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ALMEIDA GARRET
3. O AUTOR...........................................................................................................................11
4. A OBRA........................................................................................................................................20
5. EXERCÍCIOS.....................................................................................................................30
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VIAGENS NA MINHA TERRA
ALMEIDA GARRET
Viagens na minha terra
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Almeida Garret
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Viagens na minha terra
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3. O AUTOR
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Almeida Garret
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Viagens na minha terra
OBRAS
Poesia
1815 – Afonseida ou Fundação do Império Lusitano
1822 – O retrato de Vênus
1825 – Camões
1825 – Dona Branca
1826 – Volume I de Parnaso lusitano
1827 – 4 volumes restantes de Parnaso lusitano
1829 – Lírica de João Mínimo
1843 – Tomo I de Romanceiro
1845 – Flores sem fruto
1851 – Tomos II e III de Romanceiro
1853 – Folhas caídas
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Teatro
1818 – Xerxes
1818 – Lucrécia
1820 – Mérope
1821 – Catão
1838 – Um Auto de Gil Vicente
1840 – Filipa de Vilhena
1841 – Alfageme de Santarém
1843 – Frei Luís de Sousa
1847 – A sobrinha do marquês
Jornalismo
Obs.: tendo sido um militante permanente do jornalismo e fundador de
vários periódicos, sua produção jornalística é muito extensa. Alguns títulos,
porém, pela importância que tiveram, merecem destaque.
1826 – Europa e América
1830 – Portugal na balança da Europa
Romance
1828 – Adozinda
1828 – Bernal francês
1845 – O Arco de Sant’Ana
1846 – Viagens na minha terra (Por ser texto de múltipla classificação, pre-
ferimos citá-lo entre os romances)
1854 – Helena (inacabado)
Fragmentos do livro começaram a ser publicados em 1843 em revista.
Educação
1829 – Da Educação
Epistolar
1838 – Cartas apologéticas
1838 – Cartas históricas
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Viagens na minha terra
INFLUÊNCIAS
Nas inúmeras viagens que empreendeu, quase sempre involuntariamente,
Garrett, um espírito aberto ao novo e atento às transformações sociopolíticas
e culturais, bebeu na fonte autores como Lord Byron, Sir Walter Scott, familia-
rizou-se com Shakespeare, que, mesmo sendo a rigor um barroco, influenciou
o Romantismo de todas as nações, graças à sua índole libertária, avessa à
obediência a regras.
Além desses contatos diretos com autores de textos literários, Garrett
embrenhou-se na leitura de poetas e filósofos alemães, como Göethe, Schiller,
Schelling e Frederico Schlegel, que participaram do movimento conhecido como
Sturm und Drang (tempestade e violência), cujo pensamento pesou fortemente
em sua formação romântica.
Por outro lado, já trazia da infância, gravados no fundo da memória, con-
tos populares e modinhas do folclore português que lhe foram transmitidos por
duas criadas do tempo em que viveu nos Açores.
Exemplo dessa influência é evidente no poema Barca bela:
Barca bela
Pescador da barca bela, Deita o lanço com cautela,
Onde vais pescar com ela, Que a sereia canta bela...
Que é tão bela, ó pescador? Mas cautela, ó pescador!
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Almeida Garret
POESIA ENGAJADA
Entre uma dimensão puramente estética e o amor pela pátria, Garret sempre
oscilou. Sua matéria é tomada invariavelmente do ambiente português (Camões,
Viagens na minha terra, Frei Luís de Sousa), que como ninguém ele amou e venerou,
mas seu estro e sua pena estiveram sempre ao lado das causas liberais, em defesa
da democracia e do progresso de Portugal.
É conhecido o fato de que detestava a poesia lírico-amorosa de Bocage,
morto em 1805 e um dos precursores do Romantismo em sua fase final. O lirismo
de Bocage, para Garrett, não mantinha compromisso com a nação e era alienado
de qualquer pensamento político.
SENTIMENTALISMO
Em que pese sua tendência ao engajamento nas questões políticas e patri-
óticas, o autor desenvolveu, sobretudo a partir de 1845 (publicação de Flores sem
fruto) até seus últimos dias, uma linha sentimental de poesia, em que o lirismo
amoroso é o eixo principal, como se pode observar no poema.
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Viagens na minha terra
DIGRESSÕES
Um autor como Garrett, com vida política e social extremamente
ativa, a par do exercício intelectual de liderança, dificilmente deixaria de
opinar, em muitas digressões, geralmente com sentido crítico, sobre a vida
em Portugal.
