 1816). In: Arquivo Nacional. Inventário do Conselheiro Elias Antonio
Lopes. 10 de Novembro de 1815. fls. 83-85e 90.
7 Segundo a Resolução n° 5 de consulta a Real Junta de Commercio, Agricultura. Fábricas
e Navegação de 5 de Fevereiro de 1810, os negociantes da praça carioca solicitaram
a confirmação real do estabelecimento da Companhia de Seguros Indemnidade na
praça e a nomeação de seu corretor e provedor Elias Antonio. In: Coleções de
Leis do Brasil. Resolução n° 5 de 5 de Fevereiro de 1810. Pedido de confirmação
da Companhia de Seguros marítimos Indemnidade na praça. p. 4. In.: www.camara.gov.br.
Acesso em 11/03/2009.
8 Segundo informações do Inventário de Elias Antonio Lopes na época de seu
falecimento o negociante tinha “o importe de duas ações no Banco de hum conto cada huma
constantes das appolices N° 439 e 440.” In: Arquivo Nacional. Inventário do Conselheiro
Elias Antonio Lopes. 10 de Novembro de 1815. fl. 47.
9 Jorge Pedreira, ao estudar a mobilidade social dos emigrantes portugueses
estabelecidos no Brasil nos séculos XVII e XVIII, pôde comprovar que a
grande maioria deles eram minhotos, ou seja, oriundos da região portuguesa
entre o Douro e o Minho. Muitos tiveram a oportunidade de enriquecer
Nilza Licia X avier Silveira Braga 165

status social fez parte desta conjuntura colonial, ainda pautada


por valores de uma sociedade de Antigo Regime.

Nessa Europa do Antigo Regime, (...) a mobilidade já era


existente. O desenvolvimento do comércio e do Estado tinha
criado condições para isso. É nesse contexto que a acumulação
mercantil surge como mecanismo de ascensão social e,
simultaneamente, de recorrência a uma dada ordem. No final
das contas, seria esse tipo de sociedade européia que montaria o
mundo colonial brasileiro (Fragoso, 1998: 351).

João Fragoso & Manolo Florentino sinalizam o fato de que


quando a elite mercantil concentrava riqueza em suas mãos, esta
refletia um ideal aristocrático, reforçando uma hierarquia social
excludente na colônia (2001: 21). A acumulação mercantil era
aplicada em bens de prestígio, como terras, imóveis e escravos, e
em negócios que envolviam lucros altíssimos. Encontramos
estas características em Elias António Lopes, negociante que
diversificou seus negócios em variadas atividades.10
Elias Antonio Lopes veio de Portugal para ao Rio de Janeiro
em um período anterior à 1790, “pois ignorarmos o milésimo
exato de sua radicação” (Cunha, 1957: 5). Nos Almanaques da
cidade do Rio de Janeiro para o ano de 1792, seu nome consta como
atacadista da Rua Direita, um indício de que já prosperava na
carreira mercantil. No mesmo Almanaque ele também consta
como capitão do 1º Rebelim do Moinho de Vento da Fortaleza da

no Brasil, mesmo aqueles que não tinham proteção de algum parente


já estabelecido em alguma praça brasileira, ou tivesse algum patrocínio
(Pedreira, 1999: 69-70).
10 Constatamos no inventário de Elias Antonio Lopes que este negociante investiu
sua riqueza em imóveis urbanos, realizou negócios com firmas inglesas, manteve
relações comerciais com Lisboa, atuou no tráfico atlântico de escravos, teve seus
negócios ligados a embarcações e cabotagem, importou fazendas (tecidos) de
regiões africanas, entre outros.
166 A projeção social dos homens de negócio com a vinda...

Ilha das Cobras, no qual já atuava desde 1790.11


Assim, Lopes era “um dos mais ricos negociantes do Rio
de Janeiro no fim do período colonial” (Silva, 1998: 130).12 Na
abertura de seu inventário, o montante inicial de seus bens era de
235:908$781 (duzentos e trinta e cinco contos, novecentos e oito
mil, setecentos e oitenta e um réis), descontando-se o valor de
169:824$200 (Cento e sessenta e nove contos, oitocentos e vinte
e quatro mil e duzentos réis) referentes às suas dívidas passivas
e ativas (letras a pagar). O fundo líquido da herança de Elias
Antônio Lopes importava em 66:084$581 (sessenta e seis contos,
oitenta e quatro mil e quinhentos e oitenta e um réis). Segundo
Rui Vieira da Cunha, “Um inciso dos mais ínfimos, do ponto
de vista argentário, e dos mais interessantes para o historiador”
(Cunha, 1969: 63).

Excedente do Estado activo ao passivo, que em virtude do


presente Inventário, constitui o fundo líquido do supraditto finado
Conselheiro Elias Antonio Lopes..................................................
66: 084 $ 581.13

Este valor nos leva a concluir que os negociantes de grosso trato,


em fins do século XVIII e início do século XIX, concentravam em

11 Cf. IHGB. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Almanaque da


cidade do Rio de Janeiro para o ano 1792: Volume 266 – janeiro / março
1965, p. 159-217. Agradeço a gentileza do Prof. Dr. Marcos Guimarães
Sanches (UNIRIO e UGF) por ter-me disponibilizado os Almanaques da
cidade do Rio de Janeiro, durante minha graduação em 2008.
12 Agradeço a gentileza do Prof. Dr. Carlos Gabriel Guimarães (PPGH/UFF) por ter
me disponibilizado a obra de Maria Beatriz Nizza da Silva (1998).
13 Arquivo Nacional. Inventário do Conselheiro Elias Antonio Lopes. 10 de
Novembro de 1815. Notação: 789; volume 1 – 1815; Fundo: Real Junta de
Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação. fl. 81.
Nilza Licia X avier Silveira Braga 167

suas mãos grandes fortunas e as investiam em bens de prestígio.14


Esta característica é visível na trajetória de Elias António
Lopes, confirmando o ideal aristocrático proposto por Fragoso &
Florentino (2001:21). Por isso, Lopes era considerado um dos
mais importantes homens de negócio em fins do século XVIII,
segundo o Conde de Resende, graças a sua fortuna e negócios.15
O ideal aristocrático consistia em investir cabedais em bens
de prestígio, mas também quando os negociantes utilizavam sua
fortuna na compra de objetos de luxo para o uso cotidiano. Esses
objetos eram muitas vezes arrolados nos inventários post-mortem.
Jurandir Malerba argumenta que, com a vinda da corte ao Rio
de Janeiro, os negociantes procuraram aderir aos costumes da
moda européia por meio de suas vestimentas, jóias, carruagens
e seges, louças, talheres de prata etc. Este seria um modo de
promover o status social frente ao resto da população. Contudo,
o autor também destaca que a utilização desses utensílios, como
louças e pratarias, poderia “ser interpretada mais como signo
de distinção do que como conjunto de utensílios de uso diário”
(Malerba, 2000: 161). Portanto, os bens pessoais e objetos de uso
cotidiano, à moda européia, também constituíram um modo de
os negociantes se destacarem-se socialmente na corte Joanina.
Para exemplificar, Elias António Lopes, segundo

14 Nos Setecentos, Fragoso elucida que a presença do ideário da nobreza da terra,


estava presente na mentalidade dos grandes negociantes da época, quando“[...]
Eles almejavam ter uma melhor qualidade, (...) legitimidade social, algo que não
era conseguido pela simples posse de cabedal. (...) a conversão desses negociantes
em fidalgos coloniais, através da combinação de casamentos com as boas moças da
terra, e a transformação de sua acumulação mercantil em engenhos escravistas [...]”
(Fragoso, 2005: 166).
15 Elias Antonio Lopes, entre outros negociantes, é citado pelo Conde de Resende
como um dos 36 maiores negociantes da praça do Rio de Janeiro. Cf. Arquivo
Nacional do Rio de Janeiro. Carta do Conde de Resende para D. Rodrigo de Souza Coutinho
– 30 de Setembro de 1799; Correspondência dos Vices-Reis. Doc. n°. 343. Códice 68.
Volume: 15. fls. 323-324.
168 A projeção social dos homens de negócio com a vinda...

informações de seu inventário, possuía peças de ouro, prata e


jóias no valor de 5:811$695 (cinco contos oitocentos e onze mil
seiscentos e noventa e cinco reis), e carruagens e seges no valor de
1:496$735 (um conto quatrocentos e noventa e seis mil setecentos
e trinta e cinco réis). Entre os bens, está arrolado um espadim de
ouro lavrado e aberto em calados, estimado em 135$100 (cento
e trinta e cinco mil e cem réis), um relógio de caixas de ouro,
author Spencer & kerbins, Londres n°. 16681, com sua caixa de
tartaruga e cadeias de ouro no valor de 25$600 (vinte e cinco e
seiscentos reis), e louças avaliadas em 58$080 (cinqüenta e oito
mil e oitenta réis). Ademais, possuía uma carruagem caixa de
portas pintadas de amarelo com seus pertences e arreios no valor
de 600$000 (seiscentos mil réis).16 Por esses bens, dentre muitos
outros inventariados, comprovamos que o negociante procurou
distinção social através da posse de objetos de luxo e adereços
pessoais que valiam muitos contos de réis.
Por outro lado, como Riva Gorenstein (1993), Jurandir
Malerba (2000) mostra que os grandes negociantes procuraram
ajudar financeiramente a corte estabelecida no Rio de Janeiro
em 1808. Muitos dos indivíduos que serviam ao monarca,
“desembolsaram avultadas quantias com o fim de angariar fundos
para as despesas da casa do rei ou para as urgências do Estado”
(Malerba, 2000: 231). Em troca, foram contemplados com
nobilitações, títulos de prestígio e cargos na máquina burocrática,
conforme destacado anteriormente.

Ao se reconstituir as folhas sobre os fundos disponíveis, (...)
começa a se desenhar a trama em que se ligaram a coroa e
os homens fortes do Rio de Janeiro, basicamente envolvidos
no comércio de grosso trato e de almas. Os benfeitores da

16 Arquivo Nacional. Inventário do Conselheiro Elias Antonio Lopes. 10 de Novembro de


1815. fls. 9-15.
Nilza Licia X avier Silveira Braga 169

monarquia, (...) ligavam a praça do comércio ao paço imperial;


porque se os “homens bons” seguraram a bolsa do rei, não
o fizeram por bondade, mas impelidos por uma mentalidade
arcaica, própria do Antigo Regime, a mesma que explica o desvio
de grandes somas das atividades produtivas para outras rentistas,
ou (...) “bens de prestígio”. Os grandes que socorreram ao rei
buscavam e receberam distinção, honra, prestígio social, em
forma de nobilitações, títulos, privilégios, isenções, liberdades
e franquias, mas igualmente favores com retorno material,
como os postos na administração e na arrematação de impostos
(Malerba, 2000: 232).

Entre os negociantes de grosso trato que prestaram serviço ao regente,


o autor cita a atuação de Elias António Lopes. O negociante e mais
trinta e nove contribuintes doaram valores superiores a 150 mil réis para
a Corte e as despesas desta ao se instalar no Rio de Janeiro em 1808.
O autor aponta a aproximação que Lopes teve com D. João devido à
doação da chácara em São Cristóvão, ao destacar que “o presente ao
príncipe foi um investimento que certamente não abalou o orçamento
do potentado” (Malerba, 2000: 259). Foi um investimento porque o
negociante angariou, por meio do presente dado, muitos benefícios,
como as mercês que recebeu posteriormente.
Na temática da vinda da Corte em 1808, Kirsten Schultz (2008)
explora as transformações pelas quais o Rio de Janeiro passou como
sede da monarquia portuguesa, bem como a presença de Dom João que
acarretou as reivindicações de seus súditos no ultramar. Estes últimos
exigiam “(...) seus direitos como vassalos, pedindo a Coroa para criar
oportunidades de serviço real e, em seguida, recompensar estes serviços,
assim como para resolver disputas.” (Schultz, 2008: 24). Para Schultz, a
presença do Príncipe regente proporcionou um momento único para os
residentes do Rio de Janeiro que almejavam enobrecimento ou queriam
resolver problemas variados.17 Para isso, se aproximavam do príncipe

17 Segundo a autora, “Na nova corte, como na antiga, a prática de peticionar a Coroa
170 A projeção social dos homens de negócio com a vinda...

regente, atendendo seus favores financeiros ou fazendo doações a ele.


O caso de Elias António Lopes e a doação da Quinta a Dom João é um
exemplo típico de vassalagem.

Evocando uma permanência e, conseqüentemente, a


possibilidade de transcender à própria Europa, a Quinta
representava tanto o futuro que o Rio de Janeiro podia dar à
família real quanto o futuro que a família real podia dar à cidade;
o potencial de vassalagem do Novo Mundo e, seus domínios
do Brasil. De fato, a doação de Lopes e a resposta do príncipe
regente mostravam que a transferência da corte enobrecia os
residentes do Rio tanto literal quanto figurativamente (Schultz,
2008: 129).

Com relação ao enobrecimento, esse era avidamente
procurado pelos homens de negócio quando conseguiam obter
mercês honoríficas por parte da Coroa. Em 1808, a possibilidade
de obtê-las aumentou consideravelmente, quando prestavam
serviços a Dom João ou pediam diretamente a ele (Schultz, 2008).
Logo, os negociantes conseguiam proveito não apenas em seus
negócios, mas também na busca pela tão sonhada Comenda da
Ordem de Cristo, o título de Conselheiro, Fidalgo da Casa Real ou
Alcaide-mor de alguma vila. De acordo com Lucia Maria Bastos
& Humberto Fernandes (1999), 1808 foi um momento propício
para os negociantes que almejavam tal distinção. Citam o caso de
Elias António Lopes e da família Brás Carneiro Leão, que foram
exemplares neste aspecto.

estendia-se a todos os vassalos, independentemente do seu status social. Intervindo


nos interesses de soldados, pequenos funcionários e lojistas em disputas e durante
privações, controlando processos judiciais [...] o príncipe regente protegia a ‘boa
ordem das couzas” (Schultz, 2008: 222).
Nilza Licia X avier Silveira Braga 171

Na Terra, atraídos pela corte, ficaram, em particular, os grandes


comerciantes. [...] à medida que enriqueciam, adquiriam o
símbolo de status e o modo de vida dos nobres, a cuja condição
aspiravam. Dependiam para isso, porém, das boas graças do
soberano. Assim, na proximidade da coroa, vislumbravam não
só a ocasião para exercer uma influência em proveito de seus
negócios, como ainda a possibilidade daquela ascensão social
com que sonhavam. Regra geral, eram de origem portuguesa,
e muitos tinham se estabelecido no Brasil ao longo do último
terço do século XVIII [...]. Paradigmáticos em suas trajetórias
foram Elias Antônio Lopes e Brás Carneiro Leão (Neves &
Machado, 1999: 42).

Essa distinção social por meio de mercês honoríficas


foi uma característica presente não apenas nos negociantes
estabelecidos no Rio de Janeiro, mas também naqueles residentes
em Lisboa. O historiador Jorge Pedreira (1995), ao estudar os
negociantes lisboetas no período de 1755-1822, mostra que eles
também almejavam distinção social por meio de mercês reais.
Quando vieram para o Rio de Janeiro estruturar seus negócios, os
negociantes mantiveram essa mesma mentalidade, principalmente
porque sofriam preconceito por sua atividade ligada aos ofícios
mecânicos. Além do mais, muitos eram identificados com os
cristãos-novos. O marquês de Pombal foi quem beneficiou os
negociantes através de medidas que valorizaram a profissão
mercantil, atenuando alguns preconceitos.18

18 Segundo Catherine Lugar, o marquês de Pombal, através de suas medidas


“contribuiu efetivamente para elevar o status da classe mercantil ao eliminar os
obstáculos que impediam o enobrecimento dos indivíduos que tinham adquirido
sua riqueza pelo comércio (1770) e ao acabar com as discriminações legais contra
cristãos novos (1773).” (apud Silva, 1994: 184).
172 A projeção social dos homens de negócio com a vinda...

[...] para aqueles que se situavam no limiar das categorias


definidas pela ordenação oficial das diferenças sociais e que, [...]
se encontravam ávidos de reconhecimento, o hábito de cavaleiro
de uma das corporações religiosas militares e acima de tudo da
Ordem de Cristo continuava a ser a distinção mais procurada
(entre as que lhe eram acessíveis), porque representava uma
aparente certidão de nobreza, isto é, um atestado de limpeza de
sangue e de diferenciação relativamente ao mundo dos ofícios
mecânicos. [...] a própria vulgarização das distinções podia até
certo ponto acrescentar o seu valor: ostentar as insígnias das
ordens não conferia uma grande dignidade, mas não a usar
podia passar por um estigma ou um sinal de inferioridade.
Os meios do negócio e da finança seriam justamente os mais
expostos a esta situação (Pedreira, 1995: 88-89).19

Maria Beatriz Nizza da Silva (2005), ao analisar o conceito


de nobreza e sua evolução durante três séculos da colonização
portuguesa no Brasil,20 explica a concessão de honrarias aos
negociantes de grosso trato no contexto da corte Joanina. Segundo
a historiadora, “no período joanino as mercês honoríficas [dadas]
aos negociantes apenas aumentaram em qualidade (comendas)
quando se tratava de agraciar a elite mercantil” (Silva, 2005:
296). Por isso, para a autora, as comendas foram vulgarizadas
no período Joanino (2005: 297), não precisando, muitas vezes,
passar pelo crivo da Mesa de Consciência e Ordens porque eram
diretamente concedidas por Dom João.

19 Agradeço a gentileza da professora Drᵃ Maria Fernanda Bicalho (PPGH/UFF)


por ter me disponibilizado a tese de doutoramento de Jorge Pedreira (1995).
20 Do início da colonização e da formação da sociedade brasileira, do ministério
pombalino até a chegada da corte no Brasil e a fase da corte Joanina. Esta última
acelerou a nobilitação dos coloniais.
Nilza Licia X avier Silveira Braga 173

A legislação Josefina marca sem dúvida uma ruptura ao permitir


que as elites mercantis das primeiras praças (Bahia e Rio de
Janeiro) tivessem acesso às mercês honoríficas concedidas pelo
monarca. Foi Pombal que, mediante a criação da Real Junta
de Comércio e também das Companhias mercantis (...), deu
visibilidade social à elite dos ‘negociantes de grosso trato’. Com
a presença do príncipe Dom João no Brasil, e devido a suas
necessidades financeiras, o leque das mercês honoríficas abriu-
se a um número muito maior de indivíduos naturais do Brasil,
ou que aqui tinham desempenhado suas atividades (Silva, 2005:
20).

Neste artigo apresentarei algumas mercês que Elias António


Lopes conquistou enquanto negociante de grosso trato estabelecido
no Rio de Janeiro. Em vista das muitas honrarias obtidas em sua
trajetória, delimitamos apenas algumas que exemplificam a busca
dos homens de negócio por nobilitação, principalmente após a
vinda da Corte.
Lopes empenhou-se em obter nobilitação quando se
estabeleceu como negociante no Rio de Janeiro, em fins do século
XVIII. Segundo Rui Vieira da Cunha, ele foi provido ao posto de
Capitão do Rebelim do Moinho de Vento, da fortaleza da Ilha das Cobras
pelo Conde de Resende, em patente de 12 de outubro de 1790
(Cunha, 1957: 6). Em ementa do Arquivo Histórico Ultramarino,
de mesma data, lê-se: “Requerimento do Capitão do Rebelim do
Moinho de Vento da Fortaleza da Ilha das Cobras, Elias António
Lopes, à Rainha [D.Maria I], solicitando confirmação de sua carta
patente.”21 A fonte confirma a data em que Elias Lopes obteve
a patente de Capitão da fortaleza, pedindo este requerimento à
D. Maria I. Portanto, percebe-se que Lopes não se preocupava
apenas com os tratos mercantis, mas com o status social por meio

21 Projeto Resgate. Documentos manuscritos avulsos referentes à Capitania


do Rio de Janeiro. Arquivo Histórico Ultramarino (1614 – 1830). Caixa
138, Documento 10898.
174 A projeção social dos homens de negócio com a vinda...

de um ofício militar.22
No período em que se dedicava aos tratos mercantis, Lopes
“Principiou, em 1803, a construção de uma vivenda campestre,
vasta e ostentosa, em terras situadas dentro dos limites da antiga
Sesmaria dos jesuítas, expropriada na era Pompalina” (Cunha,
1957: 7). A região onde estava sendo construída a vivenda
campestre era São Cristóvão, futura Quinta da Boa Vista, a qual
o negociante iria presentear o príncipe regente. Segundo Luís
Edmundo, muito antes de D. João vir para o Rio de Janeiro,
“mandou Elias Lopes construir, no sítio de São Cristóvão, uma
casa de campo que era por todos conhecida como a mais ampla e
a mais bonita de toda esta cidade” (Edmundo, 1957: 571).
Tendo Lopes presenteado Dom João com a residência em São
Cristóvão, o príncipe agora tinha um lugar “onde descansasse das
fadigas do gôverno e respirasse ares mais puros e saudáveis.”23

22 Fragoso, em seu estudo sobre a nobreza da terra do século XVIII (famílias que
descendiam dos primeiros conquistadores quinhentistas) no centro-sul, elucida
que o valor dos feitos guerreiros da nobreza da terra nas conquistas, realizados à
custa de suas fazendas, fazia com que ela solicitasse mercês. A nobreza procurava
ostentar uma qualidade, sendo importante neste aspecto um ofício militar. Entre
eles, ser governador de fortalezas e mestre de campo – posto de alta patente militar
(Fragoso, 2005: 140-144). Esta distinção por meio de ofícios militares também
esteve presente na mentalidade dos homens de negócio da primeira metade do
século XVIII. Antonio Carlos Jucá de Sampaio (2010: 469-472), ao analisar a aliança
entre a coroa e negociantes na sociedade do Rio de Janeiro neste período, mostrou
entre outros fatores, como a ocupação de postos nas Ordenanças foi relevante para
a identidade dos homens de negócio. Em análise documental, o autor comprovou
que a ocupação de postos nas ordenanças se deu por 49 negociantes na primeira
metade de Setecentos. No entanto, Sampaio mostra que os homens de negócio não
ocupavam os postos mais elevados da hierarquia militar, pois estes eram ocupados
pela nobreza da terra. Segundo Sampaio: “Na verdade, os dados indicam uma
forte correlação entre o ‘título’ de homem de negócio e o posto de capitão. Poucos
elevam-se acima dele, e menos ainda são os que ficam abaixo” (Sampaio, 2010:
470). Elias António Lopes, para fins do século XVIII, conseguiu o posto de capitão
de fortaleza da Ilha das Cobras no Rio de Janeiro.
23 Segundo Rui Vieira da Cunha, esse depoimento é do Padre Perereca (Cunha,
Nilza Licia X avier Silveira Braga 175

Conforme destacado, era intenção de Lopes ofertar para o


príncipe a propriedade, pois encontramos, em fonte utilizada por
Nireu Cavalcanti (2004) em sua obra sobre o Rio de Janeiro, um
trabalho anônimo intitulado Relação das festas que se fizeram no Rio de
Janeiro, quando o Príncipe Regente [...].

