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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE

JANEIRO
CENTRO DE LETRAS E ARTES
FACULDADE DE ARQUITECTURA E
URBANISMO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
URBANISMO

A CIDADE PELAS
BORDAS: Margem e
Reconfiguração Urbana
Tese de Doutorado em Urbanismo Tese de

Autor Mauricio Javier Sierra Morales Autor

Orientadora Denise Barcellos Pinheiro Machado

1ƧR1OƧO1ƧR1OƧO1ƧR1OƧO1ƧR1OƧO1ƧR1O
ib

Ficha catalográfica

Morales, Mauricio-Javier Sierra,


A cidade pelas bordas: margem e reconfiguração urbana/
M828 Mauricio Javier Sierra Morales. – Rio de Janeiro: UFRJ/FAU, 2012.
XVII, 403p. il.; 30 cm.

Orientador: Denise Barcellos Pinheiro Machado.


Tese (Doutorado) – UFRJ/PROURB/Programa de Pós-Graduação em Urbanismo, 2012.
Referências bibliográficas: p. 372-394.

1. Planejamento urbano – Aspectos sociais. 2. Poder. 3.


Consciência. I. Machado, Denise Barcellos Pinheiro. II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo, Programa de Pós-Graduação em
Urbanismo. III. Título.

CDD 711.13
ii

Folha de Aprovação
A CIDADE PELAS BORDAS: Margem e Reconfiguração Urbana.
Mauricio Javier Sierra Morales.
Tese de doutoramento apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Urbanismo / PROURB
da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo / FAU da Universidade Federal do Rio de Janeiro /
UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção de Grau de Doutor em Urbanismo.
Defendida e aprovada em 30 de Março de 2012 por:

Orientadora:

Professora Doutora Denise B. Pinheiro Machado


PROURB / FAU / UFRJ
Banca:

João Farias Rovati


FAU/UFRGS
Banca:

Maria Paula Albernaz


FAU/UFRJ
Banca:

Lucia Maria S. A. Costa


PROURB/UFRJ
Banca:
_____________________________________
Rosangela Lunardelli Cavallazzi
PROURB/UFRJ
iii

Dedicatória
[…] dedico este trabalho a meus filhos Juan Camilo, Alejandro e Rodrigo.
iv

AGRADECIMENTOS

Agradeço muito a vocês que, em sua pressa por me corrigir, me fortaleceram. Por
inúteis que resultem seus esforços, aqueles que foram comovidos por experiências
extraordinárias semelhantes a ser/estar desde/na/à borda se veem forçados, como
eu, a procurar descrevê-las em uma linguagem espaçotemporal. Assim, aqueles
que conseguirem viver esta experiência comigo podem dizer que sentiram “algo”
que era elevado ou profundo, como uma borda ou abismo, um país estranho, uma
fronteira, uma terra de ninguém. Para quem se mantiver nesta vibração, o tempo
pode parecer que avança mais rápido ou mais devagar, suas ideias e suas
descobertas serão percebidas como lembranças simultaneamente estranhas e
familiares. Para aqueles e aquelas, advirto-lhes que sua perspectiva da vida pode
mudar subitamente, e, ainda que seja por um momento, vão sentir que superaram
antigas contradições e toda a confusão terminará.

MaJaSiMo: quinta-feira, 14 de março de 2013


v

Epígrafe
«Vaidade das vaidades, tudo é vaidade»
Livro do Pregador, Testamento, (o Velho).

“Se é que o [urbanista] quer realizar um trabalho cientificamente consistente, seu


objetivo final não é representar a voz dos silenciados, mas entender e nomear os
lugares nos quais suas demandas ou sua vida cotidiana entram em conflito com os
outros. [...] Para situar quem fala e de onde o faz, volta a ser necessário explicitar o
lugar geopolítico e geocultural da emancipação. [...] no momento da justificação
epistemológica, convém deslocar-se entre as interseções, nas zonas em que as
narrativas opõem-se e cruzam-se. Só nestes cenários de tensão, encontro e conflito
é possível passar das narrações setoriais (ou francamente sectárias) à elaboração
de conhecimentos capazes de demonstrar e controlar os condicionamentos de cada
enunciação.”

Néstor García-Canclini, Sujeitos periféricos, Em: Diferentes, Desiguais e Desconectados, Rio de


Janeiro, 2009, pp. 206, 207. (O grifo entre aspas é meu).
vi

RESUMO

MORALES, Mauricio-Javier Sierra. A CIDADE PELAS BORDAS: Margem e


Reconfiguração Urbana. Tese de doutorado em Urbanismo. Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Centro de Artes e Letras, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo,
Programa de Pós-graduação em Urbanismo. Rio de Janeiro, 2012.
Temos que nos libertar da armadilha racional do pensamento ocidental que separa
as coisas e coloca limite em tudo. Caso contrário, vamos assistir ao fim iminente do
tempo e do espaço. Sendo mais claro: se não mudarmos nossa maneira de pensar,
vamos favorecer nosso próprio apocalipse (autodestruição), no planeta terra (mais
uma vez) i. A necessária reconfiguração urbana contemporânea consiste numa
tomada de consciência, simultânea (individual, coletiva, cósmica, quântica), de
eventos simultaneamente (condicionados e situados), a qual pode ser alcançada
através de um projeto de borda à borda; tal projeto visto como um processo (ao
mesmo tempo individual, coletivo, cósmico, quântico) que concomitantemente
transforma tais eventos (da borda à borda). O processo evolutivo do verdadeiro
urbanismo, que possibilita a desejada transformação multicultural das diferenças na
transformação intercultural das desigualdades e destas últimas à transformação
transcultural das desconexões (culturais, sociais, políticas), pede-nos
responsabilidade para com o objeto, racionalidade no método e inteligência no trato
da problemática que conhecemos, investigamos e julgamos como as
desnecessárias e indesejadas segregações, fragmentações e violências (culturais,
sociais e políticas) formalizadas e regulamentadas em uma Arquitetura “porosa” ii e
em um urbanismo globalizado e contemporâneo. Somente assim, tem sentido
procurar modificar os eventos que equivocadamente consideramos como
“problemas”; entendendo que o ser humano é o verdadeiro evento a reconfigurar.
Não o falso humanismo e, portanto, tampouco o falso urbanismo iii.

Palavras chaves: Borda, Poder, Consciência.

i
Ver: 4.7._Anotações finais, p. 358.
ii
A porosidade em Arquitetura se refere ao termo pervasividade (pervasiveness), que significa
permeabilidade, penetração e invasividade como qualidades das interfaces nas bordas.
iii
Ver: 4.8._Conclusão Capítulo IV, p. 364.
vii

SUMMARY

The necessary reconfiguration urban contemporary, is to make


conscience simultaneously (individual, collective, cosmic, quantum) of simultaneous
events (conditions and situations), which is achieved through the emergence of a
design edge to edge; project understood as a process simultaneously (individual,
collective, cosmic, quantum), which simultaneously transforms events (from edge to
edge). The evolutionary process that allows the desired transformation
of multicultural differences, changes arise in inter-cultural inequalities, appear
in transcultural transformations of disconnections (cultural, social, political),
asks us, the responsibility to object to the reasonableness method, intelligence
with the problems that we know, investigate and judge as unnecessary and
unwanted: segregation, fragmentation and violence (cultural, social and
political); reality formalized and standardized in a "porous architecture" iv, and in
a globalized and contemporary urbanism.

iv
Pore Architecture: The term porosity of the architecture to refer pervasidade (pervasiveness), which
means permeability, penetration and invasiveness as qualities of the interfaces at the edges.
viii

PREFÁCIO

Através de uma “deriva programada”, a presente tese, que opera como um


instrumento projetual e atua como narração, pretende ser um caminho inédito,
enquanto processo de individuação, que nos levará a uma tomada de consciência
(você como ator e eu como autor deste processo).

Esta consciência consiste em ver os problemas (a parte negativa dos


conflitos) como eventos a transformar. Especificamente, falamos da problemática da
reconfiguração urbana sob condições de borda e em situações à borda.

Inclusive, a ideia convencional (problemática) de borda está em questão. O


importante é superar (no diálogo intercultural e intersubjetivo entre nossas culturas,
entre nossas disciplinas de estudo) o desencantamento do mundo; produto da ação
de nossa civilização ocidental.

Alcançado o anterior – a mudança de atitude frente à realidade urbana


contemporânea – o resultado mais importante desta tese será o reconhecimento de
que, apesar de não solucionar os problemas (até porque poderiam ser falsos
problemas), ao menos podemos “tomar a cidade pelas bordas”, em sentido literal,
reconfigurar urbanamente a realidade desde/na/à borda.

Como urbanistas conscientes seremos, então, sujeitos da borda e estaremos


à borda dos acontecimentos contemporâneos. Tal consciência da realidade (neste
caso, da realidade da borda à borda) é semelhante (mas não idêntica) ao
entendimento que emerge do processo de autorregulação de todo ser vivente, que
foi deliberadamente ignorado (para ser controlado) e colocado à margem do
processo histórico de configuração das estruturas de poder que sustentam o
sistema-mundo.

A possibilidade de escapar da cadeia do intelecto que nos obriga a


discriminar, separar e julgar as coisas vai nos permitir também desconstruir a ideia
de limite e, de passagem, entender que a ideia de Deus como realidade última
assemelha-se muito ao conceito de borda como limite da realidade conhecida,
conhecível e por conhecer.
ix

No caso desta tese, o caminho escolhido para desconstruir a realidade das


bordas foi o da discussão entre as disciplinas que, juntas ou separadamente,
chamamos urbanismo. O primeiro desta série de debates corresponde ao nível
básico de consciência no qual reconhecemos nosso objeto de estudo: a cidade e,
neste caso, as bordas da cidade.

Nosso segundo debate se dá entre as disciplinas afins ao urbanismo; mais


especificamente, aquelas que poderiam suscitar a discussão em torno do objeto, até
chegar a diferentes métodos de gerar e transferir conhecimentos (alguns
complementares, outros nem tanto); mas, sempre, buscando uma discussão
coerente ao redor de uma pretendida reconfiguração urbana manifestada nas
interfaces urbanas e interstícios arquitetônicos, onde as estruturas de poder (tanto
as convencionais como as emergentes) lutam pelo domínio do espaço reconhecido
como território.

Finalmente, um terceiro debate acontece mais além do estudo do devir


urbano. É aí onde, obrigatoriamente, viveríamos uma realidade de “borda à borda” e
nos tornaríamos parte do processo de reconfiguração dos espaços de poder. Mas
falaríamos de um poder heterárquico, com autoridade partilhada, exercido sobre
uma “nova” realidade na qual a novidade consistiria em que as pessoas que vivem
nessas regiões de interface deixassem de se ver a si mesmas como marginais e
conseguissem (junto conosco) perceber sua condição e situação de borda /à borda
como oportunidades, potencialidades, eventos modificáveis.

Advertimos que estes níveis (embora complementares) não são totalmente


transitáveis apenas pela leitura deste escrito. Entre outras coisas, porque não é sua
finalidade dar conta de um processo vivido pelo autor como experiência
transconsciente (que transcende conscientemente). Trata-se, melhor, de um convite
a percorrer os caminhos propostos em busca de uma tomada de consciência que
opere de maneira simultânea, individual e coletivamente, e que o leitor como ator
possa assumir voluntariamente, seja ele especialista ou não, urbanista ou não.

A quem escolha o caminho intelectual para explicar a tese da borda ao nível de


objeto de estudo, recomendo que se prepare para enfrentar um conflito lógico entre
x

a força da razão (o que deveria ser o devir urbano nas bordas) e a força da
realidade (o que verdadeiramente acontece). Neste sentido, é suficiente a leitura
deste texto.

Áquele que tenha uma visão mais “política” do assunto das bordas, pode lhe
interessar mais um debate em torno do conflito de interesses que necessariamente
surge a favor ou contra a maneira (gestão) e a forma (física) como os fenômenos
estão sendo representados, associados a políticas segregacionistas e à
fragmentação urbana na cidade latino-americana contemporânea.

Quem escolha este segundo caminho, provavelmente vai querer realmente


compreender mais profundamente o fenômeno da borda; o que está acontecendo e
como o evento está se modificando. Nesse sentido, talvez fosse melhor falar com o
autor além de lê-lo. Especialmente, porque o seu projeto de vida (atual ou futuro)
poderia estar relacionado (ainda que ele não tenha consciência disso).

Mas existem aqueles com vontade de agir na realidade da borda, querendo


(além de explicá-la e entendê-la) também transformá-la. Ocorre, quando o leitor se
sente afetado sensivelmente pelo texto e estabelece um conflito afetivo com o
mesmo: seja detestando-o, seja adorando-o e queira realmente se comprometer
com a tomada de consciência proposta, para além do simplesmente conhecido e
sentido.

Vou pedir a este leitor, humildemente, que deixe indicações no final do anexo
da tese, incluindo possibilidades reais de contato, para além das referências
bibliográficas, como ator dos processos mencionados, também buscando validar a
experiência de ser/estar desde/em/à borda.

Mais além de utilizar procedimentos da percepção psicológica do espaço, que vão


nos permitir fugir mentalmente da especulação sobre o mesmo, são bem vindas as
ferramentas metodológicas que sirvam para entender os limites aparentes da
realidade, enquanto fenômenos manifestados no espaço urbano contemporâneo,
como limiares (Cap. II, 2.1 Introdução do Capítulo II).
xi

Portanto, o tema da presente pesquisa não é o poder, nem a cidade, mas o sujeito,
neste caso, o sujeito de borda/à borda. Se nos parece que estamos envolvidos
demasiadamente nestes temas (poder, urbanismo, bordas) é porque, como sujeitos,
nós mantemos relações de todo tipo no âmbito de tais categorias conceptuais.
xii

APRESENTAÇÃO

A necessária reconfiguração urbana contemporânea requer um mapa mental do


"sitio" que testemunhe que eu → você está ← estou aqui; quer dizer, na consciência
das bordas que fazem parte da cidade, do eu como cidade e de você como eu. A
resposta à pergunta de quais são os eventos modificáveis depende do nível
alcançado na tomada de consciência (individual e coletiva, quântica e cósmica);
consciência de ser (e de estar), consciência desde (em), consciência da borda,
consciência à borda. Tudo isso, por sua vez, depende do nível alcançado no
percurso que vamos percorrer: seja ele racional (mental), afetivo (sentimental), ou
mesmo prático (mente-factus).

Os conceitos do problema correspondem ao primeiro nível (1), que nos pede


responsabilidade para com o objeto de estudo e cujo resultado é o poder individual,
guiado pelo senso comum. A trajetória do percurso tem origem em uma situação
aborrecida, cuja descoberta é a seguinte: Isto não é real e o mundo real está em
outro lugar. Começa com as bordas da cidade, que levam a cidade à borda e daí da
borda à borda a fim de alcançar as redes (o tecido a partir da borda).

Os problemas do conceito constituem o segundo nível (2), que exige racionabilidade


no método de estudo e que tem como consequência da teoria: o poder interativo. O
percurso, que parte de uma situação aborrecida até outra situação interessante, tem
a sua descoberta: que é real não importa; o que importa é como vivemos as nossas
vidas. As preocupações são: primeiro como voltar ao início (inacabado) da
racionalidade estética e expressiva da modernidade e segundo, como conseguir a
reconfiguração do fenômeno urbano: a reconfiguração desde as interfases do
tempo; a reconfiguração das interfaces do espaço; e a reconfiguração dos
interstícios na arquitetura. Até chegar a uma categorização dos espaços interfaciais
no urbano, e dos intersticiais no arquitetônico. Mesmo em termos do Projeto
contemporâneo emergente.

Os problemas do problema correspondem ao terceiro nível (3), que requer


inteligência no trato com a problemática de estudo. O ganho aqui é obter poder
alternativo, se orientar pela metodologia de estudo. Este percurso tem início numa
xiii

situação interessante, na qual as possibilidades são praticamente infinitas. A


antítese dos problemas da borda nós podemos obtê-la através de uma
abordagem multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar.

Temos ainda um quarto nível (4): onde finalmente nos obrigamos a fazer uma
síntese dos conceitos do conceito: do conceito da borda, do nosso próprio percurso
(ou do seu), a cuja realização você precisa ficar atento. Você mesmo é o sujeito de
estudo, aquele que precisa do poder (mesmo que já o tenha). Poder em si mesmo,
dirigido para si mesmo.
xiv

SUMÁRIO

Folha de rosto i-a


Ficha catalográfica i-b
Folha de Aprovação ii
Dedicatória iii
AGRADECIMENTOS iv
Epígrafe v
RESUMO vi
PREFÁCIO viii
APRESENTAÇÃO xii
SUMÁRIO xiv
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS xvi
LISTA DE FIGURAS xvii
LISTA DE QUADROS xvii
INTRODUÇÃO GERAL 1
GRÁFICO ÚNICO: Mind Map do Site (Você Está Aqui) 24
Capítulo I –ENTENDENDO AS BORDAS
1.1._ Introdução Capítulo I. 25
1.2._Eles no Topo e Aqueles Abaixo. 30
1.3._ Os de Dentro e os de Fora. 59
1.4._Aqueles da Borda. 68
1.5._Borda da Cidade – Cidade da Borda. 81
1.6._Borda à Borda. 89
1.7._Tecido de Borda. 109
1.8._Conclusão Capítulo I. 142
Capítulo II–CIDADE E URBANISMO A PARTIR DA BORDA À
BORDA
2.1._Introdução Capítulo II. 146
2.2._Cidade Contemporânea e Borda. 148
2.3._Urbanismo Como uma Disciplina. 163
2.4._Abordagem Multidisciplinar e Borda. 173
2.5._Abordagem Interdisciplinar e Borda. 176
xv

2.6._Abordagem Transdisciplinar e Borda. 178


2.7._O Urbanista Contemporâneo. 188
2.8._Conclusão Capítulo II. 198
Capítulo III–PROBLEMATIZAÇÃO DA BORDA
3.1._Introdução Capítulo III. 202
3.2._Bordas, Redes e Reconfiguração Urbana. 206
3.3._Buscando Alternativas na Contemporaneidade Latino- 224
americana.
3.4._Limites Aparentes na Segregação Contemporânea. 249
3.5._Topofilia na Fobópole Contemporânea. 265
3.6._Novo Ponto de Partida: Ressignificando o (Inacabado) 281
Princípio da Racionalidade Estética - Expressiva da Modernidade
(sem Colonialidade).
3.7._Conclusão Capítulo III. 301
Capítulo IV–PROJETO DE BORDA
4.1._Introdução Capítulo IV. 304
4.2._Categoria e Projeto. 305
4.3._Categorias Urbanas e Borda. 310
4.4._Categorias de Arquitetura e Borda. 316
4.5._Categorias de Projeto de Borda. 320
4.6._Limiares de Representação em Arquitetura e Urbanismo 331
Contemporâneos.
4.7._Anotações Finais. 358
4.8._Conclusão Capítulo IV. 364

EPÍLOGO 366
POSFÁCIO: Vou me tornar o que eu quero. 371

REFERÊNCIAS
Literatura citada. 372
Referências adicionais. 382
Experiências e processos. 394
ÍNDICE DE AUTORES 395
ÍNDICE ALTERNATIVO 402
ANEXO ÚNICO 403
xvi

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ANPUR Associação Nacional de Planejadores Urbanorregionais


ARPANET Advanced Research Projects Agency Network
CIDER Centro Interdisciplinar de Estudos Regionais
CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico
CONAMA Congresso Nacional de Meio Ambiente
COPNIA Conselho Nacional Profissional de Engenharia e Arquitetura
EUA Estados Unidos da América
EUROREG Centre for European Regional and Local Studies - UW
FAA - UPC Facultad de Arquitectura y Artes – Corporación Universidad
Piloto de Colombia
FAU-UGC Facultad Arquitectura y Urbanismo – Universidad Gran Colombia
FLACAM Foro Latino Americano de Ciências Ambientais
IAP Investigação-Ação-Participação
ICOMOS International Council on Monuments and Sites
IGM Índice de Governança Mundial
LGBT Lésbicas Gays Bissexuais Transsexuais
MIBI Movimento Internazionale per una Bauhaus Immaginista
ONU Organização das Nações Unidas
ORSTOM Office de la Recherche Scientifique et Technique d'Outre-Mer
PPP Política Pública Participativa
PROURB- Programa de Pós-Graduação em Urbanismo da Faculdade de Arquitetura e
UFRJ Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro
RAND Research and Development
SCA Sociedade Colombiana de Arquitetos
SCT - UNLP Secretaria de Ciencia y Tecnología – Universidad Nacional de
la Plata
UNASUR Unión de Naciones Suramericanas
UNESCO United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization
UNHABITAT United Nations Human Settlements Program
UNDESA United Nations Department of Economic and Social Affairs
WWW World Wide Web
YHVH io, ei, au, ei
xvii

LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Centralizada, descentralizada e distribuída. 95

Figura 2: Partindo de uma situação aborrecida. 145

Figura 3: Em uma situação aborrecida para outra situação 201


interessante.
Figura 4: Partindo de uma situação interessante. 303

LISTA DE QUADROS

Quadro 1: Quadro Único: Conceito(s) da Borda(s) 90


1

INTRODUÇÃO GERAL

Os propósitos que orientam esta pesquisa científica são de cunho


«humanista», embora a pretensão do autor vá além do legado racionalista e
do pensamento liberal do humanismo «clássico».

Compreender nosso mundo em termos naturais, para além dos


«sobrenaturais», já é um ganho. Mas também desnaturalizar a realidade,
isto já é uma opção de vida: considerar o estudo das bordas como eventos -
simultaneamente meus, teus, infinitamente grandes e infinitamente
pequenos, que podem se modificar de maneira consciente.

Três são os principais eventos que é preciso ter em mente para


alcançar o anterior: a impossibilidade de apreender a realidade em uma
totalidade epistêmica tipo objeto/ sujeito de estudo, o caráter múltiplo e
diverso do metamétodo de estudo, e a complexidade que se acrescenta,
advinda da tradução de nossas línguas herdadas das colônias portuguesa e
espanhola.

Faz-se necessário, então, além de abandonar os juízos de valor


tradicionais aplicados a palavras como «complexidade», «dissipação»,
«coerência», «instabilidade» e «equilíbrio», estabelecer uma diferenciação
semântica entre culturas diferentes, evitando os «falsos amigos» que
podem nos fazer confundir «vida» como «morte».

A cidade atual vista «desde» e «em» suas bordas é um objeto que


não pode ser considerado sem a presença ativa do sujeito, do urbanista
como instrumento gerador de condições-situações de câmbios. Neste
sentido, não se trata de uma construção teórica convencional, nem
facilmente reconhecível já que, por sua natureza ambígua (artificial/natural),
estamos investigando algo ao mesmo tempo imanente e transcendente: a
cultura entendida como um campo relacional entre objeto e sujeito.
2

A pretendida novidade ou «originalidade» desta pesquisa não se


encontra então no evidente (o físico), e vai além dos conceitos, cujo
significado lógico ficará sempre preso à racionalidade dominante. A utilidade
dos seus resultados vai consistir na maneira como consigamos traduzir
elementos de nossas realidades latino-americanas (separadas geográfica e
ideologicamente, mas claramente identificáveis na forma), alcançando um
nível cosmopolita de compreensão, no qual as bordas que separam as ditas
realidades já não sejam mais necessárias e que sejamos capazes de dar
respostas realmente «modernas» aos desafios que a modernidade
colonialista nunca foi capaz de oferecer.

Quer dizer, as bordas não vão deixar de existir como tais, mas não
vamos mais precisar delas e a verdadeira importância desta tradução vai
além de atingir o nosso objetivo. Está na tradução mesma.

É o que realmente importa e que implica a consideração de várias


óticas para lograr o pretendido: ganhar o nível de consciência no âmbito da
tradução que vai nos possibilitar a leitura desta tese.

Para tanto, não basta seguir um caminho intelectual que nos libere da
razão ocidental (dominante a nível mundial). Faz-se necessário percorrer
outro caminho, mais «ideológico», que vise uma emancipação política das
ideias próprias que sustentam qualquer hipótese, e também um terceiro
caminho, no âmbito do emocional, que desperte um desejo de
inconformidade, uma rebeldia acadêmica capaz de influenciar o urbanista
atual.

Temos de reconhecer que, enquanto «urbanistas», não temos sido


capazes de propor suficientes linhas de atuação, suficientes experiências
concretas para modificar os eventos problemáticos. Diante disso, cabe
anunciar a emergência de uma nova ciência consciente, de caráter
transdisciplinar, que integre a filosofia com a psicologia, a religião com a
3

ciência, o direito com o urbanismo, a planificação regional com a urbana. E,


assim, estaremos indo além das análises lógicas que formatam o
comportamento humano.

Entre o conceito de cidade e a ideia de civilização, existe uma


relação semelhante aquela entre a forma urbana e o comportamento
cidadão. Esta relação é mediada por estruturas simbólicas de domínio
(poder simbólico, poder disciplinar) que são materializadas fisicamente na
cidade, que convencionalmente chamamos «cidade educadora».

A escolha do tema da tese proposto surgiu de um processo de


construção de uma linha de investigação baseada em categorias de
intervenção possíveis através do projeto urbano. Chega um momento na
vida de todo pesquisador que ele encontra um tema que o apaixona de tal
modo, a ponto de levá-lo a dedicar-se ao seu total entendimento.

Desde a década dos anos 80 do século passado, vem se


configurando na FAA - UPC o tema das bordas como categoria física de
intervenção no fenômeno urbano, muito ligado a critérios de planejamento e
ordenamento territorial sob um enfoque convencional, e que serviu de base
à tese de graduação em Arquitetura - Diseño de un Borde de Ciudad em
Manizales (Sierra-Morales, 1989).

O arquiteto Steven Holl (n. Bremerton, 1947), que tem uma definição
para o entendimento da borda bastante adequada para a década dos anos
90, descreve a borda da cidade como uma «região filosófica» rural-urbana
sem sentido nem expectativas, mas que é um convite ao desenvolvimento
de projetos e visões que definam uma nova fronteira entre o natural e o
artificial.

Quase simultaneamente, mas sem relação, ainda, com a definição de


Holl, a dissertação de mestrado em planejamento e administração do
desenvolvimento regional - El Borde Al Borde (Sierra-Morales, 1993) -
conseguiu (com as contribuições do grupo de pesquisa A Tertúlia, do Centro
4

Interdisciplinar de Desenvolvimento Regional (CIDER) da Universidade de


Los Andes, Bogotá/ Colômbia) transformar o foco multidisciplinar do
desenvolvimento regional num enfoque interdisciplinar que sustenta, desde
2009, o mestrado em Estudos Interdisciplinares do Desenvolvimento da
Universidade de Los Andes, na Colômbia.

Durante mais de duas décadas, conceitos como região fractal, campo


relacional, etc., que serviram de base ao estudo do fenômeno das bordas,
foram considerados novidades (para não dizer estranhezas), mas eles
careciam de um suporte epistemológico, nas chamadas ciências sociais,
que sustentasse um marco teórico sólido e coerente.

Esses conceitos foram entendidos primeiro nas chamadas ciências


naturais. Por exemplo, o que hoje, graças ao filósofo e sociólogo Edgar
Morin (n. Paris, 1921), nós entendemos como «teoria da complexidade»,
naquela época era entendida como «teoria do caos». Isto devido a um
interesse renovado pelos resultados das investigações do matemático e
meteorologista Edward Norton Lorenz (1917, West Hartford – 2008,
Cambridge) sobre modelos matemáticos conhecidos como «atratores
estranhos» e suas consequências, dependentes das condições iniciais
conhecidas como «efeito borboleta».

Mais um exemplo: a ideia de um não tempo / não espaço não podia


ser compreendida segundo a lógica matemática da flecha do tempo, que Sir
Arthur Stanley Eddington (1882, Kendal – 1994, Cambridge) denominou «a
natureza do mundo físico». Embora fosse interpretada e usada pelos
«cientistas sociais» que se empenhavam, então, em estabelecer uma
mudança de paradigma no pensamento ocidental dominante: desde as
supostas mudanças impostas pelo autoritarismo de Estado até a verdadeira
mudança que emana do consenso.

Nesta perspectiva, a contra-hegemonia, tal como a entendíamos


então, seria uma simples contratendência, incapaz de produzir uma
5

verdadeira crítica à heteronomia e tampouco resgatar uma autonomia que


nos colocasse ante uma heterotopia, durante a interfaz espaço-temporal de
transição entre paradigmas da sociedade do hipertexto, na qual, se supõe,
estamos imersos no momento.

A contra- hegemonia não se distingue da hegemonia somente porque


traz no nome a palavra «contra» e porque se opõe à estrutura de poder
dominante. A contra-hegemonia é muito mais heterogênea que a
hegemonia, oferece mais possibilidades de gerar autonomias distintas
sendo, portanto, mais complexa.

Ante o desafio de condições que na contemporaneidade


permanecem inalteradas (independente de favorecer a interesses seja de
uma «comunidade» ou de uma «classe») e cujo destino, no âmbito regional
latino-americano, é motivo de debate entre descolonialistas e/ou pós-
colonialistas, consideramos oportuno traçar um comparativo conceitual
entre os termos: hegemonia em Antonio Gramsci (Ales 1891- Roma 1937);
contra-hegemonia, do advogado Santos Boaventura de Sousa (n.Coimbra,
1940); e heteronomia, do cientista político Makram Haluani (n. 1952,
Caracas), com o objetivo de construir um projeto de anti-hegemonia
baseado na noção de antipoder, do licenciado em Línguas Modernas e
Direito John Holloway (n. 1947, Dublin).

Continua relevante perguntar-se sobre o comportamento da cidade


«atual», vista desde as suas bordas. Agora, mediante uma reflexão
profunda desde os territórios atuais, de como é exercido o poder, até as
bordas, convencionalmente entendidas como as «muitas periferias» que
surgem simultaneamente no urbano contemporâneo, de onde emergem os
conflitos mais agudos. Uma imagem da organização descentralizada do
território, que ainda está em processo de configuração.

Vamos perceber o anterior sempre que se buscar a emergência


provável de um campo relacional, cuja supradimensão analítica faça parte
6

de uma investigação sobre a cidade educadora, como no arquiteto


argentino Juan Carlos Pérgolis Valsecchi (2000). E aí estaremos indo além
do paradigma do conhecimento rumo a uma civilização baseada no
verdadeiro entendimento da consciência.

Por sua vez, o conceito de «cidade educadora» tem variado de


maneira substancial, de acordo com as mudanças produzidas desde a
cidade moderna até a contemporânea, suscitando debates através dos
quais surgiram os conceitos tanto de sujeito quanto de identidade. Tais
debates, próprios de uma modernidade tardia (que alguns chamam pós-
modernidade), tratam dos «modos de estar junto e dos novos valores e
formas de vínculo social mais seculares que coexistem conflitiva e
criativamente em nossas cidades latino-americanas.

A ideia de cidade educadora tem como objetivo principal reconstruir,


na contemporaneidade, uma pedagogia, uma educação da cidade, do
cidadão que propicie o reconhecimento, a língua comum dos diversos
sujeitos, cujos enfoques culturais e critérios de identidade variados são
reconhecidos como próprios da “civilização ocidental”.

A meta última da cidade educadora é a coexistência das distintas


maneiras de estar juntos no mundo. Um dos princípios inacabado e, por-
tanto ainda vigente, da modernidade colonizadora e o principal ponto de
partida do devir urbano atual no contexto de uma globalização hegemônica
que se alterna com outra contra-hegemônica.

Reconhece-se um poder sem dominação manifesto no espaço


organizacional e físico. Afetando positivamente tanto a natureza do poder
como as suas consequências em todo o “sistema-mundo”, a reconfiguração
dos espaços de poder, desde /e nas bordas, diz respeito mais a uma
tomada de consciência do que a uma tomada de poder no sentido
convencional.
7

A reconfiguração de espaços de poder é um processo que pode ser


observado na ação social de movimentos que procuram reinventar a
emancipação desde as interfaces e interstícios (supostamente marginais)
das cidades atuais, principalmente em comunidades cujos assentamentos
humanos são relativamente pequenos.

Este processo que acontece desde/ e nas bordas (entendidas como


fronteiras de interfaz espaço-temporais que também constituem partes dos
assentamentos urbanos contemporâneos) se produz entre os limites
jurídico-administrativos de países como a Colômbia, a Venezuela e o Brasil
e também nos arranjos urbanorregionais entre metrópoles e regiões
conurbadas, onde se concentram tanto a riqueza quanto um número
elevado de pobres, com altos déficits de qualidade de vida e enormes
carências.

O mesmo fenômeno que se produz no centro e nos limites desses


países e entre países ocorre nas bordas costeiras dos continentes, onde as
enormes urbes industrializadas funcionam como centros de intercâmbio
transnacional e transcontinental.

Sendo assim, as bordas estão em toda parte e, portanto, não existem


como tal (apenas em nossa imaginação racional dominante). Não seria
melhor pensar que existem outras formas de globalização (mesmo que
ainda não constituam uma alternativa), contrárias à tendência dominante da
globalização neoliberal capitalista?

Essas contratendências ao sistema de dominação em processo de


globalização, cujo rosto visível chama-se neoliberalismo e capitalismo,
nascem dos movimentos sociais e das organizações não governamentais
em países onde há pessoas que lutam contra todas as formas de exclusão,
discriminação e subordinação que tradicionalmente advêm das relações de
poder.
8

Esses movimentos, que ainda não são alternativos no sentido de que


sequer se organizam em uma “rede mundial” baseada em um enfoque
conectivista capaz de configurar uma globalização contra- hegemônica (o
primeiro passo para chegar – algum dia – a configurar verdadeiras regiões
heteronômicas de assentamentos humanos alternativos), atuam como
verdadeiras nebulosas re-formadoras que, ainda que ignoradas, existem e
surgem como movimentos sociais marginais em cidades de países também
considerados periféricos com relação aos eixos de domínio que estão por
se globalizar.

Entre as cidades que abrigam esses movimentos marginais que


podem vir, no futuro, a configurar autênticas regiões heteronômicas de
assentamentos humanos alternativos em rede está Bogotá que, desde finais
do século XX, tem um contexto físico que se insere nesse perfil classificado
pelos cientistas sociais como típico de uma cidade latino-americana
segregada e fragmentada. Interessa-nos enquanto pesquisa aliar ao estudo
da forma urbana o comportamento do cidadão médio, conforme descrito no
trabalho sobre espaço e cultura urbana realizado por Pérgolis e outros, em
1993.

Trata-se da Metrópole Fragmentada, do historiador urbano norte-


americano Robert M. Fogelson, e da Bogotá Fragmentada que, segundo
Pérgolis, nos levando às origens da civilização ocidental suscitam a questão
se existe ou poderia existir hoje em dia essa cidade civilizadora,
“educadora”, ou se, ao contrário, nunca existiu (e talvez jamais vá existir)
essa “boa forma” da cidade que assegure a convivência cidadã baseada em
valores humanos, como a descrevia o urbanista Kevin Andrew Lynch
(Chicago, 1918 – Massachussetts, 1984).

Há no imaginário coletivo uma “boa forma da cidade”, uma referência


simbólica a formas regulares, ortogonais, racionais, assim como a
conteúdos e continentes definidos, como aspectos favoráveis ao
9

comportamento humano, também regularizado e formalizado pelas normas


que regem o comportamento social.

O “bom” cidadão mora em uma “boa” cidade e aqueles que vivem em


assentamentos “subnormais” são igualmente pessoas “subnormais”, como é
o caso dos moradores das bordas que precisam, tanto eles quanto suas
habitações ser “reabilitados” ou “re-formados”.

Em geral, não se olha esta realidade sob a perspectiva histórica, que


mostra que a discriminação social, que separa os humanos, na cidade e
fora dela, só tem sido favorecida ao longo dos tempos, acompanhada de
pobreza e marginalidade política, que lhe são próprias. E a tendência,
mantidos os padrões da forma urbana, é sua expansão descontrolada, com
consequências gerais sobre o ambiente: algumas à maneira de eventos
negativos para se modificar.

Aceitar que existam boas e más formas de cidade é como reconhecer


que existam boas e más maneiras de comportamento do cidadão.

Como um espaço manifestado que contribui para regular a forma


urbana pode mudar os comportamentos da sociedade contemporânea?
Interessa-nos a possibilidade de gestão urbana na interface espacial
cidade-campo (rural) e nos interstícios intraurbanos; assim como flagrar os
conflitos de poder que surgem, quando se tenta regularizar os interesses de
aliados, opositores e indiferentes com relação a processos alternativos ao
desenvolvimento capitalista numa escala regional1, nas bordas.

Aqui a noção de conflitos de poder se remete tanto aos conflitos de


poder entre pessoas como aqueles conflitos entre entidades, que ocorrem
nos espaços de poder em que pessoas estão organizadas.

1
O desenvolvimento na escala regional: categoria de análise dos processos acontecidos
num campo de relações na escala regional.
10

Os conflitos pelo poder e do poder se dão em meio a relações de


dominação entre poderosos e marginais (sejam pessoas, organizações ou
entidades) e representam relações de aliança, antagonismo e indiferença
quanto a ações que satisfazem necessidades e desejos que, por sua vez,
respondem a interesses “difusos”. Falamos de processos complexos e
assimétricos quanto aos elementos que os constituem e em suas
configurações espaciais, com diferentes níveis de integração entre
conglomerados urbanorregionais.

Apesar das diferenças, desigualdades e desconexões internas entre


conglomerados, concordamos com a arquiteta Rosa Moura (n. São Roque,
1953), que as bordas fazem parte destes “arranjos” contemporâneos de
assentamentos humanos produzidos em resposta aos padrões culturais
responsáveis pela concentração e prevalência do modo de produção
capitalista.

A ideia de poder como liberdade (individual) que possibilita a


emancipação social é, talvez, a que mais nos interessa, que é distinta do
poder como sinônimo de arbitrariedade, que termina por levar ao
despotismo, e de sua acepção europeia, como sinônimo de anarquia. Ela
diz respeito ao poder emancipador (diferente também do sentido norte-
americano liberal radical que promulga uma absoluta liberdade dos
indivíduos frente ao Estado).

O que se configurou historicamente, pelo contrário, foi a noção de


poder como dominação, desde que Jean Jacques Rousseau (Genebra,
1712 – Ermenonville, 1778) introduziu o tema da passagem do homem da
condição natural à organização social, na sociedade ocidental. Em sentido
negativo, o poder supõe a existência de uma relação de dominação e é
“alguma coisa” que se exerce, estando, portanto, mais ligado à gestão
convencional e à intervenção não participativa subjacente à formulação
tecnocrática das políticas públicas de Estado.
11

Este poder se baseia e, por sua vez, fundamenta a ideia de


legalidade como probabilidade de imposição da vontade em uma “ação
comunitária” e disfarçada, na tradição hermenêutica, pela ideia de poder
soberano, de Maximilian Carl Emil Weber (Érfurt, 1864 – Munich, 1920).

Segundo a interpretação das sociólogas Maria Celia Duek (n.


Mendoza, 1972) e Graciela Inda (n. Mendoza, 1971), em Weber, a ação
comunitária corresponde a uma ação de classe como relação “contingente”,
que provavelmente emerge a partir de um sentimento de solidariedade entre
atores associados em estamentos com um modo de vida comum.

O poder soberano, por seu lado, é um poder que baseia e sustenta a


ideia de legitimidade da legalidade. Envolve o poder de alguém, que ostenta
soberanamente esse poder encarnando uma entidade e que conquista o
consentimento dos dominados através de um artifício simbólico. Neste
aspecto encontramos semelhanças e diferenças com a ideia de poder
soberano do filósofo Michel Foucault (Poitiers, 1926 – Paris, 1984).

A disciplina, diferentemente da soberania, não se pauta pela regra


jurídica, mas «natural», portanto, o seu código não é o da lei senão que o
da norma, e se caracteriza por criar aparatos de conhecimentos. Seu
horizonte teórico não é o do direito, mas o das ciências classificadas como
«humanas», e sua jurisprudência é a de um saber «clínico».

Segundo o filósofo Thomas Hobbes (Malmesbury, 1558 – Hardwick


Hall, 1679), a força do costume, que em um determinado momento se
transforma em lei, justifica o poder como capacidade de ação pelo fato de
ter a força para fazê-lo. É uma verdadeira obsessão pelo poder que ficou
como um “meme” em nossa maneira de entender a realidade, através do
pensamento moderno, desde a ideia republicana de liberdade até o mito
contemporâneo do domínio urbano e regional, desenvolvido pelo desenhista
urbano e regional Melvin M. Webber (Hartford, 1920 – Berkeley, 2006).
12

Hobbes, quem assentou as bases do contrato social moderno, de


fato, queria justificar ideologicamente a monarquia absoluta. Por sua parte,
o médico e filósofo John Locke (Wrington, 1632 – Essex, 1704), pai do
empirismo e do liberalismo moderno, desenvolveu as ideias de Hobbes em
seus tratados sobre o governo civil. O contrato social moderno reconhece
os direitos “naturais” do ser humano (vida, liberdade e propriedade),
inclusive, a liberdade de rebelião (no interior de um pacto social), dando
origem ao modelo moderno de democracia liberal, no qual os indivíduos
elegem seus governantes periodicamente e estes têm como missão garantir
a ordem social.

A obsessão pelo poder pode se transformar em um poder obsessivo


e até corrupto, se converter-se em desejo de dominação. Como exemplo
desta patologia das formas de comportamento, tipicamente “modernas”,
podemos citar o amor romântico, baseado na necessidade do outro para se
autocompletar e o consumismo exagerado de bens e serviços de capital.

Na verdade, qualquer tipo de relacionamento humano desequilibrado


pode levar a um transtorno obsessivo-compulsivo. O pior é quando isto
ocorre com pessoas que têm poder. Quem os tira daí? Resta como
pergunta, depois de estudadas as complexas e perigosas relações que se
estabelecem entre o poder, o Estado e a personalidade dos dirigentes,
desveladas sob a perspectiva da ciência política, em Haluani (1991).

Se o Estado será sempre corrupto e vai sempre estar em mãos


equivocadas, qual o objetivo de tomar esse poder distinto que é o poder em
si mesmo?

Neste trabalho, nosso foco é o poder como borda com potencialidade


de transformação dos conflitos, um poder “informal” não feito e ainda não
estabelecido, no sentido dinâmico da ideia da governança que justifica a
gestão participativa em âmbitos locais e reconhece uma relação desigual
13

que, de qualquer forma, precisa de “uma autoridade compartilhada para


autotransformar-se”, conforme Boaventura de Sousa (2001).

O poder de Estado está amparado em uma ética procedimental, uma


maneira legítima de fazer as coisas sob o império da lei, segundo as regras
do jogo (supostamente limpas) do sistema-mundo.

O poder visto como potencialidade expressa uma ideia de


competência através do tempo, que se evidencia no incremento do número
de indivíduos versus a quantidade e a qualidade de ações capazes de
satisfazer as suas necessidades vitais e, nesse sentido, se aproxima da
ideia de desempenho. Com relação à noção de potência (que vem do termo
latino posse), o poder se baseia mais na possibilidade do que nos atos,
quando se dá em relação a uma potência passiva; mas também pode ser
um poder em movimento, com relação a uma potência ativa e, nesse
sentido, se assemelha mais ao poder da ação ou a capacidade para
produzir um ato.

A amplitude desta potência determina a extensão do ato que um ente


pode gestar e, nesse sentido, o limita e predefine. Segundo o princípio de
causalidade, do filósofo Aristóteles (Estagira, 384 – Calcide, 322 a.C), só
Deus pode ostentar o dito poder potencial em sua forma “pura”, já que a sua
própria atividade preexiste Nele (Elohim) enquanto atividade.

O poder informal, por sua parte, é uma variedade do poder pessoal e


está relacionado em grande medida ao poder de alguém que se encarna em
uma entidade considerada “informal” porque não funciona hierarquicamente.
No entanto, esse status de informalidade não tira sua capacidade nem sua
potencialidade, uma vez que a sua força advém de uma organização de
pessoas, conhecida ou desconhecida, mas de qualquer maneira
reconhecida, mesmo que ilegal.

Existem dois tipos de espaços de poder informal: as relações de


domínio exercidas em um espaço fora das estruturas formais; e o domínio
14

oculto em meio à informalidade, como um poder in-forme, não manifesto,


mas possível e, nesse sentido, subversivo.

Estaremos no fim da democracia? Na Europa contemporânea, se


verifica a transformação do que conhecemos como democracia em termos
modernos e o Estado-nação vem sendo substituído por corporações
transnacionais desde as bordas do poder. Talvez, este seja o princípio do
fim.

Nesta perspectiva, estamos de acordo com algumas das colocações


do projeto EUROREG, liderado pelo cientista político Igor Filibi López (n.
Bilbao, 1971), do qual destacaremos as ideias que reconhecem a existência
da democracia participativa, os sistemas alternativos de produção, a
economia solidária, o multiculturalismo, os direitos coletivos, o pluralismo
jurídico, a cidadania cultural, os direitos de propriedade intelectual
ancestrais, a biodiversidade e a diversidade de pensamentos válidos no
mundo. Ideias estas resultantes de uma tomada de consciência radical.

O culturalismo é um ramo da antropologia que se desenvolveu nos


EUA, impulsionado principalmente pela antropóloga e filósofa Ruth Benedict
(Nova York, 1887 -1948), quem demonstrou que raça, linguagem e cultura
são independentes entre si, retirando, assim, a base conceitual das teorias
racistas e sexistas da época. Os culturalistas destacam a influência
preponderante da cultura na personalidade dos indivíduos.

A ideia mencionada anteriormente, entendida sob o termo “cidadania


cultural”, se alicerça em uma teoria de tipo liberal que fala dos direitos
multiculturais das minorias na cidade. A cidadania cultural tem a ver com
urbanismo cultural, mas não podemos afirmar que vem do culturalismo, uma
vez que, na cidade atual, os ditos padrões culturais estão ao lado de
estruturas físicas nas quais se percebem o domínio da racionalidade, da
funcionalidade, do avanço tecnológico, que lhes atribuem um valor
claramente progressista.
15

A este respeito podemos observar, nos modelos de urbanismo


propostos pela filósofa e crítica de arte Françoise Choay (n. Paris, 1925),
que a cidade responde a um modelo preestabelecido ou a uma regra
adotada convencionalmente. Concepção semelhante encontra-se em
Foucault, quando ele descreve o deslocamento do poder soberano ao poder
disciplinar e deste ao biopoder.

O poder soberano é uma forma «pré-moderna» do poder de origem divina;


Deus é quem outorga ao soberano o direito sobre as coisas, o tempo, os
corpos e finalmente à vida.

Para Foucault, o poder soberano detém a faculdade de dispor (até)


da vida dos súditos como capacidade e como potencialidade de alguém,
enquanto o poder disciplinar assenta-se nas relações de poder. Quer dizer,
um poder que não se concebe enquanto propriedade, nem sequer como
potência, senão como uma relação que pode e deve ser estudado somente
através dos termos em que opera.

O poder da disciplina, diferentemente do poder soberano,


recordemos, pauta-se na norma. Se a normatização cria aparatos de saber
e conhecimentos e seu marco disciplinar é o das denominadas ciências
humanas, é claro que este é o poder do urbanismo «moderno».

O biopoder é um termo utilizado para se referir à prática dos estados


modernos de “explorar numerosas e diversas técnicas para subjugar os
corpos e controlar a população”. Foucault introduziu esse conceito em A
vontade de saber, o primeiro volume de sua História da Sexualidade.
Giorgio Agamben (filósofo nascido em Roma, 1942), baseando-se neste
conceito criou a sua própria noção de biopolítica como a gestão (política) da
vida; a intervenção do poder na vida humana.
16

Nossa tese recua aos mecanismos disciplinares de dominação,


descritos por Foucault em sua fase genealógica (a genealogia do indivíduo
moderno, as análises interpretativas das ideias de poder, verdade e corpo),
buscando identificar um conteúdo específico, inominado, que não se
confunda com as conhecidas categorias de dominação disciplinar e que
redefina o biopoder como o poder da vida.

A genealogia do conceito de poder da vida como “vida nutritiva” e


como antecedente do conceito de vida vegetativa vem desde Aristóteles e
vai até os filósofos Gilles Deleuze (Paris, 1905 - 1992) e Félix Guattari
(Villeneuve-les-Sablons, 1930 - La Borde, 1992), com seu conceito de
imanência que inclui a noção de vida, e envolve o trabalho de Agamben,
quem assinalou como a filosofia e a política evoluem até fazer da vida o seu
tema e campo de estudo.

O poder da vida em termos contemporâneos é uma questão de amor


sem dependência, o que requer, antes de tudo, autoestima, autocontrole e
autorregulação. Quer dizer, poder sobre si mesmo (poder para si), que
potencializa o poder de si mesmo (poder em si).

O argumento central desta investigação, que procura a


reconfiguração urbana, desde/ e nas bordas, consiste em estudar a
possibilidade de identificar um conceito foucaultiano cujo conteúdo,
separado da ideia de repressão e de lei, constitua um poder emancipador,
produtivo e positivo.

O poder emancipador é o poder pessoal. Não é o poder de “alguém”,


senão de quem busca o poder de si mesmo, o domínio de si e ensina aos
demais como alcançá-lo. Na base de todas as manifestações culturais indo-
europeias, através dos contos e narrações orais, se diz que é o poder do
amor verdadeiro, o “afeto sem efeito”, a paixão sem dominação, o ato-
potência desinteressado agindo em distintos níveis de consciência: no
individual, no coletivo, no cósmico e no quântico.
17

Em qualquer caso, se trata do reconhecimento do poder sem


dominação e se refere a uma tomada de consciência mais do que a uma
tomada de poder convencional e, nesse sentido, o poder emancipador é a
verdadeira tomada do poder.

A noção de conflito nas bordas, sob essa perspectiva do poder, é


ambígua. De um lado, estão os eventos que devem mudar que emergem no
território e se manifestam em um campo relacional, seja este um campo
social ou cultural. Do outro lado, a potencialidade do surgimento de novos
movimentos sociais, dada a exclusão e a marginalização, nas dobras do
território, especialmente na periferia da cidade.

Esta ideia implica demarcar uma porção do território na qual e a partir


da qual vai se manifestar o exercício do poder e entender a cidade como
realidade (imaginada e/ou real), do ponto de vista físico, mas, enfim,
delimitada como “a cidade” e vista como parte de um processo histórico que
tensiona o exercício do poder sobre o território; entre um modelo
centralizado e outro descentralizado. Este conflito ainda é objeto de debate
na contemporaneidade e está por eclodir outro, ainda desconhecido, mas
que já começa a se evidenciar na ideia de campo relacional e onde não se
coloca a ideia da «cidade» como tal.

O exercício do poder no território introduz a diferença entre as


noções de território e de espaço. A espacialidade, ante os conflitos de poder
no espaço urbano se constitui no território. Os espaços de poder se
manifestam nos recortes formais/informais do território. Nessa perspectiva,
a cidade como exercício de poder político é também um recorte do território.

O que seja “a cidade”, independente da compreensão que se tenha


dela, se transformou drasticamente no último quarto do século passado,
como o testemunham inúmeras investigações de urbanistas, como o
geógrafo Jordi Borja (n. Barcelona, 1941). No entanto, o mesmo não
aconteceu com a nossa maneira de entender o fenômeno contemporâneo
18

dos complexos assentamentos humanos, mais além do modelo de


organização do território em rede, cuja ideia permite explicar a
sobrevivência do conceito centro/periferia na ideia do “glocal”.

A materialização da ideia de “cidade compacta”, que traz implìcita a


dialética centro/periferia e que tem limites visíveis, sofreu um processo de
mudança estrutural; de centralizada passou a descentralizada até se
converter em uma representação da ideia de cidade fragmentada, chamada
de pós-moderna, impossível de delimitar. O que se assiste na
contemporaneidade é uma invisibilidade dos limites, por conta da mudança
de estrutura, que, de descentralizada passa a distribuída.

Surge, então, a noção de borda como transição dos fragmentos aos


fractais entre realidades complexas e diversas, sejam de interfaz espaço-
temporal nas periferias urbanas, sejam intersticiais no interior da cidade.

A ideia de interface como um espaço de interação, onde se


desenvolvem os intercâmbios e suas mutações. Mais adiante, insistiremos
na diferença conceitual entre a interface física entendida como espaço
(interface) e como tempo (interfase). Por ora, estamos partindo de uma
ideia “marginal” de borda à outra que recupera o sentido de unicidade do
limite: o unus mundus.

A borda, vista não como marginal, mas como um espaço


transcendental da cidade, apresenta formas e condições espaciais que
denotam as transformações dos comportamentos urbanos; chegando, hoje
em dia, a ser percebida como um fenômeno distinto tanto da cidade quanto
do campo (rural), mas que também faz parte do território como os limites
aparentes do exercício do poder desde os centros urbanos. Definição
segundo a qual as bordas são um mero recorte jurídico-político de uma
realidade cuja espacialidade “desborda” o fìsico.

Inconformados por não podermos traduzir adequadamente o


fenômeno das bordas em categorias de intervenção concretas, nós
19

mudamos a denominação inicial do projeto da pesquisa de tese – de A


Reconfiguração dos Espaços de Poder a partir das Bordas da Cidade ele
passou a se chamar A Reconfiguração dos Espaços Urbanos a partir da
Borda do Poder.

Enquanto borda de poder, a borda se refere ao reconhecimento do


poder nas periferias: espaços de poder à borda com capacidade de se
autotransformar e transformar a realidade urbana: a possibilidade de
modificar os eventos da contemporaneidade que propicie uma revolução
contra-hegemônica. Tal compreensão nos leva a entender as periferias de
poder como aqueles “outros lugares” (heterotopos) fora da espacialidade
capitalista que, ainda que fragmentados e distribuídos, podem se
homogeneizar e vir a conformar novas centralidades, uma vez que
consigam superar a sua incompletude.

A tese mudou, passando a enfatizar um objeto de estudo do


urbanismo, porém, sem deixar de lado a sua intencionalidade política, já
que a meta final do presente trabalho é construir um texto que opere na
consciência do leitor, levando-o a uma visão transdisciplinar, entendendo as
periferias como bordas e as bordas como uma transição, e, para além da
ideia de limite, como uma ideia de totalidade da realidade e do
conhecimento.

Enquanto que para o filósofo Martin Heidegger (Messkirch, 1889 –


Freiburg, 1976), quem estabeleceu que a base da intencionalidade é a
temporalidade (Sein und Zeit), o conhecimento teórico representa apenas
um tipo de ajuste com o mundo e não o seu último fundamento; no nosso
caso, o objeto de estudo “borda” é o que é e não o que nós pensamos que
ele seja.

A borda como poder/ o poder como borda, trata-se de um processo


de tomada de consciência individual, coletiva, cósmica e quântica. Tal
processo será desenvolvido adiante em um Novo Ponto de Partida, que
20

pretende ressignificar o princípio, ainda inacabado, da racionalidade


estético-expressiva da modernidade sem voltar ao colonialismo do poder.

Esta ideia de borda= poder como os limites da vontade da vida vai


nos levar ao filósofo Friedrich Nietzsche (Röcken, 1884, Weimar, 1900),
para rever a sua ideia da Vida como Vontade de Poder, a qual, desde as
suas anotações (Nachlass), tem recebido muitas interpretações.

O nazismo alemão usou a filosofia de Nietzsche para defender as


suas teses racistas, principalmente a sua ideia de vontade de poder (Der
Wille zur Macht), adaptando-a à noção de desejo de poder como dominação
biológica, segundo o darwinismo social, uma extrapolação das teorias
evolucionistas e biologicistas ao social; assim como a ideia de que o instinto
de sobrevivência vai desde o biológico até um desejo perpétuo de existir.

A ideia do “mais além”, pela qual o próprio Nietzsche criticava a teoria


evolucionista de Charles Robert Darwin (Shrewsbury, 1809 – Abadia de
Westminster, 1882), pode nos levar a pensar que a moral é talvez o maior
engano da natureza. Com respeito a isto, o mestre espiritual Omraam
Mikhaël Aïvanhov (Serbtzy- Antiga Macedonia, 1900 – Paris, 1986),
esclarece o que é um erro da moral e da religião: lutamos contra o mal
porque nunca chegamos a compreendê-lo.

Acrescentemos ao anterior: 1º) o conflito do ser humano entre a sua


parte dionisíaca versus a sua parte apolínea que reinterpreta a ideia de
vontade de poder como desejo sexual reprimido, segundo a interpretação
dos sonhos de Sigmund Schlomo Freud (Freiberg, 1856 – Londres, 1939);
2º), a reunião dos conceitos vontade e poder em um único conceito,
ensinado por Heidegger na Freiberg de 1930; 3º) o contraste que o próprio
Nietzsche estabeleceu em relação ao conceito “vontade de viver” do filósofo
Arthur Schopenhauer (Danzig, 1788 – Fráncfort del Meno, 1860); 4º) a ideia
de “eterno retorno” de Schopenhauer e que Nietzsche desenvolveu como
“amor fati” (amor à vida).
21

Todas estas são formas de entender o super-homem (Ubermensch),


tão preconizado por Nietzsche; que Giani Vattimo (n. Turin, 1936)
reinterpretou como ultra-homem (não no sentido da mente heterodominante,
senão que de humanidade); e que o antropólogo Luis Guillermo Vasco
Uribe (n. Medellín, 1940) descreve como o Jaibaná (o verdadeiro homem).

Para efeitos desta tese, vamos reinterpretar Nietzsche, cujo


pensamento seria essencialmente a proclamação do mundo como pura
imanência, como uma forma de transcendência que formalmente rechaça o
nada. Vamos fazê-lo, apenas, para ultrapassar o abismo do niilismo ante a
desvalorização contemporânea dos valores supremos, tentando navegar da
borda à borda como o viajante paradigmático, o verdadeiro meta-humano
contemporâneo, segundo Boaventura de Sousa (2001).

Mas, também, numa tentativa de superar o “falso humanismo”,


incapaz de colocar a humanidade do homem suficientemente alta. O que
poderia ser visto como uma retórica “simplista” proposta por Heidegger
como muro de contenção ante a modernidade, e também para acompanhar
a proposta de um pós-humanismo, em Peter Sloterdijk (n. Karlsruhe, 1947),
em direção de uma nova genética humana e uma nova matriz educacional.

Casos curiosos da história recente, como na passada ditadura militar


chilena, onde se relacionaram sem maiores conflitos uma mentalidade
agrária com outra industrial, terão que ser ultrapassados agora dentro de
um “novo” espírito democrático, tal como o entende o filósofo e cientista
político Ernesto Laclau (n. Buenos Aires, 1935), quem analisa as
experiências populistas na região resgatando-as como heterodoxas e
articuladoras de processos de democratização no continente.

Sem dúvida, sempre vão existir aqueles que pensam o contrário, que
a América Latina se rende ante o fantasma desse pós-socialismo, que se
estende pelo continente como uma mancha ameaçadora. “O barro da
22

história”, que tanto horror causava a Nietzsche 2. Naquela época, era o


temor que os senhores tinham dos servos. Contemporaneamente, seriam
as sub-regiões heteronômicas que ameaçam a hegemonia3 que estrutura o
sistema de dominação que, por sua vez, reproduz a divisão favorável ao
capitalismo tardio, entre dirigentes e dirigidos, entre o político e o
econômico, entre intelectuais e base, etc.

Legalizado, legitimado e exercido simbolicamente o poder político se


transforma em um discurso que sustenta a ideia de nação e, nesse sentido,
é um poder que encarna politicamente o Estado. Transformado em
gamonalismo4 é uma forma pervertida e corrupta do poder soberano.

É preciso não confundir o poder político com o poder do político, quer


dizer, o poder de “alguém” que, encarnado em uma entidade, também
política, conhecida e aceita pelos demais, consegue organizar um espaço
de poder hierárquico, e às vezes até heterárquico, chegando, inclusive, a
exercer uma autoridade compartilhada por relevos e cujo poderio chega aos
limites físicos e não físicos, onde acontecem relações de poder entre
dominantes e dominados.

É, inegavelmente, uma revolução, embora não seja o “assalto ao


poder”. Ao menos não a esse tipo de poder polìtico que sustenta as

2
Em uma carta escrita por Nietzsche, em 21 de junho de 1871 da Basileia, dirigida ao seu
amigo o Barão Carl Von Gersdorff, o adverte sobre o advento da «Hidra Internacional»,
referindo-se a uma ameaça social que renasce cada vez que se a crê dominada, muito
difìcil, portanto, de extirpar. (Friedrich Nietzsche, “Epistolário”, Biblioteca Nova, Madrid,
1999).
3
Hegemonia: do grego [eghesthai], que significa «conduzir», «ser guia», «ser chefe»; ou do
verbo eghemoneno, que significa «guiar», «preceder», «conduzir», e do qual deriva «estar
à frente», «comandar», «governar». Por eghemonia o antigo grego entendia a direção
suprema do exército. Trata-se pois de um termo militar. Egemone era o condutor, o guia e
também o comandante do exército. No tempo da guerra do Peloponeso, se falava da
cidade hegemônica a propósito da cidade que dirigia a aliança das cidades gregas em luta
entre si.
4
Gamonalismo: é um estado de espírito dos parasitas do poder: pequenos frente a Deus,
diante do povo humilhado gigantes. É um idiota no poder. (Enviado por: Mauricio Sierra em
2012/08/05 12h53min: 47) Disponível em: http://www.significadode.org/gamonalismo.htm
23

relações de produção. Esta nova ideia de borda como totalidade não tem
nada a ver com a interpretação radical da teoria da ação política de
Gramsci.

Mais bem é acerca de um mapa mental cuja formação e identidade


depende da interação do Eu com o universo tudo e que manifesta-se num
acontecimento único e irreversível à pergunta das perguntas: Quais são os
eventos modificáveis dependendo do nível alcançado na tomada de
consciência individual/coletiva/quântica/cósmica?

A resposta, embora esteja em vários níveis de reconfiguração,


começa numa mudança de atitude que se origina no poder individual
orientado pelo senso comum: Seja responsável com o objeto de estudo!

Um segundo nível de reconfiguração acontece quando o poder


interativo orientado pela teoria cria uma mudança na lógica de pensamento:
Seja razoável como o método de estudo!

Um terceiro nível começa na mudança de aptitude e do poder


orientado pelo método: Seja inteligente com a problemática de estudo!

Tem mais um quarto nível do poder de si-mesmo orientado para si-


mesmo quando modificamos a percepção e descobrimos o Eu como sujeito
de estudo.

Cada nível de reconfiguração urbana tem mais níveis dentro de si,


cada um em atenção consciente à fractalidade da realidade complexa da
borda à borda como sistemas não lineares de realimentação múltipla.

Vamos nos encontrar juntos em um destes níveis anteriormente


mencionados dependendo da nossa consciência e, para atingir isso,
podemos nos ajudar com um único gráfico: Você esta aqui!
24

GRÁFICO ÚNICO: Mind Map do Site (Você Está Aqui)

Pergunta: Quais são os eventos modificáveis dependendo do nível alcançado na tomada de


consciência individual/coletiva/quântica/cósmica?

Nível um: Seja responsável com o Objeto de


Estudo / Poder Individual orientado pelo
Senso Comum.

Bordas da
Nível três: Seja inteligente com a
Cidade - Problemática de Estudo / Poder Alternativo
Cidade de Borda Tecido da Borda. orientado pelo Método.

Borda a Borda.

Abordagem
multidisciplinar e
Borda Abordagem
transdisciplinar e
Nível dois: Seja razoável com o Método de Borda
Estudo / Poder Interativo orientado pela Teoria.

Abordagem
Voltar a marcar o interdisciplinar e
início inacabado da Borda
Categorização
racionalidade
dos espaços
estética e
expressiva da Urbanos
modernidade. Interfaciais e
dos espaços
Arquitetônicos
A reconfiguração do
Intersticiais em
fenômeno urbano a
partir das termos de
interfa(c)es – interfa(s)es Projeto.
e interstícios.

Advertência: Tem mais um nível Quatro: Fique atento, Você é o Sujeito de estudo /
Poder de Si-Mesmo orientado para Si-Mesmo.
25

Capítulo I – ENTENDENDO AS BORDAS

[…] Não deixaremos de explorar […] e ao final de nossa exploração […] será
chegar ao ponto de partida [...] e conhecer o lugar pela primeira vez [...].

T. S. Eliot, “Little Giddin”, 1942.


1.1._ Introdução Capítulo I.

É através de processos de temporalização na consciência que o domínio


e a exclusão físicos geram um sentimento social de segregação e o
fenômeno de fragmentação urbana. Estes processos históricos podem ser
vistos e entendidos de maneira alternativa, permitindo a construção coletiva
de um novo tecido de borda.

A noção de “cidade” como um fenômeno histórico, ligado tanto a uma


época determinada com condições específicas, quanto a um espaço
submetido a situações particulares, implica o seu entendimento como
sujeito físico cuja gênese, desenvolvimento e morte podem ser relacionados
numa linha de tempo e de espaço. Nesta ideia “clássica” de cidade, a borda
é vista como um fenômeno estranho; um atributo externo e interdependente.

O procedimento “erudito” tradicionalmente utilizado para formular “a”


pergunta da investigação que procura uma resposta científica à construção
teórica da problemática em questão poderia se converter em uma armadilha
racional do pensamento. Quão confiável seria o significado convencional da
palavra borda? E se as palavras borda e problema não passarem de um
engano? O que resta então, para além do desencantamento do mundo,
como produto da manipulação do pensamento racional ocidental dominante
sobre esta realidade tão complexa e diversa?

Segundo a lógica do pensamento racional, o modo mais fácil de


compreender as bordas é através da evidência física dos limites da
26

realidade. Supostamente, estes limites se traduzem em superfícies e


volumes que contêm coisas, existindo, portanto, um “dentro” e um “fora” em
qualquer condição e situação, seja esta humana (ou não), conhecida ou
desconhecida.

Além disto, tal entendimento, dado por nossa condição relativa de


seres racionais, se vincula simultaneamente a outro: a hierarquização ou
importância que atribuímos a acontecimentos e fatos da realidade. Assim,
as bordas se traduzem em limites que supõem a existência, em qualquer
relacionamento humano, de um “estar acima”, “estar abaixo”, o que envolve
uma condição de domínio mediante a qual, dominantes e dominados se
separam e se reúnem convenientemente no espaço.

A cidade como probabilidade emergente de um organismo vivo, de


acordo com o professor Adolfo Izquierdo (n. Bogotá, 1948), é considerada,
segundo a teoria das bordas e desde os limites do pensamento urbanístico
contemporâneo, concomitantemente, como um objeto-sujeito cujo
comportamento e forma são indissolúveis e interdependentes. Nesta
definição contemporânea, aplicável a qualquer tipo de assentamento
humano, a borda da cidade não pode ser analisada isoladamente, já que
não existe um fenômeno histórico que compreenda a cidade como
totalidade.

A cidade contemporânea responde assim à indeterminação e incerteza


próprias de um perìodo histórico “entre tempos”, caracterizada por limites
imprecisos e por sua evidente segregação e fragmentação. A cidade
contemporânea se constrói e se reconstrói à margem de estruturas
preexistentes, a ela mesma e à natureza. São assentamentos humanos
urbanos onde tudo pode acontecer, apesar de parecer que tudo está feito,
onde coexistem, inexplicavelmente, o pior e o melhor da condição humana.

Estar dentro ou fora, viver acima ou abaixo; são experiências do


cotidiano de uma realidade que define o habitar na cidade contemporânea.
27

Mas sempre foi assim; ou pelo menos assim o registra a história. O que
muda agora é que existe, também, a possibilidade de habitar o limite,
gerando tanto uma nova superfície, como uma sobreposição de superfícies
e volumes, conteúdos e continentes, condições e situações... Até criar um
lugar-nenhum, um espaço-nenhum, uma fronteira “viva”, um limiar, uma
possibilidade de transformação, uma interfaz, um interstício.

O umbral de um estímulo. Quer dizer, quando o estímulo é tão forte a


ponto de produzir um efeito, o mais parecido a um estágio de coisas
suficientemente distribuídas (poder) e policêntricas (espaço), mas
aceleradas e simultâneas (tempo), que propiciam e incrementam a
probabilidade do surgimento de fenômenos típicos da borda/ à borda.

As fronteiras, as bordas, os supostos “limites” definem as coisas, os


objetos, as pessoas, as condições, as situações e, consequentemente:
tanto a forma urbana como o comportamento de seus habitantes (sejam
eles nativos ou estrangeiros). Quando estes limites desaparecem na cidade
contemporânea, fragmentada e difusa, a forma e, portanto a imagem
urbana, também deve ser vista como fragmento e como fractal – como loop
urbano.

A este respeito, Lorenz (1963) estabelece com três variáveis não


lineares – temperatura, pressão e velocidade do vento – a localização de
um ponto qualquer no espaço. Nenhuma novidade se não fosse o
comportamento “estranho” deste ponto ao introduzir, na equação, um
movimento constante em espiral similar ao do comportamento de todos os
seres vivos, em especial do homem comum. Nessa medida, é fato
conhecido que uma cadeia de acontecimentos num determinado momento
pode apresentar um pequeno ponto crítico que vai se propagar em grandes
mudanças. O que devemos mudar são esses pontos críticos, passar a vê-
los como potencialidades; que somos nós mesmos atuando em diversas
escalas, tanto espaço-temporais como analíticas (dimensões de uma
realidade complexa).
28

É preciso, então, tomar a borda da cidade como sujeito epistêmico


(do desejo), ideia que será desenvolvida ainda nesse capítulo.

Do ponto de vista existencial, nada existe sem limites. Se o


continente “define” o conteúdo, a borda define a forma no seu interior, mas
o paradoxo é que ela também contém o universo inteiro pelo seu lado
externo. Nesse sentido, a borda pode ser também entendida como uma
forma de totalidade, mas pelo avesso: uma implosão, uma nova maneira de
começar.

No conceito de “mim mesmo”, o psiquiatra Jacques-Marie Émile


Lacan (Paris, 1901-1981) reinterpretou e ampliou a prática psicanalítica pós-
freudiana, incorporando, igualmente, a nível teórico noções linguísticas,
filosóficas e topológicas que o levaram à formulação de que o inconsciente
se estrutura como linguagem.

Porém, a topologia “contemporânea” (entendida em termos


contemporâneos), realmente não avançou muito com respeito à ideia
moderna de topologia matemática introduzida pelo matemático Felix
Hausdorff (1868, Breslavia – 1942, Bonn). A topologia do limite seria, em
termos contemporâneos, o equivalente ao que provavelmente teria escrito o
professor se não houvesse preferido se suicidar a ser exterminado pelos
nazistas junto com sua família.

Nesse novo começo, o limite de qualquer lugar habitado pela


consciência humana, a “nossa borda”, é o nosso próprio corpo. Como uma
espécie de zoom existencial: para dentro “sou eu”; para fora o mundo, o
outro, o exterior, o que não somos. O fundo urbano através do qual nossa
figura existe por contraste.

A borda como fragmento se refere à estética e à poética do


fragmento. A estética do fragmento urbano tem a ver com a implosão do
29

projeto de borda como totalidade e como centro. A eterna busca do unus


mundus, o mundo único.

Os conceitos de medida e dimensão, introduzidos na topologia


moderna por Hausdorff (1914a), foram chaves para a compreensão do
espaço-tempo como lugar-momento e para introduzir a teoria dos fractais de
muitos teóricos: Ralf Gomory, Richard Voss, Fielding Barnsley, Peter H.
Richter, David B. Mumford, John H. Hubbard, Michael F. Shlesinger, entre
outros, os quais influenciaram o matemático Benoit Mandelbrot (Varsóvia,
1924 – Cambridge, 2010), nos anos 60 do século passado.

Esta mesma fragmentação transformada em fractalidade poderia ser


o resultado do efeito analítico devido à escala e ao enfoque da realidade, se
observamos a cidade interconectando-se com outras, ao nível global-local
através de redes intangíveis – tangíveis.

O termo “glocalização” é um recurso semântico que reúne dois


processos aparentemente opostos, mas que estão acontecendo, de fato, de
maneira complementar: a globalização, referida ao desenvolvimento e
distribuição do modo de produção capitalista e a localização de produtos de
acordo com critérios e características do consumidor local. Uma vez que o
capitalismo e a modernidade são processos historicamente independentes,
mas complementares, a glocalização capitalista pode ser interpretada como
uma fase aparentemente “pós” da modernidade.