Eis um exemplo:
E falam no Evangelho! Deve ser por escárnio. Se o leem, hão de ver lá que nem a
esquerda deve saber o que faz a direita...
Vamos à descrição da estalagem; e acabemos com tanta digressão.
HUMOR
Homem do grande mundo, habituado aos salões, onde a principal vir-
tude é o espírito, o autor, além de sua presença política influente, podendo-se
dizer mesmo dominante, desenvolveu uma maneira de ser cativante, tanto
pelos pensamentos agudos e penetrantes como por sua elegância e seu
comportamento refinado. Por tudo isso, é caracterizado como um homem
sedutor no trato com as mulheres e delicado de sentimentos no trato de
todas as pessoas.
Seria, para um homem assim, quase impossível não eivar sua obra de
tiradas de fino humor, principalmente em sua obra prosaica. É o que se pode
exemplificar com o primeiro parágrafo de Viagens na minha terra:
Que viaje à roda do seu quarto quem está à beira dos Alpes, de inverno, em Turim,
que é quase tão frio como S. Petersburgo – entende-se. Mas com este clima, com este ar
que Deus nos deu, onde a laranjeira cresce na horta, e o mato é de murta, o próprio Xavier
de Maistre, que aqui escrevesse, ao menos ia até o quintal.
O autor faz alusão ao opúsculo de Xavier de Maistre, Voyage autour de
ma chambre (Viagem ao redor do meu quarto), com indiscutível propósito de
fazer humor.
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IRONIA
Como humor e ironia andam quase sempre de braços dados, muitas vezes,
para não dizer quase sempre, a ironia tem também uma finalidade humorística.
Difícil a página deste homem culto, inteligente e elegante em que não compareça
essa figura, que expressa um modo mais leve de encarar as realidades do Velho
Mundo.
Eis um exemplo tirado ainda de Viagens na minha terra:
Numa regata de vapores o nosso barco não ganhava decerto o prêmio.
(...)
O senso comum virá para o milênio: reinado dos filhos de Deus! Está prometido
nas divinas promessas... como El-rei de Prússia prometeu uma constituição; e não faltou
ainda, porque, porque o contrato não tem dia; prometeu, mas não disse quando.
METALINGUAGEM
Define-se a metalinguagem como a linguagem que fala dela mesma ou
de alguma outra linguagem, ou seja, linguagem que tem como objeto uma lin-
guagem. No caso de Garrett, pode-se encontrar com frequência trechos em que
ele comenta seu livro Viagens na minha terra, de onde se tirou o exemplo abaixo:
Primeiro que tudo, a minha obra é um símbolo... é um mito, palavra grega, e de
moda germânica, que se mete hoje em tudo e com que se explica tudo. Quanto se não
sabe explicar.
(...)
Santo Deus! Que bruxa que está à porta! Que antro lá dentro!... Cai-me a pena
da mão.
INTERLOCUÇÃO
O narrador se dirige diretamente ao leitor, com quem quer estabelecer uma
espécie de cumplicidade, recurso estilístico, na época, ainda muito pouco usado.
Da mesma obra, leia-se o exemplo a seguir:
Estas minhas interessantes viagens hão de ser uma obra-prima, erudita, brilhante,
de pensamentos novos, uma coisa digna do século. (metalinguagem) Preciso de dizer ao
leitor, para que ele esteja prevenido; não cuide que são quaisquer dessas rabiscaduras da
moda que, com o título de Impressões de viagem, ou outro que tal, fatigam as imprensas
de Europa sem nenhum proveito da ciência e do adiantamento da espécie.
(...)
Vou desapontar decerto o leitor benévolo: vou perder, pela minha fatal sinceridade,
quanto em seu conceito tinha adquirido nos dois primeiros capítulos desta interessante
viagem.
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Viagens na minha terra
FLUÊNCIA
Garrett abandona, em sua obra em prosa, o tom grandíloquo, as construções
de gosto passadista e introduz o novo modo de escrever, elaborado em estilo de
conversa, isto é, uma aproximação ao tom coloquial. Até nisso o autor desenvol-
veu seu caráter sedutor. Sua frase é ágil, sem tropeços, tornando-se agradável a
leitura de seu texto. Acrescenta-se ainda o fato de empregar com muita frequência
o período tenso, que segura o interesse do leitor até o fim.