A primeira cousa notável que me lembra dizer-te, é a generosa


oferta, que o negociante e cidadão desta cidade, Elias Antônio
Lopes, fez da sua chácara (Quinta) a S.A.R, e que o mesmo
SENNHOR se dignou aceitar. (...) Quando S.A.R entrou ali pela
primeira vez, disse Elias Antônio, que o acompanhava: Eis aqui
uma varanda Real, Eu não tinha em Portugal uma cousa assim.
Hoje, respondeu Elias, hoje é que Vossa Alteza a faz Real com
a sua presença (...). Desde aquele dia começou a chamar-se dita
chácara Quinta de S. Cristóvão. (...) querendo gratificar a Elias
Antonio tão generosa oferta, que os mesmos fidalgos avaliam
em 400.000 cruzados [160.000$000], houve por bem nomeá-lo
Comendador da Ordem de Cristo, Fidalgo da Casa Real, e
Administrador da mesma Quinta (Grifos nossos).24

O abastado Elias António Lopes recebeu gratificações pela


sua ação a favor do príncipe, como uma Comenda da Ordem
de Christo,25 o tabelionato da câmara e almotaceira da vila de
Parati, além da administração da Quinta da Boa Vista. Em 13
de maio de 1808, aniversário do príncipe regente, este decidiu
recompensá-lo por um decreto em que concedeu os benefícios
ao negociante. Em 25 de outubro de 1808, foi passada a Lopes a
competente carta da mercê da Comenda de Cristo (Cunha, 1957:

1969:53).
24 Relação das festas que se fizeram no Rio de Janeiro, quando o Príncipe Regente
N.S, e toda a Sua Real Família chegaram pela primeira vez àquela capital. Lisboa:
Impressão Régia, 1810, p.12-13, Biblioteca Nacional, Seção de Impressos, cód. 36-
0-21. In: Cavalcanti, 2004: 99-100.
25 Ordem criada em 1317 por D. Diniz, Rei de Portugal. Cf. Debret, 1978.
176 A projeção social dos homens de negócio com a vinda...

11). Na fonte à seguir, Dom João declara que a atitude de Lopes


foi a favor da Coroa, o que nos remete a discussão realizada pela
historiografia de que os negociantes atendiam suas necessidades.

Attendendo ao notorio desinteresse, e demonstração de


fiel vassalagem, que vem de tributar á Minha Real Pessoa
Elias António Lopes Negociante da Praça desta Capital no
offerecimento que Me fez de hum prédio situado em São
Christovão de distincto e reconhecido valor em beneficio da
Minha Real Corôa, E dezejando fazer lhe honra e Mercê como
elle merece por esta acção voluntaria de repartir com o Estado
os lucros adquiridos pelo seu comercio: Hei por bem fazer lhe
Mercê de Huâ Commenda da Ordem de Christo das de Africa,
que vagar podendo usar logo da Insignia de Commendador,
como tambem da Propriedade do Officio de Tabelião Escrivão
da Comarca e Almotaceira da Villa de Parati, logo que finde a
arrematação, e de Administrador do referido Predio. A Mesa do
Desembargo do Paço e da Conscicencia e Ordens o tenha assim
entendido Me mande expedir os despachos necessários. Palacio
do Rio de Janeiro em treze de Maio de mil oito centos e oito. =
Com a Rubrica do Principe Regente Nosso Senhor.26

Lopes fazia questão de relatar as honrarias conquistadas


quando requisitava outras a Dom João. Em um requerimento de
29 de agosto de 1810, no qual o negociante solicita a Alcaiadaria-
mor e Senhorio da Vila de São José del Rei, observamos que ele cita as
mercês já obtidas devido à benignidade de Sua Majestade. Entre
elas, a Comenda da Ordem de Cristo e o lugar de Deputado da
Real Junta de Comércio, onde tomou posse em 18 de maio de
1809.

26 Arquivo Nacional. Fundo: Ministério do Império, Código Fundo: 53,


Códice 15, Volume 1, fl.17.
Nilza Licia X avier Silveira Braga 177

Diz Elias Antonio Lopes official da Caza Real, Commendador


da Ordem de Christo e Deputado da Real Junta da Commercio,
que tendo prestado a V.A.R os distinctos serviços que lhe
são (...), assignalando a mais fiel vassalagem, zelo e fidelidade.
Sobe com profundo respeito a augusta prezença, (...) se digne
fazer mercê ao Suplicante da Alcaidaria mor e senhorio da
Vila de S. José d’ El Rey nesta capitania do Rio de Janeiro com
todos os privilégios, regalias e izempçoens outorgados aos
senhores donatários de terras. Esta graça será hum monumento
soberanno da benignidade com que V.A.R acolhe o Suplicante
huma contemplação dos seus serviços e huma justa alegria dos
anos de V.A.R. (...). Para a V.A.R que attendendo benignamente
o que o Suplicante se digne contemplá-lo com a requeridas
graças. Elias António Lopes.27

Segundo Cunha (1957: 14), Lopes conseguira a mercê da


Alcaidaria-mor por um decreto da mesma data do requerimento.
O negociante, portanto, somou mais uma mercê em sua
trajetória, isto porque ter o título de Alcaide-mor de uma região
“(...) constituía uma digna recompensa para vassalos desejosos de
nobilitação” (Silva, 2005: 300).
Também é importante sinalizar sua ação de vassalagem a
favor de Dom João. Esta lhe rendeu a nomeação de administrador
da Real Quinta da Boa Vista, no período de 23 de março de 1808
até 31 de maio de 1813. Em informação circunstanciada do
inventário de Lopes, encontramos a confirmação de que foi
administrador da Quinta e recebia uma quantia mensal para a
manutenção do local. Elias é liberado da função por um aviso
régio de 28 de maio de 1813. No fim de sua administração,
Lopes recebera uma quantia em dinheiro, mas abriu mão dela em
benefício do Estado. A atitude do negociante confirma que eles

27 Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Sessão de Manuscritos. Requerimento


enviado ao ministério do Império solicitando a Alcaidaria mor e senhoria da Vila
de São José d’ El Rei no RJ. Localização C-0050, 022.
178 A projeção social dos homens de negócio com a vinda...

cediam quantias financeiras à Coroa, como forma de manterem


uma relação favorável perante o monarca e, assim, ascenderem
socialmente.28

Consta também que o finado conselheiro fora nomeado por


Sua Alteza Real administrador da Real Quinta da Boa Vista
pertencente ao mesmo Real Senhor por offerecimento que della
lhe fez o mesmo fallecido, principiando a exercer este lugar em
23 de março de 1808 athé 31 de maio de 1813 tempo em que foi
aliviado deste emprego por avizo Regio da Secretaria de Estado
datado em 28 de maio de 1813. Durante este prazo de tempo
prestou sempre o fallecido conselheiro suas contas a Sua Alteza
Real relativas ao dinheiro que recebia e despendia com a mesma
Real Quinta (...) cujos saldos a favor do fallecido SAR mandava
pagar e ele recebia. Na última conta que lhe deo, (...) fexada em
21 de Junho do ditto anno na conta corrente manifestava-se
um saldo a seo favor de R$ 2:056$350, dos quaes na conta o
conselheiro cedera o benefício do Estado em virtude de hum
requerimento que elle fizera a Sua Real Alteza (...).29

Em 19 de outubro de 1810, Dom João “Attendendo aos


Serviços, que Me tem feito Elias António Lopes, natural da Cidade
do Porto, filho do Capitão Antonio Lopes Guimaraens: Hey
por bem, e Me apraz Fazer Mercê de tomar no Foro de Fidalgo
Cavalheiro da Minha Real Caza (...)”.30 Os benefícios concedidos

28 Sobre a discussão da “economia do dom” e os homens de negócio na primeira


metade do século XVIII, Antonio Carlos Jucá de Sampaio argumenta que “(...)
a noção de serviço está sempre presente, pois esse é o dom por excelência que
os vassalos podem oferecer a seu monarca. (...). O principal dom que homens de
negócio podiam oferecer ao rei era exatamente a sua riqueza” (2010: 475). No caso
de Elias Antonio Lopes, este ofereceria sua riqueza ao príncipe regente Dom João
a partir de 1808.
29 Arquivo Nacional. Inventário do Conselheiro Elias Antonio Lopes. 10 de Novembro de
1815. fl.87.
30 Arquivo Nacional. Fundo/Coleção: Registro Geral de Mercês, Código
Fundo: 82, Códice 137, Volume 13, fl.16.
Nilza Licia X avier Silveira Braga 179

pelo regente ao negociante parecem não se esgotar. Em Decreto


de 17 de dezembro de 1811, Elias recebe o título de Conselheiro
devido aos serviços prestados ao regente (Cunha, 1957: 18).
Elias António Lopes faleceu em 7 de outubro de 1815,
conforme declarado em seu Inventário, “Rio de Janeiro 10 de
Novembro de 1815 – Inventário dos Bens da caza do finado
Conselheiro Elias António Lopes existentes ao tempo do seu
falecimento no dia 7 de Outubro do prezente anno (...)”.31
Lopes não deixou testamento, sendo seus bens inventariados por
seu caixeiro Thomás Pereira de Castro Viana, juntamente com
a firma de Francisco José Guimarães e Companhia. Na seção
Avisos da Gazeta do Rio de Janeiro, em 25 de outubro de 1815,
os inventariantes anunciaram que a Real Junta de Comércio abrira
uma administração para cuidar dos bens do falecido, sendo eles
nomeados seus administradores. Além disso, Thomás Pereira de
Castro Viana e Francisco José Guimarães e Companhia pediram
para que os credores do negociante saldassem suas dívidas no
prazo de dois anos.

Francisco José Guimarães e Companhia e Thomaz Pereira


de Castro Vianna, annuncião ao público que se acha creada
pela Real Junta de Commercio, huma Administração à caza
do finado Conselheiro Elias Antonio Lopes, da qual elles são
Administradores, e por ordem da mesma Real Junta fazem
saber que quaesquer pessoas, que entendão ser credores à dita
caza, compareção a legitimar as suas dívidas dentro de 2 annos
com comição de que findo este período serão remetidos aos
meios ordinários.”32

31 Arquivo Nacional. Inventário do Conselheiro Elias Antonio Lopes. 10 de Novembro de


1815. fl.1.
32 Biblioteca Nacional. Sessão de Periódicos. Gazeta do Rio de Janeiro. 25 de
Outubro de 1815. p.4. Disponível em http://objdigital.bn.br/acervo_digital/
div_periodicos/gazeta_rj/gazeta.htm. Acesso em 21/09/2011.
180 A projeção social dos homens de negócio com a vinda...

Por meio de algumas mercês angariadas pelo negociante,


portanto, observamos que Elias António Lopes dedicou parte
de sua vida a busca por distinção social. O negociante não se
contentou em apenas atuar no trato mercantil, mas também,
mediante a acumulação de riquezas advinda de seus negócios,
conseguiu construir sua chácara em São Cristovão. Com a vinda
da Corte, em 1808, presenteou o príncipe com o imóvel e assim
conseguiu as mercês desejadas. Teve seu nome ligado aos maiores
cabedais do período e aparece em muitas fontes com o título de
Conselheiro. O anúncio na Gazeta do Rio de Janeiro comprova
que foi um negociante influente e reconhecido na corte Joanina.
Assim, conseguiu o tão almejado status social de “o rico negociante
que presenteou D. João...”.

Considerações Finais

Em resumo, neste artigo foi possível observarmos que os homens


de negócio empenharam-se pelo status social e acumulação
mercantil. Com a vinda da corte Joanina, em 1808, aproximaram-
se da Coroa e supriram as necessidades financeiras desta. A
partir disso, obtiveram cargos nos principais órgãos do governo
e angariaram mercês honoríficas concedidas por Dom João. A
diferenciação social também acontecia quando adquiriam objetos
de luxo ao estilo da moda européia.
O caso de Elias António Lopes é exemplificador no que se
refere à obtenção de honrarias. As honrarias obtidas por Lopes
foram às seguintes: A comenda da Ordem de Cristo e o título
de Conselheiro; ele também atuou como Alcaide-mor e senhorio
da vila de São José del Rei. Foi fidalgo cavaleiro da Casa Real
e administrou a Quinta da Boa Vista no período de 1808 a
1813. Assim, ao examinar os títulos obtidos por Lopes, pode-
Nilza Licia X avier Silveira Braga 181

se comprovar que ele não se satisfez apenas com a projeção


mercantil, mas também procurou as mercês honoríficas e os
cargos no governo para conseguir status social na sociedade de
cortes do Rio de Janeiro.
As fontes manejadas, a historiografia e a contribuição da
biografia do negociante feita por Rui Vieira da Cunha (1957),
ajudaram-me a traçar esta pequena trajetória do negociante. O
amadurecimento desta pesquisa está em curso e será desenvolvida
em trabalhos posteriores.
182 A projeção social dos homens de negócio com a vinda...

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184 A projeção social dos homens de negócio com a vinda...

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Capítulo VIII

Fronteiras insubmissas:
circuitos mercantis, elites e
territorialidades nas capitanias do
Norte do Estado do Brasil,
c.1791-1797

José Inaldo Chaves Júnior1

Para Acácio Lopes Catarino,


Maria Fernanda Bicalho,
Carlos Gabriel Guimarães,
Regina Célia Gonçalves e
Rodrigo Ceballos.

Cidade da Parayba, outono de 1795. Uma sexta-feira, 29 de maio,


que o tempo preservou os vestígios no registro escrito. Passara-se
mais de trinta anos desde que atracara no porto daquela cidade da
Parayba, cabeça da capitania, a nau trazendo o novo governador.
Era o capitão-mor Jerónimo José de Mello e Castro, um aristocrata
de nobreza duvidosa, neto de indiana, mas aparentado dos

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Este artigo compõe parte das reflexões que tenho feito por ocasião de meu mestra-
do em História, em andamento na Universidade Federal Fluminense, sob a orienta-
ção da professora Drª Maria Fernanda Bicalho. Portanto, as considerações tecidas
tem caráter exploratório e parcial. Agradeço as contribuições do professor Dr. Mar-
celo da Rocha Wanderley (PPGH/UFF).
186 Fronteiras insubmissas: circuitos mercantis, elites...

Grandes de Portugal (Monteiro, 2003).2


Ele chegara ao extremo oriental das Américas com a
difícil missão de gerir um governo subordinado política e
administrativamente à Pernambuco.3 Porém, o que talvez
Jerónimo de Mello e Castro jamais imaginasse era o quão difícil
seria manter os limites mínimos da governabilidade naquelas
plagas, quando os interesses de partes substantivas das elites
locais implodiam as fronteiras mínimas entre as duas capitanias,
relegando a uma posição meramente figurativa o cargo de
governador da Paraíba.
Para um nobre, cuja honradez e espírito militar, valores
compósitos do ethos aristocrático do Antigo Regime português
(Monteiro, 2005), herdara de sua longa tradição familiar, não seria
fácil conviver com as investidas jurisdicionais dos governadores-
generais de Pernambuco;4 menos ainda com as desobediências

2 Jerónimo de Mello e Castro era neto de António de Mello e Castro, governador


da Índia (1668-1671). António casou-se três vezes. A filiação do governador da
Paraíba, Jerónimo de Mello e Castro, advem de seu primeiro casamento com a
indiana Ana Muniz, com quem gerou Julio de Mello e Castro, pai de Jerónimo
(cf. nota 4). António de Mello e Castro esposou, ainda, Lucrécia de Sá e Meneses,
com quem não teve filhos, e Maria Ataíde, com quem gerou Jerónimo de Mello e
Castro, homônimo tio-avó do governador da Paraíba. De seu primeiro matrimônio
com Ana Muniz, cuja ascendência desconheço (a não ser seu lugar de nascimento),
António de Mello e Castro gerou, além de Julio, Franscisco de Mello e Castro. Cf.
ANTT, Registro Geral de Mercês, PT-TT-RGM/B/2/16507.
3 A Capitania da Paraíba teve seu governo anexado à vizinha Pernambuco por
Resolução Real de 29 de dezembro de 1755. As principais justificativas dadas pela
Coroa para a decisão versaram nos “pucos meios que há na Provedoria da Fazenda
para sustentar um governo separado”, determinando, assim, a sua extinção e
anexação a Pernambuco. Cf. Oliveira, 2007: 106. O governo militar fora preservado,
ao menos em tese, da interferência pernambucana. Cf. Chaves Júnior, 2011b. A
Paraíba permaneceu anexada até os idos de 1799. Para uma pertinente análise
da crise política e econômica que abateu a Capitania da Paraíba, notadamente a
partir da falência de sua Provedoria da Fazenda, e que culminou na anexação à
Pernambuco, cf. Menezes, 2005.
4 Cf. os sinais dos impasses enfrentados por Mello e Castro à frente do governo
José Inaldo Chaves Júnior 187

e atrevimentos dos principais da terra, cujos negócios reafirmavam


cotidianamente os laços com a poderosa capitania vizinha.5
Naquele 29 de maio de 1795,6 Jerónimo de Mello e Castro
manifestava sua indignação diante de um dos temas mais
tensionados à época nas capitanias do Norte: o comércio direto
entre as zonas produtoras da Paraíba e o entreposto comercial
do Recife, que corria sem o recolhimento de tributos na cidade
da Parayba. Na visão de Mello e Castro, estes circuitos mercantis
fraudavam a Fazenda Real, além do que endossavam a danosa

da Paraíba in AHU_ACL_CU_014, Cx. 25, D. 1979 (1776, novembro, 6) [Arquivo


Histórico Ultramarino_Administração Central_Conselho Ultramarino_Cota
Paraíba_Caixa 25, Documento 1979]. OFÍCIO do governador da Paraíba,
brigadeiro Jerónimo de Mello e Castro, ao secretário de estado da Marinha e
Ultramar, Martinho de Mello e Castro, queixando-se do general de Pernambuco,
José Cezar de Menezes, por declarar que o título de governador que lhe é
dado não tem jurisdição, acusando o dito capitão-general de intervir em todas as
questões referentes a Paraíba.
5 Jerónimo era filho de Julio de Mello e Castro (n. 1658- m.1721), escritor e militar
nascido na Índia, e de D. Bárbara Josefa Corte-Real, natural de Lisboa. Filho do
governador-geral da Índia, António de Mello e Castro (1666-1671), Julio de Mello e
Castro era parente por um costado dos Condes das Galveas, aristocratas da primeira
nobreza do Reino e com participação ativa na Restauração de 1640, sob a liderança
da Casa dos Bragança. Cf. V.A.T. Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira.
Ilustrada com cerca de 15.000 gravuras e 400 estampas a cores. Vol. VI. Lisboa,
Rio de Janeiro: Editorial Enciclopédia, s/d, p. 829. Sobre o parentesco de Júlio
de Mello e Castro com os condes das Galveas, cf., ainda, FELGUEIRAS GAYO,
M. J. C. Nobiliário de Famílias de Portugal. Vol. IV. Costados. Braga: Oficina
Gráfica Augusto Costa, 1942, p. 247. Acerca da filiação de Jerónimo José de Melo
e Castro, cf., sobretudo, ANTT, Juízo da Índia e Mina, PT-TT.JIM-JJM-2-33-7.
Autos de habilitação de D. Ana Vitória de Castro e Melo Corte-Real, filha de
Julio de Mello e Castro e de D. Bárbara Josefa Corte-Real, natural de Lisboa. A
habilitante pretendia receber como única herdeira, a herança deixada por seu irmão,
o brigadeiro Jerónimo José de Mello e Castro, governador da Capitania da Paraíba,
falecido na cidade de Nossa Senhora das Neves da mesma capitania, em 1797. Cf.,
também, AHU_ACL_CU_014, Cx. 34, D. 2475 (1798, outubro, 30). Agradeço a
Renan Marques Birro (PPGH/UFF) por sua ajuda na organização deste verdadeiro
quebra-cabeça de fontes.
6 AHU_ACL_CU_014, Cx. 32, D. 2330.
188 Fronteiras insubmissas: circuitos mercantis, elites...

subordinação à Pernambuco.
De fato, não era a primeira missiva na qual Mello e Castro
revelara sua posição contrária ao comércio exportador
intermediado pelo porto do Recife. Poucos anos antes, em 15 de
junho de 1791, o governador da Paraíba anunciava ao secretário
de estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Mello e Castro, de
quem era primo,7 a apreensão de um carregamento clandestino
de açúcar nas ribeiras do Mamanguape, ao norte da cidade da
Parayba, que seguia em direção à Praça do Recife. Nesta ocasião, é
possível ter uma dimensão minúscula do comércio movimentado
entre as duas capitanias e dos problemas que este causava, na
interpretação do governador da Paraíba.

Este anno, que não promettia produção vantajoza attenta a grande


distruição [sic] que padecerão os Engenhos e Canaviais com o
dilúvio de 1789, já dou carga a dois Navios [...] e esta prompta
carga para outro, e para muitos haveria se as referidas 82
caixas [de açúcar] não fossem para Pernambuco e muitas
mil sacas de algudão [sic], couros, solas, e mais grande
[sic] abundancias e effeitos, que sahem desta Capitania
para aquela [Pernambuco].8

Todavia, naquele outono de 1795, outros detalhes indiciaram


a articulação do plano local da governabilidade com as estratégias
da Coroa para o fortalecimento do comércio nas capitanias
do Norte. A carta de Jerónimo José de Mello e Castro era, na
verdade, uma resposta à Sua Majestade, a rainha D. Maria I, que

7 Martinho de Mello e Castro, diplomata e poderoso ministro de D. Maria I, era


neto do 4º Conde das Galveas e vice-rei do Brasil, André de Mello e Castro (1668-
1753). Cf. Valadares, 2006: 42. Em 27 de outubro de 1777, Jerónimo José de Mello
e Castro, ao solicitar o seu despacho para um posto de maior destaque no Império,
dirigiu-se ao secretário, dizendo “Meu primo e Senhor muito da minha especial
veneração [...]”. Cf. AHU_ACL_CU_014, Cx. 24, D. 1898.
8 AHU_ACL_CU_014, Cx. 30, D. 2240 (Grifos nossos).
José Inaldo Chaves Júnior 189

lhe ordenara que fossem imediatamente levantadas quaisquer


proibições de comércio entre a Paraíba e Pernambuco, mormente
nas regiões próximas do rio Mamanguape – a segunda maior
população e bacia hidrográfica da Paraíba, cuja importância vinha
crescendo desde o início de Setecentos, e que mantinha histórico
contato comercial com a Praça do Recife.
Segundo Regina Célia Gonçalves (2007: 172), por todo o
século 17, a bacia do rio Paraíba constituíu-se na principal área
de povoamento e proveito açucareiro da Capitania, embora, já
na terceira década do mesmo século, outras zonas estivessem em
processo de ocupação, especialmente ao norte da Paraíba.
Deste modo, a partir de meados de Seiscentos, o entorno
do rio Mamanguape, ao norte da capital, apresentou gradual
adensamento populacional. Ao fim do século 18, Mamanguape
destacara-se também pela expansão produtiva do açúcar e do
algodão em áreas antes dominadas apenas pela pecuária. Por
essa época, as exportações de açúcar e algodão da região do
Mamanguape ombreavam aquelas da várzea do Paraíba. Além
disso, intensificou-se a extração de madeiras para a construção
civil e naval, marcenaria e tinturaria (Carvalho, 2008: 67).
Com representação camarária, peso político e interesses
próprios, o povoamento e proveito branco das ribeiras do
Mamanguape, a partir da segunda metade de Setecentos, fez
daquela região uma zona relativamente independente da bacia
do Paraíba, permitindo a composição de outras centralidades
na capitania, além daquela representada pela capital, a cidade
da Parayba. (Carvalho, 2008: 77-81). Assim, dava nota Mello e
Castro:
190 Fronteiras insubmissas: circuitos mercantis, elites...