Por outro lado, buscar modificar o evento problemático através de


uma interpretação quântica da realidade é uma pretensão válida numa tese
da borda, somente se contribuir para a compreensão de que mais do que
uma realidade física, se trata de uma realidade filosófica.

Borda como fractal remete à poética do caos, ao “cântico da


quântica”, que questiona até a existência do mundo, segundo o jornalista e
cientista Sven Ortoli (n. Saint Mandé, 1953) e o engenheiro de
30

telecomunicações e matemático Jean- Pierre Pharabod. Como dimensão


intermediária, a não existência do mundo na borda seria capaz de nos fazer
transitar entre o contínuo e o descontínuo, a ordem e a desordem, o global
e o local, o ponto e a linha, a linha e o plano, o plano e o volume, o campo
(“rural”) e a cidade, etc.

[...] O mundo existe? O que é o espírito? O que é a matéria? Tais questões sequer
fazem sentido? O fato é que se as formula há séculos, senão milênios, e que a
nova física chega a formulá-las de novo, só que de uma maneira radicalmente
diferente, quase matemática [...] (ORTOLI & PHARABOD, 1984, p. 75).

Interfaz ou interstício, a borda como virtualidade, unidade fractal, como


“entre” radical, como dobra que permite ver e viver em dimensões e
frequências distintas, cada uma com problemáticas e modos de existir
próprios.

A borda como loop urbano, em Agamben, se refere à “poética da


diferença e da repetição” como alternativa de construção da igualdade e da
inclusão, em termos do que a contemporaneidade do pensamento pode ser
entendida como a unidade básica do processo de repetição que gera a
diferença em relação à linguagem, à história e ao poder (como potência).

Esse movimento de zoom, que consiste em passar de mim mesmo a


“outro”, seria o equivalente a passagem da consciência de ser à consciência
de ser/estar - desde/em, a/à borda, somente que fazendo simultaneamente
zoom- in / zoom-out.

A seguir, vamos nos referir a uma série de falsas dualidades e


movimentos que geram esses processos de temporalização na consciência:
eventos que podem se modificar individualmente, coletivamente,
cosmicamente e quanticamente.

1.2._Eles no Topo e Aqueles Abaixo.


31

Não há opostos: só os de sua lógica [...] a verdade denota [...] os erros de


diferentes posições entre si [...] Em resumo: a ciência está preparando um
soberano da ignorância.

Friedrich Nietzsche, Vontade de Poder (p.259).

Ser/estar acima/abaixo corresponde a uma relação vertical, hierárquica,


própria de nossa racionalidade dominante, mediante a qual o “outro”, o “não
sou” é visto como superior ou inferior, dependendo da manifestação da
vontade humana, que é por certo: a vontade de poder.

E tu também, homem do conhecimento, eras tão só uma senda e uma pegada da


minha vontade: em verdade, a minha vontade de poder caminha também com os
pés de tua vontade de verdade! Certamente não encontrou a verdade aquele que
lhe desfechou a expressão “vontade de existir”: essa vontade – não existe! Porque:
o que não existe não pode querer; mas, o que é existente, como poderia ainda
querer existência! Só onde há vida há também vontade: mas não vontade de vida,
senão – é o que te ensino – vontade de poder! Muitas coisas o ser vivo avalia mais
alto do que a própria vida; mas, através mesmo da avaliação, o que fala é – a
vontade de poder! Assim, um dia, me ensinou a vida: e desta forma, ó os mais
sábios dentre os sábios, resolvo também o enigma de vossos corações.
(NIETZSCHE, 1883, Parte II, Fragmento 12).

Referimo-nos ao poder criador, cuja vontade se circunscreve aos limites do


pensável em Zaratustra, ou aos limites do razoável enquanto processo
dialógico em Aristócles [Platão], (Atenas, 428 a.C. – 347 a. C.). Entendendo
a ideia de limite ligada a uma função crítico-negativa própria do critério
discriminador, julgador, discernidor, demarcador da modernidade que pede
e outorga racionalidade, que questiona sempre as condições de validade e
de sentido do todo.

A este respeito, questões como a natureza sociopolítica das relações


de poder manifestas no espaço urbano produzem resultados visíveis no
comportamento dos cidadãos, no modo como se resolvem os conflitos de
interesses no território e, em geral, nas manifestações físicas do que só
pode ser exercido de maneira simbólica.

No sentido negativo, há um poder que, para ser exercido


efetivamente, supõe uma relação de dominação desigual entre dominantes
e dominados. Inclui a noção de poder de alguém, igualmente, o poder de
32

alguém encarnado em uma entidade e, claro, em um sentido mais amplo, a


ideia do poder encarnado em uma organização de pessoas.

A concepção de sujeito como cidadão remete ao termo “cidadania”


como condição cultural de habitar a cidade. Este sujeito social tem atributos
que lhe são próprios, como a cultura cidadã (do cidadão), que se constitui
através de um processo de identificação no interior das formas de
representação simbólicas que sustentam o poder do sistema de dominação
mundial5.

Contemporaneamente, a ideia de sujeito social se deslocou e


fragmentou em múltiplas manifestações, dependendo de como se dá a sua
relação com a cidade e com a chamada crise de identidade do sujeito, até o
ponto deste chegar a se identificar como alguém sob condições e em
situações no limite da existência. Este habitante da borda/ à borda tem
particularidades que o diferenciam do habitante familiar e sedentário que
caracteriza o cidadão moderno.

Segundo o manifestado por Aristóteles na segunda etapa de suas


obras, desde o abandono da Academia até o seu retorno a Atenas, e tal
como o interpreta o filósofo Enrique Dussel (n. La Paz – Província de
Mendoza, 1934), na Grécia Antiga, somente consideravam-se cidadãos os
habitantes da “polis” e o “resto”, o que estava fora do horizonte, (incluindo o
que mais tarde seria a Europa moderna) era simplesmente o incivilizado, o
não-político, o não-humano.

[...] cidadãos que [não] o são apenas em virtude de um título acidental, como os
que se declaram como tal através de um decreto [...] Não depende somente do
domicílio o ser cidadão, porque aquele pertence também aos estrangeiros
domiciliados e aos escravos [...] seriam cidadãos se gozavam dos direitos
enunciados em nossa definição [Domicílio, direitos, não ter sido declarados infames
e/ou desterrados, etc.]; é principalmente o cidadão da democracia [...] porque ter
nascido de um pai cidadão e de uma mãe cidadã é uma condição que não pode ser

5
Sistema de dominação mundial de: Energia, alimentação, educação, saúde, finanças.
33

exigida razoavelmente aos primeiros habitantes, aos fundadores da cidade.


(ARISTÓTELES, 348-335 a.C,, pp.76,78) 6 .

Ainda hoje, se considera aqueles que habitam “fora” da cidade como


potenciais cidadãos, já que ainda conservamos essa maneira de pensar que
implica a potência no ato. O que nos obriga a repensar completamente não
só a relação entre a potência e o ato, entre o possível e o real, senão
também a considerar de um modo novo, na estética, o estatuto do ato de
7
criação e da obra e, na política, o falso «problema» da conservação do
poder constituinte no poder constituído (AGAMBEN, 2005, p.368).

Este esclarecimento é importante para a compreensão do sistema-


mundo, definido pelo sociólogo Inmanuel Wallerstein (n. Nova York, 1930)
como a geocultura do mundo moderno e colonial, que se configurou como a
ideologia hegemônica europeia, sustentada e expandida pela “gente cinza”,
dominante desde a revolução francesa. A imagem hegemônica não
representa a sociedade como um todo, mas corresponde à maneira como
um grupo de pessoas (quem impõe esta imagem) concebe a estrutura
social (Wallerstein, 1991).

A teoria da borda acompanhada da intenção de reconfigurar o


espaço urbano desde e nas bordas pressupõe também a reconfiguração
das estruturas desse poder “invisìvel”; aquele que só pode ser exercido com
a cumplicidade daqueles que não querem saber que estão submetidos a
este poder, nem tampouco que o exercem e são responsáveis pelos
silêncios e ambiguidades da intelectualidade que se denomina “crìtica”.

6
_Disponível_em:
<http://www.laeditorialvirtual.com.ar/pages/Aristoteles_LaPolitica/Aristoteles_LaPolitica_003
.htm#C1> (Acesso em: 12/01/2009).
7
Falso problema significa: Diante da impossibilidade de exercer abertamente o poder, cria-
se um falso problema (1) que é “comunicado” às massas pela mídia; depois o público,
controlado pelo “medo”, pede aos que detêm o poder que atuem e criem alguma solução
(2); diante disso, são oferecidas as “soluções” pré-fabricadas pelos “gurus” do poder (3).
34

Segundo o semiólogo argentino Walter D. Mignolo, o colonialismo do


poder é invisìvel porque a história do capitalismo se vê de “dentro” (na
Europa) para “fora” (nas colônias), tal como a história da modernidade, que
aparece como um fenômeno europeu do qual todo mundo participou, mas
em diferentes posições em uma estrutura de poder assimétrico. Portanto, o
colonialismo do poder é a modernidade mesma que veio organizando o
centro como o “civilizado” e a periferia como a “natureza” destinada a ser
civilizada, onde a ideia de periferia é sinônima de pobreza.

Conceber a natureza como sinônima do físico é uma ideia moderna


que, segundo Eddington (1937), prevalece até nossos dias e leva a supor
que o domínio dessa natureza, por meios físicos, é igualmente sinônimo de
uma manipulação “primitiva” e “atrasada” da realidade8.

Tal como o entendera o sociólogo Pierre- Félix Bourdieu (Denguin,


1930- Paris, 2002), esse poder quase “mágico”, que permite obter o mesmo
que é obtido pela força (física ou econômica), que só pode ser exercido se
for reconhecido, constitui a verdadeira essência da dominação que
atravessa a história da humanidade.

A ideia da ignorância sem arbitrariedade é também uma forma de


governo que prevalece e é reconhecida como a maneira “civilizada” de
solucionar os conflitos. Só que agora precisa, igualmente, da autoridade
compartilhada para se legitimar e de se basear em possibilidades mais do
que em atos.

8
A ideia da realidade é multidimensional. Quer dizer que, apesar de existir uma realidade
total, existe igualmente uma diversidade de ideias de realidade (p. ex. a realidade urbana),
dependendo da nossa postura quanto à relação objeto-sujeto-omnijeto. Nesse sentido
existe diferença entre a ideia de realidade e a ideia de verdade, dependendo da escala
(representação física espaço-temporal) e da abordagem (analítico e multidimensional) do
Eu. A realidade do Eu contemporâneo é a complexidade do cotidiano, a interfaz, a criação
de situações em oposição dos eventos e fatos que acreditamos como «a realidade dos
limites e os limites da realidade». A verdadeira realidade é optativa (liberdade).
35

O processo civilizador da cidade consiste em incorporar o status


social de cidadão a qualquer pessoa que habitar o território sob influência
do poder exercido desde a urbe. Aqueles marginais da dita condição da
borda se encontram em uma situação à borda, sendo eles considerados
(por eles mesmos) uma espécie de cidadãos de segunda categoria ou até
bárbaros. Assim são vistos os moradores das favelas do Rio de Janeiro, no
melhor dos casos, denominadas falsamente (hipocritamente) de
“comunidades”.

No nosso imaginário ocidental existe ainda uma cidade “civilizadora”


que, em sentido positivo, implica em gozar de todos os privilégios políticos
do espaço público, inerentes à antiga noção grega da polis (S. VII a.C),
além de todos os privilégios legais do status social do cidadão, oriundos do
9
antigo direito romano e num ambiente favorável à elevação do espírito
humano, demonstrando a “superioridade” de nossa espécie em todos os
âmbitos da criação. Mas tal cidade, em sentido negativo, foi também berço
ou símbolo da domesticação humana e ante o poder soberano manifestado
no espaço urbano.

Cabe esclarecer, que “ocidental” aqui remete aos autonomeados


“povos” que falam o idioma latino do antigo império romano, excluìdos os
“orientais”; descendentes dos antigos povos que falavam o grego,
excetuando, por certo, Grécia e Ásia. Portanto, nos referimos aos que hoje
se autonomeiam latino-americanos como eurodescendentes, pelo duplo
efeito colonial-moderno na consciência coletiva que vem do imaginário
histórico destes povos.

Este imaginário, além de coletivo é o resultado da construção


simbólica modernizante através da qual algumas comunidades se definiram

9
O direito romano é aquele manifestado desde 450 a.C. até ser reconhecido pelas
autoridades bizantinas que o chamaram de Corpus Juris Civili (O corpo do direito civil),
para diferenciá-lo do Corpus Juris Canoici (O corpo do direito canônico).
36

a si mesmas como ocidentais; como parte de um território hemisférico do


mundo e sob influência da ideia de mercantilismo enquanto circuitos de
troca mundiais de natureza capitalista.

Do ponto de vista do estabelecimento das distinções (hierarquias) e


para lograr o efeito de legitimação destas distinções há realmente uma
única cultura (um campo relacional omnijetivo de natureza particularizante),
mas várias culturas imaginadas que se relacionam de forma dependente e
hierárquica. Isto é, um grupo de pessoas, reais ou imaginadas que, através
do estabelecimento tanto de uma comunicação imediata e efetiva entre
todos os seus membros como de uma série de distinções (reais ou
imaginadas), conseguem uma sensação de integração física ou virtual da
maioria (quase a totalidade) da sociedade e, ao mesmo tempo, uma
desmobilização (real ou imaginada) daqueles que, enfim, são dominados.

Estas visões “eurocêntricas” estruturadas em práticas sociais


hegemônicas foram responsáveis pela construção das principais
subjetividades no Ocidente, incluìdos os “povos” que foram inventados e
classificados taxonomicamente pela cor de sua pele; discriminação
dissimulada por métodos discursivos e por dispositivos de poder.

Neste aspecto, é preciso esclarecer que a Europa a que me refiro é a


mesma que Dussel considera como um “arranjo” conceitual posterior do
modelo “ario”, racista; uma criação ideológica de finais do século XVIII do
romantismo alemão e, em todo caso, um esquema que sustenta a diacronia
unilinear Grécia-Roma-Europa, que ainda é ensinada nas escolas de
arquitetura contemporâneas.

Em qualquer caso e de acordo com Izquierdo, tanto a noção de


objeto como a de sujeito, tomadas como referentes de sua mútua relação,
não são suficientes para realmente saber o que é a realidade (enquanto
espaço-temporalidade), já que é preciso entendê-la com lógica e com
método; para tanto, a noção de omnijeto, como campo relacional entre
37

objeto e sujeito, representa um estágio de consciência “mais além”. Ou


melhor, como diríamos nesta tese: um pensamento de borda.

O anterior leva ao critério de ominjetividade não antropocêntrica como sendo o que


rege a relação entre as normas de objetividade alienante e de subjetividade
antroprocêntrica ao subsumi-los categorialmente desde a noção de omnijeto
(Izquierdo, 1999, p.246).

É muito provável que a consciência da realidade da borda à borda


seja uma forma mental, no sentido aristotélico mais puro, ao qual
poderíamos chegar juntos nesta espécie de viagem programada chamada
tese doutoral.

Sendo assim, talvez venha de uma zona intermediária (uma interfaz)


entre a razão e a felicidade (como categoria autenticamente humana), ou
entre a razão e a fé. De qualquer modo, seria um pensamento à margem
(outra vez a borda) do processo histórico de construção do pensamento
ocidental enquanto processo especialmente conflituoso de configuração das
estruturas de poder.

A evidência empírica assinala que este processo, em algum


momento da “história oficial” conseguiu (como se fosse grande coisa)
construir a noção de limite como uma ideia que define, ou ao menos
delimita, a totalidade de um corpo material. Logo essa ideia se trasladou (de
maneira nem sempre pacífica e simples) a outras realidades não materiais.

Sem esta consciência, seríamos facilmente seduzidos pelas armas


sutis do poder simbólico. Este efeito ideológico é produzido pela “aparente”
cultura dominante que, segundo Bourdieu (1989), dissimula a função de
divisão dentro da função de comunicação. Enfatizo o aparente, porque é
fundamental para entender a diferença entre um campo relacional
interdependente e relações culturais de dependência, já que nesta diferença
radica a transição da interculturalidade à transculturalidade.
38

Esta sutil, mas efetiva forma de exercício do poder ganhou a


legitimidade necessária durante a prevalência da cidade compacta e o
modo urbano de entender os assentamentos humanos. Período no qual as
bordas foram claramente funcionais ao sistema de dominação, com as suas
consequentes formas de produção do capital e de sua reprodução cultural.

No urbanismo “neolìtico”, o arqueólogo James Mellaart (n. 1925,


Londres) descreve assentamentos humanos nos quais o poder simbólico já
se manifestava no espaço: seja na maneira como se distribuíam os recursos
e armazenavam os insumos, no modo como se protegia a população do
“resto do mundo” e em como se localizavam os lugares sagrados e sociais.

Recordemos que poder simbólico é aquele poder mediado por


relações simbólicas entre dominantes e dominados. É um poder enganoso e
sutil que consegue criar a impressão de que não domina pela força, mas,
apesar das aparências, continua a ser o poder de “alguém” encarnado em
uma entidade reconhecida como poderosa. Na maioria das vezes, esse
poder (que pode ser exercido de maneira heterárquica, além de hierárquica,
e até anárquica tanto nos centros quanto nas bordas) aparece disfarçado
em uma organização de pessoas naturais e/ou jurídicas, o que pode nos
confundir facilmente e nos fazer acreditar que não existe tal dominação.

O poder simbólico é “esse” poder invisìvel que não pode se exercer


senão com a cumplicidade dos que não querem saber que o sofrem ou
exercem. A representação simbólica da complexa realidade, na
contemporaneidade, é um processo de formas inacabadas da modernidade
que poderíamos descrever como sendo composto de sistemas simbólicos
estruturantes, estruturados e por aqueles instrumentos de dominação
(cognitivos e comunicativos) que relacionam os dois anteriores.

Para Kant, o juìzo significa a “unidade da ação” através da qual o predicado é


referido ao sujeito e ligado a ele em um sentido global, na unidade de uma relação
objetivamente existente e objetivamente fundada. [...] Mas [...] penso que um juízo
não é senão o modo de reduzir conhecimentos dados à unidade objetiva da
percepção. [...] Para a linguagem, [...] a expressão do ser como uma pura forma de
39

relação transcendental sempre é um produto tardio ao qual se chega muito


mediatamente (CASSIRER, 1923, pp. 303, 304).

Os sistemas simbólicos (arte, religião, língua) considerados como estruturas


“estruturantes”, tal como descrito na noção de modus operandi do filósofo
Immanuel Kant (Königsberg [Reino da Prússia], 1724-1804) e do
neokantiano Ernst Cassirer (Breslau, 1874- New York, 1945), rejeitam o
postulado ontológico heideggeriano e se baseiam na noção metafísica
neoplatônica de sujeito absoluto. O númeno, entendido como o sujeito
independente na sua relação com o objeto e que conhece o objeto sem
utilizar os sentidos.

Assim como o caminho do pensamento, o caminho da linguagem vai do conhecido


ao desconhecido, do percebido sensivelmente ao meramente pensado, do
“fenômeno” ao “númeno”: por isto a designação do verbo e dos atributos verbais
deve preceder necessariamente as designações substanciais, os “substantivos” da
linguagem (CASSIRER, 1929, p. 246).

O númeno, como conceito do inteligível (a ideia), fundamenta a ideia da


10
“coisa mesma” na metafìsica de Platão, enquanto a realidade da coisa
nela mesma é um númeno inalcançável (o transinteligível) em Kant.

[...] Há em todos os seres três elementos necessários para que o conhecimento se


produza; o quarto é o próprio conhecimento, e é preciso colocar em quinto lugar o
objeto em si, cognoscível e real. [...] O primeiro elemento é o nome, o segundo é a
definição (logos), o terceiro a imagem (eídolon), o quarto o conhecimento (Platão,
324-326b a.C) [Em Opera Omnia, pp. 324-351] 11.

Por seu lado, o transcendentalismo em Kant (1781), como representante


mais significativo da filosofia da imanência, nos adverte que o ser
transcendente ou a “coisa em si” sempre fica para além do alcance da
inteligência humana; motivo pelo qual emerge o fenômeno, elevado a objeto
pela forma conceitual, ficando o objeto fora do alcance do sujeito. Mas estes
objetos “aparentes” não são o ser que transcende, mas apenas aparências
10
A coisa mesma (to prâgma autó) aparece no princípio da Carta Sétima de Platão, que
pode ser encontrada nas páginas 324 a 351 da opera omnia, um dos escritos que filósofos
de todos os tempos acreditam ou não como platônicos dependendo de sua vocação
metafísica e até esotérica.
11
Diálogos: Menón, Fedro, Fedón, República, Teeteto, Timeo, Filebo, Leyes, Epinomis (em
Obras Completas).
40

sensíveis, subjetivas, convertidas em objeto pelas próprias formas de


pensamento.

É justamente pela sistemática justificação da busca do conhecimento,


que tanto Platão quanto Kant são considerados como “estruturantes” da
filosofia que hoje consideramos contemporânea. Recordemos que, para o
filósofo Walter Bendix Schönflies Benjamin (Berlim 1892- Portbou 1940), a
dita filosofia tinha sido considerada uma concepção válida do mundo em
termos da chamada ilustração na época de Kant.

Por sua vez, os sistemas simbólicos, que são considerados


estruturas “estruturadas” e que são passìveis de análise estrutural, tal como
ocorre com a noção de opus operatum do filósofo Georg Wilhelm Friedrich
Hegel (Stuttgart, 1770- Berlim 1831) e do linguista Ferdinand de Saussure
(Genebra 1857- 1913), se baseiam na noção de sujeito relativo (o
fenômeno), entendido como aquele sujeito afetado pelo objeto
sensivelmente e em sua relação com o mesmo.

A relação entre os fenômenos (as coisas) e a consciência das coisas


(reais), vista pela fenomenologia do filósofo Edmundo Gustav Albrecht
Husserl (Prostejov 1859 – Freiburg 1938), é um método não cartesiano que
considera real tudo aquilo que é pensado de maneira clara e distinta em
perspectiva temporal. São os noemas ou objetos de consciência em Husserl
(1931) que, embora baseados no fenômeno de intencionalidade aristotélico
e kantiano (devido a espaço-temporalidade da relação objeto-sujeito-
12
omnijeto da borda à borda), melhor correspondem ao conceito de Dasein ,
(ser aí), em Heidegger.

A demonstração da primazia ôntico-ontológica do Dasein poderia nos levar a


pensar que este ente deve ser também o primeiramente dado do ponto de vista
ôntico-ontológico, não só no sentido de uma “imediata” apreensibilidade do ente
mesmo, mas também no sentido de um igualmente “imediato” dar-se do seu modo

12
Dasein: A realidade primária na qual o ser se capta com seu sentido original
transcendente e imanente - sou eu mesmo; o ponto no qual o homem e o ser se entendem
como interfaz (como borda/à borda).
41

de ser. Sem dúvida, o Dasein está não só onticamente perto – não só o mais
perto– senão que inclusive o somos em cada caso nós mesmos. Não obstante, ou
precisamente por isto, o Dasein é ontologicamente o mais longe. Certamente, em
seu modo mais próprio de ser lhe é inerente ter uma compreensão deste ser e
mover-se em todo momento num certo estágio interpretativo [...] a respeito de seu
ser (Heidegger, 1927, p. 39).

É essa borda (lugar-nenhum antropológico), a “linhtung”, “a clareira do


bosque: o lugar onde o ser aparece como ser-aì” (SLOTERDJIK, 1999, p.
46).

Uma noção básica em Agamben, que permite compreender a


fenomenologia husserliana (segundo a qual o objeto transcende o sujeito), é
a ideia de “transcendência na imanência”, na medida em que esta
imanência não torne a produzir transcendência. O método e a filosofia
fenomenológica de Husserl como reação contra o transcendentalismo
kantiano representam uma reconquista do ser transcendente enquanto
intencionalidade da consciência.

Os instrumentos de dominação, considerados estruturantes porque


são “estruturados”, se baseiam na ideia de sujeito reflexivo, entendido como
aquele sujeito que afeta o objeto em sua relação com o mesmo, tanto
positiva quanto negativamente, na medida em que intervém de maneira
ativa no conhecimento e na organização da realidade.

Os três sistemas – estruturas estruturantes, estruturas estruturadas e


instrumentos de dominação – representam a relação objeto-sujeito-omnijeto
como evento que deve ser modificado na reconfiguração dos espaços de
poder desde/ e na borda/ à borda. Estes sistemas não lineares (portanto
insolúveis) funcionam através do modus operandi e do opus operatum e são
definidos a partir das noções de sujeito absoluto, relativo e reflexivo,
segundo o epistemólogo, psicólogo e biólogo Jean William Fritz Piaget
(Neuchâtel, 1896 - Genebra, 1980).

Por outra parte, diremos que o poder simbólico vem se configurando


historicamente como uma estrutura “autopoiética”, noção desenvolvida pelo
42

biólogo Humberto Maturana Romesín (n. Santiago do Chile, 1928), na


medida em que é simultaneamente produzido e que produz formas, objetos
e ideologias, tal como ocorre com o fenômeno urbano quando é visto como
um organismo vivente.

Como formas simbólicas/estruturas subjetivas: as noções de


“culturalismo”, em Edward Sapir (Lauenburg, 1884 – Nova York, 1939) e
Benjamin Lee Whorf (Winthrop, 1897 – Wethersfield, 1941), e as formas
sociais de classificação, no cientista político, economista e antropólogo
Émile Durkheim (Épinal, 1858 – Paris, 1917), incluindo o conceito
sociológico de lugar como cultura localizada no tempo e no espaço.

Tanto o culturalismo, que toma conceitos emprestados da


antropologia e da psicanálise, como “cultura” e “personalidade”; como a
sociologia, da qual Durkheim é considerado o fundador, junto com o filósofo
Karl Heinrich Marx Pressburg (Tréveris, 1818 – Londres, 1883) e Weber
(O.P: 1922), são as disciplinas precursoras da etnologia moderna
desenvolvida pelo sociólogo Marcel Mauss (Épinal, 1872 – Paris, 1950).

Como objetos simbólicos/ estruturas objetivas identificamos a noção


13
de semiologia , no antropólogo Claude Lévi-Strauss (Bruxelas, 1908 –
Paris, 2009). Visto que, contemporaneamente, não existe ninguém que dê
conta dela como disciplina, considera-se Lévi-Strauss como o absoluto de
todos os estudos dos signos e símbolos.

Já como ideologia, reconhecemos noções como Mitos e Línguas no


filósofo Bruno Bauer (Eisenberg, 1809- Rixdorf, 1882) e Marx, quem, com
sua obra sobre A Questão Judaica (1844) teve influência no realismo
espistemológico proposto por Durkheim (1895) o qual, por sua vez, influiu
Weber (O.P: 1922). Três aportes que nos permitem entender como a
caracterização dos fatos sociais nas maneiras de sentir, agir e pensar que
13
Semiologia: Estudo do desenvolvimento e do papel dos signos culturais na vida dos
grupos humanos; teoria geral dos signos. (Nesta acepção, usa-se alternativamente
semiótica).
43

nos são impostas se constituem na origem antropológica do contrato social:


a troca de dádivas, segundo Mauss (1925).

Toda a classificação implica uma ordem hierárquica da qual nem o mundo sensível
nem nossa consciência oferecem o modelo. Deve-se, pois, perguntar onde fomos
procurá-lo (DURKHEIM e MAUSS, [1903] 1995, p.403).

Por outro lado, temos também em conta o relativismo cultural baseado na


hipótese de relatividade linguística de Sapir (1921) e Whorf (1956), os quais
se opõem ao etnocentrismo e consideram que julgar as ações de outras
sociedades (por serem «ou parecer» diferentes das nossas) nos torna
intolerantes e nos impede de reconhecer que simplesmente todos somos
diferentes, como o demonstrou, magistral e surpreendentemente, o líder
indígena colombiano Lorenzo Muelas Hurtado (n. Silvia, 1938) ao
responder, em sua língua nativa (wampiano), à Assembleia Nacional
Constituinte encarregada de reformar a carta política colombiana em 1991.

[...] Møype namuy wantrawa waminchap, ñimuN na maya nukucha


wamindamønRRON, truy wam mana mørsrage [...] Vocês entendem? Claro que
não! Se não compreenderam o que estou lhes dizendo isso prova que somos
diferentes! (GAZETA CONSTITUCIONAL, 1991) 14.

A descoberta de uma estrutura inconsciente subjacente aos fenômenos


conscientes (desde a perspectiva de suas relações) se torna visível nas
teorias linguísticas da antropologia estruturalista de Lévi-Strauss, onde se
pode encontrar as origens da teoria semiológica na linguística estrutural e
nos estudos que ele realizou sobre os eixos da linguagem propostos por
Saussure, e que estruturaram definitivamente o método holista de Foucault,
para além do estruturalismo e da hermenêutica.

[...] O método que adotamos consiste nas seguintes operações: [...] definir o
fenômeno estudado como uma relação entre dois ou mais termos, reais ou
supostos; [...] construir uma tabela de possíveis permutações entre esses termos;
[...] tomar essa tabela como um objeto geral de análise que, somente nesse nível,
pode produzir conexões necessárias, sendo os fenômenos empíricos considerados,
inicialmente, apenas uma combinação possível entre muitas outras, e cujo sistema
completo deverá ser reconstruído antes (LÉVI-STRAUSS, 1963a, p. 16).

14
Manifestação de Taita Lorenzo Muelas na plenária da quinta comissão (Desenvolvimento
e Meio Ambiente) da Assembleia Nacional Constituinte da Colômbia, em 1991.
44

Inclusive as ideologias baseadas na linguística e a semiologia, que


transformaram a ciência polìtica em uma “prática teórica pura”, constituem
as críticas mais profundas de caráter ideológico tanto ao marxismo quanto
ao estruturalismo, quando se baseiam no conceito gramsciano de
hegemonia.

Isto fica claro nos resultados da revisão do marxismo feita pelo


filósofo Louis Althusser (Argélia Francesa, 1918- Paris, 1990), em 1965, na
qual fica evidente que os fundamentos linguísticos e semiológicos são os
mesmos fundamentos políticos e teóricos que juntaram os princípios da
ética protestante com o modo de produção capitalista em algumas
categorias da sociologia compreensiva de Weber durante a primeira fase de
sua produção teórica.

Por que as relações de produção, enquanto relações fundadas em


uma estrutura dominante, baseada, por sua vez, em uma ideologia jurídica
“romana” se desenvolvem de forma desigual? Marx, na Introdução à Crítica
da Economia Política, pergunta pelo como, certamente porque já conhecia a
resposta em Mao Tse-tung (Chaochan, 1893 – Beijing, 1976): “nada” no
mundo se desenvolve de maneira idêntica (1937).

Isto é óbvio, mas ainda não explica a verdadeira razão: o por-quê do


por que das coisas deste mundo seguirem um padrão de dominação
“desigual”.

A dominação de uma contradição sobre as outras não pode ser, de fato, para o
marxismo, o resultado de uma distribuição contingente de contradições diferentes
em um conjunto considerado como objeto. Não se “encontra”, em todo esse
complexo “que implica uma série de contradições”, uma contradição que domina as
outras, como na tribuna de um estádio o espectador que ultrapassa os outros por
uma cabeça. A dominação não é um simples fato indiferente, é um fato essencial à
complexidade mesma (ALTHUSSER, 1965, pp. 166,167).

Segundo Gramsci, “a luta pode e deve se fazer desenvolvendo o conceito


de hegemonia, [se trata mais de um] processo laborioso de gestação e não
de um acontecimento único e irreversível, com um conteúdo de
45

transformação radical [...] de ruptura de todas e cada uma das relações


firmadas pela opressão e a desigualdade” (GRAMSCI, OP: 1975 p. 46).
Relações oriundas de qualquer dos sistemas simbólicos de dominação e
que não são redutíveis à esfera produtiva. Tudo isto promovendo a
recuperação de uma ideia de totalidade.

Em Althusser, a ideia de ideologia ultrapassa a análise das forças


políticas, ao entender a hegemonia como resultado do choque inevitável e
necessário entre estruturas e sistemas, que nos permite ter um conceito
significativo do mim mesmo que reconhece os efeitos do “intradiscurso” da
doutrina do significante no “moi” de Lacan (1953-1963), e da ideologia como
representação de uma relação imaginária com as condições reais de
existência em Freud (1921/1969).

Todas estas teorias nos possibilitam compreender (mesmo que na


maioria das vezes de forma reducionista) como as estruturas de poder
simbólico (formas, objetos e ideologias) vieram configurando os fenômenos
que hoje reconhecemos como segregação, fragmentação e violência
urbana.

Falamos de reducionismo porque há uma diferenciação entre


Ideologia e Simbólico por um lado, e entre identificação imaginária e
identificação simbólica, por outro, uma vez que a transformação do
indivíduo em sujeito pressupõe a sua identificação primeira ao Ideal do Eu
como matriz simbólica à qual o sujeito se destina por antecipação, na
medida em que o sujeito preexiste no discurso do «outro».

Lembremos que a construção da civilização ocidental, cujo centro era


a Europa, foi sustentada naquilo que origina esta segregação: a exclusão do
“outro” através de ações polìticas cujas práticas e discursos buscam a
hegemonia no econômico; e que, ainda hoje, segundo o geógrafo radical
David Harvey (n. 1935, Gillingham-Kent), se configura e fortalece nas
46

chamadas “crises” que, longe de serem acidentais, são fundamentais para o


funcionamento criminoso do sistema-mundo.

De fato, é bem sabido que o capitalismo não pretende realmente


solucionar tais crises, pelo contrário, as “movimenta” e até “promove” de um
lugar a outro do planeta. Quando, então, as crises (e as guerras imperiais)
se transferem geograficamente, se transferindo também parte das
economias que as crises afetam.

Voltando às teorias, o reducionismo é o enfoque filosófico segundo o


qual a redução é necessária e suficiente para transformar eventos do
conhecimento, mesmo se reinterpretados gerem as mesmas propostas em
diferentes épocas históricas.

O conjunto das teses ontológicas, gnoseológicas e metodológicas


acerca da relação entre distintas ideias ou campos científicos teve graves
repercussões ao reduzir, conceitual e fisicamente, a natureza biodiversa,
incluídos os seres humanos que viveram e ainda vivem nas terras hoje
chamadas “latino-americanas”.

As estratégias discriminatórias e civilizatórias com respeito aos povos


excluídos das Américas (indígenas, negros e mestiços) têm sido funcionais
ao sistema de produção econômica baseado na exploração de recursos,
ontem e hoje. Mas agora elas são disfarçadas e os discursos mais
sofisticados, como, por exemplo, a privatização das economias atuais que é
similar aos mecanismos de exploração utilizados na conquista do “novo”
continente.

Chamado também de poder subordinado por Foucault, e tal como o


manifestaram o filósofo norte-americano Hubert Dreyfus (n. 1929) e o
antropólogo Paul Rabinow (n. 1944), o poder simbólico é uma forma
transformada, quer dizer irreconhecível, transfigurada e legitimada das
47

outras formas de poder – soberano, disciplinar, etc. – todas baseadas na


dominação.

O método simbólico de eufemização do poder, descoberto por


Bourdieu, garantido pela transubstanciação das relações de força nos leva a
desconhecer/reconhecer (Mécononnaître/reconnaître) a violência que elas
encerram objetivamente, transformando-as, assim, em poder simbólico
capaz de produzir efeitos “reais” sem gasto aparente de energia.

Os termos desambiguação, objetivação, subjetivação, etc., fazem


parte da dita eufemização que oculta ou disfarça a dominação e nos impede
de perceber o verdadeiro poder da potencialidade implícita nas bordas; o
pensamento fronteiriço, “sìsmico”, que quebra nossos próprios paradigmas,
nos impedindo de ficar comodamente prisioneiros de nossa própria
intelectualidade.

O poder como coisa inerente ao Ser, “[...] entendido em primeira


instância como a multiplicidade de relações de força imanentes”
(FOUCAULT, 1976, pp. 92-93), é o poder do pensamento, “a potência do
pensamento”, segundo Agamben, e, em qualquer caso, um pensamento
imanente cujas possibilidades ilimitadas são “aqui e agora” um pensamento
sem imagem: conhecimento e poder conectados.

Isto vai além da individuação consciente, processo que o médico


suíço Carl Gustav Jung (Kesswil 1875 – Künacht 1961), ao decifrar os
símbolos da alquimia, colocava como a verdadeira transformação da
realidade, a que nos referiremos mais adiante.

Na cidade pré-industrial, analisada pelo arquiteto Aldo Rossi (Milão,


1931 - 1997), (ou tavez melhor, “idealizada” por nós no afã de criticar as
consequências do modernismo eurocêntrico), a cidade que cresce sobre si
mesma é a memória coletiva dos povos e, como a memória está ligada a
fatos e lugares, a cidade é o “locus” da memória coletiva.
48

O locus é um conceito filosófico que se refere a um campo perceptivo


resultante da “relação singular e, ao mesmo tempo, universal entre certa
situação local e as construções existentes naquele local” (ROSSI, 1966,
p.85); condição e situação, através das quais os aspectos característicos ou
distintivos de um lugar são vistos como o espìrito protetor: um “genius loci”,
nos termos fenomenológicos utilizados pelo arquiteto Thorvald Christian
Norberg-Schulz (Oslo, 1926 - 2000).

Lembremos Mellaart, quem, por seu lado, nos dá a conhecer, através


de suas escavações entre 1961 a 1965, uma cidade neolítica, em Anatolia,
como resposta física às necessidades econômicas, sociais e espirituais de
sua população.

Os construtores do neolítico se viram diante de uma série de problemas, tais como


a defesa, as comunicações entre os bairros, terraços nos cimos de velhos
montículos, a localização de edifícios retangulares para adaptar-se aos contornos
ovalados de uma colina e os problemas de proporcionar luz suficiente em meio à
aglomeração densa dos edifícios, especialmente no nível inferior. [...] A
necessidade da defesa pode ter sido a razão original da maneira peculiar com que
o povo de Çatalhöyük construiu suas moradias sem portas e com a única entrada
pelo teto. [...] A solução adotada em Çatalhöyük foi outra: os planejadores não
construíram um muro sólido, mas cercaram o local de uma fileira ininterrupta de
casas e peças de fundos, acessíveis somente pelo teto (MELLAART, 1967, p.67).

É claro, que para estas cidades o poder simbólico já era uma forma
transformada, quer dizer, irreconhecível, transfigurada e legitimada de todas
as outras formas de poder e que se manifestava no espaço público
conseguindo traduzir essa verdadeira “vocação do lugar”.

Isto foi possível, graças à consolidação dos sistemas de dominação


simbólicos da manifestação cultural indo-europeia (a arte e a arquitetura e,
portanto, o urbanismo, juntamente com a religião e a linguagem). Aquilo
garantiu uma verdadeira transubstanciação das relações de força, tornando
possível tanto o reconhecimento como a aceitação de distintas formas de
violência (coerção legitimada do Estado, inclusive), transformando-as em
49

poder simbólico capaz de produzir efeitos físicos reais sem a utilização de


nenhuma energia.

Só assim se explica o esplendor alcançado por aquelas cidades e as


construções de suas edificações que, se fosse hoje, além de caríssimas
seriam praticamente inviáveis pela qualidade da mão de obra exigida.

Em um mundo antigo assim descrito quem queria ser/estar desde/e à


borda? Por acaso, a autoexclusão é somente para quem se conforma em
viver fora dos muros, separado acima, nos morros, ou oculto em meio às
canhadas, reconhecendo assim a sua suposta condição de inferioridade ao
estar “abaixo”, “fora”, no sentido figurado da dominação?

Mas também a resposta contemporânea a estas perguntas não


resolve o enigma dos motivos da segregação, autossegregação,
fragmentação e a extrema violência de nossas cidades nem, tampouco,
valida as supostas soluções “democráticas” frente às crises, especialmente
se não aceitamos a ideia de um Estado corrupto.

O que vem se discutindo é como “hibridar”, tema central dos debates


teóricos contemporâneos, não só em função do auge do pós-colonialismo,
mas pelo enfraquecimento da chamada pós-modernidade que questionava
as essências, os centros, a unidade, a pureza. Por exemplo, John Holloway
sustenta que a possibilidade da revolução intersticial está não na tomada do
Estado, referindo-se ao poder político, mas em atos diários de repúdio e
organização contra a sociedade capitalista, que vem recebendo o nome de
antipoder (para distinguir de contrapoder).

Outro exemplo, este bem próximo: Harvey (2012) afirma que é


necessário, na atual conjuntura mundial, que as pessoas comuns, os
trabalhadores do mundo se auto-organizem politicamente dando uma
resposta clara e contundente à crise do capitalismo global. Em primeiro
50

lugar, controlando seu processo produtivo e, depois, se auto-organizando


em fábricas, em locais de trabalho nas cidades.

Uma organização social eficaz para a tomada de decisões em


relação ao trabalho e à definição dos mecanismos de produção era algo que
o Estado fazia. Agora, o fariam as pessoas com um critério de auto-
organização e coordenação; e inclusive o próprio Estado, mas reforçado e
direcionado ao benefício do povo e não do capital, como até então.

Isto vem acontecendo realmente agora, sob um enfoque no qual a


ideia de limite já não representa um muro, convertendo-se em uma porta.
Visão que coincide com Gramsci, quando este proclamava que “a
verdadeira revolução acontece como reforma intelectual e moral”. Quer
dizer, como coisa que opera não só na estrutura econômica e na
organização política da sociedade, mas também e especificamente, sobre o
pensamento, as orientações teóricas e, até, sobre o entendimento da
realidade.

São possíveis outras formas de poder? Referimo-nos ao poder sem


dominação. Se a questão é “mudar o mundo sem tomar o poder”, a
resposta é não; é impossível outra forma de poder distinta do poder como
dominação se o nosso objetivo é precisamente tomar esse poder.

Mas, se o que pretendemos é o domínio sobre nós mesmos, através


da reconfiguração de espaços de poder desde/e nas bordas, a resposta é
sim. Sim, existem outras formas de poder: o poder heterárquico, o poder
como potencialidade, o poder da vida, o poder emancipador, o poder da
fonte (no sentido positivo), o poder subversivo, o poder “orbano” e,
finalmente, no caso desta tese, o poder da borda à borda, o poder-borda-
poder15.

15
Poder/Borda/Poder: Se refere a um processo da consciência individual que se transforma
em consciência coletiva, que se transforma em consciência cósmica, que se transforma em
consciência quântica; e é, também, a potencialidade de (poder) ser-estar-dentro-fora-
51

No sentido negativo, o poder orbano diz respeito ao conflito entre a


noosfera e a tecnosfera; ambas, criações humanas, mas com repercussões
planetárias. A noosfera (ou evolução da consciência universal) é uma ideia
que surge do kosmizm russo e se baseia numa tese do biogeoquímico
Vladimir Ivanovich Vernadsky (São Petersburgo, 1863 - Moscou, 1945),
segunda a qual a Terra seria a superposição de cinco realidades integradas:
a litosfera, entendida como a esfera sólida da Terra; a atmosfera; a biosfera;
a tecnosfera, resultado da ação do homem; e a noosfera, a esfera ou “rede
de pensamento”.

No sentido positivo, quer dizer, não hegemônico, o poder orbano


como capacidade de autogoverno em diferentes escalas organizacionais
define espaços de poder (“interno”) sem dominação externa, os quais são
reconhecidos politicamente por um autêntico sistema democrático, muito
semelhante à ideia de governança.

Um governo cuja autoridade é exercida por uma coletividade de


pessoas, de maneira compartilhada e por relevos, relacionando-se
heterarquicamente com outras fontes de poder, em um campo relacional
global, e baseando seus critérios de desenvolvimento na capacidade de
desempenho mais do que na competência. Possibilitando, assim, a
emergência do poder da vida e orientando a verdadeira tomada de poder no
“eu mesmo”; a emergência do “mim mesmo” como um sistema consciente
de ser e sempre pronto a se transformar.

Existem inúmeras versões desse conceito tão polissêmico que é a


governança; elas são tão diferentes que não vamos apresentá-las aqui.
Nesta tese, nos interessa incorporar a noção de governança enquanto
substituta da forma clássica de democracia, que foi colocada comodamente

acima-abaixo (simultaneamente), Em/Desde-A/À Borda, possibilitada pela emergência do


poder orbano.
52

na contemporaneidade, em detrimento do marco limitado do Estado-nação


no qual surgiu a democracia moderna.

Filibi-López relembra que é possível chegar a uma democracia real,


para além do Estado Moderno, devido a fatores como “a crescente
complexidade da sociedade atual, a progressiva diluição entre o público e o
privado, o reconhecimento de novos sujeitos políticos, a superposição de
distintas ordens jurídicas, [...] e a possibilidade de (re) construir
comunidades políticas a partir de uma pluralidade de demos” (FILIBI-
LÓPEZ, 2005, p. 34).

A governança (distinta da governância, mas parecida à


governabilidade) é reconhecida como o “quinto poder”, se definindo, às
vezes, como uma “nova forma de governar” na globalização do sistema-
mundo, depois da queda do muro de Berlim. Sustenta-se no poder
relacional e atua como resposta à tão desejada mudança de paradigma
difundida nos anos 90´s.

Existe, inclusive, um Índice de Governança Mundial (IGM) cujos


temas, na forma de indicadores e índices compostos são: paz e segurança,
Estado de direito, direitos humanos e participação, desenvolvimento
sustentável, desenvolvimento humano; o que nos aponta dois caminhos
possíveis a seguir – um governo mundial único, sob uma ditadura
consentida disfarçada; ou uma autêntica regulação de relações
interdependentes, na ausência de uma autoridade política mundial.

Vamos tomar, então, de agora em diante e para efeito deste trabalho,


o termo “orbano”, que vem de “orbanismo”, da arquiteta brasileira Rosane
Azevedo de Araujo.

Tomamos esta concepção enquanto uma ideia ligada ao poder não


hegemônico, que vai nos permitir, nesta visão da borda à borda,
compreender melhor o processo borda-poder-borda como um processo da
53

consciência individual que se transforma em consciência coletiva e da


consciência cósmica que se transforma em consciência quântica.

Cabe ressaltar, que o fato de se encontrar fisicamente acima/abaixo


não corresponderia necessariamente à categoria de dominação
(acima/abaixo), dado que o anterior depende de fatores de tipo simbólico,
diferentes para cada país, se articulando e produzindo resultados distintos,
claramente classificados como assentamentos humanos de qualidade de
vida «inferior».

Temos exemplos assim na história de nossas cidades latino-


americanas, com variações que reproduzem a hierarquia dos critérios
separatistas e discriminadores, como os denunciados pelo educador, físico
e filósofo Georges Vigarello (n. Mônaco, 1941), com relação às noções
higienistas de “limpo” e “sujo”; ou pela arquiteta Raquel Rolnik (n. São
Paulo, 1956), com respeito a ideias racistas como “branco”, “preto” (Rolnik,
1989), etc. Condições que estão longe de desaparecer após o processo
modernista próprio das cidades industriais, o qual aconteceu parcialmente
em países hoje considerados semiperiféricos como o Brasil, o Chile, a
Argentina e o México.

Os demais países latino-americanos ostentam o título de


subdesenvolvidos, segundo os padrões culturais do modelo de
desenvolvimento imposto pelos países dominantes e admitidos (lógico)
pelos dominados, o qual estabelece as relações de maneira hegemônica e
sob um critério de subalternidade.

A cidade latino-americana, assim entendida, representa um crisol


para a produção de novas identidades culturais, em lugares e tempos
específicos, numa dialética entre identidades urbanas centradas e fechadas
versus a probabilidade emergente de novas identidades baseadas mais na
“tradução” do que na “tradição”.
54

Em meio ao complexo processo de reconfiguração urbana desde/ e


nas bordas se torna urgente o estabelecimento de práticas baseadas em
novas tipologias de projeto, tanto urbanas como arquitetônicas, capazes de
promover uma transição à sustentabilidade, na qual o desenvolvimento
econômico e social se encontre indissoluvelmente integrado à qualidade
ambiental da vida.

Certamente, se trata de um verdadeiro processo político, cuja tomada


de consciência se dá fora de qualquer texto e a um nível cosmopolita, mais
além das bordas; o qual, mais que se afirmar na tradição, requer uma
tradução nos três níveis que Boaventura de Sousa propõe: intelectual,
emocional e afetivo.

O trabalho de tradução é o procedimento que nos resta para dar sentido ao mundo
depois dele haver perdido, tanto o sentido como o direcionamento “automáticos”
que a modernidade pretendeu conferir-lhes ao planejar a história, a sociedade e a
natureza (BOAVENTURA de Sousa, 2008, p. 134).

Os resultados de tais processos serão analisados mais adiante, no capítulo


III, como parte da problemática das bordas. No que tange a esta primeira
reflexão conceitual, a hierarquia (consensual ou não) gerou em primeira
instância uma política pública segregacionista que veio separando,
diferenciando os seres humanos de todas as maneiras possíveis, em
minorias raciais, sexuais, religiosas, incapacitados de todo tipo, etc., a partir
de raciocínios ideológicos.

Uma primeira aproximação política à noção das bordas nos diz que
elas são formas tipicamente urbanas, próprias do fenômeno histórico
urbano ligado ao exercício do poder, entendido sob a lógica da dominação
entre os seres humanos, que vão desde a segregação residencial até
aglomerações urbanas metropolitanas de determinados fenômenos, e,
geralmente, estão associadas à concentração espacial de oportunidades
que só as cidades contemporâneas podem oferecer.
55

O caráter segregacionista desta primeira aproximação ao fenômeno


em análise se manifesta tanto no acesso a recursos básicos (posse da
terra, propriedade privada, trabalho digno, salubridade, saúde, educação,
representação pública, sufrágio político, etc.) como na separação de áreas
residenciais nas cidades, com a consequente conformação de verdadeiras
16
ilhas urbanas ou “guetos” , tal como o entende Harvey, na segunda etapa
de sua vida intelectual, através de sua teoria do desenvolvimento geográfico
desigual.

Entender os limites do capitalismo nos lugares onde eles são


evidentes (as cidades), as diferenças econômicas, as classes sociais, as
raças, assim como as graves diferenças de nível educacional e de acesso
aos recursos básicos que uma sociedade “civilizada” oferece a seus
habitantes é algo que nos permitirá compreender (tardiamente, eu diria)
como a segregação se relaciona com os processos de especulação e renda
do solo urbano e como daí se configura a gentrificação de nossas
metrópoles contemporâneas.

Ainda que estes fenômenos, tradicionalmente, estejam associados a


“nossa” periferia capitalista e ao subdesenvolvimento (considerado
tipicamente latino-americano), certos eventos ligados à escassez, na
Europa e nos Estados Unidos, não podem mais ser ignorados; como a
“nova pobreza”, vinculada ao desemprego tecnológico, e seus efeitos no
espaço urbano sob a forma do aumento da segregação residencial, nos
termos em que fala o professor e geógrafo Marcelo Lopes de Souza (n.
1973, São Paulo), para quem a segregação residencial é talvez a maneira

16
O termo anglo-saxão Ghetto (entendido como bairro de imigrantes pobres) evoluiu, desde
o século XVII – XIX, do conceito em espanhol Gueto (entendido como segregação
espacial), e apareceu em 1984 no Dicionário da Língua Espanhola da Real Academia,
embora entendido como Gueto Judeu Romano e, somente a partir de 1992, foi
acrescentada a noção moderna do mesmo. Por outro lado, o primeiro Guetto conhecido na
história surgiu na Veneza do século XV, com os judeus que eram proibidos de adquirir
terras, e ainda que pudessem trabalhar de dia, à noite deviam regressar e não podiam sair.
56

mais crua e representativa de todas as formas de segregacionismo


manifestadas no Brasil.

É comum entre as pessoas perceber a favela como uma espécie de


símbolo do mal, especialmente no imaginário da classe média. Um discurso
hipócrita através do qual, e devido ao padrão cultural da segregação
residencial do Rio de Janeiro, se tornam mais explícitas as contradições em
outras cidades latino-americanas e do mundo, onde elas são dissimuladas
em função do tamanho, não tão evidente, da separação entre ricos e
pobres.

Agora, e para introduzir a segunda parte da conceptualização das


bordas, referida ao processo que se segue à manifestação de uma política
segregacionista no espaço, cabe perguntar, antes de colocar a análise da
problemática das bordas, se os programas de governo baseados em
políticas públicas participativas (que podem, no máximo, reduzir um pouco a
segregação residencial) são politicamente “suficientes” para (ao menos)
retardar também a fragmentação do tecido sociopolítico-espacial nas
cidades latino-americanas.

Embora a fragmentação como fenômeno urbano seja algo


relativamente bem estudado, desde os anos 60´s, o equívoco de considerá-
la sinônima da segregação consiste em confundir a espacialidade urbana
com a divisão espacial do trabalho e cair nas soluções “estratificantes”, das
quais é difícil sair bem. Também é comum confundir a fragmentação com a
diversidade cultural, que se deve a uma visão multicultural desprovida de
interculturalidade.

Voltando à justificativa da expressão «fragmentação do tecido sociopolítico-


espacial», deve-se sublinhar que a fragmentação em questão é espacial, e não
setorial, como é o caso nos trabalhos que tomam o termo «fragmentação» como
uma espécie de sinônimo de «aumento de disparidades socioeconômicas» e como
contraponto à globalização. [...] Por fim, ela não é meramente uma nova maneira
de designar a segregação residencial, muito embora a segregação se veja, na
esteira do processo, agravada, por conta de novos ou renovados preconceitos
contra os moradores de favelas (LOPES de Souza, 2008, pp. 57, 58).
57

A ideia de participação que nos interessa para efeitos desta tese é aquela
que tem duas bases que se complementam: uma base sensorial afetiva e
outra estratégica. O primeiro fundamento da verdadeira participação
consiste em querer participar pelo prazer de fazer as coisas com as
pessoas. O segundo fundamento consiste em participar porque é
conveniente fazê-lo, para alcançar o que não podemos ou não queremos
fazer sós.

Uma verdadeira política pública participativa (PPP), a “autêntica


conspiração”, nesse sentido não existe, já que as polìticas públicas são
desenhadas para manter o status quo. Haveria que redefinir para a
contemporaneidade o papel do Estado e o status quo de cidadania das
pessoas que querem ou têm que viver nas margens, em condições e
situações de segregação e fragmentação.

Quando falamos em recolocar o papel do Estado contemporâneo,


queremos dizer pensar uma maneira alternativa de organização e gestão
mais participativa, inclusiva, e que privilegie beneficiar, em primeiro lugar, às
pessoas. Temos visto que a solução de um Estado corrupto no curto prazo,
como entregar o poder ao setor privado, constitui um desastre no longo
prazo.

Em troca, e como dizia a poetisa Marilyn Ferguson (Banning, CA


1938 - 2008): “Armados, como estamos agora, de uma compreensão mais
adequada dos processos de mudança, sabemos hoje que as mesmas
forças que nos levaram à beira do abismo a nível planetário trazem no seu
interior as sementes da renovação” (FERGUSON, 1985, p. 22).

Frente a uma indiscutível e evidente globalização hegemônica,


baseada na lógica racional do pensamento ocidental que sustenta, por sua
vez, o direito, a ciência e a filosofia modernos, existe a possibilidade de
outra globalização contra-hegemônica latino-americana. As culturas
nacionais como comunidades imaginadas são manifestações urbanas
58

importantes em meio ao processo de homogeneização global


“modernizante”. Tais manifestações se dão paralelamente ao processo
inacabado nacionalizador, através de um poderoso “revival” da etnia, neste
caso, de uma mestiçagem e um discurso mais híbrido e simbólico que
racial.

“No caso da Colômbia, quanto mais atores armados se tem em jogo,


mais complexa é a situação e mais precária a possibilidade de mobilização
e de criação de movimentos políticos contra-hegemônicos nesses contextos
17
armados” . A definição prévia desses conceitos é muito mais problemática
(desafiante), na medida em que se incrementa a diversidade e a
complexidade, e na medida em que reconhecemos que existem diferentes
modos de produção de globalização, constituídos por diferentes
globalizações localizadas.

Segundo Luciano Gruppi (Torino, 1920 – Albano Laziale, 2003), a


hegemonia, nos termos de Gramsci, explica que, quando as classes
inferiores desenvolvem sua própria concepção do mundo conseguem o
consenso ativo de outras classes e camadas da sociedade, e uma mudança
nas coordenadas do imaginário das sociedades.

É necessário que a herança da filosofia clássica alemã seja, não só inventariada,


senão convertida em vida ativa: por isto é necessário acertar contas com a filosofia
de Croce, posto que para nós italianos, ser herdeiros da filosofia clássica alemã
significa ser herdeiros da filosofia crociana, que representa o momento mundial
atual da filosofia clássica alemã [...] (GRAMSCI, OP: 1971 p. 206).

Aceitando-se a tese de Gramsci de que, na realidade, tudo é político,


incluindo também, por certo, “a” filosofia ou “as” filosofias, podemos, então,
também afirmar que a única filosofia é a história convertida em ato, quer
dizer, “a vida mesma”.

Se a filosofia é história é porque é história da filosofia, se a filosofia se desenvolve


é porque se desenvolve a história geral do mundo [isto é, as relações sociais nas

17
Entrevista de Santos Boaventura de Sousa na Universidade Nacional da Colômbia, em
março de 2003.
59

quais vive o homem], e não porque a um filósofo lhe ocorre uma filosofia “maior”
[...] e é claro, que trabalhando de maneira prática por fazer história, se faz também
filosofia [...] Entre a abstração remota e a história da filosofia, concebida como uma
só filosofia, e que levará à identificação (ainda quando especulativa) entre história e
filosofia, do fazer e do pensar, até o proletariado alemão como um único herdeiro
da filosofia clássica alemã (GRAMSCI, OP: 1971 pp. 243, 251).

Concordamos então com Gruppi (1978), afirmando que, nesse sentido, se


pode interpretar a tese marxista do proletariado alemão como herdeiro da
filosofia clássica alemã e podemos dizer, que tanto a elaboração teórica
como a materialização da hegemonia idealizada por Ilich se converteram
em um grande acontecimento “metafìsico”.

Esta é uma discussão subordinada sobre uma luta subparadigmática,


que não nos permite dimensionar a necessária reconfiguração das
estruturas de poder em termos da emergência de um novo paradigma ou do
reconhecimento de novos paradigmas.

O necessário entendimento (fundado em outra lógica mais flexível,


mais híbrida, mais mestiça inclusive) da conexão necessária entre os
aspectos naturais e artificiais do fenômeno urbano latino-americano
contemporâneo (expressa no campo unificador da supradimensão cultural
do que podemos compreender como realidade), possibilita a reconfiguração
das condições de vida e do ambiente desde/ em nas bordas, vistas como
interfaces e interstícios que articulam a cidade para fora e para dentro.

1.3._ Os de Dentro e os de Fora.

“As periferias são o estado de exceção da cidade, o terreno em que


ininterruptamente se desencadeia a batalha que decide entre a cidade e o campo.
É a luta corpo a corpo dos postes de telefone contra as pitas, dos arames contra as
pontiagudas palmeiras, dos vapores de becos fétidos contra a sombra úmida dos
plátanos, que proliferam nas praças”.

Walter Benjamin, “Sobre o Haxixe”, 1930.


60

Uma segunda aproximação à compreensão das bordas se dá pelo


reconhecimento da existência de uma fonte de poder. Em um sentido
negativo, a fonte de poder se encontra fora de nós sendo, portanto, algo
que não nos pertence, que devemos obter e, se não for possível, ao menos
que estejamos próximos, dentro dos limites de seu poderio.

O conceito de poderio como os limites do exercício do poder se


baseia no fato de que, apesar de a natureza do poder (dominação) não
mudar, mudam sim o seu significado e as suas consequências, à medida
que o exercício desse poder vai se afastando da fonte (autoridade ou
entidade que ostenta/detém tal poder). A ideia de poderio aqui está
carregada de conotações negativas quanto à noção de poder.

O poder como capacidade envolve a força de alguém sobre os


demais, encarnando uma entidade e/ou exercendo poder em/através de
uma organização de pessoas. Seja de maneira soberana, compartilhada e,
inclusive, simbólica sempre envolve uma relação de dominação e é exercido
até os limites possíveis.

Por outro lado, e em sentido positivo, a fonte de poder está dentro de


nós e, nessa medida, é algo que todos podemos ter se empreendermos a
verdadeira tomada de poder, tanto individual quanto coletivamente.

Esta concepção alternativa corresponde a uma relação horizontal


frente a qual, e articulando-se à noção de vida como vontade de poder,
quem está mais próximo de sua fonte de poder está dentro e quem está
mais longe de si mesmo está fora do âmbito desse poder.

Em ambos os casos, a potência da vontade de poder define a


extensão em que é exercido o domínio. Em se tratando do poderio negativo,
supõe um acordo, ou ao menos uma coerência em termos do controle
territorial entre dominados e dominantes, dada a natureza simbólica que
persiste em nossas sociedades latino-americanas.
61

Seguindo-se (de maneira convencional e penso que erroneamente)


as obras metafísicas de Aristóteles, podemos determinar quando a potência
se transforma em impotência, no sentido da submissão do poder imanente
da criação que existe em qualquer um a um suposto poder soberano, sem o
qual não poderia ser exercida qualquer atividade. Isto garante
transcendência aos eventos, ainda que eles sejam os atos que celebramos
no outro no qual depositamos o poder de nos subordinar e dominar.

Somente assim, podemos explicar o padrão cultural de assentamento


populacional onde as pessoas, em condições de suposta inferioridade e
subordinação quanto às classes dominantes, vivem espacialmente
marginalizadas quanto a vantagens de habitar na cidade, mas não
abandonam definitivamente o lugar, constituindo uma espécie de
“urbanoide” em relação ao fenômeno urbano (fazendo uma analogia entre
os termos humanoide e humano).

Contra todo o prognóstico planificador, parece que este morador


considerado “marginal” se apega cada vez mais firmemente a esse território
de pobreza e desamparo; sempre referido a esse suposto centro de poder
urbano que detém a fonte de domínio.

O poder urbano assim entendido remete à fonte de poder negativo,


fora de nós, mediado por relações simbólicas de domínio, estruturadas em
uma política disciplinada e regulamentada pelo Estado. Este poder, com tais
características, geralmente se materializa em uma cidade e se estende até
onde pode ser exercido, delimitando uma porção de território no qual um
discurso culturalmente construído o legitima, segregando e submetendo o
“resto” do espaço, que é visto como área rural a serviço da cidade.

Uma vez que a capacidade de autonomia (a verdadeira imanência


dos seres humanos) é submetida ao poder urbano, se perde toda a
possibilidade real de transformação do habitat. Limita-se a evolução natural
em prol de outra cultural que depende da materialidade do fenômeno
62

urbano: atos sem potência, sem possibilidade de transcendência; e não


tanto da mobilidade e da vida, nem da imanência que transcende os efeitos
da urbanização das causas que deram origem à cidade.

Surge, então, ou ao menos se evidencia, espacialmente, o conceito


de borda como sedimentação de instantes (tempo) e de lugares (espaço),
em função do movimento para fora e para dentro daqueles que se afastam
e se aproximam da fonte de domínio, que os aterroriza e seduz
simultaneamente, estruturada em sistemas simbólicos artísticos
(arquitetônicos e urbanísticos inclusos), religiosos e de linguagem.

Sedimentação esta que pode ocorrer entre entes territoriais tão


diversos (campo e cidade) quanto paradigmáticos (favela e bairro), mas
sempre nos limites legitimados pela força da razão jurídico-administrativa
em um lugar (ou lugar-nenhum), dependendo da natureza antropológica do
espaço-tempo e da consciência (ou consciência-nenhuma) que as pessoas
têm dele.

Mesmo essas noções espaciais, que podem ser mapeadas “em


planta”, contêm uma relação de subordinação hierárquica: o rural serve à
cidade e a favela ao bairro, etc.

Mas quem está “fora” o está somente quanto a um “dentro”


reconhecido socialmente. Ou seja, a segregação e mesmo a
autossegregação são estratégias de dominação consentida. Não existe fora
nem dentro nas bordas, a não ser com referência a este “limite”.

Os historiadores afirmam, há muito tempo, que uma minoria criativa é


capaz de reordenar uma sociedade. Esta relação não é estática, representa
uma dinâmica, por vezes, independente do fenômeno histórico que deu
origem à borda. Somente assim, se explica porque as minorias
(frequentemente marginalizadas) são, na verdade, as maiorias submetidas,
quanto à quantidade relativa de uma população determinada.
63

A cidade “antiga”, também chamada “pré-industrial” (na perspectiva


teimosa e proléptica18 da ideia “razoável” que toma o progresso em
flashforward), pode ser demarcada claramente por suas bordas (algumas
inclusive amuralhadas) e, portanto, o seu interior e o seu exterior podem ser
determinados também na relação dominação-território.

Edward William Soja (n. 1940, Bronx NYC), se refere a elas como as
primeiras cidades (cidades-Estado); produtos da segunda Revolução
Urbana na história da humanidade, onde o exercício de poder, que estrutura
o território integrando-o, mescla elementos de controle da sociedade civil
aos primitivos elementos simbólicos.

Havia ao menos uma praça pública que pode ter servido como mercado, e uma
grande quantidade de pequenos pátios, que provavelmente eram usados como
fossas de lixo. Havia também muitos santuários, aproximadamente um em cada
quatro casas, mas não havia sinais da existência de um centro ou templo religioso
dominante. [...] A natureza não existe somente fora da cidade de Catal Hüyük, mas
também está incorporada em sua cultura territorial e em sua zona simbólica como
um elemento fundamental da economia e da sociedade locais, indicando o início da
produção social de uma “segunda natureza” intricadamente implicada no processo
de urbanização (SOJA, 2008, pp.73-90).

A cidade industrial, também chamada “moderna” (pelo viés metonìmico, que


tende a assimilar a modernidade ao desenvolvimento capitalista), tende a se
fragmentar de tal maneira nas suas funções espaciais e pela separação
planificadora, que passa a ter muitos “fora” e muitos “dentro” e, assim, a
proliferação das bordas, por vezes, se confunde com outras áreas urbanas
independentes. Esta ideia vai ser mais bem desenvolvida adiante, na
Cidade da Borda.

Mas, há realmente na realidade latino-americana essa pós-cidade


moderna e fragmentada ou ela é uma ilusão representativa que oculta o
verdadeiro fracasso da tentativa modernizadora do espaço urbano? Nesse
sentido, dificilmente poderíamos falar da existência de uma pós-metrópole

18
A prolepse é uma das características da razão ocidental que faz com que nós
acreditemos que os acontecimentos da realidade vão sempre para diante e que as coisas
do passado (no tempo visto como linear) são sempre atrasadas com respeito ao atual, que
deve ser então o “moderno”.
64

latino-americana; ao menos nos termos em que fala Soja, no seu


interessante discurso sobre a metrópole pós-fordista (pós-industrial);
“cosmópolis”, “exópolis”, “fractalópolis”, “archipielagópolis” e
“imaginariópolis” (Simcities).

Soja estabelece, no caso de todas estas manifestações, a relação do


urbanismo com o princípio de coabitação (estímulo à aglomeração urbana).
No caso desta tese, nós acentuaríamos também a relação do urbanismo
com o princípio de irreversibilidade (estímulo à proliferação das bordas),
para falar da existência de uma pós-metrópole latino-americana.

O importante aqui é entender que o processo de proliferação de


estruturas marginais em nossas metrópoles contemporâneas é irreversível,
na medida em que jamais vai se recuperar a energia dispersa pela
fragmentação do tecido urbano, tendo em conta à tendência global
predominante de produção capitalista do espaço. O que varia
substancialmente é o padrão de configuração desta tendência e, portanto, o
grau de irreversibilidade dos fenômenos urbanos na borda quanto à
proximidade ou afastamento do sistema de domínio.

Ambos os processos - a tendência à formação de cidades de


pequenos assentamentos e a consequente proliferação de assentamentos
às suas margens – se dão “glocalmente”, que é um processo múltiplo,
simultâneo, desigual e assimétrico que tem também consequências muito
diferentes e frequentemente contraditórias no centro e na periferia do
sistema-mundo.

O que, sim, é evidente, é a política de segregação social que se


manifesta na fragmentação física do espaço das nossas cidades latino-
americanas contemporâneas. A proliferação de “outros espaços” como
lugares das diferenças de etnia, de gênero e inclusive de classe social e
que são entendidos, contemporaneamente, como heterotópicos.
65

Certamente, chegamos a esta marginalização ou exclusão das


vantagens (e desvantagens) que o fenômeno urbano produz, por caminhos
diferentes dos europeus e norte-americanos. A pergunta é: vale à pena
continuar nessa direção?

Analisaremos mais detalhadamente este fenômeno de fragmentação,


no capítulo que trata da problemática das bordas. Por ora, vamos nos
concentrar em aspectos da conceptualização das bordas.

A fragmentação, somada à problemática das bordas na cidade


contemporânea, é um verdadeiro desafio ao planejamento e à gestão
urbana. Cabe ressaltar que a fragmentação em questão é espacial e não
setorial. Quer dizer, não convêm considerar a fragmentação simplesmente
como um aumento de disparidades socioeconômicas e nos conformarmos
com a ideia de que ela seja uma espécie de “freio” à globalização, como
falam alguns pós-modernistas.

Entre outras coisas, se aceitamos a ideia que não há uma


globalização, mas múltiplas, diversas e simultâneas glocalizações,
percebemos como, além do anterior, a fragmentação urbana é
fundamentalmente sociopolítica, visto que a disseminação de
“territorialidades excludentes” envolve, diretamente, a própria sociedade
civil.

De qualquer modo, enfocando a problemática da cidade


contemporânea a partir das bordas, podemos afirmar que a fragmentação
do tecido sociopolítico-espacial é um fenômeno complexo que não pode se
reduzir simplesmente à segregação residencial, embora esse aspecto às
vezes pareça prevalecer, como, por exemplo, nos novos e renovados
preconceitos contra os moradores de favelas no Rio de Janeiro.

Não devemos confundir dois fenômenos tão complexos e


interdependentes como segregação e fragmentação. Mesmo quando se
66

observam processos de territorialização por traficantes “menores” e as


favelas se tornam enclaves territoriais em uma dialética de
abertura/fechamento versus organização em rede; questão que atinge,
igualmente, consumidores e fornecedores de drogas e armas.

A marginalidade é real, consiste em uma separação efetiva (e eu diria


que afetiva) de um grupo humano em relação a outros. Este processo pode
apresentar graus e mecanismos distintos, desde a indiferença (ignorância)
até a repressão e o apartheid geográfico que traz consigo a desconexão
territorial.

Ser borda, nesta realidade, corresponderia, então, a uma categoria


da existência humana na qual conscientemente habitamos o limite, a
fronteira, o interstício, o limiar, o fragmento, o fractal. Ou seja, aquele loop
urbano que naturalmente vai e vem; que transcende todas as diferenças
horizontais e verticais impostas ao mundo (civilizado ou não) pela razão
ocidental dominante.

Nada de novo sob o sol, mas, infelizmente, para nós urbanistas, algo
ainda desconectado de nossa compreensão da realidade contemporânea. A
fragmentação urbana já havia sido estudada amplamente, desde finais do
século XIX até meados do século XX, por Fogelson (1967). Mas ela não foi
percebida até que entendêssemos o que Mandelbrot (1977) queria dizer
sobre o antigo princípio de autossemelhança – que havia morrido com a
modernidade e o reducionismo filosófico e que renasce, séculos depois, em
virtude do entendimento das escalas de complexidade da realidade.

O uso da palavra anglo-saxônica loop para pensar o fenômeno


urbano, no caso específico deste trabalho sobre bordas, se refere à
probabilidade emergente de ocorrências (condições-situações), em
diferentes escalas, que “giram” como uma espiral ao redor de atratores
“estranhos” (LORENZ, 1966, pp.95-109); uma espécie de “efeito borboleta”
67

que gera, em todo fenômeno urbano, uma dependência sensível das


condições iniciais (históricas).