Observem-se alguns exemplos:
Era uma ideia vaga; mais desejo que tenção, que tu tinhas há muito de ir conhecer
as ricas várzeas desse Ribatejo...
(...)
Em vez do calão amarelo e da jaqueta de ramagem que caracterizam o homem do
forcado, estes vestiam o amplo saiote grego dos varinos, e o tabardo arrequifado siciliano
de pano de varas.
(...)
Ora nesta minha viagem Tejo arriba está simbolizada a marcha do nosso progresso social.
Eis aí o autor com suas características. Conhecer sua obra é um prazer
refinado, assim como ele foi em tudo que escreveu e viveu.
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4. A OBRA
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ESTILO
A viagem é quase toda ela vazada em estilo de crônica, produzida em
primeira pessoa, como deve ser, e opinativa, em que narrador e autor se
confundem.
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Almeida Garret
Eu darei sempre o primeiro lugar à modéstia entre todas as belas qualidades. Ainda
sobre a inocência? Ainda, sim. A inocência basta uma falta para a perder; da modéstia
só culpas graves, só crimes verdadeiros podem privar. Um acidente, um acaso podem
destruir aquela, a esta só uma ação própria, determinada e voluntária.
É de se notar que o foco narrativo é em primeira pessoa, opinando (neste
caso) sobre uma questão de valor, isto é, o tom de uma crônica reflexiva. Além
disso, não deve passar despercebida a linguagem empregada, com o narrador
perguntando a si mesmo e ele mesmo respondendo, como em uma conversação.
INTERLOCUÇÃO
A todo momento, o narrador interage com o leitor, recurso em que se busca
a cumplicidade deste último.
Por certo, leitor amigo, no franciscano velho que vai de noite roubar os ossos do santo
ao seu túmulo, e os vem esconder na clausura das freiras, por certo, digo, reconheceu já a
tua natural perspicácia ao nosso Frei Dinis, o frade por excelência ‒ frade por teima e acinte.
Tanto neste como no próximo item, percebe-se a influência de Sterne, fonte
em que também Machado de Assis foi matar a sede, passando, é bem verdade,
muitas vezes diretamente por Garrett. Observe-se, no comentário seguinte, a
confissão da influência.
Onde a crônica se cala e a tradição não fala, antes quero uma página inteira de
pontinhos, ou toda branca, ou toda preta, como na venerável história do nosso particular
e respeitável amigo Tristram Shandy, do que uma só linha da invenção do croniqueiro.
*Tristram Shandy é a mais conhecida obra de Laurence Sterne (1713-1768).
METALINGUAGEM
A linguagem que se refere a alguma outra linguagem ou a ela mesma
denomina-se metalinguagem, recurso bastante empregado por autores influen-
ciados por Sterne, como Machado e Garrett.
Estas minhas interessantes viagens hão de ser uma obra-prima, erudita, brilhante,
de pensamentos novos, uma coisa digna do século. Preciso de o dizer ao leitor, para que
ele esteja prevenido; não cuide que são quaisquer dessas rabiscaduras da moda que, com
o título de Impressões de viagem, ou outro que tal, fatigam as imprensas da Europa sem
nenhum proveito da ciência e do adiantamento da espécie.
IRONIA
É quase impossível uma página de Garret em que se não encontre alguma
ironia. Tomada ao acaso, observe-se a passagem:
Já se vê que em nada disto há a mínima alusão ao feliz sistema que nos rege: estou
falando de modéstia, e nós vivemos em Portugal.
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HUMOR
Ironia e humor são companheiros quase inseparáveis, na maioria das vezes.
Existem a ironia mal-humorada e o humor que não é irônico.
Ao chão estive eu para me atirar, como criança amuada, quando vi voltar para a
Azambuja o nosso cômodo veículo, e diante de mim a enfezada mulinha asneira que ‒ ai
triste! ‒ tinha de ser o meu transporte dali até Santarém.
PENSAMENTO POLÍTICO
Como já se observou na pequena biografia nas páginas anteriores, Almeida
Garrett era liberal, constitucionalista e participou do desembarque na praia do
Mindelo, seguindo-se o cerco à cidade do Porto. Ele lutou contra o absolutismo
de D. Miguel, ao lado de D. Pedro IV. Essa sua característica perpassa toda a sua
obra. Leiam-se os trechos a seguir, que se encontram no capítulo III:
Andai, ganha-pães, andai; reduzi tudo a cifras, todas as considerações deste mundo
a equações de interesse corporal, comprai, vendei, agiotai. Que há mais umas poucas de
dúzias de homens ricos. E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já
calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho despro-
porcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à
penúria absoluta, para produzir um rico? (...) ... cada homem rico, abastado, custa centos
de infelizes, de miseráveis.