Recebo a muito respetavel ordem de Vossa Magestade datada


de 10 de Julho passado em que me ordena [suspender] as
prohibicoens que se dectinha [sic] posto de sairem os efeitos
de Mamangoape [...] para o [porto] de Pernambuco e que faça
registar nesta Camera [...] de Montemor a mesma Real Ordem.9

Após trinta anos tentando obstaculizar os circuitos mercantis


entre a Paraíba e a Praça do Recife, sob a alegação dos danos
causados aos cofres da combalida capitania e do reforço da
sujeição à Pernambuco pelo desanimo dos negociantes da Praça
da Paraíba, Mello e Castro era, finalmente, desacreditado pela
própria Coroa portuguesa.10 Ao final do século 18, ao menos pelos
idos de 1795, o tema do comércio era resolvido, parcialmente,
em favor das redes mercantis que cruzavam as fronteiras das
capitanias do Norte rumo ao porto do Recife.
Este entreposto comercial era, mais uma vez, fortalecido.
Porém, os negócios de elites locais da Paraíba também foram
garantidos pela decisão da Rainha. Sem o apoio da Coroa,
Jerónimo de Mello e Castro perdera mais uma batalha, uma de
suas principais bandeiras: a defesa do comércio pela cidade da
Parayba como fator determinante para a autonomia político-
econômica da Capitania e do aumento dos ganhos da Fazenda
Real.
Obviamente, nem todos concordavam com suas conclusões
sobre o comércio naquelas paragens. Poucos anos depois,
envelhecido e isolado, morreria o capitão-mor da Paraíba em
1797. Todavia, a morte (política) de Jerónimo de Mello e Castro
não pode ser o final desta história, muito pelo contrário, ela nos

9 AHU_ACL_CU_014, Cx. 32, D. 2330.


10 Cf. AHU_ACL_CU_014, Cx. 24, D. 1898 (1770, outubro, 27). OFÍCIO do
[governador da Paraíba], brigadeiro Jerónimo José de Mello e Castro, a Martinho de
Mello e Castro, congratulando-se e pedindo para ser despachado para Pernambuco
ou Goiás, já que vive mortificado por não poder exercer seu governo livremente.
José Inaldo Chaves Júnior 191

obriga a seguir os vestígios mais remotos, procurando os “jogos


dos passos [que] moldam espaços” [e que] “tecem lugares”,
investigando, pelo retorno das práticas e pelas reservas com as
totalizações do espaço “geométrico” ou “geográfico” (Certeau,
2007: 174), as relações mantidas entre as heterogêneas elites das
capitanias do Norte na segunda metade de Setecentos, e que
justificam, em parte, a manutenção dos negócios trans-fronteiriços
entre Paraíba e Pernambuco, razão precípua da ira do governador
Jerónimo de Mello e Castro (Chaves Júnior, 2011).
Tratou-se da história de elites que se constituíram
umbilicalmente ligadas, não apenas pelos negócios, mas
também pelos seus mecanismos de reprodução social, como os
matrimônios, a posse das terras e as alianças para a ocupação dos
cargos da governança local. Analisando os primeiros decênios
de conquista e ocupação do Nordeste colonial, entre os séculos
16 e 17, articulando-os ao tema da formação das primeiras elites
conquistadoras no Norte do Estado do Brasil, a historiadora
Regina Célia Gonçalves afirma,

Na verdade, as Capitanias do Norte, do ponto de vista de


tais elites [...], constituíam um único espaço de extração de
“proveito”. Fosse através da participação nas campanhas
militares, com o objetivo de cativar índios, da obtenção das
terras de sesmarias para a lavoura da cana e a instalação dos
engenhos, ou da ocupação de cargos e ofícios na estrutura
burocrática local, de forma a garantir a manutenção de seus
privilégios, essa camada senhorial concebia a Capitania como
veículo para o seu próprio enriquecimento (Gonçalves, 2007:
222).

Adentrando ao século 18, os contextos eram bem distintos


daquelas primeiras décadas de ocupação, mas os vínculos
supracapitanias daquelas elites, ainda que modificados pela
emergência de fatores estruturantes, a exemplo da ascensão
192 Fronteiras insubmissas: circuitos mercantis, elites...

do Recife como entreposto comercial (Mello, 1995) e do


fortalecimento de camadas mercantis reinóis e residentes na
colônia (Sampaio, 2007), parecem ter permanecido, ainda que
noutros moldes.11
Ao fim e ao cabo, em muitas ocasiões esses laços foram
assegurados pela Coroa, mesmo que a contragosto de alguns
de seus oficiais, o que se registrou na segunda metade do século
18 num dos períodos nevrálgicos das relações entre Paraíba e
Pernambuco: a anexação de 1755-1799 e o governo de Jerónimo
José de Mello e Castro (1764-1797).

***

A paraibanidade aqui se fixou para um culto permanente


(Revista do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano apud Dias,
1996: 63).

Seguindo a advertência de Michel de Certeau, “essa história


começa ao rés do chão, com passos”, procurando nos rastros
deixados pelas elites locais das antigas capitanias do Norte, uma
história que consiga ultrapassar a divisão político-administrativa
arbitrária do Estado do Brasil, reificada pelas historiografias
tradicionais, sobretudo os arautos das histórias locais, fragmentos
e composições fundamentais na formação de uma identidade

11 Tratando dos processos de reprodução social supracapitanias das elites coloniais,


João Fragoso destaca que “[...] a América lusa não era simplesmente uma colcha
de retalhos de vilas isoladas; suas elites, de geração em geração, reconstituíam teias
de alianças parentais, o que, com certeza, dá uma nova imagem ao Antigo Regime
nos trópicos: a expansão territorial da sociedade colonial implicava na formação
de malhas de alianças parentais de facções da nobreza da terra em distintas áreas”
(Fragoso in Monteiro; Cardim & Cunha, 2005: 141).
José Inaldo Chaves Júnior 193

nacional – a ideia da Nação Brasileira (Schwarcz, 2001; Guimarães,


1988).12
Esse foi, precisamente, o intento do projeto de uma história
local da Paraíba, inaugurado pelo IHGP, mas reafirmado até
recentemente por importantes historiadores. Os principais
tópicos dessa historiografia foram a oposição à Pernambuco e a
necessidade urgente de afirmar uma história própria e autêntica,
porém, sem perder de vista sua integração na história pátria. Para
Margarida Dias, se, por um lado, “essa separação e a tentativa
de igualar Paraíba e Pernambuco são constantes na produção
historiográfica do IHGP”, por outro, pode-se entrever que “[...]
a preocupação do Instituto Histórico em produzir uma história
separada da de Pernambuco nasceu da necessidade de criar uma
identidade paraibana” (Dias, 1996: 54, 55).
Entretanto, o topoi de uma história autonomista obscureceu
a compreensão de espaços produzidos como territorialidades
intrinsecamente vinculadas. Em favor de um “homem paraibano”
– intrepida ab origine –, rejeitou-se uma história das conexões
entre Paraíba e Pernambuco, entendendo-a como sujeição e
subordinação – uma história indigna ao futuro. Necessário
era, isto sim, ressaltar os fatos em que o gênio paraibano fora
destacadamente “anti-pernambucano”, ou ao menos autônomo,
com glória e história próprias.
Neste sentido, foram fundamentais o silêncio e a negação.

12 Na seara do estudo empreendido por Manoel Luiz Salgado Guimarães sobre o


IGHB, Margarida Dias, analisando o caso da fundação do Instituto Histórico e
Geográfico Paraibano, em 1905, ainda nos moldes de seus congêneres Oitocentistas,
afirma que “a política mais importante do IHGB foi o incentivo à fundação de
Institutos Históricos e Geográficos locais, com o objetivo precípuo das produções
de histórias regionais e catalogação de fontes para percorrer o caminho de volta
(ao IHGB) e contribuir para a formulação da história geral do Brasil. [...] essa
política de criação de Institutos Históricos locais só teve significado quando a esses
locais foi possível explicitar suas diferenças, sem que se perdesse a perspectiva da
construção de uma unidade” (Dias, 1996: 33).
194 Fronteiras insubmissas: circuitos mercantis, elites...

Como categoria historiográfica, o não-dito operou na escrita da


história da Paraíba como elemento de afirmação de uma identidade
paraibana, a partir do distanciamento de Pernambuco;13 uma
identidade marcada pela bravura imorredoura e pela tendência
ao republicanismo. Uma paraibanidade quase atemporal que nos
teria acompanhado desde os primórdios de “nossa civilização” e
se manifestara em eventos emblemáticos, como na luta contra o
herege batavo, na Restauração de 1817 e no advento da República
em 1889 (Dias, 1996: 57ss).
Em todos esses “fatos históricos”, nos quais contraditoriamente
dividimos a cena com Pernambuco, o mais importante seria,
pelo contrário, sobrelevar nosso espírito independente frente ao
poderoso vizinho – uma história local escrita como a história da
autonomia face à Pernambuco, como, por exemplo, no período
de dominação neerlandesa das capitanias do Norte que, no
retrato do IHGP, a Paraíba, diferentemente de Pernambuco, teria
permanecido em intrépida resistência (Dias, 1996: 56).
Ocioso dizer que essa historiografia tradicional não
desconhecia as históricas imbricações com Pernambuco, porém,
em virtude de um projeto específico de história local, preferiu
ressaltar a especificidade da Paraíba. Não por menos, incorreu

13 Analisando os saldos do que chamou de “tempo da desconfiança” – os anos de


crise de uma “história objetiva” –, Michel de Certeau, não sem uma boa dose
de ironia, afirmou: “Mostrou-se que toda interpretação histórica depende de
um sistema de referência; que este sistema permanece uma ‘filosofia’ implícita
particular; que infiltrando-se no trabalho de análise, organizando-o à sua revelia,
remete à ‘subjetividade’ do autor”. Mais adiante, reitera Certeau, “Agora, sabemos a
lição na ponta da língua. Os ‘fatos históricos’ já são constituídos pela introdução de
um sentido na ‘objetividade’. Eles enunciam, na linguagem da análise, ‘escolhas que
lhes são anteriores, que não resulta, pois da observação – e que não são nem mesmo
‘verificáveis’, mas apenas ‘falsificáveis’ graças a um exame crítico. A ‘relatividade
histórica’ compõe, assim, um quadro onde, sobre o fundo de uma totalidade da
história, se destaca uma multiplicidade de filosofias individuais, as dos pensadores
que se vestem de historiadores” (Certeau, 2008: 67).
José Inaldo Chaves Júnior 195

em omissões cruciais, como no caso do comércio e da posição


particular de sua capital.
Deixando de lado essa vinculação, desde o seu sentido inicial,
com Pernambuco, comprometeu-se as possíveis explicações
posteriores sobre o isolamento da Cidade da Paraíba, os
problemas do comércio entre o sertão e a cidade do Recife
(Dias, 1996: 53).

Não obstante, além das conexões entre o sertão paraibano e


a Praça do Recife, visivelmente existentes até o início do século
20,14 os contatos entre a zona da mata da Paraíba e o porto do
Recife pouco foram estudados, como no caso das ribeiras do
Mamanguape, com o qual iniciamos essa história. Na verdade,
o tema do comércio com Pernambuco fora sempre um dos
assuntos mais dolorosos dessa historiografia da paraibanidade – a
sua ferida de Narciso.
Por isso, ou fora observado pelos olhares da sórdida
subordinação, extraindo das falas dos governadores da Paraíba,
como Jerónimo de Mello e Castro, os discursos em favor do
“comércio direto” com o Reino e da independência da capitania;
ou, simplesmente, uma memória ferida tratou de “esquecer” o
assunto, privilegiando outros “mais dignos” ao gênio paraibano.
Não é de estranhar que o século 18, manchado pela anexação
oficial à Pernambuco, tenha recebido pouca atenção por parte
desta historiografia. O historiador Celso Mariz (1922) considerou
aqueles tempos como de pouca relevância.

14 As redes comerciais e as relações políticas entre o sertão paraibano e a cidade do


Recife não serão objeto neste estudo. A esse respeito, cf., por exemplo, Lewin,
1987.
196 Fronteiras insubmissas: circuitos mercantis, elites...

Como o desbravamento nos primeiros decênios, a guerra anti-


holandesa em seguida, a conquista do sertão logo depois; o
século XVIII não tem para nós nenhum fato absorvente
e dominador, que se possa considerar o grande suporte
da história paraibana nesse período (Mariz, 1980: 45, grifos
nossos).

Afora o pouco mérito que dá ao Setecentos, Mariz


destaca, nas poucas páginas dedicadas ao período, a construção
de uma Paraíba “menos pernambucana”, compassada com um
“Brasil menos português”. Será isto mesmo? O autor observa
o período de anexação (1755-99) tão-somente como uma fase
inglória, na qual os “paraibanos” lutaram avidamente por sua
autonomia. Entretanto, Mariz reconhece a posição do Recife e a
pujança de seu comércio, onde os produtores da Paraíba, “melhor
comprando e melhor vendendo”, encontravam saída certa para as
suas fazendas (Mariz, 1980: 51).
Por outro lado, sua posição sobre o período de anexação
e os circuitos mercantis entre Paraíba e Pernambuco no século
18, reafirma uma copiosa historiografia paraibana que, a despeito
das diferentes escritas da história que adota, é enfática ao destacar
que “o comércio da Paraíba colonial é desde cedo caracterizado
por sua invencida subordinação a Pernambuco” (Mariz, 1980:
53). De Maximiano Lopes Machado (1912) e Horácio de Almeida
(1966) à Elza Regis de Oliveira (1985), a tópica da subordinação à
Pernambuco pelo comércio, associada à luta pela independência,
foi o elemento central destacado por esta historiografia ao tratar
das relações entre Paraíba e Pernambuco.15

15 Para Maximiano Lopes Machado, importante historiador paraibano de Oitocentos,


“O povo vivia descontente, não existia comércio, nem artes; o assucar e o algodão,
atacados pelos atravessadores, passava ao mercado do Recife, defraudando aquelles
muitas vezes os direitos do fisco empregado em escravos e gêneros para uso e
consumo das fazendas e fabricas [...]” (Machado, 1977 [1912]: 504). Posteriormente,
Horácio de Almeida reiterou, “Por longos anos viveu a Paraíba sangrada na sua
José Inaldo Chaves Júnior 197

De uma historiografia recente saiu um dos principais


trabalhos sobre a Paraíba na segunda metade do século 18, A
Paraíba na crise do século XVIII (1985), de Elza Regis de Oliveira.
Entretanto, seguindo o topoi da historiografia tradicional, ainda
que inovando ao integrar a Capitania às interpretações macro-
estruturais para o período, a autora tratou do tema apenas pelo
viés do binômio “subordinação/autonomia”.
Desconsiderou, por seu turno, os laços existentes e as
territorialidades construídas, para além das falas exaltadas dos
governadores e dos oficiais da câmara da cidade da Parayba,
injuriados pelas intervenções do governo de Pernambuco e pela
condição política e econômica precária da capital da Capitania.
Neste sentido, sobre o governo de Jerónimo de Mello e Castro na
Paraíba (1764-1797), Oliveira concluíra que,

Em nenhum momento do seu longo governo Jerônimo José


de Melo e Castro esteve conformado com a subordinação da
Capitania a Pernambuco. Em cartas de 1788 e 1789 refere-se aos
longos anos que vinha “arrastando as cadeias da subordinação”.
Com firmeza, apresentou, constantemente, ao Rei e a
Martinho de Melo e Castro os inconvenientes da anexação
e, mesmo sem ser atendido, nunca baixou a cabeça aos
generais de Pernambuco, diante do que não convinha à
Paraíba [...]. Toda a luta empreendida por ele era no sentido
de desenvolver a Capitania e torná-la autônoma (Oliveira, 2007:
123, 124. Grifos nossos).

Todavia, o que pouco se considerou foram as “vozes


discordantes”, existentes desde os tempos iniciais da colonização
(Gonçalves, 2007: 221) e reafirmadas nos anos de anexação (1755-

economia. Os produtos de exportação saíam quase todos pelo porto do Recife, tais
como o açúcar, algodão, couro curtido e fumo de rolo. Até as boiadas que desciam
do sertão iam em direitura das feiras de Igarassu e Goiana [em Pernambuco]”
(Almeida, 1978: 71).
198 Fronteiras insubmissas: circuitos mercantis, elites...

99), que defendiam os negócios com Pernambuco. Ou seja, não


se trata de saber o que não convinha à Paraíba – uma entidade
política ainda mal formada no século 18 – mas sim, a quem
convinha o comércio com Pernambuco na antiga Capitania
Real da Paraíba. Estas “vozes” nos ajudam a compreender a
decisão da Coroa, em 1795, ao liberar o comércio direto entre
as duas capitanias.16 Uma questão central sobre as relações
entre Paraíba e Pernambuco naquele meio século de anexação
(1755-99), e que, em nossa opinião, ainda não teve tratamento
historiográfico adequado, foi a afirmação da capitalidade da cidade
da Parayba, cabeça da capitania.17

16 Há que se considerar que as concepções de “comércio direto”, “comércio livre”,


e até mesmo “contrabando”, variavam de acordo com os interesses envolvidos e
privilégios garantidos, tendo em vista que funcionavam numa economia política de
Antigo Regime, logo, não transitavam na órbita das concepções contemporâneas
de mercado, baseadas, sobretudo, no princípio da “livre concorrência”. Por isso, é
possível identificar tanto na fala do governador Jerónimo José de Mello e Castro
quanto nas cartas da Câmara de Monte-mor (na região de Mamanguape) em defesa
do comércio com o Recife, a expressão “comércio direito”. Embora utilizassem a
mesma expressão, os referenciais daquilo que entendiam por “comércio direito”
eram absolutamente opostos. Enquanto para o governador da Paraíba o “comércio
direto” representava a livre comunicação da Paraíba com o Reino; para os produtores
das ribeiras do Mamanguape, o “comércio direto” era o direito de venderem seus
produtos no porto do Recife, onde conseguiam melhores preços. No que tange a
posição da Coroa em relação a este tema, suas decisões nem sempre se mostraram
coerentes. No entanto, o que percebemos é, outrossim, um profundo pragmatismo
que considerava as melhores condições de arrecadação (Cf. o capítulo 6 deste livro).
Sobre o posicionamento da Coroa acerca do comércio nas capitanias do Norte,
ainda carecemos de melhores entendimentos. A respeito da economia política de
Antigo Regime, cf. Sampaio, 2003; Rosavallon, 2002; Fragoso & Florentino, 2001.
17 Segundo Catarina Madeira dos Santos, o conceito de capital ou capitalidade quando
aplicado à conjuntura histórica da expansão portuguesa, não pode desconsiderar a
análise da cultura política e das formas de organização e representação do poder na
cidade-capital. Assim, Santos adverte que “[…] só podemos falar de capitalidade
na condição de este centro chegar a repercutir a sua influência num determinado
espaço, ou seja, sobre um Estado, independentemente da configuração que
este assuma. Há, portanto, que considerar uma vertente dinámica, expressa na
capacidade que o centro tem de estruturar e estabelecer hierarquias no interior de
José Inaldo Chaves Júnior 199

Se a cabeça da capitania teve papel primordial no primeiro


século da colonização, esse primado só foi possível graças à
expansão do povoamento e aproveitamento dos espaços do
Norte, o que fez das várzeas do rio Paraíba a base territorial
dos processos de reprodução social das elites de Pernambuco
(Gonçalves, 2007: 183). Por outro lado, a perda gradativa da
importância da cidade da Parayba, como sede político-econômica
da capitania, mantendo sua posição como sede administrativa até
meados do século 18, associa-se à elevação do Recife à categoria
de pólo econômico do Nordeste colonial já nos tempos dos flamengos,
afirmando-se decisivamente no período post bellum.18 Segundo
Evaldo Cabral de Mello,

O domínio batavo fizera do Recife o centro comercial da área


que, do Ceará à Penedo, constituíra o Brasil holandês [...]. O
Recife tornou-se a “praça”, o entreposto que dominava
uma região de fronteiras razoavelmente estáveis, que iam
além ou ficavam aquém das jurisdições administrativas
formais, mediante a cumplicidade de outras aglomerações
urbanas, suas sócias menores (Mello, 2001: 53, grifos
nossos).

Embora modificados no século 18, os negócios entre as


zonas produtoras das capitanias do Norte, mormente na Paraíba,
e a Praça do Recife, permaneceram; dessa feita, acrescidos dos
interesses mercantis de portugueses sediados no Recife. Ao

um territorio e com ele sustentar ligações. Trata-se, afinal, de analisar a rede sobre a
qual se realiza a articulação entre o centro e as suas periferias” (Santos apud Bicalho,
2006).
18 Acerca do porto da cidade da Parayba, a despeito de conjunturas excepcionais,
Gonçalves reitera que “[...] o porto da Paraíba nunca teve um movimento
expressivo, pois o pólo econômico regional, sem dúvida, sempre foi Pernambuco
– e, em termos comerciais, o porto do Recife. E essa afirmação vale tanto para
o período anterior à guerra holandesa quanto para o da ocupação e o da pós-
restauração (Gonçalves, 2007: 209).
200 Fronteiras insubmissas: circuitos mercantis, elites...

que nos parece, essas conexões conviveram muito bem com a


institucionalização da política de capitanias anexas, reafirmando
as influências de oficiais régios de Pernambuco nas arquiteturas
políticas da capitania menor e garantindo os bons negócios na
Praça do Recife, mas, também, salvaguardando os potentados
locais da Paraíba ligados às produções agroexportadoras (Chaves
Júnior, 2011b).
Não obstante, os governadores da capitania e os poucos
comerciantes existentes na Cidade procuravam afirmar-se frente à
influência preponderante de Pernambuco. Contudo, a capitalidade
da cidade da Parayba só se efetivaria caso fosse construída à
expensas do Recife, uma possibilidade pouco provável à época,
inclusive para partes significativas daquelas elites senhoriais,
sobretudo os emergentes produtores de açúcar e algodão,
senhores de engenhos e pequenos negociantes instalados nas
ribeiras do Mamanguape, como se verá a seguir. Neste sentido,
é sugestiva a afirmação da historiadora Maria Fernanda Bicalho
acerca da cidade colonial,
A cidade era, certamente, ponto de interseção dos respectivos
monopólios que distinguiam colonizadores e colonos, mas não
só. Terreno de embate não apenas dos projetos políticos e dos
interesses econômicos de “reinóis” e “naturais da terra”, mas
também de diversos “bandos”, concorrentes entre si, nos quais
se dividiam a nobreza da terra, a cidade era, sobretudo, por
intermédio das câmaras, cenário e veículo de interlocução com
a metrópole na tessitura da política imperial (Bicalho, 2003: 22).

***

A segunda metade de Setecentos na Paraíba, presenciou sucessivos


embates no tocante ao comércio. No entanto, se notamos que as
vozes e os passos dos envolvidos nos litígios trilharam diferentes
José Inaldo Chaves Júnior 201

percursos em sua atuação, como a cidade da Parayba, as câmaras


municipais (sobretudo a da vila de Monte-mor, na região do
Mamanguape), a Praça do Recife, e até mesmo o Paço Imperial,
em Lisboa; não é menos verdade, por sua vez, que os interesses
em causa não se resumiram às oposições entre funcionários
reinóis e colonos, ou, ainda, comerciantes e produtores/senhores
de engenho, como ocorrera noutras conjunturas, especialmente
por ocasião da guerra dos mascates (1710-1711), cujo cenário
particular, construído pelos anos de ocupação holandesa e
posterior restauração ao domínio português, asseverou as
rivalidades entre mascates e mazombos (Mello, 1995).19
É certo que nas capitanias do Norte a polarização entre
negociantes e nobreza da terra demorou a se exaurir, destoando
do restante da América Portuguesa, sobretudo em áreas onde a
integração entre as duas camadas se processou já nos Seiscentos,
como foi o caso da Bahia. No entanto, finalizada a guerra civil na
segunda década de Setecentos, a relativa estabilidade deste século
tratou de aplacar (ou camuflar) os extremismos.20 Finalmente,
“[...] para a nobreza da terra não restava alternativa após a débâcle
da guerra dos mascates” (Mello, 2008: 153).