A interpretação do urbano como um sistema não-linear permite, pelo


menos inicialmente, imaginar a cotidianidade de estar-no-mundo como algo
que se repete, ainda que não da mesma maneira; fenômeno que ocorre de
forma diferente, mas semelhante, em diferentes escalas, criando a
percepção “fractal” da realidade.

Um relato de como opera a autossemelhança se encontra na


descrição que Mandelbrot faz, em seu ensaio Fractais e o renascimento da
teoria da iteração, sobre como a simplicidade (o princípio iniciador da
Arquitetura) gera a complexidade da realidade (MANDELBROT, 1968, pp.
151-160).

No caso de qualquer país latino-americano, africano, asiático e


mesmo em qualquer país do mundo que se considera desenvolvido,
existem referências da imagem urbana que se repetem acerca do que
convencionalmente se considera marginal, pobre, deficiente em termos
arquitetônicos e urbanos que giram, como em um loop, ao redor de
variáveis que em geral não podem ser resolvidas, porque correspondem a
sistemas não-lineares que não se combinam uns com os outros, que não
“encaixam” e que, assim, são preferivelmente ignorados.

A imagem da borda contemporânea tem várias dimensões de loop,


dependendo das escalas de aproximação da análise. Vamos mencionar
duas: uma dimensão interna que lhe é própria, o mosaico de prédios
construídos com materiais similares que dão ao conjunto habitado uma
aparência de precariedade e irregularidade quanto ao padrão cultural do
urbano legal e socialmente aprovado e o movimento ou zoom que é
produzido pelo observador ao se sentir observado, quando faz parte da
realidade; momento no qual experimenta o limiar.
68

Na modernidade, a ideia de limite era utilizada para definir a


quantidade mínima de esforço necessário para sobreviver.
Contemporaneamente, se reconhece a ideia de realidade como limite; uma
situação na qual emergem mudanças drásticas de uma realidade à outra.

A condição humana de viver no limite não é marginal e se constitui


em um privilégio para aqueles que escolhem pensar na perspectiva da
borda: “como o fora e o dentro do pensamento, o fora-nãofora ou o dentro-
nãodentro” (DELEUZE e GUATTARI, 1991, pp. 59, 201). Estes filósofos
contemporâneos entendem a imediatez da vida como a imanência da vida.
Conceito este, que integra a ideia de vontade de poder e a noção de eterno
retorno; seja como ação sem essência, seja como potência (poder) sem
ação. Trata-se então de tentar definir, como faz Foucault, “o pensamento do
fora”.

Algum dia se terá que tratar de definir as formas e as categorias fundamentais


deste “pensamento do fora”. Ter-se-á, também, que fazer um esforço para
encontrar os rastros do seu percurso, para descobrir de onde vem e que direção
toma. [...] Sem dúvida, nada menos seguro: pois em uma experiência semelhante
do que se trata é de se pôr “fora de si” para voltar a se encontrar no final, envolver-
se e recolher-se na interioridade resplandecente de um pensamento que é de pleno
direito Ser e Palavra, Discurso, portanto, mesmo que seja para além de toda
linguagem, silêncio, para além de todo ser, nada. (FOUCAULT, 1966, pp. 6,7).

1.4._Aqueles da Borda.

Esta expressão corresponde a uma ideia de limite que configura a natureza


do “ser fronteiriço” que, segundo o filósofo Eugenio Trias Sagnier (n.
Barcelona, 1942), é o limite entre espaço e tempo, uma noção que coloca a
nós mesmos como limites do mundo, com um pé no limiar entre a vida e a
morte: o ser à borda.

A borda como sedimento (o que resta de uma relação dinâmica)


entre o superior e o inferior, o interior e o exterior de uma condição e
situação dadas, mas passíveis de modificação. Quem está na borda pode
69

estar dentro ou fora, acima ou abaixo dependendo de por onde se o


compreenda. Geralmente, associamos esse “sedimento” com o resìduo,
algo próprio do lado negativo da condição da borda. Ou seja, segregação
política das relações sociais e (pior ainda) fragmentação do espaço (real ou
imaginária) da dita segregação.

É especialmente difícil para nós, que tivemos o privilégio de estudar e


estruturar nossas mentes o suficiente para (por exemplo, escrever esta
tese), afastarmo-nos da crença (supostamente científica) de que realmente
existe uma separação material e não material entre ricos e pobres,
instruìdos e não instruìdos, cidadãos e “favelados”, eurodescendentes e
afrodescendentes, homem e mulher, enfim, entre poderosos e
marginalizados.

Por outro lado, se quisermos escapar desta armadilha do poder como


prisão do ser é necessário, primeiro, desconstruir a ideia de limite, antes de
tomar a problemática da borda/à borda como um evento a mudar. Entre
outras coisas, porque a ideia de problema é também um limite imposto à
realidade pela razão ocidental; ideia que também é dominante a nível
mundial.

Entretanto, os da borda (são) a fronteira, quer dizer: os estrangeiros,


os imigrantes e viajantes que fluem de um espaço de conteúdo a outro. O
evento a mudar consiste em reconhecer essa potencialidade, essas outras
formas de poder sem dominação, ou ao menos imaginar a possibilidade que
temos de desmascarar e destruir esse poder simbólico (de qualquer
maneira imposto).

O pesquisador argentino de antropologia forense Pablo Allegritti


propõe para alcançar isto um deliberado des-conhecimento, que implica
uma conscientização da arbitrariedade praticada até então por uma oculta,
onipotente e falsa “rede de iluminados”, supostamente lutando pela
70

democracia, e que falam o tempo todo sobre como conceber e realizar um


“mundo livre” genuìno.

Um mundo no qual tudo tem um alto preço em termos de vida, um escravizante


espaço de poder e um insuportável tempo sem esperanças Um totalitarismo
encoberto e uma constelação de mentiras escondidos magistralmente por trás de
uma farsa democrática, nos quais cada pessoa ficaria presa ou dominada,
psicológica e geneticamente (ALLEGRITTI, 2010, p. 15).

O escritor Alfons Cervera (n. Valencia, 1947) nos ensina que há outras
formas de mudar o mundo, se deixarmos de lutar “contra o amor e outras
formas de poder” (Cervera, 2002) e passarmos a tentar “mudar o mundo
sem tomar o poder”, de acordo com Holloway (2002). Ambos concordam,
em arenas de luta distintas, que o poder não é algo que se pode “tomar”,
pois não pertence a alguém ou a uma instituição.

A luta pelo poder é objeto de estudo daqueles que se dedicam a


analisar o conflito, daqueles interessados em compreender por que os seres
humanos se tratam com tanta violência e como este fenômeno está
relacionado à vida urbana e aos padrões de desenho culturais.

Essa violência vem do impulso do homem de dominar o outro, o que,


do ponto de vista da consciência do indivíduo depende da sensação de
força ou fraqueza que se estabelece numa aproximação entre, pelo menos,
duas pessoas. Este sentimento tem origem no controle e no estímulo
psicológico que produz a “imposição” ou a “submissão” ao outro. Razão
pela qual existem tantos conflitos, aparentemente “irracionais”, no mundo
todo.

O poder está mais na fragmentação das relações sociais (na borda/à


borda). O Estado, então, não é o lugar de poder que aparenta ser senão,
precisamente, um elemento que opera sistematicamente no retalhamento
das relações sociais. Na verdade, o Estado moderno ao buscar unir a
sociedade através da repressão e da regulação consegue exatamente o
contrário: gera entropia, segregação, fragmentação e violência.
71

O amor, em troca, atuando como uma autêntica “matéria escura”


contribui para a não dispersão do universo. É exatamente o “afeto sem
efeito” que vai nos permitir “mudar sem violência”, tal como Agamben
entendeu o poder do amor: como a paixão do ato em Heidegger, que se
exerce nessa coexistência entre potência e impotência.

[...] ser propriamente impróprio, abandonar-se ao inapropriável [...] não somente


através das múltiplas manifestações do “ser-aì”, [...] senão daquela facticidade
original [ou dispersão transcendental, segundo Mainländer] que pode, devido a sua
impotência, alcançar sua forma [da borda/à borda], a força imóvel do possível
(AGAMBEN, 2005, pp. 369, 407).

Felizmente, existem outras formas heterárquicas de poder sem dominação


com potencial para construir relações de poder sem dominação à borda.
Acontece na informalidade onde, muitas vezes, emerge um poder oculto
“informe”, mas certamente possìvel e, para alguns, até subversivo.

A revelação da verdade objetiva e o aniquilamento da crença é um


processo que já foi contaminado pelo discurso heterodoxo, procurando
destruir as falsas evidências da ortodoxia e apontando os inúmeros
fracassos onde a emancipação foi devorada pelas forças reguladoras que
regem a sociedade. No entanto, ainda nos “emocionamos” (não há palavra
melhor), quando descobrimos o poder de subversão e a vontade de tornar
contemporâneo o futuro daqueles considerados da borda.

De acordo com Holloway (2002-b), a revolução da borda (intersticial)


significa que o poder subversivo, então, é aquele que, através de um árduo
processo de gestação informal, e não de acontecimento (s) único (s) e
irreversível (is), com um conteúdo de transformação radical, alcança a
ruptura de todas e cada uma das relações marcadas pela opressão e a
desigualdade.

Pequenas mudanças que podem ser consideradas reversíveis, no


lugar daqueles processos degenerativos e insolúveis que são, no cotidiano
do fenômeno urbano, as grandes desgraças e sofrimentos que afligem o ser
humano.
72

Dentro dessa categoria da existência, a palavra “borda” pode


designar qualquer tipo de grupo ou ser humano que se sinta (real ou
imaginariamente) excluído da relação dominante entre governantes e
governados, entre os que vivem dentro e fora do sistema. Portanto, é um
evento que pode mudar no que tange à escolha de experimentar ou não a
realidade urbana contemporânea através de uma tomada de consciência.

Podemos registrar como exemplo do que estamos afirmando o que


acontece hoje com as identidades étnicas como um componente das
relações sociais e espaciais no espaço urbano. Uma ideia bastante
individualista, ainda que coletiva, de poder como identidade baseada no
transindividualismo.

O poder como identidade remete à capacidade de criar e recriar


nossa realidade seja por meios físicos, não físicos ou híbridos; seja
recorrendo a estruturas simbólicas (por exemplo, sistemas culturais), ou a
próteses tecnológicas; e, em qualquer caso, gerando uma virtualidade “real”
que consegue materializar as ideias e identificar-se com o objeto.

A identidade vista como resultado de inúmeros processos que


procuram recriar múltiplos padrões culturais, quer dizer, como resultado das
ações que respondem a uma necessidade humana fundamental – que
inclusive podem se tornar um satisfator sinérgico das mesmas – constituiria
então uma fonte de poder que poderia se manifestar em três níveis de
entendimento do “Eu”.

No primeiro, a identidade como poder individual constituída pelo


poder de “alguém”, se baseia na ideia arquetìpica da pessoa “humana”
como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado de capacidades
de razão, consciência e ação. O “centro” é o seu próprio ser, nascido,
desenvolvido e permanente, cuja essência permanece a mesma enquanto o
indivíduo existir.
73

No segundo nível, a identidade como poder interativo. Refere-se à


ideia de sujeito sociológico como resposta à complexidade do mundo
moderno e a uma consciência da formação do sujeito em permanente
interação social, entre o “interior” e o “exterior”, o privado e o público,
tecendo “o social” ao “costurar” o sujeito a uma estrutura simbólica que o
suporta e lhe dá forma.

A passagem da primeira à segunda ideia de identidade engendrou


uma mudança de paradigma do pensamento quanto às concepções de
poder e política. Se, em um primeiro momento, a tendência é de um
governo central forte (cujo poder se exerce sobre outros ou contra outros,
sob as regras rígidas de uma institucionalidade monolítica, onde o respeito
à ética e à moral como valores “dados” e “certos” favorecem o exercìcio do
poder através de representantes); no segundo momento há o favorecimento
da distribuição horizontal do poder e do conhecimento, um poder exercido
com os demais através de um governo dinâmico sujeito a alterações em
que se busca um respeito maior à autonomia individual.

Neste contexto, o trabalho dos interacionistas simbólicos, tais como


George Herbert Mead (South Hadley 1863 – Chicago 1931) e Charles
Horton Cooley (Ann Arbor 1864 – 1929), fornece conceitos fundamentais ao
nosso trabalho, para além do determinismo psicológico que impera no
pensamento moderno, e sob o enfoque de um paradigma interpretativo que
analisa o sentido da ação social na perspectiva dos participantes.

Sob esse paradigma, Mead (1972) concebe a comunicação como


uma produção de sentido dentro de um universo simbólico particular,
enquanto Cooley (1909) desenvolve “o Eu refletido no espelho” como um
conceito psicossocial da organização social, através de três perguntas
fundamentais: Como me vejo? Como imagino que os outros me veem?
Como meu comportamento social depende de meus sentimentos de
74

vergonha ou orgulho? Tais questionamentos nos remetem à ideia de projeto


como paradigma de comunicação na contemporaneidade.

Como diz o jurista Hugo Nigro Mazzilli (n. São Paulo, 1950), a
comunicação configura esta interfaz funcional entre os interesses públicos e
privados, que ele chama “difusos”, dentre os quais surgem os interesses
transindividuais como um terceiro nível de entendimento do “Eu” gerado
pela identidade como poder alternativo (Mazzilli, 2006).

Refere-se à alternatividade do exercício do poder como produto da


impossibilidade de manter uma identidade unificada e estável, e frente à
emergência de mudanças estruturais e institucionais de escala global que
impedem o estabelecimento hegemônico do poder político convencional,
conferindo-lhe um caráter mais provisório, instável e complexo e uma
materialidade mais heteronômica (desde a interculturalidade), a nível
territorial.

Há também reivindicações que podem gerar processos alternativos:


além da ideia de apego ao território como garantia de subsistência e
sobrevivência cultural em terras colonizadas pelo capitalismo transnacional
e, mais recentemente, com relação ao debate sobre o direito à cidade,
suscitado pelas remoções de assentamentos favelados em função da
intervenção urbana; que se deu através de empreendimentos modernistas
e, contemporaneamente, pela realização de megaprojetos e megaeventos
de grande escala.

Tomemos como exemplo do exercício dessa transindividuação, o uso


da palavra “quilombo” em português, cujo equivalente em espanhol é
“palenque”. Quilombo não significa “escravo fugido” como mal ensinam as
definições convencionais, mas sim, segundo a historiadora brasileira Iris da
Silva Salles Nascimento (1989), a união fraterna e livre nascida do encontro
da solidariedade, da convivência e da comunhão existencial.
75

A história mostra que, apesar de os quilombos estarem localizados


inicialmente em áreas de florestas, nem todos eram totalmente isolados das
vilas ou das cidades. A maioria dos quilombos mantinha estreita relação
com as demais comunidades, os comerciantes e com a população em geral.

Um exemplo destes quilombos, que logo foi removido, quando


passou a ser chamado de “favela”, foi o Quilombo do Leblon, na cidade do
Rio de Janeiro, cujos moradores se especializaram no plantio de camélias,
flor símbolo do movimento abolicionista, impulsionados por personagens da
família real e por muitos membros proeminentes da sociedade carioca, no
final do século XIX.

Maria Lúcia Petersen, arquiteta e urbanista da Prefeitura do Rio de


Janeiro, relata suas memórias de infância dos primeiros movimentos de
remoção de antigas favelas do Rio de Janeiro, por razões eminentemente
econômicas.

Morava na Rua Cupertino Durão (no Leblon), que era a saída da Praia do Pinto,
uma favela eminentemente negra. A rua dava acesso à praia e ao bonde
(transporte coletivo). As pessoas que moravam ali prestavam serviços nas casas e
no comércio do bairro [...] Esta população tinha consciência de que morava em um
lugar proibido e que poderia ser removida a qualquer momento [...] considerados
delinquentes [...] uma herança escravista, em que a postura da polícia era
essencialmente repressiva. Era proibida, por Lei, a entrada de materiais de
construção porque as remoções já estavam previstas (PETERSEN, 2003, pp. 9,
10).

Em que momento, os da borda se conscientizam de sua condição marginal


e, apesar disso, decidem (ou são obrigados a) permanecer como tal? A
19
maioria, no entanto, não pode escolher o seu destino . Muitos o têm
“projetado” desde o ventre, porém, há os que tomam consciência de sua
condição de borda, de algo que potencialmente favorece a mudança;
aqueles que preferem viver na fronteira, por exemplo.

19
Destino aqui se confunde com a ideia de projeto de vida. Observa-se na
contemporaneidade o renascer da antiga ideia grega do destino como uma força acima do
poder dos deuses, portanto inalcançável para os humanos mortais.
76

Passemos a outro cenário, não tão “urbano” (ou ao menos


considerado como tal), no qual as manifestações dos conflitos no espaço,
ambientais e sociais, são causadas justamente pelo surgimento das
metrópoles contemporâneas.

Os índios manokis (Münküs), um grupo quase extinto da Amazônia


brasileira, foram expulsos de seu território ancestral, como muitos dos 170
povos indígenas que ainda vivem na região. Eles retornam várias vezes ao
20
ano aos lugares de onde foram expulsos pela Brasnorte , retomando
ritualisticamente a terra e para lamentar a sua devastação (CRUZ, 2009).
Em outra parte dessa imensidão, pequenos armazéns são cada vez mais
comuns na periferia “miserável” de cidades na fronteira agrìcola, como
Altamira, no Pará, onde em meados da década dos anos 90 o governo
concedeu subsídios à agricultura e os grupos dominantes expulsaram os
posseiros, empurrando muitos deles às bordas de cidades como o Rio de
Janeiro e São Paulo.

As consequências da exploração dos recursos naturais para atender


ao aumento do consumo nas grandes cidades em todo mundo são mais
nocivas do que a própria atividade extrativa destes recursos. Na Amazônia,
compartilhada por seis países latino-americanos e uma colônia europeia,
cobiçada pelo resto da humanidade, uma vez que as árvores são
derrubadas e os madeireiros seguem em frente, as estradas franqueiam o
acesso a uma mescla conflituosa de posseiros, especuladores, pecuaristas,
agricultores e pistoleiros.

A ocupação das terras da Amazônia, do lado brasileiro, começou


apenas na década dos anos 70 do século passado, promovida pelo governo
militar com a desculpa de não entregá-la aos países estrangeiros. Vindos do

20
Segundo o jornalista Montezuma Cruz, a Brasnorte nasceu de um projeto da velha
Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), em 1967, beneficiando as
Casas Anglo Brasileiras, de São Paulo. Disponível em:
<http://pib.socioambiental.org/pt/noticias?id=63585&id_pov=172> (Aceso em: 11/11/2011).
77

Nordeste e do Sul, colonos empobrecidos foram penetrando na floresta ao


longo de suas principais rodovias: a Transamazônica e a BR-163.

Daqueles que não morreram e conseguiram sobreviver na região,


alguns voltaram a seus lugares de origem, mas a maioria foi viver nas
favelas do Rio de Janeiro e de São Paulo.

No caso de outros países latino-americanos, vou me referir ao meu


país, à Colômbia (apenas por conhecê-lo melhor), a história foi muito mais
complexa, mas, em última análise, os resultados visíveis no espaço urbano
contemporâneo são muito semelhantes.

Os indígenas que sobreviveram à conquista foram agrupados em


“reservas”, verdadeiros redutos de terras pouco produtivas e afastadas das
cidades, por alguma estranha razão (não humanitária) que a Coroa
espanhola tinha nessa época (Lei de reservas indígenas 21/06/1884). A
maioria conseguiu escapar e se embrenhou na floresta tropical, que nesse
momento não era alvo do interesse transnacional, porque (quase) ninguém
valorizava a biodiversidade e pensava menos ainda na biotecnologia. Mas
também foram expulsos daí pelos negros que conseguiram fugir das
fazendas coloniais e que constituíram verdadeiros agrupamentos africanos
em solo colombiano.

Daí em diante, fez-se um pesado silêncio na história oficial de quase


dois séculos, até que em meados do século passado, após o fracassado
pacto político da Frente Nacional entre os partidos tradicionais (que até a
reforma constitucional dos anos 90 monopolizaram o domínio estatal),
quase a totalidade da população, então mestiça, começou a ser expulsa da
zona rural e a se refugiar nas cidades, primeiro nas pequenas, logo nas
cada vez maiores até chegar à capital da república, formando o maior
“favelão”, nunca antes imaginado: uma cidade de quase dois milhões de
habitantes em situação de extrema pobreza e marginalidade política, ao
78

lado da outra Bogotá que se apresenta como exemplo de urbanismo “social”


na América Latina.

Bogotá (antiga aldeia indígena chamada Bacatá) surge, desde o seu


início com o nome de Santa Fé (1539), como uma cidade colonial com uma
clara intenção de facilitar o domínio espanhol sobre o território conquistado
e por conquistar. Conforme as Leis das Índias, publicadas pela Coroa em
1618 (Compêndio das Leis de Burgos [1512], as Leis Novas [1542] e as
Ordenanças de Alfaro [1610]), os indígenas seriam considerados súditos do
império sempre e quando estivessem submetidos à fé católica e, por isso, o
espaço urbano se organizou por paróquias, sob seu âmbito de influência.

Em seguida, a cidade se reorganizou por guarnições ou quartéis


militares e depois por bairros, seguindo os preceitos da Carta Régia de
1774 (ver “Instruções para o governo dos prefeitos distritais” [1774], Arquivo
Geral da Nação, Bogotá). Os espanhóis seguiram fielmente o tratado do
soldado romano Marco Vitruvio Polión (63 a.C- 12 a.C) no traçado e
conformação física de suas cidades nas colônias de ultramar, documento
que, por sua vez, se baseava na grade projetada pelo urbanista Hipódamo
de Mileto (Mileto, 498 - 408 a.C).

Além disso, nos novos assentamentos foram introduzidos os


princípios da Civitas Romana (uma circunscrição administrativa similar a um
condado, baseada nos territórios tribais pré-romanos), por meio da qual as
ditas cidades coloniais não eram fundadas com todos os privilégios das
cidades europeias, já que não dispunham de direitos políticos e legais de
cidadania plena. Esta situação gerou uma série de assentamentos de
segunda categoria cuja maioria da população, mestiça e indígena, foi
privada dos direitos fundamentais e onde o status de cidadão o exercia
somente o invasor.

A origem histórica do deslocamento na Colômbia vem do medo de


ser expulso; primeiro, por pertencer a um ou outro bando político, depois,
79

por estar vivendo em terras que interessam aos grandes senhores que
financiam grupos de extermínio e, finalmente, por simplesmente estar no
meio de um conflito armado entre guerrilha, exército, paramilitares e outros
grupos não claramente identificados, mas, com certeza, ligados ao
narcotráfico.

No fim, os resultados são os mesmos: favelas; mas também existem,


nas canhadas, além de nos morros, em zonas desvalorizadas pelo risco
ambiental ou por estarem economicamente mal localizadas em relação ao
trabalho e ao consumo das grandes cidades.

A ideia de risco veio evoluindo conforme foram sendo introduzidas ao


paradigma epistemológico dominante teorias relacionadas às catástrofes,
ao caos e à complexidade. Até o ponto no qual o risco pode ser entendido
como uma oportunidade de desenvolvimento de uma capacidade latente
frente a uma ameaça, tal como um problema pode ser visto como um
evento a modificar configurando um conflito de interesses; o que implica
também uma nova ideia de desenvolvimento como transformação das
vulnerabilidades inerentes a uma população assentada sob condições de
risco. Ideia que vai muito além do simples crescimento econômico e que
coloca novamente os meios a serviço de um fim, agora visto de uma forma
mais sustentável, provável, emergente.

Ao mesmo tempo em que essa nova ideia de olhar com outros olhos
a adversidade vem se afirmando, nós continuamos amontoando e
marginalizando pessoas em lugares invisíveis aos olhos do cidadão (que
também nunca os frequenta); os “lugares-nenhum latino-americanos”, os
resíduos ocultos que são produtos de obras de infraestrutura obsoletas ou
mal projetadas que geram sobreposições espaciais, os chamados
“interstìcios” entre edificações e estruturas de diferentes épocas; espaços
nunca solucionados, muitos deles considerados “vazios” urbanos
contemporâneos.
80

A arquiteta e urbanista brasileira Andrea de Lacerda Pessoa Borde


analisa os processos de formação do “esvaziamento” da cidade
contemporânea como um processo de formação urbanística quanto a usos
do solo anteriores, relativos às suas dimensões, às suas particulares
fundiárias, e identifica ao menos três tipos de vazios urbanos que se
manifestam na área central da cidade do Rio de Janeiro: os vazios urbanos
estruturais da área portuária; os vazios conjunturais das inúmeras ruínas
urbanas que ameaçam às vezes imóveis preservados; e os grandes vazios
projetuais, entre eles os interstícios que restam dos projetos viários
(incluindo os projetos do metrô), os vazios gerados pela aplicação (e a não
aplicação) das normas, assim como os vazios subutilizados para
estacionamento.

O mesmo direito romano adaptado pelos colonizadores às nossas


terras; esta “razão” que despojou e continua despojando os indìgenas de
suas terras e de suas riquezas naturais, é agora, paradoxalmente,
reinvindicado pelos pobres e desabrigados das cidades contemporâneas.
Em toda parte, o direito à terra e o direito à cidade se converteram nos
estandartes preferidos daqueles que já não veem forma melhor de viver do
que nas cidades, apesar de viver em risco permanente.

Para a classe trabalhadora, rechaçada dos centros às periferias, despossuída da


cidade, expropriada assim dos melhores resultados de sua atividade, este direito
[...] representa por sua vez um meio e um objetivo, um caminho e um horizonte;
mas esta ação virtual da classe trabalhadora, representa também os interesses
gerais da civilização e os interesses particulares de todas as camadas sociais de
“habitantes” [...] (LEFEBVRE, 1967, p. 167).

O direito à cidade, promulgado pelo sociólogo e filósofo Henri Lefebvre


(Hagetmau, 1901- Navarrenx, 1991) nos anos 60, se referia ao direito à
cidade moderna, capitalista, a mesma que nunca foi viável em nosso
contexto latino-americano e que se transformou nas desiguais, segregadas
e fragmentadas cidades violentas contemporâneas.
81

21
O conceito foi retomado por Borja, em Medelin (Colômbia) , ao se

referir ao direito à cidade (sim), mas à cidade contemporânea; e, com isto,


introduziu à complexidade da problemática urbana atual um conceito que
derivara da modernidade capitalista uma década antes, quando teorizava,
junto com o sociólogo Manuel Castells (n. Barcelona, 1942), sobre dois
conceitos que, até então, eram entendidos separadamente: a globalização e
a localização; mas que, a partir de então, começou a ser entendido como
uma globalização localizada, como o “glocal”, “a articulação entre o global e
o local” (BORJA e CASTELLS, 1997, p. 328).

Indígenas deslocados por pobres, pobres deslocados por ricos, ricos


autossegregando-se dos violentos, parece uma fábula medieval, mas é real
e, no final, vamos todos acabar na borda. E agora, “para onde José” 22?

Estas todas são problemáticas relacionadas à borda que fazem parte


de outro capítulo desta tese. Concentro-me, nesta parte, nos eventos
vinculados ao conceito de borda e que são suscetíveis de modificação, tais
como: a maneira racional como pensamos as coisas, separada e
hierarquicamente; a maneira como entendemos o ser humano (como se
fosse outro ser diferente de mim mesmo) e a impossibilidade de
compreender racionalmente que a borda é realmente uma zona de
confluência e não de separação, um umbral, uma interfaz e, portanto, uma
potencialidade.

1.5._Borda da Cidade – Cidade da Borda.

Embora todos os conhecimentos que possamos ter acumulado durante a


nossa vida, reconhecemos a nossa incapacidade para encontrar o limite da

21
Memórias
do foro: O
direito
à
cidade
de
hoje, Jordi
Borja, Conselho
de
Medelin,
outubro de 2009.
22
Lembrando o poema “JOSÉ” de Carlos Drummond de Andrade, (1942). Veja também:
(ousa) a cantiga do Ladrão de Marabaixo “Aonde tu vai rapaz”.
82

realidade entendida como totalidade (e, pois, de conseguir contê-la em


nossa mente). Procuraremos estabelecer um diálogo sensível em torno da
ideia de cidade, que seja interessante para o urbanista: a borda da cidade.

Uma primeira definição de cidade, talvez a mais reconhecida, é que


se trata de uma concentração física de características urbanas
(concentração populacional, concentração de atividades humanas, etc.).
Esta é uma ideia “objetal” de cidade e encaixa perfeitamente com o objeto
de estudo do urbanismo tradicional de origem moderna.

Agora, sendo a cidade um objeto produzido historicamente pela


humanidade, ela poderia ser considerada, também, como um artefato-
humano (não dos humanos). Entretanto, se conseguíssemos desnaturalizar
a ideia do espaço que habitamos, poderíamos conceber de maneira
integrada todos os aspectos da vida humana, sem separá-los em falsas
dualidades e veríamos que, talvez, melhor é compreender a cidade
“humana” (não do humano). Neste terceiro sentido, a cidade “encarna” a
natureza humana.

A natureza humana é projetual. [Esclarece o arquiteto Ruben Omar Pesci (n. La


Plata, 1942)]. Porque a qualidade essencial do homem é conceber projetos. Pelo
contrário, a desumanização maior do homem se produz, quando aceita que a
tendência é destino; quando aceita que a realidade é imutável, porque está muito
enraizada em outro lugar, em outro momento (PESCI, 2007, p.111).

Sendo a cidade objeto-sujeito de nosso estudo enquanto urbanistas e


considerando que “eu sou a cidade” – no sentido de ocupar o fora de meus
limites corporais (borda) enquanto a esteja habitando conscientemente – a
borda da cidade é também a borda de mim-mesmo que tende a constituir-se
em outro conteúdo urbano cujas condições e situações de borda/ à borda
(quer dizer, de poder ser-estar-dentro-fora-acima-abaixo simultaneamente)
lhe dão um status de totalidade; uma totalidade de borda.

A potencialidade de (poder) ser-estar-dentro-fora-acima-abaixo


(simultaneamente) emerge do poder orbano e diz respeito a um processo
da consciência individual que se transforma em consciência coletiva, que se
83

transforma em consciência quântica, que se transforma em consciência


cósmica em uma sequência de poder/borda/poder.

Isto é possível graças a um processo físico e epistemológico de


dissolução das fronteiras que antes separavam as bordas; uma forma
23
mental “fractal” que, por sua vez, foi possível pela emergência das redes
sociotécnicas que permitem que qualquer cidadão seja cosmopolita.
Vejamos algumas ideias que tornariam isto realidade.

A fluidez e permeabilidade entre conceitos e o apagamento de fronteiras entre


natural e artificial, corpo e tecnologia, requerem modos inclusivos de pensar a
realidade urbana contemporânea. Donde, a aplicação do conceito de Pessoa no
sentido de dar nova inteligibilidade à cidade, à medida que este conceito indica que
Pessoa está impregnada de tudo que lhe possa fazer interface, tudo que nela se
vincule e, portanto, a constitua. Podemos dentro desta perspectiva indiferenciante,
afirmar que A Cidade Sou Eu (ARAUJO, 2006, p. 53).

Se “a cidade sou eu”, de acordo com a tese defendida por Araujo em 2007,
então, também não podem existir “vazios urbanos” como problemática.
Quer dizer, as manifestações problemáticas deste fenômeno seriam
eventos modificáveis e, assim, a pergunta imediata seria: quais as
possibilidades para a sua reconfiguração?

Na tese de Borde (2006), insiste-se no vazio “esvaziado” (o que não


é por conveniência ou planificação da cidade) como uma categoria analítica
e projetual exclusiva das cidades “grandes”. “Estas análises permitem
considerar que existiria uma relação estreita entre o humano
contemporâneo, o vazio como experiência urbana [fenomenológica] e a
produção de vazios urbanos [fìsicos]” (BORDE, 2006, p. 34).

Borde se reporta ao sujeito contemporâneo “urbano”, aquele


indivíduo descentrado e esvaziado por si-mesmo de conteúdo simbólico e
cuja identidade, tal como o antecipava o sociólogo Stuart Hall (n. Kingston,

23
A mente humana, tal como a mente urbana são estruturas fractais de pensamento que
imitam a natureza na maneira como pretendem modificar os eventos conflitivos. Isto pode
ser constatado quando, sob condições e em situações similares (mas diferentes), repetimos
as mesmas estratégias. Isto se deve a que a mente humana emula inconscientemente,
mediante sua “subjetividade”, a “objetividade” da natureza.
84

1932) nos anos 90, está sendo desfigurada e reconfigurada


constantemente, graças às deslocalizações e às descontinuidades do
fenômeno urbano contemporâneo.

Trata-se do Eu da “nova” psicanálise, que privilegia o estar sobre o


ser, isto é, a experiência à existência. Sendo assim, cada “eu” tem uma
experiência de cidadania única, mas em relação com todas as demais
experiências possíveis.

Sob esse conceito, o antropólogo e etnólogo Marc Augé (n. Poitiers,


1935) esclarece que um espaço urbano não experimentado simplesmente
não existe mais e todos os lugares-nenhum, que são produtos da
maismodernidade e enfocados neste nível de consciência alcançado na
contemporaneidade, perderam o seu status de anonimato.

No entanto, persiste a pergunta: como compreender (e tolerar)


fenômenos como os chamados “descartáveis” urbanos? Que são pessoas
(como nós) que vivem da reciclagem dos resíduos da cidade e que moram
na rua, frequentemente nesses “vazios”, nesses lugares-nenhum. Teremos
que nos referir, ainda que brevemente, ao caso bogotano, cuja
problemática, registrada inicialmente há três décadas, segue vigente.

Apenas porque foi parte importante da tese onde surgiu o conceito de


“borda à borda” e para fins ilustrativos: se admitimos que não pode haver
cidade sem cidadãos, tampouco podem existir vazios urbanos sem pessoas
consideradas “descartáveis”? Pessoas que não são necessárias à produção
e à reprodução do sistema-mundo. Seres invisíveis que a ativista Jane
Jacobs (Scranton, 1916 – Toronto, 2006) denominava “olhos da rua” e que
vivem nos chamados vazios urbanos.

Se a cidade contemporânea produziu o esvaziamento de terrenos e


edifícios para depois serem ocupados como áreas desvalorizadas,
aproveitando-se da especulação imobiliária, então, por que não reivindicar
85

(reabilitar) também o cidadão, o ocupante, o morador de rua nos processos


de reconfiguração desses espaços? Aproveitemos a grande contribuição do
estudo do controle natural do espaço público que já temos para realmente
humanizar.

Indo um pouco mais fundo na temática: se aceitamos que o “outro”


não é diferente de meu próprio ser, e se eu sou a cidade, então, nenhuma
cidade é distinta da outra. Se eu sou tudo o que existe dentro de mim, o sou
também no meu exterior, então, por que tudo parece ser tão distinto?

A borda vista como marginal se converte, assim, em um falso


problema de identidade e, portanto, qualquer evento de borda considerado
problemático (de natureza multicultural) encontraria sua modificação no
processo de identificação à borda (de tipo intercultural). No entanto, já
conseguimos entender (de uma maneira um pouco mais que coerente) que
um verdadeiro problema é algo que não tem solução sendo, pois, inútil
preocupar-se com isto. É melhor (e mais agradável) considerar a realidade
da borda à borda como um evento de mudança e ocuparmo-nos ativamente
disto.

Nós também consideramos a possibilidade de que o conceito de


borda como problemática realmente corresponda ao limite racional do
pensamento ocidental diante de um evento modificável. Nesse sentido,
poder-se-ia considerá-lo também como borda de pensamento e um
pensamento de borda, o qual não se encontra “mais pra cá” nem “mais pra
lá”; não é “materialista” nem tampouco “metafìsico”.

Enfim, não se trata de encontrar Alice através do espelho e além,


parafraseando Lewis Carroll (Gardner, 1984), senão experimentar ser/estar
desde/em na borda/à borda e dilatar esta espaço-temporalidade alternativa,
essa omnijetividade transconsciente, essa interface, esse campo relacional
ao máximo.
86

Assim como para Agamben, referindo-se às categorias aristotélicas


de potência e ato, as quais, sem dúvida, como pensamento “acrescentou e
desenvolveu sua potência ao ponto de impor seu poder sobre o planeta [...]
[e em troca se trata mais de] [...] uma tentativa de compreender o
significado do sintagma Eu posso” (AGAMBEN, 2005, p.352), no caso deste
trabalho não se trata de tornar atuais categorias filosóficas “caìdas” no
esquecimento faz tempo.

Sobre isto, Trias (1998) apresenta “a razão fronteiriça”, própria de


uma “filosofia do limite”, mediante a qual espaço e tempo se articulam em
uma experiência de mundo. Segundo esta colocação, e para o caso desta
tese, o ser ao limite se constitui em habitante da borda/à borda na medida
em que somos capazes de percorrer “o fio da verdade” que se enrola e
desenrola como uma espiral transconsciente em três níveis de pesquisa ou
questionamento: um nível ontológico (a borda), outro nível topológico (à
borda) e um terceiro filosófico (a borda/à borda).

Da noção sociológica de cidadania cultural passamos à nova


definição contemporânea de habitante da borda à borda, baseados em uma
nova teoria sociológica do conhecimento da borda. Isto tendo entendido
antes que tais termos são construções simbólicas que existem somente se
as acatamos e nos submetemos a seus códigos de valor, mas, realmente,
não existe diferença nenhuma entre aqueles que vivem neste planeta.

A este respeito, vamos nos referir mais detalhadamente no final do


capítulo IV, no qual um novo ponto de partida vai nos levar a ressignificar o
princípio inacabado da racionalidade estético-expressiva da modernidade,
para além das noções de representação coletiva e de classificação coletiva,
que Durkheim construiu entre 1898 e 1912, e das dimensões biológica e
psicológica do saber humano (Durkheim e Mauss, 1903).

Para alcançar isto é necessário entender como a configuração da


modernidade na Europa e do colonialismo no resto do mundo moldaram a
87

ideia hegemônica, sustentada no colonialismo do poder, que não podia


haver modernidade sem colonialismo.

Para aqueles teóricos que ainda acreditam que as identidades


“modernas” entraram em colapso devido a uma mudança estrutural que
transformou as sociedades do final do século XX, é relativamente fácil
acusar a fragmentação das estruturas simbólicas de classe, gênero,
sexualidade, raça, etnia, nacionalidade e cidadania (para citar algumas),
que antes ofereciam sólidas localizações ao indivíduo social, como a causa
da dupla condição/situação contemporânea. Por um lado, a defasagem dos
indivíduos em relação ao seu mundo social e cultural e, por outro, a
descentração quanto a si mesmos. Isto constituiria uma “crise de
identidade”, significando a diluição dos arquétipos que estruturam o ego
moderno.

Reportamo-nos, nessa primeira parte, ao indivíduo que se


desenvolve como sujeito absoluto, na perspectiva da ideia de objeto que
separa o “real” em pessoas e coisas, determinando os traços da
consciência moderna da realidade. Pelo exposto, se alcança a eliminação
progressiva da mente (comparável à ideia de espírito nas culturas
consideradas pré-modernas, atrasadas, etc.) afastando-a das aparências
fenomenais que habitam nosso mundo; processo que origina a criação do
ego moderno.

Em troca, o novo sujeito-objeto da borda à borda não tem realmente


esse falso “problema de identidade”. Quando algo que se supunha fixo,
coerente e estável é deslocalizado pela experiência de estar-no-mundo em
meio à dúvida e à incerteza, o evento a modificar, tomado em seu conjunto,
representa então um processo de transformação tão amplo e fundamental
que somos forçados a admitir que seja a própria civilização ocidental
contemporânea quem está se transformando.
88

Diante disto, por que amargurar a existência sem ter experimentado a


realidade de estar-no-mundo? Qual o sentido de colocar problemas se
podemos simplesmente mudar de atitude e passar a considerar “tudo” como
um evento a modificar? Se realmente não podemos entender a realidade,
então, o desafio de construir teoricamente a categoria borda ultrapassa a
evidência empírica dos inúmeros problemas (a maioria insolúveis) que se
encontram, ou melhor, que “eles” (os problemas) nos encontram em tudo
aquilo que parece significar a palavra borda= limite.

É preciso, pois, para poder continuar desenvolvendo esta nova ideia


de sujeito-objeto consciente em vários níveis (individual, coletivo, cósmico,
quântico), superar a repressão do inconsciente e interceder por sua
reintrodução na mente consciente. Trata-se de entender a verdadeira
natureza de mim mesmo na totalidade da consciência de ser, tanto
conhecida como por conhecer.

Por outro lado, e como novo ponto de partida da investigação das


bordas proposta por esta tese, concordamos com a necessidade do
reencantamento do mundo, sugerido pelo historiador Morris Berman (n.
Rochester, 1944), através do qual poderíamos remodelar a cidade partindo
do mim mesmo.

Este procedimento, oriundo do corpo teórico e clínico da psicologia


analítica, também conhecida como psicologia dos complexos e psicologia
profunda (denominação oficial dada por Carl Gustav Jung, 1913), é análogo
ao processo de reconfiguração urbana desde/em nas bordas proposto aqui.
Reconfigurar o comportamento é semelhante (mas não igual) a reconfigurar
a forma.

O que antes entendíamos como borda da cidade é agora a cidade da


borda e, como a cidade sou eu, os processos culturais que reconstroem
constantemente a identidade contemporânea (provisória, variável e
complicada) se constituem como uma costura, que cose um tecido urbano
89

de nós humanos e não humanos que também são complexos (incluindo as


mutações físicas e culturais: borda/cidade/borda).

A borda/cidade/borda vista assim é então o sujeito do desejo do


objeto de estudo do urbanista contemporâneo. Isto nos permite introduzir a
ideia de um urbanismo “neguentrópico” em termos do que significa o glocal.

A neguentropia, chamada entropia negativa ou sintropia, é um termo


introduzido pelo físico Erwin Schrödinger (Viena, 1887 -1961), que pode ser
estendido às ciências sociais, entre as quais usualmente o urbanismo foi
classificado. Segundo Schrödinger (1943), os sistemas biológicos são
capazes de conservar estágios improváveis de organização (entropia),
portanto, e se tomamos a ideia de Izquierdo de que “a cidade é a
probabilidade emergente de um organismo vivo”, a informação como meio
ou instrumento de ordenação de um sistema urbano global nos permitiria
organizar e manter a ordem sem ter que exercer o controle (do Estado, por
exemplo).

O glocal é uma borda, uma interfaz entre a vida e a morte. Um


conjunto de circunstâncias que exporta o excesso de entropia para fora de
si mesmo (à borda), para conservar certo nível de entropia que pode
suportar a existência (a borda). É algo muito semelhante ao sutil exercício
de poder simbólico e ao modo como os impérios mantêm, no interior de
suas fronteiras, essa sensação de bem-estar, igualdade, legalidade e
liberdade. São pacotes (pequenos ou grandes) de plenitude.

Só que dessa vez, o limite é o próprio planeta. Pela primeira vez se


trata de exercer um urbanismo planetário: a borda à borda.

1.6._Borda à Borda.
90

No momento em que alcancei meu objetivo atingi aos limites mais extremos para
mim do cientificamente projetado, ao transcendente, à essência do arquétipo em
si, para além do qual já não é possível expressar mais nada no aspecto científico
[...]

C.G. Jung “Memórias, sonhos e pensamentos”, 1925.

Em sua investigação sobre a separação e a união dos opostos anímicos na


alquimia, Jung se situou definitivamente na realidade e sua psicologia se
consolidou historicamente como um todo. Com isto, sua tarefa ainda não foi
concluída; e, portanto, seu trabalho no âmbito da psicologia somente pode
ser compreendido por disciplinas como a arquitetura a partir das pesquisas
de borda.

Conseguimos entender a totalidade na viagem da dupla espiral


consciente, colocada como símbolo nas culturas antigas de diversas regiões
do planeta e tomada como ferramenta simbólica da epistemologia,
metodologia e lógica por trás da pesquisa A borda à borda (Sierra-Morales,
1993), através de um procedimento conhecido como individuação
consciente: para além do simples individualismo.

Quadro 1: Quadro Único: Conceito(s) da Borda(s)

CONCEITO DEFINIÇÃO CONCEITO

Borda (Desde-Para) Unicidade do Limite Unus Mundus / Coisa


para si / Evento (para
Mudar)

Borda (Em) Consciência da Unicidade do Limite Mesmidade / Coisa


em si / Singularidade

Borda (A) Coincidência temporária (não causal), Interfase / Ser para si


das Condições do Evento (aquele que mesmo /
vai mudar). Diacronicidade
91

Borda (À) Coincidência espacial (não causal), Interface / Ser em si


das Situações do Evento (aquele que mesmo /
vai mudar). Sincronicidade

A Borda À Borda Unicidade Sincrônica / Diacrônica do Eu mesmo como


Evento a Modificar Outro / Ipseidade /
Simultaneidade /
Diversidade /
Emergência

Partindo de uma situação aborrecida, surge uma primeira fase na qual se dá


a integração do aspecto “escuro” da psique humana (isto de acordo com a
percepção pragmática do mundo que o Eu montou em torno de Si); como
são as manifestações da multidão de projeções que proliferam em pessoas
e objetos que nos cercam. Manifestações que correspondem ao que o Eu
marginalizou ou rejeitou como inconvenientes para ele.

Ou seja, se configuram as manifestações do “mal” que fazem parte


da existência em todas as suas esferas, incluindo, supostamente, Deus.
Este ponto de partida de nossa investigação está entre os conceitos do
problema (o que do como) e os problemas do conceito de borda (o como do
quê); situação que ainda não nos permite entender a problemática enquanto
eventos a modificar.

(Ver figura 2: Partindo de uma situação aborrecida. Fonte: Grosso,


1991).

De uma situação aborrecida a outra interessante é um ponto de


inflexão na dupla espiral consciente, uma viagem para dentro e o início da
transformação do sujeito-objeto em omnijeto, já não de estudo, já não de
conhecimento, senão que de sabedoria.

Neste momento, se dá a integração consciente e responsável do


arquétipo do “oposto” e o que advém daì é a “coisa dupla”, o andrógino. Tal
ponto de inflexão em nossa pesquisa está entre os problemas do conceito
de borda (o como do quê) e os problemas do problema da borda (o como do
92

como); situação na qual passamos a ver os eventos a modificar com uma


mente híbrida que propicia um pensamento para além das estruturas
heterodominantes.

Conceber “a coisa em si” (Ding na sich) como “a coisa ambìgua”


(mehrdeutige Sache) é resultado da compreensão, como em Agamben, de
que toda potência (dynámei) é impotência (adynamía), no sentido da
impossibilidade de se converter em ato: o pensamento não-pensamento, a
verdadeira obra, o projeto da borda.

Entender o projeto da borda implica uma mudança epistemológica na


ideia de projeto, visto mais como construção de horizontes do que um
produto tecnicamente acabado. Ideia, a meu ver, preconceituosa.

(Ver Figura 3: De uma situação aborrecida a outra interessante.


Fonte: Grosso, 1992).

Este é um novo ponto de partida que envolve o reconhecer-se no


outro, ao nos projetarmos (do latim projettare, ver-se refletido no outro),
entendendo o verdadeiro Eu refletido no espelho como um relato: tanto da
própria comunicação do processo projetual como o próprio relato do projeto,
tal como propõe Pesci em seu projeto do FLACAM.

Partindo de uma situação mais interessante, é nosso novo ponto de


partida da investigação das bordas; provavelmente localizado entre os
problemas do problema da borda (a antítese problemática do como do
como) e os conceitos do conceito de borda (a síntese conceptual do que do
quê). Nesta situação, simultaneamente a / à borda, a espiral
transconsciente se autocompletou e agora é um fractal de pensamento da
borda.

É o alcance da “totalidade”, ou seja, o encontro e o acolhimento


mútuo entre o Eu de nosso ser consciente (que buscou tal “conjunctio”) e o
93

Si-Mesmo como Eu de nosso ser total, que fazia parte (ainda que sem
sabê-lo) do Eu.

O si-mesmo é nosso verdadeiro centro, nossa percepção de nós mesmos sem


interferência externa e se desenvolve harmonizando as partes conscientes e
inconscientes de nossa mente. [...] Na medida em que esse dilema se mantenha
sem solução, estarei fragmentado, não inteiro; [...] até que o Eu dê alguns passos
concretos para resolver o conflito [dos] conceitos opostos que, num exame mais
aprofundado irão se revelar, em grande medida, a mesma coisa (BERMAN, 1981,
p.78).

É a verdadeira “alternatividade”, onde todos os opostos se juntam e


complementam harmonicamente e se conectam diretamente com o
“omnijeto”; e, como tal, é um estágio impensável, indescritível e que
constitui um “Mistério”. Este si-mesmo reúne os mais aparentemente
irreconciliáveis opostos, em triádicas e, sucessivamente, em tetrádicas.

Neste nível de transconsciência, já não é mais preciso se preocupar


com discussões metafísicas que se sobrepõem arbitrariamente a questões
científicas ou são delas dependentes. A experiência subjetiva do processo
de individuação consciente implica a aceitação de que é real o que é capaz
de ser sentido, embora sendo incognoscível: a potencialidade acima do ato.

(Ver Figura 4: Partindo de uma situação interessante. Fonte: Grosso,


1993).

Aquele que vive a experiência transmite aos demais a sensação de


que há uma força transpessoal que interfere ativamente de maneira criativa,
como uma espécie de “chamado espiritual” que, embora alcance a plenitude
pessoal, permanece um fenômeno psicológico, a menos que aconteça a
vivência coletiva do mesmo.

É possível tentar entender isto apelando para a metalinguagem do


desenho, assim, vou me permitir ao menos um gráfico. Neste caso, trata-se
do único vestígio do misterioso informe B-265 que o engenheiro de redes
Paul Baran (Grodno, 1926 – Palo Alto, 2011) preparou cuidadosamente
para a RAND Corporation e que foi a base para a ARPANET.
94

Neste gráfico Baran (1961) sintetiza as duas correntes teóricas mais


importantes da teoria de redes “tradicional” e as reconcilia no seu momento
fundacional: a teoría dos grafos. Conceitos como limiar, consciência
omnijetiva, transformação, alternatividade, apropriação (espaçotemporal),
simultaneidade, qualidade de vida e maismodernidade são compreensíveis
partindo do teorema das quatro cores do matemático e botânico Francis
Guthrie (n. Londres, 1831 - Claremont, 1899) em 1852 e resolvindo o
famoso “problema” das sete pontes sobre o rio Prególia em Königsberg
como fez o matemático Leonhard Euler (n. Basilea, 1707 – Sanpetersburgo,
1783) em 1741.

Segundo o antropólogo argentino Carlos Reynoso (2011) apesar de


existir atualmente tanta literatura acerca das redes sociais e da mudança
cultural que trouxe consigo tanta informação, o conhecimento resultante
desse esforço tem sido focado quase exclusivamente para o virtual digital.

A ideia das redes sociais é um conceito nascido da velha


antropología africanista quando encarava meio século há a problemática de
estudo das sociedades complexas e tendo abandonado o paradigma
positivista.

Ainda atualmente, existe uma corrente teórica sociocêntrica que vem


da sociologia desde Georg Simmel (Berlin, 1858 - 1918) e outra tendência
antropocêntrica derivada de Alfred Reginald Radeliffe-Brown (n.
Birmingham, 1881 – Londres, 1955); concretamente o conceito de estrutura
social e seus “tecidos”, “texturas” e “quadros” que os urbanistas
interpretamos como urbanos. De Simmel (1922) resgatarmos conceitos
como as tríades mais adiante no capítulo IV. Enquanto que, os insight de
maior impacto no estudo e a compreensão da complexidade tuda (incluindo
fenômenos físicos complexos), somente emergem quando abandonamos o
senso comum, o pensamento racional ocidental e a sabedoria tradicional, a
verdade é que, somente podemos ter certeza de isto começando a pensar
na borda à borda.
95

Figura 1: Centralizada, descentralizada e distribuída.

Fonte: Informe B-265, Paul Baran, 1961.


96

Como conceito central da psicologia profunda, a individuação é um


processo pelo qual a pessoa (como arquétipo individual e coletivo) descobre
seus próprios arquétipos, suas causas e efeitos e desenvolve o si-mesmo
(self) em oposição ao ego. Este método, que Jung começou a usar a partir
de 1916, foi concebido, desde um ponto de vista intrapsíquico e
metapsicológico, em torno da emergência e transformação das diferentes
configurações estruturais da consciência que o ser humano adota no
transcurso de um ciclo vital arquetípico hipotético.

O ego é uma máscara da realidade, um personagem, um cidadão


que exige e, por sua vez, é exigido pela cidade transformada em objeto. Na
interação cotidiana que é o centro da consciência das coisas e do
entendimento da vida e de nós mesmos, isso acontece através dos olhos de
supostos “outros”.

A grande conquista do pensamento ocidental baseado nesta lógica


racional foi gerar os rasgos da consciência moderna da realidade, através
da qual se deu a eliminação gradual da mente (espírito) das aparências
fenomenais presentes em nosso mundo; para o que, foi essencial a criação
do ego moderno.

Se eu mesmo (não no sentido do ego “moderno”, senão do ipse


atual) sou a borda (essa nova totalidade) e se posso conscientemente ser a
borda e estar à borda, então, a cidade contemporânea (o devir do atual) é o
cenário de meu mundo e também o meu mundo, através do qual seria
possível qualquer transformação vertical ou horizontal, interna ou externa
que substituísse a segregação e a fragmentação simplesmente pelo
experimentar estar-no-mundo.

Se a cidade que cada um é, é coextensiva ao modo urbano de


inserção no mundo, um nìvel “cosmopolita” de compreensão da realidade,
para além das bordas, é possível agora devido ao surgimento das redes
sociotécnicas.
97

É preciso aprender a navegar entre o ideal nostálgico de uma vida


em comunidade e a ilusão tecnológica que oculta nossa privacidade
individualista em uma falsa dissolução de fronteiras, se quisermos
realmente modificar os efeitos da segregação e da fragmentação urbana
contemporâneas.

O novo desafio à consciência humana consiste em decifrar essa nova


topologia, fabricada pelas redes sociotécnicas como resposta à emergência
de um novo “Eu” sem subjetividade.

Vamos precisar exemplos mais concretos, referidos ao sujeito-objeto


de estudo simultaneamente. Isto significa: “vamos estudar a nós próprios
em condições e situações de borda e à Borda”.

Talvez o nosso propósito não seja estudar a borda como algo “fora” de nós, mas
estudar a nós mesmos como borda. Os conceitos necessários, nós precisamos
vivê-los nós mesmos. No entanto, essa aprendizagem não vamos ser “nós
mesmos”, mas apenas uma explicação “dos outros” em “nós” (SIERRA-MORALES,
1933, p.36).

A formulação anterior corresponde a uma consciência na qual a referência


“aos da borda” (que já indica um avanço no sentido de reconhecer o sujeito
no objeto de estudo “bordas”) continua sendo uma afirmação egocêntrica
daqueles que são incapazes de se reconhecer no outro, embora
considerem que os que estão em condições e situações extremas, “na
borda” e “à borda”, são pessoas também.

Uma nova maneira de compreender a identidade humana integrando


condição (cidadania na borda) e situação (cidade à borda) no sujeito (como
cidadão da borda) é vê-la como limite aparente do ser/estar desde/na/à
borda. É reconhecer, nesse novo cidadão de borda, todos aqueles traços
que nunca lhe foram conferidos desde a caracterização aristotélica de
cidadania. Nem aos estrangeiros, nem aos escravos (do consumismo
moderno), nem aos infames, nem aos desterrados, etc.
98

Esta “nova” hermenêutica de si é oriunda, em parte, das reflexões


antropológicas da filosofia europeia contemporânea. Uma hermenêutica
“diatópica” cujo objetivo principal é suscitar um diálogo intercultural. Este,
reconhecendo de antemão a incompletude e a impossibilidade de aceder à
verdade absoluta, recolhe toda a vivência do século mais intenso da história
humana para entender como funcionaria a ambiguidade de uma pessoa se
ela tivesse consciência da borda, a qual transformaria os eventos
considerados negativos desta ambiguidade.

O filósofo Jean-Paul Sartre (Paris, 1905 – 1980), na sua obra O ser e


o nada, diz que a ipseidade é o circuito entre o ser em si e o ser para si. Por
um lado, a complementaridade e o contraste entre o caráter ou
“mesmidade” com a manutenção do “si” na fidelidade à palavra dada ou
ipseidade.

O para-si é o si-mesmo “lá”, fora do alcance, longe de suas possibilidades. E esta


livre necessidade de ser lá o que se é como falta constitui a ipseidade ou segundo
aspecto essencial da pessoa [...] Assim o mundo, por natureza, é “meu” enquanto é
correlato em-si do nada, quer dizer, do obstáculo necessário para além do qual me
reencontro com o que sou na forma de “ter de sê-lo”. Sem mundo não há ipseidade
nem pessoa, sem a ipseidade, sem a pessoa não há mundo. [...] Será absurdo
dizer que o mundo, enquanto conhecido, é conhecido como “meu”. No entanto,
esta “mesmidade” do mundo é uma estrutura efêmera e sempre presente, “vivida”
por mim (SARTRE, 1943, p. 167).

Por outro lado, a ipseidade é também o núcleo que funciona como interfase
entre ambos os polos (em si e para si), como a unidade de uma vida na
história.

Se existe um próximo em geral, é necessário, antes de tudo, que eu seja aquele


que não é o “outro”, e nesta negação mesma operada por mim sobre mim me faço
Ser e surge o “próximo” como “vizinho”. Esta negação que constitui o meu Ser e
que, como disse Hegel, me faz aparecer como o Mesmo frente ao outro, me
constitui no terreno da ipseidade não-tética em mim-mesmo. Isto não quer dizer
que um “Eu” venha habitar nossa consciência, senão que a ipseidade se reforça
surgindo como negação de “outra” ipseidade; e que esse reforço é captado
positivamente como a opção contínua da ipseidade por ela mesma, como a mesma
ipseidade e como ipseidade mesma (SARTRE, 1943, p.394).

O processo interessante é a articulação de processos que reconstroem a


identidade qualitativa com outros que reconstroem a identidade numérica
99

por meio da qual se forma e estrutura a identidade de uma pessoa ou de


uma comunidade no reconhecimento de sua alteridade assumida: em suas
identificações com heróis, ideais, normas, valores, modelos.

A caracterização do binômio borda à borda assume uma dimensão


narrativa como “mesmidade” que o identifica. Isto é particularmente
conflitivo, mas necessário, quando se procura entender a ipseidade não
como destino senão como projeto de mim-mesmo.

O filósofo Paul Ricoeur (Valence, 1913 – Châtenay Malabry, 2005)


define mesmidade como um conceito relacional e um rol de relações. Por
exemplo, quando uma história é narrada ao personagem de um relato com
a qual ele pode chegar a se identificar; ou, também, quando uma
comunidade de qualquer assentamento de borda pode se reconhecer e
tomar consciência de sua condição e situação. Concordamos com Ricoeur,
quando ele afirma que “o que a sedimentação contraiu, a narração pode
tornar a desdobrar” (RICOEUR, 1990, pp.110. 117).

Quer dizer, as dobras urbanas presentes nas bordas podem, através


da reconstrução de sua memória coletiva, se desdobrar (desenvolver-se).
São as “dobras catástrofe” que, segundo o matemático René Thom
(Montbéliard, 1923 – 2002), apesar de sua aparente complexidade
morfológica, estão limitadas em sua interpretação semântica a estruturas da
linguagem tipo dentro/fora, acima/abaixo, sujeito/objeto, centro/periferia, etc.

Estas estruturas linguísticas que também sustentam a ideia de poder


como dominação, segundo Thom (1990), não são algébrico-sintáticas, mas
topológico-semânticas e universais e, portanto, comuns a todos os
humanos. Em função disto, as bordas contêm todos os tipos de formas
urbanas e arquitetônicas assim como seus correlatos linguísticos
elementares com significação autônoma, que não poderiam ser
decompostos em unidades mais simples.
100

Embora a psicologia transpessoal, sob a perspectiva junguiana,


tenha sido amplamente praticada. Começando pelo próprio Jung, pelo
psicólogo Eric Neumann (Berlim, 1905 – Tel Aviv, 1960) e pelo psiquiatra
Alfred Adler (Viena, 1870 – Aberdeen, 1937), entre outros, inexistem
estudos que deem conta especificamente da relação das estruturas
linguísticas com as facetas do desenvolvimento humano e do seu
desdobramento espaço-temporal no limite da existência.

Segundo Jung, o ciclo vital e as etapas da vida de um ser humano


podem ser entendidos e classificados de acordo com um modelo estrutural
da teoria da individuação através do qual o consciente e o inconsciente se
integram em um único ser: diferença entre ser e poder ser.

[...] se descemos à psicologia primitiva, veremos que sequer se pode falar do


conceito de indivíduo. No lugar da individualidade há uma vinculação coletiva ou
“participação mìstica”. (LÉVI-Strauss, 1963b). No entanto, a disposição coletiva
constitui um impedimento do conhecimento que também impede a consideração de
uma psicologia distinta do sujeito; precisamente, porque essa disposição coletiva
“espiritual” é incapaz de pensar e sentir senão por projeção. O que entendemos
sob o conceito de “indivìduo” é uma conquista, relativamente nova, do espìrito
humano e da história da cultura (JUNG, 1921, p.22).

É preciso um processo consciente de diferenciação, de individuação (na


borda à borda) para tornar a individualidade consciente (transconsciente).
Se a individualidade é inconsciente, segundo Jung, então não há um
indivíduo psicológico, mas apenas uma psicologia coletiva da consciência.

Neumann (1949), por seu lado, especifica em sua teoria do


desenvolvimento que o ser humano parte de um estágio “uróbico” ou
“dionisìaco” como fundamento prévio da individualidade. É nesse transe que
a consciência, que está enraizada e da qual depende para sua subsistência,
“emerge” a outro estágio dominado pela tensão. Tensão esta gerada pela
constelação dos pares de opostos da consciência e inconsciência, entre o
indivíduo e seu grupo de pertencimento e entre o mundo interno e o
ambiente físico e social externo.
101

Afastando-nos do significado negativo do adjetivo inconsciente


(irresponsabilidade, irracionalidade, etc.), o termo pode ser utilizado como
substantivo para designar o conjunto dos eventos da borda que não
precisam de um centro, ou porque não são relevantes para as atividades
que estão se desenvolvendo, ou porque já estabeleceram um caminho. Em
qualquer dos casos, não são pensados conscientemente.

O dionisíaco é, pois, comparável à embriaguez, que dissolve o individual nos


instintos e conteúdos coletivos, roubo do Eu isolado do mundo. [...] Sua
individualidade fica, então, anulada por completo. “O homem já não é artista:
converteu-se em obra de arte”. [...] No estágio dionisíaco não permaneceu, pois, o
grego não se tornou obra de arte, senão que nele se sentia possuído por sua
própria essência bárbara, privado de sua individualidade, dissolvido nos seus
elementos coletivos, unificado no inconsciente coletivo (com renúncia a seus fins
individuais), “unificado com o gênio da espécie, inclusive da natureza” (JUNG,
1925, pp. 187, 189).

A busca da unidade e o élan de recuperar esse sentimento original de


plenitude nos leva dos estágios “matriarcal” e “patriarcal” (relação com
quem cuida /a quem cuida) à rejeição do incesto urobórico: até a
adolescência e daí à segunda metade da vida, onde continuaremos nossa
busca, agora na sociedade, no mundo. Estas estruturas simbólicas
arquetípicas não geram um desenvolvimento autônomo, mas dependem da
interação com as circunstâncias externas e, em nenhum caso surgem de
um estágio “vazio” da experiência. Pelo contrário: a totalidade da
personalidade é um fato psicológico anterior ao estabelecimento da
consciência e do ego.

Estas teorias não contemplam especificamente a ideia do ser


humano já desenvolvido como tal desde o nascimento, como para algumas
culturas indígenas que ainda subsistem na América do Sul. Nesta
perspectiva, inédita no desenho da dupla espiral, durante a vida
simplesmente nos desenrolamos, quer dizer, nos desenvolvemos a partir de
um estado ideal no qual nos encontramos antes mesmo de nascer e ao qual
retornamos ao morrer.
102

Como atestar isto sem tê-lo vivido? Podemos fazê-lo através dos
sentimentos que nos sustentam em uma vivência mais parecida à verdade
do que o aparentemente “real”. Em momentos especiais de elevação
sensorial afetiva, quer dizer, em situações extraordinárias à borda, aflora
uma iluminação, um instante de consciência, como uma ilha; uma
compreensão inesperada que quebra a situação média da existência
inconsciente, um verdadeiro “insight” ou esclarecimento.

Nesta tese, acreditamos, assim como Jung, que existe uma unidade
da realidade psicológica e física, só que em diferentes manifestações. Daí o
interesse em relacionar – ao final – as ideias de borda com as teorias
junguianas dos arquétipos na categorização dos projetos de borda.

Adler (1948), por seu lado, afirma que o foco do crescimento, que se
concentra nas primeiras etapas da vida de uma pessoa na dimensão
interpessoal, se desloca no sentido de estabelecer uma relação consciente
com os elementos coletivos do meio intrapsíquico. Os problemas que
demandam atenção passam, então, a ser culturais e espirituais. Quando
ocorre um processo contrário a este, o modelo da psicologia adleriana
concebe como doença mental toda a expressão extrema de egocentrismo
do sujeito contra os interesses da ação social cooperativa.

Esse “desenrolar” de condições e situações desde/em na borda/à


borda está constantemente sendo “encarnado” em uma forma espacial do
poder como relação de dominação, em uma organização de pessoas
naturais e/ou jurídicas que representam uma capacidade de autogoverno
em diferentes escalas organizacionais tais como família, trabalho, mercado,
comunidade, cidade e mundo, as quais são estruturas arquetípicas
fisicamente manifestadas em espaços.

Trata-se de um desdobramento consciente físico e social, na medida


em que concordamos com a ideia de que a cidade (nosso objeto de estudo
103

enquanto urbanistas) e eu (como sujeito consciente da realidade) somos a


mesma “coisa” em si, que é qualitativamente diferente de dizer que A
Cidade é Minha (ARAUJO, 2005), isto é, a “coisa” para si.

Graças a esse giro transconsciente operado por Araujo (2005 a


2007), deslocando o entendimento da intersubjetividade entre a cidade e o
urbanista do ser para si (mundo como vontade) ao ser em si (mundo como
representação), podemos afirmar nesta tese das bordas que os espaços de
poder se referem também a entidades territoriais, no sentido de que são
espaços relacionais onde o poder se exerce em diferentes escalas
jurisdicionais tais como: prédio, condomínio, bairro, distrito, cidade, mundo.
No entanto, esse argumento não escapa da ideia antropocêntrica de sujeito-
objeto, ainda que avance na superação da falsa dualidade em si mesma.

Com efeito, tal como o entenderia Sartre, nossas descrições da


realidade como objeto em si nos levaram a colocar “a coisa no mundo” e,
nesse sentido, teríamos caído na tentação de acreditar que o mundo e a
coisa se relacionam como domínio em uma espécie de intuição
contemplativa através da qual: os objetos são “postos” uns em relação aos
outros em uma ordem prática de utilidade. “Tal erro poderia ser evitado se
se considerasse que o mundo aparece no interior do circuito da ipseidade.
O mundo é o que separa o para-si de si mesmo ou, para utilizar uma
expressão heideggeriana: é aquilo a partir do qual a realidade humana
anuncia o que ela É” (SARTRE, 1943, p. 283).

Mas a identidade vista como limite aparente do ser/estar desde/na


borda/à borda remete também a “outras” entidades de domínio territorial,
não convencionais ou não reconhecidas por quem ostenta o poder oficial;
mesmo e apesar de serem criações institucionais ou parainstitucionais.

Tal é o caso dos chamados assentamentos “informais”, analisados


pela ótica de diversos autores, como o teórico cyberpunk Mike Davis (n.
104

Fontana, 1946) quem, desde 2006, desenvolve a noção de Favela


entendida a nível planetário; ou os espaços considerados
“segregacionistas”, na experiência do historiador, polìtico e trabalhador
social judeu-polaco Emanuel Ringelblum (Buchach, 1900- Paviak, 1944),
quem exemplifica a ideia de gueto (1938-1939); e inclusive naqueles
lugares-nenhum caracterizados como “efêmeros”, na definição de parche 24.

Mais adiante, depois do capítulo que trata da problemática das


bordas, vamos rever alguns destes conceitos mencionados acima em
referência a uma possível reconfiguração de espaços de poder desde/em
na borda como resultado do desdobramento consciente da omnijetividade.

Quanto à fidelidade da palavra dada, a reafirmação de si-mesmo


evidencia um nível ético desta identidade. É responder a si e também frente
ao outro, em uma dinâmica temporal.

A responsabilidade para consigo e simultaneamente para com o


outro implica uma decisão de permanecer em uma palavra, em um ato, no
Si; atestando a existência no intercâmbio de experiências (como exercício
popular da sabedoria prática), que opera através da história enquanto arte
de narrar, onde as ações voluntárias, as emoções e seus “agentes de ação”
são avaliados, julgados para o bem ou para o mal, aprovando-se ou
censurando-se.

Sob a concepção “moderna”, um agente de ação corresponderia ao


sujeito como ator, que transmite determinada imagem ou impressão de si-
mesmo ao expressar o que deseja; ou seja, a sua própria subjetividade. No
entanto, numa visada contemporânea (não necessariamente pós-moderna),
a imagem da cidade, tal como o assinala o sociólogo italiano Giandomenico
Amendola, é como a imagem dos corpos, um esquema indispensável para
24
Parche: Tem uma conotação negativa com respeito à ordem social e urbana ideal da
cidade educadora ou civilizadora. Como algo feio, sujo, não digno de ser levado em conta
e, portanto, é algo que não deve se registrar na memória coletiva dos cidadãos. Tem outra
conotação positiva enquanto lugar passageiro ou efêmero: onde «parchar» com os demais
«parcheros» ou «parceiros», que são meus colegas de borda.
105

estar no mundo, onde visivelmente prevalece o princípio do conforto sobre o


princípio de realidade.

Esta prevalência sustenta uma nova ética “pós-moderna” que o


sociólogo Zygmunt Bauman (n. Polônia, 1925) chama de “modernidade
lìquida”, no sentido que, sem deixar de lado as preocupações morais
tipicamente “modernas” rejeita as formas “modernas” de afrontar esses
desafios morais (direitos humanos, justiça social, equilíbrio entre pacifismo e
violência de Estado, etc.), respondendo a eles com a ação política não
hegemônica, a busca filosófica de absolutos universais e com fundamentos
lógicos, epistemológicos e de conhecimento do saber.

Dado que o que fazemos afeta (positiva ou negativamente) outras pessoas, e que o
maior poder da tecnologia afeta muito mais pessoas que antes, o significado ético
de nossas ações alcança uma dimensão sem precedentes. No entanto, as
ferramentas morais com que contamos para absorvê-la (a tecnologia) e controlá-la
continuam as mesmas [...] (BAUMAM, 1993, p. 248).

Tratando-se de um ser humano contemporâneo e depois de ter sido


submetido a uma mudança estrutural que conseguiu fragmentar e deslocar
as identidades culturais de classe, sexualidade, etnia, raça, nacionalidade,
cidadania, etc., ele não consegue transmitir a sua própria imagem e se
apoia (mesmo que sem sucesso) para isto, em organizações estruturadas
(ou não) como espaços de poder e, sobretudo, nos meios de comunicação.

Segundo os arquitetos Iñaki Ábalos (n. São Sebastião, 1956) e Juan


Herreros (n. São Lourenço do Escorial, 1958), o sujeito contemporâneo,
distinto do homem sedentário com sua família, é capaz de criar um entorno
através de vetores de apropriação cuja espacialidade se desdobra em áreas
que são consideradas como de “impunidade” 25.