Logo a nação mais feliz não é a mais rica. Logo o princípio utilitário é a mamona
da injustiça e da reprovação. Logo...
IDEALIZAÇÃO ROMÂNTICA
É bastante evidente, principalmente em suas descrições, a exaltação sem
medida das virtudes e da beleza. Em várias reflexões, encontram-se também
seus traços românticos.
Há três espécies de mulheres neste mundo: a mulher que se admira, a mulher que
se deseja, e a mulher que se ama.
A beleza, o espírito, a graça, os dotes da alma e do corpo geram admiração.
Certas formas, certo ar voluptuoso criam o desejo.
O que produz o amor não se sabe; é tudo isto às vezes, é mais do que isto, não é
nada disto.
Ou neste outro trecho:
Laura não era alta nem baixa, era forte sem ser gorda, e delicada sem magreza.
Os olhos de uma cor de avelã diáfanos, puros, aveludados, grandes, vivos, cheios de tal
majestade quando se iravam, de tal doçura quando se abrandavam, que é difícil dizer
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quando eram mais belos. O cabelo quase da mesma cor tinha, demais, um reflexo dou-
rado, vacilante, que ao sol resplandecia, ou antes, relampejava, ‒ mas a espaços, não era
sempre, nem em todas as posições da cabeça: ‒ cabeça pequena, modelada no mais clássico
da estatuária antiga, poisada sobre um colo de imensa nobreza, que harmonizava com a
perfeição das linhas dos ombros.
ELEMENTOS DA NARRATIVA
Narrador
Expõe-se o ponto de vista de um viajante, que é o próprio narrador em
primeira pessoa. Em alguns dos últimos capítulos, quando é adotado o gênero
epistolar, Carlos assume a função de narrar.
É a ti que escrevo, Joana, minha irmã, minha prima, a ti só.
Com nenhum outro dos meus não posso nem ouso falar.
(...)
Quero contar-te a minha história; verás nela o que vale um homem.
Espaço
Ao embarcar num vapor em Lisboa, o destino dos viajantes é Santarém. Os
demais lugares por onde passam, como Vila Nova da Rainha, Azambuja e Carta-
xo, são apenas pontos de passagem para que se chegue a Santarém, em razão da
importância histórica do local. O túmulo de Pedro Álvares Cabral, o Paço del-rei
D. Afonso Henriques e muitos outros monumentos históricos estão em Santarém.
É uma das cidades mais antigas de Portugal. O narrador volta indignado
com o estado de abandono a que está entregue a cidade.
O palácio de Afonso Henriques está como a sua capela: nem o mais leve, nem o mais
apagado vestígio da antiga origem. Sabe-se que é ali pela bem confrontada e inquestionável
topografia dos lugares, por mais nada...
Ressalte-se que Afonso Henriques, filho de D. Henrique de Borgonha, foi
o primeiro rei de Portugal, aclamado em 1139.
Santarém é uma cidade rica em fatos históricos.
Ao almoço a conversação veio naturalmente a cair no seu objeto mais óbvio, San-
tarém. D. Afonso Henriques e os seus bravos, S. Frei Gil e o Santo Milagre, o Alfageme
e o Condestável, El-rei D. Fernando e a Rainha D. Leonor, Camões desterrado aqui, Frei
Luís de Sousa aqui nascido, Pedro Álvares Cabral, os Docems, quase todas as grandes
figuras da nossa história passaram em revista. Por fim veio Santa Iria também, a madrinha
e padroeira desta terra, cujo nome aqui fez esquecer o de romanos e celtas.
Ainda relevante é o Vale de Santarém, que deixa impressão indelével no
narrador.
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Joaninha
Uma das personagens centrais do romance que se conta na segunda me-
tade do livro, é órfã de pai e mãe e foi criada pela avó Francisca. É chamada de
Joaninha dos Rouxinóis ou Joaninha dos olhos verdes. Tem cerca de dezesseis
anos, é doce, meiga, pura e vive para a avó.
Joaninha não era bela, talvez nem galante sequer no sentido popular e expressivo
que a palavra tem em português, mas era o tipo da gentileza, o ideal da espiritualidade.