19 A conjuntura pós-restauração nas capitanias do Norte, que não será objeto desse
trabalho, é, contudo, fundamental para a compreensão do acirramento das tensões
entre negociantes da Praça do Recife e a nobreza da terra de Pernambuco. Neste
sentido, endossa Mello, “Não se tratava apenas do conflito entre credores urbanos
e devedores rurais. Também no período ante bellum, os senhores de engenho
endividavam-se pesadamente com os mercadores, sem que se desembocasse
na guerra civil ou sequer nas tensões que a precederam. A coisa ia muito mais
longe. Enquanto o comércio da Nova Lusitânia, dominado pelos cristãos-novos,
nomádicos e cosmopolitas, não chegara a arraigar-se na capitania, os mascates,
cristãos-velhos de origem humilde, desembarcavam do fundo de suas aldeias do
norte de Portugal com o ânimo de se estabelecerem definitivamente, e embora a
princípio se dedicassem apenas aos afazeres mercantis, mais cedo ou mais tarde
pretenderam partilhar o poder local” (Mello, 2008: 152).
20 Para uma pertinente discussão acerca das conjunturas do século 18, cf. Bicalho,
2003, sobretudo capítulo 5.
202 Fronteiras insubmissas: circuitos mercantis, elites...

Tal como notara Evaldo Cabral de Mello (2001: 67), ao final


do século 18, boa parte das barreiras sociais erguidas entre as
elites senhorias das capitanias do Norte e os negociantes, sediados
no Recife, já haviam sido levantadas, sendo possível, inclusive,
identificar expressivas alianças que, marcando os tons da produção
política da economia (Sampaio, 2003), mesclaram os assuntos
tipicamente financeiros com os matrimônios e o controle dos
cargos da governança, assegurando o enriquecimento privilegiado
e a manutenção do status das melhores famílias naquela sociedade
de Antigo Regime nos trópicos (Fragoso; Bicalho & Gouvêa,
2000).
Doravante, a existência de disputas pelas melhores condições
de negócios nas capitanias do Norte, ao longo da segunda
metade de Setecentos, pode ser compreendida se ultrapassarmos
as dicotomias mais aparentes (e menos esclarecedoras) e
investigarmos as redes sociais, alianças e parentescos que,
costumeiramente, seguiam além das distinções entre os grupos
sociais, imiscuindo não apenas fronteiras geográficas, mas também
divisas institucionais. Acredita-se que a governabilidade imperial,
nos anos em que perdurou a política de capitanias anexas, foi
conduzida tendo em vista a salvaguarda dos interesses comuns
entre as elites das capitanias do Norte, considerando, obviamente,
a integração do ascendente setor mercantil residente no Recife.
Sigamos os rastros dos negócios mais detidamente.
Retornando ao nosso ponto de partida – a determinação Régia
da liberação do comércio entre a Paraíba e Pernambuco, em
179521 –, ela fora a resposta da Coroa portuguesa aos repetidos
apelos dos produtores e senhores de engenho da região do rio
Mamanguape para que o governador da Paraíba, o capitão-mor
Jerónimo de Mello e Castro, interrompesse as apreensões de

21 AHU_ACL_CU_014, Cx. 32, D. 2330 (1795, maio, 29).


José Inaldo Chaves Júnior 203

carregamentos que seguiam para o porto do Recife. Pelos idos de


1791, o cenário de rivalidades era acirrado, como se observa na
carta do suplicante Antonio da Cunha Vazconsellos, morador do
distrito da Parayba, ao secretário de estado Martinho de Mello e
Castro.

[...] no Engenho Pacatuba de onde he mais perto / o Caminho


do carreto das Caixas para o porto da Bahia da traição / do que
para o Trapixe da Cidade da Parayba; e que mandando / as suas
caixas para o dito porto para as fazer embarcar para este porto
do / Recife aonde tem maior conveniência na venda dellas, lhe
embara- / sa o embarque o Comandante da Bahia da Traição
por despacho do Coronel Governador ou Doutor Ouvidor
Geral daquella Comarca / a requerimento do Contractador
dos subsídios dos Açucares, que / para embarazar ao
Suplicante e aos maiz lavradores de Açúcar da- / quela
Comarca o transportarem os seus effeitos para este porto
do Recife aonde os Açúcares lograo presentemente mayor
valor, para o / fim de os poder elle Contractador, e os
Comerciantez daquela / cidade comprar por diminuto
presso [sic], e em prejuízo dos su- / plicantes [...].22

A disparidade de interesses era notória. Os produtores de


açúcar, sentindo-se lesados pelas suspensões de carregamentos
realizadas pelo comandante da fortaleza da Baía da Traição,
localizada ao norte do rio Mamanguape, a mando do governador
da Paraíba, pediam a liberação do transporte das cargas para o
porto do Recife, onde possuíam maior conveniência no transporte
e nos preços. Todavia, nas queixas dos produtores, representados
pelo suplicante Antonio da Cunha Vazconsellos, destacamos
ainda a indicação dos tratos comerciais/financistas coadunados
na praça da Cidade da Parayba, que logravam o apoio e atuação

22 AHU_ACL_CU_014, Cx. 30, D. 2240 (1791, junho, 15, anexos – rolo 035, página
219), grifos nossos.
204 Fronteiras insubmissas: circuitos mercantis, elites...

favorável do governador Jerónimo de Mello e Castro.


Muito além de uma mera disputa entre os produtores de açúcar
e o governador da capitania, tratava-se, isto sim, de um confronto
com os contratadores dos subsídios do açúcar (imposto de
exportação) na cidade da Parayba que, segundo os suplicantes,
ao forçarem o escoamento das produções do Mamanguape para
aquela praça, desejavam, além de recolher os tributos devidos,
comprar as fazendas por baixo preço, pondo em flagrante
desvantagem aqueles produtores rurais.23
Noutro requerimento, desta vez endereçado ao próprio
governador-general de Pernambuco, os “senhores de Engenhos
maiores na Freguesia de Mamanguape”24 solicitaram a sua
intermediação e explicaram a necessidade de “remeterem para
esta Praça [do Recife] as Caixas que fabricão [sic] pela utilidade
que percebem de as transportarem nos Barcos sem mais dispeza
[sic] de Condução, alegando, ainda, que “o contratador do dízimo
do asucar [sic] daquela Capitania [de Pernambuco]” sempre teve
procurador em Mamanguape “para cobrar o subsídio que lhe
pertence”.25
Claro que, ao defenderem o pagamento do tributo do açúcar
ao contratador de Pernambuco, os produtores da freguesia de
Mamanguape estavam a desafiar os intentos do governador
da Paraíba que, peremptoriamente, denunciava o prejuízo que
tais desvios representavam à Fazenda Real. Por outro lado,
os contratos dos subsídios do açúcar firmados na cidade da

23 Conforme Mozart Vergetti de Menezes, a cobrança do subsídio do açúcar foi


instituída na Paraíba em 1665, atendendo solicitação da Câmara da Cidade. No
entanto, entre 1705 e 1744, “[...] por determinação real, a cobrança desse direito
ficou restrita aos fiéis do passo e sem arrematação [...], já que o pequeno volume de
trabalho podia ser realizado pela própria Fazenda” (Menezes, 2005).
24 AHU_ACL_CU_014, Cx. 30, D. 2240 (1791, junho, 15, anexos – rolo 035, página
217).
25 Op. cit.
José Inaldo Chaves Júnior 205

Parayba eram igualmente lesados, interrompendo os ganhos dos


negociantes instalados na cabeça da Capitania.
Acerca do pagamento do subsídio do açúcar, a argumentação
daqueles produtores era coerente com o contexto de anexação.
Ora, sendo a Paraíba subordinada ao governo de Pernambuco,
deveria este remeter os saldos da cobrança dos contratos reais
aos cofres daquele. Na visão nada ingênua dos suplicantes, não
havia qualquer dano às receitas da Paraíba se a cobrança fosse
feita em qualquer uma das duas capitanias, haja vista ambas
prestarem contas à Fazenda Real. É sabido, contudo, que este
repasse raramente fora feito, assim como ocorria com os 20.000
cruzados do arremate anual da dízima da alfândega (imposto sobre
bens importados),26 sob a responsabilidade da Provedoria de
Pernambuco desde 1723, e que deveria ser remetido à congênere
da Paraíba.27
A preferência pelo pagamento do tributo aos contratadores
do Recife explicava-se por estar concatenado a um segundo
argumento dos suplicantes: o transporte das caixas, pois, além de
não lograrem os preços desejados por seus produtos na cidade
da Parayba, eles ainda teriam que arcar com os altos custos do
percurso por terra para a capital da Capitania, e sob altas penas,
atender às determinações do governador Mello e Castro e os
ganhos dos negociantes daquela Praça.
Pelo contrário, o comércio pelo Recife possuía navios
suficientes e à disposição, saindo, em fluxo contínuo rumo à Baía
da Traição, para transportarem os açúcares e demais fazendas

26 Segundo Menezes, “As taxas sobre a exportação do açúcar, bem como o imposto
da dízima se prestavam às obras da Fortaleza do Cabedelo [principal forte da
capitania], à folha militar, e ainda ajudavam no pagamento do governador”
(Menezes, 2005).
27 Sobre os contratempos no repasse dos 20.000 cruzados anuais da Dízima da
alfândega da Paraíba, cf. Menezes, 2005, sobretudo o capítulo IV
206 Fronteiras insubmissas: circuitos mercantis, elites...

da exportação e mercadejarem escravos e importados. Este


argumento fica ainda mais refinado noutra carta dos produtores
das ribeiras do Mamanguape, agora representados pelos seus
oficiais da câmara da vila de Monte-mor.28 No ofício destinado
à rainha, D. Maria I, em abril de 1792, os vereadores endossavam

[...] ser certo que esta Villa e seus contornos / sempre teve desde
o seo estabelecimento a comu- / nicação com a Villa do Recife
de donde vem di- / versos Barcos annualmente carregar no Rio
Ma- / manguape, vizinho da mesma Villa, a saber / madeira de
construção, casca de mangue, e to- / da a qualidade de efeito
que cultivão e produz / a sua cituação [sic], levando em retorno
as fazendas / as fazendas e viveres da Europa e escravos da
Guiné de / que necessita, e não ha memoria de que em algum
/ tempo fossem os seus moradores constragidos a le- / var por
terra os seus effeitos a [Cidade da] Parayba [...].29

Outro argumento utilizado pelos produtores dizia respeito ao


suprimento de importados, como fazendas européias, utensílios
para a agromanufatura açucareira e escravos, conseguidos a
preços bem melhores na Praça do Recife. Segundo os suplicantes,
na Cidade da Parayba, os preços eram exorbitantes, pois “não
tendo a Capitania30 nececidade [sic] destes efeitos de que nunca

28 A vila de Monte-mor, nas ribeiras do Mamanguape, fora criada em 1762,


integrando, na Paraíba, o conjunto de reformas territoriais orquestradas pela Coroa
portuguesa nas capitanias do Norte na segunda metade de Setecentos. Contando
com um antigo aldeamento indígena e a principal área de expansão açucareira
e algodoeira do Mamanguape, o território fora elevado à categoria de vila, sob
o nome de Monte-mor, o Novo, juntamente com outros antigos aldeamentos
jesuíticos da Capitania, após a expulsão da Companhia de Jesus. Sobre a integração
dos indígenas ao novo agrupamento urbano e a política territorial portuguesa nos
meados do século 18, cf. Carvalho, 2008, sobretudo capítulo II.
29 AHU_ACL_CU_014, Cx. 31, D. 2257 (1792, abril, 20).
30 Acreditamos que a referência à “Capitania”, neste caso, diga respeito,
especificamente, a Cidade da Parayba e sua capitania de ordenanças. Segundo Graça
José Inaldo Chaves Júnior 207

se valeo para carga dos poucos Navios que para lá navegão”.31


Pelas listas de exportação e importação do início do século
19 e demais dados sobre a produção da capitania em fins de
Setecentos, publicadas por Elza Regis de Oliveira (2007: 170-
171), fica evidente que a situação da Cidade da Parayba não era
de total naufrágio econômico, como fazem crer os produtores
de Mamanguape. Entretanto, o exagero e o desmerecimento da
capital fora utilizado por aqueles senhores como um elemento
retórico na defesa de seus negócios, que, por sinal, se mesclavam
intrinsecamente com aqueles da Praça do Recife. Por fim, encerram
a delongada queixa ao governador de Pernambuco reafirmando
a necessária manutenção do negócio, bem como reiterando a sua
pujança e os laços sólidos com os negociantes do Recife, dizendo,

[...] e nesta consternação recorrem a Vossa Excelência para que


se digne per- / mitir aos suplicantes poderem carregar as suas
caixas [de açúcar] nos / barcos para com ellas satisfazerem a seos
credores nes- / ta Praça [do Recife] a quem já os prometerão e
fretarão Barco / que já partio para transportar, e do contrário
perderão / os seos effeitos, faltarão aos seos credores, ficará
des- / animada a lavoura por falta de suprimentos.32

Salgado, os termos capitão-mor e capitania (região de atuação de um capitão-mor)


tiveram significados diferentes ao longo do período colonial. Em 1570, fora criado
o cargo de capitão-mor-de-ordenanças (também chamado de capitão-mor), que
era o chefe de armas de companhias militares de ordenanças de cada vila e cidade
(Salgado, 1985: 99, 164). Assim, para Carvalho, “dentro da Capitania da Paraíba
(circunscrição maior) terminariam por serem criadas algumas pequenas capitanias de
ordenanças (circunscrições menores, de caráter militar) na primeira metade do século
XVIII, que continuariam existindo na segunda metade do século” (Carvalho, 2008:
57).
31 AHU_ACL_CU_014, Cx. 30, D. 2240 (1791, junho, 15, anexos – rolo 035, página
218).
32 Op. cit., anexos – rolo 035, página 219.
208 Fronteiras insubmissas: circuitos mercantis, elites...

Portanto, proteger o comércio com o Recife implicava


defender redes de negócios antigas e funcionais, além do próprio
financiamento da agromanufatura. Uma das justificativas do
tráfico com aquele porto era, justamente, a conquista de preços
satisfatórios às suas fazendas, de modo que os produtores
pudessem honrar suas dívidas com os negociantes da Praça
do Recife, e, assim, garantir a continuidade do proveito. Logo,
a ruptura destes circuitos comerciais, envoltos em complexas
tessituras financeiras (crédito/débito/pagamento), poderia
quebrar a empresa agroexportadora na importante região de
Mamanguape.
Alcançavam-se os 20 de abril de 179233 quando as queixas
dos produtores do Mamanguape adentraram as portas do maior
palco político do Império – o Paço. Utilizando um dos canais
fundamentais de comunicação das elites coloniais com a Coroa
– a câmara municipal34 – aqueles senhores, representados pelos
oficiais da vila de Monte-mor, delataram à rainha as proibições de
comércio com o Recife, feitas pelo governador Jerónimo de Mello
e Castro, bem como escrutinaram os motivos pelos quais fundava-
se o dito capitão-mor. Tendo em vista as recentes interceptações
de barcos na Baía da Traição, realizadas a mando do governador
Mello e Castro, e os prejuízos causados à agricultura da região, os
vereadores suplicavam um deferimento favorável da monarca. O

33 Cf. AHU_ACL_CU_014, C.x 30, D. 2240.


34 Resgatando os estudos de Charles Boxer sobre a importância das câmaras na
constituição do Império Português, Maria Fernanda Bicalho afirma: “Modelo quase
universal e relativamente uniforme de organização local em todo o território da
monarquia portuguesa e suas conquistas, as câmaras foram, segundo C. R. Boxer,
instituições fundamentais na construção e manutenção do Império ultramarino.
Elas se constituíram nos pilares da sociedade colonial portuguesa desde o
Maranhão até Macau, pois garantiam uma continuidade que governadores, bispos e
magistrados passageiros não podiam assegurar [...]” (Bicalho in Fragoso; Bicalho &
Gouvêa, 2011: 191).
José Inaldo Chaves Júnior 209

ofício da Câmara da dita vila, assinado por cinco homens, parecia


falar por muitos outros.

Nos officiais do Senado da Camara da Villa de Mon- / temor,


o Novo, na Capitania da Paraiba, anexa a do / governo de
Pernambuco, a requerimento que nos fize- / ram os fabricantes
de assucar dos Engenhos do Distri- / to da dita Villa e os
Agricultores da planta de / Algudão, e os Negociantes que
vendem suas fazen- / das, e compram os ditos effeitos, por bem
comum e utilidade publica [...].35

Dos oficiais, ao menos um – Simão Jose de Souza –,


guardava claríssimos interesses no comércio Mamanguape-Recife,
pois era um dos senhores de engenho que igualmente assinaram
a representação, anexada ao ofício da Câmara e dirigida à rainha,
D. Maria I, contra o capitão-mor da Paraíba.36
Consta, ainda, na representação, as assinaturas de Joze
Angelo da Cruz Marques, um dos “senhores de Engenhos
maiores da Freguesia de Mamanguape”, que, no ano anterior,
havia solicitado a intermediação do governador de Pernambuco
no litígio.37 Por fim, aparece o nome de Gonzalo Lourenço
Barboza, nomeado diretor da vila de Monte-mor, em 1787, por
indicação do governador-general de Pernambuco, José Cezar de
Menezes,38 um dos principais algozes de Jerónimo de Mello e
Castro, capitão-mor da Paraíba.
Analisar esse litígio pode contribuir no mapeamento de
características importantes das elites locais nas capitanias do Norte
em Setecentos. A princípio, consideramos a heterogeneidade das

35 AHU_ACL_CU_014, Cx. 31, D. 2257 (1792, abril, 20).


36 Cf. AHU_ACL_CU_014, Cx. 30, D. 2240.
37 Cf. AHU_ACL_CU_014, Cx. 30, D. 2240 (1791, junho, 15, anexos – rolo 035,
página 217).
38 Cf. AHU_ACL_CU_014, Cx. 30, D. 2198 (ant. 1788, outubro, 20).
210 Fronteiras insubmissas: circuitos mercantis, elites...

elites coloniais nesse período que, “sobressaindo a base fundiária”,


conforme demonstrou Avanete Pereira Souza para o caso da
Bahia, compunham-se também de “expressivo componente
mercantil e burocrático”, podendo infiltra-se em diversas esferas
do poder no Império (Sousa in Bicalho & Ferlini, 2005: 319).
Ora, dentre os cinco oficiais do Senado da Câmara de
Monte-mor, ao menos um era senhor de engenho. Joze Angelo
da Cruz Marques, um dos principais da terra, era, também, sócio
de uma embarcação mercante.39 Neste sentido, com razão
Bicalho reitera, tratando do caso da Bahia, que “[...] a dicotomia
comerciante versus proprietários de terras e plantadores de açúcar
[...] não corresponde ao complexo e quase sempre ambíguo
relacionamento entre esses segmentos [...]” (Bicalho in Monteiro;
Cardim & Cunha, 2005: 83). Para as capitanias do Norte, na
segunda metade de Setecentos, pensamos ser essa conclusão
igualmente procedente.
Do mesmo modo, a presença entre os vereadores de um
ocupante de cargo na administração central – o diretor da vila,
o Sr. Gonzalo Lourenço Barboza, nomeado pelo governador
de Pernambuco – aponta para as intrincadas arquiteturas de
poderes que poderíam articular de modos diversos, os cargos da
burocracia metropolitana às municipalidades na colônia. Neste
sentido, dois funcionários reinóis em Monte-mor seguiam ordens
e objetivos opostos. Enquanto o comandante da Baía da Traição
cumpria a determinação do governador da Paraíba em barrar as
embarcações saídas daquele porto em direção ao do Recife,40
Gonzalo Lourenço Barboza, vereador e diretor da vila, por sua
vez, assinava o ofício da Câmara contra as sobreditas medidas.
Podem-se entrever os vínculos possivelmente existentes entre o

39 Cf. AHU_ACL_CU_014, Cx. 30, D. 2240.


40 Cf. nota 19.
José Inaldo Chaves Júnior 211

diretor de Monte-mor e o governo da Capitania de Pernambuco,


haja vista sua indicação ao cargo ter partido das mãos de Jose
Cezar de Menezes.41
Ao rebater a defesa de Jerónimo de Mello e Castro para
o escoamento da produção pela sede da Capitania, os oficiais
foram enfáticos. Em primeiro lugar, contra o argumento de que
naquele “Porto da cidade da Paraíba vão todos os annos hum ou
dois Navios de Portugal, e que para beneficiar caresse [sic] haver
abundancia de carga”, os vereadores revelaram-se mordazes ao
considerar tal fundamento “frívolo”, alegando, por seu turno, a
relação direta que mantinham com a vila do Recife, “donde vem”,
não um ou dois – como denunciavam ocorrer na Praça da cabeça
da capitania – mas, “diversos Barcos annualmente carregar no
Rio Mamanguape”.42 Pensamos não haver palavras mais incisivas
para afirmar o pouco caso que faziam do comércio pela cidade da
Parayba, onde não possuíam vínculo algum.
Em segundo lugar, os oficiais atacaram aquilo que era,
talvez, o principal objetivo de Jerónimo de Mello e Castro:
construir a autonomia do governo da capitania a partir do
fortalecimento da Cidade da Parayba.