Tais agentes de ação, além de criar esse espaço vetorial, se


apropriam também do ciberespaço onde constituem atualmente coletivos

25
Impunidade: Em um sentido positivo, o termo impune se refere ao que escapa da norma
urbanística e arquitetônica estabelecida como paradigma de uma sociedade hierárquica,
considerada falsamente como moderna, mas realmente enferma.
106

autônomos que interagem culturalmente. Nesse sentido, a teoria da ação


comunicativa do filósofo e sociólogo Jürgen Habermas (n. Dusseldorf, 1929)
como o que foi instituído pelo filósofo Herbert Marshall MacLuhan
(Edmonton, 1911- Toronto, 1980), no que diz respeito à compreensão dos
meios de comunicação, constituem um conjunto teórico que veio a se
chamar “determinismo tecnológico”.

Como conceito, a ação comunicativa é um dos fundamentos


estabelecidos por Habermas (1982, 1989) para estruturar a sua teoria crítica
da modernidade. Esta teoria analisa a forma como a interação social do ser
humano baseada em ritos e no sagrado passa a se basear na potência do
signo linguístico, com a força racional das verdades submetidas a críticas.

As estruturas de ação comunicativa voltadas a um acordo estão se


tornando cada vez mais efetivas, tanto na reprodução cultural como na
interação social ou na formação da personalidade, o que não ocorre
realmente nas relações humanas, exceto nos casos em que as partes que
se comunicam buscam genuinamente a compreensão mútua. No entanto, e
tratando-se de um fenômeno de interação social, a comunicação tende a
buscar o êxito, tanto instrumental (individualista) como estrategicamente
(social).

É, precisamente, aquele tipo de fragilidade cultural da ideologia


virtual do “novo” modelo econômico que trouxe consigo a crise financeira
mundial do início deste milênio e a resposta infeliz na forma de violência,
guerra e militarização da economia, tal como veremos mais adiante, no
capítulo dedicado aos eventos a modificar.

Falamos de uma rotina qualquer, através da qual se configura a


espaço-temporalidade específica de uma comunidade que tem consciência
de si mesma. Por exemplo, a rota de um ônibus escolar, o abastecimento
de insumos alimentícios, as festas e cerimônias, etc. Estas são formas de
atestar a ipseidade, já que a capacidade de permanecer sempre é uma
107

responsabilidade ética frente “alguém”. A alteridade do “si mesmo” como


“outro”.

Estes exercícios mencionados acima como exemplos - o intercâmbio


coletivo de experiências, as rotinas de uma comunidade qualquer - são
considerados um tanto situacionistas, por se tratar de uma metodologia da
experiência e não de um urbanismo abstrato. Eles fazem parte do como do
quê. Por enquanto, estamos enfatizando o que do como, ou seja, os
conceitos do evento a modificar: a borda à borda em termos de uma busca
de potencialidades (reconfiguração do poder desde/em nas bordas).

Vale lembrar, que não é possível constatar a existência sem a


aceitação prévia e o reconhecimento da alteridade através da experiência
que, por sua vez, é determinada pelos mandatos da linguagem, já que, uma
vez instaurado o processo civilizatório, paradoxalmente, a linguagem nos
antecede – justamente porque nascemos numa comunidade linguística.

Uma análise mais profunda nesse sentido será desenvolvida na


Topofilia na Fobópolis Contemporânea, como a experiência de ser/estar
submetido ao medo dos outros e o medo do outro lugar, tomando como
exemplo a tão falada (diríamos publicizada) violência urbana. Talvez seja
mais um recurso, mas, com certeza, a mais contemporânea das causas /
consequências da segregação sociopolítica e da fragmentação
sociopolítica-espacial na cidade, entre as cidades e no interior das cidades.

Uma pergunta adicional: Por que “não matarás”?

Conforme o advogado Vinicius Leite Guimarães Sabella sentencia,


compreender o outro não é apenas um ato cognitivo, é também uma ação
política e moral.

A salutar sobrevivência da sociedade depende de regramentos principiológicos que


permitam aos indivíduos conviverem de forma pacífica ou, se não, quando
materializado o conflito, e mesmo na iminência da convulsão social, que ocorre em
razão dos caminhos tomados pelos indivíduos, e que são delineados pelos
108

fenômenos sociotemporais, permitam restaurar o equilíbrio nas relações


(SABELLA, 2007, p. 25) 26.

Não apenas porque o dita um mandamento. Estes princìpios “lógicos” não


obedecem à lógica do poder subordinado e opressivo que monopoliza
“legalmente” o uso da força para garantir um suposto estágio de ordem na
sociedade.

Mas nós preferimos construir coletivamente um estágio de coisas


mais fluido e dinâmico, o mais parecido a um organismo vivo, mediante o
qual a sociedade em seu conjunto só possa manter a sua identidade
permanecendo constantemente aberta ao fluxo das influências do meio
ambiente, para o qual o sistema de vida deveria estar longe do equilíbrio
estático.

No entanto, e como não existe para nossa mente racional a ideia de


um “equilìbrio dinâmico”, preferimos denominá-lo a partir de agora de
desequilíbrio deliberado e consciente, algo como o que o físico Ilya
Prigogine (Moscou, 1917 – Bruxelas, 2003) chamava “estruturas
dissipativas”, que são sistemas abertos, isto é, cujas estruturas se mantêm
por uma contínua dissipação de energia.

Compreender as estruturas simbólicas como estruturas dissipativas


nos permite, por sua vez, entender fenômenos como a cultura, a sociedade,
a cidade como probabilidade emergente de organismos vivos e, em meio a
esse conjunto de circunstâncias, as decisões as quais Sabella (2007) se
refere, corresponderiam melhor à energia que advém da passagem de um
estágio de ordem a outro e que se distribui informativamente como um raio
por todo o sistema de vida, unindo o todo como uma rede distribuída.

Nós que estamos vivendo o início deste milênio, vamos lembrar a


“primavera árabe” como um número crìtico de partidários da mudança que

26
Disponível em: <http://www.justitia.com.br/links/artigos2.php> (Acesso em: 01/01/2012).
109

puderam criar uma revolução midiática, “assim como um cristal ou um imã


organizam o entorno ao seu redor por sua própria virtualidade interna”
(FERGUSON, 1985, p. 177).

Quanto mais distribuída e menos centralizada ou descentralizada é a


rede, mais policêntrica é a topologia do mim mesmo. Nesse estágio de
coisas, aumenta a probabilidade de que surjam fenômenos que somente
acontecem na borda e cujo entendimento não pode ser adequadamente
compreendido pela mente racional dominante.

Parafraseando o filósofo pré-socrático Epicarmo (Megara Hyblaea,


550 a.C – Siracusa, 460 a.C), “os humanos deveriam ter pensamentos
humanos, não inumanos”; às vezes, o conhecimento não é bom na prática.
É simplesmente isso a utopia da pedagogia do limite que o pedagogo Paulo
Reglus Neves Freire (Recife, 1921 – São Paulo, 1997) apresenta como a
imperfeição e a incompletude que são próprias do diálogo entre todos os
seres humanos e a conseguinte superação das diferenças que nos
impedem de falar e (nos ouvir).

É isto: a visão utópica de relações horizontais que nos permitam


fazer algo aparentemente tão simples como o dialogar ou simplesmente
bater papo pela Internet.

1.7._Tecido de Borda.

Referimo-nos à possibilidade da prática de um poder sem dominação,


heterárquico, cuja autoridade seja exercida por uma coletividade de
pessoas e cuja organização no espaço permita que cada qual “exerça” o
poder a partir de sua própria competência e do mérito para executar cada
fase específica de um trabalho ou missão. Esta autoridade compartilhada
por relevos – dependendo da ocasião e do comum acordo na organização –
aparece melhor em lugar-nenhum e em momento-nenhum, no sentido da
110

virtualidade que permite a emergência de uma rede: um tecido de borda/à


borda.

De fato, para uma pessoa com mentalidade colonial (seja pré-


moderna, moderna ou pós-colonial), ou seja, para quem o poder só existe
como dominação, é quase impossível perceber a realidade para além do
evidente. Os teóricos descolonialistas ou descolonizadores como Dussel
(1973) apostam no que eles mesmos chamam uma “virada” que reconheça
a diversidade epistêmica da realidade contemporânea frente ao suposto
triunfo do capitalismo que está se globalizando.

Segundo Mignolo (2003), a palavra correta para articular o discurso


intelectual da descolonização a partir dos legados do pensamento na
América Latina seria “pós-ocidentalismo”; já que o surgimento do pós-
colonialismo, como reflexão e condição contemporânea, foi mais o resultado
do “cruzamento” da história moderna europeia com as histórias
contramodernas coloniais.

Assimilar estes dois processos simultaneamente e integrá-los em


uma ideia única de nação “livre” e “independente” significou, para os “povos”
latino-americanos, o desenvolvimento de uma dupla consciência de seus
gestores e ideólogos, a qual não foi – e em muitos aspectos ainda não tem
sido reconhecida – por nós, quem não queremos deixar de ser europeus,
mas queremos ser americanos, “latinos”; o que nos converteu nos novos
colonizadores de nosso tempo.

Para Mignolo, este cruzamento se dá no contexto das condições


oriundas de fatores como a globalização, a crise dos paradigmas cognitivos
e o desmoronamento do “campo” socialista; processos todos baseados no
modo de produção de imaginários simbólicos. A dupla consciência é a
caracterìstica principal do imaginário “mundo moderno-colonial” que
construímos sob nossa condição-situação periférica e “o colonialismo
111

interno é a diferença colonialista que é exercida pelos líderes da (suposta)


construção nacional” (MIGNOLO, 2003, p.68).

Recordemos Freud (1899), para quem o imaginário ou dimensão


não-linguística da psique se fundamenta no pensar com imagens;
pensamento que, segundo Freud, é o pensamento mais primário.

O modo de produção de imaginários simbólicos é inerente ao modo


de produção capitalista e, portanto, a ideia de modernidade é inseparável da
ideia de colonialismo. Modernismo, capitalismo e colonialismo são facetas
de um mesmo fenômeno urbano que encontra, na cidade, o seu mais
sofisticado, complexo e paradigmático instrumento de poder.

Entender como, no momento de sua crise mais intensa, a cidade


parece ter encontrado novamente a sua antiga capacidade de se reinventar
e renascer não implica necessariamente ir além do sentimento eurocêntrico
que distingue o moderno do pós-moderno e considera o “resto” pré-
moderno. Mas, entender a verdadeira gênese do eurocentrismo (que logo,
graças ao colonialismo, vamos perceber como “modernidade”) poderia
ajudar a compreender o que estamos querendo dizer, quando falamos da
cidade contemporânea latino-americana.

[...] no renascimento italiano (especialmente depois da queda de Constantinopla em


1453), começa uma fusão inovadora: o Ocidente latino [...] se une ao grego Oriental
[...] e enfrenta o mundo turco, o qual, esquecendo a origem helenístico-bizantina do
mundo muçulmano, permite a seguinte falsa equação: Ocidental = Helenístico +
Romano + Cristão. Nasce assim a “ideologia” eurocêntrica do romantismo alemão
(DUSSEL, 2003, p. 43).

Excluída a prevenção preconceituosa, podemos perceber, de acordo com


Amendola, que na cidade latino-americana contemporânea, tal como na
europeia, os critérios de conexão e de acessibilidade tendem a substituir os
de distância e o conceito de rede torna-se fundamental para redefinir
analiticamente o território.

A topologia de redes é uma ideia baseada nos três (3) modelos de


Baran: centralizado (hierarquia), descentralizado (sistema) e distribuído
112

(redes). Tal ideia nos permite entender, através da topologia do limite (borda
/ à borda), que dado qualquer mapa geográfico com regiões contínuas
podemos identificá-lo de modo que todas as regiões sejam adjacentes,
compartilhando não só um ponto, senão todo um segmento de borda em
comum em todas as regiões possíveis. A grande contribuição de Baran
(1961), considerado por alguns como o verdadeiro precursor da internet,
consistiu em imaginar uma rede plural sem uma instância central que
controle tudo.

Para nós, a questão a modificar na presente tese consiste em


imaginar que qualquer assentamento humano de borda à borda pode
convergir e conectar-se em uma base contínua com qualquer outra
margem, em qualquer região do planeta, através da rede que contém
qualquer realidade diferenciada, segregada e fragmentada.

É interessante como essas colocações parecem coincidir, tanto com


o descolonial em Dussel, como com a crítica pós-colonial em Boaventura de
Sousa e com toda uma gama de posturas intermediárias, intersticiais, de
borda, que nos levam a compreender que, em meio ao complexo processo
de reconfiguração urbana desde/e nas bordas, torna-se urgente o
estabelecimento de práticas baseadas em novas categorias de projeto,
tanto urbanas quanto arquitetônicas, capazes de promover uma transição à
sustentabilidade e onde o fluxo da vida não tenha que ser contido em limites
físicos aparentes nem transformado em objeto de troca em um mercado
desigual. Trata-se da emergência de projetos nos quais o desenvolvimento
econômico e social se encontre indissoluvelmente integrado à qualidade
(ambiental) de vida.

O pós-colonialismo é confundido por alguns com o descolonialismo e,


por vezes, é visto também como anticolonialismo. Correntes teóricas
próprias da contemporaneidade que não alcançam independência em
113

relação ao pensamento ocidental dominante, referindo-se de qualquer modo


às estruturas de domínio criadas por este.

No entanto, pensadores como os já citados, Boaventura de Sousa


(2001, 2008) e, Dussel, (1973, 2003) entre outros, conseguiram, por
caminhos distintos, colocar o debate acima dos tratados antirracistas,
anticlassistas e antissegregacionistas próprios de eurodescendentes,
afrodescendentes, etc.

Um novo olhar da borda/à borda nos permitiria perceber as interfaces


entre a paisagem urbana e os postulados do direito à cidade para além do
enfoque sistêmico (por exemplo, entre o urbanismo e as disciplinas do setor
de saúde). O qual, segundo o paisagista Ian L. McHarg (Clydebank, 1920-
2001), oferece uma nova perspectiva, rejeitando programas rígidos, pouco
práticos, para alcançar uma nova e mais saudável relação entre a natureza
e nosso entorno. Projetar com a natureza, segundo McHarg (1969),
possibilitaria entender a cidade como um ecossistema e como uma “teia
vital”.

Se observarmos de olhos semifechados o mapa de qualquer cidade


latino-americana de tamanho considerável, destacando os locais
identificados como bordas, sejam de interfaz ou interstício, inicialmente não
vamos perceber as conexões existentes entre eles. Tais conexões (ao nos
afastarmos na escala territorial) vão configurando uma rede, um tecido
amorfo que se relaciona com outros lugares mais distantes e com
problemáticas semelhantes.

Esta aparente metáfora gráfica, visível graças à possibilidade de


representar nossa realidade inacabada em diferentes escalas de
aproximação, física e analítica, está se tornando uma realidade profunda e
de graves consequências, na medida em que prescindimos do plano e nos
introduzimos na realidade habitada pela consciência de ser/estar
desde/na/à borda.
114

É verdade, em consequência da fragmentação do tecido


sociopolítico-espacial, as bordas agora estão não só em todas as partes
(inclusive em mim mesmo), senão que também se comunicam entre si,
ainda sem uma intenção aparente de reconfigurar as estruturas de domínio
territorial. Embora isto fosse possível, se assim o quiséssemos realmente,
visto que desaparece a divisão entre centro e periferia característica das
urbes centralizadas e descentralizadas.

Mais à frente, no capítulo que trata desta questão (sem a qual não
poderíamos exercer nosso papel de urbanistas e até de planejadores),
vamos falar sobre as redes sociais e tecnológicas como elementos de
reconfiguração dos espaços de poder em meio à fragmentação e
segregação contemporâneas.

Por enquanto, nos referimos ao conceito de borda/à borda ligado à


ideia de redes. Em um sentido metafórico, mas cada vez mais palpável, à
medida que vamos introduzindo variáveis à análise dos sistemas
complexos.

As redes nos atraem por sua plasticidade, por sua capacidade de


adaptação ao território, mas, fundamentalmente, por sua capacidade
heterárquica de exercer o poder, no sentido da capacidade e potencialidade
de exercer informalmente um domínio compartilhado e distribuído sobre um
território instável, indefinido e dinâmico. Algo que apenas os sistemas de
organização-desorganização do espaço-tempo mais avançados estão aptos
a alcançar, mediante uma combinação de complementaridades e
reciprocidades mútuas que finalmente conseguem se materializar através
de subsistemas.

O interessante desses subsistemas regionais é que eles operam


como interfaces dinâmicas, como autênticas bordas, estruturadas
heteronomicamente, onde todos os atores parecem dominar seu entorno de
maneira semelhante, mas não idêntica.
115

Para Haluani (2002), dadas condições espaciais politicamente


“desiguais”, a heteronomia polìtica poderia se definir como um sistema
regional anárquico onde nenhuma potência está em condições de dominar o
seu entorno, impondo sua autoridade e regras claras do jogo à conduta
regional dos demais países.

Embora Haluani se refira a estes como subsistemas


descentralizados, fragmentados, sobrepostos e frequentemente
competitivos (especialmente entre países desiguais) de autoridades estatais
em nível regional, a ideia de uma organização heterárquica exercendo o
poder de maneira heteronômica pode ser aplicada a várias escalas físicas
chegando, inclusive, a expressar diversas formas urbanas.

Mas o que parece negativo na dimensão política da realidade, como


a dependência heteronômica entre as nações (que não permite falar de uma
plena soberania de Estado), poderia não sê-lo caso fizesse parte do campo
unificado cultural, que contém a realidade como um todo estruturado de
forma interdependente.

São estruturas que, em todo caso, não escapam da ideia


hegemônica de poder como dominação, expressas em formas que parecem
corpos estranhos à cidade, mas que realmente não representam a
emergência de uma nova topologia baseada mais na ideia de poder
distribuído e menos de domínio compartilhado. Se não existe, vamos
projetá-la.

Na topologia diferencial de Thom (1990), que por sua vez se baseia


na teoria das catástrofes e influencia as margens da filosofia, segundo
Jacques Derrida (El- Biar, 1939 – Paris, 2004), e tudo aquilo que sustenta
os modos gerais de interação que no homem foi ritualizado e mediatizado, a
lógica aristotélica (o Organon) foi substituída pela topologia. Isto nos
permitiria (uma vez admitida a ideia da reconfiguração heterárquica urbana
116

a partir desta tese da borda) reescrever as categorias projetuais, neste caso


o projeto de borda.

Lembremos que a mudança epistemológica fundamental que


queremos introduzir é a visão do projeto (neste caso o projeto de borda)
como ferramenta consciente de conhecimento da realidade.

Como afirmamos, estes sistemas são estranhos à cidade, ainda que


isso aconteça em momentos (interfases), não em lugares (interfaces), como
as organizações feudais da Europa medieval foram os modelos históricos
mais próximos aos sistemas heterônomos, segundo o jornalista e historiador
Bart Jan Spruyt (n. Ridderkerk, 1964) citado por Haluani (2002). Naquela
época, como ocorre agora em nossas cidades latino-americanas, mais
especificamente, no que hoje seriam os assentamentos de borda, esta
situação correspondia a países com poder político inferior, nos quais não
existia um poder hegemônico que premiasse a obediência das regras
impostas ou castigasse a sua transgressão.

O poder hegemônico diz respeito ao poder de “alguém” que dirige ou


organiza estruturas de poder que, por sua vez, exercem seu domínio e
poderio sobre espaços de forma desigual. O que significa conduzir de
maneira soberana e eficaz o destino de várias organizações, entidades ou
pessoas que mantêm relações conflitivas entre si, orientando critérios e
modelos de desenvolvimento em benefício próprio e da coletividade.

Tal estrutura hegemônica se transforma, em diferentes momentos da


história, passando de sistemas centralizados a descentralizados e
distribuídos. No entanto, um projeto de borda poderia aproveitar o momento
histórico no qual as redes emergem como suposta alternativa à hegemonia
do sistema-mundo.

Através das redes, as bordas deixam de existir como limites e se


tornam uma teia de interligações de um corpo orbano, constituindo uma
117

nova ideia de totalidade. Essa ideia da totalidade do universo interligando-


se no homem – como um nó complexo articulado a uma infinita rede de
relações, causas e consequências – é muito sedutora. Estar ciente disto,
certamente, seria o mais próximo de uma forma alterada de
supraconsciência. Algo muito diferente do pensamento contemporânea, que
se caracteriza por uma psique e um corpo emocional coletivo de euforia
química e leveza psicofarmacológica.

O universo é [...] uno, infinito e imóvel [...] Não se move com um movimento local
porque não há nada fora dele aonde ir, já que ele é tudo. Não gera a si mesmo,
posto que não há nenhuma outra coisa que possa desejar ou buscar, já que ele
contém todos os seres. Não é corruptível, posto que não existe nada fora dele no
que possa transformar-se, já que ele é todas as coisas (BRUNO [1584], citado por
PRIGOGINE e STENGERS, 1988, p.41).

Proferidas pelo frade dominicano Giordano Bruno (Nola, 1548 – Roma,


1600), as palavras acima soam como metafísica (que também faz parte dos
sistemas simbólicos de dominação mundial); mas, podemos encontrar muita
semelhança nesta afirmação com as investigações de vários autores que
veem o conceito de borda como tecido de uma cidade glocal.

Já mencionei, na introdução deste trabalho, que os conceitos que


sustentavam a tese de borda, nos anos 90 do século passado, careciam de
um corpo técnico sólido, validado por uma comunidade científica. Pois bem,
agora, passadas quase duas décadas, podemos perceber que o que faltava
na ocasião era um projeto que orientasse a pesquisa nessa direção.

Com relação ao tecido de borda, devo apontar ao menos quatro


corpos teóricos que bem poderiam, juntos, articular-se em uma “teoria geral
da complexidade válida para as chamadas ciências sociais”; o que,
aparentemente, não era necessário há duas décadas, ao menos não para
fins operativos de reconfiguração urbana.

A teoria geral de sistemas. Começando com as contribuições do


biólogo e filósofo Karl Ludwig Von Bertalanffy (Viena, 1901 – Búfalo, 1972);
a teoria das redes complexas, do físico Albert-László Barabási (n. România,
118

1967); a teoria da autopoiese, baseada em noções sofisticadas e


interdisciplinares, dos biólogos Humberto Maturana e de seu discípulo
Francisco Varela (Santiago do Chile, 1946 – Paris, 2001); e a teoria
topológica dos rizomas de Deleuze e Guattari.

[...] tratando o inconsciente como um sistema acentrado, quer dizer, como uma
rede maquínica de autômatos finitos (rizomas), [...] a possibilidade de uma
“organização acentrada de uma sociedade de palavras”. [...] o fundamental não é
reduzir o inconsciente nem interpretá-lo ou fazê-lo significar segundo uma árvore. O
fundamental é produzir inconsciente e, com ele, novos enunciados, outros desejos:
o rizoma é precisamente essa produção de inconsciente (DELEUZE e GUATTARI,
1980, pp. 22,23).

O corpo desta teoria, embora oriundo de conceitos aparentemente sem


relação, tem mais sentido para nossa tese de borda do que as ideias da
modernidade que estão ligadas a noções de linearidade, dualismo e
arborescência que, paradoxalmente (procurando introduzir, com seu
controle detalhado e definido do processo de construção, a chamada
arquitetura moderna), o que têm conseguido é a proliferação da entropia, do
caos e do desespero nas bordas.

Se aceitarmos a ideia de que realmente todas as ciências são


ciências sociais, no sentido de que “a natureza é a segunda natureza da
sociedade e que, [...] não há [...] natureza humana já que toda natureza é
humana, (é porque) todo conhecimento científico natural é científico social”
(BOAVENTURA de Sousa, 2001, p. 99).

Compreender isto nos permitiria, por um lado (e a partir das


pluralidades internas que existem nas práticas científicas), identificar
algumas perspectivas pós-coloniais relacionadas com o sexo (feministas,
LGBT, etc.), com a etnia (nativos), etc. E, por outro lado, partindo das
pluralidades externas (os “outros” saberes), reconhecer que são também
cientìficos os conhecimentos que normalmente consideramos “locais”,
“tradicionais”, “alternativos” ou “periféricos”.
119

Enquanto ainda não temos uma “metateoria” que realmente (e


partindo do conceito muito abstrato de sistema) crie regras gerais aplicáveis
a qualquer sistema e em qualquer nível da realidade – é urgente (e,
portanto, necessário) o surgimento de um pensamento glocalizado que
coloque novos paradigmas, diferentes dos da ciência clássica, que se
apliquem a conhecimentos emergentes igualmente válidos, dependendo de
sua constelação particular.

Tampouco é possível compreender a ciência de um ponto de vista


não social, sendo um ser humano, ou ao menos pensando como tal.
Portanto, estão certos aqueles que afirmam que o verdadeiro evento a
mudar, o desafio real do criticado pensamento ocidental dominante é
renunciar ao nosso antropocentrismo. Mas aí cabe a pergunta: qual o
propósito de deixar de pensar como humano para entender (supostamente
melhor) os fenômenos humanos (urbanos)?

De acordo com Izquierdo (1999), o critério de subjetividade


antropocêntrica subjacente aos princípios gerais das epistemologias
científicas, metacientíficas e paracientíficas, conforme Piaget (1970)
caracterizou, poderia se transformar em outro, (de omnijetividade não
antropocêntrica), sempre e quando consigamos superar o critério de
objetividade alienante característico do pensamento que limita a ideia do
espaço e do tempo e que é próprio do juízo racional, que tende a
circunscrever a realidade em limites aparentes para poder reduzi-la,
manipulá-la, possuí-la.

A subjetividade antropocêntrica se constitui no evento a modificar da


consciência sem subjetividade. A consciência não antropocêntrica se
manifesta nessa nova topologia do “eu” sem subjetividade (sem ego), como
uma verdadeira cultura emergente.

De fato, e paradoxalmente, poderíamos estar gerando uma nova


forma de reducionismo filosófico com esta questão das redes. Enredados na
120

“tecnosfera” criada por nós mesmos e com poucas chances de acesso ao


supraconsciente, à “noosfera” galáctica criada pelo tetragrama “YHVH”.

Mas podemos tambem reconhecer o fato de que o drama


epistemológico do paradigma dominante, além de autêntica e
exclusivamente uma responsabilidade de nossa espécie, é algo possível de
modificar no sentido de tolerar e buscar transformar suas graves
implicações quanto ao que consideramos não humano. Isto é, assumir em
nós mesmos o resto, a borda, a natureza da qual nos servimos
egoisticamente.

Consonantes com esta afirmação, pensamos que a tarefa já não é


apenas procurar mudar, senão que mudar obrigatoriamente a maneira de
interagir entre nós e com os demais seres humanos – aqueles a quem, em
virtude desta matriz de pensamento egoísta, separatista e finalista, nós
consideramos inferiores, diferentes e, portanto, objetos de nosso domínio
físico e simbólico.

Referimo-nos à mulher, ao gay, ao negro, ao mestiço, enfim, ao não


europeu. Pensamento assaz absurdo, tratando-se de nós mesmos:
mulheres, gays, negros, mestiços, não europeus.

A teoria dos sistemas, conforme Bertalanffy (1968), observa


totalidades, fenômenos, isomorfismos, causalidades circulares e se baseia
em princípios como a subsidiaridade, a pervasidade, a multicausalidade, o
determinismo, a complementaridade que são também características da
omnijetividade, em Izquierdo (1999). Também opera conforme as leis
encontradas em outras disciplinas e, através do isomorfismo, delineia o
entendimento da realidade complexa alcançando, com isto, a
transdisciplinaridade e multidisciplinaridade da ciência.

Então, não há uma teoria da complexidade válida apenas para as


chamadas “ciências sociais” e as três condições que Barabási (1999)
121

propõe para a existência e prosperidade da rede WWW (World Wide Web),


são válidas também para propor as redes vivas de borda à borda:
crescimento ilimitado (por sua condição emergente), conexão preferencial,
no sentido de que exista uma preferência de manter contato com os nós
mais populares e, certamente, a atitude competitiva.

Por outra parte, poiese [ποιέω] é uma palavra grega, segundo Platão
(380 a.C) 27, que significa criação ou produção. Então, autopoiese quer dizer
autocriação ou autoprodução, muito semelhante à autonomia que apregoa o
filósofo Cornelius Castoriadis (Istambul, 1922- Paris, 1997). A palavra surgiu
pela primeira vez na literatura internacional, em 1974, em um artigo
publicado por Francisco Varela e Humberto Maturana, entre outros, para
definir os seres vivos como sistemas que se produzem continuamente a si
mesmos.

Face ao exposto, os postulados da modernidade baseados na lógica


racional do pensamento ocidental não seriam mais que uma verdadeira
“psicose passageira na história da criação do homem”, que arquitetos como
Christopher Alexander (n. Viena, 1934) chamam “ridìcula”, “estreita” e
“desumana”.

Embora seja verdade que “a cidade não é uma árvore”, pelo menos
ela se comporta como uma estrutura rizomática, como uma floresta de
bambus que se autoproduz por meio de estruturas, algumas visíveis, outras
ocultas, subterrâneas; sujeita a condições de probabilidade emergente
(crescimento, evolução, adaptação, economias de escala e competitividade)
e que precisa ser concebida em termos contemporâneos como uma urbe
em um orbe e vice-versa, simultaneamente.

Tanto a árvore como a sub-retícula são modos de refletir sobre o problema da


construção, através de uma vasta gama de numerosos sistemas menores, um

27
O que torna tudo o que nós consideramos não-ser como ser, segundo Platão em:
“Sympósion” [Συμπόσιον], [380 a.C]. (Trad. Mario Meunier), Le banquet: ou, de l'amour,
nouvelle éd. Payot, Paris, 1920.
122

sistema maior e mais complexo. Em linhas mais gerais, essas duas são
denominações para estruturas de conjuntos (ALEXANDER, 1965, p. 1-b).

Reconhecer que já não é possível seguir o antigo modelo hierárquico da


“árvore de Porfìrio” 28, mas que qualquer elemento do sistema pode produzir
um determinado efeito em qualquer outro, tem consequências graves e
interessantes à ideia de projeto urbano e arquitetônico, que será motivo de
reflexão no final desta tese.

Um projeto é um ato que ainda conserva a potência em si mesmo,


assim como a imanência não finaliza na transcendência. Aristóteles (348-
335 a.C) discutindo quanto à existência ou não de potência no ato, conclui o
que poderia ser contemporaneamente uma revelação: que toda obra
humana é um padecer, no sentido que há certa destruição em todo ato
como também se conserva “algo” do que está em potência no que está em
ato e é semelhante a ele, do mesmo modo que a potência quanto ao ato; o
que significa que a potência se conserva no ato.

[...] se, assentando o próprio em potência, se assentou também o próprio em


potência até para não ser, não podendo a potência ser atribuída ao que não existe;
porque o que se dá como próprio não será o próprio. [...] se se pôs o próprio no
excesso; porque o que foi dado como próprio não o será. Sucede, de fato, que
quando se assenta assim ao próprio, o nome não é verdadeiro ali onde a
explicação o é, no entanto. E assim, destruindo a coisa, a explicação não deixará
por isso de subsistir, porque está sempre em excesso em algumas das coisas
existentes. (ARISTÓTELES, 348, 335 a.C., pp. 288, 289).

De qualquer forma, há um “dom” entre a potência e o ato que transforma a


realidade como projeto e vice-versa. Esse dom é tanto o incremento (in
ipsum id additio), como o cumprimento (teléiosis) da criação arquitetônica,
que se transforma com o tempo em patrimônio: padrões éticos e estéticos
de comportamento e forma urbana. São padrões de causalidade
relacionados significativamente, entendidos por Chetwind (1982) como
sincronicidade: uma “coincidência” significativa.

28
Porfírio, filósofo neoplatônico (Tiro, 234 – Roma, c. 305), delineou e descreveu em seu
estudo sobre as categorias de Plotino (primeiro comentário neoplatônico à obra de
Aristóteles) um método para definir as coisas, que consiste em dividir cada ideia em
questão em duas ideias subordinadas ou inferiores e a cada uma destas em outras duas e
assim sucessivamente.
123

Hoje entendemos melhor que se há uma maneira de construir sem


tempo (portanto sem espaço), como afirma Alexander, é porque existe uma
“linguagem de padrões”: uma espécie de gramática gerativa do espaço-
tempo que oferece uma série de fórmulas para que (segundo as próprias
necessidades individuais ou coletivas) cada membro ou grupo humano de
uma comunidade possa construir sua própria habitação ou conjunto
habitável sem um projeto concebido por arquitetos que, em sua proposta,
atuariam unicamente como uma ajuda para a construção.

Em um poema, o significado é muito mais denso. Cada palavra comporta vários


sentidos: e o conjunto da frase transmite uma enorme densidade de significados
entrelaçados que juntos iluminam o todo. [...] O mesmo se pode dizer da linguagem
de padrões. É possível fazer edifícios com padrões arranjados frouxamente. [...]
Mas é possível também unir os padrões de tal modo que muitos deles se
sobreponham no mesmo espaço físico: o edifício então é muito denso, tem muitos
significados condensados em um espaço pequeno e se faz profundo à mercê
dessa densidade. [...] É também o único modo de utilizar uma linguagem de
padrões para fazer edifícios que sejam também poemas (ALEXANDER, 1977,
pp.27, 28).

Alexander é considerado por alguns colegas como o pai da arquitetura


“descalça” que, como a economia “descalça”, a medicina “descalça” e tudo
o que pretende desprofissionalizar o exercício das disciplinas universitárias
aproximando-as da “comunidade”, se baseia em critérios culturalistas como
os que deram origem à noção de padrões culturais em Benedict.

Concordamos com Benedict, quando assume a ideia de padrões


culturais e as consequências sociológicas do que, segundo ela, nos leva a
entender a natureza da sociedade e a tomar partido no debate entre
culturalistas e falsos humanistas.

A controvérsia sobre se a sociedade é um organismo [...] sem cairmos na [...]


interpretação ingênua da cultura em termos de comportamento individual
[determina que] qualquer interpretação configuracional das culturas é, além de uma
exposição em termos de psicologia individual, algo que depende da história [...]
(BENEDICT, 1934, pp. 130,132).

A ideia da cultura, em Benedict, como um organismo vivo, implica definir os


padrões de vida como fenômenos complexos em permanente
transformação. Uma ideia de padrão cultural muito distante dos critérios
124

estáticos e centralizados que se baseiam na dualidade antropocêntrica


sujeito-objeto.

O modo intemporal de construir é o que as pessoas vêm usando há


milhões de anos ao fazer seus próprios edifícios, abrigando populações
muito harmônicas e belas. Por isso, e partindo do entendimento da vida
como fenômeno dinâmico-temporal, o verdadeiro arquiteto prevê a
permanente renovação da linguagem de padrões, a fim de adaptá-los às
novas exigências arquitetônicas das futuras gerações.

É possìvel que tenhamos estado “perdidos” e “confusos” acreditando


que a modernidade e os modos de produção modernos, baseados na lógica
racional ocidental de pensamento, fossem a linguagem padrão: um método
estruturado para descrever uma série de boas práticas de desenho em uma
área particular. Não importa, vamos juntos fazer um autêntico biogiro nesta
condição/situação.

O estresse e as perturbações próprias da suposta “crise”


contemporânea, assim como a predisposição das pessoas para a
transformação e a evolução, são “sintomas” desse momento apaixonante da
história que estamos vivendo e que Prigogine descreveu como um “ponto
de viragem decisivo”, a nova realidade de uma visão cultural profunda: o
universo das estruturas dissipativas, os sistemas abertos da natureza,
incluídos os criados pela humanidade, e, em especial, a cidade que absorve
energia da zona circundante (eletricidade, matérias primas), a transforma
nas fábricas e devolve ao entorno.

Para compreendermos as limitações intrínsecas ao método de Foucault, devemos


distinguir três realidades diferentes, mas interligadas: a compreensão do que aparece
como real nas práticas cotidianas (linguística e outras), a compreensão do que é
considerada uma realidade física de acordo com a ciência natural; e a compreensão
do que é considerada uma realidade social pelas disciplinas que afirmam um saber
neste domínio (DREYFUS e RABINOW, 1955, pp. 288, 289).

Então, se entende melhor agora, nesse começo de milênio, a relação das


bordas com noções como entropia, sinergia, realimentações,
125

interdisciplinaridade, crítica autorreferente, desterritorialização e livre


associação com ideias como anarquismo e comunismo, revistas à luz dos
sistemas heterônomos que sustentam a ideia da heterarquia, dos
paradigmas alternativos, da globalização contra-hegemônica e da
heterotopia.

As heterotopias se relacionam com as bordas fora da espacialidade


capitalista, nos espaços físicos e de poder, respectivamente fragmentados e
distribuídos; mas, que tendem à homogeneização e a se constituir em
novas centralidades uma vez que esgotem sua incompletude tornando-se
locais reconhecidos. Foucault as define, de acordo com sua natureza,
caráter, localização, utilização como outros lugares.

[...] lugares reais, lugares efetivos, lugares que estão inscritos na instituição mesma
da sociedade, que são espécies de contra-espaços; espécies de utopias
efetivamente realizadas em outros lugares. [São] todos os outros espaços reais que
podem ser encontrados no interior da cultura que são ao mesmo tempo
representados, contestados e invertidos, [...] espécies de lugares que estão fora de
todos os lugares, ainda que sejam lugares efetivamente localizáveis (FOUCAULT,
1984, p. 3).

A noção de anarquia (sem hierarquia), a qual nós fizemos referência no


início deste capítulo, não tem nada a ver com a heterarquia (hierarquia
distribuída), proposta nesta tese para chegar à compreensão da
heteronomia cultural na topologia das redes, à consciência participativa e ao
coletivismo consciente.

O entendimento da sociedade heterônoma (nomos = norma de


conduta) como uma estrutura de poder assimétrica hierarquizada, nos
obriga à eterna busca da construção de uma ordem baseada na autonomia
(autônomos= autogoverno). Um pensamento racional que, embora descubra
o evento a modificar não consegue fazê-lo porquanto pensa
antroprocentricamente e, por isso, não pode considerar diversas estruturas
normativas como alternativas de poder distribuído heterárquico.
126

A consciência participativa diz respeito à consciência de ser (mim-


mesmo), uma vez que só é possível participar quando se faz parte de (si
mesmo) e não quando apenas se conhece (mentalmente) o que é.
Consciência participativa é entender o si mesmo como mim mesmo. Isto se
percebe melhor de maneira inversa ou negativa, segundo Berman.

Consciência não participativa [...] estágio da mente em que o conhecedor ou o


sujeito “aqui dentro” se vê a si mesmo como radicalmente distinto dos objetos que
confronta, os quais ele considera que estão “lá fora” (BERMAN, 1981, p.333).

O filósofo Mikhail Alexandrovich Bakunin (Priamujino, 1814 – Berna, 1876)


desenvolve a ideia de um coletivismo consciente sustentando que cada qual
deve receber uma retribuição econômica segundo seus méritos, e que o
incentivo à propriedade material é legítimo em uma sociedade livre que não
busca a igualdade, senão a justiça econômica. Em todo caso, a distribuição
salarial deveria se organizar coletivamente sob critérios tanto democráticos
quanto técnicos, dando origem à anarquia coletivista.

[...] A revolução, desde que adotou o caráter socialista, deixou de ser sanguinária e
cruel. O povo não é de todo cruel, as classes privilegiadas é que o são. Às vezes,
se levanta furioso por todos os enganos, todas as humilhações, todas as opressões
e torturas de que é vítima. Então, se lança como um touro enraivecido, não vendo
nada diante de si e carregando tudo na sua passagem. Mas são momentos muito
raros e muito curtos. Normalmente, o povo é bom e humano. Sofre demasiado ele
mesmo para não se apiedar dos sofrimentos alheios. [...] Não é, pois, no povo, mas
nos instintos, nas paixões e nas instituições políticas e religiosas das classes
privilegiadas, na Igreja e no Estado, em suas leis e na crueldade e iniquidade das
mesmas, que se deve buscar a crueldade e o furor frio, concentrado e
sistematicamente organizado (BAKUNIN, 1873, p. 345).

No entanto, a este individualismo anarquista se opôs o comunismo libertário


do geógrafo e naturalista Piotr Alekséyevich Kropotkin (Moscou, 1842 –
29
Petrogrado, 1921), quem deu origem ao anarcocomunismo ; a ajuda
mútua, a abolição do trabalho assalariado, a jornada de trabalho de quatro
horas e as comunas voluntárias, ideias fundamentadas na abolição do
Estado e da burocracia, recuperando o caráter fundamental da anarquia.

29
Segundo Kropotkin, a diferença entre “anarquistas” e “anarcossindicalistas” é que os
primeiros podem ser antissindicalistas, individualistas, terroristas, etc. enquanto que os
segundos, sem ser forçosamente anarquistas, defendem um sindicalismo de luta de classe
e anticapitalista, capaz de administrar toda a sociedade, sobre uma base federalista.
127

Somos ricos, muito mais ricos do que pensamos. Somos pelo que já temos; e ainda
mais pelo que podemos conseguir com os instrumentos atuais; somos infinitamente
mais ricos pelo que potencialmente podemos obter de nosso solo, e pelo que nossa
ciência e nossas técnicas nos poderiam dar, se estivessem voltadas ao bem-estar
de todos. [...] Por que, então, esta miséria que nos rodeia? Por que esse trabalho
penoso e embrutecedor das massas? Por que essa insegurança frente ao amanhã
até para o trabalhador mais bem remunerado, diante das riquezas herdadas do
passado e apesar dos poderosos meios de produção que poderiam dar a todos o
bem-estar em troca de algumas horas de trabalho diário? (KROPOTKIN, 1892, pp.
22, 23).

Segundo Dreyfus e Rabinow, a heterotopia como conceito da geografia


humana, em Foucault, define o espaço urbano contemporâneo como “um
espaço heterogêneo de lugares e relações não hierarquizadas”. Enquanto
que como categoria do espaço, o conceito de “outros espaços” coincide em
parte com as heterotopias de Foucault, quando ele define a espacialidade
capitalista como uma geografia fragmentada e hierarquizada, mas que
tende à homogeneização, ante o que se abre toda uma nova perspectiva
polìtica chamada “direito à cidade”, a partir de Lefebvre.

Diante dos efeitos causados pelo neoliberalismo, como a privatização


dos espaços urbanos, o uso mercantil da cidade, a predominância de
indústrias e espaços mercantis, se propõe resgatar o humano como o
elemento principal, o protagonista da cidade que ele mesmo construiu. O
direito à cidade consiste, então, em restaurar o sentido de cidade, instaurar
a possibilidade do “bem viver” para todos e fazer da cidade o cenário de
encontro para a construção da vida coletiva.

No seio desta sociedade, que não pode se opor completamente à classe


trabalhadora e que, não obstante, lhe bloqueia o caminho, abre-se lugar a direitos
que definem a civilização [...] Estes direitos mal reconhecidos pouco a pouco se
tornam costumes antes de se inscrever nos códigos formalizados. [...] entre esses
direitos em formação figura o direito à cidade (não à cidade antiga, mas à vida
urbana, à centralidade renovada, aos lugares de encontros e trocas, aos ritmos de
vida e empregos do tempo que permitem o uso pleno e completo destes momentos
e lugares, etc.). A proclamação e a realização da vida urbana como reino do uso
(da troca e do encontro [ambos] desprendidos do valor de troca) reclamam o
domínio do econômico (do valor de troca, do mercado e da mercadoria) e se
inscrevem, por conseguinte, nas perspectivas da revolução sob a hegemonia da
classe trabalhadora (LEFEBVRE, 1967, p. 167).

Uma cidade oriunda desta série de conceitos (e não múltiplas ideias de


cidade como resultado de cada um deles) se entende e se comporta como
128

uma totalidade sistêmica, que orienta o seu próprio desenvolvimento


interagindo com todos os outros sistemas: serviços, informação, pessoas e
produtos que a constituem, incluindo seus detritos e fezes, tudo dentro de
sistemas mais complexos que a contêm.

O cidadão visto também como uma totalidade sistêmica que orienta o


seu próprio desenvolvimento (entendido como vida), interagindo com os
outros sistemas biológicos, culturais, religiosos, linguísticos, psíquicos que o
constituem, incluindo os seus proprios detritos e dejetos, e agindo em
conformidade com os sistemas que o contêm, poderia se tornar um
autêntico agente neguentrópico capaz de utilizar a inteligência para
melhorar o seu ecossistema.

Tal como talvez o entendera Jacobs (1961), nesse processo de


autorregulação e controle que vai transformando a vida e a morte das
pessoas na “vida e morte das grandes cidades”, as bordas como
sedimentos vão restando como evidência física dos movimentos
centrífugos/ centrípetos da energia que sustenta todo organismo.

Esta “sedimentação” não se confunde com a “vontade de viver” (Wille


zum Leben) em Schopenhauer, que é uma condição geral, supraindividual e
está para além do tempo e do espaço. Ela é mais a “vontade de morrer”
(Wille zum Tode) no filósofo Philipp Batz (Offenbach del Meno, 1841 –
1876), quem escreveu sob o pseudônimo de Mainländer (Continental).

Na medida em que nos afastamos do centro gerador dessa vida, que


seria esse poder como vontade de (fazer algo segundo a vontade de), e em
virtude da entropia, estes sistemas vão se desfigurando, se
desmaterializando até se fundir com o ambiente circundante. Esta seria a
visão, se as bordas fossem o resultado de um intercâmbio orgânico entre
sistemas que se realimentam. Mas também seria a forma como nos
veríamos nós mesmos em relação ao ambiente natural e construído.
129

Nesta cidade imaginária, ao nos afastarmos do centro, ao invés das


bordas mostrarem o seu lado negativo (como se a morte fosse se
aproximando “lá fora”), e em virtude das redes, estes diferentes sistemas
(cidade, cidadãos, economia, células, malha viária, tráfego aéreo,
linguagens, internet, etc.) se comportariam, todos eles, de maneira
semelhante, podendo ser usados para explicar uns aos outros.

Redes complexas modelam grandes sistemas urbanos e não -


urbanos, humanos e não - humanos, através de conexões múltiplas e
variadas que não seguem um padrão regular de comportamento visto que
não possuem (e não praticam) o mesmo número de contatos.

Complementando o que foi dito acima, redes aleatórias enfrentariam


tal complexidade a partir da imprevisibilidade do ser/estar desde/na borda/à
borda. Seria uma perspectiva do mundo na qual as bordas se comportariam
como entes democratizadores das relações de poder e vida de seres
humanos e cidades; revertendo, assim, a imagem negativa e estática em
outra, dinâmica e positiva, na qual, à medida que nos afastamos do centro
urbano de poder, encontramos outros centros no sistema.

Faltava, então, reconhecer a imagem fractal das bordas na


representação da totalidade do sistema em microssistemas. Algo como a
capacidade de reprodução das bordas. Uma coisa que nós humanos
sabemos fazer muito bem desde que a vontade suprema nos deu “esse”
poder da vida.

Qual cidade contemporânea tem esse poder de se reproduzir, de


criar vida a partir das suas bordas? Seria algo como uma rede de
processos de produção, transformação e renovação através de uma
destruição constante. O ciclo contínuo vida/morte/vida das redes urbanas,
mediante o qual os componentes reproduzem permanentemente e através
de suas interações, a própria rede de sistemas que os produziu.
130

Se a cidade sou “eu” e “eu” sou quem sou, então, “eu posso” porque
“quero” produzir a mim enquanto ser autopoiético (cidadão neguentrópico).
Isto em função das “fronteiras vivas” que me integram e que são resultados
de minha própria organização autopoiética (cidade neguentrópica). Haveria,
então, uma inseparabilidade entre sistemas em virtude de suas bordas,
reconhecendo o tecido de borda como constitutivo da realidade.

A construção de modelos a partir da cosmovisão da teoria geral dos


sistemas permite a observação dos fenômenos de um todo, uma vez que se
analise cada uma de suas partes sem negligenciar a inter-relação entre elas
e o seu impacto sobre o fenômeno geral. Entendendo, do exposto, o
fenômeno como sistema, as suas partes integrantes como subsistemas e o
fenômeno geral como suprassistema. No entanto, ainda não é suficiente
para compreender a borda/à borda que requer também a compreensão da
complexidade do individual/coletivo/cósmico/quântico de um pensamento
em/na margem dos acontecimentos.

Isto nos leva a repensar também o conceito de cidade, em termos do


que Izquierdo chama de probabilidade emergente de um organismo vivo,
imbuìdo no campo relacional, tanto do “social” da realidade (supradimensão
generalizante), quanto do “cultural” (supradimensão particularizante) e
exercendo seu poder orbano em uma região, vista aqui como “categoria de
análise espaço-temporal, territorial, jurisdicional e funcional do campo
relacional [...]” (IZQUIERDO, 2005) 30.

O campo relacional é o mesmo campo quântico (não uma metáfora).


Um termo da física contemporânea, assim como no passado se usou a
palavra “entropia” para explicar os fenômenos de desperdício na
experiência cotidiana. Campo relacional aqui significa o mesmo que região.

30
Disponível em:

<http://aizquier.uniandes.edu.co/Documentos/Ciudad_probabilidad_emergente.pdf>
(Acesso em: 12/01/2008).
131

É um termo multidimiensional, quer dizer, simultaneamente político,


econômico, social, ambiental, cultural, etc.

Refere-se às manifestações conscientes do ser em processo


inacabado de totalização frente a probabilidades de ocorrência dos
acontecimentos (surgimento de fenômenos de borda), sejam estas
probabilidades de tipo generalizante (social), sejam de tipo particularizante
(cultural).

Uma cultura emergente, ou melhor, a emergência cultural de


sociedades emergentes se manifestará plenamente, segundo o escritor
americano James Redfield (n. Birmingham – Alabama, 1950), até meados
deste milênio, quando:

[...] os seres humanos viveremos entre árvores de 500 anos e jardins bem
cuidados, embora próximos de alguma zona urbana de incrível avanço tecnológico.
Os meios de sobrevivência, alimentos, roupas e transporte serão totalmente
automáticos e se acharão à disposição de todos. Nossas necessidades estarão
totalmente satisfeitas: não circulará nenhum tipo de moeda, sem que isso implique
preguiça ou indulgência excessiva. [...] cada pessoa guiada por suas intuições,
saberá com precisão o que fazer e quando, e isto se completará de forma
harmônica com as ações dos demais. Ninguém consumirá muito, porque teremos
nos liberado da necessidade de possuir e controlar para ter segurança (REDFIELD,
1993, p. 247).

Temos aí a cidade humana ideal, ou o ser humano cidadão ideal, mas, e a


autonomia? Vamos renunciar da noite para o dia aos ideais da
modernidade? Ao livre arbítrio, que supostamente também nos foi
concedido por uma entidade “superior”?

Felizmente, existe a teoria das multiplicidades, o reconhecimento da


coexistência (não necessariamente pacífica) da diversidade no mundo. E
tudo isto, sem sacrificar as ideias de sistema, redes e autopoiese.

Existe a possibilidade de ver as bordas como sistema não centrado,


quer dizer, sem referência a qualquer centro. Renunciar à hierarquia, ao
significado de uma entidade identificável, a um endereço, podendo circular
132

entre distintas formas de consciência: diferentes e simultâneas maneiras de


ser/estar desde/ em/à borda.

Uma organização heterárquica (não necessariamente anárquica),


com opção pelo nomadismo, que renuncia à ontologia, ao fundamento, a
um fim e um começo estabelecidos social e historicamente. A escolha de
ser/estar “entre”. Tais bordas não seriam mais classificadas como
“assentamentos” humanos, porque sua definição seria outra ao se conectar
a organizações diversas, mas, definitivamente, continuariam sendo
humanas.

A consciência não antropocêntrica, nessa nova topologia do “eu” sem


subjetividade, sem ego, baseada na permanente autorreferência de si, na
reafirmação constante e mutante, já não precisaria da materialidade da
linguagem, apenas de conexões. E mais, garantiria a heterogeneidade das
conexões entre modos de codificação muito diferentes.

Na borda/à borda como topologia (nova) do limite – uma topologia


transconsciente – não existiriam deslocamentos forçados nem “perda de
identidade” em relação ao território, fundamentalmente, por dois motivos:
primeiro, um sistema como espiral e como rizoma poderia ser rompido e
desligado em qualquer de suas partes e retomado em alguma de suas
partes ou na sua totalidade por outro sistema em espiral conseguindo,
assim, transformar a desterritorialização em reterritorialização; em segundo
lugar, porque o ser humano baseado na ipseidade e não apenas na
mesmidade (o idem), reconheceria a dialética entre identidade e ação
política e ética em cada rosto do outro, em cada vizinho (do lado).

A ação (ético-política) como produto do Ser e elevada à categoria de


Ser é o próprio desenvolvimento da ipseidade, já que inclui o distinto de si, a
responsabilidade para com o outro e a reciprocidade antropológico-política e
posto que, na mesma definição de pessoa, a responsabilidade ética e a
133

questão da reciprocidade e igualdade políticas estão imbricadas e


codefinidas originariamente.

É esta acumulação e a estrutura antropológica constitutiva


desproporcional entre atividade e passividade/receptividade que põe de
manifesto a estreita e inseparaval dialética entre a estima de si e o respeito
pelo outro. Com relação a isto, Ricoeur procura combinar a descrição
fenomenológica com a interpretação hermenêutica na tradição humanista
europeia da ação ético-política.
Proponho as seguintes duas teses para discussão. Primeira tese [antítese]: o que a
hermenêutica arruinou não foi a fenomenologia, mas o objetivo de um de seus
intérpretes derivados, quer dizer, sua interpretração idealista em Husserl. [...]
Segunda tese [matesis]: para além da simples oposição entre a fenomenologia e a
hermenêutica, existe uma pertença mútua que é importante tornar explícita. [...]
por um lado, a fenomenologia segue sendo o pressuposto insuperável da
hermenêutica. Por outro lado, a fenomenologia não pode se constituir sem um
pressuposto hermenêutico (RICOEUR, 1986, pp. 25, 26).

É um novo humanismo de borda. O que nos impulsiona como seres


“cientes”, “res-cientes”, “ciosos”, juiz-ciosos a nos opor às perversas e
antigas tradições que parecem haver conseguido selar a condenação do
antigo continente europeu, como previu há mais de meio século, em 1954, o
físico Albert Einstein (Ulm, 1879 – Princeton, 1955).

De certa forma, a modificação dos eventos antecede à experiência de


estar-no-mundo, quando a tomada de consciência é transconsciente. Há
uma predestinação para o que Laclau (1985) chama “recomposição da
estrutura ao redor de pontos nodais particulares de articulação”, coincidindo
com a noção de sujeito de borda/à borda como “ponto potencial de pressão
crìtica”, desenvolvido por Sierra-Morales (1993), na tese do mesmo nome.

Quando outro ser humano é/está diante de mim não é um aparecer


que eu posso incluir no lugar das minhas representações, em minha gaveta
de tese doutoral. É certo que o outro aparece, que seu rosto o mostra, mas
seu rosto não é um espetáculo, é uma voz. Esta voz me diz: “não matarás”,
já que, segundo Ricoeur, cada rosto é um Sinai que proìbe “matar”.
134

Neste sentido, a cartografia social e os sistemas de informação


georreferenciados (combinados), baseados na pesquisa-ação-participativa,
ou seja, feitos pelas mesmas pessoas que habitam a borda à borda, são
uma possibilidade de fazer rizoma, de construir um mapa a partir da
experiência do real.

Como metodologia de mediação e integração sociocomunitária, a IAP


(Investigação- Ação-Participação) pode contribuir para alcançar o “objetivo
último” de integração comunitária e coesão social, já que a participação
cidadã é um meio para melhorar a qualidade de vida. A ação participativa é
um tipo de intervenção através de um conhecimento transformador que
propicia a transconsciência e o empoderamento progressivo dos atores
sociais envolvidos. Quando acontece no limite dos eventos, a ação
participativa é o mais próximo de um projeto de borda.

Com base no princípio da dialogicidade de Freire, a IAP corresponde


à pedagogia da libertação que inspirou inúmeras ferramentas metodológicas
para lidar com as crises promovidas por nosso pensamento ocidental
dominante; entre elas, a cartografia social da Fundação La Minga (1991),
nos territórios indígenas do sudoeste colombiano.

A dialogicidade: Essência da educação como prática da liberdade. [A diferença


entre] Dialogicidade e Diálogo, [entre] a antidialogicidade e a dialogicidade como
matrizes da teoria da ação cultural antagônica [são noções que nos introduzem]
[n]esta concepção da educação como prática da liberdade, [onde] sua dialogicidade
comece, não no encontro educador-educando com os educando-educadores em
uma situação pedagógica, mas antes, quando aquele se pergunta em torno do quê
vai dialogar com estes. Esta preocupação com o conteúdo do diálogo é a
preocupação com o conteúdo programático da educação (FREIRE, 1989, p. 60).

Embora seja verdade que a liberdade se pratica melhor através da


educação, ela seria mais bem exercida em uma “cidade educadora” tal
como pode ter sido a cidade “fragmentada” de Pérgolis.

[...] os processos de fragmentação ocorreram primeiro nas condutas dos cidadãos


que no espaço da cidade. O comportamento de uma sociedade cada vez mais
individualista, em um meio que exige alternativas pessoais difíceis em um mundo
que substitui as utopias sociais pela “saìda pessoal”, explicam a atual estrutura
urbana, que não é melhor nem pior que as anteriores. [...] Por isto, os estudos e as
135

intervenções que acontecem na cidade devem estar voltados para o acontecimento


e não para o cenário, para o trabalho sobre o desejo e não para o modelado das
formas, já que o observador, ao fazer a escolha destas, o faz em função da
satisfação de um desejo: a fusão totalizadora entre o habitante e a cidade, as duas
metades do “sol partido” (PÉRGOLIS, 1998, Introdução, p. 31).

Se existisse tal maravilha, deveria ser antes de tudo uma cidade libertadora
e, nesse sentido, deveria nos permitir compreender que não se trata de
aprender a repetir modelos cidadãos, mas de exercer a cidadania; que a
cidade deveria ser palco do processo revolucionário como uma ação cultural
dialogada conjuntamente com o acesso ao poder em um esforço sério e
profundo de conscientização; e que a ciência e a tecnologia, em uma
sociedade revolucionária contemporânea, devem estar a serviço da
humanização do homem.

A noção de ação cultural se equipara à de ação social, só que devido


a sua natureza particularizante se opõe e/ ou se complementa com o
sentido generalizante do social.

Uma ideia da vida, a partir de um enfoque puramente racional, define


a liberdade como a consciência da necessidade; entendendo por
necessidade o conjunto das leis que regem o universo, a natureza, a
sociedade e o indivíduo. Neste sentido, só pode ser livre aquele que
conhece a essência, o conteúdo e a forma dos fenômenos nesses níveis.

Portanto, conhecer a si mesmo é o mais alto grau de conhecimento


que um indivíduo pode alcançar já que, atingido esse ponto, pode-se dizer
que ele conquistou a liberdade; o que implica que ele seja capaz de
racionalizar as atividades que deve desenvolver em sua vivência pessoal e
social.

O conceito de racional foi introduzido na filosofia pelo filósofo e


matemático René Descartes (La Haye, 1596 – Estocolomo, 1650). No
entanto, ele o fez de maneira limitada, no sentido que privilegiava a
estrutura econômica da propriedade privada sobre os meios de produção do
136

capital, ainda que em um contexto de surgimento do capitalismo no seio do


modo de produção feudal.

Ocorreu então o que alguns consideram como a segunda grande


31
queda do homem: o advento da razão cartesiana e daí a racionalidade
dominante, o individualismo e o advento do poder como dominação. Algo
que, segundo o guru Deepak Chopra, médico nascido em Nova Deli, em
1947, poderia ser chamado de “a prisão do ser”.

[...] o intelecto nos aprisiona quando confunde as imagens da realidade com a


própria realidade e nos confunde em uma rede sufocante de racionalismos de
tempo e de espaço. Isto provoca a perda de contato com nossa verdadeira
natureza (CHOPRA, 1993) 32.

Einstein, em uma de suas famosas frases disse: “eu só quero conhecer os


33
pensamentos dele [Deus], o resto são detalhes” , referindo-se à natureza
da realidade (ontológica, metafísica) como Ser e como transcendência, que
todo físico ou místico pretende atingir em vida. A ideia de Deus como
realidade última está muito próxima do conceito de borda como limite da
realidade conhecida, conhecível e por conhecer.

Por sua parte, Descartes fundamenta toda a sua argumentação


racional sobre a existência de Deus. Por exemplo, o direito natural como
alicerce das relações sociais, nessa época, se baseia no direito de
propriedade como algo inerente à natureza do indivíduo, e como não existe
direito natural sem a existência de um arquétipo divino, então, não é
possível conceber, a partir daí, um indivíduo sem propriedade.

31
Advento: [Lat. Adventus]. Chegada, início e vinda simultâneos daquilo que «emergir».
32
Áudiolivro da conferência realizada em 1989 intitulada: Uma análise de nossos conceitos
sobre a natureza da realidade, resultado por sua vez da meditação do texto: “Corpos sem
idade, mentes sem tempo”; também intitulado “Corpo eterno; Mente intemporal”.
33
Pesquisando Albert Einstein: Ocorrência # 18 encontrada de 4846 frases. Disponível em:
<http://www.ponteiro.com.br/vf.php?p4=6060>
137

É por isso que assusta tanto à mente racional dominante a visão de


mundo de quem defende a ideia de que Deus morreu na origem da história
universal e que sua morte foi o início da vida e da nossa vida. Portanto, a
natureza do poder não seria Deus, mas a morte e tanto a negação para se
perpetuar quanto à busca da autodestruição seriam, assim, coerentes com
a suposta dinâmica do ciclo do ser, ou melhor, do vir a ser.

De fato, toda a institucionalidade burguesa que deu origem às


estruturas de poder simbólico se assentou, primeiro, nas estruturas de
poder soberano (Deus, rei, povo); e toda institucionalidade burguesa foi
construída sobre a propriedade privada dos meios de produção, como já
estava no modo de produção feudal. Com a diferença de nessa época ser
uma estrutura de natureza teocrática, enquanto a natureza do poder na
modernidade se estruturou através da representação popular conservando,
porém, argutamente, uma “nova” fórmula: “a voz do povo é a voz de Deus”.

Quando Descartes proclamou, no século XVII, a independência


epistemológica do sujeito quanto a critérios de verdade e unicidade,
assentou as bases do racionalismo europeu, que daí evoluiu até as
revoluções científica e industrial; as mesmas que, com seus valores de
emancipação e autonomia levaram, no século XVIII, à crise política do
Antigo Regime.

Produto, por sua vez, de uma aguda crise social, veio se


configurando a substituição da ideia de súdito pela ideia de cidadão e se
impôs, de maneira hegemônica, a ideia de contrato social como garantia da
democracia. Retoma-se, então, até hoje, a velha sequência (Estado de
natureza/pacto social/ Estado de bem-estar) que fundamentou todos os
regimes políticos baseados na lógica do poder, do século V a.C até hoje.

O contratualismo enquanto teoria política é talvez uma das teorias


mais influentes dos últimos 300 anos, determinando, em maior ou menor
grau, a estrutura atual dos distintos estados e nações. Não se deve
138

confundir contratualismo com democracia, pois nem todas as teorias


contratualistas, como os postulados de Hobbes (1651), ou os de Locke
(1662), defendem modelos políticos democráticos.

Tampouco deve-se confundir contratualismo com nacionalismo, pois,


sendo ambos os movimentos nucleares e quase simultâneos dos estados
modernos, expressam concepções distintas; ainda que todas essas,
incluindo o pensamento de Rousseau (1775), se orientem pela ideia
fundamental de que é preciso controlar a natureza humana através do
poder.

Por outro lado, a tradição filosófica do direito em Hobbes, Hegel e


Nietzsche se relaciona com Benjamin, quando ele esclarece o nexo entre
mito, violência, direito e destino.

Fundação de direito equivale à fundação de poder, sendo, portanto, um ato de


manifestação imediata da violência. Justiça é o princípio de toda fundação divina de
fins. Poder é o princípio de toda fundação mítica do direito (BENJAMIN, 1972, p.
40).

Foi necessário, portanto, reformular a natureza do poder e a sua


legitimidade. Embora a religião não tenha perdido todo o seu peso e
importância, parece certo que sua influência na esfera dos assuntos
políticos se viu seriamente comprometida, sendo o seu lugar ocupado pela
burguesia.

É interessante perceber como uma ideia, aparentemente tão simples


como o pacto entre as pessoas para viver no planeta, teve tantas versões e
repercussões até hoje. O ideólogo jurídico do Terceiro Reich, Carl Schmitt
(Plettenberg, Prússia, Império Alemão, 1888 – 1985) se inspirou nas ideias
que Hobbes desenvolveu a partir de Descartes para elaborar a sua teoria do
Estado; e o modelo de Estado liberal não intervencionista, ao que parece
fortemente influenciado por Locke, coloca que é necessária a separação
dos poderes legislativo e executivo para garantir que a autoridade se
sustente nos princípios de soberania popular e legalidade.
139

Por sua parte, os ideais comunitários, ambientalistas e românticos


amparados nas ideias de Rousseau, partem do reconhecimento de que o
poder não é absoluto, senão que deve respeitar os direitos humanos; ideia
que inspirou desde então os ideais das revoluções, as quais, sejam de
natureza jusnaturalista (ideias baseadas no direito natural – biológico ou
teológico) ou juspositiva (ideias baseadas no direito público subjetivo), são
em última instância consideradas por alguns como polìticas “exageradas” e
inclusive “inúteis”, em oposição às polìticas “realistas”.

O juspositivismo que é o fundamento do direito antigo alcançou em


Hobbes o seu máximo desenvolvimento filosófico, influenciando o advogado
Jeremy Bentham (Houndsditch, 1748 – Londres, 1832), considerado o pai
do utilitarismo. A sociologia positivista que inspirou Hobbes e Bentham
influenciou o Círculo de Viena, que começou a se reunir fundamentado pelo
empiriocriticismo do filósofo Ernst Mach (Brno, 1838 – Haar, 1916), que
defendia um monismo indissolúvel da relação sujeito/objeto e a busca de
uma experiência “pura” que eliminaria todo resíduo empírico da análise
racional.

A principal tese do juspositivismo segundo a Teoria Geral do Direito 34


é a separação entre moral e direito, que supõe uma negação de toda
relação conceitual ligando ambos, ideia que encontra eco nos princípios de
moral e legislação do utilitarismo que, segundo Bentham (1789),
fundamentariam uma nova ética alicerçada no desfrute da vida e não no
sacrifício e no sofrimento.

Entretanto, a principal ideia da crìtica da experiência é a “economia


do pensamento”, que Mach (1883) entendia como crítica ao
desenvolvimento do mecanicismo materialista e que o Círculo de Viena
confundira, com o propósito de ligar o positivismo ao marxismo por sua

34
AMARAL, Luiz Otavio de Oliveira. “Teoria Geral do Direito”, Ed. Saraiva, São Paulo,
2010.
140

simpatia ao socialismo e como resultado da influência de uma sociologia


positivista.

A realpolitik, por seu lado, apoiada na teoria do realismo político de


Schmitt (1963), respalda o avanço dos interesses nacionais de um país, em
vez de seguir princípios éticos ou teóricos, que nos remete às ideias de
Maquiavel, do historiador Tucídides (Atenas Antiga, 460 a.C – Tracia, 396
a.C) e do teórico militar Sun Tzu (544 a.C, Estado de Qi – 496 a.C, Estado
de Wu). Todas ideias que hoje ganham força no neoconservadorismo pós-
11 de setembro.

A racionalidade materialista e dialética, que supostamente


transcende o capitalismo e às estruturas econômicas da propriedade
privada individual, materializou-se no socialismo. Mas o socialismo,
tampouco, conseguiu se configurar como um coletivismo consciente desde
uma perspectiva econômica baseada em uma nova lógica transpessoal
segundo a qual: o que é bom para os outros é melhor para mim.

Realmente, a postura realista está associada em grande medida ao


socialismo. Marx criticou a noção burguesa de direitos humanos, que ele
descreveu como direitos do indivíduo egoísta, baseados em uma concepção
abstrata de liberdade e emancipação.

[...] Constatemos antes de tudo que os chamados direitos do homem, “les droits de
l‟ homme”, ao contrário dos direitos do cidadão, nada mais são do que os direitos
do membro da sociedade burguesa, quer dizer, do homem egoísta, do homem
separado do homem e da comunidade. [...] O direito humano à propriedade privada
é, pois, o direito a desfrutar de seu patrimônio e a dispor dele arbitrariamente (a seu
gosto) sem levar em consideração outros homens, independente da sociedade, o
direito do interesse próprio. Aquela liberdade individual, assim como a aplicação da
mesma, constituem o fundamento da sociedade burguesa, que faz com que todo
homem encontre em outros homens não a realização, senão que a limitação de sua
liberdade. [...] A emancipação política é a redução do homem, de um lado, a
membro da sociedade burguesa, a indivíduo egoísta independente e, de outro, a
cidadão do Estado, pessoa moral (BAUER e MARX, 1844, pp. 147, 148, 155).

Mas, se em uma primeira instância a violência de Estado é vista como


instauradora do direito e a primeira revolução emancipadora, todas as
tentativas posteriores de tomada do poder serão consideradas anarquistas.
141

Em contrapartida, se o racional é o coletivo não é preciso “matar


Deus” alegando que já não é necessário acreditar em um ser superior,
porque o indivíduo na coletividade superou a ideia espiritualista que
supostamente deu origem à humanidade e a ciência conseguiu suprir a dita
necessidade em todos e cada um dos aspectos da vida cotidiana.

Compreender realmente o Ser não significa que não há necessidade


de sustentar outro tipo de existência. Infelizmente, grande parte da
humanidade caiu também nesse terceiro abismo da história.

A ideia de liberdade a que nos referimos está baseada no


conhecimento que liberta, que implica uma transconsciência das leis que
governam nossa existência a nível individual, coletivo, cósmico e quântico.
Entretanto, esta consciência tem se pautado historicamente na consciência
da necessidade, da dor e do sofrimento ligados ao desejo e ao prazer;
sentimentos estes, verdadeiramente antagônicos, que geram ambiguidade e
patologias na psique, esquizofrenia e comportamento bipolar, dupla moral,
etc.

Quando entendermos isto, estaremos então preparados para atingir o


máximo conhecimento: compreendermo-nos através dos outros.

A verdadeira pedagogia comunitária: o coletivismo consciente se


construiu com ferramentas metodológicas como a cartografia social, em
lugares marginalizados das estruturas de poder convencional e com
pessoas discriminadas e historicamente consideradas inferiores por,
aparentemente, ter sido “derrotadas” pelas empresas coloniais e modernas.

Mas não é apenas um mapa físico que pode ser guardado e


esquecido em um arquivo digital de qualquer “bureau”. A vida é um mapa
aberto, construído coletivamente, desmontável, reversível e conectável em
todas as suas dimensões, com múltiplas entradas e saídas, suscetível de
modificações constantes. Viver na/à borda é “uma questão de performance
142

(desempenho) e não de competência”, segundo Araujo (2007), onde se


privilegiam as possibilidades mais que os fatos e o poder orbano é
entendido como potencialidade mais do que como relação de domínio.

O que estamos propondo nesta tese é o estabelecimento de um


verdadeiro “pacto de borda”, ao mesmo tempo coletivo e individual (comigo
mesmo), mas também que harmonize o ser humano com o cosmo e o
reintegre quanticamente com todas as manifestações da existência.

Tal pacto entre verdadeiros seres humanos livres recuperaria o


sentido humano das ações resultantes de qualquer contrato social:
satisfazer a necessidade humana fundamental de participar de um
intercâmbio não desigual, de uma maneira que somente a rede, como
topologia física e fundamento para uma nova teoria social da democracia
ambiental, pode reconhecer e favorecer como emergência de estruturas
dissipativas de borda à borda.

1.8._Conclusão Capítulo I.

É possível entender que talvez não devamos dar tanta importância à cidade
e aos fenômenos urbanos em si mesmos. Quer dizer, assim como
poderíamos concordar com qualquer filósofo existencialista que não somos
tão especiais como acreditamos e que tanto nosso mundo como nossas
circunstâncias são apenas o invólucro que nos contêm e nos molda; da
mesma maneira, cidade e urbanismo são constituídos por suas bordas,
falsamente delimitadas, e sua análise vai depender da nossa consciência e
capacidade em reconhecer e superar tais limites.