Naquele rosto, naquele corpo de dezesseis anos, havia por dom natural e por uma admi-
rável simetria de proporções toda a elegância nobre, todo o desembaraço modesto, toda
a flexibilidade graciosa que a arte, o uso e a conservação da corte e da mais escolhida
companhia vêm a dar algumas raras e privilegiadas criaturas no mundo.
Carlos
É primo de Joaninha, cerca de quinze anos mais velho do que ela. Por
defender ideias liberais, asila-se na Inglaterra, onde convive com as três filhas
de uma família. Apaixona-se pela do meio, mais tarde pela caçula. Desembarca
na ilha Terceira para fazer parte das tropas que invadirão Portugal e tomarão
a cidade do Porto. Em campanha, chega até o Vale de Santarém e encontra sua
prima Joaninha, por quem se apaixona. Em carta à prima, reconhece ter um
coração volúvel e não merecer o amor de nenhuma mulher.
Eu sim, tinha nascido para gozar as doçuras da paz e da felicidade doméstica; fui
criado, estou certo, para a glória tranquila, para as delícias modestas de um bom pai de
família.
Mas não o quis a minha estrela. Embriagou-se de poesia a minha imaginação e
perdeu-se: não me recobro mais. A mulher que me amar há de ser infeliz por força; a que
me entregar o seu destino, há de vê-lo perdido.
Não quero, não posso, não devo amar a ninguém mais.
Irmã Francisca
Avó de Joaninha e Carlos, era viúva e bem cedo perdeu o filho e o genro,
com suas respectivas esposas, assumindo a criação dos dois netos. Era portado-
ra de segredos familiares terríveis que a fizeram chorar lágrimas de sangue até
ficar cega. Passava os dias na dobadeira (máquina de fiar lã e dela fazer rolos).
A velha não tinha mais família que um neto e uma neta.
A neta era Joaninha, filha única de seu único filho varão, e já órfã de pai e de mãe.
O neto, órfão também, nascera póstumo, e custara a vida a sua mãe, filha querida
e predileta da velha.
Ao final da história, além de cega estava surda e um tanto demente. Seu
único arrimo era Frei Dinis.
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Frei Dinis
O guardião de São Francisco (mosteiro santarenho) tornou-se amante
da “filha querida e predileta da velha.” Doou suas posses à Irmã Francisca e
tornou-se frade.
... Frei Dinis da Cruz, o frade mais austero e o pregador mais eloquente daquele
tempo. Raro pregava, e só de doutrina; mas era uma torrente de veemência, uma unção,
uma força...
Sua severidade ia ao ponto de ver pecado em todos os atos humanos.
Considerava os liberais os maiores pecadores, não tementes a Deus, por isso
defendia D. Miguel e seu absolutismo. Amava Carlos com veneração, apesar de
sua posição política, que abominava. O jovem, entretanto, odiava-o, pois sabia
obscuramente a história da família e considerava-o o assassino de seu pai.
No final, descobriu-se que o verdadeiro pai de Carlos era Frei Dinis, a
derradeira companhia da irmã Francisca.
Dito isto, o frade benzeu-se, pegou no seu breviário e pôs-se a rezar. A velha dobava
sempre, sempre. Eu levantei-me, contemplei-os ambos alguns segundos. Nenhum me deu
mais atenção nem pareceu cônscio da minha estada ali.
Sentia-me como na presença da morte e aterrei-me.
Júlia
Ao fugir para a Inglaterra, Carlos convive com as três filhas de uma família
amiga.
Havia três meninas naquela família. Dizer que eram as três graças é uma vulgari-
dade cansada, e tão banal que não dá ideia de cousa alguma. Três anjos seriam; três anjos
posso dizer com mais propriedade.
Das três, era Júlia a mais velha, amiga e protetora de Carlos em seus mo-
mentos mais difíceis.
Laura
Era a irmã do meio, por quem Carlos se apaixonou.
Tenho visto muita mulher mais bela, algumas mais adoráveis, nenhuma tão fas-
cinante.
Fascinante é a palavra para ela.
Mas havia um impedimento. Apesar de Laura também amá-lo, ela estava
prometida a outro e deveria casar-se logo. Entre o amor e o dever, venceu este
último para que se salvasse a honra, a ponto de, em Os sofrimentos do jovem Wer-
ther, de Göethe, o mesmo tema levar ao suicídio do jovem.
