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Prefácio de A virada de Stephen Greenblatt (2012).

Quando eu era estudante, no fim do ano letivo ia sempre à Cooperativa de Yale para ver
o que podia ler no verão. Eu tinha muito pouco dinheiro para gastar, mas a livraria tinha
o costume de vender seus títulos menos procurados por preços ridiculamente baixos. Os
livros ficavam todos misturados em cestos que eu revirava, sem nada em mente,
esperando que alguma coisa me chamasse a atenção. Numa de minhas expedições, fiquei
impressionado com a capa extremamente esquisita de um volume de bolso, detalhe de
um quadro do surrealista Max Ernst. Sob uma lua crescente, bem acima da terra, dois
pares de pernas — os corpos estavam ausentes — estavam realizando o que parecia ser um
ato de coito astral. O livro — uma tradução em prosa do poema de 2 mil anos de idade de
Lucrécio, Da natureza* (De rerum natura) — estava em promoção por dez centavos, e eu
comprei, confesso, atraído na mesma medida pela capa e pelo relato clássico do universo
material. Física antiga não é um tema muito promissor como leitura de férias, mas em
algum momento do verão peguei o livro como quem não quer nada e comecei a ler.
Imediatamente encontrei amplas justificativas para a capa erótica. Lucrécio começa com
um ardente hino a Vênus, a deusa do amor, cuja chegada, na primavera, afastou as
nuvens, inundou o céu de luz, e encheu o mundo todo de um desejo sexual alucinado:
Primeiro, te celebram e à tua vinda, ó deusa, as aves do ar, pela tua força abalas no mais
íntimo do peito; depois, os animais bravios e os rebanhos saltam pelos ledos pastos e
atravessam a nado as rápidas correntes: todos, possessos do teu encanto e desejo, te
seguem, aonde tu os queiras levar. Finalmente, pelos mares e pelos montes e pelos rios
impetuosos, e pelos frondosos lares das aves, e pelos campos virentes, a todos incutindo
no peito o brando amor, tu consegues que desejem propagar-se no tempo, por meio da
geração. Chocado com a intensidade da abertura, eu prossegui, passando por uma visão
de Marte adormecido no colo de Vênus — “vencido pela eterna ferida do amor, e,
erguendo os olhos para ti, inclinando para trás a nuca roliça”; uma oração pela paz; um
tributo à sabedoria do filósofo Epicuro; e uma firme condenação dos temores gerados
pela superstição. Quando cheguei ao começo de uma extensa exposição dos princípios
primeiros da filosofia, tinha toda a certeza de que iria perder o interesse: não estava lendo
aquele livro por obrigação, meu único objetivo era o prazer, e eu já tinha conseguido bem
mais do que valiam os meus dez centavos. Mas, para minha surpresa, continuei a achar o
livro empolgante.

[...]

Eu fiquei espantado — e continuo espantado — com o fato de essas percepções estarem


plenamente articuladas numa obra escrita há mais de 2 mil anos. A linha entre essa obra
e a modernidade não é direta: nada é tão simples assim. Houve inumeráveis
esquecimentos, desaparecimentos, recuperações, rejeições, distorções, desafios,
transformações e novos esquecimentos. E no entanto a conexão principal está lá.
Escondido atrás de uma visão de mundo que eu reconheço como minha está um poema
antigo, um poema que um dia foi perdido, de maneira aparentemente irrecuperável, e
depois encontrado. Não é de se surpreender que a tradição filosófica de que deriva o
poema de Lucrécio, tão incompatível com o culto dos deuses e o culto do estado, tenha
dado a alguns, mesmo na tolerante cultura do Mediterrâneo clássico, a impressão de ser
algo escandaloso. Os seguidores dessa tradição por vezes foram rejeitados como loucos,
ou ímpios, ou simplesmente imbecis. E, com a ascensão do cristianismo, seus textos
foram atacados, ridicularizados, queimados, ou — algo ainda mais devastador — ignorados
e esquecidos. O que mais impressiona é que uma única articulação de toda essa filosofia
— o poema cujo redescobrimento é o tema deste livro — tenha sobrevivido. Descontados
casos isolados e relatos de segunda mão, tudo o que havia sobrado de toda aquela rica
tradição estava contido numa única obra. Um incêndio qualquer, um ato de vandalismo,
uma decisão de apagar de vez o último vestígio de pontos de vista considerados heréticos,
e o curso da modernidade teria sido diferente. De todas as obras-primas da Antiguidade,
este poema é um que certamente deveria ter desaparecido, de forma definitiva e
irrevogável, em companhia das obras perdidas que o inspiraram. O fato de ele não ter
desaparecido, de ter reemergido depois de muitos séculos e começado de novo a
propagar suas teses profundamente subversivas, é algo que poderíamos nos ver tentados a
chamar de milagre. Mas o autor do poema em questão não acreditava em milagres. Ele
achava que nada podia violar as leis da natureza. Propunha em vez disso o que chamava
de uma “virada” — o termo latino mais usado por Lucrécio para isso era clinamen —, um
movimento inesperado e imprevisível da matéria. O ressurgimento de seu poema foi uma
dessas viradas, um desvio imprevisto da trajetória direta — neste caso, rumo ao olvido —
que aquele poema e sua filosofia pareciam seguir.