Ainda menos evidente que o anterior, é possível considerar a borda


mais interessante que a cidade e que os fenômenos “tipo” borda são mais
vitais por serem mais intensos do que os eventos modificáveis do
urbanismo e da planificação urbana convencionais. Tais fenômenos como a
143

aglomeração, a autorregulação sistêmica própria das estruturas


dissipativas, a produção de uma ordem emergente, entre muitos outros, não
podem ser adequadamente explicados e compreendidos pelas categorias e
hipóteses formuladas no âmbito das chamadas ciências sociais.

Essas duas condições – importância e interesse – são as chaves do


entendimento da complexa e conflitiva realidade contemporânea, e, para
alcançá-lo, é preciso acessar uma nova ciência que compreenda as redes
como instrumentos válidos para viver uma autêntica democracia
participativa que privilegie o poder distribuído.

Se o leitor considera que vale a pena, além de explicar e entender,


buscar transformar esta realidade e até vivenciá-la, fará melhor lendo
imediatamente o capítulo III, onde se problematiza a borda, para então
voltar ao capítulo II, sobre o objeto de estudo, fazendo assim um percurso
talvez mais conveniente até o capítulo final que fala das formas de
intervenção na realidade contemporânea.

Podemos intuir (porque é mais simples do que através da razão), que


se a borda da cidade somos nós, cada um de nós, e se estamos cabotando
35
à borda do universo conhecido e por conhecer, não existe argumento que
justifique a falta de comunicação entre os seres humanos, nem tampouco
que não haja comunicação com qualquer manifestação de vida ou
inteligência e inclusive com objetos considerados “inanimados”, já que estes
também constituem a borda de tudo o mais que exista.

Finalmente, podemos concluir que o nosso entendimento da cidade


não mudou significativamente, embora este objeto físico tenha se
modificado profundamente no final do século passado. Igualmente, vimos
como é possível compreender essas transformações através de categorias
complexas como a borda entendendo-a, para além dos limites do próprio

35
Cabotagem: saber navegar “à borda”, vivendo nas áreas de transição paradigmática.
144

conceito, como um espaço integrador, como um híbrido carregado de


potencialidades.

“A borda como algo diferente da cidade e do campo, como alguma coisa


que pode nos ajudar a compreender como se exerce hoje o domínio sobre o
território fragmentado” 36.

36
Mauricio Sierra-Morales, “Reconfigurar a cidade contemporânea a partir da
borda/interfaz”, Projeto de investigação FAA – UNIPILOTO, 2009. Ver também a proposta
de pesquisa “Novas categorias projetuais na ambitetura e no ecourbanismo
contemporâneos”, FAU-UGG, 2011.
145

Figura 2: Partindo de uma situação aborrecida.

Fonte: Grosso, 1991.


146

Capítulo II–CIDADE E URBANISMO A PARTIR DA BORDA À BORDA

O mito da criação Aonikenk (tehuelche) 37 relata a origem da terra e a história de


Elal, filho do gigante Noshtex, quem, invejoso de Elal o persegue para matá-lo. Os
animais concebem um plano para salvar Elal, levando-o à Patagônia.

Pavez e Recart, “Elal e os Animais”, 2007.

2.1._Introdução Capítulo II.

Vimos, no capítulo anterior, que a cidade objeto de estudo dos urbanistas e


«eu» temos em comum a mesma borda. Igualmente, procuramos mostrar a
cidade da borda como sujeito do desejo de conhecimento e, nesse sentido,
corresponde ao limite da natureza humana. Em ambos os casos, os limites
e, portanto, as bordas são potencialmente aparentes, tratando-se de
entidades que não podem ser abarcadas: cidade e «eu» como sujeitos
conscientes.

Por enquanto, vamos nos ocupar com a modificação de um evento


em particular, (ao qual poderíamos atribuir às causas fundamentais do
desencanto do mundo que habitamos). Como escapar da prisão do intelecto
que é também a prisão do ser doente de poder? A preocupação desta tese
é como utilizar um metamétodo emancipador que possibilite ao urbanista
contemporâneo um diálogo com a humanidade que retire as vendas que
encobrem a verdadeira riqueza da existência humana e que, ao mesmo
tempo, gere uma reconfiguração de espaços de poder, desde as bordas,
através de uma tomada de consciência (simultaneamente individual/
coletiva/ quântica/ cósmica).

37
Os cantos tehuelches foram gravados em Chubut e Santa Cruz, Patagônia, Argentina,
entre 1964 e 1979, frutos de pesquisa sobre a região (áudio), de Raúl Mario Silva.
Posteriormente, foram compilados por Oscar Giménez (2000) e transformados em conto
infantil por Ana María Pavez e Constança Recart.
147

O sentimento de apego – que antes possibilitava a união dos


habitantes com o seu território – foi substituído, em cada indivíduo, por uma
justificação inconsciente (na sua memória coletiva) do deslocamento
forçado, tanto físico quanto psicológico, supostamente indispensável às
transformações modernas do mundo capitalista, cujos resultados são
visíveis: uma cidade fragmentada, segregada e violenta.

Contudo, esta visão apocalíptica da cidade contemporânea pertence


aqueles que ficaram prisioneiros do intelecto pela força da razão. Uma
condição/situação (como veremos) que podemos transformar com
ferramentas da imaginação e com uma vontade de emancipação
precisando, para tanto, de um metamétodo – tendo a borda como topos
alternativo e como texto a heterotopia baseada em uma concepção
filosófica de “outros lugares” (aqueles que não ficaram, inconscientemente,
prisioneiros do sistema de dominação mundial).

[...] o espaço no qual vivemos [...] é um espaço heterogêneo. Em outras palavras,


não vivemos em uma espécie de vazio, no qual localizamos indivíduos e coisas. [...]
vivemos em uma rede de relações que delineiam lugares que são irredutíveis uns
aos outros e absolutamente impossíveis de superpor (FOUCAULT, 1986, pp. 22-
27).

Funcionar na alteridade implica se livrar da enfermidade da outridade, de


nos acreditar “o outro”. Isto nos permite reconhecer esses outros lugares
como nossos, como familiares. Também é a oportunidade de adquirir a
consciência de viver, concomitantemente, um espaço físico e uma
experiência mental.

Além do uso de procedimentos da percepção psicológica do espaço


que nos permitam fugir mentalmente da especulação sobre o mesmo, são
bem-vindas as ferramentas metodológicas que sirvam para entender os
148

limites aparentes da realidade, enquanto fenômenos manifestos no espaço


urbano contemporâneo, como limiares 38.

Trata-se então de encontrar, juntos, a verdadeira vocação desses


“outros” lugares à borda dos acontecimentos para redefinir as nossas
atitudes em relação aos espaços públicos e privados. Estas intervenções,
embora em escala, lugares e culturas distintas, recriam a ideia de genius
loci de Norberg-Schulz (1980).

2.2._Cidade Contemporânea e Borda.

Sendo simultaneamente objeto de observação científica e de paixão, a cidade é o


plano de fundo da literatura e da organização do espaço e um dos pilares da
reflexão polìtica e social de nossa época [CHOAY, F., “A regra e o modelo” 1985].

Visto sob a perspectiva da objetivação do espaço urbano, o conceito de


cidade – enquanto objeto construído – foi usado, pós-século XV até o
século XVIII, apenas pelos “eruditos” e, por imposição da civilização
ocidental este conceito foi aprovado no mundo todo. Mas não precisamente
pela capacidade do pensamento ocidental entender e valorizar a realidade
dos acontecimentos da cidade.

Não obstante, os urbanistas contemporâneos continuam a traduzir,


desde esse contexto, falsamente “global”, até outro, supostamente “latino-
americano”, uma ampla gama de conflitos interculturais: processos de tipo
reformista que canibalizam outros de tipo emancipador, segundo
Boaventura de Sousa, (2001).

Tais conflitos, convenientemente, foram reduzidos pelas ditas


ciências sociais a um único momento (o presente) de uma única totalidade,

38
Limiares: vistos como o estímulo mínimo necessário para propiciar situações construídas
pelos habitantes da borda à borda, a fim de incrementar a capacidade (a nossa e a deles)
de apaixonamento por esses “outros lugares” de onde “anormalmente” nos deslocamos e
que agora, juntos (eles e nós), habitaríamos conscientemente.
149

desconsiderando as experiências da vida cotidiana e, além disso,


produzindo categorias de não existência (o ignorante, o inferior, o sujo, o
residual, o local, o improdutivo, quer dizer, a periferia), que são hoje
evidentes nas bordas, nas inúmeras interfaces e interstícios da cidade
considerada agora “fragmentada” e “segregada”.

Muitas destas categorias do que não existe, existem nos lugares-


nemhum, que podem ser compreendidos como heterotopias, que, por sua
vez, nos ajudam a perceber a emergência das diferenças (culturais, sociais,
políticas, econômicas) como um tema central nas grandes cidades
multiculturais.

Após uma década do estabelecimento dos objetivos deste milênio,


pela Organização das Nações Unidas (ONU), o discurso da agência Habitat
continua a ser simultaneamente pessimista/otimista quanto ao futuro de
nossas cidades em nível mundial.

“O século da cidade”. O discurso urbanístico, paralelo ao movimento


das organizações sociais que reivindicam o seu direito a viver na cidade,
atesta que vivemos um momento histórico no qual “a humanidade inclinou a
balança e mudou de rumo com a maioria da população mundial
concentrada nas áreas urbanas” 39.

A globalização favorece a tendência, neste século, de crescimento


continuado das “megacidades” e do surgimento das aglomerações maciças
de mais de 20 milhões de pessoas, conhecidas como “metacidades”. A
geografia urbana do mundo se transformará radicalmente com os novos
“arranjos” de sistemas urbanorregionais, vistos como as megarregiões, os
corredores urbanos e as cidades-regiões, reunindo-se em torno de zonas
metropolitanas junto a pequenas aglomerações e zonas de influência de

39
UNHABITAT (Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos),
Secretariado do Fórum Urbano Mundial, "O Direito à Cidade: Unindo o Urbano Dividido", A
Quinta Sessão do Fórum Urbano Mundial (Documento de Fundo), Rio de Janeiro, 2010.
150

baixa densidade, convertendo-se nos novos motores das economias


mundial e regional.

Incluídos/excluídos, dominantes/dominados, todos concordam que as


cidades, por sua vez, sejam grandes, médias e até mesmo (em alguns
casos) as pequenas continuarão sendo o motor da economia nacional
(incluindo o significado mais tangível de nacionalidade) e o símbolo da
criação de riqueza, com a missão de promover o desenvolvimento social e
gerar emprego.

As oito (8) maneiras de “mudar o mundo”, como são conhecidos no


Brasil os objetivos do milênio, parecem coincidir com as supostas
conquistas que os mais renomados urbanistas contemporâneos vislumbram
para a cidade neste século: mais urbanização e um maior crescimento
físico, à medida que mais gente viverá nas áreas urbanas, aumentando os
resultados positivos de viver em sociedade, tais como a inovação
tecnológica, as diversas formas de criatividade, o progresso econômico,
melhores níveis de vida, uma maior responsabilidade democrática e o
esperado empoderamento da mulher.

Nada importa, “vale tudo”, vamos conseguir “ultrapassar a divisão do


mundo” apenas construindo mais cidades, presumidamente “melhores”,
para um mundo urbanizado. Certamente, contando com governos
competentes e responsáveis, sem o que grande parte da contribuição
potencial das cidades para o desenvolvimento econômico e social se
perderia.

A palavra “corrupção” parece que foi apagada de todas as análises


urbanas contemporâneas. Elegantemente, preferimos “esclarecer” que: no
caso de nossos países latino-americanos, o processo urbanizador não
garante melhoria na qualidade de vida, dada à existência de “outros” fatores
de divisão, como as desigualdades extremas, os conflitos, as políticas
151

inadequadas ou ineficazes, os quais bloqueariam o desenvolvimento


conjunto e de maneira substancial: o progresso.

A corrupção é uma versão moderna do pecado original, no sentido


que provém da mentira institucionalizada e consentida socialmente, que
atua em várias dimensões das relações humanas de poder (entendido como
dominação); inclusive na intimidade do casal, onde vai dar no adultério. A
mentira perverte a realidade, cria-se e se acredita numa versão “perdida”
dos acontecimentos, que são narrados oficialmente como históricos por
aqueles que dominam – os poderosos.

Poder-se-ia dizer que ela é a mãe de todas as coisas “ruins” ou


indesejadas e dela deriva o roubo e o assassinato, que são considerados
“crimes” à luz do direito moderno, o qual geralmente aplica sua justiça com
40
impunidade precisamente por essa distorção praticada pelas relações de
domínio, através das quais a culpa desses males sociais se transfere
automaticamente aos mais fracos; os discriminados, os pobres, as
mulheres, os negros, etc. E o castigo que os verdadeiros culpados merecem
não chega nunca ou, quando chega, é insignificante comparado com os
danos causados às vítimas.

“Vinho velho em garrafa nova”. Embora, agora, como todos estão


interligados por essa “cidade glocal”, tanto o êxito (progresso moderno)
quanto o fracasso atingem a todos e não apenas aos excluídos e pobres
(aqueles para quem a cidade não oferece futuro algum), e não só os
contextos de pobreza e marginalidade, esses lugares mal governados onde
haverá um aumento da urbanização.

40
Impunidade: No sentido negativo, o impune, ligado à ideia de corrupção, é especialmente
comum em condicões e situações que carecem do domínio da lei, nas quais predomina a
politicagem e onde há sistemas de clientelismo político arraigados. Contribui para a
impunidade a presença de um poder judicial débil ou de forças de segurança protegidas por
jurisdições especiais ou imunidades.
152

Segundo o arquiteto e geógrafo urbano Eduardo López Moreno, “as


cidades vão continuar divididas por fronteiras invisìveis” (LÓPEZ Moreno,
41
2009) . Este acima/abaixo e dentro/fora conhecido vulgarmente como “a
divisão urbana” é a mesma “divisão humana” que faz com que, numa
mesma cidade, seja possível ver pessoas vivendo em áreas com
infraestrutura, instalações comunitárias importantes e bem conservadas,
parques bem cuidados, jardins e até zonas de mercado residencial ao lado
de outras pessoas que vivem em áreas com graves privações de tudo;
habitações inadequadas, serviços deficientes, atividades recreativas e
culturais pobres, decadência urbana e baixo investimento de capital.

Essas diferenças tangíveis de acessibilidade aos benefícios de viver


na cidade contribuem para aprofundar as intangíveis, o que acaba gerando
desigualdade de oportunidades e de liberdade de todos os moradores da
cidade relativamente a outras cidades menos desiguais, ainda que talvez
menos prósperas em termos de indicadores convencionais.

O lado oculto da globalização, que não é mostrado pelos


“vendedores” de cidades, é que este século verá também o número de
favelados do mundo ultrapassar a marca de um bilhão. Um em cada três
moradores viverá em habitações inadequadas e sem acesso ou com
escasso acesso a serviços básicos. É muito provável que o número dos
pobres urbanos aumente e que nas cidades e regiões haja mais
desigualdade. Esse pode ser o cenário futuro se não forem adotadas
medidas corretivas nos próximos anos.

Esperemos que as advertências da ONU não tenham chegado muito


tarde. Por enquanto, é importante a autotransformação das bordas em
redes potencialmente articuladoras dessa metacidade (sem as quais
continuarão existindo pessoas vivendo no céu ao lado do inferno e, o que é

41
Entrevista UNDESA, New York. Disponível em:
<http://habitat.aq.upm.es/boletin/rbib_12.html> (Acesso em: 26/03/2010).
153

pior, sem a menor consciência disso). Para isto, torna-se indispensável o


papel do urbanista contemporâneo.

Interessa-nos saber como a cidade contemporânea, na qual vivemos


conscientemente em um momento de nossa existência, entendida ela
mesma como Eu, poderia ter em conta a perspectiva indiferenciante de que
tratou Araujo: a visão universal potencial da subjetividade emancipatória do
urbanista contemporâneo como metamétodo para transferir conhecimentos,
para além das disciplinas, para uma apreensão da realidade complexa e
conflituosa das/nas bordas.

Só assim, deixará de ser necessário que os governos locais


trabalhem em estreita colaboração com as autoridades centrais para
continuar mantendo a hegemonia. Enquanto isso, nós acreditamos que
trabalhando a partir de e nas bordas as lideranças vão surgir de baixo para
cima (como deveria ser) conseguindo, então, coexistir na heterotopia.

É pouco provável que nos próximos anos as cidades institucionalizem


associações intermunicipais e desenvolvam programas conjuntos de
competitividade cooperativa em uma nova perspectiva, a fim de dar maior
visibilidade ao local, promovendo, simultaneamente, o desenvolvimento
regional. É mais fácil (embora não menos complexo) fazer rizomas na
borda.

Mais tarde, quando não houver mais a divisão humana, essas redes
de cidades poderão se articular com os governos centrais e, juntamente
com eles, trabalhar para alcançar um arranjo diferente e poderoso dos
vários níveis de governo, podendo inclusive extinguir a divisão urbana.

Para compreender melhor o que estamos dizendo é indispensável,


nesse momento, redefinir a ideia de poder. Como atributo ou característica
de “alguém”, o poder é algo que se possui ou não, numa escala gradual
entre os que têm mais poder (poderosos) e os que quase não têm
154

(marginais), mas que, de qualquer forma, continuam sujeitados,


precisamente porque desejam satisfazer suas necessidades e desejos;
presos, assim, num círculo vicioso que os mantêm submetidos ao sistema
de dominação.

A este respeito, Gramsci, no Caderno 25 (XXIII), tomo 6, À margem


da história: História dos grupos sociais subalternos, descreve como a ideia
anterior do poder soberano veio se configurando historicamente como poder
subordinado e deste em poder pessoal.

As noções de “classe subalterna” e “grupo subalterno”, atualmente


muito utilizadas nas chamadas ciências sociais e na historiografia,
aparecem nos livros que tratam do urbanismo contemporâneo junto a
questões de senso comum, folclore, religião, entre muitas outras usadas
para a interpretação das lutas sociais no capitalismo contemporâneo.

Estes e outros conceitos como hegemonia e poder, classes sociais e


sociedade civil já foram (re) elaborados por Gramsci nos seus Cadernos do
cárcere (1926 até 1937) e, nas últimas décadas do século XX, passaram a
ser de uso comum dentro e fora das universidades com significados muito
diferentes do significado revolucionário original.

Esta tese de urbanismo não é exceção, já que se baseia em autores


contemporâneos que reinterpretaram tais conceitos. Por exemplo, a
diferença entre colocar o conceito de sociedade civil no nível da
42
infraestrutura, como o havia identificado Hegel (1821) e o próprio Marx ,e
entender esta noção como parte da superestrutura, como o faz o advogado,
filósofo e cientista político Norberto Bobbio (Turin, 1909 - 2004), expressa a
diferença entre o marxismo e o liberalismo.

42
Atribui-se a Marx os “Manuscritos econômico-filosóficos” de 1844, também chamados
“Os escritos de Paris”, publicados postumamente, em 1932.
155

A confusão dos termos gramscianos quanto ao que significa viver na/


à borda dos acontecimentos, dominados por estruturas de poder
hegemônicas levou a identificar o sentido do popular das classes
subalternas, como “cultura do povo”, com noções depreciativas como
“cultura da pobreza”, que oculta o verdadeiro desafio que é transformar os
padrões culturais que deram origem à servidão e à pobreza.

Isto representa a diferença entre discernir “a” cultura (única, como


campo unificado da consciência) como elemento determinante dos eventos
a modificar desde/ na/ à borda, daquilo que os estudos culturais pós-
modernos e celebratórios – que não excluem o anterior – consideram como
um elemento “positivo” na transição histórica para uma suposta “nova era”:
da fragmentação física e da segregação social.

Muitos destes estudos podem ser relacionados em perspectiva: das


elaborações teóricas de Foucault (1975) sobre o poder da disciplina e sobre
o direito à vida das pessoas; à pretensão de Agamben (1998), com sua
ideia particular da biopolítica, ao eliminar a relação entre as noções de vida
e lei transformando a vida em lei; às contribuições de Derrida (2007), com
relação à teoria dos conjuntos e à ideia dos limites do pensamento
filosófico.

A ideia de transcendência, em Derrida (1968, 2006), refere-se a ir


além do limite do pensamento como fundamento da ação filosófica e do
próprio sentido de qualquer ação política não hegemônica.

Outros autores como Hall, a partir da perspectiva dos grupos sociais


subalternos, também contribuiu para que, partindo das ideias de Gramsci e
de suas referências ao campesinato do sul, se chegasse nesta tese de
borda a propor ideias referentes ao mundo pós-colonial do migrante, do
refugiado, do deslocado, do favelado, do viajante paradigmático da borda.
156

Assim como a existência na borda requer uma filosofia do limite, a


mente da borda requer uma epistemologia da borda e o corpo da borda um
“espìrito de ruptura” para superar a consciência limitada de ser/estar em
subalternidade: entender as coisas como se mostram e como se oferecem à
consciência. Ir além da simples defesa da identidade, seja como culturalista,
seja como pós-modernista, implica reconstruir uma teoria geral da
emancipação, típica da visão revolucionária de Gramsci, a partir do discurso
pós-colonial e da crítica ao realismo de autores como Boaventura de Sousa.

[...] a análise desenvolvida [...] envolve uma dupla escavação arqueológica: escavar
no lixo cultural produzido pelo cânone da modernidade ocidental para descobrir as
tradições e alternativas que dele foram expulsas; escavar no colonialismo e no
neocolonialismo para descobrir nos escombros das relações dominantes entre a
cultura ocidental e as outras culturas outras relações possíveis mais recíprocas e
igualitárias. [...] identificar nesses resíduos e nessas ruínas fragmentos
epistemológicos, culturais, sociais e políticos que nos ajudem a reinventar a
emancipação social (BOAVENTURA de Sousa, 2001, p. 16).

A teoria desenvolvida por Gramsci nos Cadernos do Cárcere 43 é precursora


da complexidade emergente configurada pela vontade emancipatória
(coletiva autônoma) que, por sua vez, unifica as classes subalternas como
antagônicas às classes dominantes. As ações necessárias a uma reforma
intelectual e moral que transforme uma cultura única imposta pela classe
dominante exigem, além da negação radical da ordem estabelecida, a
materialização de uma nova subjetividade não antropocêntrica, fundada na
ação imanente e transcendente do ser.

Em Gramsci, os conceitos apresentados no caderno 12 – que trata


da história dos intelectuais – e no caderno 27 – que fala da história das
classes subalternas – são partes da mesma investigação. Igualmente, nesta
tese, não podemos separar o destino dos habitantes da borda do destino
dos urbanistas que discutem a cidade contemporânea, uma vez que as

43
Os Cadernos do cárcere são um conjunto de 29 cadernos de tipo escolar escritos
por Antonio Gramsci no período em que esteve prisioneiro na Itália, entre 1926 e 1937. Na
verdade, os Cadernos começaram a ser redigidos em fevereiro de 1929, no cárcere de
Turi, nas imediações de Bari, pouco depois de Gramsci ter obtido autorização para estudar
e escrever.
157

formas do folclore e do senso comum da população não podem estar


separadas, na análise, das formas de domínio que lhes são impostas com a
contribuição última dos intelectuais.

Quando Gramsci se refere implicitamente aos intelectuais orgânicos


da burguesia e aos “necessários” do proletariado, se remete à
recomposição dos fragmentos culturais e ideológicos surgidos da rebeldia
dos dominados, na perspectiva da negação da subordinação, o que
demanda, fatalmente, ações orientadas a uma reforma moral e intelectual
de grande envergadura, no sentido da recomposição de toda a vida material
e cultural.

Cada grupo social gerado pela produção econômica cria,


organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão
homogeneidade e consciência de seu próprio papel no mundo, com
discursos polìticos que sustentam uma ideia “coesa”, (coerentemente
reduzida), que propõe uma só sociedade e uma só cultura. Isto ocorreu
antes, durante e depois da estruturação do poder simbólico, tal como foram
engendrados os intelectuais no feudalismo europeu, época na qual “a
categoria dos eclesiásticos pode ser considerada a categoria intelectual
organicamente ligada à aristocracia latifundiária” (GRAMSCI, OP: 1975 p.
34).

Só que em nossa reconfiguração urbana, desde/ na borda/ à borda,


não carecemos de intelectuais formados no seio de uma classe subordinada
consciente de si mesma, para reverter à ordem da dominação estabelecida.
Alem disso, demandamos seres da borda, vivendo à borda dos
acontecimentos que, embora dominados pelo sistema, sejam também
sujeitos transconscientes, quer dizer, conscientes, simultaneamente em
vários níveis: individual, coletivo, cósmico e quântico.

Estes habitantes da borda/ à borda vão se configurar de forma


autônoma, organicamente, em múltiplas e diversas formas intersticiais,
158

reformulando o fenômeno urbano a partir das interfaces existentes e de


outras por configurar.

Paradoxalmente, a globalização hegemônica do sistema de


dominação capitalista traz os germes de sua própria destruição. Um deles,
44
talvez o mais ligado a essa questão da intelligentsia , indispensável para
uma autêntica revolução, é o Ser cosmopolita. O habitante da borda, longe
do marginalizado e dependente dos núcleos populacionais excludentes,
pode se constituir numa espécie de totalidade e reconhecer esta condição
nos demais com os quais constrói territórios heteronômicos, ou seja,
heterotopias que se articulam em redes flexíveis.

As heterotopias contemporâneas surgem das utopias modernas, são


espelhos (objetos físicos aparentemente reais) que refletem a realidade
imaginada (virtual), que é a verdadeira (veritas) e a virtuosa (virtus).

A difusão do Renascimento como fenômeno de massa pode ter sido


o gerador de uma civilização de homens universais, tal como Gramsci via
Leonardo da Vinci (Vinci, 1452 – Amboise, 1515). Da mesma forma, a
reconfiguração de espaços de poder desde/ e na borda poderia, pelo
menos, dar lugar a uma geração verdadeiramente livre, de seres no limite.

A vocação do Estado, a regulação das formas de produção e a


reprodução das estruturas de dominação que sustentavam o sistema
capitalista e que contavam com a contribuição anônima dos intelectuais e
políticos das classes dominantes como partícipes de um mesmo bloco
histórico, da época de Gramsci, se transformaram no mundo
contemporâneo no processo de ideologização e massificação das

44
Paradoxalmente, os intelectuais da época antiburguesa de Marx foram os primeiros
representantes de um grupo que possui muitas das características culturais e políticas de
uma classe de elite, no sentido de pessoas envolvidas profissionalmente na produção,
distribuição, interpretação, crítica e inculcação de valores culturais. A intelligentsia se
tornou, no nosso tempo, uma intelectualidade de massa responsável, por exemplo, pelo
voto de opinião nas metrópoles contemporâneas.
159

ferramentas midiáticas de dominação que são tão imperceptíveis como


aprovadas pela maioria da população. E, assim, tanto dominantes quanto
dominados poderiam ser classificados como “beneficiários” de outras
formas de dominação ainda desconhecidas para a maioria.

Pensar, no mundo contemporâneo, que a ação social de um grupo


dirigente – gerado organicamente em conexão com supostas classes
subalternas e como instrumento concreto capaz de canalizar a rebeldia dos
subalternos – seja capaz de recompor os fragmentos ideológicos de
rejeição da ordem, promover ativamente uma reforma moral e intelectual
que negue a subordinação e conceber um novo projeto de vida comunitária,
é algo que está muito longe de se tornar realidade.

Em parte, porque a rebeldia espontânea das classes subordinadas


(se é que ainda se pode falar de classe nos termos gramscianos) está
voltada para um projeto de hegemonia liberal global e não para a
espontaneidade de uma heteronomia cultural, que realmente supera os
horizontes curtos de uma sociedade heterônoma (dependente), já que se
baseia na diversidade cultural (interdependente) e não na busca da
hegemonia política de uma classe subordinada sobre outras classes
dominantes.

Assim como as diversas formas de sindicalismo e corporativismo


mantêm a condição de subalternidade da classe trabalhadora, precisamente
por não colocar no horizonte o desafio da hegemonia (imprescindível para a
formação de uma nova ordem, de um novo Estado), da mesma forma as
estruturas do poder simbólico se baseiam em um limite teórico
economicista, que reproduz uma visão social que é própria do liberalismo da
ideologia dominante.

Assim como, no mundo moderno, o sindicalismo teórico como


variante do economicismo é a ideologia de uma classe que continua sendo
subordinada; no mundo contemporâneo, as grandes massas que aspiram
160

ao consumo das classes médias constituem a nova consciência da classe


subalterna do sistema de dominação.

Paradoxalmente, o que leva à falsa dicotomia entre o econômico e o


político, entre a sociedade civil e o Estado é o que impede qualquer
movimento social não alternativo de se tornar dominante, ou seja, se
desenvolver para além do estágio econômico-corporativo até uma
hegemonia ético-política da sociedade civil e dominante no Estado.

O que Gramsci faz, afinal, é aprofundar e desenvolver a fórmula


polìtica da “frente única” e da aliança operário-camponesa: trabalho a que
se dedica no período da prisão. Somente uma coalizão do conjunto das
classes subalternas, orientadas pela classe trabalhadora e seus intelectuais
orgânicos – reunidos na figura do príncipe maquiavélico moderno – poderia
se constituir em força antagônica e alternativa ao capitalismo.

Apenas para fins analíticos, se consideramos a população que vive


na borda/à borda como o conjunto das classes baixas (que, insisto, não é a
realidade das coisas), quem, por um processo transconsciente, conseguisse
gerar uma neguentropia de sua condição subordinada através de uma
reconfiguração de espaços de poder, seria capaz também de configurar
uma “nova” reforma moral e intelectual em termos dos valores que
sustentam a urbanidade.

Poderíamos, então, supor que esta população transformar-se-ia em


uma nova sociedade civil (não em um novo Estado), materializando uma
nova globalização contra a hegemonia?

Nada é mais falso. Pura demagogia! A sociedade civil é o novo


Estado operário, o Estado socialista. Este Estado, que foi obra do conjunto
dos grupos sociais que se libertaram da subalternidade e alcançaram o
estatuto de construtores de uma nova civilização, nunca alcançou (e
provavelmente nunca alcançará) o status de humanidade necessário para
161

garantir a erradicação das maneiras e das formas de segregação social e


de fragmentação física que caracterizam as cidades desde o início da
história.

A degradação ética e moral das sociedades primitivas é fruto dos


interesses individuais dos personagens que nelas ocupam posições de
autoridade, seja política, religiosa, militar, etc. O poder pessoal disfarçado
ou amparado pelo poder soberano se transforma em despotismo e
apropriação do que originalmente era comunitário. Do exposto se originam
as leis que sustentam a ideia de propriedade privada – a princípio em mãos
daqueles que detêm o poder – e esta propriedade se estende depois pela
expropriação de prisioneiros de guerra até, finalmente, a escravidão de
povos inteiros. Processo este, justificado economicamente pelo
fortalecimento dos impérios que foi, tem sido e será autenticado
ideologicamente, legitimado e inclusive legalizado pelo Estado moderno.

Ser poderoso ou ter poder se tornou, desde então, uma necessidade


impossível de satisfazer e, portanto, uma meta do consumo capitalista
expressa nas ações cotidianas.

Foi o que recentemente lembrou Harvey (2012), com a afirmação de


que o sistema capitalista mundial consegue sempre reconfigurar-se, mesmo
sacrificando a legalidade do Estado; especialmente, quando legitima na
prática a exploração de recursos justificando-a pela guerra 45.

A partir de uma visão mais contemporânea, a teoria das


necessidades humanas segundo as categorias de Abraham Maslow
(Brooklyn,1908 – Palo Alto, 1970) e a ideia de poder como satisfator
sinérgico de uma ou várias necessidades humanas fundamentais
(existenciais/ axiológicas), em Manfred Max-Neef (n. Valparaíso, 1932), são

45
Apreciação pessoal do que disse Harvey em “O enigma do capital e as crises do
capitalismo”, conferência pronunciada em 28 de fevereiro de 2012, no Laboratório de
Habitação e Assentamentos Humanos da FAU (LabHab), Pós-Graduação FAU/USP, Rio de
Janeiro.
162

ideias que convergem em torno da possibilidade de entender a


automotivação como um método de empoderamento do indivíduo.

A hierarquia das necessidades proposta por Maslow em 1932 foi


sistematizada como teoria em 1942 e editada em 1943. Na base da
pirâmide, se encontram as necessidades humanas fundamentais, aquelas
que garantem a sobrevivência: fisiológicas, de segurança, sociais e,
gradualmente, até a parte superior os grupos de necessidades “superiores”:
de estima e/ ou autoestima e autorrealização. Por outra parte, a teoria das
necessidades humanas fundamentais de Max-Neef (1986) consegue
diferenciar necessidades de satisfatores, o que nos facilita, no caso desta
tese, discernir entre necessidade e desejo.

Ao nos liberarmos da necessidade, quer dizer, da sujeição ao


domínio das leis da natureza e da sociedade, poderíamos alcançar a
desejada liberdade. A reconfiguração consciente de espaços de poder, que
se manifestam no fenômeno urbano desde/ na borda/à borda, é o processo
que permite o trânsito da necessidade à liberdade do ser humano.

Um coletivismo transconsciente (simultaneamente individual, coletivo,


cósmico e quântico) transcende a propriedade privada dos meios de
produção de capital e atinge um alto padrão de vida e bem-estar, inédito na
história da humanidade, superando também a alienação, ao deixar a
ideologia do proprietário sem fundamentação epistemológica e favorecendo
a autorrealização da verdadeira essência do ser humano da borda.

Um coletivismo transconsciente (simultaneamente individual, coletivo,


cósmico e quântico) transcende a propriedade privada dos meios de
produção de capital e atinge um alto padrão de vida e bem-estar nunca
antes alcançado na história da humanidade, superando também a
alienação, ao deixar a ideologia do proprietário sem fundamentação
epistemológica e favorecendo a autorrealização da verdadeira essência do
ser humano da borda.
163

Seguindo a ideia originalmente proposta por Araujo (2005), de que


atualmente se pode reconhecer semelhança entre os múltiplos significados
da palavra cidade e o sujeito descentrado e fragmentado contemporâneo,
acolhemos sua afirmação de que todo cidadão se converteu num
cosmopolita e que o urbanismo se transformou em orbanismo, já que o
mundo é potencialmente nossa cidade e, simultaneamente, a cidade que
cada um é também é coextensiva ao modo urbano de inserção no mundo,
por não haver distância (temporal) que separe “Eu” de “Cidade”.

Ao invés de cidadão ou citadino, nesse contexto é mais apropriado retomar o antigo


conceito de cosmopolita, «cidadão do mundo». As trocas materiais, pessoais,
mentais e financeiras, o estabelecimento de vínculos sociais, de inserção social,
política e econômica se darão mediante a interface [espacial] gerada pela
disponibilidade mental, social, pessoal e dos equipamentos disponíveis (ARAUJO,
2006, p. 56).

Então, redefinindo coletivamente a ideia de poder sem dominação, cabe


dizer que todo cidadão agora é um habitante da borda /à borda e que o
urbanismo, tal como o conhecemos se tornou potencialmente orbanismo,
por-que agora o unus mundus é nossa cidade.

Caso contrário, se não existisse uma heterotopia na dita proposta


“orbanista”, esta tese não seria mais que uma versão contemporânea do
sinecismo46, desta vez, para além do mundo regional pós-fordista e o termo
“eu-cidade” seria, tão somente, mais um entre outros, como “cosmopolis”,
“metapolis”, “megalopolis”, etc.

2.3._Urbanismo Como uma Disciplina.

Foi acertadamente colocada por Choay (1965), a autonomia relativa do urbanismo


em relação às ciências sociais, desde que este começa a ser exercido como âmbito

46
Sinecismo (do grego synoikismós), coabitação. Fusão, por motivos defensivos, de
pequenas comunidades numa maior que totalmente as substitui; processo que
na Grécia antiga levou à formação da pólis. Definição disponível em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Sinecismo>
164

disciplinar a partir de meados do século XIX, e sua indissolúvel relação com a


filosofia das ciências através dos conceitos de moralidade, ética, legalidade.

Francisco Sierra, Filosofia das Ciências, 2007 47.

O filósofo colombiano Francisco Sierra Gutiérrez refere-se ao “urbanismo


em questão”, que Choay nos dá a conhecer em seu estudo que remete
desde ao que ela chama de “pré-urbanismo” até a crìtica da crítica do
urbanismo contemporâneo. Ou seja, antes do urbanismo como disciplina de
estudo (que surge como crìtica à cidade industrial “moderna” – ou pré-
moderna segundo os urbanistas) não da cidade (que existe desde a
Antiguidade), senão do fenômeno urbano enquanto tal.

Este neologismo corresponde ao surgimento de uma realidade nova: pelos fins do


século XIX, a expansão da sociedade industrial dá origem a uma disciplina que se
diferencia das artes urbanas anteriores por seu caráter reflexivo e crítico, e por sua
pretensão científica. Nas páginas seguintes, «urbanismo» será empregado
exclusivamente nessa acepção original (CHOAY, 1965, p. 2).
48
A partir do famoso Círculo de Viena , criado durante a primeira metade do
século XX para afirmar a concepção científica do mundo no âmbito da
filosofia (disciplina encarregada por eles para catalogar como não científica
qualquer linguagem distinta da física), a tendência tem sido considerar o
urbanismo moderno (a redundância é intencional) como uma disciplina
humanista, carente de objetividade científica e, portanto, incapaz de ser
reduzida empírica e positivistamente.

Na verdade, Heidegger [para Sloterdijk] está revelando [...] o humanismo (em sua
forma antiga, cristã ou iluminista) [...] como agente de um não- pensar bimilenar
[por] ter impedido – com suas apressadas interpretações, aparentemente óbvias e
irrefutáveis da essência humana – que viesse à luz a verdadeira questão da
essência do homem (SLOTERDIJK, 1999, p. 42).

A influência da filosofia das ciências no pensamento urbanístico


contemporâneo é inegável. A filósofa e química Isabelle Stengers (n.

47
Notas sobre o discurso do professor Francisco Sierra no curso de doutorado em
Urbanismo FAU/UVC – “Filosofia das Ciências”, em CINDU/UNAL Bogotá, 2007b.
48
O Círculo de Viena (Wiener Kreis), criado pelo dr. Johan Craidoff e pelo filósofo Moritz
Schlick (Berlim, 1882 – Viena, 1936), em 1922, dissolveu-se em 1936 devido à ameaça do
nazismo. Em seu manifesto programático, um opúsculo intitulado “A visão cientìfica do
mundo” (1929), descreveram sua busca por uma linguagem comum a todas as ciências.
165

Bruxelas, 1949) introduziu na ciência a relação entre os conceitos de poder


e invenção, e colaborou com Prigogine na formulação da visão da natureza
como auto-organização e não- linearidade.

Agora, os urbanistas contemporâneos questionam, além do


urbanismo, a ideia de cidade ao redefinir os atuais desafios em termos dos
novos “códigos da cidade”.

As referências que sustentam o conceito de cidade estão em questão, sem que


seja possível uma definição a partir da hegemonia de qualquer um de seus
elementos constituintes. A organização da produção, consumo, reprodução,
transmissão, experiência e poder, em todas as esferas em que as atividades
humanas estão concernidas, [estão] subvertidas pelos códigos forjados pelas
Novas Tecnologias da Informação e Comunicação (ARAUJO, 2006, p. 54).

Apresento adiante, no Urbanista Contemporâneo, a possibilidade de


considerar o urbanista (sujeito), e não o urbanismo, como método de estudo
dos fenômenos da realidade (objeto), de acordo com Sierra, quem, numa
interpretação do sacerdote jesuíta Bernard Lonergan (Buckingham
(Quebec), 1904 – Pickering, 1984), alicerça o “metamétodo” da filosofia de
qualquer conhecimento contemporâneo no “ponto de vista universal
potencial”.

Isto é válido tanto para a filosofia quanto para o urbanismo quando,


além da “objetivação” do espaço se entenda o fenômeno urbano como um
meio, um caminho para chegar a um fim, e, igualmente, como a maneira
“certa” de fazer (os cidadãos) um assentamento humano que possa
coexistir criativamente a partir de suas bordas e, sobretudo, em suas
bordas.

O método (até agora) considerado pela disciplina urbanística consiste


numa estrutura normativa de operações repetitivas e combinadas cujos
resultados podem se acumular crescentemente. O conjunto resultante são
as partes de um todo que chamamos cidade. Mas, essa ideia de totalidade
é a lógica da razão metonímica que, juntamente com a razão proléptica
166

constituem os dois pilares do pensamento ocidental moderno (ainda


considerado contemporâneo).

Saussure (1971) identifica o eixo paradigmático ou metonímico da


linguagem por uma cadeia de significantes com um possível significado
comum que lhe dá sentido. Tanto a metonímia (que toma partes da
realidade como se elas constituìssem “toda” a realidade) como a proléptica
(que antecipa a existência de uma realidade “total” na ideia de um futuro
planejado) são armadilhas do processo racional de pensamento, criadas
pela interpretação hermenêutica, que dá sentido e status de materialidade
às edificações.

Ambas, também, são ferramentas que operam através de um


conjunto de regras e métodos heurísticos que levam à descoberta, à
invenção e à suposta resolução de falsos problemas (atribuídos
equivocadamente) como inerentes ao processo de desenvolvimento dos
assentamentos urbanos. De tal maneira, que o sujeito envolvido no objeto
de estudo – seja ele cidadão ou talvez urbanista – acredita (induzido) que
foi ele quem fez tal descoberta.

A investigação das fontes e a manipulação algorítmica – mesmo que


não sejam muito rigorosas – são procedimentos heurísticos que, traduzidos
em ações, quase sempre satisfazem aos urbanistas, quem procuram
separar a cidade, o edifìcio e o seu processo de construção do seu “logos”,
através da hermenêutica. De acordo com Alexander, o uso dessa linguagem
depende muito de sua escala.

Nos capìtulos sobre “o modo intemporal de construir” são descritos [...] os


procedimentos de cada uma dessas três escalas. [...] para a cidade; [...] para o
edifício individual e [...] para o processo de construção que descreve como um
edifício é realmente construído (ALEXANDER, 1977, p.26).

Segundo Choay (1985), nos textos que discutem o urbanismo existem


apenas duas categorias com duas funções implícitas: os textos que buscam
objetividade (categoria objetivante) e os que procuram julgar o mundo
167

edificado (categoria valorizante). Ambas as categorias são concebidas por


autores ocidentais ou escolhidas por eles como válidas, segundo a
racionalidade ocidental e eurocêntrica.

Esta autoridade em urbanismo aponta, também, que os urbanistas,


do engenheiro e urbanista Ildefonso Cerdá Suñer (Centellas, 1815 – Las
Caldas, 1876) ao arquiteto e urbanista Le Corbusier (Charles-Eduard-
Jeanneret, La Chaux-de-Fonds, 1887 – Provence, 1967), quase todos,
exceção feita ao arquiteto Camilo Sitte (Viena, 1843 – 1903), desviam suas
análises para determinados fins éticos e políticos, cujos resultados pouco
acrescentam ao conhecimento científico, além de carecerem de autocrítica
e apresentarem fundamentos epistemológicos questionáveis.

Cerdá escreveu um verdadeiro estudo sociológico, publicado em


1867, intitulado “Monografia estatìstica da classe operária de Barcelona em
1856”, anexado à sua Teoria geral da urbanização, onde incluiu uma
avaliação das condições de vida das classes trabalhadoras cruzando-a com
as desigualdades sociais na saúde e comparando as diferenças de
esperança de vida segundo a classe social.

Se há “a arte de construir as cidades”, que tanto interessava a Sitte


(1889), também há a estética urbana e, evidentemente, o desenho urbano
como possibilidade de privilegiar o puramente formal ou estético sem se
deter na análise das circunstâncias históricas que o produziram, tomando o
partido da forma urbana em detrimento do pragmatismo funcionalista que foi
rejeitado, na época, pelo movimento moderno e retomado na
contemporaneidade.

Agora, com o intuito de esclarecer um pouco a noção de urbanismo,


distinguindo-a (apenas para fins analíticos) do que normalmente
conhecemos como planejamento urbano e mesmo desenho urbano, vamos
apresentar tal noção em diferentes enfoques multi-inter-transdisciplinares
168

até onde nos permite o pensamento racional ocidental, que, conforme já


mencionado, representa uma visão recortada e limitada da realidade.

O desenho urbano é um assunto de arquitetos que pretendem se


encarregar (somente eles) da cidade. Como é que uma única disciplina e
até uma única pessoa se acreditam capazes de semelhante tarefa? Bem,
dada a natureza multidisciplinar da arquitetura, frequentemente ela é
confundida com o urbanismo, como o fez Le Corbusier (1967), para quem o
urbanista não era mais que um arquiteto trabalhando em outra escala, como
se o desenho fosse um evento a modificar pelo tamanho do projetado.

Essa ideia se enraizou de tal forma nas escolas de arquitetura, que


ainda hoje é difícil estabelecer níveis de complexidade no estudo da
profissão diferentes da escala dos prédios a ser projetados.

Se o urbanismo é mais complexo do que a arquitetura é por sua


natureza interdisciplinar, aproximando-se mais da estrutura de uma ciência
do que de uma disciplina, no caso, as nomeadas, equivocadamente,
ciências “sociais” que às vezes também são chamadas de ciências
humanas. Ainda com relação a isto, é preferível pensar que não há
diferença entre “ciências”, que um conhecimento, simplesmente, é ou não
científico e que o urbanismo sempre foi classificado como uma ciência
moderna, tendo sido, inclusive, assim rotulado pelos planejadores urbanos.

Se todas as ciências são realmente ciências sociais – como afirma


Boaventura de Sousa (2001) – já que a transformação da natureza em um
artefato global-urbano decorre de uma epistemologia antropocêntrica,
etnocêntrica e androcêntrica, então, não há natureza humana nem ambiente
natural construído porque toda natureza é humana e todo ambiente natural
é socialmente construído.

Talvez se esqueça disto porque o urbanismo se constituiu como


disciplina paralelamente ao desenvolvimento do pensamento moderno e
169

graças a Descartes, quem conseguiu sistematizar em uma metáfora os


eixos de representação verticais e horizontais que artistas como León
Battista Alberti (Gênova, 1404 – Roma, 1472), Leonardo da Vinci (Vinci,
1472 – Clos Lucé, 1519) e muitos outros já tinham usado mesmo antes do
Renascimento.

Referimo-nos a essa grade tridimensional que permitiu o


desenvolvimento mesmo do desenho, separando o objeto como “coisa
extensa” do sujeito como “coisa pensante”, mediante o conhecimento único
de origem e “divino”, segundo Descartes (1637), quem levou os
renascentistas, a acreditar como Alberti (1452), que “o homem pode fazer
qualquer coisa se quiser”.

Ao longo das três últimas décadas, os arquitetos que estavam cientes


das limitações do objeto de estudo da profissão em relação às chamadas
ciências sociais e, também, devido ao fato de que o âmbito para o exercício
da profissão está cada vez mais reduzido em virtude da proliferação de
profissionais auxiliares e complementares, dado o mercantilismo do sistema
educacional latino-americano submetido a pressões externas, se atribuíram
a tarefa de construir o conceito de desenho urbano.

Foi o trabalho pioneiro de arquitetos como o já citado Lynch (1960),


sobre a imagem da cidade, e Amos Rapoport (n. Varsóvia, 1929) sobre a
forma urbana (Rapoport, 1969), traduzidos e conhecidos quase 20 anos
mais tarde na América Latina, que inspirou a primeira tese de desenho de
uma borda da cidade em uma faculdade de arquitetura colombiana (Sierra-
Morales, 1989).

Os trabalhos anteriores, ao nível de teses de graduação, não chegam


a ser urbanismo, ainda que recebam e forneçam elementos à geografia
social, à antropologia urbana e à sociologia em geral, nem tampouco se
colocam ao nível do planejamento urbano.
170

A tese mencionada, desenvolvida na cidade de Manizales –


Colômbia, sustenta a hipótese de que é possível desenhar a borda entre a
cidade e a zona rural como uma área de transição, uma interfaz que
funciona como uma triagem visual entre cheios e vazios através de uma
gradação espacial, fazendo uma interligação entre usos dos solos urbano e
rural, no sentido vertical e, por sua vez, definindo a borda entre a cidade e o
campo com uma apropriação horizontalizada de usos institucionais do solo,
que se estendem ao longo da microbacia do riacho Olivares.

Manizales foi fundada em 1849 por colonos vindos da Antioquia é


considerada uma cidade média, com uma população aproximada de
388.525 habitantes, segundo os dados demográficos oficiais de 2010. Como
a maioria das cidades colombianas do interior, reproduz o propósito
originalmente colonizador e racionalizante da malha regular do Pireu de
Hipódamo (500 a.C), com a diferença que o objetivo é regular todos os
processos de intercâmbio e domínio de um território de colonização tardia
da “cultura paisa”, numa região em disputa entre culturas em conflito (além
das guerras internas dos estados federais, entre 1863 e 1886, nas áreas de
divisão administrativa e territorial dos Estados Unidos da Colômbia), entre
os estados soberanos de Tolima grande (criado em 1861) e do grande
Cauca (fundado em 1857), levando ao extermínio da base indígena de
origem Embera, e desenvolvendo a cidade de Manizales, que encontrou os
seus limites naturais em bordas naturais que foram alteradas artificialmente,
com o intuito de estender sua hegemonia ao longo do tempo, trazendo
graves consequências e alterações da paisagem.

Quinze séculos depois dos gregos, os planejadores urbanos oriundos


das ciências sociais, que não desenvolveram sua sensibilidade estética e
inteligência espacial, ainda consideram urbanismo e arquitetura a mesma
coisa e inclusive que são subsistemas dentro do planejamento urbano.
171

Em torno dessa discussão, vêm se configurando, na


contemporaneidade, três caminhos possíveis. Fazendo um exercício
reducionista extremamente simplificado, apenas para facilitar a
compreensão, mostramos nesta tese que estes caminhos podem ser
identificados em três debates do urbanismo contemporâneo que, juntos e
em perspectiva, poderiam ser vistos como fases ou etapas de um mesmo
processo: o debate multidisciplinar, em torno do objeto de estudo; o debate
interdisciplinar, em torno do método de estudo; e o debate transdisciplinar,
em torno das questões que vinculam objeto e método de estudo a pessoas
reais de nossas cidades latino-americanas.

A primeira fase corresponde ao debate circunscrito ao objeto, a


primeira forma que os seres humanos temos de objetivar nossas relações
transformando-nos em sujeitos. Este modo de objetivação, a pesquisa que
trata de dar a si mesma um estatuto reconhecido de ciência, nos leva a
entender o sujeito como objeto, com um nome que depende da suposta
ciência que o identifica: sujeito estruturado verbalmente na gramática, na
filologia e na linguística; sujeito produtivo da econômica clássica e mesmo
sujeito biológico, assim considerado pelo simples fato de estar vivo.

A segunda etapa, o debate do método, é uma discussão de natureza


dialética, onde o modo de objetivação gera “práticas divisórias”, por-quanto
o sujeito se encontra dividido, tanto internamente quanto com relação aos
“outros”. Este processo, realmente, constitui a base do pensamento que
segrega e fragmenta a sociedade e a cidade.

A terceira fase do debate envolve os modos pelos quais os seres


humanos transformam a eles mesmos em temas urbanos a título de
exemplo e com respeito ao domínio da cidade, tendo como premissa a
geração de práticas integradoras de caráter holístico. Seja isto através de
arquétipos que se manifestam em nível pessoal – para superar complexos
de inferioridade – seja em nível coletivo – como características inerentes a
172

todas as culturas. Mas, em qualquer dos casos, trata-se de se atrever a


tomar a cidade pelas bordas.

Arriscar-se “a mexer com a cidade” é um evento a ser modificado


intra (multi)-inter-transdisciplinarmente, cujo enfoque não deve se limitar a
qualquer destas fases, uma vez que nenhuma contém totalmente as outras:
nem as múltiplas disciplinas que formam a arquitetura, nem as
interdisciplinas que constituem o urbanismo, nem as transdisciplinas que
tornam possível o planejamento e a gestão urbana.

Estudando planejamento e gestão (não urbana, mas regional),


finalmente encontrei o significado da borda no âmbito da
transdisciplinaridade, graças a uma combinação adequada de estudos
interdisciplinares sobre o desenvolvimento regional - no CIDER da
Universidade de Los Andes - e alternando a formação erudita com
experiências de trabalho solidário em comunidades indígenas no
departamento de Cauca, na Colômbia.

Não foi fácil, porque as “ciências sociais” na época, (anos 90),


estavam apenas começando a pensar o enfoque participativo da gestão das
cidades, quase 20 anos depois que o professor do IAP, Orlando Fals-Borda
(Barranquilla, 1925 – Bogotá, 2008), juntamente com outros sociólogos e
alguns arquitetos, fundou a CLACSO (Conselho latino-americano de
Ciências Sociais) e tivesse desenvolvido inúmeras reflexões sobre sua
aplicação, nos seus estudos sobre o método de “estudo-ação” na Colômbia
(1973).

Não basta dizer que os objetivos da planificação e da gestão


dependem do paradigma dominante no exercício do poder sobre o território
e que melhorar a qualidade de vida e aumentar a justiça social (ou seja,
diminuir as desigualdades) é simplesmente questão de alteração de escala
e de olhar disciplinar entre arquitetos, urbanistas e planejadores.
173

Em qualquer caso, como disciplina é melhor uma boa técnica artística


para uma aproximação da problemática das bordas e da consequente
proposta de reconfiguração urbana, do que uma falsa teoria que vise (sem
realmente querer fazê-lo) controlar a expansão de pessoas “de baixa renda”
nos padrões da forma urbana e suas consequências globais sobre o meio
ambiente como o principal evento a modificar.

A borda/ à borda tem que ser experimentada para ser compreendida.


Esta tese é apenas um convite à participação das pessoas, que nós
também nos reconheçamos como parte vital dessa rede-ação.

2.4._Abordagem Multidisciplinar e Borda.

Segundo Choay (1965), depois do século XVIII “A cidade” [ou “A City”],


como objeto específico de comentários escritos ou icônicos, começa a ser
tratada como um corpo quando pode ser vista em um plano geométrico
(sem perspectiva) e apreciada em sua totalidade. Desta maneira, o
urbanista mantém com “ela” uma relação afetiva em termos mais simbólicos
do que reais.

Para romper com essa relação emocional com a cidade que estuda,
o urbanista supõe que, ao ignorar deliberadamente a familiaridade dos
lugares, o seu etnocentrismo correspondente desaparece. Nada mais longe
da realidade, infelizmente. O simbolismo multiculturalista se traduz em uma
busca da representação do objeto de estudo e seu consequente
“espetáculo” sacrifica a possibilidade de recriar (sob certas condições) as
situações que dão sentido a sua existência.
174

49
É por isto que urbanistas e “situacionistas” nunca olham a cidade
da mesma margem. Por que se envolver afetivamente com o objeto de
estudo, se podemos apreciar melhor a cidade desde as suas bordas?

Porém, quando descobrimos que “suas bordas” não estão apenas na


periferia, mas também dentro da cidade, o evento a modificar se complica.
Pior ainda, quando descobrimos que a borda somos nós, como parte de
nossa própria definição de totalidade e de cidade como realidade.

A ideia de uma cidade periférica corresponde a um equívoco que


consiste em confundir o caráter marginal ou periférico de um país quanto à
hegemonia de outro, dominante em uma região, determinada pelo sistema
de dominação planetária, com a condição marginal ou periférica de uma
cidade, num esquema de interdependência com outras, a partir de uma
série de indicadores de desenvolvimento (entendido também sob uma
lógica de dominação e dependência do sistema capitalista). O mesmo
critério se aplica aos assentamentos humanos marginais ou periféricos
quanto a um poder centralizado urbano, que convencionalmente foram
entendidos como bordas da cidade.

A noção de interdependência funcional tem sido facilmente


reconhecida, segundo a perspectiva ecológica de que, em aparência, tudo
se relaciona com tudo. O que não se diz é que nem sempre a relação é de
causa-efeito, no sentido de que na maioria das vezes as relações são de
dupla e até múltiplas vias. Portanto, não se pode estabelecer, tratando-se
do fenômeno urbano, um único centro para tantas bordas.

As formas de representação se ajustam convenientemente ao olhar


científico procurando a objetivação do espaço urbano. Mas a cultura
ocidental dominante aprofunda a sua consciência de si através de uma

49
Situacionismo: doutrina inexistente (MIBI) de interpretação dos fatos existentes criados a
partir de situações. Um situacionista jamais aceitaria a existência do situacionismo, nem
que o chamassem “situacionista”.
175

reflexão externa do mundo e da natureza, de suas próprias realizações –


edificações – enfatizando o seu processo construtivo, depois o entorno
imediato até conseguir simbolizar a cidade inteira, mantendo sempre a ideia
de totalidade.

No caso do nosso pensamento racional, ainda dominante, não


existem formas “lógicas” de representação fora dessa ideia de totalidade
enquanto soma das partes. Vamos ter que construí-las com imaginação e
intuição, recursos pouco valorizados pelas “ciências”.

Mas também pela prática consciente, procurando “desenhar para ver


e não o inverso”. Para isto, vamos ter que modificar essa maneira de
sempre considerar os fenômenos irreversíveis, como se eles estivessem
submetidos a leis fundamentais invariáveis e destinados a ser estudados e
reduzidos ao menor número de variáveis possível; pois não basta tratar os
conceitos de uma problemática disciplinar dada, há que assumir também a
multidisciplinaridade dos conceitos.

Assim, revisarìamos “as necessidades conceituais” para entender


realmente a conceptualização baseada numa determinada teoria do objeto.
Por exemplo, como apregoava Augusto Comte (Montpellier, 1798 – Paris,
1857) na sua Lei dos Três Estados, e a ideia geral vigente na época sobre o
“progresso”, que se reflete no seu Discurso sobre o espírito positivo, de
1844.

Da mesma forma como, no exemplo anterior, temos que considerar


as condições históricas que levaram às conceituações daquele momento,
nós temos que ter uma consciência história das condições atuais que
determinam, em grande parte, nosso arcabouço conceitual, neste caso
sobre a desigualdade quanto ao poder, à cidade e às bordas.

Problematizando assim os conceitos, imediatamente surge a


pergunta: de que realidade se trata; que vai depender de como inquirimos
176

esta realidade que acreditamos ser a que vivemos em cada período


histórico. Daí então que a pergunta, para além do objeto, deve se voltar
para o método que, nesse caso, e devido exatamente à natureza ambígua e
difusa das bordas é interdisciplinar.

2.5._Abordagem Interdisciplinar e Borda.

A consciência tem também uma dimensão axiológica, representada por um


compromisso com um sistema de valores, que se traduz numa postura ética
que envolve atitudes negativas e positivas relativamente ao urbano.

Através de um processo “valorizador”, que estabelece os aspectos


problemáticos da cidade como temporais (portanto, superáveis), o
urbanismo como método é um meio, um caminho para consignar termos
positivos, “a favor” da cidade.

Embora seja um caminho que veio se afirmando ao longo dos anos,


também há no urbanismo um processo de objetivação que estabelece um
padrão “novo” de cidade que nega a existente; visto que os eventos a
modificar – diferença, desigualdade e desconexão são também suas
propriedades inerentes, um “outro caminho” se configura como superação
desses aspectos negativos.

Entretanto, quando o processo de tomada de consciência se torna


coletivo, são necessárias formas de representação da realidade que deem
conta da sua complexidade e conflituosidade, uma vez que a determinação
do que é “bom” ou “ruim” em uma cidade depende de um processo
“negociado”, uma ação recìproca, o chamado “consenso”.

A ação recíproca é a interdependência intercultural baseada no


princìpio da “causalidade eficiente” entre atores sociais. Esta ideia se
sustenta no princípio mecânico da igualdade entre ação e reação e no
177

princípio metafísico da correspondência entre causas heterogêneas (por


exemplo: a relação entre poder e espaço).

O consenso faz parte do senso comum que realmente é a dimensão


axiológica da consciência. Mas existem outras operações da consciência,
juntamente com o pensamento e a intuição, que levam o urbanismo ao nível
sistêmico e mais além da causalidade. Todas elas para além da busca
multidisciplinar do objeto de estudo e da busca interdisciplinar do método de
estudo do urbanismo.

A primeira etapa do processo de constituição do urbanismo, no final


do século XVIII, como vimos, corresponde a um processo cultural mais
amplo de objetivação e estranhamento da forma urbana, que se manifestou
em inúmeros e variados meios e dispositivos ao alcance do cidadão
comum, permitindo a sociedade burguesa da época olhar com certa
distância e assombro para “a cidade”, até então só habitada, mas não
admirada em sua multiplicidade e diferença, em sua familiaridade e
enigmatismo, em seus grandes desafios, a partir daí entendidos como
urbanos.

Um segundo momento, em finais do século XIX e início do século XX,


se caracteriza pelo fato de que a formação dessa nova sensibilidade para o
urbano ocorre simultaneamente, embora com intensidades distintas e
especificidades próprias, de uma cidade a outra, de um país a outro,
desencadeando a crise dos laços sociais que sustentam as práticas
urbanas, como agora são entendidas, que acelera a introdução de uma
série de câmbios que estavam prestes a acontecer, desta vez em escala
mundial ou ao menos internacional. Entenda-se aqui o mundo civilizado
ocidental e industrializado.

Uma terceira etapa se delineia na passagem dos discursos críticos e


das diferentes modalidades de observação do fenômeno urbano às grandes
intervenções urbanas e reformas sociais, que não se deram
178

concomitantemente, mas de forma gradual e às vezes violenta dependendo


de cada contexto e do processo histórico em cada região do planeta. Mas o
que se sabe é que foram impulsionadas pelas guerras do século XX, a favor
ou contra precisamente essas mudanças que já vinham se configurando no
imaginário coletivo na direção de um poder descentralizado.

2.6._Abordagem Transdisciplinar e Borda.

O enfoque transdisciplinar nos conduz a um para além do objeto e do


método, ultrapassando a preocupação com a problemática da borda (sobre
a qual falaremos mais detalhadamente no capítulo III) na direção da
ocupação vista como ação. Trataremos agora de ver como a ação do
urbanismo contemporâneo se converte em uma ação bem sucedida, na
medida em que alcança a transformação da realidade tendo como
motivação o desejo e a necessidade do cidadão contemporâneo cujo
conflito é multicausal.

Compreendidas as bordas, as ações de satisfação individual e


coletiva podem ser percebidas, no cidadão e na cidade, como um projeto
entre o possível e o real (ver no capítulo IV Projeto de Borda), como uma
transação de interesses entre sujeitos da borda/ à borda; observando a
primeira vista tal processo como algo “produzido” que se manifesta em dois
tipos de ação.

Uma ação transeunte (que passa para o outro lado), como a ação
externa (lat.: actio) por meio da qual o indivíduo age sobre os demais seres
(humanos ou não) procurando a satisfação de seus desejos e
necessidades.

Outra ação imanente (que está dentro); a ação interior (lat.: operatio)
através da qual o indivíduo se autodetermina e autorreferencia desdobrando
179

o poder em “si mesmo” no “mim mesmo”. Isto corresponde à definição


emancipatória do poder da vida.

Para além do processo de individuação consciente, em um processo


intercultural social, conseguimos reconfigurar um tecido de borda
misturando os dados dos sentidos com os da consciência. Assim, podemos
fazer um “giro” da lógica ao método.

Mas ir mais além, até um metamétodo, realmente exige um insight no


interior de nós mesmos, que raramente conseguimos traduzir em uma
linguagem coerente do senso comum, como Jung falara em 1928, que nós
não distinguimos suficientemente individualismo de individuação 50.

[...] a repressão da psique coletiva foi absolutamente necessária para o


desenvolvimento da personalidade [...] Para o desenvolvimento da personalidade,
então, a diferenciação rigorosa com relação à psique coletiva é absolutamente
necessária, posto que uma diferenciação parcial ou pouco clara leva imediatamente
a uma fusão do indivíduo no coletivo (JUNG, 1928b, pp. 159, 161).

Em outras palavras, o processo através do qual um ser humano torna-se


único no mundo – não “egoìsta”, no sentido ordinário da palavra, mas
realiza a particularidade de sua natureza, que é radicalmente distinto de
egoísmo ou individualismo.

Da mesma forma, tampouco distinguimos claramente “sincronismo”


de “sincronicidade” na borda, porque a maneira lógica de pensar nos
impede de compreender a unicidade dos fenômenos espaciais que originam
as interfaces (com “c”), os fenômenos temporais que originam as interfases
(com “s”) e, por último, a simultaneidade do binômio “a/ à borda.

As bordas, mais que ser “da” cidade são na realidade a “meta”


cidade, do grego antigo que atribui ao termo um significado não físico como

50
O individualismo significa enfatizar e conferir importância, deliberadamente, a uma
suposta singularidade mais que a considerações e obrigações coletivas. A individuação se
refere a um processo de desenvolvimento psicológico que realiza as qualidades individuais
dadas e desenvolve a capacidade de escolha entre os seres humanos.
180

“no meio”, “entre”, “depois”. No sentido não fìsico, as bordas são o


transcendental, o que ultrapassa uma realidade urbana conhecida.

Além dos termos metodológicos, falaríamos de metalinguagem para


nos referir ao fenômeno da borda e também de metamétodo, no sentido de
ir além do fenômeno urbano como tal.

Os processos de reconfiguração dos espaços de poder distribuído


(desde e nas bordas), através de um processo metametódico que geraria
um conjunto de circunstâncias transculturais operariam do seguinte modo:
inicialmente, os fragmentos da cidade estão supostamente separados e não
se reconhecem como fenômeno urbano antes da transconsciência; depois
as bordas se tornam ativas, quando a consciência opera sobre elas, dando
ao conflito uma posição que realmente nos interessa, assim como uma
especificidade e consistência ao fenômeno estudado e uma direção e um
sentido à investigação.

Além disso, as bordas, tanto nas interfaces como nos interstícios


arquitetônicos (que são manifestações de um fenômeno metaurbano e
resultado de um metamétodo), representam processos complexos e
conflituosos nas duas direções que operam na dimensão axiológica da
consciência. Processos valorizadores e objetivizadores que atuam de
maneira simultânea e acelerada, mas que, por sua natureza efêmera
dependem de uma permanente reconfiguração e redefinição para existir.

Na verdade, o percurso metametódico que já foi traçado pelos


filósofos contemporâneos como Sierra, envolve também um processo de
caráter subjetivizante, que cria a interioridade metódica indispensável ao
“insight” transdisciplinar.

Até aqui está tudo certo, para aqueles que supostamente o


alcançaram, mas, como torná-lo um processo coletivo? E, a partir daí, como
intensificá-lo mediante um exercício transconsciente que sirva para a
181

reconfiguração de espaços de poder? E, o mais importante para os nossos


propósitos: como fazê-lo desde e nas bordas?

Relacionar o autor (urbanista) com o seu objeto de estudo por um


terceiro processo subjetivizante sugere uma suposta objetividade, mas
envolvendo uma postura de transição paradigmática realmente alternativa.
Isto requer um terceiro ponto de partida, um giro metametódico que nos
permita entender que a relação sujeito-objeto não é somente um desafio ao
conhecimento, senão que esta epistemologia, como um dos três ramos do
conhecimento, juntamente com a metodologia e a lógica, está realmente
“dentro” da sabedoria. Um nìvel transconsciente reservado historicamente,
supostamente, aos “sábios”.

Voltemos a Choay (1985), quem distingue dois tipos de textos do


urbanismo em A Regra e o Modelo, quando se refere aos comentários pró e
contra a cidade, os quais correspondem a visões negativas e positivas de
habitar as cidades. Daí derivando dois tipos de processos: um objetivizador
que busca objetividade e outro valorizador, que tenta julgar. Ambos
emergem com respeito à cidade, ao edifício e ao processo de sua
construção e geram tanto modelos (utopias) como regras (tratados), em
momentos históricos que vão se alternando e que, em geral, coincidem com
as “crises do urbanismo”. São perìodos de tempo relativamente curtos,
durante os quais as mudanças ocorrem simultânea e rapidamente,
causando uma sensação coletiva de “época”.

Um processo objetivizante necessariamente não gera comentários


“negativos” da cidade (na medida em que nega a possibilidade de melhorar
e apresenta um “novo” modelo), nem um processo valorizador gera
comentários “positivos” (que veem os falsos problemas da cidade como
eventos a modificar). Isto porque diferenças no campo da lógica não
implicam sempre diferenças no âmbito axiológico da consciência.
182

Dois exemplos dão conta dessa espécie de “coincidência” entre


epistemologia, metodologia e lógica, correspondendo também à distinção
entre textos que se referem a tratados ou utopias. No primeiro, Pesci, autor
de um texto que poderíamos classificar como valorizador (porque propõe
promover a sustentabilidade ambiental na cidade a partir da sustentação do
modelo econômico existente), descreve seu tratado de Ambitetura (2009),
(termo que ele mesmo prefere matizar um pouco), sob o domínio de um
paradigma crítico cujo método transacional/subjetivista, para chegar ao
conhecimento, é mediado por valores.

No segundo, Santos Boaventura de Sousa, autor de um texto que


classificamos como objetivizador (em parte, porque estabelece que não se
muda a realidade sem antes mudar o modelo de pensamento ocidental
dominante), escreve uma utopia (embora ele curiosamente chame de
heterotopia) sob o domínio de um realismo crítico, em sua ideia fundamental
de realidade, através da qual expressa que “a transição paradigmática na
emancipação social é uma aspiração óbvia e inverossìmil”, e atualmente
lidera um projeto internacional (desenvolvido fora dos centros hegemônicos,
mas com dinheiro de uma fundação hegemônica), cuja pretensão é analisar
experiências que reivindiquem a necessidade de reinvenção da
emancipação social e, portanto, das forças que a regulam.

O duplo significado dos espaços alternativos projetados por


Boaventura de Sousa consiste em, simultaneamente, assumir a
emancipação e a regulação das forças constitutivas do processo histórico
da humanidade em “mapas” desenhados para a transição paradigmática.

Distingo seis formas particularmente importantes [comunidades domésticas


cooperativas, produção ecossocialista, necessidades humanas de consumo
solidário, comunidades “ameba”, socialismo como democracia sem fim e
sustentabilidade democrática em soberanias dispersas] que correspondem às seis
formas de regulação social [espaço doméstico, espaço de produção, espaço de
mercado, espaço da comunidade, espaço da cidadania e espaço global]. Em cada
um [destes] espaços estruturados, o paradigma emergente se constrói a si mesmo
através de uma tripla transformação: a transformação do poder em autoridade
partilhada; a transformação do direito despótico em direito democrático; e a
183

transformação do conhecimento-regulação em conhecimento-emancipação


(BOAVENTURA de Sousa, 2001, p. 380).

Em ambos os casos, a categoria do texto escrito e o paradigma dominante


na lógica do autor coincidem com a epistemologia e a metodologia utilizada
para analisar a cidade.

51
Tanto a objetividade alienante do sujeito absoluto , representada,
neste caso, no realismo crítico de Boaventura de Sousa, quanto no
52 53
exercício de valoração antropocêntrica dos sujeitos relativo e reflexivo ,
presentes no estruturalismo crítico de Pesci, exigem então um terceiro
processo subjetivizante para poder configurar os mapas da transição
paradigmática.

Esta transição, além de uma tomada de consciência, ao mesmo


tempo, individual e coletiva em distintos níveis existenciais, cósmica e
quântica e de se basear em uma dupla transição paradigmática (do poder à
borda e vice-versa), poderia constituir-se em um metamétodo do urbanismo
contemporâneo a partir das múltiplas categorias projetuais de borda que
coexistem conflituosamente e de maneira complexa em uma cidade
aparentemente fragmentada e uma sociedade verdadeiramente segregada,
onde se expressa, intensa e dramaticamente, a degradação ambiental e
social.