He o segundo motivo / em que se funda o dito Governador


[da Paraíba], que da abundancia / de efeitos naquelle Porto
[da Cidade da Parayba] resultará maior be- / nefício ao
comercio, avultando o numero de negociantes e cabedais, e por
conseqüência em estabelecimentos e edifficios; porém este
fundamento também he frívolo por ser manifesto engano
pensar que o vexame de fazer por força ir aquela cidade
[da Parayba] os effeitos há de tornala [sic] opulenta
[...]”.43

41 Cf. nota 34.


42 Cf. AHU_ACL_CU_014, Cx. 31, D. 2257.
43 Op. cit.
212 Fronteiras insubmissas: circuitos mercantis, elites...

Deste modo, concluíram os oficiais suplicando a Sua Majestade


que se dignasse a evitar que “a troco de se agradar pouco há coatro
Negociantes da mesma [Cidade da Parayba]” se desanimassem
“coatro mil agricultores [...] e outros muitos a quem chama a
cultura das terras”.44 Se a menção aos “coatro mil agricultores”,
desagradados pelos embaraços dos negociantes da Cidade da
Parayba, era uma hipérbole, não se deve, contudo, desconsiderar
o seu valor argumentativo.
Não sem muitas idas e vindas, chegou-se ao final desta história
com a decisão da Coroa em favor dos circuitos mercantis entre o
rio Mamanguape e a Praça do Recife. A respeito da decisão de D.
Maria I, ordenando a supressão das leis proibitivas do comércio
entre as duas capitanias, não seria forçoso argüir que a dita Ordem
Real justificou-se por ter sido emitida em um contexto de franca
aplicação da política ilustrada de incentivo ao capital mercantil no
Império.
Mamanguape produzia açúcar e algodão numa época em que
esses produtos estavam em alta no mercado internacional. Os
mapas estatísticos de 1804 e 1805, enviados à Coroa pelo então
governador da Paraíba Joaquim Raposo de Albuquerque, em 1806,
dão conta de dados sobre o comércio, produção e a população
da capitania no período.45 Analisando tais informações, Juliano
Loureiro de Carvalho destaca que a produção de Mamanguape,
exportada majoritariamente por Pernambuco, era “[...] comparável
à da Cidade, em 1805, e mesmo à de toda a ribeira do Paraíba
[...], em 1804. Mamanguape tinha ainda as vantagens da maior
diversidade de produtos e das relações com o Rio Grande do
Norte” (Carvalho, 2008: 67).
Nada mais plausível, em nossa opinião, que o pragmatismo

44 Op. cit.
45 Cf. AHU_ACL_CU_014, Cx. 3274 (1806, maio, 6); AHU_ACL_CU_014, Cx. 47,
D. 3318 (1806, setembro, 5).
José Inaldo Chaves Júnior 213

da Coroa portuguesa, típico à época (Magalhães, 2011), tenha


atuado na proteção dos negócios realizados a partir da Praça do
Recife, bem como no aproveitamento das melhores condições de
arrecadação numa conjuntura internacional de preços favoráveis
para produtos como o algodão; sem falar no açúcar que, ao fim
do século 18, voltava a impulsionar o crescimento das capitanias
do Norte.46
Como um verdadeiro cheque-mate na consolidação dos
negócios entre Mamanguape e o Recife, na última década do
século 18, a Coroa ordenou ao governo da Paraíba que realizasse
a arrematação dos contratos do dízimo do açúcar das ribeiras
do Mamanguape em separado ao restante da Capitania. Assim,
em 24 de outubro de 1793, dava nota o capitão-mor Jerónimo
de Mello e Castro do novo contratador, o Sr. Luiz Antonio
[Marques].47 Doravante, o mais crucial no ofício era, isto sim, o
nome do seu fiador, nada menos que Jose Vaz Salgado, um dos
maiores negociantes da Praça do Recife, envolvido em negócios
que iam, desde o tráfico com a costa africana e o comércio por
cabotagem pelo Brasil, até à arrematação de contratos reais e às
atividades financistas, emprestando, inclusive, para tradicionais
homens de negócio, como os fluminenses Brás Carneiro Leão
(Marques, 2007).
Por fim, não se pode perder de vista que, na segunda metade
do século 18, os interesses sediados na capital da Capitania da
Paraíba não se confundiam com os tantos outros espalhados por
outras paragens, do litoral aos sertões. Deste modo, observamos

46 Sobre as políticas de incentivo ao comércio atltântico no século 18, associadas à


intenção da Coroa lusitana em arrecadar mais e melhor os tributos que lhe eram
devidos, cf. o artigo que escrevo em parceria com Ariadne Costa, capítulo 6, nesta
coletânea.
47 A visibilidade do sobrenome do contratador encontra-se em péssimas condições,
por isso ainda não podemos assegurar a sua exatidão. Cf. AHU_ACL_CU_014, Cx.
31, D. 2293 (1793, outubro, 24).
214 Fronteiras insubmissas: circuitos mercantis, elites...

que, ao menos no caso daquelas elites de Mamanguape, no litoral


norte da capitania, eram inexistentes quaisquer sentimentos de
identificação com uma entidade/unidade política encabeçada pela
Cidade da Parayba, tal como nos é acessível hoje. Para aquelas
elites, a anexação à Pernambuco não constituíra peso algum;
pelo contrário, suas estratégias e seus negócios contribuíram para
operacionalizar a anexação de 1755, envolta num complexo de
relações sociais muito mais antigas nas capitanias do Norte.
Isto porque a produção de territorialidades avança muito
além das divisões político-administrativas do espaço. O Império
Português se constituiu por unidades complexas e fluídas que
não se limitavam à fixidez das cartas geográficas; no caso das
capitanias do Norte, se, por um lado, as tratamos como fronteiras
insubmissas, por outro, não esqueçamos que, ali, os territórios,
como produção, moldaram os espaços (Raffestin, 1993).
Destarte, os negócios agrupados em torno da Cidade da
Parayba, isto é, dos negociantes e contratadores por lá instalados,
e que integravam os discursos “pró-autonomia” do governador
Jerónimo José de Mello e Castro, revelavam a tentativa de
construir uma capitalidade que, na prática, pouco funcionou até,
não menos, que os finais de Setecentos. Eram, assim, interesses
localizados (e não majoritários). Os embates pela afirmação da
capital avançaram os Oitocentos, a despeito da desanexação ter
sido efetivada em 1799.
José Inaldo Chaves Júnior 215

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Capítulo IX

A “gente nobre” do M aranhão


(século XVII)

Arlyndiane dos Anjos Santos1

Os personagens que transitaram pelo antigo Estado do Maranhão


dos anos finais do século XVII deixaram registrados, em um bom
número de escritos do período, seus discursos, ações e também as
formas como se moviam no espaço político em que estavam in-
seridos e do qual também eram construtores. Engendraram estra-
tégias, buscaram mecanismos de distinção e prestígio, recriaram
categorias sociais e deram sentidos e interpretações diferencia-
das para conceitos e idéias circulantes no Antigo Regime.2 Estes
elementos permitem, portanto, “rastrear” a forma como alguns
destes homens entendiam seu próprio papel dentro do complexo
jogo político do Império Português.
Nas articulações das redes de poder sob as quais os homens do

1 Graduada em História pela Universidade Estadual do Maranhão (2009).


2 Usamos aqui o termo Antigo Regime no sentido em que aparece no
Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808). Para os autores do Dicionário, as
sociedades de Antigo Regime ignoravam a idéia moderna de igualdade
entre os indivíduos, e em vez da noção de direito, fundava-se na noção
de privilégios desigualmente distribuídos no interior de uma sociedade
concebida à imagem de um corpo [...]. A América portuguesa, portanto, foi
o espaço onde esses aspectos de Antigo Regime encontraram campo fértil,
relacionando valores, privilégios e hierarquias do reino nas sociedades
coloniais. Cf. Vainfas, 2001: 43-46.
220 A “gente nobre” do M aranhão (século XVII)

Maranhão seiscentista agiam e forjavam seus espaços e vivências,


um dos pontos fundamentais era a forma como esses indivíduos
recriaram suas hierarquias sociais, suas camadas de distinção e
peso político local. Neste texto, discutiremos o que se considera
um processo de reinvenção da concepção de nobreza na cidade
de São Luís, capital do antigo Estado do Maranhão, nas últimas
décadas do século XVII. Atentou-se, portanto, para análise das
estratégias engendradas por um determinado estrato social que
entendia que, por um motivo ou por outro, sua condição seria
“superior” em relação aos outros habitantes do Estado.
Em princípio, deve-se ressaltar que as definições de lugares
sociais e hierarquias no Maranhão do século XVII encontram-
se inseridas no quadro maior da dinâmica das relações políticas
que eram construídas no Império Português. As ressignificações
do conceito de nobreza no Maranhão e a análise dos mecanismos
de alcance de status diferenciado, questões que serão tratadas nos
limites deste texto, só podem ser efetivadas na medida em que
se concebe o Maranhão enquanto território constitutivo desse
Império. Observa-se, porém, que tais mecanismos que permitiam
a reinvenção da condição de nobreza nos trópicos, especificamente
no antigo Maranhão, foram gestados em circunstâncias
diferenciadas, que mesmo estando pautadas em valores e práticas
de Antigo Regime, incorporavam elementos que eram próprios à
sociedade colonial daquele Estado.
Estabelecido formalmente por Carta Régia de 13 de junho de
1621, e separado do restante do Estado do Brasil por questões
administrativas, o antigo Maranhão estava localizado na porção
norte do atlântico sul português (Meireles, 2001: 69). Quando se
faz referência ao Maranhão, portanto, remete-se à imensa região
que começava a noroeste da Capitania do Ceará, onde a ocupação
do Império português se dava de forma mais efetiva, e ia até a
desconhecida divisa com o Vice-Reinado do Peru. Nos dias de
A rlyndiane dos A njos Santos 221

hoje, o antigo Estado do Maranhão corresponderia aos atuais


estados do Maranhão, Piauí, Amazonas, Pará, Acre, Rondônia,
Roraima, Tocantins e parte do Ceará.
O antigo Estado do Maranhão passou por sucessivas
redefinições territoriais e políticas, e no espaço temporal do
qual se ocupa este trabalho, nos decênios finais do século XVII,
achava-se ele dividido entre duas capitanias, a do Maranhão,3
com sede na cidade de São Luís, e a do Grão-Pará, sediada na
cidade de Belém.
Rafael Chambouleyron chama atenção para o fato de que
o Maranhão seiscentista deve ser percebido como uma região
que, para além da sua delimitação jurídica, é também fruto das
percepções dos portugueses e dos “nascidos na terra”. Como
produtores de discursos acerca do que seria essa região, estes
indivíduos acabaram por elaborar conceitos e representações
que, em conjunto, definiriam o Maranhão do século XVII
(Chambouleyron, 2005: 107).
De acordo com Alírio Cardozo, o cenário da cidade de São
Luís dos anos iniciais do século XVII correspondia às condições
improvisadas do começo das cidades do Estado do Brasil. Esse
cenário era composto, via de regra, por igrejas e prédios públicos
construídos em taipa, barro e palha. As táticas rudimentares
também faziam parte do primeiro ambiente urbano encontrado
nos espaços das cidades da América portuguesa (Cardoso, 2002).
Ainda sobre o cenário da velha cidade de São Luís, o cronista
jesuíta João Felipe Bettendorf, fez referência a dois momentos
distintos. Na primeira metade do século XVII, o padre afirmou
não ser a cidade de São Luís “coisa de grande consideração”,

3 Era formada, nesse período, de sete capitanias subsidiárias, a saber: Ceará,


Itapecurú, Icatú, Mearin, sendo estas da Coroa portuguesa. Tapuitapera
(Alcântara), Caeté e Vigia, eram capitanias particulares. Cf. Meireles, 2001:
72.
222 A “gente nobre” do M aranhão (século XVII)

possuindo não mais que uma pequena fortaleza cercada por um


muro estratégico (Bettendorf, 1990: 17). Esse muro o qual o padre
faz referência teria sido o que foi criado por Bento Maciel Parente
para reforçar a proteção da cidade. Posteriormente conhecido
como “trincheira”, circunscrevia a Sé, o Colégio dos Jesuítas, a
Câmara e o Palácio dos Governadores. Esse primeiro momento
“correspondia aos anos iniciais da ocupação portuguesa, quando
São Luís era uma cidade com poucas ruas, habitantes e prédios
públicos que, como outros centros urbanos do Império, cresciam
à sombra do próprio Forte” (Cardoso, 2007: 127).
No final do século XVII, o cronista atesta o rápido crescimento
da cidade. No ano de 1693, já era “cidade bastante”, já possuía
uma “praça”, o Forte (reerguido em pedra e cal) e uma Câmara
nova. Ajudavam a compor este cenário quatro casas religiosas: o
Colégio da Companhia de Jesus, o Convento de Santo Antônio,
o Convento de Nossa Senhora do Carmo e, ao sul da cidade, o
Convento de Nossa Senhora das Mercês (Bettendorf, 1990: 17).
As estimativas populacionais da cidade de São Luís, “cabeça
do Estado”,4 não raro são baseadas em perspectivas bastante
imprecisas. As fontes portuguesas do século XVII que dizem
respeito à quantitativos populacionais, referem-se, geralmente, a
fogos, moradores ou vizinhos (expressões equivalentes, em princípio,
aos agregados domésticos) (Serrão, 1993: 49). Essas informações,
contudo, ajudam a dar “contornos e cores” para montar o
mosaico da cidade.
Em uma carta enviada ao rei Felipe III, o então governador
Bento Maciel Parente informa que, no ano de 1637, existiam
na cidade de São Luís e arredores 250 moradores e 60 soldados.
Em 1648, a população contava com “400 colonos portugueses e
80 soldados, não sendo maior, por se ressentir ainda a pequena

4 AHU_ACL_CU_MARANHÃO, Cx. 07, D. 773.


A rlyndiane dos A njos Santos 223

cidade dos desastrosos efeitos produzidos pela invasão holandesa”


(Amaral, 2003: 61). Bettendorf afirma que, na segunda metade
do século, São Luís possuía mais de 600 famílias (Bettendorf,
1990: 17). Precisa-se levar em conta, entretanto, a ambigüidade
dos termos utilizados para referi-se à população na época,
tais como “moradores”, “portugueses”, “vizinhos” e “almas”
(indivíduos maiores de sete ou de onze anos) (Serrão, 1993: 49),
pois esses termos não raro referiam-se à população considerada
branca, e as estatísticas populacionais, via de regra, deixavam de
referir-se à quantidade de nativos habitando a Capitania, outras
vezes, ignorando o número de mestiços presentes na sociedade
(Chambouleyron, Rafael, 2005: 24).
Na montagem do cenário da São Luís seiscentista, além
dos já mencionados aspectos arquitetônicos e populacionais,
é interessante perceber como alguns desses espaços físicos
representavam também espaços de poder, espaços onde os
indivíduos articulavam seus acordos e estabeleciam seus conflitos.
O Senado da Câmara da cidade de São Luís, no fim do XVII,
parece exemplar nesse sentido.
O Senado da Câmara de São Luís foi instituído provisoriamente
em 1615 por Alexandre de Moura, comandante português, por
ocasião da tomada da Ilha aos franceses, no início da conquista.
Contudo, apenas em 1619 a Câmara foi “instituída em sua
forma ritual definitiva”, com a eleição de seus primeiros juízes,
vereadores e procurador (Martins, 2001: 46).5
Segundo Charles Boxer, no clássico estudo empreendido no
livro O Império marítimo português (2002), o núcleo dos conselhos
municipais era composto, geralmente, por dois a seis vereadores,

5 Nesse sentido, é importante destacar que a atuação da Câmara como


instância de poder e influência sobre os assuntos da cidade deu-se, portanto,
três anos antes do estabelecimento formal do Estado do Maranhão.
224 A “gente nobre” do M aranhão (século XVII)

de acordo com o tamanho e a importância do local, dois juízes


ordinários (magistrados ou juízes de paz sem formação em
direito) e o procurador. Todos tinham direito a voto nas reuniões
do Conselho e eram conhecidos coletivamente como “oficiais
da Câmara”. O escrivão, embora a princípio não tivesse direito a
voto, era muitas vezes incluído entre os oficiais, e era ainda o único
com obrigação de saber ler e escrever. Havia ainda aqueles que o
autor chama de “funcionários subalternos das municipalidades”,
que não tinham direito a voto nas reuniões e seu número variava
de cidade para cidade, mas que incluíam, em geral, os almotacés,
inspetores de mercados responsáveis pela fixação de preços e
fiscalização do comércio, os juízes de órfãos e os alferes (Boxer,
2002: 286-287).
Ainda segundo Boxer, junto com a Santa Casa da Misericórdia,
o Senado da Câmara era uma das instituições que ajudaram a
manter unidas as diversas partes do Império, pois garantiam uma
continuidade que governadores, bispos e magistrados transitórios
não conseguiam assegurar, e seus membros constituíam, “até
certo ponto”, elites coloniais. Para o autor, pertencer à Câmara
significava compor um grupo privilegiado, que detinha certas
prerrogativas em relação aos demais setores da sociedade colonial
(Boxer, 2002: 288).
Em um termo de vereação do dia 14 de dezembro do “ano do
Nosso Senhor Jesus Cristo de 1675”, no Senado da Câmara da
cidade de São Luís, “cabeça do Estado” do Maranhão, estavam
presentes os juízes, vereadores e o procurador do Conselho,
identificados no termo como “os homens bons da nobreza que
costumam andar na governança da Republica da cidade”. Em
vários outros termos de vereações da Câmara, é dessa forma que
os oficiais camarários, em suas freqüentes reuniões, referiam-se
a si próprios e a outros indivíduos importantes: a “nobreza da
A rlyndiane dos A njos Santos 225

cidade”.6
Os ofícios e cargos do Senado da Câmara eram ocupados,
portanto, pela elite local, pelos chamados “cidadãos”, que também
se auto-intitulavam a “nobreza citadina”. Neste sentido, interessa
ressaltar as intrínsecas relações entre a ocupação dos cargos da
Câmara e os meios de alcançar status privilegiado na sociedade, já
que a governabilidade municipal garantia aos seus agentes uma
gama de elementos nobilitantes em espaços de poder e atuação.
Esses ocupantes dos “honrosos cargos da república”, e no
caso das sociedades coloniais lusas, principalmente os oficiais
dos senados das câmaras, reconhecidos como “homens bons”,
se autodenominavam também de nobres, ciosos de que a natureza
de sua condição de nobreza foi engendrada em situações
diferenciadas dos nobres reinóis, mas nem por isso de menor
importância para os interesses do monarca e, principalmente, para
a manutenção e estabilidade do Império português no ultramar. O
exercício do mando na colônia, através da ocupação de postos da
República necessitava de mecanismos de legitimação às pretensões
de ascensão hierárquica de alguns indivíduos (Fragoso; Almeida
& Sampaio, 2007: 22).
Os estudos acerca desses mecanismos e de sua utilização na
configuração de uma determinada concepção de nobreza são
fundamentais no entendimento da dinâmica de ocupação dos
lugares de poder na sociedade colonial. A posse de “homens e
de terras”, por exemplo, funcionava como elemento de distinção
social e de legitimação do mando político na colônia. Possuir
engenhos e escravos no século XVII denotava status sócio-
econômico que dava sustentáculo à qualidade de indivíduo
hierarquicamente superior na sociedade.
De acordo com João Fragoso, um dos elementos de reinvenção

6 Cf. ACÓRDÃOS da Câmara, fl. 36 – APEM (Arquivo Público do Estado do


Maranhão).
226 A “gente nobre” do M aranhão (século XVII)

da condição de nobreza nos trópicos estava pautado justamente


na capacidade de recriar, a partir de situações e circunstâncias
próprias ao Novo Mundo, um estatuto de nobreza diferenciada,
não definida por critérios de sangue ou hereditariedade, mas
balizada pelo reconhecimento na colônia. E esses “fidalgos
coloniais” encontravam justamente na posse de escravos e de
terras uma das principais possibilidades de enriquecimento e de
alcance de nobilitação (Fragoso; Almeida & Sampaio, 2007: 23).
Na cidade de São Luís, durante todo o século XVII, a questão
da necessidade de escravos para trabalhar nas lavouras foi uma
tópica recorrente em vários escritos, sejam eles de moradores,
de funcionários régios e (principalmente) do “povo”,7 onde
geralmente estavam incluídos os oficiais da Câmara. Os escravos
eram de maioria indígena nos primeiros decênios de Seiscentos,
no entanto, a partir da segunda metade do século, em várias
correspondências trocadas entre a Coroa, seus agentes no
ultramar e os oficiais da Câmara, a questão da necessidade de
escravos africanos se fez sempre presente.
Estudos mais tradicionais sobre o tema da escravidão dão
conta que a presença de africanos escravizados no Maranhão
data apenas da segunda metade do século XVIII – com a
“emancipação indígena” por decreto real (Marques, 1970) –, e
que a efetiva utilização desta mão de obra só se deu quando do
início do ministério de Sebastião José de Carvalho e Mello, o
marquês de Pombal. O historiador maranhense Mário Meireles,
apesar de contradizer César Marques quanto ao período da
chegada do “primeiro africano” ao Maranhão (no ano de 1761,

7 De acordo com Evaldo Cabral de Mello (2008: 160), na América portuguesa,


“onde as posições e as fortunas eram de aquisição recente”, não se poderia
exigir um rigor vocabular que “tampouco existia no Reino”. O vocábulo
povo, por exemplo, “podia ocasionalmente incorporar os próprios nobres
(...)”.
A rlyndiane dos A njos Santos 227

segundo Marques), reforça a ideia de que, nas mudanças políticas


de Sebastião José para a região, encontram-se a “emancipação do
indígena e a introdução da escravatura negra” (Meireles, 2001:
152).
Não obstante, Rafael Chambouleyron, em artigo que trata do
tráfico de africanos para o antigo Maranhão, afirma que, a despeito
da mão de obra indígena, escrava ou livre, ter sido a principal
força de trabalho na região durante o século XVII, a presença
de africanos escravizados não pode ser desconsiderada nesse
período. De acordo com o autor, em vários textos seiscentistas
“escritos do e sobre o Estado do Maranhão, a imagem de que o
Estado do Brasil só havia prosperado graças ao uso de africanos
torna-se um argumento fundamental para defender o urgente
envio de escravos da África para a região” (Chambouleyron, 2006:
80). Um dos temas mais frequentes na documentação diz respeito
justamente às solicitações de escravos, e quase sempre esses apelos
de moradores, autoridades municipais e reais estão relacionados
ao “aumento e conservação” do Estado. Cabe ressaltar que nem
sempre essas fontes deixam claro se estes personagens estavam se
referindo a africanos ou a indígenas.
Em uma consulta do Conselho Ultramarino a D. Pedro II (na
época príncipe regente de Portugal), no ano de 1680, foi discutida
a questão do comércio de escravos para o Maranhão, na qual
se afirmou que o meio mais conveniente para a conservação e
aumento do Estado do Maranhão era o “meterem-se negros
nele”, questão essa que o dito Conselho afirmava ter feito
“antecipadamente várias diligências [...] para se conseguirem este
negócio”.8
Em um traslado de um requerimento do procurador do
Conselho da Câmara de São Luís, feito em 18 de janeiro de 1676,

8 Cf. AHU_ACL_CU_MARANHÃO, Cx. 6, D. 646.


228 A “gente nobre” do M aranhão (século XVII)

também se evidencia a preocupação dos nobres da Câmara com


a necessidade de cativos para a região. Este documento permite-
nos analisar algumas questões relativas a essa falta de escravos e
aos discursos dos cidadãos de São Luís no tocante a este tema.
No requerimento, o procurador José de Seixas afirmava que os
“senhores do Senado” e todo o povo dão conta da “grande miséria”
em que se encontra todo o Estado e, principalmente, a cidade
de São Luís pela “falta de escravos”. Segundo o procurador, a
solução desse problema seria então “para conservação e aumento
desta cidade e dos seus cidadãos”.9
Duas questões se colocam de imediato. A primeira delas diz
respeito ao discurso de miséria10 rotineiramente formulado
nos escritos dos senhores da Câmara. Tópica frequente na
documentação produzida pela Câmara, a condição de pobreza e
miséria frequentemente encontra-se associada à falta de escravos
para trabalhar nas lavouras da região.11
A segunda remete aos interesses dos oficiais da Câmara,
imiscuídos no discurso produzido com a generalidade conhecida
como “povo”. João Adolfo Hansen, analisando os discursos
presentes em Atas e Cartas do Senado da Câmara de Salvador,
na Bahia do século XVII, afirma que esses documentos davam
visibilidade política ao espaço da Cidade, seu referencial por

9 Cf. ACÓRDÃOS da Câmara, fls. 29-30 – APEM.


10 Segundo Carlos Alberto Ximendes (1999: 106), a constante referência à
miséria econômica do Maranhão passa também pela questão da perspectiva
de obtenção de favores do soberano, pois “quanto mais trágica a situação
de São Luís fosse retratada, maiores seriam as possibilidades do não
pagamento dos impostos reais”.
11 Os Livros da Câmara, embora sejam documentos ricos em informações sobre as
cidades ultramarinas, devem ser lidos com extremo cuidado, pois seus discursos
eram produzidos a partir de pressupostos jurídico-políticos, culturais e mentais
específicos, que se articulavam às circunstâncias e vivências locais próprias ao
período analisado.
A rlyndiane dos A njos Santos 229

excelência, e tais discursos são divididos e unificados “segundo


o que, para o sujeito discursivo, é visível, notável: comércio do
açúcar, privilégios, leis de precedências, trabalho escravo, conflitos
com o clero, impostos, murmuração”.12 Para o autor, a leitura dos
Livros da Câmara precisa levar em consideração, antes de tudo, as
propostas de ingerência desses discursos sobre o espaço citadino
e seus problemas (Hansen, 2004: 108).
Em outra consulta feita ao rei pelo mesmo Conselho
Ultramarino, no ano de 1693,13 percebe-se como a questão da
necessidade de escravos para o Maranhão movimentava agentes
diversos, quase sempre em conflitos, como governadores,
oficiais da Câmara e os moradores, mas que em determinadas
ocasiões uniam-se em favor de interesses convergentes, sob a
ideia do sempre alegado “bem comum do povo”.14
Nesta consulta, o Conselho informa sobre duas cartas do
governador do Estado, Antônio de Albuquerque Coelho de
Carvalho, o Moço (1690-1701), onde o governador demonstrava
interesse “sobre os negros e fazendas que se lhe remeteram