[...]

Alguma coisa aconteceu no Renascimento, algo que se rebelou contra as barreiras que os
séculos haviam erguido em torno da curiosidade, do desejo, da individualidade, da
atenção ao mundo material, aos desejos do corpo.

[...]

Não há somente uma explicação para o surgimento do Renascimento e a liberação das


forças que deram forma a nosso mundo. Mas eu tentei neste livro contar uma história
pouco conhecida, porém típica do Renascimento, a história da recuperação de Da
natureza por Poggio Bracciolini. A recuperação tem a virtude de não desmentir o termo
que usamos para nos referirmos à mudança cultural que está nas origens da vida e do
pensamento modernos: um renascimento da Antiguidade. Um poema, sozinho,
certamente não foi responsável por toda uma transformação intelectual, moral e social —
nenhuma obra foi, muito menos um livro do qual por séculos nem se podia falar
abertamente em público. Mas este livro antigo em particular, ao repentinamente voltar à
cena, fez diferença. Trata-se, então, de uma história de como o mundo deu uma virada
para uma nova direção. O agente da mudança não foi uma revolução, um exército
implacável diante dos portões, ou a descoberta inesperada de um continente
desconhecido. Para eventos dessa magnitude, os historiadores e os artistas deram imagens
memoráveis à humanidade: a Queda da Bastilha, o Saque de Roma, ou o momento em
que os marujos esfarrapados das naus espanholas cravaram sua bandeira no Novo
Mundo. Esses emblemas da mudança sócio histórica podem ser enganadores — a
Bastilha quase não tinha prisioneiros; o exército de Alarico se retirou rapidamente da
capital do império; e, nas Américas, a ação verdadeiramente definitiva não foi o
desfraldar da bandeira, mas a primeira vez em que um marujo espanhol doente e
contagioso, cercado por nativos espantados, espirrou ou tossiu. Ainda assim, podemos
nesses casos pelo menos nos agarrar ao símbolo visível. Mas a mudança gigantesca de que
trata este livro — embora tenha afetado a vida de todos nós — não é tão facilmente
associada a uma imagem dramática. Quando ocorreu, há quase seiscentos anos, o
momento-chave veio em surdina e quase invisível, recolhido entre quatro paredes num
local afastado. Não houve gestos heroicos, nenhum observador atentamente registrando o
grande evento para a posteridade, nenhum sinal nos céus ou na terra de que algo havia
mudado para sempre. Um homenzinho baixo, afável, alerta e arguto que nem tinha
chegado aos quarenta anos um dia estendeu o braço, pegou um manuscrito antiquíssimo
de uma prateleira da biblioteca, viu com empolgação o que tinha descoberto e mandou
que fosse copiado. Só isso; mas nos basta. O homem que encontrou o manuscrito não
poderia, claro, ter antevisto plenamente as consequências de sua ideia ou previsto sua
influência, que levou séculos para se desdobrar. Na verdade, se tivesse uma noção das
forças que estava liberando, ele poderia ter pensado duas vezes antes de sacar uma obra
tão explosiva das trevas em que dormia. A obra que o homem tinha nas mãos havia sido
laboriosamente copiada à mão por séculos, mas por muito tempo tinha ficado sem
circular e talvez sem ser compreendida até pelas almas solitárias que a copiavam. Por
muitas gerações, ninguém sequer falava dela. Entre os séculos IV e IX, ela foi citada de
passagem em listas de exemplos gramaticais e lexicográficos, ou seja, como uma fonte de
usos corretos da língua latina. No século VII, Isidoro de Sevilha, ao compilar uma vasta
enciclopédia, usou o texto como referência sobre meteorologia. Ele ressurgiu mais uma
vez, e brevemente, no tempo de Carlos Magno, quando houve uma crucial febre por
livros antigos e um erudito monge irlandês chamado Dungal cuidadosamente corrigiu
uma cópia. Mas, sem ser debatido ou transmitido, depois de cada uma dessas aparições
transitórias o livro parece ter afundado de novo sob as ondas. Foi quando, depois de ficar
adormecido e esquecido por mais de mil anos, ele voltou a circular. A pessoa responsável
por esse impactante retorno, Poggio Bracciolini, era um ávido missivista. 3 Ele escreveu
um relato do evento para um amigo em sua Itália natal, mas a carta se perdeu. Ainda
assim é possível, com base em outras cartas, tanto suas como de seu círculo de relações,
reconstruir como tudo aconteceu. Pois embora esse manuscrito em particular acabasse
sendo, de nossa perspectiva, seu maior achado, de maneira alguma ele foi o único, e não
foi um acidente. Poggio Bracciolini era um caçador de livros, talvez o maior deles numa
era obcecada pela ideia de desencavar e recuperar a herança do mundo antigo. A
descoberta de um livro normalmente não configura um evento empolgante, mas por trás
daquele momento estavam a detenção e o aprisionamento de um papa, hereges
queimados e uma grande explosão cultural de interesse pela Antiguidade pagã. O ato da
descoberta foi o ápice da paixão de toda uma vida de um brilhante caçador de livros. E
aquele caçador de livros, sem jamais ter pretendido fazê-lo, ajudou a dar à luz a
modernidade.

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