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Almeida Garret
Georgina
No meio de seus sofrimentos, Carlos descobriu a caçula das três irmãs,
ao mesmo tempo em que percebeu que ela sim desvendara-lhe o verdadeiro
amor.
Georgina é quem viajou da Inglaterra, enfrentou as linhas inimigas em
combate e acabou encontrando Carlos prisioneiro e ferido num hospital. Nesse
tempo descobriu a paixão de Carlos por Joaninha e abdicou de seu amor (o sa-
crifício amoroso é tema recorrente no Romantismo).
Depois de exigir de Joaninha a promessa de que jamais deixaria Carlos, ela
voltou para a Inglaterra e tornou-se abadessa em um convento.
Num diálogo entre o narrador e Frei Dinis, aquele ficou informado dos
acontecimentos.
‒ ... E Joaninha? E Georgina?
‒ Joaninha enlouqueceu e morreu. Georgina é abadessa de um convento em In-
glaterra.
Enredo
Há, na verdade, duas histórias que correm quase paralelamente. Uma,
a que transcorre no presente, é a história de uma viagem, expressa no gênero
crônica, com reflexões a respeito da guerra, da política, da história, da moral
e de outros assuntos da mesma estirpe incluindo a ida de Lisboa a Santarém,
a permanência do personagem nesta localidade por alguns dias e a viagem
de retorno.
A segunda história, a que se conta dentro da primeira, é assim introduzida
pelo narrador:
Ainda assim, belas e amáveis leitoras, entendamo-nos: o que eu vou contar não
é um romance, não tem aventuras enredadas, peripécias, situações e incidentes raros; é
uma história simples e singela, sinceramente contada e sem pretensão.
Avó e dois netos habitavam uma casa isolada no Vale de Santarém. Todas
as sextas-feiras recebiam a visita de Frei Dinis, homem seco, meio lunático, ex-
cessivamente severo, a quem o jovem Carlos, o neto, odiava.
Com o início das lutas entre liberais e absolutistas, o jovem precisou fugir
para a Inglaterra por causa de suas convicções liberais.
Na Inglaterra, conviveu intimamente com três irmãs, sendo protegido por
Júlia, a mais velha; apaixonou-se por Laura, a irmã do meio, mas ficou frustrado
em seu amor, pois a moça era noiva e devia casar-se em breve, indo morar na
Índia. Desesperado, chegou a pensar em pôr termo à vida, mas, um dia, voltando
à casa dos pais de Júlia, encontrou Georgina, a irmã mais nova, e descobriu que
ela era seu verdadeiro amor.
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Almeida Garret
5. EXERCÍCIOS
FAAP modificado
Texto para as questões de 01 a 05.
À esquerda do vale, e abrigado do norte pela
montanha que ali se corta quase a pique, está um
maciço de verdura do mais belo viço e variedade. A
faia, o freixo, o álamo, entrelaçam os ramos amigos;
a madressilva, a musqueta penduram de um a outro
suas grinaldas e festões; a congossa, os fetos, a malva-
rosa do valado vestem e alcatifam o chão.
Para mais realçar a beleza do quadro, vê-se por entre um claro das árvores a janela
meio aberta de uma habitação antiga mas não dilapidada – com certo ar de conforto grosseiro,
e carregada na cor pelo tempo e pelos vendavais do sul a que está exposta. A janela é larga e
baixa; parece mais ornada e também mais antiga que o resto do edifício que todavia mal se vê...
Interessou-me aquela janela.
Quem terá o bom gosto e a fortuna de morar ali?
Parei e pus-me a namorar a janela.
Encantava-me, tinha-me ali como num feitiço.
Pareceu-me entrever uma cortina branca... e um vulto por detrás. Imaginação
decerto! Se o vulto fosse feminino!... era completo o romance.
(...)
Se haverá ali quem a aproveite, a deliciosa janela? ... quem aprecie e saiba gozar todo o
prazer tranquilo, todos os santos gozos de alma que parece que lhe andam esvoaçando em torno?
Se for homem é poeta; se é mulher está namorada.
São os dois entes mais parecidos da natureza, o poeta e a mulher namorada; veem,
sentem, pensam, falam como a outra gente não vê, não sente, não pensa nem fala.
Na maior paixão, no mais acrisolado afeto do homem que não é poeta, entre sempre o seu
tanto de vil prosa humana: é liga sem que se não lavra o mais fino do seu oiro. A mulher não;
a mulher apaixonada deveras sublima-se, idealiza-se logo, toda ela é poesia, e não há dor física,
interesse material, nem deleites sensuais que a façam descer ao positivo da existência prosaica.