12 Hansen, ao empreender uma análise dos documentos do Senado da


Câmara da cidade de Salvador, na Bahia do século XVII – especialmente
Atas e Cartas – afirma que estes documentos permitem rastrear discursos
dos agentes camarários sobre o espaço da Cidade, e, logo, não fornecem ao
leitor de hoje uma Bahia dada, pois, como “atos discursivos que são, hoje
informam sobre modos históricos de ver e dizer”.
13 Cf. AHU_ACL_CU_MARANHÃO, Cx. 08, D. 869.
14 A ideia de “bem comum do povo” remete ao princípio ordenador da
sociedade e o fim para o qual ela deve se orientar do ponto de vista natural
e temporal, e mesmo sendo um valor político por excelência, subordina-se
sempre à moral. “O Bem Comum se distingue do bem individual e do bem
público, e enquanto o bem público é um bem de todos por estarem unidos,
o Bem Comum é dos indivíduos por serem membros de um Estado [...] um
valor que os indivíduos só podem perseguir em conjunto, na concórdia”
(Bobbio; Matteucci & Pasquino, 1995: 106).
230 A “gente nobre” do M aranhão (século XVII)

para fornecimento dos moradores daquele Estado”. Mais que a


remessa, porém, interessava ao governador o “preço por que se
venderam aos senhores de engenho e lavradores de cana, tabaco
e anil”. Apesar de reportar-se ao interesse maior de “conservação
dos vassalos” com o fornecimento de escravos para a região,
percebe-se a intenção, antes de tudo particular, de Coelho de
Carvalho em relação aos preços de vendas aos senhores de
engenho e demais proprietários de terras na capitania.
Quanto a essa importante questão sobre o bom andamento
da república, o documento informa que também foi consultado
Gomes Freire de Andrade, que tinha sido governador entre os
anos de 1685 e 1687. Para o antigo governador, “[o] fornecimento
de negros se esperava sempre naquelas conquistas”, o que seria
de “grande conveniência ao serviço de Vossa Majestade [...]
e em sua opinião nenhum outro socorro se lhe podia mandar
na ocasião presente que fosse tão necessário como este [...]”. O
Conselho informa ainda que os oficiais da Câmara de São Luís
também enviaram uma carta demonstrando preocupações que
se articulavam às dos governadores em relação à remessa e aos
preços dos negros, solicitando que “os preços porque os ditos
negros se venderem sejam mais moderados e se lhe continue com
a remessa deles”.15
Os interesses dos senhores da Câmara em relação aos escravos,
no entanto, podem ser mais bem compreendidos em um termo
de vereação da Câmara de São Luís do dia 1º de julho do ano
de 1678. Nesta sessão, foram chamadas ao Senado da Câmara
“algumas pessoas importantes da cidade”, tais como o procurador
da Fazenda Real, o capitão Manoel Campello de Andrade, o alferes
José de Seixas, o capitão Diogo Freire, o escrivão da Fazenda Real
Antônio de Souza Soeiro, Manoel Andrada da Fonseca, Antônio

15 Cf. AHU_ACL_CU_MARANHÃO, Cx. 08, D. 869.


A rlyndiane dos A njos Santos 231

Lopes de Souza e Manoel Pereira Barreiros. O termo informa


que, “sendo todos juntos, o vereador mais velho o capitão Manoel
Coutinho de Freitas”, informou que o governador e capitão-geral
do Estado, Inácio Coelho da Silva, recomendou ao Senado da
Câmara para tratar de enviar um barco para ir “fazer negócio”
a fim de buscar “algumas peças para este povo”, pois “havia
notícia que em Pernambuco e Ceará havia grande quantidade de
escravos”.16
No mesmo termo, os oficiais discutiam depois acerca da quantia
que cada um dos presentes destinaria para contribuírem com
essa “empreitada”. Manoel Campello de Andrade, por exemplo,
contribuiu com duzentos mil réis; Manoel Pereira Barreiros, mil
réis; e Manoel de Andrada da Fonseca também contribuiu com
mil réis. Em um termo de vereação de 2 de agosto do mesmo
ano, a questão voltou a ser levantada pelos oficiais da Câmara,
que solicitavam aos “homens de negócio” da cidade para irem
negociar “peças” em Pernambuco, onde “havia bastante”.17 Faz-
se necessário ressaltar que nestes casos específicos não há como
saber ao certo se, ao se referirem à “peças”, os oficiais da Câmara
estavam tratando especificamente de indígenas ou de africanos,
contudo, algumas informações contidas no documento nos
levam a crer que tratava-se de africanos, como, por exemplo, o
fato de que essas “peças” viriam de Pernambuco e Ceará, já que a
historiografia do período informa que os indígenas destinados às
lavouras do Maranhão vinham geralmente da capitania do Pará.
Advogando em favor do todo, os oficiais pretendiam garantir
privilégios para a categoria social a que pertenciam, pois a posse
de escravos representava não só a garantia de bons rendimentos
econômicos provenientes de suas lavouras, significava,

16 Cf. ACÓRDÃOS da Câmara, fls. 103v-104 – APEM.


17 Cf. ACÓRDÃOS da Câmara, fls. 103v-104v – APEM.
232 A “gente nobre” do M aranhão (século XVII)

principalmente, afastar-se do estigma de “oficial mecânico”, o


que denotava uma noção de distinção e prestígios nobilitantes.
Como afirma Adolfo Hansen, o sujeito discursivo unificado como
Câmara apresentava os temas relacionados à Cidade levando em
conta sua posição de representante da comunidade dos interesses
locais e do Império, pois, “legislando para o bem comum, os
oficiais também legislam em causa própria” (Hansen, 2004: 113).
Em 29 de novembro do ano de 1689, João Telles Vidigal, natural
de Évora, no Reino, requisitava junto ao Conselho Ultramarino
o ofício de escrivão da Fazenda, Alfândega e Almoxarifado da
cidade de São Luís.18 Para tanto, alegava ter lutado contra os
castelhanos nas províncias portuguesas de Alentejo e do Minho,
e ainda na batalha de Montes Claros, em 1665, um dos grandes
combates travados entre espanhóis e portugueses. Nesta ocasião,
quase todos os participantes foram agraciados com títulos
nobiliárquicos (Gouveia & Monteiro, 1993: 198).
Dois anos antes, o mesmo Telles Vidigal já havia servido no
posto de escrivão da Fazenda Real do Maranhão.19 A ocupação de
vários cargos administrativos e militares destinava-se, portanto, a
um seleto grupo de indivíduos que, por seus discursos e práticas,
tentavam se diferenciar dos demais estratos sociais, engendrando
uma rede de privilégios e nobilitação assente quase sempre no
serviço de el’rey. .
Além dos constantes requerimentos, cartas e representações
enviadas aos órgãos da Coroa e ao próprio monarca por esses
indivíduos, reiterando seus serviços e solicitando mercês,
esses homens também produziram discursos de distinção com
importante valor e reconhecimento entre seus pares e subalternos.
João Telles Vidigal, por exemplo, tinha seu nome escrito em uma

18 Cf. AHU_ACL_CU_MARANHÃO, Cx. 7, D. 809.


19 Cf. AHU_ACL_CU_MARANHÃO, Cx. 07, D. 777.
A rlyndiane dos A njos Santos 233

importante lista elaborada pelo Senado da Câmara de São Luís no


final do século XVII, a Lista dos Cidadãos da Cidade. Esta “Lista dos
Cidadãos” faz parte de um conjunto de 38 listas contidas em um
livro produzido pela Câmara de São Luís, entre os anos de 1689
e 1710 – o livro da Lista da Companhia da Nobreza,20 um singular
registro da forma como esses homens se auto-definiam.
O Livro da Companhia da Nobreza chama a atenção principalmente
pelas peculiaridades que guarda em relação a outros livros
produzidos pelo Senado da Câmara de São Luís, tais como os
Livros de Acórdãos, os Livros de Receita e Despesa ou os Livros de Registro
Geral que, via de regra, tratam de temas relacionados à ingerência
da Câmara sobre os assuntos da cidade. O Livro da Nobreza, por
outro lado, é essencialmente composto de listas nominais de
homens que viveram ou passaram pelo antigo Maranhão entre os
anos finais de Seiscentos e o início do século seguinte. Ressalta-
se, no entanto, que não se tratam de quaisquer homens, mas de
um determinado grupo compósito de uma elite social, política e
econômica, homens que se distinguiram por terem (e forjarem)
determinadas vantagens sobre outros segmentos da sociedade,
construindo uma identidade de grupo de importante valor local.
Tendo em vista que as informações relacionadas aos
habitantes do Maranhão Seiscentista ainda são relativamente
pouco conhecidas – em função tanto da quantidade quanto do
próprio caráter da documentação disponível – uma fonte que
permite acesso a nomes e a algumas pistas sobre esses indivíduos
é de extrema importância para os estudos acerca desta sociedade
e, mais especificamente, sobre os seus setores privilegiados.

20 Lista da Companhia da Nobreza, n.º 08 (1689-1710) / Livros da Câmara


de São Luís – APEM. Devemos ressaltar que, apesar de constar neste
Livro o número 8, esta é uma numeração estabelecida no APEM (Arquivo
Público do Estado do Maranhão) para fins de organização documental. Na
primeira folha do referido Livro, consta ser o “Livro 1º”.
234 A “gente nobre” do M aranhão (século XVII)

Desconhece-se, até o momento, nos documentos produzidos


pela Câmara de São Luís, algum outro registro similar às Listas da
Companhia da Nobreza, ou que façam pelo menos referência a elas
na grande quantidade de documentos do século XVII.
A “Lista dos Cidadãos” de São Luís é a primeira lista do
Livro da Companhia da Nobreza, composta pelos nomes de 92
indivíduos e, provavelmente, produzida nos anos finais da década
de 1680.21 Nela, encontramos notariados os nomes de indivíduos
identificados como pertencentes à categoria de cidadãos, além
de pequenas, mas significativas informações, acerca desses
indivíduos.

21 A “Lista dos Cidadãos”, apesar de ser a primeira Lista do Livro da Nobreza,


não possui indicação exata do ano de sua produção, assim como a segunda
Lista, “dos Filhos dos Cidadãos”. Não podemos afirmar, portanto, que
foram escritas no ano de 1689, e não antes, apesar de que a terceira Lista, a
do “Capitão João Ribeiro Câmara”, consta ser do ano de 1689.
Lista dos Cidadões [sic] desta Cidade

Alberto Gonçalvez * Francisco de Almeida Leitão

Bartolomeu Barreiros de Miranda* morto Miguel Rodriguez Pinto

Manoel da Silva de Andrade* [ilegível] morto


Gabriel de Moraes Rego* João de Moreira Lobo*

Sebastião Gonçalvez Bulcão* morto Agostinho Correa no Hicatu

Manoel Coutinho de Freitas* morto Lazaro de [ilegível] morto

Bartolomeu Furtado de Mendonça* morto Manoel da Silva Pereira*


A rlyndiane dos A njos Santos

Paulo Pires Tourinho* João Martins de Correa*


Antonio da Costa de Souza Francisco Pereira Laserda [sic]* morto
235

Gabriel Pereira da Silveira* Luis Coelho da Fonseca


Francisco Teixeira de Moraes Cappitam Miguel Ribeiro morto
Bazilio Arnaut Cappitam João Ribeiro da Câmera
Bartolomeu Pereira Capp. Gaspar Fernandes da Fonseca*
A “gente nobre” do M aranhão (século XVII)

Pedro da Silva João Pessoa Cardoso


Manoel Gonçalvez Pereira Antonio Gonçalvez Coresma morto
Ignacio Mendes da Costa* morto Calistro Pereira ausente
Pedro Lansaro [?] Coelho morto Manoel Dornellas da Camera* morto
Manoel Gonçalvez Joseph de Seixas* morto
Antonio Ferreira d[e] Abreu morto Valério Rabelo
João Rodriguez Lisboa Francisco de Almeida* [ilegível] morto
Antonio Selares [?] João Dias de Ornellas morto
Manoel Baldes de Lusina* morto Francisco Lopez da Fonseca* morto
236
Matheus Francisco de Larseal [?] Gonçalo Mouzinho*

Joseph de Lima de Ataide* morto Matheus Alvarez*


[ilegível] Antonio Mendes morto

André Furtado de Mendonça* morto Antonio Lopez de Souza*


Jasinto de Rezende morto Jorge de Lemos Cabral

Miguel Lopez Coelho no Para Antonio de Materzintal [?]

Antonio Martins morto Manoel Martins da Costa

Antonio da Rocha* Pedro Antunes Baptista*


A rlyndiane dos A njos Santos

Ignacio de Mendonça Furtado morto Diogo Campello de Andrade morto


Antonio de Souza Soeiro Manoel Pereira morto
237

Manoel de Azevedo Madureira Manoel da Silva Serra

Manoel Baião* morto Eugenio Ferreira de Castro


Ignacio Ribeiro de Bitancort Manoel Pestana*
Manoel Coelho da Fonseca morto Joseph Arnaut
A “gente nobre” do M aranhão (século XVII)

Manoel de Faria no Hicatu Francisco Borges Pereira*


Francisco de Amaral* Domingos Bravo
Joseph Rodriguez Coelho Luiz Pinheiro Lobo
Ignacio Soares Grases* Manoel Amado da Fonseca
Francisco de Almeida* Manoel Amado da Fonseca
Matheus Fernandes Franco Estevão Gomes Malheiro morto
Bonifacio da Fonseca Silva Theodoro de Lemos o mesmo
Antonio Botelho Gago para cappitam João Telles Vidigal o mesmo
reformado
Francisco dos Santos p/ sargento mor Urbano Rodrigues o mesmo
Francisco Freire de Azevedo o mesmo
238
A rlyndiane dos A njos Santos 239

Em um interessante estudo acerca da recepção e das traduções


do livro O Cortesão, de Baltasar Castiglione, escrito no século
XVI, na Itália, Peter Burke (1997: 91) chama a atenção para o que
denomina de “notas marginais” na análise de um documento: os
pequenos comentários, símbolos, palavras sublinhadas, escritos
rabiscados nas margens, que por vezes guardam importantes
informações acerca da fonte e do contexto em que ela foi produzida.
Ao lado dos nomes dos homens da Lista, não raro aparecem
algumas informações, às vezes em forma de abreviações legíveis
e/ou inteligíveis, pequenos rabiscos relevantes na investigação.22
Dos 92 homens listados acima, pelo menos 33 são
identificados nos rabiscos laterais como estando mortos. Nota-
se, por exemplo, que a informação ao lado do nome de Estevão
Gomes Malheiros é de que ele estava morto, e, em sequência, os
quatro nomes seguintes – contém a informação “o mesmo”. Se
pressupusermos que “o mesmo” significa “a mesma coisa”, o
número de indivíduos mortos na Lista sobe para 37 – e, neste
caso, estes números incluem o nome de João Telles Vidigal, sobre
quem já falamos anteriormente.
Alguns destes pequenos escritos dizem respeito à interessantes
informações acerca das vivências e das práticas desses homens.
De acordo com Alírio Cardoso, geralmente os vereadores de São
Luís possuíam negócios fora da cidade, e não é raro encontrar nos
documentos da Câmara, durante todo o século XVII, referências
à “ausência” destes homens nas reuniões do Conselho, por se
acharem em locais como o Mearin, Tapuitapera (Alcântara), em
Icatú ou mesmo no Pará. No ano de 1648, o vereador Belchior
Teixeira, por exemplo, precisou ser substituído “por estar ocupado
demais nas terras que tinha no Pará” (Cardoso, 2007: 138).

22 Destacamos alguns nomes das Listas com um asterisco. No documento


original, estes nomes estão riscados, mas de forma a que podemos
facilmente identificá-los na leitura do documento.
240 A “gente nobre” do M aranhão (século XVII)

Na Lista acima, ao lado de alguns nomes, há indícios de que


estes cidadãos em particular, muitos deles oficiais da Câmara de
São Luís, circulavam por diferentes territórios do Maranhão. Este
parece ser o caso de Miguel Lopez Coelho, que consta achar-se
em determinado momento que não podemos precisar, “no Pará”.
Também de Manoel de Faria e Agostinho Correa, “no Icatú”, e
de outros que se achavam simplesmente “ausentes”, como parecia
ser o caso de Calistro Pereira.
Na listagem apresentada acima estão relacionados ainda nomes
de indivíduos que se achavam inseridos nas categorias de cidadãos
de São Luís e, logo, eram reconhecidos (e reconheciam-se) como
representantes de certo tipo de nobreza local, com prerrogativas e
privilégios próprios a essa categoria, forjados nos jogos políticos
articulados localmente, mas também a partir do reconhecimento
do centro do Império, exemplificando o que Nuno Monteiro
(1993: 335) identificou como uma “nobreza política”.23
Na Lista da Nobreza, um aspecto singular merece destaque. Uma
observação mais detalhada possibilita perceber as semelhanças
entre os sobrenomes dos indivíduos listados, o que nos induz
a estabelecer ligações familiares nas estratégias de formação de
um grupo de cidadãos privilegiados na cidade de São Luís. Ora,
a historiografia que trata da configuração das elites coloniais
e do processo de gestação de uma “nobreza da terra” tem
constantemente frisado como as relações de poder que envolviam
“as melhores famílias das terras” são pontos primordiais na
dinâmica de formação das elites coloniais.

23 O conceito de “nobreza política” é aqui empregado no sentido em que


o utiliza o historiador português Nuno Gonçalo Monteiro, na medida
em que entendemos que a constituição desse tipo de nobreza passa,
prioritariamente, pela teia das articulações políticas construídas na dinâmica
de concessões e privilégios em retribuição a algum “favor”. Diferenciada,
portanto, da tradicional conceituação de uma nobreza hereditária e titulada.
A rlyndiane dos A njos Santos 241

João Fragoso (2003: 51), em seus estudos sobre a formação de


uma primeira elite senhorial no Rio de Janeiro seiscentista, atribui
especial destaque às análises genealógicas, aos estudos acerca das
primeiras famílias das terras, afirmando que no Rio de Janeiro,
a expressão “nobreza da terra estaria ligada à antiguidade da
família no exercício do poder político-administrativo da cidade
e à descendência dos conquistadores”. Estas famílias, assegura
Fragoso, possuíam certo pragmatismo em suas políticas parentais,
preocupadas, antes de tudo, em garantir sua conservação do
mando e status na cidade colonial.
A expressão família, no entanto, não pode induzir ao
anacronismo. António Manuel Hespanha (1993: 278) afirma que
a palavra família era uma “palavra de contornos muito vastos”, não
podendo, portanto, ser confundida com seu sentido “nuclear” e
mais recente. Na definição de família do Antigo Regime português,
poderiam ser incluídos “agnados e cognados, criados, escravos e
até bens”. Não se está afirmando que, na Lista dos Cidadãos, todos
os indivíduos com os mesmos sobrenomes pertenciam a um
grupo familiar mais direto e restrito de pais e filhos, todavia, num
contingente populacional não tão numeroso como o Maranhão
de fins de Seiscentos, as probabilidades de que pessoas com os
mesmos sobrenomes pudessem ser, pelo menos, “aparentadas”,
não podem ser de todo descartadas.
Deve-se ainda levar em conta, no tocante a esta questão, que
as “melhores” ou “principais famílias” das terras se revezavam
no mando político, perpetuando assim suas descendências nos
cargos e postos da governança local. A noção de cidadania,
portanto, estava ligada ao fato de um individuo ser morador de
um determinado lugar, exercer cargos na municipalidade, possuir
privilégio e mando sobre determinados assuntos que dissessem
respeito à comunidade e, principalmente, ser descendente dos
primeiros conquistadores e povoadores das terras da Coroa. A
242 A “gente nobre” do M aranhão (século XVII)

ideia de cidadania na colônia encontrava-se diretamente ligada à


prática do poder (Lara, 2007: 82).
O historiador oitocentista maranhense João Francisco Lisboa
(1992: 42) definiu cidadão como “morador”, contudo, morador
no sentido de descendente de português ou o próprio português,
os brancos da sociedade. É interessante destacar que cidadania
na colônia era sinônimo de nobreza, pois essa noção remetia
aos “primeiros conquistadores portugueses que povoaram a
terra, e por haverem-na conquistado aos franceses e índios, se
perpetuaram na governança [da cidade] ocupando os principais
cargos civis e militares da República”. Os cidadãos na colônia
eram, por excelência, os indivíduos ligados às questões de poder
político e, logo, considerados os “principais das terras”, a nobreza
do lugar.
Havia um determinado número de indivíduos que circulavam
pelo Maranhão de fins de século XVII que eram representados
e se auto-representavam como sendo pertencentes à categoria de
nobres: ao se autonomearem a nobreza da cidade e elaborarem
um Livro no qual constava os seus nomes, estavam reiterando a
máxima de que os descendentes dos primeiros conquistadores
e povoadores deveriam ter a primazia dos postos e dos ofícios,
principalmente os relacionados ao concelho municipal, utilizando
para tanto estratégias que os permitissem manterem-se (e à suas
descendências) nestes postos (Bicalho, 2003: 322).
Entende-se, assim, que a Lista dos Cidadãos insere-se na lógica
dos discursos costumeiramente produzidos pelo Senado da
Câmara, achando-se oficializados nos Livros que eram elaborados
por seus agentes. Ser reconhecido como cidadão ajudava a balizar
e a legitimar os frequentes argumentos de distinção hierárquica
destes indivíduos, fundamentais na dinâmica de reinvenção da
ideia de ser nobre no Maranhão do século XVII.
A rlyndiane dos A njos Santos 243

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244 A “gente nobre” do M aranhão (século XVII)

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Parte III
História e Modernidade: algumas notas
sobre história indígena e os discursos jesuíticos na
América Portuguesa
Capítulo X

A retórica da edificação: o exemplo


na “História” de A ntónio Vieira

Hadassa Melo1

Este mundo é um teatro; os homens, as figuras que nele


representam, e a história verdadeira de seus sucessos uma
comédia de Deus, traçada e disposta maravilhosamente
pelas idades de sua Providência.
Antônio Vieira. História do Futuro.

O mundo é um teatro, a humanidade representa uma história


divinamente estabelecida, disse Vieira naquele seu projeto para o
futuro. Assim, os homens permanecem entre a “expectação e o
aplauso”, “suspensos do entendimento das cousas futuras” para
“maior glória e admiração” daquele que é eterno. “Está é a regra”,
afirma Vieira. Da regra não se deve fugir, ainda que se fuja (Vieira,
1982).
A beleza da palavra de Vieira talvez o torne uma das
personagens imperiais mais discutidas. Diríamos ainda, passagem
obrigatória para os estudos sobre o século XVII, dele não há

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal


da Paraíba. Bolsista Capes/REUNI.
Endereço eletrônico: melo.hadassa@hotmail.com
250 A retórica da edificação: o exemplo na “História”...

como fugir. Além de ter atravessado quase todo esse tempo,2 os


diversos escritos que produziu no âmbito da Companhia de Jesus
demonstram e denunciam no Portugal seiscentista, as querelas,
as alianças, o desassossego de um reino imerso num ambiente
de beligerância constante. A larga produção de Vieira, mais de
setecentas cartas conhecidas e duzentos e um sermões, além de
outros escritos ditos instrumentais, pode ser encarada como um
reflexo daquilo que foi uma história de Portugal e uma história do
Brasil e Portugal, literatura que deve ser analisada considerando-
se o seu lugar de produção e os contextos que condicionaram a
sua escrita.
Por outro lado, vale realçar que o processo de elaboração
de tais documentos3 deve também ser posto em questão. Não
queremos perder de vista que “havia uma prescrição, pois se sabe
que os escritos jesuíticos do século XVI estavam no âmago de uma
longa tradição medieval da ars dictaminis (arte de escrever cartas)”
(Maia in Monteiro, 2008: 76). Por isso, como ressalta Maia (in
Monteiro, 2008), a contribuição de linguistas4 para o exame de

2 António Vieira Ravasco (1608-1697), lisboeta, nascido modestamente em


casa da Rua dos Cônegos, aos 6 de fevereiro. Filho de Cristóvão Vieira
Ravasco e de Maria de Azevedo, foi um dos jesuítas mais importantes de
seu tempo, tendo atuado como diplomata, conselheiro de reis e rainhas e
missionário durante sua extensa vida. Segundo Azevedo (2008: III), “um
dos maiores que Portugal deu ao mundo”, proposição confirmada por seus
diversos estudiosos em Portugal e no Brasil.
3 Aqui estamos nos referindo especificamente aos escritos jesuíticos,
notadamente os produzidos durante os séculos XVI e XVII, como se verá
adiante.
4 Dentre eles destacamos Alcir Pécora, um dos maiores estudiosos dos
escritos de Vieira no Brasil, professor de Teoria Literária da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp), no qual nos apoiamos para tratar do
discurso de Vieira como um gênero literário bastante empregado no século
XVII. Sobre esse assunto não nos deteremos mais demoradamente nesse
H adassa M elo 251

tais documentos tem sido de grande valia, especialmente quando


nos referimos às cartas da Companhia de Jesus e de António
Vieira, em particular.
De acordo com Hansen (in Pécora, 2008), a voz de Vieira
em sermão obedece a um duplo movimento, prospectivo e
retrospectivo. Como prospecção, os eventos contemporâneos
narrados por ele pressupõem temporalmente a construção
da Cidade de Deus, o Quinto Império no mundo, e, após o
julgamento final, a eternidade plena da humanidade redimida.
Retrospectivamente:

é o Eterno que dá sentido próprio para a vida terrena figurada.