Falamos de uma degradação não apenas em função da evidência


física da desordem aparente nas bordas, senão também pelas atividades
econômicas e as formas de controle político necessárias para manter um
modelo de desenvolvimento dominante, claramente insustentável. Em um
cenário semelhante, se trata então de uma verdadeira antiutopia, cacotopia

51
O sujeito absoluto se considera a si mesmo como arquétipo independente de sua relação
com o objeto.
52
O sujeito relativo se vê afetado pelo objeto, na sua relação com este.
53
O sujeito reflexivo afeta ao objeto através de seu conhecimento e organização da
realidade.
184

ou distopia; o ideal de uma sociedade em estado de repressão e controle,


muitas vezes sob a aparência de uma utopia, tal como apresentado em
livros como “O admirável mundo novo” de Aldous Huxley (Godalming, 1894-
Los Angeles [Ca], 1963), e em filmes como “Blade Runner”.

No início do século XXI, a Tyrell Corporação conseguiu avançar a evolução dos


robôs à fase Nexus, um ser virtualmente idêntico ao homem conhecido como
“replicante”. Os replicantes Nexus 6 eram superiores em força e agilidade e ao
menos iguais em inteligência aos engenheiros genéticos que os criaram. Os
replicantes foram usados como trabalhadores escravos na arriscada exploração e
colonização de outros planetas. Após uma sangrenta rebelião de uma equipe de
combate de Nexus 6, em uma colônia espacial, os replicantes foram declarados
ilegais na Terra, condenados à pena de morte. Esquadrões da polícia especial
(Unidades de Blade Runners) tinham ordens de atirar para matar qualquer
replicante invasor. Isto não era considerado execução. Chamou-se “aposentadoria”
(DICK, 1968 em: Blade Runner, 1982).

O oposto disto seria a heterotopia, onde os três processos: objetivizante,


valorizante e subjetivizante operam no interior de um campo relacional
omnijetivizante, que é ativado mediante um exercício transconsciente
(simultaneamente individual, coletivo, cósmico e quântico) do metamétodo.
O omnijeto é a borda/ à borda que, enquanto campo relacional, inclui o
sujeito-objeto, seja este absoluto, relativo ou reflexivo.

Partindo do pressuposto que uma leitura contemporânea da filosofia


das ciências poderia ser aplicada ao urbanismo como metamétodo e
segundo a leitura que Sierra faz dos sacerdotes jesuítas Karl Rahner
(Freiburg, 1904 – Innsbruck, Áustria, 1984) e Lonergan, pode-se dizer que
existem ao menos três níveis conhecidos de consciência, dos quatro que
54 55
Lonergan conseguiu experimentar na vida: empírico , intelectual ,

54
Este primeiro grau da ação de conhecimento se limita à descrição fragmentária do
percebido na realidade socialmente construída. Estes fragmentos são chamados dados
porque são obtidos pelos sujeitos que conhecem. São dados no sentido de que esta
obtenção tem certo caráter de recepção, de se deixar impressionar pela experiência, não
no sentido de algo dado, fixo, disponível, neutro que qualquer observador poderá obter de
um modo invariável. Socialmente construída, a realidade é percebida a partir das
representações sociais que nos habitam diferentemente, conforme a maior ou menor
distância crítica entre as representações sociais e nosso modo de pensar.
185

56 57
racional e responsável , que operam numa sequência (mas não numa
ordem cronologicamente estabelecida tipo antes, agora, depois) já que,
ontem como hoje, grande parte da humanidade manifesta uma forma de
consciência não diferenciada que permite a coexistência entre camadas da
população, evitando assim a proliferação do racismo.

O primeiro nível (oral) é determinado pelo senso comum. Neste


cenário o dinamismo da consciência é apenas operacional. Ideal para a
investigação multidisciplinar a partir das bordas, no sentido de operar
somente com o objeto de estudo através de múltiplos enfoques disciplinares
que apenas pretendem explicar o fenômeno.

O segundo nível (escrito) orienta-se pela teoria que, apesar de


submetida à lógica racional do pensamento ocidental dominante,
“metonìmica”, “proléptica” e “indolente”, segundo Boaventura de Sousa
(2001), consegue diferenciar as operações da consciência. Favorece a
pesquisa interdisciplinar nas bordas, transferindo métodos de outras
disciplinas para o entendimento do urbanismo.

O terceiro (lógico) é um cenário em construção, apoiado no método,


para além do senso comum e da teoria das ciências. Âmbito propício à

55
O sujeito constrói conceitos novos sobre o que experimentou, a partir dos conhecimentos
disponíveis no seu entorno. Estes lhe permitem uma primeira organização compreensível
dos elementos percebidos no primeiro nível de consciência.
56
O sujeito que entendeu, agora formula juízos sobre a verdade ou falsidade, certeza ou
incerteza, bondade ou maldade, conveniência ou inconveniência da realidade
compreendida através dos conceitos formulados. Esta atividade valorativa se refere a
marcos de avaliação que também são anteriores e que fazem parte do repertório social
disponível.

57
Este é o grau de maior implicação que o sujeito pode alcançar com a realidade. Ele se
posiciona ante o que experimentou, entendeu e avaliou e revê a sua maneira de ajuizar e
atuar.
186

investigação transdisciplinar desde/na borda/ à borda, no sentido que


extrapola toda disciplina, entendendo-a como eventos modificáveis.

Em um quarto e último nível (metódico), o ponto de apoio


metametódico já não é - em si mesmo – uma finalidade, transformando-se
em uma “interioridade integral da consciência humana: [primeiro] em sua
forma dinâmica não intencional consciente; [segundo] em sua forma
dinâmica intencional cognitiva e [terceiro] em sua forma dinâmica
integradora superior da paixão” (SIERRA, 2004, pp. 150,151).

O metamétodo, no caso do urbanismo como transdisciplina, requer


uma visão do limen (limite aparente no umbral espaço-temporal), para uma
transformação da realidade desde/nas bordas. Segundo o antropólogo
Victor Turner (Glasgow, 1920 – Charlottesville, 1983), uma liminaridade é
simultaneamente uma condição (temporal) e uma situação (espacial) pela
qual a subjetividade individual e a transconsciência se unem através de uma
iniciação que acontece em um umbral e, nesse sentido, para Heidegger
(1927), não é uma sucessão de instantes “do passado ao futuro”, senão um
“avançar para o futuro” (finitude) que vai adquirindo consciência de seu
movimento: o ser (Sein) aí (Da) em movimento. A vida imanente como uma
via para a transcendência, o poder da vida que envolve a vontade de viver.

O tempo (portanto, o espaço) e a consciência que o experimenta se


parecem, fenomenologicamente falando, a esse estado de liminaridade,
visto que alude ao estado de abertura e ambiguidade que caracteriza a
relação triádica do espaço-tempo (uma fase preliminar ou anterior, uma fase
intermediária ou liminar e outra pós-liminar ou posterior).

A liminaridade se relaciona diretamente com a noção de communitas,


pois se trata de uma manifestação não estruturada nem hierarquizada da
sociedade, própria de movimentos como a Internacional Situacionista 58. Por

58
Internacional Situacionista (1957-1972): movimento político e artístico cuja colocação
central é a criação de situações. No situacionismo convergiram proposições do marxismo e
187

sua parte, o situacionismo no limiar permite a transição paradigmática e, por


isto, esta transição emerge mais favoravelmente em uma condição/situação
de borda/ à borda onde é propício o surgimento da subjetividade emergente:
uma subjetividade que seja suficientemente “apta” para compreender e
desejar a transição paradigmática, para transformar a inquietude em “força
libertadora”.

A subjetividade emergente se compraz em viver na fronteira. Em um período de


transição e de concorrência paradigmáticas, a fronteira surge como uma forma
privilegiada de sociabilidade. [...] A cumplicidade simbólica entre a fronteira e a
transição paradigmática reside nesta escassez de centros e na abundância de
margens. Viver na fronteira é viver nas margens sem viver uma vida marginal
(BOAVENTURA de Sousa, 2001, pp. 396, 406).

Não se trata de escolher um nível de consciência a partir do qual situar-se,


que é igualmente impossível. Situar-se em/desde a borda/à borda é decidir-
se por iniciar um processo que – por cobrir os quatro níveis – advém
simultaneamente na transformação-conversão do sujeito-objeto e na
transformação-emergência da realidade.

Esta espécie de “vontade emancipadora”, a qual certamente se refere


Santos, para não sucumbir à obsessão pelo poder (ou melhor, para dar ao
poder um significado funcional à vida) precisa dessa outra “interioridade
metametódica” que, segundo Sierra (2004), em Lonergan somente pode se
alcançar através de um sentimento consciente mais parecido com a paixão,
mas coletiva, dirìamos “psicogeográfica” (para falar em termos
situacionistas); que, em última análise seria cocriar a condição “topofìlica”
de um habitante da borda, situado à borda dos acontecimentos e
politicamente desconectado.

No caso desta tese, o que Lonergan sugere, o seu ponto de vista


universal-potencial poderia ser demasiado geral no caso específico do
urbanismo. Agrada-me mais (como suporte ao metamétodo) a interação

da vanguarda, como a Internacional Letrista e o Movimento para uma Bauhaus Imaginista


(MIBI). Em maio de 1968 o movimento propôs o comunismo conselhista como ordem social
ideal.
188

entre a cidade e seus habitantes através de muitas e mútuas


automediações, conforme proposto por Sloterdijk em suas “normas para o
parque humano”.

2.7._O Urbanista Contemporâneo.

O urbanista, mais que quaisquer outros estudiosos e projetistas, para engendrar


uma concreta modificação da cidade e do território, deve obter o consenso de uma
multiplicidade de sujeitos individuais ou coletivos, situados em espaços sociais
diferentes entre si, sujeitos dotados de poderes e movidos por interesses,
aspirações, imaginários, estilos de pensamento e de comportamento bem diversos
e, na maioria das vezes, opostos; sujeitos que em relação à construção,
modificação e transformação da cidade têm responsabilidades morais, culturais e
jurídicas muito diferentes. […] Pressupor a «morte do autor».

Bernardo Secchi, “Primeira lição de urbanismo”, 2006, (p. 50).

A dicotomia combina a simetria com a hierarquia e oculta uma relação


vertical em uma relação horizontal. Mas as partes nunca somam o todo,
sempre sobra alguma coisa.

Toda dicotomia, favorecida pela razão metonímica, contém uma


hierarquia oculta, portanto, uma relação antecipatória entre dominação e
subordinação, o que implica um intercâmbio desigual entre as partes do
todo: conhecimento científico/conhecimento tradicional, civilizado/primitivo,
homem/mulher, branco/negro, Norte/Sul, Ocidente/Oriente, cidade/campo
(rural), cidadão/favelado, etc.

Um humano assim formatado ignora que a compreensão do mundo é


muito mais do que a ideia do todo e suas partes, as quais, nesta visão,
tampouco merecem ser pensadas fora da totalidade. A modernidade
ocidental dominada pela razão metonímica tem, ademais de uma
compreensão limitada do mundo, uma compreensão limitada de si mesma.

As críticas ao pensamento proléptico e metonímico levando à


modernidade ocidental, que se acredita a modernidade do mundo, são
muito frequentes, mas não explicam por que, depois de dois séculos de
189

dominação, este pensamento ainda persiste na mente dos estudiosos das


ciências.

Boaventura de Sousa, assim como alguns pensadores críticos


contemporâneos procuram explicar o que significa esta inércia do
59
“contrapensamento” , que se mantém como pensamento dominante . Por
que sofrer como críticos de um sistema-mundo que supostamente vai
terminar nos engolindo? Por que simplesmente não economizar o esforço
do pensamento? A inércia social não é uma característica intrínseca do
fenômeno urbano, senão uma medida de seu acoplamento com o resto da
realidade, tal como não existe espaço absoluto em termos newtonianos,
segundo o princípio de Mach em Einstein (OP: 1965).

Por um lado, a metonímia e a proléptica são as ferramentas mais


importantes da razão ocidental que sustentam as principais hipóteses que
fazem da produção capitalista o modo dominante. Por outro lado, embora
dominante, o pensamento ocidental não consegue sair da marginalidade
cultural e filosófica em relação ao Oriente, que sempre foi uma matriz de
pensamento verdadeiramente totalizante, já que integra em si mesmo a
diversidade de mundos, momentos, lugares.

É isso, essa combinação paradoxal entre a força material do mundo


capitalista e a impotência da condição marginal do pensamento ocidental
que não vai permitir jamais que se converta em alternativa real à
humanidade um sistema de dominação tão “perverso”, no qual prevalece a
ideia de progresso e a luta pela globalização hegemônica em mentes que
não são críticas, que não buscam modificar eventos, mas apenas seguir a
tendência dos falsos problemas para resolver.

59
Só há uma coisa pior para a humanidade do que um pensamento único que não
reconhece a diversidade do pensamento alternativo, é o contrapensamento único que se
esquece de que além dos modos de rebelião, (tantos quanto existem pessoas no planeta),
também não temos que desobedecer obrigatoriamente ou porque está na "moda".
190

Segundo Nietzsche (1901), os seres humanos têm vontade de poder


60
(OP: DWZM) porque, segundo Rousseau (1775), eles têm vontade de
impotência. E, assim como reduzimos nossos desejos de ser, estar e fazer
à necessidade de ter é preciso dominar tudo o que normalmente nunca
poderíamos ser estar, fazer e ter.

Sob esta “origem” se encontram os fundamentos da desigualdade


entre os seres humanos. Por isto (e não porque somos humanos), limitamos
as partes ao todo, recortamos nossas análises para que caibam em nossa
ideia de realidade reduzida e, finalmente, ignoramos o que não podemos
entender.

A realidade física e o tempo linear são o recorte ocidental do mundo,


fruto da lógica capitalista que não carece mais da argumentação nem da
retórica para se impor. Mas também são os fundamentos do urbanismo
moderno que ainda promulga sua eficácia através da produtividade e da
coerção das leis. A necessária transformação do mundo não precisa mais
vir acompanhada de sua compreensão; esta é substituída, na
contemporaneidade, por uma versão abreviada do mundo na ideia da
fugacidade do momento presente.

Essa ideia de viver o “eterno presente”, mesclado à lógica capitalista,


tem como consequência a falta de compromisso com os fenômenos
historicamente produzidos por esta, tais como a pobreza e a marginalidade,
especialmente entre os grupos humanos descendentes dos derrotados nas
guerras que colonizaram o mundo com o pensamento ocidental dominante.

O separatismo e o finalismo supostamente “cientìficos” que não


conseguiram dar conta dos ideais modernos se transformaram em cinismo.
A razão “indolente” de que fala Boaventura de Sousa não compreende a
responsabilidade histórica das classes superiores com os assentamentos
60 «
Der Wille Zur Macht». Nachlassbände der KSA: 7 (1869-1874), 8 (1875-1879), 9 (1880-
1882), 10 (1882-1884), 11 (1884-1885), 12 (1885-1887), 13 (1887-1889).
191

humanos mais vulneráveis de nossa América Latina. Apesar disso,


acreditamos que existe uma “cultura da pobreza” e que o Estado, como um
ente separado da população, tem exclusividade na resolução do falso
problema.

Embora o uso da razão não seja um privilégio exclusivo do Ocidente


e ainda que existam muitas racionalidades ocidentais, algumas emergentes,
o urbanismo contemporâneo enquanto produto de uma transformação
inadequada da cidade provém de uma compreensão inadequada da
realidade ocidental, de uma razão dominante que traduz em violência e
marginalidade a ideia de ordem e hierarquia ocidentais e que supõe a
cidade fragmentada e a sociedade segregada.

Neste frenesi contemporâneo da simultaneidade dos acontecimentos,


autores como Augé (1997) argumentam que essa espécie de
maismodernidade significa uma riqueza de acontecimentos. Entretanto,
vista no contexto latino-americano, essa aparente “outra maneira” da
globalização não se contrapõe realmente ao sistema de dominação. Pelo
contrário, ela se traduz em pobreza de nossa experiência da vida cotidiana
e na vertigem da aceleração dos fatos que, em última análise, são
percebidos como uma inércia coletiva que “para” o tempo.

Aqui mais uma vez deve-se entender: assim como a inteligência do tempo [...] se
complica mais pela superabundância de acontecimentos do presente [...] do
mesmo modo, a inteligência do espaço é subvertida menos pelos transtornos em
curso [...] do que a complica a superabundância espacial do presente. [...] Esta
concepção do espaço se expressa [...] nos câmbios de escala, na multiplicação das
referências imaginadas e imaginárias e na espetacular aceleração dos meios de
transporte [o qual] leva concretamente a modificações físicas consideráveis:
concentrações urbanas, movimentos de populações e multiplicação do que
chamarìamos os “não lugares”, por oposição ao conceito sociológico de lugar,
associado por Mauss [e por Durkheim, 1903], e toda uma tradição etnológica à
cultura localizada no tempo e no espaço (AUGÉ, 1997, pp. 40,41).

Embora seja verdade que o tempo não para, a cada dia sua manifestação é
mais débil por causa da contração que ocorre como resultado da
substituição do mundo considerado “razoável” em relação ao mundo real.
Isto cria a sensação de que o tempo se detém e o espaço se contrai,
192

quando o que acontece é que a ideia de progresso entra em crise e, com


ela, o advento da queda do capitalismo (ou ao menos da sua versão
monetarista, mais evidente na atualidade).

O mundo encolheu fisicamente, segundo os postulados da razão


ocidental dominante, graças à ideia do tempo linear que reduz o momento
presente ao instante fugaz entre o que “já não é” e o que “ainda não é”. Os
tempos dos dois “códigos barrocos” que Boaventura de Sousa define como
as raízes que já não são nossas e as opções de futuro que ainda não são.

[…] estes tempos são, eles, ambivalentes, irregulares, arrítmicos. [A Multiplicidade


de Tempos Sociais] ainda na esteira de Gurvitch (1969, pp. 341-43) [que identifica]
três temporalidades distintas. Antes de mais, existe o tempo trompe-l´oeil que,
embora à primeira vista pareça de longa duração, esconde uma capacidade
enorme de irrupção, de dar origem a novas emergências por vezes abruptas e
sempre inesperadas. Em segundo lugar, existe o tempo do compasso irregular
entre o emergir e o desaparecer de ritmos, um tempo de duração e de intervalos
enigmáticos entre séries de duração. Este é o tempo da incerteza, da contingência
e da descontinuidade. Por fim, existe o tempo que alterna entre o atraso e o
avanço, um tempo de descontinuidades entre anacronismos e antecipações, um
tempo de luta entre passado e futuro, pela conquista de espaço no presente. Nesta
temporalidade o tempo é, assim, evanescente (BOAVENTURA De Sousa, 2008, p.
81).

O urbanismo como sinônimo de momentos e lugares “atuais” é uma parte


extremamente pequena dos acontecimentos simultâneos da chamada
maismodernidade.

Será por isto que a cidade contemporânea é considerada


“fragmentada”? Permanecem “fora” do mundo razoável as formas não-
dominantes de produção da existência do mundo real, qualificadas de
ignorantes, atrasadas, inferiores, localistas e improdutivas. As bordas da
cidade que antes foram vistas como periferia de uma cidade “compacta”, na
contemporaneidade, devido à fragmentação, fazem parte da cidade e,
portanto, não são mais periferias.

Porém, ainda que desapareçam as evidências físicas das bordas


(que só se cumprem realmente quando é expulso, exterminado ou, no
melhor dos casos, “erradicado” o periférico e o marginal), isto não quer dizer
193

que desapareceu a hierarquia implícita no urbanismo e na mente do


urbanista, que multiplica a negação das diversas realidades e cujas
manifestações físicas, mesmo reduzidas e fugazes, continuam presentes
nas bordas como espaços-tempos intermediários, interfaces-interfases.

Como até esta parte da leitura, o leitor ainda não deve estar (para
dizê-lo de forma sutil) razoavelmente acostumado a estes enunciados,
prefiro continuar a reflexão sobre os resultados do pensamento global
dominante nas bordas, mais adiante, no capítulo sobre A problemática da
borda, que propõe uma reconfiguração dos espaços de poder desde/ e nas
bordas.

Por ora, basta registrar que se não há uma proposta baseada em


uma alternativa real à razão dominante capaz de ampliar as fronteiras de
nosso mundo cotidiano e expandir o espaço-tempo presente, é porque
ainda não existe uma transconsciência disto.

O entendimento do urbanismo contemporâneo emerge de uma


transconsciência que requer, primeiro, uma consciência individual do
espaço-tempo atual. Trata-se de um processo realmente emancipatório que
liberta as pessoas da ideologização midiática e resgata, antes de tudo, a
sua dignidade.

No outro extremo, temos a compreensão da contemporaneidade


como um campo de batalha da ideologia virtual, que é uma mistura de
futurismo tecnológico, evolucionismo social e neoliberalismo econômico que
vêm florescendo desde meados dos anos 90; introduzidos por uma nova
classe cosmopolita e libertária, otimista e excitada demais pela vertigem da
maismodernidade. Mas também, e aí reside o caso mais urgente a ser
modificado: narcodependente.

A cidade não é apenas uma extensão humana, um produto, um


artefato, meio e obra de humanos (como nos primórdios). Ela nos vai
194

fazendo, transformando desde nossos corpos até nossas identidades,


línguas, hábitos, economias, estéticas e possibilidades. Ela pode nos
prender ou libertar.

Estamos frente a uma situação dialógica que, esperamos, seja


também uma condição libertadora para todos: cidade e cidadãos, urbanismo
e urbanistas.

As cidades ajudam, mas também podem funcionar como armadilhas


para as pessoas. Além de extensões, são também próteses. Facilitam-nos
as coisas e às vezes nos mutilam. São totalidades cambiantes e exigentes,
em permanente risco, sempre demandando o nosso cuidado.

Precisamente porque a cidade (que sou eu) é uma probabilidade


emergente de um organismo vivo, ela se comporta como uma estrutura
dissipativa e é de sua natureza se aproximar da catástrofe, da borda, do
risco para daí criar nova vida. Por isto, nós somos uma preocupação mútua
e o urbanismo contemporâneo, mesmo que não chegue a ser considerado
ciência, já é em si uma preocupação científica em virtude de seu objeto de
estudo. Este não se constituiu fora da cidade, da associação criativa de
espaços-tempo, localidades sedentárias ou assentamentos provisórios.

Os campi universitários se chamaram cidades universitárias e as


cidades contemporâneas, altamente dependentes da ciência e da
tecnologia estão por sua vez engendrando cidades “novas” que pretendem
ser sustentáveis, mas, na melhor das hipóteses conseguem se sustentar.

O termo sustentabilidade funciona como um “meme” midiático, de


cunho desenvolvimentista, onde a preocupação, supostamente
ambientalista, se orienta a partir de uma base normativa cuja finalidade é
sustentar a ordem existente e submeter a um neocolonialismo
segregacionista os pobres que são vistos, agora, como uma ameaça ao
meio ambiente.
195

De acordo com o biólogo norte-americano Richard Dawkins (n. 1941),


um meme (termo popular na blogosfera) é uma “unidade teórica de
informação cultural transmissível de um indivíduo a outro, ou de uma mente
a outra, ou de uma geração à seguinte” (Dawkins, 1976).

A evolução dos memes está sujeita às mesmas condições que a dos


genes: fecundidade, longevidade e fidelidade na replicação. O mais
impressionante é descobrir que quando um meme contamina o campo
unificado da consciência o faz de maneira massiva e influenciando a
totalidade de uma geração humana e a totalidade de suas ações culturais.

Por outro lado, a palavra sustentabilidade, como a entende o


arquiteto colombiano Carlos Mario Yori García, vai além do significado da
palavra sustentar e da ideia de crescimento, no sentido de incentivar,
alimentar, cuidar, cultivar, incubar e desenvolver uma série de formas “não
predatórias”.

Mais adiante e para efeitos desta tese de borda, vamos nos referir
melhor à ideia de sustentabilidade já que sua natureza vem da relação
fundamental natureza/sociedade e contém ou subsume o termo
sustentação, cuja natureza provém da relação adicional capital/sociedade.

Enquanto urbanistas contemporâneos, nós somos apenas um ponto


de partida na discussão atual, na qual muitas outras visões e ações devem
participar. No entanto, sendo os que pensamos o urbanismo
contemporâneo nos tornamos filósofos urbanos e isto é mais do que
simplesmente fazer teoria, é o valor filosófico da política prática, o ponto de
partida de um processo revolucionário que transforma a sociedade ao
transformar o modo de pensar.

Somos os urbanistas contemporâneos, aqueles intelectuais


cosmopolitas que percorremos o mundo urbanizado com uma visão (de
quê)? De classe? Acaso somos os paladinos, os “prìncipes maquiavélicos
196

modernos” (em termos de Gramsci) do conjunto das classes inferiores


impulsionando nelas a negação de sua condição por uma espécie de nova
reforma moral e intelectual? Inclusive, indo mais longe, e com a associação
de vontades supostamente “rebeldes” se conseguiria transformar nossa
realidade latino-americana em uma nova sociedade civil (e em um novo
Estado), materializando uma nova hegemonia?

A evidência indica que estamos longe (para não dizer muito longe)
desta realidade, assim como a sociedade considerada hoje “subalterna” se
encontra muito longe de transformar o mundo sem tomar o poder.
Exatamente porque a natureza do poder subordinado já não funciona neste
mundo glocalizado, no qual as bordas são cada vez mais difusas e a
consciência de classe praticamente ficou sem base cultural.

Não acontece o mesmo com o orbanista contemporâneo, o


verdadeiro Ser da borda, cujo modo “constelado” de agir e ser entre o ser
para si e o ser em si permite hoje, como ocorreu outrora em meio às
rupturas da ordem estabelecida – as quais foram identificadas em conjunto
como épocas de crise – configurar e reconfigurar nebulosas de
cognitividade “glocal”, as quais não poderiam ser entendidas em termos do
paradigma moderno do pensamento ocidental dominante.

Segundo a professora brasileira Margareth da Silva Pereira, pode-se


dizer que a característica do processo de configuração do urbanismo que
melhor permite definir, não só a sua própria gênese, mas também os seus
avatares, corresponde à compreensão global, por parte da disciplina,
desses momentos históricos que vêm coincidindo nos últimos séculos com
crises na história das cidades, causadas mais que tudo, por vastos
movimentos de ajuste macroeconômico e pela rápida expansão de novas
tecnologias de circulação e comunicação.

Afirma da Silva (2003), em suas Notas sobre O Urbanismo no Brasil,


que estas rupturas ou crises foram vistas como momentos de
197

“universalismo” no século XIX, como tempos de “cosmopolitismo”, durante


as primeiras décadas do século XX, também como “Internacionalismo”, no
pós-guerra (Segunda), e hoje são chamadas “era de globalização”.

A metáfora das nebulosas (constelações glocais de direitos,


conhecimentos e poderes), que a Margareth retoma, vem de Christian
Topalov (n. Trojan, 1944), quem, através de sua análise da reforma social
na França permite entender a totalidade do processo de constituição do
urbanismo e pensar em uma nebulosa de cidades que interagem de
maneira mais fluida e dinâmica do que as redes (mais estáticas). Com áreas
mais densas conformadas pelas cidades capitais, são as grandes
metrópoles, cujas transformações definem e por sua vez são definidas pelo
movimento de outras cidades mais periféricas localizadas em zonas mais
etéreas (bordas).

Segundo Topalov (1999), essas nebulosas às vezes se densificam,


outras vezes se tornam mais fluidas, adquirem formas diferentes e, quando
ocorrem tormentas (crises), podem mudar profundamente.

Essa visão constelada da história do pensamento humano coincide


enormemente com a ideia de campo unificado em Chopra, com a
omnijetividade em Izquierdo e com a ideia da noosfera em Vernadsky, que,
contemporaneamente, Morin descreve em sua proposta de um novo
humanismo.

Toda sociedade humana engendra a sua noosfera, esfera das coisas da mente,
dos saberes, crenças, mitos, lendas, ideias, em que os seres nascidos da mente,
gênios, deuses, ideias-força, ganharam vida a partir da crença e da fé. [...], meio
condutor e mensageiro da mente humana, nos comunica com o mundo ao mesmo
tempo em que forma uma tela entre nós e o mundo. Abre a cultura ao mundo, ao
mesmo tempo em que a encerra em sua grande nuvem. Extremamente diversa de
uma sociedade para outra, envolve todas as sociedades. [...] é um desdobramento
transformador e transfigurador do real que se sobrepõe ao real, parece confundir-
se com ele. [...] envolve os humanos, enquanto faz parte deles. Sem ela não
poderia realizar-se nada do que é humano. Embora dependa das mentes humanas
e de uma cultura, surge de forma autônoma, em e por esta dependência (MORIN,
2003, p. 50).
198

A história da vida e morte das cidades é a história de suas crises. Ela se


constrói em uma arena onde se chocam e coincidem forças de natureza
política, econômica e cultural afetando, positiva ou negativamente,
movimentos e processos tanto localizados quanto globalizados que por sua
vez as envolvem.

Enquanto resultados de processos sociais de construção do espaço


que gozam de uma relativa autonomia local, mas que também estão
submetidos a imprevisibilidades globais, as cidades fogem, por sua
natureza, do controle do Estado, elas não correspondem inteiramente aos
países, às nacionalidades, em parte, devido ao movimento de seus atores,
seus habitantes e visitantes que também constituem nebulosas de acordo
com seus interesses particulares e coletivos.

Um grupo desses atores, que vem se configurando e reconfigurando


desde finais do século XVIII, é constituído pelos chamados urbanistas.
Pessoas que pensam e desejam transformar a cidade. Desde os primórdios,
o urbanismo tem propiciado a crítica, através do discurso e da introdução de
experiências pontuais que revelam uma radical desnaturalização da cidade
e da experiência urbana, assim como a sua objetivação e os intentos de
manter ou transformar sua forma e, em especial, sua aparência material.

Uma primeira aproximação, muito elementar, do sujeito do desejo do


estudo se refere a um tipo específico de urbanista: quem tem o poder da
consciência de ser ele mesmo, a borda como sujeito, e, simultaneamente,
estar à borda como objeto de estudo do urbanismo contemporâneo, no qual
somos nós mesmos um “devir”, uma ontogênese do atual.

2.8._Conclusão Capítulo II.

Assim como a ciência não representa a única forma de conhecimento,


porque sua episteme não esgota o âmbito do saber; o urbanismo (definido
199

para além da ciência e da arte como uma transdisciplina que conjuga


epistemologia, metodologia e lógica próprias) tampouco esgota o campo
relacional do orbanismo contemporâneo na urbanidade (anteriormente
entendida como cultura urbana ou cultura cidadã).

A urbanidade está para o urbanismo convencional (moderno) assim


como a “ovelhidade”, em Platão (385 a.C - 371 a.C.), está para a ovelha. E,
como falar de urbanidade é sinônimo de cidadania, incluímos um terceiro
conceito na relação: objeto (cidade), sujeito (cidadão), omnijeto (orbanista)
no âmbito de um orbanismo transconsciente e transdisciplinar.

Enquanto campo relacional, omnejitivizante, o orbanista inclui


“dentro” de si tanto a cidade como o cidadão (sujeito relativo), entendido
este último como o urbanista (sujeito reflexivo) cujas atuações afetam o
objeto (cidade) e o sujeito absoluto (cidadão que se considera a si mesmo
independente da cidade), quem, consciente de sua omnijetividade
transforma o urbanismo em urbanidade e a estes dois últimos em
orbanidade.

A nossa preocupação em termos acadêmicos, com respeito à


necessária emancipação (a tão sonhada liberdade prometida em solo
urbano), parte de uma consciência difusa própria da época em que vivemos,
sob condições e situações intervalares. Situa-se entre o criticado paradigma
da modernidade, baseado na luta pelo poder (cuja falência se torna cada
vez mais evidente e impossível de ocultar), e um suposto novo paradigma
emergente que “somente veem aqueles que podem ver”.

Estamos nos dando conta de como manipulamos uns aos outros e


essa consciência pública poderá nos levar eventualmente a redirecionar
nossas ações e reavaliar nossas motivações, buscando novas maneiras de
agir sem dominação. Através dessa consciência “trans”, podemos perceber
que ao controlar os demais nos carregamos, por assim dizer, com suas
200

energias vitais. A ânsia por esse poder vital leva os fracos e inseguros a
querer roubar a energia alheia para se sentir “bem”.

Frente ao anterior, somado à experiência do cotidiano da realidade


latino-americana que evidencia o crescimento da diferença entre ricos e
pobres, que se manifesta nas cidades através da segregação social e da
fragmentação física, o desenvolvimento de um espírito de borda, de uma
consciência do limite que conceba a emancipação social como algo próprio
e caracterìstico de cada indivìduo que exerce um “espìrito popular criativo”
vai se desdobrar em uma nova cultura emergente, numa “heterotopia”.

Uma nova topologia do afeto que reconheça as sensações


agradáveis ou desagradáveis que nos impressionam favorável ou
desfavoravelmente e que consiga nos enraizar no território novamente, no
sentido de uma topologia do limite, requer alternativamente uma topologia
de redes. As três maneiras de entender a topologia do espaço urbano
contemporâneo se conectam, se compactam e se podem medir melhor no
“mim mesmo” em termos de semelhança, convergência e conectividade.

Entender a vida humana como sem transcendência poderia ser


também a outra maneira de nos aproximar da ideia de vida. Segundo
Agamben, “uma vida que não consista tão somente em sua confrontação
com a morte e uma imanência que não volte a produzir transcendência”
(AGAMBEN, 2005, p. 521).
201

Figura 3: Em uma situação aborrecida para outra situação interessante.

Fuente: Grosso, 1992


202

Capítulo III–PROBLEMATIZAÇÃO DA BORDA

3.1._Introdução Capítulo III.

Nesta etapa do trabalho, já temos elementos para afirmar que a


problemática das bordas é um falso problema, que não se colocaria caso a
considerássemos como eventos modificáveis.

Viemos refletindo acerca da reconfiguração dos espaços de poder


desde as bordas como um processo que implica também uma
reconfiguração dos espaços de poder nas bordas, no sentido de adquirir
uma interioridade metódica que nos levaria de uma análise tradicional (para
si mesmo) a um “insight” (em si mesmo).

Neste processo, que é temporal porque precisa de um tempo para se


consolidar em cada uma de suas etapas, a tomada de consciência
individual e coletiva que acontece (ou é produzida) se dá
concomitantemente em uma transição paradigmática que, além de ser
dupla, é também simultânea: a reconfiguração dos espaços de poder
desde/e nas bordas (transição físico-política) e a reconfiguração dos
espaços urbanos a partir da borda do poder (transição político-física).

A compreensão desta transição como relação indissolúvel entre


objeto-sujeito-omnijeto de estudo nos habilita a acessar uma
transconsciência partindo de uma consciência individual que se dimensiona
no tempo/espaço presente. Falamos de um processo realmente
emancipatório, que não implica a ideologização midiática e que resgata a
dignidade das pessoas.

Embora comumente aceita a afirmação de Marx (1867) de que “o ser


social determina a consciência”, podemos dizer também, após experimentar
o processo de decomposição das sociedades primitivas comunitárias e a
decadência das estruturas associadas e/ou sindicalizadas dos proprietários
203

e/ou trabalhadores das sociedades capitalistas modernas, que


contemporaneamente é mais acertado falar que a consciência é quem
determina o ser social.

Seguindo o sociólogo Ulrich Beck (n. Slupsk, 1944), além de


entender como se inverte a relação causa/efeito entre ser e consciência,
podemos encontrar outros aspectos da tendência global predominante no
que ele definiu como “sociedade do risco”.

Isto é mais claramente observável em situações de risco na borda e


em condições de borda, nas quais as fontes coletivas que dão significado à
sociedade se esgotam e o indivíduo busca de maneira independente uma
identidade na nova sociedade. Esta afirmação ganha mais força no conjunto
de características que Beck (1986) define como próprias da
contemporaneidade, onde os riscos sociais, políticos, econômicos e
industriais tendem cada vez mais a escapar do controle e proteção das
instituições tipicamente configuradas em uma sociedade industrial.

O modo como esses riscos se distribuem e incrementam desigual e


injustamente, do ponto de vista social, seguindo uma geometria hegemônica
do poder. A percepção do risco como oportunidade de negócio e de
mercado. O afã de encontrar legitimidade nos “novos” movimentos sociais
em função do vazio do poder político e institucional. O processo de
desencantamento das fontes de poder simbólico que davam um significado
coletivo à ideia de cidadania. O processo de individualização do sujeito
através da desvinculação das formas tradicionais da sociedade industrial,
ao mesmo tempo em que acontece uma religação com outro tipo de
modernização. O eterno retorno da incerteza mediante a qual temos que
assumir o risco como uma forma de reconhecimento do imprevisível e em
meio às crescentes ameaças de uma sociedade falsamente “pós-industrial”
que se converteu em um problema para si mesma.
204

Estes são os verdadeiros “problemas do problema”: algo em que os


teóricos, desde Marx (1867), não haviam pensado seriamente até que
Harvey (2005) lembrou que o marxismo deve ser entendido “como uma
proposta experimental e de ideias inacabadas” (HARVEY, 2005, p. 13),
quanto à maneira como se recompõe estrategicamente o sistema-mundo e
às formas de se relacionar seus fatores (terra, capital, trabalho). Harvey
também nos advertiu recentemente que os riscos sistêmicos de longo prazo
que O Capital representa para a vida no planeta não são, em seu conjunto,
algo “novo” na história da humanidade, nem tampouco se trata de uma
“crise” passageira, senão da forma como se está reconfigurando sua
estrutura global de domínio sobre o território, agora em escala planetária 61.

De fato, as diferentes maneiras das pessoas estarem no mundo


determinam distintas condições de vida e, quando se trata de estar na
borda, o Ser da borda se manifesta no pensamento emergente ou
pensamento limite que recria suas condições materiais de vida. A produção
como fruto do trabalho e a técnica que transforma objetos em produtos,
quando conscientes libertam o ser humano de sua mentalidade de
proprietário e o impedem de se alienar, de se tornar escravo de sua
conquista, objeto de seu desejo.

Nesse nível transconsciente, ao qual chegamos mediante um


pensamento de borda, imaginamos que as existências que já foram
negadas pela força da razão realmente existem e, o mais importante: são
válidas tanto na diversidade de opções de existência como na
simultaneidade contemporânea. Porém, consideramos possíveis e
desejáveis as formas de pensamento não-humano que são igualmente
decisivas e importantes no desenvolvimento do que está por vir.

61
“Os espaços do capitalismo global”, conferência do geógrafo David Harvey na Faculdade
de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires, em 20 de dezembro de 2006. Veja-
se também: “O enigma do capital e as crises do capitalismo”, conferência de Harvey em 28
de fevereiro de 2012 no Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da FAU
(LabHab), pós-graduação, FAU/USP, Rio de Janeiro.
205

O anterior é agora compreensível graças à teoria das bifurcações de


Prigogine e Stengers, que significa que Thom, com sua teoria das
catástrofes, nos ajudaria a entender como é possível a simultaneidade
transconsciente, o tempo em espiral, a omnijetividade, etc.

Sabemos hoje que um mesmo sistema pode, à medida que cresce a sua distância
do equilíbrio, atravessar múltiplas zonas de instabilidade [...] onde seu
comportamento se transformará qualitativamente [assim como] alcançará um
regime caótico no qual sua atividade pode se definir como o contrário da desordem
indiferente que reina no equilíbrio. [Nessa condição-situação] todos os “possìveis”
se atualizam, coexistem e interferem [e] o sistema é “ao mesmo tempo” tudo o que
pode ser (PRIGOGINE & STENGERS, 1988, p. 69).

Reconhecer enquanto coletivo humano que não vamos obter nenhuma


resposta através do pensamento racional dominante é também o início de
uma nova maneira de pensar “para além da borda”, para a qual é
necessário que nossas investigações se façam desde uma perspectiva
holística (integradora), distinta do reducionismo historicamente consolidado.

Não como uma nova totalidade, mas como uma proposta de tecer e
consolidar redes sociais aproveitando, por um lado, os recursos da
tecnologia contemporânea e, por outro, a propensão dos sistemas
estruturados estáveis de manifestar descontinuidade e, assim, favorecer a
reconfiguração urbana desde e nas bordas.

Vamos, pois, analisar a problemática da borda com um olhar de


borda, que não implica forçosamente uma teoria “confiável” (ainda não) de
um ponto de vista científico, como o adverte o cientista político James N.
Rosenau (n. Philadelphia, 1924), para quem as orientações daqueles que
constroem atualmente a teoria da complexidade não necessariamente
coincidem com as intenções daqueles que formulam e executam as
políticas públicas.

As variáveis que os sistemas humanos contêm em qualquer nível de organização


são tão multitudinárias e, portanto, tão suscetíveis a múltiplas variações quando
mudam os seus valores, que prever os movimentos dos planetas através do
espaço é um desafio simples se comparado com prever a evolução dos sistemas
humanos através do tempo (ROSENAU, 1997, p. 80).
206

3.2._Bordas, Redes e Reconfiguração Urbana.

As interfaces correspondem a uma noção da borda vista como espaço


articulador da cidade contemporânea e seu entorno. Segundo os resultados
do Seminário Internacional As interfaces na análise territorial, realizado na
Universidade de Medellín (Colômbia), em 2005, perceber as bordas como
interfaces contribui para a construção de um novo paradigma (emergente),
que possibilita a planejadores urbanos, urbanistas e designers urbanos
redefinir e encontrar um novo universo no âmbito urbano-rural.

O paradigma emergente enfatiza a omnijetividade não


antropocêntrica que consiste em privilegiar o campo relacional entre objeto
e sujeito em vez de se limitar a caracterizar separadamente cada um deles
enquanto referentes de sua mútua relação, tal como fazem os esquemas
paradigmáticos predominantes e convencionais de objetividade alienante e
de subjetividade antropocêntrica regidos pela razão moderna.

Em sentido positivo, uma interfaz de borda é um campo relacional de


probabilidades emergentes que faculta a troca e o feedback, produto de
forças centrípetas e centrífugas que deixam como resultado uma
sedimentação de caráter híbrido, instável e, portanto, potencialmente
criativa.

A reconfiguração de espaços de poder desde a borda, conforme


exposto nos capítulos anteriores, é possível através de uma gestão urbana
participativa, por meio do qual as redes sociais podem contribuir para
configurar um tecido de interconexões na cidade fragmentada
contemporânea que reconheça e integre em um coletivismo transconsciente
as diversas formas que foram ignoradas pelo pensamento racional
dominante.
207

As redes sociais não são uma invenção “nova” nem sequer uma
invenção “moderna” em termos contemporâneos. Não estamos nos
referindo nesta tese às redes digitais de um clube seleto de pessoas.
Tampouco são estruturas que duram para sempre ou que podem crescer
indefinidamente. Elas são apenas um instrumento de mudança que só
funciona quando elas existem, sempre a partir de outra rede social.

Realmente, nada acontece só porque adotamos uma tecnologia


interativa. Além da troca entre os seres humanos sob condições de um novo
pacto de borda, há que se reconhecer o padrão em rede da cidade vista
como um organismo vivo: a probabilidade emergente de uma estrutura
dissipativa.

Como conceitualizado anteriormente, uma topologia de redes


possibilita o surgimento de uma rede distribuída caracterizada pela ausência
de um centro de poder, seja ele individual ou coletivo. Cada nó, sem
evidência de segregação além do indispensável para garantir a
multiculturalidade e o desequilíbrio consciente nos padrões culturais de
assentamento populacional, tem o poder distribuído para desenvolver-se e
desenvolver de maneira interdependente um modo de vida sustentável e
que sustente, neguentrópico e cujos limites dependem do tamanho e
configuração da rede, da quantidade de assentamentos humanos
envolvidos, assim como da qualidade de seus intercâmbios.

A reconfiguração da espacialidade orbana pode ocorrer


independentemente da renovação física urbana. Isto significa que este
processo pode acontecer “antes” ou “depois” de uma intervenção na cidade.
E ele pode ou não se acelerar em função da qualidade das políticas
públicas envolvidas e do impacto estratégico dos projetos urbanos e
arquitetônicos, que também podem funcionar como rede diretamente desde/
e nas bordas.
208

Através de um exercício de gestão, que alguns sociólogos


contemporâneos chamam “alternativa”, e que afeta as estruturas de poder
hegemônico de áreas tradicionalmente configuradas “à borda”, as redes
sociais podem ser esse mecanismo intangível através do qual os tecidos
urbanos desconexos contribuam para moldar novos espaços que integrem
novamente a cidade, desta vez de uma maneira alternativa, criativa, não-
hegemônica.

O surgimento da Internet e o desenvolvimento acelerado dos meios


eletrônicos pessoais de edição e publicação resultaram na prevalência da
tecnosfera sobre a noosfera, constituindo uma espécie de blogosfera: a
primeira mídia distribuída (de nossa civilização ocidental racional e
dominante).

Isto tem suas aplicações sociais e já começa a apresentar


consequências no âmbito do político, como as propostas libertárias de
entrelaçamento e distribuição social federalistas que poderiam evoluir até
verdadeiras regiões heteronômicas, e, no campo jurídico transnacional,
como os processos e julgamentos efetuados tanto pela Corte Penal
Internacional como por países que intervêm em outros países em temas
relacionados com o Direito Humanitário, crimes de lesa- humanidade e
genocídios de Estado.

Também é possível afirmar, a partir de nossa pesquisa, que isto vem


sendo ensaiado desde sempre, apenas que agora, sob um “novo” olhar
(muito mais complexo) da realidade contemporânea, podemos percebê-lo e
entendê-lo supostamente melhor, e, em virtude de uma estruturação muito
mais “palpável” das redes sociais contemporâneas, podemos tentar
gestionar o fenômeno a partir de um projeto de borda: redefinindo o estatuto
do ato criativo como um dom a ser compartilhado e reconfigurando as
estruturas de poder como constituintes do poder constituído.
209

Em sentido negativo, uma interfaz urbano-rural é um limite instável,


difícil de organizar, amorfo, imprevisível e, portanto, não planificável, no qual
coexistem conflitiva e caoticamente ricos e pobres e usos do solo urbano e
rural.

A análise, porém, reconhece a borda como heterogênea, diversa e


estratégica porque o ordenamento territorial se dá em diversas escalas.
Estas estratégias de mudança aproveitam as condições ambíguas das
situações híbridas da borda à borda para transformar os eventos a modificar
(segregação, fragmentação e violência contemporâneas) partindo das
potencialidades humanas e dos recursos naturais presentes nos interstícios
arquitetônicos e nas interfaces urbanas que sustentam e mantém em
movimento o desenvolvimento urbano e rural.

De acordo com este estudo, em Bogotá (Colômbia) as


potencialidades mais evidentes e frequentes nas interfaces urbano-rurais
são: proximidade das atividades e oportunidades urbanas; oferta
diversificada de transporte entre as populações; fontes alternativas de
energia; melhor qualificação relativa da mão de obra comparativamente às
áreas rurais próximas; flexibilidade das normas ambientais possibilitando a
presença ocasional de agentes investidores; a ingovernabilidade das
estruturas governamentais nas bordas permite o surgimento de estruturas
de autogoverno e a indefinição das formas de propriedade e posse da terra
favorece a aparição de outras formas de propriedade coletiva dos meios de
produção.

E os eventos a modificar seriam: redução das áreas rurais e da


produtividade rural em geral; especulação imobiliária devido à proximidade
do solo urbano e urbanizável; perda acelerada de florestas nativas pela
extração de madeira para construção de móveis e estruturas precárias;
erosão do solo e degradação ambiental do recurso hídrico; perda do solo
210

rural fértil em função de assentamentos não planejados e a proliferação de


equipamentos precários e edificações industriais poluentes.

Assim, a fragmentação da atividade institucional e a sobreposição de


responsabilidades poderiam se converter em uma oportunidade local de
articulação de redes de gestão heterárquicas. Estas estruturas de poder
alternativo seriam capazes de conceber e executar políticas públicas
apropriadas para a transição paradigmática em/ nas bordas.

Mas, talvez, as consequências mais graves do efeito da problemática


discutida se configurem não no físico, no evidente, senão que na mente
daqueles que habitam a cidade. Com efeito, a leitura da borda desde a
cidade antiga até a contemporânea, passando pela cidade moderna,
poderia ser interpretada como uma transição física, mas também como uma
transição no entendimento do fenômeno físico como tal.

Antigamente, a palavra borda referida a um fenômeno urbano


apontava para os limites da cidade, demarcados, inclusive, por uma
muralha ou fosso que separava a cidade do caos circundante. Na cidade
moderna, a borda passou a ser identificada às condições de vida extremas
em situações extremas. Isto é: o limite do limite, a borda à borda.

Acreditava-se, então (estamos falando de finais da década dos 80,


princípios dos 90 do século passado), que os princípios de intervenção
urbanística e a gestão planificadora do Estado deveriam e poderiam dar
conta da chamada des-borda; tratava-se de uma questão de recursos e, no
pior dos casos de um fenômeno de subdesenvolvimento típico de nossas
cidades latino-americanas.

Mas o processo não termina aí e prova disso são os inúmeros


exemplos de como chegou a se constituir um fenômeno ainda mais
complexo: a borda no centro. Ou seja, as manifestações físicas da cidade
(considerada informal, não planejada e inclusive ilegal) foram aparecendo e
211

ficaram como parte das estruturas urbanas anteriormente consideradas


símbolo do domínio territorial, como os centros históricos e as
infraestruturas públicas.

O processo de reconfiguração urbana como objetivo primordial do


urbanismo contemporâneo, que reconhece a política de segregação social e
a fragmentação física do espaço como algo inevitável, requer uma mudança
no modo de entender a reconfiguração dos espaços de poder como um
processo poder-borda-poder de tomada de consciência.

Por paradoxal que possa parecer, o fato é que tanto a segregação


social como a fragmentação física são realmente formas privilegiadas de
sociabilidade na borda que, em períodos de transição e competição
paradigmáticas, tais como agora, permitem tanto uma transição social a
novas formas de emancipação como uma transição epistemológica a novas
formas de regulação.

Como um projeto político passível de ser construído a partir das


bordas, seja dentro ou fora da interfaz, a reconfiguração dos espaços de
poder se direciona para a reconfiguração dos espaços físicos da cidade
enquanto um projeto urbano que pode ser construído a partir das zonas de
borda (tradicionalmente marginalizadas do poder).

Segundo Petersen (2003), no governo local do Rio de Janeiro tem se


verificado uma verdadeira evolução na maneira como se entende e intervém
na cidade. Prova disso, é a evolução urbana e social das favelas do Rio de
Janeiro, que se entende como um processo de intervenção do Estado que
veio evoluindo das políticas de remoção até a promoção de “células
urbanas” que veem a borda como uma nova forma de centralidade e as
redes sociotécnicas como ferramentas de articulação das iniciativas sociais
que emergem a partir da borda.
212

Entretanto, se colocar à borda dos acontecimentos (à margem das


estruturas tradicionais de domínio) para daí procurar construir outra vez
uma centralidade (com o exercício político que isto implique e a revolução
social que possa significar) continuará sendo um alimento futuro à tendência
global do sistema de dominação predominante se não superarmos primeiro
o individualismo inconsciente, ultrapassando nossos complexos e
reprogramando nosso inconsciente coletivo e, portanto, sua estrutura
arquetípica.

Há outra maneira de ver esse processo alternativo: como interfaces


em rede, um verdadeiro fenômeno social de sinapses complexas. Isto exige
que se passe a entender as consequências da emergência de uma rede
distribuída através de um novo enfoque: a topologia dos rizomas e daí a
topologia do limite e para além da ideia de limite.

Um platô está sempre no meio, nem início nem fim. Um rizoma é feito de platôs.
Gregory Bateson serve-se da palavra “platô” para designar algo muito especial:
uma região contínua de intensidades, vibrando sobre ela mesma, e que se
desenvolve evitando toda orientação sobre um ponto culminante ou em direção a
uma finalidade exterior. [...] Chamamos “platô” toda multiplicidade conectável com
outras hastes subterrâneas superficiais de maneira a formar e estender um rizoma.
(DELEUZE e GUATTARI, 1980, p. 44)

Os processos de apreensão do fluxo e a simultaneidade, próprios de uma


maismodernidade transconsciente, integrados à proposta filosófica de
Deleuze e Guattari podem nos introduzir na compreensão desses “platôs”,
que eles entendem como espaços de solidez e organização, em meio ao
rizoma, fixados por grupos ou conjuntos de conceitos afins como pontos de
contato, continuidade e emergência de novos espaços na borda à borda,
como verdadeiras estruturas “dissipativas” que se constituem em
ferramentas para o exercício da resistência necessária à transformação do
modelo hierárquico de pensamento e espacialidade urbana em outro
heterárquico, uma outra maneira de entender como surge o caos a partir do
caos e como acontece o reencantamento da natureza da terra ao céu
(Stengers e Prigogine, 1984).
213

Para além da ideia de limite, tão funcional ao sistema de dominação


“moderno”, a borda hoje pode ser mais bem compreendida espacialmente
como um interstício e uma interface, do ponto de vista físico-espacial, entre
realidades diversas e, do ponto de vista físico-temporal, como um intervalo
entre tempos da vivência cotidiana de um objeto arquitetônico e também
uma interfase, um intervalo entre as formas possíveis de emergir um objeto
urbanístico e/ou arquitetônico.

Também dotada de seus atributos de intencionalidade e


transconsciência, a borda enquanto espaço transcendental da cidade
contemporânea entender-se-ia como um “algo” que, por sua natureza fractal
e produto da fragmentação, nós poderíamos definir como indefinível. Em
termos quânticos, alguma coisa mais parecida a uma interfaz, que demanda
uma rede de relações para interconectar uma realidade tão complexa como
a gestão cuidadosa do “urbano”.

Heidegger (1927) distingue “Sorge” (cuidado), como o ser


(ontológico) do “Dasein”, cuja estrutura existencial se baseia na
intencionalidade posta em perspectiva espaço-temporal e cujo método se
concentra no “ideal”, na estrutura essencial da consciência que representa o
“mim mesmo”, o que transcende e que se opõe ao espaço-tempo empírico
urbano convencional. A consciência, por sua vez, é intencional, tem um
sentido “inverso” ao da lógica dominante do pensamento racional. Ela se
move em três tempos: imaginação (futuro), sensação (presente), memória
(passado). Sendo simultaneamente individual/ coletiva/ quântica/ cósmica, a
consciência se transforma em uma rede transconsciente indispensável para
um trato cuidadoso da cidade pelas bordas.

Estas redes de relações, ao se apoiar nas tecnologias de informação


e comunicação, se constituem em uma rede sociotécnica que, segundo a
administradora de empresas colombiana Alexandra Rodríguez-Del Gallego,
configura um sistema de informação alternativo ao sistema de dominação,
214

onde novos atores, que representam a sociedade civil organizada,


assumem a gestão participativa do “público”. De acordo com Rodrìguez e
Prieto, o papel da mídia na contemporaneidade é fundamental como
ferramenta de controle social da administração pública, das entidades e dos
próprios servidores públicos.

O delineamento de redes sociotécnicas tem como fundamento uma aproximação


que ao longo dos anos vem ganhando espaço na teoria das ciências “sociais”. [...]
Espera-se, então, que um cidadão mais bem informado assuma uma posição muito
mais proativa e participativa no exercício da democracia (RODRIGUEZ e PRIETO,
2007, pp. 152, 1524).

Isto quer dizer que, sob as mesmas leis do capitalismo, ou melhor, apesar
do capitalismo ser um sistema de produção submetido a um sistema de
dominação que tende à globalização e capaz de reduzir tudo (incluindo os
humanos) a uma simples transação do mercado de capitais, sempre
encontra maneiras alternativas que parecem às vezes contratendências ao
próprio sistema.

Eles se referem a formas alternativas de consumo, nesse caso


consumo do espaço e do tempo que sustenta o modo de vida caracterizado
pelo urbano. As redes sociotécnicas poderiam, então, criar interfaces à
intangibilidade e inteligibilidade do fenômeno da borda.

Realmente não há nada de novo, as três esferas da vida cívica que


os gregos distinguiam numa democracia plena, constituem segundo Lopes
de Sousa (2008), a base “geográfica” que Castoriadis (1996, pp. 228, 229)
identifica como o espaço do social tipicamente humano nas cidades e são a
possibilidade de reconhecer tais esferas na nova geografia socialmente
segregada e fisicamente fragmentada da cidade contemporânea.

[Castoriadis] observando a democracia grega, sugeriu uma classificação em três


instâncias ou esferas: 1) a esfera privada, que é simbolizada pelo oikos; 2) a esfera
privada/ pública, que é simbolizada pela ágora; e 3) a esfera (fortemente e
formalmente) pública, simbolizada pela ekklesía. [...] somente sob um regime
democrático tais esferas se acham, a um só tempo, claramente distinguidas e
propriamente articuladas (LÓPES de Sousa, 2008, p. 83).
215

Assim, se a ideia de cidade se transformou, passando da noção de centro


urbano a ser entendida como uma rede complexa que faz parte de um
sistema de assentamentos humanos que, até agora, nós urbanistas
estamos tentando entender, é porque mudou a ideia de democracia, e se as
redes sociotécnicas reformularam o sentido participativo da democracia
contemporânea é possível, então, que exista igualmente uma forma
contemporânea de entender o fenômeno da borda, precisamente no marco
do processo de globalização do sistema de dominação que nos faz
dependentes do modo de vida urbano.

Partindo do pressuposto que o fenômeno da globalização traz


consigo, simultaneamente, ameaças e oportunidades frente às crises que,
cada vez mais são percebidas como parte substancial de um sistema cada
vez mais complexo e eficiente que vamos, cedo ou tarde, ajudando a
configurar em escala planetária, podemos também considerar os efeitos
mais rápidos que podem ocorrer nas crises locais, semelhante à rapidez
com que se propaga a infecção causada por todo tipo de vírus natural ou
criado pelo homem.

Neste sentido, a vulnerabilidade e a dependência se tornam mais


fortes, mas também a presença de assentamentos humanos tipo borda, a
ponto de prevalecer no sistema como uma centralidade, agora não mais
percebida como núcleos, senão como um tecido distribuído difusamente por
toda parte.

Mas não são só os efeitos negativos do sistema que se comunicam


através desse tecido ou interfaz de borda, a complexidade da realidade
contemporânea favorece também a adaptabilidade do sistema, quando a
responsabilidade pela gestão é partilhada. Há maior estabilidade dinâmica
quando o sistema se baseia em critérios de diversidade, já que as crises,
assim como as epidemias afetam apenas uma parte das espécies
associadas ao sistema. Nesse sentido, a diversidade de fenômenos que
216

ocorrem na borda não seria mais uma desvantagem, constituindo, ao


contrário, uma potencialidade para todo o sistema.

No entanto, poderia se tratar de uma miragem, uma vez que ainda


que pudéssemos ter cada vez menos falhas no sistema, quando estas
ocorressem provavelmente seria num nível catastrófico. É um risco
altíssimo, pois estando todos ligados em rede aos benefícios globais,
também o estariam aos malefícios locais; só que desta vez, não se trata de
um risco centralizado ou descentralizado, mas partilhado.

Nesse sentido, cabe esclarecer que não há riscos globais nem locais,
senão que o risco é glocalizado. Existem, sim, ameaças e oportunidades
globais que, junto com as vulnerabilidades e capacidades locais configuram
o cenário de risco. No entanto, por não entender isto, as agências oficiais
responsáveis pelo assunto insistem numa gestão equivocada, orientando as
estratégias para o global ou o local de uma maneira desarticulada.

A tendência das redes sociais é contrária aos motivos que as


originaram. Cada vez mais, as redes de comunicação social se tornam
menos diversas e os grandes consórcios tendem a se unir em coalizões
que, supostamente, favorecem o grande público. Novamente, ficamos à
margem, novamente reduzidos, enredados no ciberespaço.

Talvez seja isto que permaneça nas relações contemporâneas de


espaço/ tempo: uma espécie de “efeito porco-espinho” que afeta tanto o
comportamento do cidadão quanto a forma urbana na teoria da borda.

A complexidade da realidade assumida e interpretada pelas redes


sociotécnicas torna as crises contemporâneas mais perigosas, já que
potencialmente também implica que as interconexões podem gerar um
impacto maior dos efeitos negativos da globalização hegemônica.

Sociedades mais compactas e centralizadas, como as que originaram


as cidades pré-modernas do século XIV, puderam naquele momento não
217

colapsar diante de eventuais ataques ao sistema de dominação urbano


devido ao seu fraco desempenho econômico e político e pelo grau de
isolamento que fazia parte de sua morfologia urbana, inclusive construindo
muralhas como limites socialmente aceitos.

Em troca, sociedades aparentemente mais complexas e


economicamente avançadas como as modernas apresentam nós que, ao
serem afetados, geram efeitos cujo impacto (geralmente negativo, ainda
que nem sempre) tende a se ampliar. Os nós poderiam ser pessoas
essenciais ao funcionamento da sociedade e sua economia, mas também
pessoas situadas à borda dos acontecimentos, em condições extremas de
miséria, marginalidade e vulnerabilidade. Estas pessoas ao estar
interligadas ao sistema poderiam produzir mais pânico já que a difusão de
informação imprecisa poderia levar a um feedback negativo, criando a
sensação de estarem todos vivendo algo “pior” do que o real.

Em um relatório de 2007 sobre os riscos “globais”, o Fórum


62
Econômico Mundial imaginou as consequências de uma pandemia e de
uma crise de liquidez global ao mesmo tempo, um cenário que então
parecia meramente especulativo.

Espera-se que até o final da primeira década deste milênio comece a


se evidenciar uma profunda desaceleração do processo de globalização
econômica que pode levar a um incremento das tendências autoritárias e
militaristas e a reformular a geopolìtica, quiçá, levantando “novas muralhas
da China”.

Estar à borda dos acontecimentos, mas conectado em rede, pode se


configurar como uma condição intermediária de vida, na qual não sintamos

62
O Fórum Econômico Mundial (World Economic Forum, WEF) é uma fundação
supostamente sem fins lucrativos, com sede em Genebra, conhecida por sua reunião anual
em Davos, Suíça. Participam do fórum os personagens mais poderosos e ricos do mundo,
quem influenciam de maneira decisiva as políticas públicas em nível mundial em matéria
financeira e de cooperação internacional.
218

“nem tanto frio nem tanta dor”, como os porcos-espinhos da metáfora de


Arthur Schopenhauer (1928), obrigados a se juntar no inverno, mas tendo
que se afastar por causa dos espinhos. Situar-se no espaço até encontrar
essa “justa medida”, essa distância apropriada entre formas, funções e usos
da cidade contemporânea, talvez seja a chave para sobreviver ao que se
avizinha.

Esta interfaz (interface/espacial – interfase/temporal), essa borda


vista agora como tecido também pode ser a distância adequada que separa
funcionalmente os fenômenos urbanos na cidade fragmentada
contemporânea, podendo atuar inteligentemente e de maneira informada e
articulada através de redes sociotécnicas, tendo como objetivo primordial
aceder a uma transconsciência.

Essas redes sociais, integradas através do uso de tecnologias


intensivas no trabalho de reconfiguração urbana, formam esse tecido
informal e anônimo que cria as interfaces funcionais a um sistema de
dominação que, paradoxalmente, procura (mas estrategicamente nunca
consegue) emancipar as consciências individuais mediante uma tomada de
transconsciência desde/ nas bordas.

Alguns dos postulados que defendem o software livre, segundo o


hacker Eric Steven Raymond (n. Boston, 1957), constituem uma atualização
e uma possível interpretação dos fenômenos antropológicos da teoria do
dom de Mauss (1925) e da teoria do prestígio de Bourdieu.

As oposições aparentemente mais formais dessa mitologia social devem sempre


sua eficácia ideológica ao fato de que remetem, mais ou menos discretamente, às
oposições mais fundamentais da ordem social: a que, inscrita na divisão do
trabalho, se estabelece entre dominantes e dominados, e a que, fundada na divisão
do trabalho de dominação [se estabelece entre] os poderes, dominante e
dominado, temporal e espiritual, material e intelectual, etc. Isto quer dizer que o
esquema do espaço social anteriormente proposto pode também se ler como um
rigoroso quadro de categorias historicamente constituídas e adquiridas que
organizam o pensamento do mundo social do conjunto dos sujeitos pertencentes a
esse mundo e modelados por ele (BOURDIEU, 1979, p. 480).
219

Hoje, muitos veem em Colonizando a Noosfera, obra de Raymond (1999),


um guia sugestivo de como ao doar ou dar se pode promover uma maneira
melhor de viver em sociedade, quando se adquire essa distinção tão
necessária na era da chamada “cultura de massas”. Por exemplo, através
de um projeto de borda transformando a potência em ato que ainda
conserve a potência.

Isto coincide com as colocações fundamentais que Ricoeur


desenvolve em sua hermenêutica diatópica, quando projeta sua ideia da
imaginação para além da inovação semântica, transformando o discurso em
ação.

[...] no marco da teoria da metáfora, [...] O vinculo entre imaginação e inovação


semântica [...] como a etapa inicial dos desenvolvimentos posteriores. [...] A
segunda parte será dedicada à transição do teórico ao campo prático. [... a ficção]
A terceira parte estará firmemente situada no coração da noção do imaginário
social, a peça chave da função prática da imaginação (RICOEUR, 1986, pp. 168,
169).

No entanto, quando o poder é pervertido e estas estruturas, sejam


centralizadas, descentralizadas ou em rede, perdem seus próprios objetivos
de superar as necessidades das comunidades e se transformam em
“iniciados” que lutam para defender um estilo de vida hedonista (baseado
mais no desejo que na necessidade), então poderíamos falar de uma falsa
rede de reconfiguração espacial orientada pelo poder corrupto. Redes
formadas, por sua vez, por indivíduos corruptores que conseguem se
ocultar nessa teia difusa possibilitada pela tecnosfera que cobre o planeta.

A tecnosfera é um conceito desenvolvido por Vernadsky (1927) e


retomado por estudiosos da ciência do tempo, que se opõe à noosfera
cósmica ou camada superior de conhecimento que envolve tudo o que
existe. Ambas, tecnosfera e noosfera fazem parte de uma antiga luta entre
aqueles que negligenciaram a Mãe (terra, paraíso original) em busca de seu
próprio destino e desenvolveram a tecnologia e os artefatos que
contribuíram para a formação das estruturas de poder sobre o planeta e
aqueles que nunca abandonaram a natureza nem sua unidade com ela. É
220

um debate interessante, criptografado na parábola bíblica do filho pródigo


(Lucas 15, 11-31) e no mito da criação do Kogi indígena (Colômbia),
descrito há algumas décadas pelo antropólogo Geraldo Reichel-Dolmatoff
(Salzburgo, 1912 – Bogotá, 1994).

A ideia do poder corrupto, por sua vez, se refere à capacidade de


corrupção do ser enquanto se impõe e pode se sustentar a si mesmo sobre
os demais de maneira pervertida, ou seja, perdida. Implica a existência de
uma realidade alterada no sentido negativo, isto é, adulterada. Nessa
medida, podemos afirmar que todo poder é corrupto porque precisa mentir
para manter o domínio, que o vício pelo poder corrompe o ser e que todo
ser tem uma parte de sua natureza corrupta, em virtude de um suposto
pecado original (Gênesis, segundo a bíblia católica).

Em A Falta de Adão e Eva, documento 75 do Livro de Urantia


(Urantia Foundation ®), compilado pelo filósofo e jornalista Martin Gardner
(Tulsa, 1914- Norman, 2010), a corrupção é a capacidade genética de
adulterar a realidade misturando o bem e o mal. Nem sempre se pode fazer
o certo ante a complexidade dos conflitos da existência e se chega à
corrupção para manter o poder como domínio sobre os outros. Neste
sentido, o poder corrupto seria também um antônimo da ideia de poder, ou
seja, uma incapacidade de poder.

Convém discernir a diferença entre a corrupção do poder e o poder


corrupto (falso poder). Às vezes, quando o poder soberano, considerado
legítimo é injusto sua corrupção se converte em uma benção para os
oprimidos porque a tirania e a impunidade se transformam em uma
oportunidade para ser livre e desenvolver novas alternativas em outras
topologias tangentes ao poder.

Lutamos contra o mal porque nunca o compreendemos; há que absorver o mal,


utilizá-lo como um material para o trabalho. [...] Pensando desta maneira veremos
que não há nada errado na natureza. [...] Inclusive a moral e a religião estão
equivocadas ao aconselhar arrancar, extirpar o mal, porque o mal tem forças
formidáveis sem as quais o homem se debilita (AÏVANHOV, 1987, pp. 66, 67).
221

Esta afirmação de Aivanhov não tem nada a ver com disfarçar o mal em
bem. A natureza não desperdiça nada, utiliza tudo para recriar a vida. Esse
é o verdadeiro poder.

Qualquer um que tenha adulterado a natureza do poder original


ocultando os segredos da árvore do bem e do mal merece o título de grande
conspirador universal. E quem tenha sido capaz de estruturar este poder
para a conquista civilizatória da dominação sobre os demais, obviamente
merece outro título: príncipe maquiavélico do mundo.

Segundo estudiosos da teoria da conspiração como o linguista Avram


Noam Chomsky (n. Filadelfia, 1928), o escritor William Robertson Davies
(Thomasville, 1913 – Orangeville, 1995), o veterano de guerra americano
William T. Still, entre outros, há certos componentes linguísticos,
globalizadores, “iluminadores”, etc., que estruturam as formas de poder,
como as entende Boaventura de Sousa (2001), e as reproduzem em
qualquer civilização, em famílias, grupos de trabalho, mercados,
comunidades, formas de cidadania e de mundo.

A gramática transformacional generativa desenvolvida por Chomsky


(1997), por exemplo, faz com que os padrões gramaticais engendrados
historicamente por sociedades estruturadas oralmente convertam os
interesses de uns poucos, interessados em perpetuar-se no poder em uma
espécie de crise de uma aldeia global de dominantes e dominados em favor
de um setor oculto e como consequência das desigualdades que provoca a
nova adequação do capitalismo.

A crise do relativismo cultural baseado no relativismo linguístico,


segundo Chomsky, consiste em admitir que assim como há o “inatismo”,
que defende a existência de uma língua que é igual para todos os membros
da espécie humana (interiorizada e inata e que constitui a faculdade
linguística), há tambem uma maneira de acessar um poder unificado que
controla a humanidade em algum momento de sua existência.
222

Por sua parte, Robertson (1991) desenvolve a ideia de que existe


uma conspiração judeu-maçônica que pretende impor um governo único,
coletivista, burocrático e controlado por setores elitistas e plutocráticos a
nível mundial.

Também vale destacar as contribuições de Still (1990) à teoria


conspiracionista, no sentido que o chamado processo de globalização
hegemônica, iniciado em fins do século XX em todo o planeta, seria uma
das múltiplas faces do estabelecimento progressivo desta nova ordem.

A descrição dos componentes que constituem a estrutura do poder,


assim como a descrição dos modos de produção de poder são elementos
que adequadamente utilizados, mediante instrumentos de intervenção
urbana, poderiam favorecer (para o bem ou para o mal dos envolvidos e
dependendo de seu propósito político) a reconfiguração espacial de
interfaces e interstícios tipo borda a partir da constituição, reconfiguração
(ou inclusive destruição) dessas redes sociais – informadas – entre famílias,
entre estruturas de produção, entre mercados, entre comunidades, entre
formas de cidadania e entre ideias de mundo.

A estrutura do poder (como substantivo), conceito diferente das


estruturas de poder (como verbo), diz respeito aos componentes que dão
forma às redes secretas de poder, sejam terroristas ou não, profanas ou
iniciáticas, alinhadas ou não ao sistema global de dominação.

Existem redes que combatem em defesa de seu estilo de vida hedonista e existem
movimentos sociais que combatem em prol da sua sobrevivência […] Uma rede
corrupta é formada por uma constelação de individualidades corruptas dispersas
por todo o planeta. Mas, muitas vezes, essa rede funciona de tal maneira que, […]
as maiorias enganadas acabam por fortalecê-las e expandi-las ainda mais
(ALLEGRITTI, 2010, p. 314).