Estava eu nestas meditações, começou um rouxinol a mais linda e desgarrada
cantiga que há muito tempo me lembra de ouvir.
Era ao pé da dita janela!
E respondeu-lhe logo outro do lado oposto; e travou-se entre ambos um desafio tão
regular em estrofes alternadas tão bem medidas, tão acentuadas e perfeitas, que eu fiquei
todo dentro do meu romance, esqueci-me de tudo o mais.
Lembrou-me o rouxinol de Bernardim Ribeiro, o que se deixou cair na água de cansado.
O arvoredo, a janela, os rouxinóis... àquela hora, o fim da tarde... que faltava para
completar o romance?
Almeida Garrett. Viagens na minha terra. Cap. X.
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01.
I) Os dois primeiros parágrafos do texto localizam “uma habitação antiga” no
meio de um “maciço de verdura”, “à esquerda do vale”, com especial relevo
para uma janela.
II) Depois desta primeira parte descritiva, impõe-se-nos um longo registro
das “meditações” do sujeito (monólogo interior), em estilo oralizante, com
predomínio da frase curta e o uso expressivo da pontuação, especialmente
a interrogação, a exclamação e as reticências.
III) A partir de “Estava eu nestas meditações” a narração torna-se o modo de
representação predominante, na medida em que o sujeito se apercebe do
que acontece à sua volta (o cantar dos rouxinóis).
02.
I) Na primeira e na última parte, não é tão grande o peso da subjetividade,
dado que estamos perante a representação de realidades exteriores ao
sujeito: a casa e a sua janela, na primeira parte, e o canto dos rouxinóis,
na parte final.
II) Já no monólogo, a parte mais extensa do texto, predomina nitidamente a
subjetividade, com a expressão de tudo aquilo que o sujeito sente e imagina
(a cortina branca, o vulto feminino por detrás, o cantar dos rouxinóis) em
frente daquela janela.
III) Este texto é, portanto, um bom exemplo da sensibilidade romântica, na me-
dida em que o mundo objetivo se nos apresenta retocado pelos sentimentos
e pela imaginação, isto é, pela subjetividade do narrador.
03.
I) A mais forte manifestação de subjetivismo romântico, neste texto, é, com
toda a certeza, a visão da mulher. O narrador, enfeitiçado pela janela da casa
do Vale, entrevê um vulto por detrás de uma “cortina branca” (símbolo de
pureza), naquele recanto paradisíaco, ao fim da tarde, no meio dum arvoredo
onde há rouxinóis que cantam ao desafio.
II) Este conjunto não pode deixar de nos remeter para o ideal romântico da mu-
lher angelical, cuja beleza e pureza terão de ser sobrevalorizadas e inseridas
num quadro natural adequado.
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Almeida Garret
05.
Observe as passagens seguintes.
“E ouvir cantar os rouxinóis”; “começou um rouxinol a mais linda e desgarrada
cantiga que há muito tempo me lembra de ouvir”; “e travou-se entre ambos um
desafio tão regular, em estrofes alternadas tão bem medidas, tão acentuadas e
perfeitas”.
Predominam nessas passagens as imagens:
a) visuais. d) olfativas.
b) auditivas. e) táteis.
c) gustativas.
Unesp modificado
Almeida Garrett (1799-1854), que pertenceu à primeira fase do Romantismo
português, é poeta, prosador e dramaturgo dos mais importantes da literatura
portuguesa. Em Viagens na minha terra (1846), o autor mistura, em prosa rica,
variada e espirituosa, o relato jornalístico, a literatura de viagens, as divagações
sobre os temas da época e os comentários críticos, muitas vezes mordazes, sobre
a literatura em voga no período. Leia o texto que lhe apresentamos e, a seguir,
responda às questões 06 e 07.
– E que lhe pareceu?
– Bem escrito e com verdade. Tivemos culpa nós, é certo; mas os liberais não ti-
veram menos.
– Erramos ambos.
– Erramos e sem remédio. A sociedade já não é o que foi, não pode tornar a ser o que
era: – mas muito menos ainda pode ser o que é. O que há de ser, não sei. Deus proverá.
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Viagens na minha terra
Dito isto, o frade benzeu-se, pegou no seu breviário e pôs-se a rezar. A velha do-
bava sempre, sempre. Eu levantei-me, contemplei-os ambos alguns segundos. Nenhum
me deu mais atenção nem pareceu cônscio da minha estada ali.