(...) os eventos contemporâneos [interpretados por Vieira, via
sermão] são as espécies de efeitos finitos que, pós-figurando
o futuro do reino como algo acabado desde sempre na
eternidade, simultaneamente o prefiguram no tempo, enquanto
avançam misteriosamente para ele: umbra futurorum, sombra dos
futuros, o que se passa em Portugal e em suas conquistas revela
progressivamente – com consumação do Eterno no tempo.
Aqui-agora, a profecia já está cumprida (2008: 11-12).

Nosso objetivo aqui é modesto. Desejamos refletir sobre


algo que, para nós, está além da arte de escrever cartas que foi
empregada pela Companhia durante o século XVII; queremos
iniciar uma reflexão histórica sobre um regime de historicidade
vigente no Seiscentos, realçando uma de suas características, a
do exemplo como norteador para o presente e o futuro. Uma
concepção de história que, inclusive, influenciou as regras da
escrita jesuítica, calcada na repetição e naquilo que pode e deve
ser imitado. Escritos propagados pela Ordem, como meios para
a edificação dos ouvintes e dos próprios missionários. Dizemos
que nosso foco é modesto, pois nos deteremos apenas em um dos

artigo, mas, para efeito de informação, ver Pécora, 2008.


252 A retórica da edificação: o exemplo na “História”...

muitos discursos proclamados por Vieira via púlpito,5 embora o


consideremos elucidativo para buscarmos a concepção de história
do século XVII, bem como as regras que condicionaram sua
escrita, regras que, como sabemos, diziam respeito não somente à
construção de narrativas, mas, sobretudo, remetiam a um ideário
oriundo de um sistema de organização corporativa derivado da
Segunda Escolástica, segundo o qual a política lusa era definida
por um viés teológico.
A escolha do corpus nos interessa particularmente pelo corte
temporal. O sermão faz parte de uma época em que a questão
indígena emerge com maior relevo na obra de Vieira, pelo
exercício missionário empreendido no Estado do Maranhão,6
pelos idos de 1650, cujo tema faz parte de um estudo maior,7 que
tem como proposta, analisar a imagem impressa ao indígena pelo
jesuíta, via sermões. Para o objetivo que estamos perseguindo aqui,

5 Sermão da Primeira Dominga da Quaresma (1653), também conhecido como


Sermão das Tentações, pregado na capital do Estado do Maranhão, São Luís
(In Pécora, 2001).
6 “Quando nos referimos ao Maranhão, estamos falando do imenso
território que começa a noroeste da capitania do Ceará, onde encontrava
termo a ocupação efetiva do espaço pelo Império português, e vai até a
desconhecida divisa com o Vice-Reinado do Peru. (...) Em dias de hoje, o
Maranhão corresponderia aos Estados que compõem a chamada Amazônia
legal (Amazonas, Pará, Amapá, Rondônia, Roraima, Acre, Tocantins) e
mais os atuais Piauí, Maranhão e, por vezes, o Ceará, muito embora essa
transposição para dias atuais seja bastante pobre em termos descritivos. Na
prática, o Maranhão terminava até onde alcançavam os interesses privados
dos grupos lusos pernambucanos que fizeram a conquista” (Cardoso,
2002: 13-14).
7 Trabalho que está sendo desenvolvido junto ao Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba, sob orientação
da Profª Drª Regina Célia Gonçalves, cujo título, ainda provisório, é
Discursos da construção do outro: Os povos indígenas nos sermões do padre
António Vieira.
H adassa M elo 253

interessa-nos muito mais perceber o modelo de história que os


escritos de Vieira revelam/expressam, modelo este que buscava,
no passado, o reflexo, o espelho, para o presente, e acreditava
que este passado, rememorado no presente, fundava uma história
edificante, reafirmando a ordem estabelecida e justificando os
lugares sociais dos indivíduos. De acordo com essa visão, segundo
Burke (1995: 201), “o presente é tido como uma espécie de replay
ou reconstituição de acontecimentos passados. É como se, talvez
Deus, estivesse escrevendo o nosso script.”
O movimento contínuo e cíclico de rememoração do passado
no presente indica-nos um ciclo sem fim, um eterno retorno no
grande moinho do mundo, que visava sempre à manutenção da
ordem natural que era, por sua vez, divinamente estabelecida e
valorizava a permanência em detrimento da mudança (Koselleck,
2006: 23-24). O passado é sempre atualizado na sua forma.
Repetição/permanência que preconiza uma tradição, a história
como preceptora da vida, magistra vitae. Presente/passado/futuro
no aqui-agora. As três dimensões do tempo são vivenciadas
simultaneamente no presente, conforme a proposição de tempo
agostiniana.
Podemos dizer, de certa forma e guardadas as devidas
proporções, que a preocupação de imortalizar a ação dos homens
para que esta servisse como espelho, exemplo e guia para a
posteridade, já está presente na historiografia da Antiguidade
Clássica e, portanto, a historiografia moderna reafirma esse
ideal, que busca, não raras vezes, naquele período histórico, os
elementos para edificação de seus contemporâneos. Buscamos
nosso exemplo em Heródoto, através de Hannah Arendt:

Comecemos por Heródoto, cognominado por Cícero de pater


historiae, e que permaneceu como pai da História Ocidental. Diz-
nos, na primeira sentença das Guerras Pérsicas, que o propósito
de sua empresa é preservar aquilo que deve sua existência
254 A retórica da edificação: o exemplo na “História”...

aos homens, para que o tempo não o oblitere, e prestar aos


extraordinários e gloriosos feitos de gregos e bárbaros louvor
suficiente para assegurar-lhes evocação pela posteridade,
fazendo assim sua glória brilhar através dos séculos (2001: 69-
70).

No que concerne à obra de Vieira não é diferente. No sermão


que tomamos para análise, pregado no dia das tentações do
demônio, o jesuíta se remete aos escritos de São Mateus para falar
das três tentações de Cristo. Segundo o jesuíta, o demônio tenta
a Cristo de três maneiras, oferecendo, aconselhando e pedindo:

Na primeira ofereceu: Die ut lapides isti panes fiant8: que fizesse


das pedras pão; na segunda aconselhou: Mitte te deorsum: que
se deitasse daquela torre abaixo: na terceira pediu: Si cadens
adoraveris me9: que caído o adorasse (Vieira in Pécora, 2001:
453).

Ao retomar o tema das tentações de Cristo, o que o jesuíta


pretendeu, por meio do exemplo, foi ensinar a sociedade
maranhense sobre o que ele considerava um pecado mortal,
manter seres humanos em cativeiro. Aqui, Vieira se referia
especificamente à questão do cativeiro indígena, largamente
utilizado no Estado do Maranhão para os trabalhos com a terra,
em virtude da escassez de mão-de-obra africana.10 Esse debate
em torno do quesito cativeiro indígena, acirrado pelos conflitos
com o poder secular e os colonos maranhenses, inclusive, mais
tarde, foi a causa da expulsão de Vieira das missões daquela

8 S. Mateus 4:3 [E, chegando-se a ele o tentador, disse: Se tu és o Filho de


Deus, manda que estas pedras se tornem em pães.]
9 S. Mateus 4:9 [E disse-lhe: Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares.]
10 Acerca da escassa mão-de-obra escrava africana no Estado do Maranhão de
Seiscentos, cf. o artigo “A ‘gente nobre’ do Maranhão (século XVII)”, de Arlyndiane
dos Anjos Santos, capítulo 9 desta coletânea.
H adassa M elo 255

região, por volta de 1661.


Ensinar pelo exemplo. Essa é a grande chave na qual nos
deteremos para tentar entender o tipo de escrito que Vieira realiza
e divulga via púlpito. Em se tratando de outros escritos que se
referem também ao Maranhão colonial, isso não é verdade apenas
para a obra de Vieira. A crença em uma intervenção divina na vida
terrena, sendo Deus o responsável por dar sentido à existência dos
homens, dava às demandas cotidianas a ideia de que, na verdade,
a história já estava escrita, e os homens viriam ao mundo apenas
para representá-la.
Se tomarmos como referência as narrativas construídas em
torno da morte do Pe. Francisco Pinto,11 podemos rapidamente
perceber que, tal qual em outras crônicas jesuíticas, após
descreverem a grandiosidade da natureza, qualidades dela,
enfatizam principalmente os martírios e dificuldades sofridas
pelos missionários nas empreitadas rumo à conquista dos corações
dos “selvagens”. No que diz respeito à viagem, iniciada em
Pernambuco por mar e continuada por terra a partir da foz do rio
Jaguariba [sic], rumo à Ibiapaba, não havia, segundo Bettendorff,

11 Pe. Pinto, um dos primeiros missionários da Companhia de Jesus a dar


início à expedição rumo a Serra da Ibiapaba, Ceará, considerada, à época,
a porta de entrada para o imenso Maranhão (Estado do Maranhão).
Expedição que fazia parte de um plano maior, o de conquista do Maranhão
pela Coroa portuguesa. O Pe. Pinto, sequer chegou a estas terras, pois foi
vítima dos índios Tocarijus no alto da Ibiapaba, em 1608, quando celebrava
o Santo Ofício (Cf. Bulcão, 2008: 123-124). Quanto à narrativa à qual
estamos nos remetendo, trata-se da obra do também padre Bettendorff
(2010). Esclarecemos que esta obra, aqui utilizada como referência para
realçar como o exemplo da jornada empreendida por esses religiosos
foi empregada como uma experiência para edificação dos leitores e dos
missionários, foi escrita 38 anos após Bettendorf chegar ao Maranhão em
1661 (um ano após Vieira ser expulso das missões desta região), ou seja,
em 1699. Um estudo dessa narrativa, enfatizando o modelo de história que
revela, pode ser encontrado em Carvalho, 2011.
256 A retórica da edificação: o exemplo na “História”...

caminhos mais incômodos e ásperos que estes por onde


caminhavam, (...) E no tocante ao sustento necessário para a
vida, havia grande falta dele, que as mais das vezes se achavam
obrigados a passar com umas poucas de ervas..., então com
tanta dificuldade, que depois de cem léguas de caminho deram
finalmente com as serras de Ibiapaba abaixo do Ceará, quase
cem léguas para banda do Maranhão (2010: 44).

Conta Bettendorff que o indígena encontrado na Serra estava


“cerrado de outro gentio bravo e cruel” e que no decorrer dos
dias, ao “rezar o ofício divino”,
Viram uma multidão de bárbaros, que às flechadas acometiam
seus índios [os cristianizados], e iam endireitando com a
choupana do padre Francisco Pinto, o qual se tinha retirado
para rezar o ofício divino. Saiu daquele estrondo o santo sacerdote
missionário, (...), e até os índios cristãos se lhes opuseram gritando
em voz alta que aquele padre era homem santo, vindo não mais que
para lhes ensinar a verdade e caminho do Céu; mas eles, (...) lhe deram
uma morte muito cruel... Este foi o fim daquela gloriosa missão deste
valorosíssimo soldado de Cristo para banda do Ceará e serras da
Ibiapaba, nas quais moram os tabajaras, ... e esta foi também
a feliz morte... [deste missionário] (2010: 45-46, destaques nossos).

Vemos nesse trecho que a figura do abnegado, o Pe. Pinto,


homem de fé, é destacada a partir de sua santidade e grandeza de
espírito. Disposto a morrer por sua missão, não reage ao ataque
dos indígenas, pondo-se, antes, a “apaziguar os ânimos e a rezar
a Deus mostrando tamanha fé e coragem”. Para torná-lo mártir
da conquista do Maranhão, era necessário enaltecer as qualidades,
estratégia retórica para ensinar pelo exemplo, algo que devia ser
copiado, um espelho, tanto para outros missionários como para a
sociedade maranhense que estava por vir.
“... as mesmas tentações do demônio, que nos servem de ruína,
nos podem servir de exemplo...” (Vieira in Pécora, 2001: 454, destaques
nossos). Voltemos à Vieira. Além do tema da própria tentação de
H adassa M elo 257

Cristo, utilizada como conceito predicável,12 não há economia


de grandes nomes e eventos das escrituras sagradas para dar
cabo da história que sai da pena de Vieira, mas que, na verdade,
é de Deus, o Eterno, através de sua majestade, o Rei de Portugal.
De Judas13 a Alexandre Magno e Júlio Cesar,14 o Sermão vai
desenrolando uma narrativa que tem, como meta principal,
persuadir os ouvintes a soltarem as correntes que prendem os
cativos, nas próprias palavras de António: “Povo do Maranhão,
qual é o jejum que quer Deus de vós... Que solteis as ataduras da
injustiça, e que deixeis ir livres os que tendes cativos e oprimidos”

12 Conceitos predicáveis, segundo Pécora (2008), são topoi teológico-


políticos e prefiguram o que há por vir. Em geral, podemos dizer que é
um texto bíblico (que pode ser, também, somente um versículo, como
é o caso do Sermão que tomamos para análise, Mt. 4:9), a partir do
qual será desenvolvido a trama narrativa do autor, dependendo de sua
intencionalidade e objetivo. A escolha desse texto, “assenta em figuras
ou alegorias através das quais se pretende alcançar uma demonstração de
fé, ou verdades morais, ou até juízos proféticos. O texto bíblico torna-
se pretexto para construções mentais, jogos de conceitos e de palavras,
pondo em destaque o virtuosíssimo orador, de acordo, aliás, com a estética
barroca”. In.: Infopédia. Porto, Porto Editora, 2003-2011. Disponível em
www.infopedia.pt, acesso em 09/08/2011.
13 Iscariotes, que, segundo a Bíblia, traiu Jesus por trinta dinheiros. Referimo-
nos aqui, ao momento da Santa Ceia descrito no livro de João 13:2 [“E,
acabada a ceia, tendo já o diabo posto no coração de Judas Iscariotes, filho
de Simão, que o traísse”].
14 “Alexandre Magno e Júlio Cesar foram senhores do mundo; mas as
suas almas agora estão ardendo no fogo do inferno, e arderão por toda
a eternidade” (Vieira in Pécora, 2001: 456). Alexandre III da Macedônia,
dito o Grande ou Magno, príncipe e rei da Macedônia, o mais célebre
conquistador do mundo antigo e teve como preceptor o filósofo Aristóteles.
Júlio César, patrício, líder militar e político. Ditador (no sentido romano do
termo) vitalício de Roma, iniciando uma série de reformas administrativas
e econômicas nessa região. Fonte: http://pt.wikipedia.org. Acesso em
09/08/11.
258 A retórica da edificação: o exemplo na “História”...

(Vieira in Pécora, 2001: 459).


A hipótese de Vieira, ao rememorar em seu texto e em sua
fala aos moradores de São Luís, a terceira tentação de Cristo, é
a de que a alma, como bem supremo do ser humano, não pode
ser vendida por preço tão pequeno, ganhar o mundo ou riquezas
materiais. O jogo retórico de Vieira reside nessa afirmação,
vender a alma, nessa situação, seria manter “índios” cativos, seres
humanos que poderíam, também, serem redimidos pela graça
divina. Assim, os colonos maranhenses estariam além de atraindo
para si a condenação eterna, impedindo a salvação de outros, dos
indígenas e, em contrapartida, dos próprios missionários.15
A questão aqui não é aprender como Cristo negou as propostas
do demônio naquele deserto, o que pretendeu Vieira foi ensinar
com o exemplo daquele tentador a “estimar a nossa alma” (p. 457).
Para ele, “as coisas estimam-se e avaliam-se pelo que custam”
(p. 455) e “todas as coisas deste mundo têm outra por que se
possam trocar” (p. 456). A troca corresponde a perder o demônio
o mundo para dá-lo à Cristo em troca da sua alma. Fica Cristo
sem alma, o tentador sem o mundo. No Maranhão, mantêm-se os
indígenas em cativeiro, para os trabalhos nas lavouras, atividades
que sustentavam economicamente os senhores daquelas terras,
em troca da condenação eterna, o fogo do inferno, para estes
mesmos senhores, que mesmo portugueses obstaculizavam a
grande obra de glória e salvação de seu Deus e de seu Rei.
Aprender com o demônio, inimigo mortal das almas, a valorizá-
la, para propor, na verdade, um novo plano para a administração
dos indígenas, cunhado pelas mãos do monarca, através de um
Diploma que mandava libertar todos os índios cativos. Segundo

15 Para Castelnau-L’Estolie (2006), a salvação do missionário dá-se mediante


a salvação do outro. A impossibilidade efetiva de salvação do outro, no
nosso caso, o indígena, coloca o pregador em dúvida quanto a sua própria
redenção.
H adassa M elo 259

Pécora (2001: 452), a nova política indigenista versava sobre os


seguintes temas: 1) que os escravos fossem todos libertos, salvo
aqueles que, por vontade própria, optassem por permanecer
servindo aos seus senhores; 2) que os escravos libertos devessem
ficar nas “aldeias d’el Rei”, as missões jesuíticas, onde viveriam
livremente, apenas com a obrigação de servir à casa de um
morador, seis meses ao ano, em troca de pagamento em pano de
algodão; e, finalmente, 3) que as entradas ao Sertão deveriam ser
feitas regularmente, desde que apenas se tomasse por escravos
os “índios” “em corda” (aqueles que já estavam presos ou os que
estavam prestes a serem mortos nos rituais de antropofagia por
tribos inimigas).
Por hipotipose, pela atmosfera de medo que o fogo do inferno
gerou na retórica vieirina, no dia das tentações do demônio, o
sermão foi implacável e atingiu o supremo ideal do perfeito
orador: vencer e conquistar o ânimo alheio. Atmosfera de medo,
diga-se de passagem, bastante utilizada no teatro alegórico do Pe.
Anchieta, por exemplo.16 Este que se serviu largamente do idioma
tupi tanto para se dirigir aos “selvagens” como para falar aos
colonos que já entendiam esse idioma. Essa poesia e esse teatro,
tal qual a imagem empregada por Vieira na porção de sua obra
que tomamos para análise, corroboram a psicologia do medo17
do devir, do inferno, do anjo decaído. As alegorias anchietanas são
mecanismos de persuasão, principalmente pelo cenário criado,
produzindo um mundo maniqueísta em perpétua luta.
Para efeito de conclusão, queremos dizer que o exemplo,
como modelo de algo que deve ser imitado, em Vieira, aparece
como que em um espetáculo, seguindo, como não poderia deixar

16 O Auto de São Lourenço (1586), por exemplo, cuja análise pode ser encontrada
em Costa (2007).
17 Um dos trabalhos mais relevantes sobre a história do medo (séculos XVI
ao XVIII) é o de Jean Delumeau (2009).
260 A retórica da edificação: o exemplo na “História”...

de ser, todo o engenho barroco. Arte de persuadir (Aristóteles,


2005). Teatro que traz em seu âmago, a oratória jesuítica do
século XVII “como teatralização retórica da teologia política”
(Hansen in Pécora, 2008: 09). Discurso engenhoso (Saraiva,
1980), agudo, sutil, mas cortante. Discurso de ação, intencional.
Que deseja persuadir, e, através do exemplo de grandes homens
ou de eventos relevantes da história terrena, conduzir os sujeitos
à eternidade redimida.
H adassa M elo 261

Fontes & Referências Bibliográficas

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de Carvalho. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.
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CARDOSO, Alírio Carvalho. Insubordinados, mas sempre
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CARVALHO, Roberta Lobão. Os primeiros missionários e
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262 A retórica da edificação: o exemplo na “História”...

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SARAIVA, Antônio J. O discurso engenhoso. São Paulo:
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Capítulo XI

“O Gênio, o engenho, e os costumes


dos índios do M aranhão”:
representações jesuíticas na crônica
do padre Domingo de Araújo, 17201

Roberta Lobão Carvalho2

Introdução

Neste artigo analisarei as representações existentes nos textos


jesuíticos do século XVIII sobre o indígena. Tal exame será
conduzido a partir da Crônica da Companhia de Jesus da Missão do
Maranhão 1720, escrita pelo padre Domingos de Araújo, que de
acordo com José Honório Rodrigues “entrou para a Companhia
com 17 anos e veio para o Brasil em 1691, onde completou seus
estudos, fazendo profissão solene na Bahia em 1708 e passando
depois a missionar no Maranhão e Pará” (Rodrigues, 1970: 281).
No que se convencionou chamar de época moderna, deve-se
lembrar que a escrita era um dos meios mais eficientes para se fazer

1 Agradeço ao professor Alírio Cardoso (UFMA) pela leitura atenta e sugestões de


correção.
2 �������������������������������������������������������������������������������
Mestranda em História Social pela Universidade Federal Fluminense, sob a orien-
tação do professor Dr. Guilherme Paulo Castagnoli Pereira das Neves. Bolsista da
FAPEMA – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Maranhão. Endereço
eletrônico: rob.lobao@gmail.com
264 “O Gênio, o engenho, e os costumes dos índios ...

circular informações na Europa sobre as Índias e o Novo Mundo,


e a maioria foi fornecida por missionários que atuavam naquelas
terras, principalmente os pertencentes à Companhia de Jesus.
As narrativas tecidas pelos missionários jesuítas transcendiam o
simples caráter informativo, tornaram-se a forma mais eficaz de
criar um sentimento de união, consolo, ânimo e exemplo para
padres espalhados pelo mundo em missão.
Tais textos não eram escritos ao acaso. Rigidamente controlados,
eram excessivamente revisados antes de circular, e guiados por
padrões retóricos,3 ditados pela antiga arte de escrever cartas, a
Ars Dictamines medieval e moderna, assim como pelos preceitos
deixados por seu fundador, Inácio de Loyola. Segundo explica
Fernando Torres-Londoño, “os Exercícios Espirituais para ensinar e
acompanhar, as Constituiciones para regulamentar, e as Instruções aos
membros da Companhia para manter a união” (Torres-Lodoño,
2002).
Essas narrativas criavam uma história particular das ações da
Companhia de Jesus, e tal história não se prendia a cronologia
exata dos acontecimentos, os padres comparavam tranquilamente
episódios bíblicos com os de seu tempo. Mesmo tendo a idéia
cristã de tempo, ou seja, linear onde há uma criação e haverá a
consumação dos tempos, estes missionários acreditavam numa
eterna repetição dos eventos bíblicos inserida nessa linearidade.
A escrita inaciana tinha a função de formar uma identidade
jesuítica e de justificar a presença dos padres no Império
Ultramarino. Dessa forma, as crônicas jesuíticas podem ser
compreendidas como espaços em que se formavam uma unidade

3 Há uma discussão a respeito de tais preceitos retóricos. Alguns estudiosos, como


Alcir Pécora, Adolfo Hansen e Andrea Daher, afirmam que o contexto de forma
alguma influenciava na forma e no conteúdo das cartas e narrativas dos jesuítas,
enquanto outros, como Cristina Pompa, Lígio de Oliveira Maia, entre outros,
afirmam que o contexto histórico não apenas influenciava como modificava a
forma e o conteúdo de tais narrativas.
Roberta Lobão Carvalho 265

de ação entre os missionários espalhados pelo mundo. Nesses


espaços existem lugares comuns, que são chamados pela Teoria
Literária de tópicas, que ressaltam as dificuldades da missão, os
martírios, a natureza, o costume das gentes que viviam na terra e
dentre estes o mais complicado, a figura do indígena.
De acordo com Fernando Torres-Londoño, as narrativas
inacianas possuíam duas dimensões; a do governo espiritual
dos índios, que seriam as exigências das missões, e a dimensão
do governo temporal, que seria a dimensão de tempo e lugar.
Para os jesuítas, tais dimensões não se separavam, por isso em
suas narrativas destacavam três tipos de desordem existentes no
Maranhão: “o estado de barbárie e abandono dos índios perdidos
na selva [...] a presença de hereges holandeses e franceses no
Maranhão, Pará e Rio Amazonas [...] e a violência exercida pelos
portugueses sobre os índios” (Torres-Lodoño, 1999).
Nos relatos jesuíticos se encontram várias representações dos
indígenas, construídas de modo a tornar-se exemplar para seus
leitores. Entre elas, destaca-se a imagem do indígena bárbaro,
selvagem e cristão civilizado. Segundo Adolfo Hansen,

Nas representações coloniais, o ‘bárbaro’ é definido em


oposição à ‘civilizado’ [...]. São ‘bárbaros’ os grupos indígenas
que resistem à civilização portuguesa [...] Na doutrina da
monarquia absolutista portuguesa, a obtenção e a manutenção
da paz do ‘bem comum’ definem a finalidade cristã alegada pela
Coroa na colonização do Brasil (www.realgabinete.com.br/
coloquio/coloquio.asp. s/p).