Estes componentes podem ser classificados, segundo Allegritti em:


mistificadores ou pseudomágicos, simbólicos ou místicos, enigmáticos,
dogmáticos, epistemológicos ou prospectivos, civilizacionais, estratégicos,
matriciais e até multidimensionais.
223

Sob outro enfoque, não menos difícil de assimilar, o antipsiquiatra


Ronald David Laing (Glasgow, 1927- 1989) desenvolve a noção de
mistificação da experiência de uma forma muito parecida com o
procedimento para criptografar dados. Em sua ideia do “eu dividido”, Laing
(1961) reconhece que um esquizofrênico carece de qualquer esperança de
ser entendido e menos ainda de se integrar à sociedade “normal”, visto que
a falta de coerência racional entre ele e seu Eu se deve a que, diferente do
que acontece com uma pessoa “normal” e que aprendeu a viver em
sociedade, não pode mentir a si mesmo, tornando-se um ser
completamente transparente.

O importante em tudo isto é entender que estamos em um “tempo


entre tempos”, em uma borda entre paradigmas que para a maioria das
pessoas e assentamentos humanos, inclusive cidades e nações inteiras,
significa ir “ao fundo do poço” de uma forma que parece estrutural e
permanente. Para a humanidade é realmente uma oportunidade de
mudança, esses momentos de um processo, ou de eventos infelizes que
desencadeiam processos. Não precisamos uma ruptura epistemológica
para nos colocar no meio dos conceitos se temos uma consciência de
borda, pois nós seriamos esta ruptura.

Em um marco interconceitual entre o direito, o poder e o


conhecimento e partindo de uma crítica aos paradigmas dominantes,
Boaventura de Sousa (2001) propõe seis (6) formas de poder: espaço
doméstico/ patriarcado, espaço de produção/ exploração (segundo a
“natureza capitalista”), espaço de mercado/ fetichismo da mercadoria,
espaço da comunidade/ diferenciação desigual, espaço da cidadania/
dominação, espaço global/ intercâmbio desigual.

Estas dimensões e formas de poder correspondem a diversos


componentes das estruturas de poder simbólico que tensionam o processo
glocalizador contemporâneo entre movimentos hegemônicos e
224

heteronômicos, subjacentes de maneira menos evidente como estrutura de


poder oculto nas manifestações que identificamos em seu conjunto como
crise.

3.3._Buscando Alternativas na Contemporaneidade Latino-americana63

Os processos de fragmentação não constituem uma alternativa diferente à cidade


moderna: eles são as instâncias atuais da cidade que vem do pensamento
moderno. Portanto, não visamos a «pós-modernidade» na expressão fragmentária
do território urbano e não vamos encontrar ali nada alternativo, a menos se mudar
o nosso olhar.

SIERRA-MORALES, Mauricio. “A reconfiguração


dos espaços urbanos a partir das periferias do
poder”, projeto de tese de doutorado, PROURB-
UFRJ, Rio de Janeiro, 2008.

Na agonia escandalosa do atual sistema de produção conhecido como


capitalismo surgirão novos espaços supostamente “públicos” (virtuais-
reais), que darão aos habitantes e/ ou visitantes a sensação de não estar
sob a dominação global de um sistema. Isto garantindo que, dentro e
mesmo fora do sistema, eles também entrem em um mundo globalizado/
localizado.

Em meio a este processo descrito, a crença é que poderiam existir


novas formas urbanas e não urbanas de assentamentos humanos. No
entanto, é preciso ficar atento a um procedimento – insistentemente exposto
nos textos do urbanismo contemporâneo – que pode parecer uma receita
para a felicidade.

Primeiro, teríamos que repensar, obrigatoriamente, quais são e como


se articulam todas as faces da dominação global do sistema. A partir daí,
analisar como se manifestam tais formas de dominação/ submissão no
espaço urbano contemporâneo para, finalmente, tentar descrever um

63
Ensaio STA: “Conceitos e Ideologias no Pensamento Urbanístico do Século XX”,
professor: Roberto Segre, PROURB – UFRJ, Rio de Janeiro, 2008.
225

cenário habitado sem a presença tangível do monetarismo, no qual seja


possível imaginar que as políticas públicas favoráveis à segregação e à
fragmentação possam desaparecer ao deixarem de ser funcionais ao
sistema, e as bordas se transformem em interfaces e interstícios funcionais
ao habitat humano, em limites “aparentes”, em fronteiras “vivas” não apenas
urbanas e não necessariamente marginais às cidades latino-americanas.

O capitalismo como o único sistema de produção dominante


mundialmente exige, para garantir a sua própria existência futura, uma
submissão gradual e total dos outros sistemas produtivos que existem e que
possam vir a existir na face da terra.

Sendo assim, e tratando-se de um sistema de dominação cuja face


econômica é conhecida como capitalismo, cabe perguntar se há outras
formas de poder sem dominação dos seres humanos e, por adesão, do
território contemporâneo que possibilitem ou permitam a existência de
formas urbanas de assentamentos humanos, seja as que atualmente
conhecemos: rurais, urbanas, etc., ou se, pelo contrário, os seres humanos
estão condenados, por natureza da espécie – ou pelo que seja – a viver sob
um sistema de dominação que reduz absolutamente tudo ao monetarismo e
à acumulação, incluindo as formas urbanas características da troca e do
consumo.

Sabemos, por experiência própria ou de terceiros, que existem


agrupamentos humanos (grandes e pequenos) que sobrevivem, hoje, longe
das cidades e de outras formas de ocupação do território conhecidas e
articuladas ao sistema global de dominação.

Existem, inclusive, nações inteiras que se dão ao luxo de dizer que


não estão articuladas (ou ao menos que não precisam do capitalismo para
garantir sua existência). Porém, quanto tempo ainda elas poderão resistir?
Acreditamos que é uma questão de décadas (ou talvez de anos) para a
realização de uma das utopias do pensamento ocidental (hoje também
226

dominante), que é pensar em um espaço mundial, um sistema único, válido


para todo o planeta e, lógico, para toda a espécie humana.

Seria ingênuo pensar que aqueles que historicamente impulsionaram


o capitalismo não tenham previsto a sua reinvenção sob a aparência de
uma economia supostamente libertária, que inclui a promessa de liberdade
e autorrealização no trabalho através do consumo, hipoteticamente também
solidário, e que confunde individualismo com individuação consciente.

É a new economy 64, vista simultaneamente como modelo produtivo e


discurso cultural, uma espécie de ideologia express, na qual não é preciso
pensar muito nem se preocupar com os outros (exceto para se proteger
deles, claro).

Surgiriam assim novos espaços na borda, assentamentos humanos


que dariam ao residente / ou visitante a sensação de não estar submetido à
dominação do sistema-mundo; o que poderia garantir, inclusive, que
aqueles que vivem hoje (ou acreditam que vivem) fora do sistema
ingressem também neste mundo “glocalizado”.

Poderíamos especular: como seriam esses novos espaços habitáveis


que possibilitariam ao habitante do século XXI pensar que é um ser livre e
autônomo e ainda assim estar sob o sistema de dominação único e
planetário?

Forçosamente haveria que repensar: quais são e de que maneira se


articulam as demais faces da dominação global do sistema. Então, de posse
deste conhecimento, estaríamos aptos a responder à questão: como se
manifestam tais formas de dominação/submissão no espaço urbano

64
A Nova Economia é um termo utilizado para descrever o resultado da transição de uma
economia industrial para uma economia baseada em serviços. Este uso particular do termo
se tornou popular durante a bolha das pontocom da década de 1990. O elevado
crescimento, a inflação baixa e o emprego alto deste período levaram a previsões
excessivamente otimistas e a muitos planos de negócios falhos.
227

contemporâneo? E, finalmente, tentaríamos descrever um cenário habitado


sem a presença tangível do monetarismo. Imaginemos um mundo “sem
dinheiro”.

A maioria das pessoas que ainda sonham com a ideia de um mundo


feliz fora do sistema (mas que nada fazem para isto), ao mesmo tempo
lutam para obter a perda do anonimato, um dos ideais da
contemporaneidade e pelo qual muitos estão dispostos a dar a vida.

Se Huxley tivesse que reescrever, hoje, a sua obra “Admirável mundo


novo”, certamente nos ofereceria uma terceira alternativa, diferente da
utopia do retorno a um estágio “selvagem”. Algo como o seguinte:

Se agora tivesse que reescrever este livro, ofereceria uma terceira alternativa ao
Selvagem. Entre as duas pontas de seu dilema, a utópica e a primitiva, estaria a
possibilidade de alcançar a sanidade de espírito, possibilidade já realizada, até
certo ponto, numa comunidade de exilados ou refugiados do “admirável mundo
novo”, estabelecidos dentro dos limites da Reserva. Nesta comunidade, a
economia seria descentralizada e ao estilo de Henry George, e a política
kropotkiniana e cooperativista. A ciência e a tecnologia seriam usadas como se, a
exemplo do Sabbath, tivessem sido criadas para o homem, e não (como na
atualidade), onde o homem deve se adaptar e escravizar a elas. A religião seria a
busca consciente e inteligente do Fim Último do homem, o conhecimento unitivo do
Tao ou Logos imanente, a transcendente Divindade de Brahma. E a filosofia de
vida prevalecente seria uma espécie de Utilitarismo Superior, no qual o princípio da
“maior felicidade” estaria sujeito ao princìpio do “fim último”, de modo que a
primeira pergunta a formular e responder em toda contingência da vida seria: até
que ponto este pensamento ou esta ação contribui ou interfere com a realização,
da minha parte e da parte do maior número de outros indivíduos, do fim último do
homem? (HUXLEY, 1958, p.5) 65.

No centro desta nova ideologia felicista, conforme o filósofo e agitador


cultural Franco Berardi “BiFo” (n. Bolonha, 1949), há uma promessa de
felicidade individual, de sucesso garantido, de ampliação dos horizontes de
experiência e de conhecimento. Uma promessa impossível de cumprir,
como ficou demonstrado na primeira década do milênio, quando,
impulsionados pela esperança de alcançar a felicidade e o sucesso, os
novos libertadores viram frustrados todos os seus intentos de manter sob
controle (com doses maciças de substâncias – financeiras e psicotrópicas) o

65
Baseado na novela de Aldous HUXLEY, “Brave New World”, [1932]. Disponível em:
<http://w3.ufsm.br/grpesqla/revista/dossie04/art_15.php>.
228

mal-estar que, até este momento, se mantivera oculto diante da crise dos
títulos financeiros das empresas tecnológicas.

Isto traz consequências ainda inimagináveis pela maioria, e


advertidas por Berardi (2003), como a frustração dos milhões de jovens
trabalhadores altamente qualificados que foram obrigados a trabalhar em
péssimas condições, submetidos a um estresse excessivo,
superexploração, inclusive com salários muito baixos, fascinados por uma
representação ambígua na qual o trabalhador é descrito como um
empresário de si mesmo e a competição é elevada à condição geral da
existência humana.

Vamos nos concentrar em uma destas consequências: o


desaparecimento nominal do dinheiro efetivo, tendência cada vez mais
presente nas transações de alto nível e que vai se tornando realidade nas
pequenas e médias negociações nas quais, sem circulação de notas e
moedas, desaparece o dinheiro “negro” do mercado.

Segundo o economista Guillermo de La Dehesa Romero (n. Madri,


1941), é muito provável, pelo menos em um primeiro momento, que todas
as atividades consideradas “ilìcitas” e que estão sendo financiadas com
dinheiro “ao portador” percam seu anonimato e, por isto, deixem de
acontecer (De La Dehesa, 2004).

Inclusive, a partir dos postulados do químico Agustí Chalaux de


Subirà (Sant Genís dels Agudells, 1911- Barcelona, 2006), há aqueles que
se atrevem a sugerir a emergência iminente de um novo modelo de
desenvolvimento, que oriente um modo de produção distinto do capitalismo
tal como o conhecemos até agora.

Terrorismo, tráfico de drogas, de armas, de pessoas, de órgãos


humanos, de animais e plantas, de bens roubados, de arte e patrimônio
ancestral, de objetos falsificados ou imitados, assim como a grande e
229

pequena corrupção e até a evasão fiscal são atividades que geram seu
próprio espaço e seus próprios fluxos espaciais, com a consequente
transformação de nossas cidades, as quais geram cada vez mais rápido
áreas que demandam maior segurança, menos violência e maior coesão
social entre as pessoas que, supostamente, são “boas” ou ao menos
“iguais”.

Em uma cidade onde a presença da polícia não fosse tão necessária,


os espaços monitorados ou controlados seriam menos frequentes, se
poderia reduzir significativamente o número de guerras, assaltos e atos
terroristas, e as drogas só seriam adquiridas legalmente, o que resultaria,
por forte pressão da população (cada vez mais acostumada com elas), na
sua legalização definitiva, e com isto o governo já não teria que perseguir
mais gente, especialmente em nossos paìses “pobres”.

Antes que isto aconteça, a sociedade terá que colocar na balança os


interesses daqueles que se opõem a estas mudanças sem serem
criminosos (ou melhor, daqueles que delinquem muito sutilmente ou que
seus antepassados já delinquiram e que agora desfrutam os benefícios
presentes) e, por outro lado, daqueles que realmente pretendem seguir
delinquindo apesar do maior controle, fiscal e financeiro, de suas atividades.

Como anteciparam vários autores, entre eles George Orwell,


pseudônimo de Eric Arthur Blair (Índia Britanica, 1903- Londres, 1950), há
várias décadas: existem aqueles que fogem do controle do Estado
(especialmente em países desenvolvidos), alegando que o excesso de
controle levaria à perda da intimidade e liberdade da humanidade (Orwell,
1952). Mas por trás desses argumentos há poucas pessoas, em
comparação com a maioria da humanidade, que se beneficiam do
anonimato e incentivam uma economia clandestina, prejudicando a grande
parte que é “boa”.
230

Estes argumentos, aliados à busca, subjacente ao pensamento


urbanístico desde Louis Henri Sullivan (Boston, 1856 – Chicago, 1924), da
“boa” forma da cidade na qual os valores humanos possam florescer em um
lugar adequado e permanente, um mundo saudável e belo, em termos de
Sullivan (1924), fazem com que as alternativas tecnológicas mais rápidas,
limpas, duráveis e eficientes sejam novamente pensadas, não apenas no
aspecto financeiro, mas também em questões espaciais do urbanismo
contemporâneo, preso à ideia da fragmentação, na incerteza de um suposto
“caos”.

No entanto, porque o sistema de dominação continua tentando


controlar, apesar de todo o anterior, estaríamos caminhando para um novo
paradigma que valide precisamente essa condição/ situação incerta das
coisas. Isto evidencia que viemos caminhando, a partir dos últimos dois
séculos, acompanhando uma falácia naturalista, no sentido de querer
(insistir) inferir valores a partir de fatos.

Trata-se do utilitarismo negativo ou ética baseada em um utilitarismo


pervertido, uma versão de utilidade social do progresso mal entendida, ou
ao menos mal aplicada por nossos dirigentes e estudiosos contemporâneos.
Não é segredo para ninguém que todas as implicações tanto filosóficas
quanto intervencionistas da teoria da evolução de Darwin (1871) foram um
segredo cuidadosamente guardado pelos cientistas sociais durante muito
tempo. Deveríamos, então, ser gratos por terem criado – sem
necessariamente fazer acordo conosco, “pobres mortais” – uma espécie de
mentira (subterfúgio) intelectual para proteger a humanidade de si mesma?

Segundo o filósofo Baruch (Benedito ou Bento) de Spinoza


(Amsterdam, 1632 – Haia, 1677), é provável que as ideias que sustentam a
justificação da violência de fato e da violência de jure, quando não existe um
contrato social “justo”, seja a razão que o darwinismo posterior a Darwin
defendeu na seleção natural, para justificar o uso da violência como método
231

principal – mais adequado – tanto para os fins da natureza como para uma
legitimação legal da violência de Estado.

Chomsky (1997), em seu ensaio mais recente sobre estratégias de


manipulação midiática, revela um manual de programação preparado por
uma sociedade secreta chamada Bildergerg Group, um “clube de reflexão”
que reúne pessoas extremamente poderosas do mundo das finanças, da
economia, da política, das forças armadas e dos serviços secretos.

O artigo, que incorpora as contribuições de um documento anônimo


chamado “armas silenciosas para guerras tranquilas”, de 1979, foi
descoberto “por acaso” em 1986 e publicado como apêndice no livro Behold
a pale horse, do jornalista Milton William Cooper (Long Beach, 1943 –
Apache, 2001). Neste manual, se discute em detalhe as intenções dos
“senhores do mundo” e se apresentam as principais estratégias para
manipular a humanidade: distração; criar problemas para em seguida
oferecer soluções; introduzir mudanças drásticas, gradualmente; jogar as
consequências negativas para o futuro; dirigir-se ao público como a
crianças; utilizar o aspecto emocional muito mais que a razão; manter o
público na ignorância e na mediocridade; estimular o público a ser
complacente com a mediocridade; fortalecer a autoculpa; conhecer os
indivíduos melhor do que eles mesmos, etc. (Cooper, 1991).

Superar isto requer uma mudança de pensamento. Pensemos agora


o contrário: um mundo no qual a existência de economias ocultas se
justique pelo controle estatal excessivo, o que já ocorreu tanto no mundo
capitalista como no socialista e está acontecendo agora nos países que
ainda se consideram democráticos.

O fato de que a maioria dos cidadãos pague impostos por uma


minoria, supostamente eliminaria a democracia, nesses países que se
consideram “ideais”, e, em teoria, as pessoas estariam menos dispostas a
232

pagar pelos outros, especialmente se há corrupção e as obras públicas não


se refletem na paisagem urbana.

Em nossos paìses, “mais pobres”, as pessoas preferem poupar em


dólares ou em euros, sejam economias lícitas ou ilícitas; em parte, porque a
grande instabilidade financeira traz hiperinflação e desvalorização da moeda
local, em parte, porque essa dependência se reflete também na cópia de
modelos urbanìsticos baseados em teorias que vêm “de fora”.

Mas também porque as pessoas sabem66, (ainda que não


conscientemente) que o valor do dinheiro é só uma ideia acordada entre
quem emite a moeda (o Estado) e o portador, que faz com que a diferença
do custo de produção das notas diminua ao aumentar o volume de seu uso
(especialmente se o dinheiro “fìsico” circula fora das fronteiras onde foi
emitido), e que quanto maior o valor da nota, maior a arrecadação de juros
que deixam de pagar aos bancos pela emissão da moeda.

É por isto, fundamentalmente, que existe certa cumplicidade entre


quem produz o dinheiro legalmente e quem especula (principalmente se são
criminosos que querem escapar ao controle do Estado), já que para os
bancos o dinheiro realmente é uma dívida perpétua que não tem que pagar
juros e, em troca, para quem o possui em quantidade é cada vez menos
rentável e mais custoso mantê-lo.

A incapacidade de coordenar um pacto em escala global para


eliminar o dinheiro ao portador e substituí-lo por dinheiro eletrônico é talvez
o argumento mais lógico que obriga os 200 estados (que eventualmente
estariam interessados no processo) a pressionar quem não quer ou não
pode entrar nesse meio, a que o faça, evitando ser julgados como estados
“cúmplices” do crime.

66
No final de novembro de 1910 um pacto levou à criação da Reserva Federal em reunião
que aconteceu em um clube em Jekyll Island para discutir a política monetária do sistema
bancário mundial atual.
Mais informação disponível em: < http://www.thrivemovement.com/home>.
233

Manifestações no espaço socialmente construído não se farão


esperar e já estamos vendo surgir, em apenas dez anos, cidades inteiras e
conglomerados urbano-tecnológicos de alto custo que no passado não
teriam sido possíveis, salvo através da força física da escravidão de povos
inteiros.

Existe uma classe digital que, após a crise financeira global atual, se
deu conta que possui um corpo social e carnal que pôde e poderá ser
submetido novamente à exploração do modelo de produção de símbolos e
bens semióticos e que também pode sofrer as consequências de viver em
um mundo dividido, ser submetido à exploração e ao estresse, sofrer
privação afetiva, pânico e até ser violentado e morto. Apesar da escravidão
desses escravos tecnológicos contemporâneos, seriam necessários muitos
homens-bomba para que a humanidade em seu conjunto passasse do
pânico a uma condição/ situação transconsciente, simultaneamente
individual, coletiva, cósmica e quântica.

Frente ao poder em queda dos governos dos estados - nação se


ergue um novo poder global que escapa ao controle da democracia. Os
cidadãos continuam a eleger formalmente supostos dirigentes para a
constituição dos poderes públicos e as instituições nacionais, mas o poder
real foi transferido para novos centros. O planeta é agora dirigido por uma
constelação de organizações com um papel executivo ou político.

Antes que aconteça a grande transformação planetária que dará


origem a um governo único mundial, é muito provável que continuemos a
ver em nossas cidades o aparecimento de manifestações simultâneas e
contraditórias de pobreza e riqueza imensas.

O capital financeiro legal e ilegal vai querer “lavar” seus ativos,


enquanto as pessoas observam atônitas em suas telas mentais ao desfile e
extravagância de luxo e lixo, em cidades e empreendimentos que aparecem
234

67
da noite para o dia. É mesmo possível que esse pacto já tenha se dado
por baixo da mesa e que o mundo do dinheiro físico esteja com os seus dias
contados, o que ocorreria gradativamente, mas nem por isto de forma
menos violenta.

Imaginemos agora um mundo realmente sem dinheiro, quer dizer, em


que não haja a sensação física de estar trocando coisas por outras de
maneira desvantajosa ou interessada, um mundo inconscientemente “feliz”
onde os espaços urbanos respondam a esta sensação. Será que
desapareceriam da natureza humana, como que por encanto, os
verdadeiros motivos da delinquência? Será que a fome e a miséria física de
nossas cidades precárias e mal feitas vão deixar de existir? A informalidade,
a ilegalidade e a violência de nossas favelas se transformariam em quê?
Acabaria o medo do “outro”?

Estamos nos aproximando (uns mais rápido que outros) das


características que identificam claramente a necessidade da existência de
um bem nominal com as mesmas propriedades do dinheiro, mas, desta vez,
expresso no espaço urbano construído: capacidade de armazenamento,
divisibilidade, facilidade de troca e, por certo, possibilidade de escassez.

Quais seriam as manifestações possíveis se a mudança, de tão


evidente, fosse visível?

Inicialmente, recapitulemos e vejamos como vieram se configurando


historicamente estes padrões culturais materializados em assentamentos
humanos favoráveis ao sistema de dominação que, por sua vez, favorece o
modo capitalista de produção.

67
O mesmo pacto que criou a reserva federal estadounidense, criou a maneira de relançar
a acumulação capitalista uma vez esgotada tal reserva. Falsos movimentos sociais como
Occupy Wall Street (OWS) se basiam no sistema H.A.N.D.S (How About a Non Dollar
System), que utiliza uma moeda local em lugar do dólar tradicional.
235

As possibilidades de armazenar bens, seja para uso individual ou


coletivo, foram dando origem a diferentes tipos de espaços físicos, os quais
até hoje são entendidos claramente como recipientes arquitetônicos com
aberturas e superfícies definidas.

A necessidade posterior de armazenar, classificando bens ou


funções de cada recipiente, levou à divisão dos espaços em uma gama que
busca a repetição ou a diferença, dependendo da natureza e do destino de
tais espaços, até o ponto de se tornarem edifícios, agrupados de diversas
formas, horizontal ou verticalmente.

Esta segunda operação foi muito mais complexa, envolvendo a ideia


de um território que possa ser ocupado por um número crescente de
pessoas que vivem mais ou menos de forma similar. A divisão pôde ser feita
para fora ou para dentro de um espaço previamente criado, o que exigiu
certo grau de racionalidade e formas de regulamentação.

Nesse ponto da história, a humanidade já havia superado a relação


primitiva com a natureza de mera subsistência, que lhe permitia viver em
relativa igualdade e liberdade, dispondo de mecanismos de produção e
reprodução de todos os tipos de bens, materiais e imateriais, que exigem
mecanismos reguladores como a troca de capital e a presença, ou ao
menos a existência do Estado.

O intercâmbio fácil das mercadorias gerou espacialmente os fluxos


que se transformaram em caminhos, vias e supervias (hoje não somente
físicas, em virtude da telemática e do desdobramento virtual da realidade).

Faltava apenas uma última e mais importante característica que gera


a necessidade do dinheiro: a escassez do espaço habitável, de um bem que
se esgota na medida da quantidade de pessoas que vão aparecendo no
planeta em relação com as que morrem. Habitar a terra, habitar o ar, habitar
a água e agora o espaço extraterrestre como a última fronteira, finalmente,
236

depende de uma escassez relativa do espaço e, claro, do tempo. Surge


então a proteção legal do Estado para garantir a propriedade e a coerção
legitimada da liberdade.

Voltando agora à nossa colocação. O que aconteceu até esta data na


história das cidades e do urbanismo sofreria mudanças radicais sem a
presença do dinheiro. Ou seja, sem dinheiro, sob qualquer de suas formas,
seja física ou eletrônica, mas isto não significa necessariamente que vá
deixar de existir um sistema de dominação e menos um capitalismo
disfarçado.

Imaginemos um mundo “aparentemente” sem dinheiro. As pessoas


teriam tudo o que necessitassem se as fábricas fizessem apenas o que elas
precisam, seus empregados trabalhariam menos horas e ainda assim teriam
tudo o que precisassem para viver com dignidade. Os espaços físicos de
acumulação de bens seriam reduzidos ou seriam intercambiados; para isto
teriam que ser concebidos e fabricados para este fim. Havendo mais tempo
ocioso disponível, as pessoas utilizariam mais os espaços da cidade,
gerando uma demanda por espaço público de melhor qualidade e melhor
adaptado a todas as idades.

A guerra se restringiria, assim, às suas justas proporções, ou seja,


puramente destinada a controlar o excessivo crescimento populacional;
significando, então, migrar para outros mundos e não “matar-se entre si”.
Não haveria guerras por dinheiro, nem dinheiro para financiar armas e
guerras como um negócio de mercadorias (como o petróleo, etc.). Os
países produtores dos bens mais valiosos não poderiam comê-los e, cedo
ou tarde, teriam que trocá-los por comida e outros bens básicos. Não
existiria fome no mundo.

Na ausência da sensação de escassez não haveria máfias,


açambarcadores nem especuladores, portanto, os pobres não estariam
condenados a viver em “zonas de risco” ou desvalorizadas da cidade. Nesta
237

perspectiva, tampouco haveria pobres, apenas pessoas com maior


capacidade que outras, competindo por formas de bem-estar cada vez mais
elaboradas e engenhosas. A noção de bem-estar substituiria a de
desenvolvimento e a cidade não precisaria crescer mais para ser melhor
que outras. As condições e situações que caracterizam as bordas em
nossos países latino-americanos desapareceriam: pobreza e marginalidade
extremas seriam apenas uma lembrança do passado.

Haveria menos poluição excessiva, as cidades seriam menores e


compactas. Esta nova lógica econômica e o novo sistema-mundo
permitiriam a construção ou a busca de novas cidades com novos padrões
de bem-estar e sem tanta população. Com mais recursos disponíveis e
tempo para pensar, se poderia investigar coisas mais úteis para o bem-estar
da humanidade, pondo-as em prática imediatamente: materiais de
construção mais simples e menos poluentes, veículos que rodem com
combustível mais eficiente, casas autossuficientes com peças facilmente
substituíveis e assim por diante.

Parece que não estamos buscando respostas no lugar adequado. As


cidades “fragmentadas”, altamente segregacionistas e violentas (nas quais
é possível viver como no céu e no inferno ao mesmo tempo e continuar
existindo) não são o resultado de um pensamento novo e melhor
empenhado em uma mudança do urbanismo contemporâneo, e também
não se constituem nos protoassentamentos dos quais vão emergir as
cidades do futuro.

Os fenômenos associados às políticas segregacionistas e à


fragmentação urbana, na contemporaneidade das cidades latino-
americanas, estão sendo representados, tanto na maneira (gestão) quanto
na forma (física), através do conflito entre os interesses daqueles que estão
a favor, contra ou simplesmente são indiferentes à tendência global
predominante.
238

Os “fragmentos” de uma suposta cidade contemporânea como partes


de um sistema aberto, segundo o engenheiro Bernardo Secchi (n. Milão,
1934), são apenas aspectos da tendência modernista levados ao limite,
quer dizer, para além das possibilidades de acumulação, divisão, troca e
escassez que o mundo humanamente civilizado permite.

Os urbanistas contemporâneos rasgam as vestes e tratam de


estabelecer novas teorias para explicar o óbvio: fracassamos na tentativa de
um mundo moderno que dê conta de todas as nossas fantasias de futuro e
agora temos que fazer o caminho de volta, como o filho pródigo à casa
paterna, ou melhor, à mãe natureza.

O fato de que sejamos capazes de dar respostas realmente


“modernas” (contemporâneas) aos desafios que o movimento histórico
conhecido como modernismo não conseguiu nunca oferecer depende de
que consigamos alcançar esse nìvel “cosmopolita” de compreensão acerca
de nossas realidades latino-americanas, para além das fronteiras que nós
mesmos nos impusemos ao admitir o domínio do sistema.

Não há nada lá fora, estamos sós neste universo que inventamos


para recriar a existência. Agora é hora de despertar e quanto mais cedo
melhor. Segundo Mignolo, ir “além” do ocidentalismo não quer dizer que há
um lugar melhor aonde ir, mas pressupõe ir além do sistema de dominação
planetário que se baseia em uma exterioridade interior imaginária que
chamamos civilização ocidental.

Uma das melhores maneiras de tomar consciência individual,


coletiva, cósmica e quântica de nossa realidade é questionando a ideia de
ambiguidade da cidade latino-americana. Trata-se de um mito ou de uma
realidade? E o mais importante: este questionamento pode ou não nos levar
à emergência de novas geografias e novas categorias projetuais na
arquitetura e no urbanismo contemporâneos?
239

Estas questões são cada vez mais prementes, na medida em que


não há uma cidade “tìpica latino-americana”. Assim, não pode haver um
futuro urbano único para os “nossos” paìses e, portanto, não se poderia
consolidar um bloco contra-hegemônico para aproveitar os efeitos de uma
globalização do sistema de dominação, como descrevemos anteriormente.

Esta premissa assinala a grande preocupação do milênio, que


canaliza a maioria dos esforços, tanto de pensamento como de recursos
materiais e de gestão, deste lado do hemisfério ocidental (conhecido como
latino-americano), frente ao fato de que a grande maioria dos habitantes do
território vivem ou migram para as cidades.

Assumimos a existência da América Latina como um construto


histórico e cultural em permanente redefinição e pouco questionamos a
ideia da latinoamericanidade como ponto de partida para a construção da
cidade do futuro.

Independentemente da possibilidade real de que exista essa cidade


ideal “do futuro”, sim, nos preocupa o futuro que nos aguarda em nossas
cidades latino-americanas, especialmente a continuidade da crise financeira
mundial em aspectos relacionados à problemática do habitat urbano e as
políticas públicas para melhorar os índices de habitabilidade urbana.

A habitabilidade (urbana) diz respeito a um conjunto de variáveis que


contribuem para determinar a capacidade de uma cidade tornar habitável o
seu espaço, especificamente o seu espaço público. Dependendo da
metodologia podem se identificar algumas variáveis-chave.

Primeiro, com relação a variáveis ergonômicas vinculadas a aspectos


morfológicos, a habitabilidade urbana se refere às condições de
“compacidade” e deslocamento das pessoas pelas ruas da cidade, de
acessibilidade de veículos e de pedestres, de repartição do espaço público
240

efetivamente destinado ao pedestre e o ângulo de abertura para o céu em


cada secção das ruas.

Segundo, com respeito a variáveis psicológicas (atrativas)


relacionadas a ações coletivas de caráter ético- político, a habitabilidade
urbana refere-se à avaliação global da diversidade urbana, ao grau de
atração que as atividades da cidade representam para o habitante e o
visitante e ao volume de “verde” percebido.

Terceiro, quanto a variáveis fisiológicas voltadas para o conforto, a


habitabilidade urbana remete a aspectos como as condições de ruído, a
qualidade do ar e o equilíbrio térmico de uma pessoa no espaço público.

Estes três aspectos correspondem à metodologia de análise de


habitabilidade urbana criada pela Agência de Ecologia Urbana de Barcelona
para o estudo de Mobilidade e Espaço Público da cidade de Vitoria- Gasteiz
(MARAÑÓN: CONAMA – 9 2008), que estabelece a avaliação da
habitabilidade urbana em função de um conjunto de variáveis de
compacidade, atração e conforto relacionados aos principais atributos
urbanos que cada cidade define em seus planos, programas e projetos de
desenvolvimento, tais como: mobilidade, habitação, emprego,
equipamentos, etc.

Introduzimos um quarto fator e para além dos conflitos de natureza


política, o debate da habitabilidade em termos interculturais se refere
contemporaneamente aos “modos de estar juntos” e a novos valores e
formas associadas ao vínculo social, mais secular, e que coexistem
conflitiva e criativamente em nossas cidades latino-americanas.

Há também metodologias mais complexas para determinar o índice


de habitabilidade urbana, dependendo da natureza da análise e da
disponibilidade dos dados. Por exemplo, o estudo que sustenta o índice de
habitabilidade comunitária para a região metropolitana de Santiago,
241

elaborado pela Secretaria Regional de Planejamento e Coordenação do


governo do Chile, em 2007, determina as variáveis segundo a área de
interesse tais como: as condições de moradia; a sua situação quanto aos
serviços básicos anexos à casa; a qualidade do espaço público; e o acesso
a serviços de educação e saúde, os quais estabelecem um índice de
habitabilidade urbana territorializado ou ao menos recortado por um limite
jurídico-administrativo e relacionado à ideia de qualidade de vida integral.

Estes e outros temas que interessam à análise do futuro das cidades


latino-americanas estão diretamente relacionados à “latinoamericanidade”
como um conjunto de variáveis simbólicas, que contribuem para configurar
uma estrutura de poder heteronômico na região. Entendendo o poder
heteronômico como a interdependência cultural entre heterotopias que se
articulam em redes flexíveis.

Ou seja, apenas os países que desejem uma efetiva integração


regional poderão no futuro se considerar “latino-americanos” e fazer parte
de iniciativas como o Banco do Sul, um fundo comum de reservas e uma
moeda regional, que inicialmente pode ser eletrônica, para as trocas
comerciais na América Latina.

As grandes redes de poder no mundo recorrem ao «conflito entre civilizações» a


fim de direcionar sua hegemonia de acordo com uma perspectiva dominadora do
resto do mundo. Normalmente, dominar é usado como sinônimo de civilizar. Por
sua vez, civilizar transformou-se, por extensão, em sinônimo de amestrar, aplacar
ou subjugar, seja como dominar, influir ou controlar. Mas o infinitivo «civilizar»
também esconde outros íntimos propósitos, posto que no homem há uma força
oculta e paradoxal que o incita a deliberar sobre seus atos, e esta força «oculta»
não apenas move o mundo […] (ALLEGRITTI, 2010, p. 43).

Aquelas estruturas “ocultas” que Allegritti denuncia que existem por trás do
poder político dos estados-nação seriam as mesmas que permitiram a
militância de Sebastián Francisco de Miranda Rodríguez (Caracas 1750 –
68
Cádiz, 1816) nos círculos dos illuminati e suas ideias independentistas

68
«Illuminati» significa «os Iluminados» (L.: «illuminare»: iluminar, conhecer, saber). Elite
dentro da elite. Organização secreta fundada no século XVII. Seu projeto original era
transformar radicalmente o mundo e recuperar a dignidade e os direitos que o ser humano,
242

que, sob a influência da Logia Lautaro, influenciaram importante líderes da


suposta “emancipação” como Simón José Antonio de la Santísima Trinidad
Bolívar y Palacios Ponte y Blanco (Caracas, 1783 – Santa Marta,
1830), Bernardo O‟Higgins Riquelme de la Barrera (Chillán, 1778 – Lima,
1842) e inclusive o tutor do último imperador de Portugal no Brasil, José
Bonifácio de Andrada e Silva (1763, Santos – 1838, Niterói), primeiro Grão-
Mestre da Grande Oriente do Brasil, formada a partir da lojas maçônicas, as
mesmas que hoje reorganizam a região sob a bandeira de uma suposta
“democracia socialista”.

A partir da arquitetura e do urbanismo contemporâneos tem se


proposto que sejam examinados criptograficamente temas como: a tensão
entre redes regionais internas e externas, a emigração e a imigração de
ideias, as diversas posturas de pesquisadores, arquitetos e designers, a
reorganização do Estado- nação ou o colapso das políticas da modernidade
que contribuem para refutar, mas também para reafirmar a ideia de América
Latina.

Afastando-nos das teorias da conspiração e com base em um


enfoque mais geral, senão muito claro, ao menos mais “visìvel”, advindo das
diversas aproximações disciplinares das chamadas ciências sociais e
humanas, são muitos os textos que – se forem interpretados na perspectiva
da borda e considerando a possibilidade da existência de territórios
ambíguos – podem nos orientar de maneira esclarecedora.

Autores como o advogado e geógrafo Milton Santos (Bahia, 1926-


São Paulo, 2001) e sua busca de uma “geografia latino-americana”; o

em sua perfeição originária e primitiva recebeu da natureza, destruindo o poder dos


regimes monárquicos, os quais, na época, obstaculizavam o progresso da sociedade e das
ideias de liberdade e igualdade. A Revolução Francesa e a fundação dos EUA foram
resultados de sua estratégia, incluindo o projeto fracassado de «A Grande Colômbia». Para
os Illuminati, a democracia política era um meio e não um fim em si mesmo. Ao longo do
tempo, os membros deste grupo passaram de conspiradores subversivos a dominadores
implacáveis e seu objetivo essencial agora é conservar o seu poder. Em sua versão
perdida, o povo é por natureza ignorante, estúpido e potencialmente violento e por isto, o
mundo deve então ser governado por uma elite esclarecida ou iluminada.
243

geógrafo franco-equatoriano Jean- Paul Déler, quem demonstrou a


existência de uma “estrutura urbana latino-americana”; o economista Paul
Israel Singer (n. Viena, 1932), quem assentou as bases para a
compreensão de uma economia política da urbanizaçao latino-americana; o
enfoque culturalista das sociedades latino-americanas do historiador José
Luis Romero (Buenos Aires, 1909- Tóquio, 1977); a influência íbero-
americana na arquitetura latino-americana, segundo as pesquisas do
arquiteto Ramón Gutiérrez (n. Buenos Aires, 1939); os diversos enfoques, a
partir do urbanismo da “estrutura interna” de Oscar Yujnovsky (n. Buenos
Aires, 1935); os aportes sobre o habitat marginal que nos oferece o
urbanista mexicano Jan Bazant; a crítica urbana latino-americana do grupo
do arquiteto e historiador Roberto Segre (n. Milão, 1934); as contribuições
da semiologia do grupo do antropólogo Néstor García-Canclini (n. La Plata,
1939); a ideia de habitação como território em Emilio Pradilla Cobos (n.
Palmar, 1941), etc.

Baseado em seu estudo sobre a organização urbana do Pacífico e do


Atlântico, Santos (2000, 2000b) afirma que na Íbero-América os diferentes
momentos econômicos, sociais e políticos experimentados nos diversos
períodos históricos conformaram uma geografia da urbanização marcada
por uma diferença radical entre as “fachadas” do Pacìfico e do Atlântico.

Sob um enfoque colonialista e financiado pela Oficina de


Investigação Científica e Técnica de Ultramar (ORSTOM), Déler (1981-
1989) constrói a geografia histórica da República do Equador como
disciplina de estudo e oferece um método para entender como os processos
históricos (que foram comuns a quase toda América Latina) foram
configurando a estrutura de cidades, estradas, recursos e gerando uma
consciência urbana latino-americana.

A partir do estudo de caso do processo político revolucionário dos


operários de fábricas em São Paulo, Singer (1973, 1973b) estabelece a
244

base da economia solidária no Brasil e suas repercussões sobre o


delineamento das políticas públicas relacionadas ao processo de
urbanização. Suas ideias sobre os Bancos Comunitários como ferramentas
para a erradicação da miséria trazem elementos chaves para repensar o
desenvolvimento local em um nível regional latino-americano.

Romero (2001) traça uma história imprescindível do desenvolvimento


urbano latino-americano onde se evidencia a influência europeia e suas
implicações na configuração de cidades ao mesmo tempo particulares e
gerais.

O fato histórico de que nossas primeiras cidades tenham sido


fundadas com critérios de conquista e colonização dos impérios espanhol e
português, não significa necessariamente que o resultado contemporâneo
seja um simples arremedo ou uma cópia vulgar das cidades europeias
medievais. Cidades nobres, crioulas, patrícias, burguesas e massificadas
vão se sucedendo e se sobrepondo até as atuais tendências, em meio a
semelhanças e diferenças.

A presença de uma arquitetura “ibero-americana”, de acordo com


Gutiérrez (1984), nos permite entender como foram se transferindo ideias
do velho continente ao nosso, ao longo de séculos, e como foram sendo
acolhidas as propostas urbanísticas, paisagísticas e arquitetônicas de
figuras como Le Corbusier, Jean-Claude Nicolas Forestier (Aix-les-Bains
(Savoia), 1861 – Paris, 1930) e outros.

A existência de uma estrutura interna das cidades, tomando como


exemplo as cidades argentinas, de acordo com Yujnovsky (1971), implica
que um sistema de decisões políticas, tais como a tradição, o sistema de
mercado, o governo e o planejamento, determinam a estrutura das políticas
públicas na maioria dos casos, longe das teorias que as fundamentam ou,
pior ainda: fundando-se em teorias “afastadas” da realidade cultural, social e
política, às quais devem sua finalidade objetiva.
245

As hipóteses acerca das periferias urbanas que Bazant (2001) vem


desenvolvendo, baseado em seus estudos sobre a cidade do México,
discriminam a forma como a cidade “formal” se constrói, a partir de uma
normatividade, uma técnica reguladora abrangente do emprego, dos usos e
suas intensidades através de categorias projetuais de edificações e
conjuntos específicos em etapas muito planejadas e completas, enquanto
que a outra, a cidade “informal” se comporta e se autoconstrói gradual e
“progressivamente”, com ênfase na habitação como espaço prioritário.
Conclui, em sua análise, que tal “modelo” não encaixa nos padrões de
regulamentação oficiais e propõe normas urbanas “mìnimas” que
respondam à periferia e que, acima de tudo, contribuam para o
ordenamento do território e ambiental.

A expansão urbana descontrolada sobre qualquer periferia da cidade teve como


principal efeito a deterioração do meio ambiente. As famílias de baixa renda se
estabeleceram e foram transformando as condições naturais de seus lotes: se o
terreno estava localizado numa zona íngreme, terraceavam; se estava em partes
baixas aterravam; se tinha rochas, elas eram demolidas; se estava próximo de um
leito pluvial, este foi reduzido ou coberto; se tinha vegetação arbustiva, foi retirada;
se tinha árvores, foram cortadas; enfim, uma transformação total do meio natural ao
meio urbano. Se em um lote apenas estas mudanças podem parecer
insignificantes, a soma dos milhares de lotes alterados na escala urbana foi
devastadora (BAZANT, 2001, pp. 192, 193).

O trabalho interdisciplinar do grupo de Bazant reconhece que o enfoque


tradicional do planejamento urbano de atribuir usos e intensidades ao solo
urbano e rural teve resultados ineficazes porque, por um lado não considera
uma visão de borda e, por outro, se evidencia uma incongruência das
propostas urbanas estáticas (em sua maioria do Estado mexicano) com as
realidades dinâmicas das periferias urbanas de baixa renda latino-
americanas. Ambos os fatores vêm obrigando os governos a ceder seus
espaços de poder, passando de um planejamento urbano totalizante a um
ordenamento territorial estratégico por “franjas periféricas”.

As contribuições à historiografia urbana latino-americana vieram


evoluindo do positivismo dos escritos urbanísticos de finais do século XIX
até as posições estruturalistas e críticas das pesquisas de Segre (1991),
246

quem pessoalmente e junto com sua equipe conseguiu diferenciar a história


urbana como disciplina do urbanismo contemporâneo e introduzir a ideia de
uma arquitetura e um urbanismo latino-americanos baseados em uma
estrutura ambiental.

É lícito afirmar que, a partir de todas essas intervenções, a tradição histórica da


cidade latino-americana recuperou sua verdadeira significação cultural comunitária
É necessário que essa tomada de consciência da necessidade social dos valores
simbólicos do espaço não fique restrita a estruturas específicas, mas determine a
configuração do ambiente global (SEGRE, 1991, p. 310).

Em A Cidade dos Viajantes (1996), García-Canclini e seu grupo de estudo


relatam como foi o processo de produção de imaginários urbanos a partir do
modo de produção de imaginários simbólicos e apresentam uma visão da
cidade do México distinta daquela dos urbanistas e arquitetos. A experiência
dos viajantes metropolitanos é de caos e congestionamento, de solidão na
multidão, de aprendizagem para cruzar territórios desconhecidos e se
confrontar com as múltiplas culturas que se misturam no tumulto.

Desta maneira, nos mostram um caminho para a latinoamericanidade


a partir da interculturalidade, para entender o sentido do “popular” de nossa
arquitetura, nossa arte, nossos costumes, etc. Em suma, nosso espírito de
borda que estimula a indefinição de culturas “hìbridas” como estratégia para
enfrentar os desafios da modernidade inacabada, abandonando-a em busca
de nosso próprio destino.

Para entender como veio se configurando a ideia da habitação como


território, desde a época em que o território era considerado casa até hoje,
convém seguir a contribuição de Pradilla-Cobos (1982, 1999, 2011), a partir
da análise crítica do desafio da habitação na América Latina, passando pela
caracterização da problemática das metrópoles e megalópoles latino-
americanas até a condição e situação das cidades contemporâneas
compactas, fragmentadas e dispersas.

São tantas as contribuições e tão variadas que juntos, pesquisadores


e documentos constituem uma visão valiosa da cidade latino-americana.
247

Que este olhar ou esta cidade seja ou não ambíguo e até transitório é algo
que, dependendo do enfoque, poderia ser mais positivo do que negativo: há
tantas cidades latino-americanas como olhares disciplinares e estes se
complementam na complexidade da realidade.

Para tentar responder a questão mais premente, podemos dizer que


diante da crise financeira internacional, nossos países provavelmente
reuniriam suas reservas de dólares, produto das exportações que hoje
somam dois bilhões, criando uma nova arquitetura financeira regional. O
restante dos países do continente provavelmente entrariam em queda e
terminariam beneficiando o Primeiro Mundo com mercadorias e salários
mais baratos, refletindo em suas cidades através do crescimento da
pobreza e da deterioração do meio ambiente construído, mais favelização e
menos empreendimentos transformadores.

De acordo com esta análise, para uma integração através de políticas


comerciais e monetárias comuns, nossas cidades deveriam se preparar
desde agora para assumir parâmetros de políticas públicas equivalentes,
como o “bônus por poluição evitada”, também chamado bônus do carvão,
que foi proposto inicialmente pela economista e professora de matemática
argentina Graciela Chichilnisky, em 1993.

Enfim, são necessárias ações semelhantes que respondam à


proposta do Protocolo de Kioto sobre alterações climáticas, o que reduziria
significativamente a produção industrial obsoleta, ambientalmente falando,
com sua consequente e indispensável relocalização e reabilitação de usos e
espaços urbanos, especialmente no que se refere aos vazios deixados por
esta transformação, porque, como afirma Borde (2007), “a renovação
destes vazios centrais pode desempenhar um papel muito importante na
construção de uma cidade socialmente mais justa”.
248

69
Recentemente vem se configurando as “bolsas verdes” como base
para a operação dos mercados financeiros e como uma oportunidade para a
gestão dos recursos naturais na Colômbia e em muitos outros países latino-
americanos e do mundo. Resulta da comercialização de créditos de carbono
e da reposição florestal que as empresas são obrigadas a fazer pelos
abusos ambientais. Mas este e outros mecanismos em vias de formação
também se referem ao intercâmbio de serviços ambientais entre
comunidades que causam desconforto e benefícios e que configuram, junto
a estes agentes de ação do capitalismo nacional e transnacional, uma
plataforma de negociação de bens existentes e possivelmente existentes
(caso da biodiversidade tão falada), como a energia renovável, a biomassa
e o tratamento de resíduos.

O grande desafio da economia de cada nação é a dívida. Os


governos não têm a quem pedir emprestado a sua moeda nacional. Uma
dívida nacional põe os banqueiros, inegavelmente, no controle da
quantidade de moeda nacional e, portanto, no controle da política nacional.
Este é o nosso principal evento a modificar hoje em matéria econômica.
Não somente não é possível imprimir nosso dinheiro, pedimos emprestado
aos bancos cada dólar de nossa economia e temos que pagar juros sobre
eles. Portanto, realmente temos que alugar o nosso dinheiro (especialmente
aos maiores bancos).

Um país submetido ao poder do capital financeiro, assim, agrupado


com outros países em uma união soberana pode e deve criar seu próprio
dinheiro sem dívida. Este é o grande temor da UNASUR.

69
A Bolsa Verde é um mecanismo financeiro de reconhecimento do valor dos serviços
ambientais. Foi proposto inicialmente no âmbito da primeira oficina nacional de serviços
ambientais em Cartagena das Índias, (14 – 16 de fevereiro de 2007).
249

3.4._Limites Aparentes na Segregação Contemporânea70

O que a gente vê fragmentado é realmente o nosso jeito fragmentado de olhar as


coisas que estão unidas. Recomendo a humildade na arte de planejar como
estratégia alternativa no observar os processos coletivos e individuais, através da
qual o observador sabe-se observado e observa-se nos demais.

SIERRA-MORALES, Mauricio. “A
reconfiguração dos espaços urbanos a
partir das periferias do poder”, projeto de
tese de doutorado, PROURB-UFRJ, Rio de
Janeiro, 2008.

É preciso um questionamento radical da ideia de realidade como limite da


existência, para compreender a natureza da segregação social e sua
manifestação na fragmentação espacial da cidade contemporânea e, então,
relativizando estas realidades tratar de entender o que acontece em termos
intangíveis e físicos. Por exemplo, nas áreas de transição entre favela e
bairro, entre campo e cidade, entre aglomerações metropolitanas, entre
“arranjos” urbanorregionais, entre paìses, etc.

A [...] concentração, conhecimento, mobilidade, conectividade e proximidade são


elementos essenciais na configuração dos “arranjos” urbanorregionais e
determinantes de sua condição de propulsores na inserção do Estado- Região na
divisão social do trabalho. Entretanto, seus efeitos não se estendem ao conjunto
dos municípios, mas privilegiam apenas aqueles (ou parte daqueles) que já
ostentam um mínimo de condições técnicas, científicas, institucionais e culturais
capazes de contribuir para a reprodução e acumulação de capital, mantendo os
outros à margem do processo (MOURA, 2009, Introdução).

O procedimento para desvendar os limites aparentes da realidade


contemporânea, que se manifestam no espaço urbano da cidade do Rio de
Janeiro, parte de um primeiro esquema destinado a varrer alguns sintomas
que podem indicar aspectos relacionados à segregação social e à
fragmentação espacial na cidade e segue com a abordagem de uma
metodologia que busca, em última instância, ressignificar o princípio
inacabado da racionalidade estético-expressiva da modernidade na
contemporaneidade.

70
Ensaio STA: “Modelos de Urbanismo e Segregação Espacial”, professora: Sônia
Azevedo Le Cocq d'Oliveira, PROURB – UFRJ, R.J. 2008.
250

Um aspecto da metodologia utilizada para falar corretamente da ideia


de borda à borda (isto é, pessoas em situações marginais e condições
extremas) é parte da não-existência, entendendo que a experiência só
alcança um grau maior de objetividade ao aceder a um maior grau de
intersubjetividade. Algo que os situacionistas trouxeram, faz tempo, para o
urbanismo contemporâneo, mas que não foi totalmente percebido devido
aos critérios tanto da objetividade alienante quanto da subjetividade
antropocêntrica predominantes nas ciências.

A primeira ideia, um tanto exagerada, que vem à mente quando se


escuta a palavra “favela”, no Rio, é a de um gueto ao estilo do de Varsóvia,
da Segunda Guerra Mundial.

Ringelblum nos descortina, nas traduções de seus escritos póstumos


por Katarzyna Olszewska Sonnenberg (2003), o significado histórico da
palavra gueto: segregação social e fragmentação espacial consensual e
patrocinada por promotores e vítimas de um futuro holocausto. Uma
culpabilidade compartilhada entre aqueles que vivem a experiência e quem
tem a responsabilidade de denunciá-la.

Considerando o acima exposto, transcrevo algumas linhas das


primeiras impressões que tive enquanto estudante bolsista do governo
brasileiro.

Da minha janela, localizada privilegiadamente numa zona de transição entre a


favela Santo Amaro (uma das muitas favelas do Rio de Janeiro) e o bairro do
Catetê (um dos mais tradicionais da cidade), eu observo, num misto de alegria e
esperança, as crianças levantando suas pipas de plástico sobre as lajes de
concreto que servem de coberturas para as casas. Descendo as escadas
(geralmente fétidas de urina e fezes humanas) chega-se a uma área configurada
por algumas ruas e edificações que não pertencem nem a favela nem ao bairro.
Neste lugar acontecem coisas que não cabem na lógica formal da cidade
fragmentada em que vivemos. Nota-se que não existem barreiras físicas à
segurança (como, por exemplo, portas destrancadas à entrada das vilas
residenciais); os “bandidos” da favela são proibidos de “mexer” com os moradores
desta interface com o bairro do Catetê; e a polícia (que tem um departamento a
cem metros de distância) tampouco exerce formalmente o controle. Na entrada da
pracinha – referenciada por um bar anônimo- que liga o final das ruas Santo Amaro
e Pedro Américo, há um limiar marcado com lixo, estrategicamente disposto, onde
um grupo de prostitutas jovens assiste à passagem dos transeuntes em meio ao
251

trânsito dissimulado de supostos mototaxistas. Vazios urbanos de uso clandestino


coexistem com espaços de trabalho e de jogo ao ar livre, como lavagem de carros,
mercadinho de frutas, mesa de sinuca de um lado da rua, a “Kombi” do “x-tudo”,
etc. É esta condição intermediária, neste caso, que torna menos dura e evidente a
transição entre a favela e o bairro 71.

Para reportar aos habitantes desse lugar, neste “limen” urbano que
claramente descreve pessoas que estão em uma espécie de limiar (entre
realidades distintas), não basta considerar o óbvio do ponto de vista físico:
aqueles que habitam o limiar podem ser vistos como uma espécie de
iniciados; já não somos o que éramos para nos converter em outra “coisa”
que ainda não somos.

Assim como os habitantes da zona de transição entre a favela Santo


Amaro e o bairro do Catetê estão numa interface liminar de sua existência,
eles igualmente são obrigados a abandonar todas as regras associadas a
sua primeira socialização para assumir novos parâmetros que nada têm que
ver com os anteriores. Nesta transição, eles podem ser percebidos, na
perspectiva do imaginário social, como indivìduos “perigosos” e
“contaminados”.

Vivemos em uma sociedade intervalar, em uma sociedade de


transição paradigmática para uma nova sociedade de borda/ à borda. Esta
condição e os desafios que ela nos apresenta exigem uma racionalidade
ativa, em trânsito, tolerante, livre de certezas paradigmáticas, movida pelo
desassossego que ela mesma deve impulsionar. Estar à margem e fazer
parte de um todo distinto, ainda que fora do corpo principal.

Uma borda como liminaridade, que faculta a existência entre uma


condição de segregação/ inclusão, simultaneamente estando entre uma
situação de fragmentação/ integração com relação à cidade, mostra os
limites aparentes de um território em transição, subscrito num espaço de

71
LE COCQ, Sonia, + turma do estúdio de doutorado em 2008, “Percurso pela Travessa
Petúnia na área de transição Bairro Catetê – Favela Santo Amaro”, (Anotações de aula),
PROURB-UFRJ, Rio de Janeiro, Fevereiro de 2008.
252

poder, o qual é exercido até onde há uma dominância relativa de uma força
sobre uma família, um espaço de produção, um mercado de trabalho, uma
comunidade, uma cidade, um mundo.

No entanto, são estes limites aparentes que definem a forma urbana


bem como as comunidades que aí convivem. Ao considerar a natureza
dinâmica de nossas sociedades contemporâneas, há que estabelecer uma
noção intermediária entre os dois processos que coexistem nessa tendência
entre: a segregação e a inclusão de pessoas no espaço, conforme
estabelece Turner (1980), com seus conceitos de liminaridade e
communitas.

A instabilidade presente na cidade contemporânea é uma clara


evidência de que estamos em um período de ajuste, um tempo entre
tempos no qual a sociedade está buscando a distância adequada (estágio
de liminaridade) entre assentamentos humanos (estágio de communitas).

Com relação à condição urbana dispersa que caracteriza a


contemporaneidade e que faz parte da manifestação física do fenômeno de
segregação social, Secchi retoma a fábula dos porcos-espinhos, de
Schopenhauer, como uma metáfora para significar e em certa medida
justificar a segregação na cidade contemporânea.

A cidade contemporânea, cidade ainda instável, talvez esteja à procura da distância


adequada. Mas isso, ainda não diz o que significa «frio», nem «muita dor»
(SECCHI, 2006, p. 95).

Poderíamos estar vendo a expressão física do fenômeno contemporâneo da


segregação social com um olhar obsoleto e, assim, visando uma pretensa
solução que vai trazer apenas mais marginalização e fragmentação.

É preciso reconhecer que, embora a agregação de seres humanos


em prol de interesses comuns (que resulta na construção social do espaço)
seja um processo que o homem almeja desde a Antiguidade até hoje, este
desejo bem poderia ser o resultado de uma necessidade e não um desejo,
253

já que na prática a comunidade (existencial, normativa e ideológica) não


pode ser limitada a um determinado espaço e tempo.

A integração que edifica a comunidade na cidade só pode unir as


pessoas momentaneamente; por isto, existem as áreas de transição entre a
favela e o bairro que são, ao mesmo tempo, interfaces e interfases: umbrais
de transição física, tolerados e entendidos como uma fase temporária que
nunca será uma condição nem uma situação permanentes. Isto, segundo o
pensamento modernizante que busca regular a sociedade.

Assumindo um compromisso para além de uma linha de pensamento


pré-moderno/ moderno/ pós-moderno, procuraremos demonstrar (através
de uma prática consciente individual-coletiva) que as áreas de transição são
como novos espaços (neste caso, intraurbanos), que emergem como
possibilidades para uma reconfiguração de espaços de poder desde/ e nas
bordas.

Esse poder da vida que cada um naturalmente exerce nas áreas de


transição, deve funcionar para abrir caminhos mais do que para estabelecer
limites e isto deve ser feito visando um acordo, um “pacto”, ainda que
momentâneo, mas válido para cada ocasião.

Estamos voltados para a busca de uma representação urbana


emancipatória. Formas ou modos de representação mais abertos,
incompletos ou inacabados adequados ao nosso tempo, que permitam
transcender a visão moderna da modernidade, sabendo que não vamos
encontrar a solução, mas, talvez, o que precisamos para formular a solução.
A relação direta entre a forma urbana e o comportamento cidadão fica
obsoleta em termos dos ideais inacabados da modernidade.

Segundo Boaventura de Sousa (2001), a regulação e a emancipação


são dois processos aparentemente antagônicos que fatalmente se
retroalimentam na história da humanidade e que contêm duas
254

representações fundamentais da modernidade inacabada: no âmbito da


regulação, o princípio da comunidade e no terreno da emancipação a
racionalidade estético- expressiva.

Nesta proposta, trataremos de ressignificar o princípio inacabado da


comunidade de uma perspectiva teórica, enquanto que ressignificar o
princípio inacabado da racionalidade estético- expressiva da modernidade
vai exigir uma abordagem prática, de cujo processo metodológico vamos
nos ocupar mais adiante, no final deste capítulo e como preâmbulo de uma
supostamente “nova” caracterização geral da teoria da borda/ à borda
desde a omnijetividade não antropocêntrica, que inclui em si mesma tanto a
objetividade alienante quanto a subjetividade antropocêntrica.

A reconfiguração de espaços de poder desde/e na borda/à borda se


dá a partir da construção de uma subjetividade individual e coletiva,
mediante uma transconsciência suficientemente adequada para enfrentar a
futura concorrência entre o paradigma dominante e o paradigma emergente,
e da exploração, (através da cabotagem), das possibilidades
emancipatórias da comunidade e da racionalidade estético-expressiva.

Quando a invenção se transforma em patrimônio é porque deixastes


de viver na borda, porque deixastes de ser um iniciado.

O território da borda não aceita um senso comum tão “comum”, na


medida em que exige um “novo” sentido comum que também seja
participativo. Nas áreas de transição se vive concomitantemente a prática
da utopia e a utopia da prática, uma vez que a participação comunitária
raramente consegue se estruturar através de identidades porque, então,
perde a sua condição de liminaridade, de umbral metafísico e, em certo
sentido, também a sua condição material ao gerar a sua própria
obsolescência.
255

Mas há realmente a possibilidade de navegar por essa borda entre


paradigmas da modernidade e da contemporaneidade sem se estabelecer
em nenhum? E mais, essa busca incessante tem algum sentido prático na
vida?

Para além da minha janela do mundo existe o mundo. Compreender


o mundo como mim mesmo supõe encontrar uma motivação causal fora de
mim que ultrapasse a seguinte observação de Schopenhauer, feita em
1928, traduzida pelo filósofo Roberto Rodriguez Aramayo (n. Madri, 1958).

O mundo é minha representação: esta proposição é uma verdade para todo o


ser vivo e pensante, ainda que só ao homem seja dado ter consciência dela
[de verdade]; a partir do momento em que ele [ser em si] é capaz de chegar a
esse estágio [ser para si], podemos dizer que nasceu nele o espírito filosófico.
Quando o homem conhece esta verdade estará claramente demonstrado que
ele não conhece nem um sol nem uma terra, mas apenas olhos que veem o
sol e mãos que tocam a terra; que o mundo que o cerca não existe mais que
como representação, isto é, na sua relação com outro ser: aquele que
percebe, ou seja, ele mesmo. Se existe alguma verdade a priori é esta, pois
ela expressa o modo de toda a experiência possível e imaginável, conceito
muito mais geral que os de espaço, tempo e causalidade que o implicam
(SCHOPENHAUER, 1928, p. 25).

A representação do mundo, que é o meu mundo, tem, segundo Secchi, ao


menos dois pontos de vista da dinâmica que promove a ipseidade: entre o
ser em si e o ser para si. O mundo como representação (ser em si) tem um
primeiro ponto de vista na representação submetida ao princípio da razão
suficiente (como objeto da experiência e da ciência).

Um segundo ponto de vista do ser em si corresponde à


representação considerada independentemente do princípio da razão (a
ideia platônica. A finalidade da arte). Como ser para si, envolve a ideia do
Poder na ideia do Ser. O mundo como vontade tem um primeiro ponto de
vista: a objetivação da vontade. Um segundo ponto de vista do ser para si
coloca a possibilidade da vontade chegar a conhecer-se ela mesma, a
vontade de viver que se impõe e logo se nega.

O primeiro passo, então, para sair em busca de uma representação


urbana contemporânea “emancipatória” é reconhecer a intersubjetividade e
256

a interobjetividade como resultado das múltiplas formas de subjetividade e


de objetividade emergentes na borda/à borda.

A subjetividade emergente vive na liminaridade das áreas de


transição paradigmáticas, aproveitando a condição de borda como uma
forma privilegiada de sociabilidade. Viver o limen é viver em suspensão, em
um espaço vazio, em um tempo entre tempos. O navegante paradigmático,
ao ser capaz de eleger de seu passado aquilo que quer esquecer ou
modificar, utiliza a criatividade e o oportunismo oferecidos pelo uso seletivo
das tradições.

Na cidade nova, projetada para interceptar os desejos também os antecipando, as


fronteiras entre palco e plateia perdem os seus contornos e todos os espaços
tendem ao limiar (AMENDOLA, 1997, p. 160).

Convém assumir esse campo relacional como um “umbral” dotado de uma


contextualidade transcendente e cambiante. Transcendente porque
reconhecer e superar a negação de um não tempo e um não espaço
implica, segundo Izquierdo (1999), aceder a um “novo” tempo-espaço
absonito, ou seja, sem princípio nem fim.

Cambiante porque significa ter que inventar tudo, inclusive o próprio


ato de inventar. Transformar os velhos modos de vida em outros novos que,
ao limitar as mudanças posteriores dos que virão a este lugar, se convertam
depois de tudo em «novos velhos» modos de vida.

As áreas de transição entre favela e bairro (enquanto espaço) não


estão totalmente delimitadas, nem física nem mentalmente, e não estão
mapeadas convenientemente, no sentido que a cartografia convencional
não representa a intersubjetividade de seus habitantes e menos a
interobjetividade do espaço habitado. Isto favorece não apenas a inovação
e a instabilidade das relações sociais, senão que também a transitoriedade
e a temporalidade espacial que desloca as raízes culturais e favorece o
movimento: “a hierarquia na fronteira é débil, por estar afastada dos centros
de poder”, adverte Boaventura de Sousa (2001).
257

“A subjetividade emergente se compraz de viver na fronteira. [...] Dentre as


principais características da vida na fronteira que são pertinentes para esta tese,
distingo as seguintes: uso altamente seletivo e instrumental das tradições trazidas à
fronteira por pioneiros e imigrantes; invenção de novas formas de sociabilidade;
hierarquias débeis; pluralidade de poderes e ordens jurídicas; fluidez das relações
sociais; promiscuidade entre estranhos e ìntimos; mistura de heranças e invenções”
(BOAVENTURA de Sousa, 2001, p. 193).

Para desvendar os limites aparentes da segregação urbana contemporânea


é preciso detectar esses “sintomas” segregacionistas, descritos acima,
reconhecendo, mas ao mesmo tempo procurando superar o caráter
antropocêntrico de nosso raciocínio, através da intersubjetividade, até
chegar ao entendimento, na omnijetividade não antropocêntrica, que toda
separação carece de fundamento ontológico e de validade enquanto
experiência humana.

Dependendo da orientação de nossa pesquisa, encontramos critérios


segregacionistas de raça, sexo, classe, etc., tanto a nível global e regional
(Norte- Sul, Oriente- Ocidente), como ao nível da cidade e da localidade,
neste caso Rio de Janeiro (Zona Sul - Zona Norte, cariocas – cariocas “da
gema”, estrangeiros – cariocas, brasileiros – estrangeiros, brasileiros –
cariocas, residentes do bairro – turistas).

Sem negligenciar a discussão anterior, a segunda etapa da tentativa


desse percurso, esse trajeto consciente pelo interior das interfaces, consiste
em desenvolver um sistema que comunique as características
segregacionistas à superfície do plano e à sua escala correspondente.
Surge, então, a necessidade de gerar escalas de aproximação da
problemática tendo em conta que: para este tipo de trabalho compartilhado
é mais importante a orientação que a velocidade, como critério para se
localizar no Rio de Janeiro, já que a vivência não depende do espaço físico
senão da habitação e é questão da memória ter acesso ou não a um lugar
determinado, gerando a experimentação do tempo indeterminado.

O caso da falsificação literária de um mapa de ficção do poeta e


escritor Jorge Francisco Isidoro Luis Borges (Buenos Aires, 1899- Genebra,
258

1986), quem imagina um império aonde a ciência da cartografia se torna tão


precisa que somente um mapa na mesma escala do império será suficiente.

Do rigor na ciência: [...] Naquele Império, a Arte da Cartografia atingiu tal Perfeição
que o Mapa de uma só Província ocupava toda uma Cidade e o Mapa do Império
toda uma Província. Com o tempo, estes Mapas Desmesurados não satisfizeram e
os Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império, que tinha o Tamanho
do Império e coincidia pontualmente com ele. Menos Dedicadas ao Estudo da
Cartografia, as Gerações seguintes não sem Impiedade o entregaram às
Inclemências do Sol e dos Invernos. Nos desertos do Oeste perduram
despedaçadas Ruínas do Mapa, habitadas por animais e por Mendigos; em todo o
País não há outra relíquia das Disciplinas Geográficas (BORGES, 1935) 72.

Borges nos apresenta o critério de acessibilidade como um fator


determinante de segregação social no espaço, já que apesar de sermos
capazes de tomar contato com o lugar na escala “um por um” – como
aproximação máxima e mais alta relação de complexidade com a
problemática - não poderíamos utilizar um mapa da realidade do tamanho
dela e, por isto, é importante o desenvolvimento sistemático de cada
cartografia e a definição da escala de representação da informação obtida.

Assim como a informação e a simbologia que queremos representar


de antemão, o importante para nós seria uma construção com certo grau de
autonomia que deveria ser o mais participativa possível para que o
processo de extração de dados, análise, validação e conclusões seja, por
sua vez, o mais útil possível aos que habitam a interfaz.

As considerações sobre a área de análise como área de transição,


definida a partir das suas bordas, requerem uma reconstrução teórica da
ideia de centro urbano e da ideia de poder do centro (que define a dita
centralidade).

72
Ficção: Suárez Miranda, Viagens de Homens Prudentes. Livro quarto, cap. XIV; Lérida:
[1658] parágrafo literário publicado sob o pseudônimo de B. Lynch Davis como “Do rigor da
ciência” em 1935.
259

Referimo-nos então a ideia de bordas e centros organizados


hierarquicamente através de estruturas de poder. Mas não um poder em
abstrato, mas de alguém encarnado, corporificado em uma entidade.
Aparece, assim, a primeira ideia de poder como domínio: seja do governo,
da nobreza, da igreja, ou qualquer outra entidade conhecida socialmente e
inclusive de entidades à margem da lei, do controle familiar e de tudo o que
implique mudar a realidade de maneira convencional. Como consequência,
as estruturas de poder necessariamente não são reconhecidas e toleradas
em termos sociais e culturais.

Estamos interessados nesta tese de bordas em compreender como


se exerce esse tipo de poder sobre o espaço pela consciência individual,
expandida através de uma entidade, ao ir recriando a noção antropológica
da ideia de lugar, presente na abordagem do domínio simbólico do espaço
em Augé, e a categoria sócio-jurídica de território (não confundir com as
noções modernas de nação e estado).

Se nos detivermos um instante na definição de lugar antropológico, veremos que é


antes de tudo algo geométrico. Pode-se estabelecê-lo a partir de três formas
espaciais simples [a linha, a interseção de linhas e o ponto de interseção] que
podem se aplicar a dispositivos institucionais diferentes e que constituem de
alguma maneira as formas elementares do espaço social. [...] Estes lugares têm
pelo menos três características comuns. Consideram-se (ou os consideram)
identificatórios, relacionais e históricos (AUGÉ, 1997, pp. 58, 62).

Não confundir as estruturas de poder simbólico (formas, objetos e


ideologias) com a estrutura do poder oculto exercido pelas redes secretas,
legal ou ilegalmente consentidas e sobrepostas. Quanto a isto e no que diz
respeito à interface analisada entre favela e bairro, é particularmente
complexo identificar com clareza o centro das bordas, nessa relação oculta
entre dominantes e dominados.

Antigamente, quando a cidade era vista como um fenômeno


hierarquizado, concentrado ou ao menos delimitado, o centro definia a sua
periferia. Hoje, que reconhecemos o caráter fragmentado da cidade
contemporânea, nós encontramos vários centros: geográfico, político,
260

econômico, social, cultural (para citar apenas alguns), e verificamos que o


centro de poder (que antes definia a centralidade) está permanentemente
se deslocando e metamorfoseando.

A partir de finais de século XVI, enquanto na Europa pós-medieval


estava se formando a sociedade moderna cujo tema era a identidade “do
sujeito”, bem definida e localizada no mundo; aqui, aonde vivemos hoje,
existia um mundo encantado: o cosmos, a natureza e as coisas tinham
significado na medida em que os seres humanos faziam parte indissolúvel
do todo. Cinco séculos depois, na borda da história contada e estabelecida
como tal a partir dos mesmos centros de dominação que tornaram possível
a dita modernidade, no início do novo milênio cristão ocidental, racional e
ainda dominante, reconhecemos que a fragmentação física de nossas
cidades é um fenômeno que está intimamente ligado à chamada crise de
identidade do sujeito moderno, fruto das mudanças estruturais que já
fragmentaram e deslocaram as identidades culturais de classe, sexualidade,
etnia, raça, nacionalidade, cidadania, entre outras.