Sentia-me como na presença da morte e aterrei-me.
Fiz um esforço sobre mim, fui deliberadamente ao meu cavalo, montei, piquei de-
sesperado de esporas, e não parei senão no Cartaxo.
Encontrei ali os meus companheiros; era tarde, fomos ficar fora da vila à hospe-
deira casa do Sr. L. S.
Rimos e folgamos até alta noite: o resto dormimos a sono solto.
Mas eu sonhei com o frade, com a velha – e com uma enorme constelação de ba-
rões que luziam num céu de papel, donde choviam, como farrapos de neve, numa noite
polar, notas azuis, verdes, brancas, amarelas, de todas as cores e matizes possíveis. Eram
milhões e milhões de milhões...
Nunca vi tanto milhão, nem ouvi falar de tanta riqueza senão nas Mil e uma noites.
Acordei no outro dia e não vi nada... só uns pobres que pediam esmola à porta.
Meti a mão na algibeira, e não achei senão notas... papéis!
Parti para Lisboa cheio de agoiros, de enguiços e de tristes pressentimentos.
O vapor vinha quase vazio, mas nem por isso andou mais depressa.
Eram boas cinco horas da tarde quando desembarcamos no Terreiro do Paço.
Assim terminou a nossa viagem a Santarém; e assim termina este livro.
Tenho visto alguma coisa do mundo, e apontado alguma coisa do que vi. De todas quan-
tas viagens porém fiz, as que mais me interessaram sempre foram as viagens na minha terra.
Se assim o pensares, leitor benévolo, quem sabe? Pode ser que eu tome outra vez o bordão
de romeiro, e vá peregrinando por esse Portugal fora, em busca de histórias para te contar.
Nos caminhos de ferro dos barões é que eu juro não andar.
Escusada é a jura porém.
Se as estradas fossem de papel, fá-las-iam, não digo que não.
Mas de metal!
Que tenha o governo juízo, que as faça de pedra, que pode, e viajaremos com muito
prazer e com muita utilidade e proveito na nossa boa terra.
Almeida Garrett. Viagens na minha terra.
06.
O diálogo com que se inicia o trecho acima se dá entre o narrador e Frei Dinis.
A segunda fala pertence a este último porque:
a) o frei em tudo via pecado.
b) o narrador leu a carta com dificuldade.
c) o frade era absolutista e refere-se aos liberais como o lado oposto.
d) o narrador estava aterrado com a cena que presenciava.
e) Frei Dinis era liberal e confessa os erros de seus correligionários.
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Almeida Garret
07.
A velha referida no 5º parágrafo do excerto já se encontrava:
a) cega e surda. d) surda e muda.
b) apenas cega. e) muda e cega.
c) apenas surda.
08.
Leia o fragmento abaixo e a seguir responda à questão.
Mas eu sonhei com o frade, com a velha – e com uma enorme constelação de ba-
rões que luziam num céu de papel, donde choviam, como farrapos de neve, numa noite
polar, notas azuis, verdes, brancas, amarelas, de todas as cores e matizes possíveis. Eram
milhões e milhões de milhões...
Das personagens que aparecem em Viagens na minha terra, uma acaba barão.
Essa personagem é:
a) o narrador. c) Joaninha. e) Frei Dinis.
b) Carlos. d) Georgina.
09.
Assinale a alternativa em que ocorre metalinguagem.
a) “O barão é pois usurariamente revolucionário e revolucionariamente usurário.”
b) “Este capítulo deve ser considerado como introdução ao capítulo seguinte...”
c) “Que palavra poderosa retine nos púlpitos?”
d) “Tão misterioso é o coração do homem!”
e) “Infeliz do que chegou a esse estado!”
10.
Leia o excerto seguinte.
É a ti que escrevo, Joana, minha irmã, minha prima, a ti só.
Com nenhum outro dos meus não posso nem ouso falar. Nem eu já sei quem são
os meus: confunde-se, perde-se-me esta cabeça nos desvarios do coração. Errei com ele,
perdeu-me ele... Oh! Bem sei que estou perdido.
A partir deste momento e por alguns capítulos pode-se dizer que o gênero as-
sumido na narrativa pode ser classificado como:
a) jornalístico. c) coloquial. e) epistolar.
b) crônica. d) épico.
GABARITO
1. D 2. B 3. D 4. A 5. B 6. C 7. A 8. B
9. B 10. E
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