Essas representações estavam sempre ligadas à forma


de justificação da política de evangelização, pois a presença da
Igreja se explicava pela necessidade da conversão dos gentios
“bárbaros” em cristãos “civilizados”.
Para uma melhor compreensão do tema é importante ter
algumas informações a respeito do cenário em que as narrativas
266 “O Gênio, o engenho, e os costumes dos índios ...

estudadas estavam inseridas. O Maranhão entrou na lógica da


administração ultramarina tardiamente, apenas em 1615, quando
se deu a expulsão definitiva dos franceses de seu território, tendo
início a ocupação lusa. O historiador maranhense Cavalcante
Filho afirma que “na primeira fase da vida política, o Maranhão
foi transformado em uma capitania subordinada diretamente à
Coroa, que, para exercer o governo, nomearia capitães-mores. O
primeiro foi Jerônimo de Albuquerque” (Cavalcante Filho, 1999:
29).
Na época, o Maranhão compreendia o território que vai
do Amazonas até a porção norte de Goiás.4 E nas narrativas
sobre sua ocupação encontram-se relatos nos quais os jesuítas
afirmam serem os primeiros conquistadores do Maranhão, além
de fundamentais no alargamento e consolidação das terras e
fronteiras do território. Os padres produziram uma imagem
como aqueles que enfrentaram os espaços vázios de vida civel
e cristã, as fronteiras ainda não conquistadas, sendo os únicos
capazes de chegar com brandura, e por meios de ação que
não requeriam a força, aonde às armas dos portugueses não
chegaram. Essas fronteiras devem ser entendidas, para além
de uma simples limitação geográfica, como locais de disputas
simbólicas de poder, encontro, fluídez e conflitos, no sentido do

4 Quando nos referimos ao Maranhão, estamos falando do imenso


território que começa a noroeste da capitania do Ceará, onde encontrava
termo a ocupação efetiva do espaço pelo Império português, e vai até a
desconhecida divisa com o Vice-Reinado do Peru. (...) Em dias de hoje, o
Maranhão corresponderia aos Estados que compõem a chamada Amazônia
legal (Amazonas, Pará, Amapá, Rondônia, Roraima, Acre, Tocantins) e
mais os atuais Piauí, Maranhão e, por vezes, o Ceará, muito embora essa
transposição para dias atuais seja bastante pobre em termos descritivos. Na
prática, o Maranhão terminava até onde alcançavam os interesses privados
dos grupos luso-pernambucanos que fizeram a conquista (Cardozo, 2002:
13-14).
Roberta Lobão Carvalho 267

que Guillaume Boccara convencionou chamar de “limite”, antes


de se tornarem fronteiras, pois a transformação nestas implicou
“sacrifícios, violencias, matirio y batallas rituales” (Boccara, www.
ehess.fr/revue/debates.htm). Tais limites físicos e simbólicos
só podiam ser alcançados pela docilidade, amor e engenho dos
companheiros de Jesus.
As representações que se encontram nas crônicas
jesuíticas, dos indígenas e da ação missionária inaciana, sempre
começam pela questão da humanidade do índio, que foi debatida
por muito tempo e já deveria estar superada em pleno século
XVIII. Segundo Cristina Pompa, “na segunda metade do século
XVII, os debates sobre a natureza dos índios, sua humanidade,
sua possibilidade de conversão estavam, para os jesuítas e os
missionários em geral, encerrados” (Pompa, 2003: 84).
O padre Domingos de Araújo em sua crônica de 1720,
ao tratar dos indígenas do Maranhão começa por esse debate.
É interessante observar que ele utiliza discussões que vinham
desde o século XVI. Desta forma, o objetivo deste artigo é refletir
sobre as várias representações presentes na crônica de Domingos
Araújo a respeito dos indígenas do Maranhão.

1. A QUESTÃO DA HUMANIDADE.
1.1 “Pela parte negativa”: argumentos contra a humanidade
indígena.

É interessante perceber como uma narrativa vai se construindo.


A crônica do padre jesuíta Domingos de Araújo é uma leitura cheia
de surpresas na qual o leitor pode se perder por horas embalado
no bem construído, erudito e alicerçado texto desse jesuíta.
Esse jesuíta escreveu em 1720, e ao escrever sobre os indígenas
do Maranhão, primeiro traçou um panorama das discussões que
268 “O Gênio, o engenho, e os costumes dos índios ...

foram tecidas em torno da humanidade destes. O índio, nesse


momento, era caracterizado como “o próximo”, aquele que
necessitava dos jesuítas para se converter de seus maus hábitos,
e eram inclinados a receber os preceitos cristãos. Segundo Alcir
Pécora, “Práticas más, porém, não são o mesmo que má natureza.
Nesta diferença, reside o fundamento teológico da conversão e
da interação jesuítica” (Pécora, 2008: 43). O índio visível nas
narrativas jesuíticas é um índio na história da conversão e não
descontextualizado dessa história.
Domingos de Araújo questiona a humanidade do juízo e do
julgamento dos europeus diante do tratamento que dispensavam
aos “pobres índios”; pois, no Maranhão setecentista, a escravidão
indígena ainda era justificada pela afirmação de que os índios
não eram homens e, por isso, não estavam aptos a receber a fé
de Cristo e os sacramentos da Igreja, podendo ser usados como
animais. O jesuíta assim escreve,

Que desumanos são muitas vezes os juízos humanos, mas muito


menos para temer os juízos divinos! Por que se esses juízes
humanos primeiro se julgassem a si mesmo com consideração e
exame profundo, sobre si descarregariam toda desumanidade e
com os outros toda a humanidade dispensariam (Araújo, 1720:
57, verso). 5

Esse é apenas um trecho do longo discurso construído pelo


padre acerca das questões que foram postuladas a respeito do
assunto. Ele referencia vários textos que tratavam da temática,
e elenca os argumentos contra e pró à humanidade dos “índios
americanos”. Para validar sua defesa aos indígenas, afirmou que
os europeus não tinham humanidade e nem um juízo justo,

5 Utilizo neste trabalho como fonte a versão manuscrita que se encontra na


Biblioteca Nacional, secção de manuscritos; Loc. 11.02. 007. Por isso, quando for
citar as páginas utilizarei frente e verso, para melhor localizar as citações.
Roberta Lobão Carvalho 269

pois não tinham a noção de que os indígenas estavam, apenas,


“perdidos”. Sendo, portanto, humanos, não seria correto e nem
humano tratá-los como animais.
O cronista afirma que a real missão da humanidade era “levar
a felicidade [que consistiria viver sobre a verdadeira religião
católica] aos mais perdidos”, e não aprisionar e escravizar, com
tratamento desumano a “tão pequenas e pobres almas”.
Araújo elenca os argumentos levantados desde o século XVI,
entre eles que “os índios da América não eram homens, posto
que, eram incapazes da fé, dos sacramentos, das mais bênçãos
e graça da Igreja” (1720, p. 57, frente). Um dos estudiosos
assinalado por Araújo é Antonio de Herreira. Em sua História
Geral das Índias, livro segundo, ele afirma que os religiosos de São
Jerônimo defendiam que,

os ditos índios pela sua grosseria, ferocidade, e falta de memória


eram um pouco a propósito para se receber a fé, se se deixassem
a seu arbítrio, separados do domínio, e governo dos espanhóis,
porque só precisamente por serem persuadidos a servir, e
aceitar a doutrina cristã, e os costumes sociais e civis, fugiam
para montes, e se escondiam pelas covas, de modo que muitos
varões religiosos julgavam que os índios não eram homens
verdadeiros, nem capazes da eucaristia, e de outros mistérios da
verdadeira religião (Araújo, 1720: 57, verso).

E ainda na obra de Herrera há destaque para a opinião do


Frei Thomaz de Ortiz, dada no Supremo Conselho das Índias,
presidido pelo Frei Garcia de Loiola. Assim afirmava,
os ditos índios comiam gente, e gostavam de carne humana, que
eram mais do que todas as nações dados ao pecado nefando,
que de nenhum modo discerniam entre o justo e o injusto, e
que sem pejo algum a maneira de bestas, andavam vagabundos
de um lugar para o outro, e que em nada costumavam a matar
os outros, ou a matar-se a si, que eram bêbados, ignorantes,
270 “O Gênio, o engenho, e os costumes dos índios ...

preguiçosos os ímpios, sem algum bom respeito, instáveis,


movediços, incapazes da religião cristã, que era sobremodo
mentirosos, e tão sórdidos e sem polícia, que comiam piolhos,
aranhas e bichos semelhantes, que eram infiéis, ingratos,
supersticiosos, que se tiravam o cabelos da barba, que pintavam
ou entorpeciam as caras, e corpos de vários modos, que
deixavam os moribundos ainda que mui parentes, nos campos
em extremo desamparo e solidão, e que nenhuma gente, ou
nação crer ser Deus de tantos vícios, e tão distantes do bem,
e igualdade das regras humanas e políticas (Araújo, 1720: 57,
verso, 58, frente).

Nas passagens é possível verificar que o argumento sobre a


falta de humanidade dos indígenas se alicerça nos costumes e na
resistência à fé cristã que possuíam. Os religiosos acreditavam
que, pelo fato de não possuírem lembranças dos ensinamentos,
os indígenas não eram humanos, pois uma das características
escolásticas que comprovava a existência da alma era possuir
memória. Segundo Charlotte Castelnou-L’Estoile,

As defined by European church intellectuals of the era,


Brazilian Indians belonged to the lowest category of barbarians.
Culturally, they were considered close to animals, below human
politics and religion, without writing or history (Castelnou-
L’Esteloile, 2002: 624).

A falta de memória dos indígenas se encaixa no que


Guillermo Wilde discute quando estuda as missões guaranis.
Afirma, citando Viveiros de Castro, que a memória tupinambá6
era incapaz de “retener la palabra evangélica, y así como los
indios recibían el mensaje jesuítico, lo olvidaban rápidamente
en una extraña mezcla de docilidad e inconstancia, entusiasmo e

6 O texto da crônica não faz referência à uma população indígena específica. Ao se


referir aos indígenas, nesse momento da crônica, fala de maneira genérica.
Roberta Lobão Carvalho 271

indiferencia”. Os europeus daquele período não compreendiam a


ambivalência e fluídez dos indígenas em relação à religião cristã.
Ainda de acordo com Viveiros de Castro, “los indígenas no veían
el encontro com La religion Cristiana como conflitivo” e

los indios no tomaban muy en serio el arrepentimiento que


públicamente hacían [...], la apropiación de símbolos, nombres,
vestimentas y rituales cristianos formaban parte de una actitud
más general que los indios hacia los elementos e ideas exógenos,
que no excluía continuar con las antiguas creencias e prácticas.
(apud Wilde, 2009: 99).

Tem-se ainda a questão da conversão e do trabalho em


aldeamento, ou seja, não era suficiente apenas batizar os indígenas,
era necessário persuádi-los por meio da catequese e mantê-los sob
o domínio dos agentes da Coroa (espanhola ou portuguesa). Essa
estratégia consistia em fazer os indígenas deixarem as suas terras
e se submeterem ao domínio dos missionários, porém, estes,
mesmo quando criados juntos aos missionários, ao se tornarem
adultos fugiam dos aldeamentos.
Outra questão abordada é o nomadismo, tal costume para
os religiosos representava falta de organização política, social e
até mesmo um enorme desapego aos membros do grupo, pois
por estarem em constante mudança, geralmente abandonavam
aqueles que não podiam acompanhar o grupo, por motivos
quaisquer, para que não causassem danos à migração da tribo.
Assim, os religiosos-estudiosos viam o nomadismo como prova
de “imensa desumanidade”.
No texto é possível encontrar tópicas elencadas por Alcir
Pécora quando se trata da representação indígena nas narrativas
jesuíticas, que são:
272 “O Gênio, o engenho, e os costumes dos índios ...

Contra natura: canibalismo, nudez, poligamia; tópicas políticas:


contínuo estado de beligerância, a vida em discórdia, ausência
de lei comum e rei único; tópicas doutrinárias: falta fé,
ignorância de Deus, desconhecimento da glória da salvação e
da condenação ao inferno; e tópica de pecado e da fraqueza:
sensualidade, brutalidade, alcoolismo, preguiça, inconstância
nas crenças e nomadismo (Pécora, 2001: 44).

Essas tópicas não estão relacionadas à natureza do índio, mas


ao seu comportamento, aos seus costumes, como se pode observar
nos trechos destacados. Mais interessante é a indignação que
Araújo demonstra ao tratar da questão, ele afirma que os europeus
eram “bárbaros”, pela forma que tratavam os indígenas. Segundo
ele, “chegaram a fazer firme juízo os primeiros descobridores
da América Setentrional, que os índios não eram racionais, que
podiam tomá-los para si qualquer que os houvesse, e servisse
como camelos, cavalos e bois, ferir e matá-los, sem injúria, sem
pecado e sem obrigação de restituição”, e ainda “que chegaram
os senhores espanhóis a sustentar seus cães com carne de índio”
(Araújo, 1720: 58 f/v).
Domingos de Araújo equipara os europeus e seu
comportamento ao dos indígenas, ou seja, esses agiam de forma
tão bárbara quanto aqueles, e assim acaba por reforçar o que
afirma no início, que desumanos são os juízos dos europeus, ao
crerem que os indígenas não eram humanos, pois não estavam
se importando em levar a felicidade aos perdidos. Logo, os
moradores cristãos do Novo Mundo foram qualificados de modo
negativo pelo jesuíta.
Roberta Lobão Carvalho 273

1.2 “Seguindo a parte oposta”: argumentos a favor da


humanidade indígena.

Ao listar os argumentos a favor da humanidade indígena,


Araújo afirma que aqueles que seguiam a parte oposta desta
“negativa controvérsia” “eram pessoas sobre mui graves, mui
autorizadas que afirmavam serem homens [os indígenas], nem
nisso tinham dúvida alguma” (Araújo, 1720: 58, verso).
A questão foi levada primeiramente a Carlos V, que, de acordo
com Araújo, ao perceber que excedia a seu foro, por serem “coisas
da religião”, não deu nenhuma solução. Devolvendo “as coisas
dos índios” ao Supremo Tribunal de Paulo Terceiro.
A respeito dessa questão, Domingos de Araújo lança mão da
citação na íntegra de uma carta escrita por Julião Garcez da ordem
dos pregadores, primeiro Bispo de Ilacasla, que viveu durante
muitos anos entre os índios “pensando, examinando, discernindo
e explorando sua capacidade, condição e habilidade em respeito
à religião cristã, principalmente. E lamentando também as
injúrias, opressões e violências que dos europeus padeciam os tão
lastimosos como lastimados índios” (Araújo, 1720: 59, f).
Julião Garcez começa sua carta comparando os filhos dos
espanhóis com os meninos indígenas, afirma que esses últimos
são “incapazes contra a fé ortodoxa, como são os judeus e os
maometanos”, bebiam dos dogmas cristãos como água e os
esgotavam com pressa e alegria em aptidão para aprender os
artigos da fé. Os meninos índios são “temerantes, disciplinados,
mui obedientes aos Mestres e com os companheiros oficiais,
nem há neles, queixumes, mentiras, afrontas, são enfim isentos
de todos aqueles vícios de que abundam os meninos europeus”
(Araújo, 1720: 59, v).
Além de elogiar a capacidade de ser cristãos, ele também
elogia o engenho e a docilidade dos meninos indígenas. Afirma
274 “O Gênio, o engenho, e os costumes dos índios ...

que possuíam uma destreza singular, entendimento agudo, e essas


duas qualidades eram frutos da parcimônia, do temperamento e
da clemência do clima. Os indígenas aprendiam com todo primor
canto Eclesiástico, ou seja, Orgânico, ou Gregoriano. Afirma-se,
dessa maneira, que os “pobres índios” tinham toda capacidade de
aprender e de memorizar os dogmas cristãos e ainda o faziam de
melhor maneira que os próprios europeus.
Na escrita de Garcez encontra-se a justificação da presença
de religiosos entre os indígenas, pois os meninos, quando viviam
sobre a proteção da Igreja, se convertiam em melhores cristãos
que os europeus que “instigados por diabólicas sugestões,
afirmam que estes índios são incapazes da religião cristã” (Araújo,
1720: 61, frente). Juan Carlos Estenssoro afirma, que “la iglesia
se tomo el cuidado de elaborar, paralelamente a su imagen del
idólatra, la del indio convertido, sincero, devoto e incluso más
fiel a la religión y a sus reglas morales que el promedio de los
españoles” (2003: 441).
O Bispo afirma ainda que se os autores dos discursos que
duvidavam da humanidade desses “pobres índios” cuidassem “em
investigar, e explorar os gênios e engenhos dos índios, porque
se nisso trabalhassem com caridade cristã, entenderiam que não
lançaram em vão sobre eles a rede da caridade” e

Quem haverá de consciência tão cauterizada, e de tão


desavergonhada testa, que se atreva a julgar incapazes da Fé
os que vemos capacíssimos das artes mecânicas, e aqueles que
reduzidos dos ministérios europeus os experimentos fies e
sagazes (Araújo, 1720: 61, f).

Wilde afirma que “Van Sueck [missionário] escribe que


los adultos no podían aprender gran cosa, pero los jóvenes eran
aptos para todo, habiendo varios ellos que sabían leer y escribir,
y tenían habilidad en las ‘artes mecánicas” (2009: 96). O fato dos
Roberta Lobão Carvalho 275

indígenas possuírem habilidades mecânicas evidenciava, para o


religioso, que eles tinham as três potências – intelecto, memória
e vontade – da definição escolástica de alma, contrariando o
argumento de Antonio de Herreira, que afirmava que os índios
não possuíam memória, logo não podiam ser humanos.
Julião Garcez acreditava que ao possuírem habilidades
mecânicas eles demonstravam possuir memória, e estavam
aptos a receber a fé católica, mais que os próprios meninos e
homens europeus. Afirma que “os homens do Novo Mundo [...]
convertidos podem ser que em fé e virtude venham a vencer aos
mesmos pelos quais foram convertidos à fé” (Araújo, 1720: 63,
frente).
O religioso dá prosseguimento a sua defesa elencando uma
série de episódios que demonstram a disposição que os indígenas
tinham para receber os sacramentos, principalmente a confissão.
E de como lutavam para manter a santidade e abandonar os maus
costumes e seus vícios, além de narrar um episódio em que dois
indígenas em estado de neófitos tiveram uma visão na qual foram
colocados diante de dois caminhos, um que representava seus
maus costumes e outro, a vida cristã. E que através do testemunho
dado por eles a respeito desta visão, vieram a se converter muitos
outros.
Esses argumentos se estendem ainda por muitas páginas
da crônica. Resolvi colocar esta discussão para ilustrar como
ela ainda estava muito presente no Maranhão do século XVIII,
especialmente nas narrativas jesuíticas, pois perpassava por
outra fundamental na história da missão jesuítica nas terras do
Maranhão, e de todas as suas missões no Novo Mundo: o mote
da escravidão, ou melhor, da liberdade indígena, que rendeu duas
expulsões aos jesuítas das terras do Maranhão, em 1661 e em
1684 (Chambouleyron, 2005; 2006).
276 “O Gênio, o engenho, e os costumes dos índios ...

Considerações Finais

Ao trabalhar com a escrita e as formas de representação que se


encontram na Crônica da missão da Companhia de Jesus no Maranhão
de 1720, tem-se que ter em conta suas particularidades retóricas,
assim como o contexto em que estas foram produzidas. Crê-se
que esta seguia formas rígidas, mas que o contexto particular
em que estava envolvida a crônica analisada influenciou e deu
forma ao conteúdo de tais narrativas, pois como se afirmou
anteriormente, os textos jesuíticos são vistos aqui como espaço
no qual se aformava a importância da ação dos jesuítas.
Deve-se se pensar que a ação religiosa se dava em um contexto
específico e os padres seguiam um modelo cultural religioso
particular, dentro de uma região ampla e de fronteira que era o
Maranhão da época moderna. A ação religiosa dos missionários
jesuítas não pode ser pensada de forma isolada, mas em conjunto
com a sociedade, a política e a economia específica da região,
todas estas questões influenciaram de forma clara na escrita de
Domingos de Araújo. À medida que a religião e a representação
de suas práticas estão sempre vinculadas às formas de vivência
do grupo da qual não se separa. Há vários campos de ação
religiosa dentro desta sociedade colonial, o indígena, o católico
e, no interior destes, as várias nuances que formaram um caráter
religioso da sociedade colonial.
No caso da liberdade indígena, percebe-se toda uma
construção perpassada pelo discurso religioso da época moderna.
A representação que se fez dos indígenas e dos colonos constrói
um espaço e um papel privilegiado da Companhia de Jesus. Mesmo
entrando em conflito com os interesses da Coroa, os jesuítas
punham em prática seus planos de evangelização, pois na lógica
do seu sistema de representação, sua principal função deveria ser
a evangelização dos indígenas. As representações que constroem
destes e dos moradores portugueses amplificam a importância do
Roberta Lobão Carvalho 277

seu papel, da retidão de suas ações e de seu cuidado, não apenas


com os indígenas, mas também como a alma dos colonos. Na
concepção dos jesuítas, a missão a que se propunham era, antes
de qualquer coisa, levar a palavra de Deus e a vida civil àquelas
terras.
278 “O Gênio, o engenho, e os costumes dos índios ...

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Este livro foi impresso pela
Agbooks Press
www.agbooks.com.br

Fonte © Garamond

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