Reconhecemos, também, que as estruturas de poder das sociedades


capitalistas contemporâneas são diversas e interdependentes; que elas
simultaneamente tendem à hegemonia e à heteronomia e que têm
dimensões ou espaços diversos para o exercício da dominação, numa
relação de intercâmbio social que continua desigual, claramente entendida
como segregação social, que se manifesta na fragmentação do espaço.
Para os estrangeiros que vivem como turistas na cidade do Rio de Janeiro,
seu centro é a borda da praia, e o equivalente para quem habitualmente
vive ou percorre a área que estamos analisando é a Rua do Catetê 73.

Retomando as noções de intersubjetividade e interculturalidade da


representação da realidade que estamos vivenciando, reconhecemos que:
no caso da área de transição favela-bairro, a centralidade possui uma

73
Referência ao palácio construído pelo imperador de Portugal no Brasil com o nome do
último cacique indígena da localidade: Catetê.
261

dinâmica, podendo afetar de diferentes maneiras os usuários do espaço, em


função de tempos e intensidades e produzindo diversas linhas e focos de
centralidade. Por exemplo, um ancião que normalmente vive em Ipanema,
toma o metrô e, em poucos minutos, chega a um concerto no Palácio do
Catete, deslocando assim seu foco de centralidade.

Outra maneira de delimitar e orientar o nosso percurso para o estudo


das áreas de transição é por zonas já definidas administrativa e
socialmente, bairros, favelas, concentrando-se na determinação dessas
zonas intermediárias, distinguindo claramente os espaços imaginados do
que eles são realmente.

Os usos do solo, especializados ou mistos, concentrados ou


dispersos, legais ou ilegais, são outra forma interessante de demarcar
nossa análise, entendendo que o grau de proximidade ou afastamento entre
os habitantes da área está intimamente relacionado com o nível de
tolerância/ intolerância entre compatibilidades/ incompatibilidades das
atividades residenciais, comerciais, institucionais, etc.

É tão importante compreender o grau de porosidade das edificações


como os limites físicos definidos por elas. Não basta estabelecer a
delimitação através de vias e contornos de espaços abertos e fechados. Isto
se torna mais complexo ainda ao nos aproximarmos dos conceitos de
público/privado. Porque, paralelamente ao processo de privatização do
espaço público está crescendo o número de condomínios fechados, que
mantêm atividades comunitárias em seu interior, tanto nos bairros como nas
favelas.

Como um terceiro procedimento metodológico – imprescindível a esta


análise – se coloca a definição de critérios de aproximação analítica às
políticas públicas segregacionistas nos espaços de transição entre favela e
bairro. Neste sentido, retomamos duas maneiras de acercamento da
realidade: as dimensões analíticas, desde um enfoque estruturalista
262

clássico, e as dimensões estruturais, definidas segundo os modos de


produção de poder sobre a sociedade segregada capitalista, sob um
enfoque renovado da teoria crítica.

A título de exemplo, a primeira aproximação da realidade


mencionada, vista como uma zona de risco, exige de nós, primeiro, a
compreensão do risco como produto da maneira como vivemos.

Portanto, uma postura aglutinante poderia definir o desastre como um processo de


construção social, no tempo e no espaço, que se expressa na manifestação de
efeitos e impactos contundentes sobre uma sociedade e seu ecossistema, produto
do desencadeamento de um fenômeno natural ou socionatural que ultrapassa a
capacidade de resistência da comunidade atingida (BOLÍVAR, 2010, p. 52).

A percepção do risco, na perspectiva da teoria dos sistemas, foi a primeira


abordagem que o urbanista Huáscar Bolívar Vallejo (n. Cochabamba, 1969)
74
utilizou em nosso percurso experimental para analisar as questões que
são características da segregação e da fragmentação; as mesmas que são
válidas para nossas cidades latino-americanas. Um estudo das dimensões
da realidade como universos tangíveis (o natural, o construído) e intangíveis
(o social, o político, o econômico, o cultural, o ambiental).

No entanto, esta aproximação é insuficiente sendo, pois, necessário


superar o enfoque sistêmico que é ótimo para analisar o conflito analítico,
mas não o conflito de interesses que capta as relações de poder entre as
dimensões analíticas da realidade. Parcerias, disputas e indiferenças que
estabelecem o espaço público (semipúblico na antiga ágora grega) como a
arena visível onde se manifestam estas relações.

Bolívar, embora reconhecendo que o fenômeno da segregação


também relativiza a natureza público-privada do espaço, ao fragmentá-lo e
hibridizá-lo, não escapa da perplexidade ante os fenômenos de oposição e

74
Anotações de aula do percurso pela Travessa Petúnia na área de transição Bairro Catetê
– Favela Santo Amaro, realizado em fevereiro de 2008 na disciplina da professora Sonia Le
Cocq, pela turma do estúdio de doutorado em Urbanismo, (PROURB-UFRJ, Rio de Janeiro,
2008).
263

correspondência que denomina “polarização” e “hibridização”, e que


equivaleriam, segundo García-Canclini (2004), à dialética estabelecida por
uma análise sistêmica entre o “multicultural” e o “intercultural” que fazem
parte do processo de constituição de todo organismo social, que somos nós,
que são nossas cidades, que somos nós mesmos.

Poderiam as identidades sociais “repensadas”, “reacomodadas”,


“ressemantizadas”, “ressimbolizadas” - ou como se as queira chamar para significar
a [emergência] de novas estruturas – tender para a homogeneização generalizada
[...]? Poder-se-ia pensar em um futuro urbanismo unificador para uma sociedade
global? [É fácil responder que não, mas] nesse tempo de oposições e
correspondências, de polarização e hibridização em espaços-tempo fluidos [...] que
avançamos rápido para um mundo que nos é cada vez mais familiar (BOLÍVAR,
2007b, p. 189).

Relações de disputa, indiferença e aliança são a causa da pulsação atração


- repulsão entre os habitantes de qualquer espaço delimitado ou confinado,
seja aposento, casa, bairro, cidade. Mas a causa não explica a natureza do
conflito de interesses subjacente a qualquer transação humana. É preciso
entender que as relações entre seres humanos e sociedades se baseiam
em critérios de desigualdade e dependência, que dão origem à forma mais
usual de poder como dominação exercida sobre “os demais”, mas que
ignoram a possibilidade de poder como autocontrole e autorregulação sobre
si mesmo, que está presente na natureza e que torna possível a vida sobre
o planeta tal como a conhecemos até hoje.

Os modos de produção do poder nas cidades contemporâneas, tal


como seus centros, são diversos e se manifestam de muitas formas.
Recordemos os seis espaços de poder propostos por Boaventura de Sousa
(2001), onde podemos analisar o fenômeno de segregação social evidente
em nossas cidades latino-americanas contemporâneas.

O espaço doméstico, o espaço de produção, o espaço de mercado, o


espaço da comunidade, o espaço da cidadania e o espaço global coexistem
em formas urbanas específicas, nas áreas de transição entre favelas e
bairros, e se manifestam nos conflitos de interesses tipo aliança, indiferença
264

e antagonismo entre seus habitantes. Tais conflitos estão direta ou


indiretamente relacionados com as formas de poder expressas no
patriarcado, na exploração, no consumismo, nas diferenças de classe, na
dominação física e midiática e na troca mercantil desigual.

Como já mencionamos e tal como observou Hall (2005) - na mesma


época em que esta investigação sobre as bordas começava -, se antes
essas estruturas se manifestavam em sólidas localizações (materializadas
também no espaço urbano), nas quais os indivíduos se encaixavam
socialmente, hoje elas (surgem e se reconfiguram constantemente) em meio
a fronteiras menos definidas, o que provoca no indivíduo (tanto no que é
observado como no que observa) uma aguda crise de identidade.

Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares
e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas
de comunicação globalmente interligados, mais as identidades se tornam
desvinculadas – deslocalizadas – de tempos, lugares, histórias e tradições
especìficas e parecem “flutuar livremente”. [...] No discurso do consumismo global,
as diferenças e as distinções culturais, que até então definiam a identidade, ficam
reduzidas a uma espécie de língua franca internacional ou moeda global, em
termos das quais todas as tradições específicas e todas as diferentes identidades
podem ser traduzidas. Este fenômeno é conhecido como “homogeneização
cultural” (HALL, 2005, pp. 75, 76).

Talvez seja possível, indo além do método, transformar o urbanista


contemporâneo (como instrumento consciente) em um procedimento
metametodológico para compreender os limites aparentes da realidade
contemporânea, em relação aos objetivos cognitivos da realidade relacional,
acerca do fenômeno da segregação social e da fragmentação espacial nas
cidades latino-americanas contemporâneas.

Isto abre para a possibilidade de transformar tal fenômeno, de uma


maneira criativa e alternativa, a partir de uma reconfiguração das estruturas
do modelo de cidade, aproveitando as “fissuras” do mesmo e a relatividade
das estruturas normativas que regem o urbano (como fenômeno) nesses
espaços de transição, como no caso entre favela/borda/bairro/vizinhança.
265

Quanto ao processo de tomada de consciência, no que tange à


intersubjetividade não antropocêntrica, deve ser simultaneamente individual
e coletivo, tanto para o pesquisador que se converte em viajante
paradigmático, em uma espécie de deriva programada, como para a
comunidade que pesquisa e se pesquisa: a vida na borda assumida como
autoexílio já não é mais exílio e se transforma em uma vida de iniciado, em
uma subjetividade emergente com uma mente de borda, de principiante,
sempre mutante.

No que toca à interobjetividade não alienante, o campo relacional


social e cultural repercute em uma consciência simultaneamente cósmica e
quântica, através da qual o olhar modifica o que é visto e vice-versa, numa
omnijetividade mutante e transcendente caracterizada pelo intercâmbio de
energia entre populações de humanos e não humanos; seja o orbanista
consciente ou inconsciente delas.

Talvez, o que vai restar de mais valioso de tudo isto (da teoria e da
prática), seja a vivência e os amigos. O caráter imediato das relações
sociais. A vertigem da a-historicidade e da superficialidade das raízes torna
preciosos os laços que podemos estabelecer na borda (por sua raridade,
fragilidade e utilidade vital).

3.5._Topofilia na Fobópole Contemporânea75

A tomada coletiva da consciência tem um significado na comunicação das pessoas,


até do que significa para elas ter uma explicação dos conflitos. É, pois, uma postura
transformadora da realidade.

SIERRA-MORALES, Mauricio. “A reconfiguração


dos espaços urbanos a partir das periferias do
poder”, projeto de tese de doutorado, PROURB-
UFRJ, Rio de Janeiro, 2008.

75
Ensaio STA: “Violência, forma e projeto urbano”, professor: Pablo César Benetti,
PROURB-UFRJ, R.J. 2008.
266

A maneira como a forma urbana contemporânea fragmentada e o sistema


de dominação global vêm gerando verdadeiros “ecossistemas de medo” é o
ponto de partida da análise para considerar quais as alternativas, presentes
e futuras, se realmente se deseja redirecionar consciente e coletivamente
os processos de reconfiguração dos espaços de poder desde e nas bordas.

O conflito latente entre o mito moderno do controle urbano versus a


emergência das teorias da topofilia, da autopoiese e do ecourbanismo
profundo possibilita, através do uso de ferramentas projetadas para catalisar
o desenvolvimento de processos evolutivos de auto-organização, a
aplicação de estratégias teóricas e metodológicas.

O termo, cunhado pela primeira vez pelo filósofo Gaston Bachelard


(Bar-sur-Aube, 1884- Paris, 1962) como o topos- philico, em seu trabalho “A
poética do espaço”, descreve o amor pelo lugar como indicador ligado
diretamente ao estudo do espaço em sua dimensão vivida (cotidiana), que
designa, em certa medida, o grau de enraizamento [ou não] de pessoas ou
grupos a determinados ambientes, coincidindo com o que Alexander chama
“a poética da linguagem”, como uma conexão mais “densa” e mais
“profunda” entre espaço-tempo- memória- desejo que ilumina nossas vidas.

[...] um grande número de nossas lembranças têm guarida [...] Voltamos a elas a
vida inteira em nossos sonhos. Portanto, um psicanalista deveria prestar atenção a
essa localização das recordações. [...] A topoanálise seria, pois, o estudo
psicológico sistemático dos sìtios de nossa vida “ìntima” [...] Todos os espaços de
intimidade se designam por atração [...] Nestas condições a topoanálise tem a
marca de uma topofilia (BACHELARD, 1957, pp. 40, 45).

Para o filósofo e sociólogo Pierre Sansot (Antibes, 1928- Grenoble, 2005), o


afeto (amor) pelo lugar é a poética da cidade ou, para Rossi, o locus locci.
Em qualquer caso, trata-se do espírito do lugar, citado por autores
contemporâneos com critérios fenomenológicos: “O verdadeiro lugar urbano
nos modifica; afastando-nos dele já não seremos o que havíamos sido ao
entrar” (SANSOT, 1984, p. 32).
267

Na perspectiva topofílica (a topologia do afeto), esses sistemas são,


por definição, autopoieticos, porque recompõem incessantemente seus
componentes desgastados. Pode-se dizer, seguindo Maturana (2001), que
um sistema autopoietico é ao mesmo tempo produtor e produto; e, num
campo relacional “unificado” (objeto-sujeito-omnijeto), seria também um
prosumidor (produtor e consumidor simultaneamente).

Isto, para além da necessidade contemporânea de não tentar


precipitar o tempo (e, portanto, não querer comprimir o espaço), reforçou o
tecido da informação social e ambiental nos locais onde a ausência do
Estado (ou a falta de uma intervenção adequada do mesmo) gerou a crise
do urbanismo contemporâneo, afetando gravemente o habitat humano, e
que exige políticas públicas concebidas transdisciplinarmente.

A aplicação de estratégias teóricas e metodológicas voltadas para


uma tomada de transconsciência nas bordas e para encontrar o lugar ou
lugares de aplicação que correspondam ao conceito de borda, como temos
colocado até agora, é algo que precisa ser construído primeiro na mente de
quem pretende continuar fazendo a cidade como se fosse possível.

Tal possibilidade, na contemporaneidade, depende do grau de


aprovação da ideia de “alternatividade ao desenvolvimento”, conforme
Izquierdo (2004). Trata-se de buscar a probabilidade emergente, uma
heterotopia que consiga orientar – consciente e coletivamente – as energias
que surgem das manifestações contemporâneas do exercício do poder
sobre o território, todas identificadas como formas de violência que, por sua
vez, se manifestam em projetos urbanos fragmentados para sociedades
segregacionistas.

A borda de “algo” é vista convencionalmente como o limite de


qualquer conteúdo que determina um continente. No caso da noção de
poder como dominação do Estado sobre o território, a borda seria o limite
aparente do poderio exercido sobre o território.
268

A maneira como historicamente tem se exercido esse domínio


territorial têm, na invenção da cidade, duas de suas manifestações mais
contraditórias, embora óbvias. A borda como o limite aparente a partir do
qual se exerce o controle sobre o território e o fato de que este domínio
(para o bem e para o mal) quase sempre vem acompanhado do uso
legítimo (termo também relativo à determinação da norma) da força. Sendo
assim, a borda seria, em última instância, o limite aparente até onde, ou a
partir de onde se manifesta a violência legitimada sobre o território.

Entretanto, se a borda deixa de ser limite e passa a ser vista como


uma transição, a violência manifestada no território se converte em uma
transação e, como tal, força destrutiva transformada em força renovadora e
criativa. A pergunta seria então: Para quem? E a resposta não pode ser,
numa demagogia fácil, “para todos”. Vejamos isto mais detalhadamente.

Um estudo criterioso de como dar forma à ideia de domínio urbano


nos permite entender como, em apenas três décadas, nós passamos da
teoria do controle urbano, segundo Webber (1964), ao funcionamento dos
ecossistemas do medo, segundo Mike Davis (2001).

O processo de constituição, tanto dos conceitos como das


manifestações de “cidade do medo”, “arquitetura do medo”, “segregação”,
“fragmentação”, “favela”, “tugúrio”, etc., em nossas cidades latino-
americanas e sua possível implicação em termos de um projeto urbano
contemporâneo de “borda”, tem a ver com o processo histórico de formação
das cidades antigas, modernas e contemporâneas e com a maneira como
estas teorias e suas respectivas manifestações físicas chegaram a essas
terras conhecidas como “latino-americanas” e aqui adquiriram suas próprias
especificidades e condições.

As primeiras cidades «humanas» das quais se têm notícia


privilegiaram certos espaços que determinaram a sua forma, hoje conhecida
por suas ruínas, como as muralhas das cidades antigas que apareceram
269

aproximadamente mil anos depois da primeira revolução agrícola, a qual


consolidou definitivamente o modelo sedentário de ocupação do espaço tal
como o conhecemos.

Assim, e como afirma a professora Nan Ellin (n. Baltimorre, 1959), a


presença do medo na cidade, desde a Antiguidade, passando pela cidade
do Renascimento até o Modernismo e o urbanismo contemporâneo,
determinou a proteção contra invasores como o principal aspecto, até o
Renascimento, a justificar a construção de cidades com bordas definidas
por muralhas.

Esse medo atávico do “outro”, que em primeira instância gerou o


encerramento como proteção (a separação da ordem urbana do “resto”,
considerado caótico), não desapareceu com a derrubada dos muros, senão
que se multiplicou e diversificou em virtude do urbanismo moderno,
segundo Ellin (1997).

As metáforas utilizadas pelos urbanistas de finais do século XVIII até


começos do século XX (como os organicistas e os mecanicistas)
justificavam a intervenção na cidade como operações cirúrgicas para
reparar peças danificadas, fazendo da destruição de áreas e da segregação
de pessoas potencialmente perigosas a melhor opção para substituir as
antigas muralhas físicas.

De acordo com Andres Duany (n. New York, 1949), o espírito


moderno experimentou outra maneira de escapar do medo: a velocidade
dos meios de locomoção, que em países mais desenvolvidos
economicamente se expressou nos subúrbios e no sprawl (Duany, 2000).
Enquanto em nossos países latino-americanos, o subdesenvolvimento
colocou o automóvel como um artigo de luxo ou, no melhor dos casos,
como ferramenta de trabalho para o transporte de mercadorias e pessoas
entre as populações desconectadas dos novos processos oferecidos pela
precária industrialização. Isto aconteceu de forma muito diferenciada
270

dependendo do país, região, cidade e de sua inserção particular no que


hoje conhecemos globalmente como capitalismo.

Na melhor das hipóteses, como ocorreu nos países que realmente


viveram a modernidade em suas cidades, a abertura do espírito para o
desenho do espaço interior refletia o desejo modernista de liberdade
individual e de derrubada das barreiras tradicionais de classe, idade e
gênero. Mas, em função do fator consumo, que impulsiona o capitalismo
moderno a estágios cada vez mais planetários (enquanto como sistema de
produção vai se reacomodando ao espaço da cidade contemporânea),
atividades que aconteciam em espaços públicos foram ficando restritas ao
domínio privado, tais como atividades de lazer, entretenimento, informação
e comunicação, e cenários que antes enriqueciam o equipamento
comunitário da cidade foram sendo substituídos pela televisão e pelo
computador, configurando-se assim a nova versão da resposta atávica de
ficar quieto e se esconder frente ao medo.

Na contemporaneidade, a cidade tem sido mais associada à ideia de


perigo do que de segurança. Isto porque “outros” perigos foram
“descobertos” no interior da cidade, determinando mudanças no desenho
urbano que geraram segregação e fragmentação internas justificadas lógica
e imaginariamente pelas teorias da modernidade e logo de uma suposta
pós-modernidade.

Precisamente por isto é urgente trazer de volta propostas como o


apego ao território (topofilia), a produtividade autônoma (autopoesis) e a
ecocriação (ecologia profunda) que são, segundo Maturana (2001),
“verdadeiras luzes no caminho” que a humanidade vem, na maioria das
vezes, desajeitadamente percorrendo.

A ecologia como disciplina científica veio se configurando no curso


dos séculos XVIII e XIX, com o aparecimento de conceitos e modos de ver
as relações entre os seres vivos. Até o estágio atual da ecologia como
271

ciência e dos movimentos ecológicos e conservacionistas como fenômeno


sociológico, a noção mais ampla de ecologia a define como a ciência que
lida com todas as relações de todos os organismos com todos os
ambientes.

Esta definição permite considerar a totalidade da existência humana,


não se restringindo ao âmbito rural nem à dimensão ambiental do
desenvolvimento sustentável. De fato, se poderia dizer hoje, quase um
século depois da formulação de sua definição, que a ecologia tem como
objeto de estudo as bordas, já que não põe qualquer limite à tipologia de
relações que devem ser levadas em conta.

Curioso como os atavismos das primeiras civilizações sobrevivem,


disfarçados ou sofisticados, até nossos dias através de respostas
convencionais do cidadão comum frente ao medo e à insegurança
contemporâneos. Amuralhar-se, procurar escapar se valendo da velocidade
do transporte e interferir no espaço do outro continuam sendo
manifestações físicas dos espaços urbanos, convenientemente justificadas
pelo uso da razão e da imaginação.

A resposta menos óbvia ou convencional ao medo e à insegurança


em nossas cidades latino-americanas contemporâneas consiste em
construir vínculos afetivos com o território, a partir de um processo
consciente e cognitivo, ao qual podemos chamar tomada transconsciente da
espacialidade e do território.

Usando uma variedade de ferramentas cognitivas estabelecidas


mediante processos alternativos enquadrados em um novo paradigma
emergente, contemporâneo e participativo, alguns autores, entre os quais
Boaventura de Sousa (2001), fazem uma reflexão sobre o papel dos mapas
mentais na representação do lugar, enfocando o seu significado no ensino,
a partir de abordagens apoiadas na psicologia, na cartografia e na
geografia.
272

Estudos recentes trazem alguns conceitos fundamentais para a


compreensão do lugar na geografia e um ensaio metodológico sobre a
utilização de mapas mentais na representação do lugar (Sampaio et al.,
2004).

A configuração de um novo sujeito de borda consciente, individual e


coletivo ao mesmo tempo (fato que pode se dar em qualquer lugar do
mundo, mas especialmente em nossas cidades “faveladas” onde emerge o
fenômeno) é um requisito “sem o qual não” é possìvel construir uma nova
subjetividade, em termos do que Boaventura de Sousa denomina “transição
paradigmática”. Isto é, nem mais nem menos, “um conhecimento prudente
para uma vida decente”, exatamente o que permite estas sofisticadas, mas
simples ferramentas cognitivas como a cartografia social, hoje chamada
“poligrafia social”.

Não é suficiente entender a transformação que está prestes a


ocorrer, também é preciso desejá-la e isto se obtém através de um
compromisso afetivo que une o habitante ao território. Com relação à
emergência de um novo paradigma e suas possíveis manifestações no
espaço urbano contemporâneo, a construção deste novo sujeito de borda
surge como uma maneira privilegiada de sociabilidade em áreas de
transição da cidade contemporânea fragmentada, justo entre os espaços
híbridos e instáveis e entre âmbitos claramente identificáveis, como favela-
bairro, campo-cidade, etc.

76
Experiências como “A cartografia da vida cotidiana” , dos arquitetos
e urbanistas Bemd Kniess (n. Colônia, 1961) e Leonhard Lagos Kalhoff (n.
Hamburgo, 1978), mostram, em cidades tão distantes como Berlim, que é
possível com a cartografia social examinar os movimentos dos migrantes,
das crianças ou adolescentes no distrito de Ruhr, em uma tentativa de

76
Disponível em: <http://www.projektmigration.de/english/content/kuenstlerliste/kniess.html>
(Acesso em: 01/01/2010).
273

investigar os dados da vida real nos subúrbios. O projeto de mapeamento


das zonas urbanas Rhein/Ruhr supõe que as cidades sem a migração não
são imagináveis. As cidades desta zona urbana em particular, com seus
aproximadamente 11 milhões de habitantes, se caracterizam por uma
estrutura de população cambiante. São redes de múltiplas demandas
sociais, inclusive opostas (Kniess e Lagos, 2006).

Alguns utilizam essas ferramentas para algo mais do que a mera


compreensão do território. A colocação topofílica de Yori (1998), que deu
origem a sucessivos planos de governo e que, finalmente, vêm
configurando uma transformação recente na cidade de Bogotá, é um bom
exemplo do uso consciente das ferramentas que promovem a participação
cidadã na tomada de decisões em todos os níveis da gestão pública.

Cada pessoa carrega consigo uma imagem de seu habitat, que se


caracteriza pela memória coletiva e sua experiência. É provável, que este
“constructo” mental tenha muito pouco que ver com a realidade que vivemos
todos os dias.

O resíduo sensorial é sempre maior do que o que fica na memória e,


por isto, é muito útil olhar para as coisas pelos olhos de outras pessoas para
ter uma ideia de “outras” realidades. Em uma experiência de percurso à
deriva pela cidade de Berlim, realizada pelo coletivo Stalker, as arquitetas
Paola Cannavò (n. Roma, 1966), Maria Ippolita Nicotera (n. Roma, 1966) e
Francesca Venier (n. Milão, 1971) tratam de alcançar isto através da
imersão em padrões culturais que determinam o ordenamento e o uso do
território; conseguindo, assim, associar a percepção do espaço das pessoas
(que normalmente ignoram estas inter-relações) e utilizar as estruturas
urbanas de maneira intuitiva e rotineira 77 (CANNAVÒ et al., 2006).

77
Disponível em: <http://talkingcities.org/talkingcities/pages/143_en.html>
274

Na verdade, essas formas práticas de ligar a ideia de identidade à


noção de território são mais antigas. No entanto, e no caso desta tese,
temos mais referências ligadas à arquitetura e ao urbanismo provenientes
do grupo surrealista francês liderado por Andre Breton (Tinchebray, 1896-
Paris, 1966), quem enfatiza, da revisão dos conceitos que Benjamin destaca
em 1928 de seu entendimento da experiência espacial, a cidade como
“fantasmagoria” e suas ideias sobre a relação com o espaço tátil e visual,
quando afirma que os sítios não são escolhidos porque são desses lugares
que “tem que ser vistos”.

A imagem da Paris de Breton (1929), em “Nadja”, representa a


“psicogeografia” que os situacionistas desenvolvem nos anos 50; uma
cidade privada engendrada na cidade pública, ocupando o mesmo espaço,
mas de uma maneira mais intensa. Assim, a geografia física é substituída
por uma “topologia do afeto”.

Aquela promessa messiânica que Benjamin anunciou no “Angelus


Novus” como a dimensão espiritual da ruptura revolucionária do continuum
histórico não é mais que o anúncio da força radical e destrutiva implícita no
conceito benjaminiano de redenção, próprio do contexto de uma sociedade
industrial. A ideia do eterno retorno em Nietzsche, em Benjamin é entendida
como essa imagem assombrada da história, produto da metafísica da
experiência.

Sobre a quebra deste ciclo assombrado pelas formas míticas do direito, sobre a
dissolução do direito e da violência que subordina e ao mesmo tempo é
subordinada e, em última instância encarnada na violência de Estado, se
fundamenta uma nova era histórica [...] A violência divina, insígnia e selo, jamais
meio de execução sagrada, poderia se chamar reinante (BENJAMIN, 1972, pp. 44,
45).

Experiências mais recentes como as vividas pelo observatório nômade


liderado pelo arquiteto Francesco Careri (n. Roma, 1966), do grupo Stalker,
também têm sido realizadas na América Latina. Lembro, especialmente, de
uma deriva programada da qual participamos vários estudantes e
professores universitários na cidade de Bogotá, em 2005; um passeio
275

noturno entre os bairros Águas e Santa Rosa, em Bogotá, no qual mais de


200 pessoas penetramos no coração da zona mais perigosa da então
considerada a cidade mais violenta do mundo 78.

O modo de intervenção proposto é experimental. A exploração baseada na vivência


prática e na escuta do espaço relacional, amigável e lúdico é desencadeada pelos
dispositivos de interação criativa do meio ambiente investigado, com os habitantes
e os arquivos da memória (CARERI, 2002, Introdução).

Tanto práticas quanto dispositivos são projetados para catalisar o


desenvolvimento de processos evolutivos de auto-organização,
proporcionando o tecido de informação social e ambiental, em locais onde a
negligência estatal e a falta de uma intervenção adequada geraram o
problema da “fobópole contemporânea”. “«Fobópole» é o resultado da
combinação de dois elementos de composição, derivados das palavras
gregas phobos, que significa «medo», e polis, que significa «cidade»”
(LOPES de Souza, 2008, p. 9). Isto é, uma cidade dominada pelo medo que
produz a criminalidade violenta que, apesar do estigma patrocinado pela
mídia, não significa necessariamente que seja uma cidade violenta, uma
“cidade do medo”.

Segundo o professor e arquiteto Pablo Cesar Benetti (n. Villa Carlos


Paz/ Argentina, 1949), há ao menos três momentos que são essenciais para
que esse tecido (rede) social se efetive e igualmente perdure, cuja
sequência não é casual senão que planificada: um primeiro momento de
elaboração de um projeto (arquitetônico, urbano) participativo; uma segunda
instância de execução (transparente) de obras feitas com qualidade e,
posteriormente, um momento propício à ocupação efetiva, regular e
sistemática dos espaços pelo Estado, pela comunidade e pela sociedade
civil.

78
REDE ON/BOGOTÁ. Rede Observatório Nômade (Bogotá), março 2005. Sociedade
psicogeográfica de Bogotá. Alvaro Moreno Hoffmann. Disponível em:
<http://www.observatorionomade.net/bogota/> (Acesso em: 29/06/2008).
276

Numa guerra tática pela ocupação do território, o projeto urbano em favelas tem
uma contribuição muito importante a dar. Ele pode ser o início da reincorporação
das favelas à cidade, dotando-as de idênticos serviços, incorporando-as ao sistema
de planejamento da cidade e oferecendo a os moradores locais acesso igual à
79
educação, saúde e lazer (BENETTI, 2004) .

O rastro destas intervenções (se elas são realizadas na ordem adequada)


pode ser mapeado socialmente desde o início. Isto configura uma
cartografia sensível, complexa e dinâmica do território, realizada com a
contribuição dos distintos enfoques disciplinares, através da qual se
investigam as mudanças que estão acontecendo na relação habitante e
meio ambiente. Este mapeamento de dados contém informações
sofisticadas e diversas, sendo ao mesmo tempo um instrumento de fácil
acesso capaz de ativar o interesse público.

O modo de operação descrito, enquanto instrumento de


conhecimento, vai ajudar a promover uma maior consciência da população
sobre o seu território obtendo, através desta retroalimentação criativa, uma
participação mais eficaz na gestão territorial dos eventos urbanos
modificáveis.

A reflexão contemporânea sobre a relação entre violência, forma e


projeto urbano permite uma aproximação abrangente para uma tomada
transconsciente de poder nos territórios convencionalmente considerados
pobres e marginais e diretrizes possíveis para a reconfiguração (também
simultaneamente individual/coletiva/ quântica/ cósmica) do espaço habitado
pela consciência humana e não humana.

Tal consciência é um processo ao mesmo tempo para dentro, para


fora e sintonizado com o campo quântico no nível da supradimensão
cultural, que tem como princípio afetar e deixar-se afetar pela realidade de
estar-no-mundo. Trata-se, retomando García-Canclini, da construção
intercultural da igualdade e da inclusão como resultado da ação

79
Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/04.048/580>
(Acesso em: 01/01/2011).
277

comunicativa: processo igualmente baseado na lógica da ação coletiva


desde/e nas bordas.

Uma teoria consistente da interculturalidade deve encontrar a forma de trabalhar


conjuntamente os três processos pelos quais esta se trama: as diferenças, as
desigualdades e a desconexão. As teorias do étnico e do nacional são, em geral,
teorias das diferenças. Por outro lado, o marxismo e outras correntes
macrossociológicas (tais como as que se ocupam do imperialismo e da
dependência) dedicam-se à desigualdade. [...] Quanto aos estudos sobre
conectividade e desconexão, concentram-se nos campos comunicacional e
informático, com escasso impacto nas teorias socioculturais (GARCÍA-CANCLINI,
2004, p. 55).

A ação comunicativa é regulada por normas pactuadas socialmente, através


das quais os membros de um grupo social orientam suas atividades por
valores comuns. Segundo Marshall (1989), a descrição dos meios de
comunicação como extensões da pessoa permite estudar e compreender a
natureza destes novos meios (que revolucionaram a história da
comunicação da humanidade passando de “aldeia global” a “aldeia
universal”) que constituem a opinião pública, que é peça chave da polìtica
deliberativa, uma alternativa para superar os déficits de democracia
representativa e uma garantia para equilibrar o poder com a construção
intercultural de identidade.

A ação coletiva, por sua vez, se manifesta a partir de uma lógica que,
segundo o economista Marcur Oslon (Califórnia, 1932- 1988), está
ancorada na teoria dos grupos e das organizações, segundo a qual, além
de uma ação comunitária, é preciso uma regulação de interesses
racionalmente motivada por uma luta (conflito) de classes (Olson, 1965).

É uma luta que já não transcende no mundo contemporâneo, onde o


poder difuso está constantemente transfigurando-se de múltiplas maneiras
e, finalmente, se ocupa apenas em transformar a si mesmo.

[...] a ação comunitária e a participação dos interessados (associações de classe)


não ocorrem necessariamente a partir da existência de classes e situações de
classe. A classe unicamente indica situações típicas de interesses iguais ou
semelhantes em que se encontram certos indivíduos (situação de classe), embora,
até certo ponto a situação de cada titular de bens e serviços seja particular [...] Só é
verdadeiramente homogênea, diz Weber, a situação dos sem propriedade e
278

totalmente sem “qualificação”, obrigados a ganhar sua vida por seu trabalho em
ocupações temporárias (DUEK & INDA, 2006, p. 13).

De acordo com as anotações de Habermas (1982-1989) quem, desde a


década dos anos 80, vem declarando que ao escolher um determinado
conceito sociológico de ação nos comprometemos com determinadas
estruturas simbólicas de poder, podemos afirmar que, neste estudo,
estamos comprometidos com uma ideia de ação participativa.

A qual, embora possa ser manipulada e deformada pelos meios de


comunicação que ajudam a construir a opinião pública, não deixa, por isto,
de constituir o eixo da coesão social, da legitimação e da reconfiguração da
política que também tem a ver com a função do Estado e com o exercício
do poder, tal como antecipara Kant (1770), quando proclamava que “todas
as ações (relativas ao direito de outros homens cuja máxima não é
suscetível de publicidade) são injustas”, como cita Bobbio (1987),
antecipando o futuro da democracia.

Em qualquer caso, e como resultado do dito processo comunicativo,


coletivo e participativo, se interconectam na presente tese de borda duas
dinâmicas que até aqui têm sido relacionadas apenas a nível teórico: por
um lado, a reconfiguração de espaços de poder e, por outro, a
reconfiguração de espaços físicos; ambas as dinâmicas surgindo e sendo
expressas desde/e nas bordas sob a forma de interfaces e interstícios
urbanos e arquitetônicos.

A especificidade espacial do urbanismo [consiste no fundamento intencional que]


se encontra vinculada à inter-relação entre espacialidade e sociabilidade, ou ao que
chamei dialética socioespacial. Enquanto a compreensão da ideia de que todo o
espaço é, simultaneamente, e inclusive “problematicamente”, social pode ser
simples; compreender a relação inversa é muito mais difícil, ou seja, que o que é
descrito como social é sempre, e ao mesmo tempo, intrinsecamente espacial. [...] O
espaço urbano refere-se à cidade enquanto fenômeno histórico-social-espacial,
mas com sua espacialidade intrínseca realçada com fins interpretativos e
explicativos (SOJA, 2008, pp. 35, 36).

Segundo o economista britânico Paul Gilroy (n. 1956), as formas resultantes


das maneiras como uma sociedade, compatível com os múltiplos projetos
279

de modernidade capitalista, veio configurando mecanismos de integração e


de exclusão constituem uma dinâmica de aproximação e afastamento
físicos que deixaram sua marca na cidade contemporânea e nas múltiplas
manifestações urbanas de borda; situação que resumimos, para fins
analíticos [sempre reducionistas] da presente tese, como interfaces urbanas
e interstícios arquitetônicos.

Se há vários projetos de modernidade no interior da dimensão


cultural do desenvolvimento (entendido em termos ocidentais), eles se
expressam em diversos projetos políticos baseados, por sua vez, em
diferentes estilos de desenvolvimento capitalista, mas sempre em torno de
um único modo de produção: à custa da natureza, incluídos nós, humanos.
Por paradoxal que possa parecer, este desenvolvimento visa supostamente
os humanos, embora, no final, ele seja realmente para poucos, os mais
poderosos.

Para Gilroy (1933), existe a chamada “dupla consciência”


(regulatória-emancipatória) das chamadas “revoluções” que, desde finais do
século XVIII até meados do século XIX, correspondem a um processo de
modernização de longa duração, lento e paulatino. Ao longo de gerações,
este processo se prolongou para além deste período, até o século XX.

Neste processo foi se constituindo desde a sociedade pré-industrial à


modernidade característica da sociedade industrial, através de mudanças
em todos os âmbitos, incluídos os ideológicos, os artísticos, os científicos e
as constelações da noosfera.

Tais mudanças, do ponto de vista histórico, foram chamadas


revoluções burguesas ou revoluções liberais, simultâneas à primeira
revolução industrial: das revoluções norte-americanas, passando pela
revolução francesa até as guerras de independência hispano-americanas e
as revoluções europeias de 1820 e de 1830.
280

O fato de que o ciclo inicial teve lugar em ambos os lados do oceano


Atlântico permitiu falar de revolução atlântica ou ciclo atlântico das
revoluções liberais e seus resultados, aparentemente distintos, são os
mesmos em dois níveis de entendimento da realidade: a fragmentação
físico-espacial e a segregação político-espacial e chegamos a isto, através
de mecanismos de política pública, tanto dos que procuram a integração
quanto a exclusão.

Mas esse processo, além de se sedimentar fisicamente no espaço e


aparecer como pobreza e marginalidade nas bordas, também migra,
quando migram os bilhões de seres humanos que hoje desafiam a crise
global, constituindo uma força de trabalho significativa, distribuindo
trabalhadores migrantes por todo o mundo.

É por isto que a gestão da desigualdade e da exclusão, expressas


como pobreza e marginalidade em nossas cidades latino-americanas
fragmentadas e segregadas, é um processo multidimensional que ocorre
mediante uma metamorfose que transforma a desigualdade física em
exclusão social tanto em níveis nacionais como globais.

Por isto, também, o planejamento topofílico desde/e nas bordas


requer um processo intercultural de enraizamento a nível local com
consciência individual, coletiva, cósmica e quântica de estar-no-mundo.
Para além da abordagem da multiplicidade anglo-saxônica, aquela que
segundo García-Canclini exaltou demasiado a fragmentação e o
nomadismo “pós-modernos”, existe a perspectiva do pensamento
emergente de borda, que procura entender os sujeitos que se constituem
como um desafio, em um mundo de migrações massivas, no qual dezenas
de línguas e de etnias convivem obrigadas em uma única cidade.

De um mundo multicultural –justaposição de etnias ou grupos em uma cidade ou


nação- passamos a outro, intercultural e globalizado. Sob concepções
multiculturais, admite-se a diversidade de culturas, sublinhando sua diferença e
propondo políticas relativistas de respeito, que frequentemente reforçam a
segregação. Em contrapartida, a interculturalidade remete à confrontação e ao
281

entrelaçamento, àquilo que sucede quando os grupos entram em relações e trocas.


Ambos os termos implicam dois modos de produção do social: multiculturalidade
supõe aceitação do heterogêneo; interculturalidade implica que os diferentes são o
que são, em relações de negociação, conflito e empréstimos recíprocos (GARCÍA-
CANCLINI, 2004, p. 17).

Proponho, no caso desta tese, compreender a multiculturalidade como a


primeira fase de uma interculturalidade que, em meio à transição
paradigmática migra para a transculturalidade, vista como a diferença entre
a compreensão de um campo relacional interdependente e a compreensão
de relações de interdependência cultural a partir de uma visão não
antropocêntrica (Omnijetiva).

[...] As categorias de contradição e conflito estão, portanto, no núcleo deste modo


de conceber a investigação. [...] não como prescrição do modo pelo qual os dados
devem ser selecionados e organizados, mas como estímulo para indagar sob quais
condições (reais) o real pode deixar de ser a repetição da desigualdade e da
discriminação, para converter-se em cenário de reconhecimento dos outros. [...]
Não se trata de reincidir nas interpretações enviesadas das elites ou dos países de
Primeiro Mundo, invertendo a autoafirmação excludente de um sujeito. Trata-se
antes, de colocar-se nas interseções, nos lugares em que os sujeitos podem falar e
atuar, transformar-se e ser transformados. Converter os condicionamentos em
oportunidades para exercer a cidadania (GARCÍA-CANCLINI, 2004, pp. 207, 208).

Entendemos, então, a identidade como fonte de poder quando, nos ditos


contextos transculturais tipo borda, manifestamos as múltiplas e diversas
possibilidades de representar a realidade contemporânea. Já não se trata
de construir referentes idênticos de nacionalidade, cidadania, etnia, classe,
etc., senão de manifestar virtualidades (virtudes), para além dos limites
entre continentes, em meio à fragmentação dos conteúdos que antes
sustentavam o discurso moderno.

3.6._Novo Ponto de Partida: Ressignificando o (Inacabado) Princípio


da Racionalidade Estética - Expressiva da Modernidade (sem
Colonialidade).

É sobre tentar sentir o que a outra pessoa está sentindo. Há uma parede de vidro
entre as pessoas e eu quero quebrá-la.

Goldin, Nan, “I´ll be your mirror”, 1996.


282

Chegamos a este novo ponto de partida (nós mesmos) onde, enquanto


bordas conscientes, nós somos parte de um processo contemporâneo de
reconfiguração desde/em espaços de poder como processo de
ressignificação das “novas” formas de regulação- emancipação desde/em
espaços classificados (para fins de intervenção projetual) como interfaces/
interstícios de caráter urbano/arquitetônico. O que nos coloca diante de uma
bifurcação com duas opções de caminhos que podem ser, de agora em
diante, percorridos, inclusive simultaneamente, seja como projeto de
pesquisa ou como projeto de borda.

Esclarecemos que um projeto de pesquisa, mesmo um projeto de


investigação projetual, por mais que seja um estudo profundo da realidade
não vai produzir nenhuma mudança se não for arrojado, projetado como
processo de autorregulação transconsciente, como relato do projeto:
perceber-se refletido nos demais como a própria comunicação do processo
projetual.

Os escritos e imagens do “eu”, neste inìcio do século XXI, se


posicionam através de uma rede de relações e mediações nas quais a
democratização dos desejos e direitos de expressão dos seres anônimos
ocorre concomitantemente ao processo de destaque de celebridades que
surgem de repente dessa massa amorfa, outrora chamada sociedade ou
comunidade.

Vamos recordar brevemente, ao final deste capítulo, que o princípio


de comunidade no campo unificado da omnijetividade entre sujeito-objeto
tende à regulação e trata de canibalizar as formas de racionalidade estético-
expressiva no mesmo campo unificado, mas tendendo à emancipação, e
ambas, comunidade e racionalidade, são representações inacabadas da
modernidade. Os dois princípios se baseiam, respectivamente, na ideia de
necessidade e no desejo e são válidos (do ponto de vista humano e como
283

princípio), unicamente pela experiência do cotidiano de ser-no-mundo, neste


caso, de ser/estar simultaneamente à borda sendo eu mesmo a borda.

A validade da experiência foi, então, aquele princípio inacabado das


formas da racionalidade estético-expressiva na modernidade e é,
contemporaneamente, filtrada pela ficcionalização da mesma. Qualquer
manifestação artística, arquitetônica ou urbanística é rapidamente
banalizada em favor de uma imagem cuja aceitação dura o tempo
necessário para se tornar evento de publicidade. Devido a isso, talvez, à
obsolescência programada do “novo”, os projetos agora envelhecem mais
rápido; mas não se transformam em patrimônio, pois não se fixam no
imaginário – que tampouco é coletivo, ainda que seja falsamente social.

Frente a esta sintomática geração espontânea de artefatos e autores,


a “boa forma da cidade”, como principal preocupação de Lynch (1981) e o
bom gosto da arquitetura prevalecem, conseguindo validar a subjetividade
da experiência já que possuem a intensidade estética que supera o
meramente “confessional”, a trincheira do personalismo e essa banalidade
que vem da autoexpressão narcisista.

Quem aposta, na contemporaneidade, em uma arquitetura de


aprendizagem contínua, capaz de potencializar até mesmo os códigos do
realismo, de propiciar a alquimia da transmutação da vivência do cotidiano
em imagem-prosa consegue superar as particularidades efêmeras para se
fundir em uma estética de visão de mundo.

As produções simbólicas como instrumentos de dominação explicam


como (da mesma maneira que, até o auge da cidade moderna, essas
representações se relacionavam quase exclusivamente com os interesses
das classes dominantes), hoje, tais interesses se diversificaram tanto
quanto as múltiplas formas nas quais a dominância entre os seres humanos
se mimetizou para seguir, apesar de tudo, sendo exercida.
284

De igual modo se poderia demonstrar que a oposição entre a direita e a esquerda


que, em sua forma fundamental, afeta a relação entre os dominantes e os
dominados, pode também, ao preço de uma primeira transformação, designar as
relações entre frações dominantes e frações dominadas da classe dominante,
ganhando, então, as palavras “direita” e “esquerda” um sentido próximo ao de
expressões como teatro da “rive droite” ou da “rive gauche”; pode até, em um grau
adicional de falta de realidade, servir para distinguir duas tendências rivais de um
grupo artístico ou literário de vanguarda, e assim sucessivamente (BOURDIEU,
1979, p. 480).

Estas crenças e práticas são, no entanto, a norma e não a exceção. O


psicólogo “experimental” americano Bruce Hood analisa esta capacidade
específica dos seres humanos, que nascem com uma espécie de
“superssentido” pelo qual dão sentido ao mundo, embora através de
explicações que vão além do “racional” e do “natural”.

Esta mesma capacidade, que nos permite a adaptação e a


sobrevivência, é o que nos torna vulneráveis ao poder simbólico. Acreditar
que existem energias, padrões, forças e entidades que operam no mundo,
apesar da ciência negá-las categoricamente, e que explica, segundo Hood
(2009), porque acreditamos no inacreditável.

Os sistemas simbólicos enquanto instrumentos de conhecimento e


comunicação não podem exercer o seu poder estruturante se não são
estruturados. O poder é um poder de recriar a realidade que estabelece,
igualmente, uma ordem gnoseológica: a percepção imediata do mundo
(particularmente o mundo social, urbano, a cidade) supõe uma concepção
homogênea da realidade, uma espécie de conformismo lógico que torna
possível um acordo entre inteligências. A este respeito, desde as
contribuições de Durkheim (1895), sabemos como abordar os fatos sociais
sistêmica e cientificamente.

O pensamento lógico e racional tem o poder de criar a realidade, mas


os dominados (que são a maioria da população) não influenciam este
processo porque, simplesmente, (consciente ou inconscientemente) não
acreditam que podem fazê-lo ou não se sentem capazes.
285

A experiência negativa da vida (vontade de impotência) supera os


breves momentos positivos (vontade de poder) e isto reforça a tese da
incapacidade como base da hipótese da felicidade utilitarista de Bentham
(1789), ou como fundamento do pensamento realista que ainda subjaz nas
chamadas “ciências sociais” e que nos fez acreditar, equivocadamente
segundo Boaventura de Sousa, que é impossível pensar na emancipação,
desde a lógica dominante do pensamento racional, como algo distinto de
uma “revolução”, ou melhor, de uma “subversão”.

A redução da emancipação moderna à racionalidade cognitivo-instrumental da


ciência e a redução da regulação moderna ao princípio do mercado, ambas
incentivadas pela conversão da ciência na principal força produtiva, constituem as
condições determinantes do processo histórico que provocaram a rendição da
emancipação à regulação moderna. [...] Neste processo, a emancipação deixou de
ser o outro [oposto] da regulação, para se tornar seu duplo (BOAVENTURA de
Sousa, 2001, p. 61).

O simbolismo consegue às vezes disfarçar essa incapacidade mostrando


exemplos de alguém que conseguiu ser bem-sucedido. Ao pensar sobre a
realidade a tornamos mais concreta do que é (precipitamo-la), mas ao criá-
la lhe damos poder e ficamos presos nela. Se este processo se repete a
cada instante coletivamente, ainda que sem ligação, acreditamos que
somos incapazes de mudar a realidade concreta, que somos insignificantes
perante o poder que nós mesmos outorgamos às coisas, às pessoas, etc.

A verdade é que o pensamento requer sentimento para se


transformar em ação e, por isto, não basta pensar “positivo” nem se
“autoajudar”. Existe um desenvolvimento paralelo ao mundo da consciência,
o mundo sensorial. Quando não conseguimos conciliar estes mundos, surge
a esquizofrenia, o transtorno bipolar como comportamento de uma dupla
consciência, a verdadeira “crise de identidade”.

Mas, se percebemos a realidade como possibilidade da mente,


então, o poder é uma potencialidade que, por sua vez, amplia a
consciência. Se nos encontramos na borda/ à borda (em condições e
situações “extremas” de nossa existência) e temos consciência desta
286

possibilidade, uma pergunta surge imediatamente: como posso melhorar


minha vida? Porque supomos que todo mundo ama a vida.

Assim, expandimos nossa consciência e se isto se faz


transconscientemente, imagine o resultado! No entanto, novamente será
necessário um “acordo entre inteligências” que garanta uma
condição/situação favorável a essa nova realidade. O processo continua
infinitamente e se “acreditamos”, também, na ideia de desenvolvimento,
assumiremos que cada ciclo é qualitativamente “superior” ao anterior. É
simples assim: eu sou a minha experiência do mundo em um mundo de
infinitas possibilidades e se sou/somos conscientes disto, posso/podemos
escolher que experiência experimentar e, literalmente, criar nossa própria
realidade.

A emergência de nossa transconsciência em/na borda ultrapassa


contemporaneamente a solidariedade mecânica que surge nas sociedades
mais primitivas (a Igreja e o Exército, por exemplo). Mas não é tão forte
como a consciência coletiva nas sociedades modernas, onde as paixões
são substituídas pelos interesses.

Se, de fato, estamos equipados com uma superconsciência que nos


impede de abandonar nossas crenças, aproveitemos então para
ressignificar o princípio inacabado da racionalidade estético-expressiva
herdado da modernidade: experimentar ser-no-mundo através dos laços
que nos unem aos demais seres humanos, promovendo comportamentos
cívicos baseados no coletivismo transconsciente e no consumo solidário.

Assim, conseguiremos unir em uma só proposta o evento a modificar


que Boaventura de Sousa coloca, quando fala das representações
inacabadas da modernidade: a representação dos limites e a representação
distorcida das consequências de reconhecer tais limites, que, em termos do
urbano contemporâneo, significam segregação e fragmentação nas bordas.
287

Podemos, então, tentar responder a pergunta que Boaventura de


Sousa (2001) formula em sua crítica à razão ocidental que ele considera
indolente: Por que as novas formas de “adequação cerimonial” (do poder
simbólico) não conseguem nem regular nem emancipar as formas e as
relações urbanas contemporâneas? Se a ajustamos a uma proposta de
reconfiguração urbana desde/em nas bordas, a resposta é que,
simplesmente, não se vê o que não se quer ver.

O ritual cerimonial que promove uma relação circular, empobrecida e


tautológica entre os processos de regulação-emancipação se apoia no
paradigma estabelecido, uma vez formuladas as leis do que é considerado
“normal” e “natural” conforme uma tendência preconceituosa voltada para
os mesmos fins a que tendem todas as coisas, por aqueles que ostentam e
se submetem a ser dominantes/dominados.

Até aí estamos todos de acordo, desvelamos o evento a modificar,


mas, é possível um procedimento para modificá-lo? É muito mais fácil
estabelecer os limites de uma representação dada (modernidade) do que
formular uma representação global e coerente dos limites de uma
contemporaneidade.

Pensar na possibilidade de um mundo sem o controle total do


sistema de dominação, surgido a partir das ditas estruturas simbólicas, se
torna um desafio ainda mais difícil, depois de ler Bauman e de ouvir a
arquiteta Ermínia Maricato (n. Santa Ernestina, São Paulo) se referir
novamente à teoria dos “novos pobres”, no encontro da ANPUR XIV 80.

Especialmente, quando fazemos parte dessas gerações que foram


forjadas sob a primeira e a segunda premissas da ética do trabalho imposta
pelo capitalismo durante a introdução da modernidade, que diz que para

80
XIV Encontro Nacional da ANPUR, (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa
em Planejamento Urbano e Regional), com o título “Quem planeja o território? Atores,
arenas e estratégias”, realizado no Rio de Janeiro no período de 23 a 27 de maio de 2011.
288

viver, ser feliz e progredir é preciso trabalhar e sempre estar insatisfeito com
o que se tem, isto é, é preciso trabalhar mais e mais.

Entretanto, o trabalho de Bauman nos conduz a um novo campo de


ação para descrever como passamos de uma sociedade produtora a uma
sociedade consumidora: desde se submeter a uma ética do trabalho até
privilegiar a estética do consumo: desde tentar satisfazer as necessidades
da maior parte da população até a busca insaciável de satisfação individual
de nossos desejos. A compreensão destes desafios é realmente um convite
a buscar novas formas de sociedade, alternativas a esta criminalidade
legitimada pelo progresso à custa dos mais profundos valores humanos.

De uma “sociedade de produtores” a outra “de consumidores”; de uma sociedade


orientada pela ética do trabalho a outra governada pela estética do consumo. No
novo mundo dos consumidores, a produção em massa já não requer mão de obra
massiva. Por isto os pobres, que uma vez cumpriram o papel de “exército de
reserva da mão de obra”, passaram agora a “consumidores expulsos do mercado”.
Isto os despojou de qualquer função útil (real ou potencial) com profundas
consequências para sua colocação na sociedade e suas possibilidades de melhorar
nela (BAUMAN, 1998, p.12).

Maricato (1996), por sua vez, ao afirmar que os movimentos sociais


brasileiros foram se desarticulando em meio à luta pelo direito a uma
moradia digna, levanta a possibilidade de que os desencontros entre as
reivindicações sociais e os programas de governo de intervenções urbanas
em interfaces e interstícios tipo borda fazem parte de um círculo vicioso de
regulação/ emancipação.

Prefiro pensar, como também o manifestaram colegas urbanistas no


congresso mencionado, que em lugar de círculos viciosos que impedem um
avanço significativo entre os conceitos de legal e ilegal em matéria de direito
urbano, estamos realmente vivendo um tempo-espaço em espiral no âmbito
da regularização de solos urbanos na América Latina e outras regiões e que
os processos emancipatórios a partir de políticas públicas avançam muito
gradualmente, “mas avançam”. Coisa distinta é que não saibamos até
onde.
289

Isto nos permite argumentar que o que acontece é que não somos
capazes de perceber a diferença ocorrida porque confundimos ser-no-
mundo como uma condição/situação que retorna ao mesmo ponto, quando
realmente, na contemporaneidade, somos/estamos em/à borda dos
acontecimentos em um novo ponto de partida de uma condição/situação
qualitativamente distinta, em um novo nível de consciência, não
exclusivamente racional.

A lógica racional e funcional dominante engendrada no pensamento


urbanístico modernista, adequada aos objetivos da cidade-produção, se
revela insuficiente e pouco propícia aos objetivos da cidade-consumo, que
requer uma lógica cultural que proporcione o câmbio favorável ao ser
humano, mas também a tudo o que é considerado não humano, agora não
por necessidade, mas por vontade (desejo) de se relacionar com outros
mundos, não necessariamente humanos.

Justamente é diante dessa possibilidade de mudança que podemos,


assim como Castoriadis, infundir ânimo a nossa sociedade dizendo que “a
humanidade pode mudar, como o fez tantas vezes” e procurar saìdas para
as crises, que Castoriadis chama “encruzilhadas do labirinto” (1997).

Mas, para isto, é preciso repensar a necessidade humana de atribuir


poder às coisas “lá fora”, algo que só pode ser atingido se formos capazes,
ao menos de duas coisas. Primeiro, conhecer o caráter autônomo das
instituições imaginárias, que se consegue pensando o urbanismo, para além
da multidisciplinaridade, em direção à interdisciplinaridade e sua
correspondência com a urbanidade, passando da multiculturalidade à
interculturalidade.

Segundo, alcançadas a interdisciplinaridade e a interculturalidade,


precisaríamos ter a vontade explícita de nos autoinstituir e nos
autoemancipar, que coloca novamente o desafio de passar do consumismo
290

ao consumo solidário: a diferença entre escolher individualmente e poder


escolher conscientemente.

Se realmente não há consumo coletivo, apesar de termos passado


de produtores a consumidores, o capitalismo já não precisa de pessoas
para se construir e, pelo contrário, são necessárias novas estratégias de
sobrevivência para a humanidade para além do movimento de concentração
que foi agenciado pelos megaconglomerados transnacionais que, graças à
automação, à informática e à biotecnologia dependem cada vez menos do
trabalho vivo e obtém um volume de lucro progressivamente maior,
vencendo a concorrência, barateando e melhorando constantemente as
mercadorias.

A cooperação solidária como uma alternativa pós-capitalista à


globalização atual, de acordo com o filósofo Euclides André Mance (n.
Curitiba, 1963), procura inteligentemente a saída da crise na entrada do
sistema, na fonte mesma de toda produção capitalista: o consumo.

Ou seja, se o mundo capitalista está criando por si mesmo as


condições para a sua própria superação, excluindo um número cada vez
maior de gente do sistema de produção e inibindo as possibilidades reais de
consumir (não só para os pobres de sempre, mas para os novos), porque
há menos volume de recursos distribuídos na forma de salários e porque já
não interessa o potencial de trabalho para reproduzir o excedente de
capital, vamos consumir por fora do sistema e entre nós, os que estamos
sendo excluídos.

A “revolução das redes” da economia solidária, segundo Mance,


resgata da estética do consumo uma nova ética (que contém uma nova
forma estética) e uma visão do mundo solidária, possibilitando o
crescimento econômico, ecológica e socialmente sustentável, e resgatando
como fim último a expansão das liberdades públicas e privadas, eticamente
referenciadas e a reconfiguração de espaços de poder em/desde a borda.
291

O consumo solidário ocorre quando a seleção do que consumimos é feita não


apenas considerando o nosso bem-viver pessoal, mas igualmente o bem-viver
coletivo. Esse tipo de conduta somente se torna possível quando as pessoas
compreendem que a produção encontra a sua finalidade –ou o seu acabamento- no
consumo e que ele tem impacto sobre todo o ecossistema e sobre a sociedade em
geral (MANCE, 1999, p. 29).

Esta probabilidade emergente de auto-organizar a vida se baseia na


possibilidade de transformar nossa consciência individual consumista em
outra, individual, coletiva, quântica e cósmica. É a expansão das redes de
colaboração e poder solidário locais, regionais e mundiais que tende a
permitir a construção democrática de uma alternatividade viável ao
desenvolvimento e uma interdependência cultural heteronômica e pós-
capitalista à globalização hegemônica que está em andamento.

O poder solidário é o poder transconsciente que atua de maneira


alternativa ao poder convencional, sem se opor a ele, mas aproveitando
suas limitações e promovendo uma mudança paradigmática em todos os
âmbitos de referência ética, estética e epistemológica visando promover a
emergência e expansão de redes de colaboração solidária local, regional e
mundial em busca da bondade, da beleza e da verdade.

Com base na dimensão política e cultural da colaboração solidária, o


poder solidário se apoia nos vínculos interdependentes de uma organização
heterárquica de pessoas capaz de influenciar porções crescentes da
sociedade a superar o consumo compulsivo (paralelo ao aumento de seu
poder aquisitivo), ou a renunciar ao consumo alienante (como resultado do
refinamento da sensibilidade ética e estética tipicamente humana),
passando a consumir em função do bem-viver e promovendo a liberdade
pública e privada como princípio de legalidade.

Se, de fato, queremos ressignificar o princípio inacabado da


racionalidade estético-expressiva da modernidade, como ponto de partida
para a reconfiguração urbana desde/e na borda/à borda, devemos
configurar um novo sentido estético, uma nova ética lógica, uma nova
política da consciência e um novo saber sensível. Ir além do colocado por
292

Boaventura de Sousa (2001) implica reconhecer que possuímos um


superssentido que nos permite alcançar o “reencantamento do mundo”
proposto por Berman; e não uma, mas as vezes que queiramos alcançá-lo.

A consciência do ego [não participativa], a tradição do individualismo moderno, é


um fenômeno que tem uma história relativamente curta; não é essencial para a
sobrevivência humana ou para uma cultura humana mais rica, e pode vir a ser
inimiga de ambas. [...] Podemos estar às vésperas de uma involução igualmente
dinâmica, e o que está surgindo não é meramente uma sociedade nova, senão
uma espécie nova, um novo tipo de ser humano. [...] a espécie como está hoje
pode se mostrar uma raça de dinossauros, e a consciência do ego algo assim
como um caminho evolutivo sem saída. [...] Quem viverá nessa morada, e como
viverá? Terão que decidir os historiadores do futuro. Mas em um mundo assim,
talvez não sintam necessidade de fazê-lo (BERMAN, 1981, pp. 296-97).

O reencantamento da “periferia degradada” e a produção do lugar sonhado


pelas classes emergentes, de um pós-capitalismo no mundo “desenvolvido”
e de um capitalismo tardio no mundo “subdesenvolvido”, precisam, antes,
alcançar o que, segundo Lynch, faz com que um elemento ou um espaço
urbano emirja no mundo percebido pelas pessoas ou coletividades, já que
“uma boa imagem do meio dá a quem a possui um sentido importante de
segurança emocional” (LYNCH, 1960, p. 13).

Segundo Amendola (2000), o que possibilitou o reencantamento de


áreas oficialmente consideradas “subnormais” na cidade contemporânea
foram, precisamente, a identidade (que as distinguiu de outros elementos),
a estrutura (que marcou a relação entre o observador e o observado) e o
significado (que regenerou uma reação emocional e funcional nos usuários).

Referimo-nos não apenas ao reencantamento do mundo comercial


frio e desencantado da produção, que propôs o mundo instrumentalmente
racional do Weber “moderno” (1902) e que se materializou vulgarmente na
filosofia do mall de compras contemporâneo. Trata-se melhor do
reencantamento do mundo como uma ética para o nosso tempo.

Precisamos, então, superar o equívoco ao qual nos referíamos no


início deste trabalho, que consistiria em acreditar que os problemas e as
bordas existem realmente. Não haveria assim por que investigar e, nesse
293

sentido, os “problemas” do conceito borda e os conceitos do “problema”


borda tampouco existiriam, senão através de uma construção teórico-
racional-mental do pensamento ocidental: os problemas do problema.

Agora, eu concordo com Boaventura de Sousa (2008), que as


representações “entreabertas”, “incompletas” ou “inacabadas” presentes em
nosso tempo permitem transcender o olhar moderno a partir da própria
modernidade, sabendo de antemão que não vamos encontrar aí a solução
(mas é o que precisamos para modificar o evento problemático).

Também é necessário fazê-lo simultaneamente, e este é o sentido do


termo alternatividade ao desenvolvimento: reconfigurar os espaços de poder
no âmbito da regulação, com base no princípio de comunidade (leia-se
civilidade), e reconfigurar a arquitetura no terreno da emancipação,
ressignificando a racionalidade estético-expressiva.

Ambas as conquistas se concretizam em uma nova estética,


alicerçada em um superssenso (senso comum reencantado) que promova a
prática do consumo solidário como a saída alternativa (pela entrada) à crise
do pensamento [etc.] e permita validar nossa experiência de estar vivos
neste mundo [juntos, humanos e não humanos].

É urgente (porque é importante) reconfigurar a ideia de comunidade


em suas duas dimensões: a participação e a solidariedade de uma nova
urbanidade. E, simultaneamente, reconfigurar a ideia [representação] que
temos de nós mesmos, apelando para critérios fora-deste-mundo, ou seja: à
borda dos acontecimentos que a história determina como reais e válidos.

Mas, também (e nisto concordo novamente com Agamben), é toda a


compreensão do vivente que temos que questionar, já que redefinir o
estatuto da criação e da obra como projeto de borda envolve refletir
responsavelmente se a cidade é a probabilidade emergente de um
organismo e, nesse sentido, “se é verdade que a vida deve ser pensada
294

como potência que incessantemente excede suas formas e suas


realizações” (AGAMBEN, 2005, p. 368).

Lembremos que a nossa cegueira intelectual, normalmente nos


impede de reconhecer a existência dos outros e que o que qualificamos
hoje como cegueira dos outros será certamente, no futuro, a nossa
cegueira.

A construção intercultural da igualdade e da inclusão em meio a uma


racionalidade estético-expressiva alternativa em seus conceitos de prazer,
de autoria e de artefatualidade discursiva se alcança melhor (ainda que não
exclusivamente) na borda/à borda.

Subjugados voluntariamente, em condições e situações extremas de


nossa existência, é mais provavel atingir um desequilíbrio dinâmico que
tenda à emancipação, uma assimetria que sobreponha a emancipação à
regulação; tudo isto, implementado com a cumplicidade epistemológica do
princípio de comunidade e de racionalidade estético-expressiva.

Vivemos, pois, em uma sociedade de intervalo, de transição


paradigmática de condições (da borda) entre épocas [interfase] e de
situações (à borda) entre espaços paradigmáticos [interface], de formas e
maneiras antagônicas que pretendem ser complementares.

A probabilidade emergente de um organismo vivo chamado cidade se


estriba na subjetividade emergente [nas bordas], aproveitando a situação de
fronteira como forma privilegiada de sociabilidade não antropocêntrica.

Viver [na borda/ à borda] significa ter que inventar tudo, inclusive o
proprio ato de inventar. O navegante paradigmático transforma os velhos
modos de vida em outros «novos velhos» modos de vida.

Como já vimos, se a hierarquia na fronteira é débil, por estar distante


do centro de poder, a heterarquia na borda é forte e alicerça a sua natureza
295

em múltiplos centros que interagem de forma interdependente e


reconfiguram as relações de poder.

Também sabemos que as bordas enquanto espaço nunca estão


delimitadas, nem física nem mentalmente, e não estão mapeadas
adequadamente no sistema de dominação racional predominante. A
cidadania na borda/à borda é, pois, de natureza intercultural e se baseia nas
minorias: os que aparentemente sobram no sistema de dominação
convencional.

Promiscuidade de estranhos e íntimos, de herança e invenção. A


sociabilidade da borda é também borda da sociabilidade. Daí sua grande
complexidade e precariedade. Devido ao caráter imediato das relações
sociais, nas bordas somos de algum modo, migrantes sem documentos ou
refugiados que procuram asilo.

O poder que cada um exerce [nas bordas] deve ser para abrir
caminhos mais do que para estabelecer limites. Tudo deve ser feito de
determinada maneira (com jeito).

Como podemos entender isto? E mais importante: como tornamos


isto um exercício prático em termos de projeto? E melhor: como projeto de
borda?

Para entender isto, primeiro é preciso explicar que a reconfiguração


urbana (física) é também e simultaneamente uma reconfiguração dos
espaços de poder e, neste sentido: o espaço habitado que viemos
caracterizando como fronteira é uma espacialidade relacional, no limite das
possibilidades normalmente comprometidas pelo status cerimonial que
incessantemente reproduz as formas de regulação-emancipação, desde
que a ideia da modernidade foi aprovada como projeto exitoso da cultura
ocidental dominante.
296

Em seguida, considerar que esta reconfiguração leva à revisão


necessária dos limites da representação contemporânea, tanto da
espacialidade quanto dos espaços arquitetônicos, em termos de uma nova
epistemologia de borda que tem estado ausente dos tratados e utopias do
urbanismo. Isto se alcança confrontando os trabalhos científicos que dão
sustentação a estes limites: revisar o que é relevante em diferentes escalas
de aproximação do problema; revisar o enfoque ou perspectiva analítica que
geralmente permanece ausente, sob uma nova lógica lúdica ou lógica
líquida que privilegie o assombro e a curiosidade; aumentar o grau de
resolução ou visão da questão em termos de um contexto de constelações
de conhecimentos; mudar o sentido lógico do tempo (entendendo o passado
como “o passado”, o que está diante de nós e não atrás). Tudo isto exigindo
e oferecendo prudência e humildade científicas, etc.

Em terceiro lugar, transformar, no âmbito epistemológico, o


significado contemporâneo das categorias de intervenção projetuais físicas,
a partir das consequências sociais de aceitar os limites da representação
urbana/ arquitetônica em disputa com os limites da vontade e os umbrais da
vida mesma, vista como bordas de outros conhecimentos e outras formas
alternativas de representação possíveis na cidade contemporânea
diferentes da segregada-fragmentada.

Em quarto lugar, fazer um convite coletivo à transformação da cidade


contemporânea através de um exercício de investigação holística que
procure a integração do urbano e do arquitetônico em um projeto de borda.
Uma autêntica investigação de borda.

O quinto é projetar com humildade, atrever-se a lançar uma ideia que


procure a reconfiguração urbana, aproveitando que “a borda da cidade é
uma região filolósofica onde se sobrepõem paisagem natural e urbana,
coexistindo sem escolhas nem expectativas. Estas zonas pedem visões e
projetos que definam uma nova fronteira entre o artificial e o natural [...]”
297

(HOLL, 1991, p. 0), em termos de interfaces urbanas e interstícios


arquitetônicos. A partir daí, será o que tem sido sempre em nosso trabalho:
imaginar, projetar, edificar e criticar.

O pensamento de borda reconhece os limites da racionalidade


ocidental dominante e propicia o advento de uma cultura emergente; pela
abordagem de uma metodologia holística de investigação e o
reconhecimento do metamétodo transconsicente reconfigurar a cidade
contemporânea como uma rede de interfaz, uma heterotopia.

Essa nova forma de se relacionar transconscientemente, na qual


cada um trata de dar o melhor aos outros e não para ter poder sobre eles, é
uma atitude que eventualmente, e em longo prazo, toda a humanidade vai
adotar.

A sequência explicar, entender, transformar que integra o processo


histórico das três fases da ciência, propostas pelo historiador e filósofo
Thomas Samuel Kuhn (Cincinnati, 1922- 1996), é encontrada no trabalho da
psicóloga venezuelana Jacquelini Hurtado de Barrera em torno da
investigação holística (2008) e no caso desta tese, uma estrutura fractal de
pensamento-sentimento-ação que configura uma espiral transconsciente
aonde a epistemologia, a metodologia e a lógica se unem como saber e
para além do simples conhecer.

A aceitação de um paradigma “às cegas” pelas pessoas comuns, que


vem da aceitação das estruturas de dominação entre aqueles que detêm o
poder e aqueles que se submetem, acontece em meio de holótipos
(estruturas fractais sequenciais) de exploração, descrição e análise do
processo de investigação.

Esta etapa aparente “pré-cientìfica”, segundo Kuhn, é seguida por


outra, supostamente “normal” do ponto de vista cientìfico, cujos holótipos
investigativos de comparação, explicação e previsão nos levariam
298

finalmente a uma terceira etapa, onde a “ciência revolucionária” configuraria


um “novo” paradigma transitando por holótipos de modificação, confirmação
e avaliação dessa pretensa nova realidade.

Nossa proposta desde/e na borda/à borda consiste em incluir todas


essas fases fractais de um holótipo em especial, denominado projeção, ou
simplemente, para nós arquitetos e urbanistas, projeto arquitetônico e
urbano de borda.

A projeção, na perspectiva desse pensamento de borda e


conservando a estrutura de espiral transconsciente, vista por nós a partir do
proposto por Hurtado de Barrera (2008) no que ela chama “o ciclo holìstico
como continuidade”, é um exercício emergente de probabilidades que vê a
cidade e as pessoas da mesma maneira: como um organismo vivo.

Assim, independente das categorias projetuais de borda, que serão


expostas no próximo capítulo, teríamos um exercício investigativo de borda
na medida em que conseguíssemos encadear, de maneira sequencial e
fractal, uma projeção exploratória mediante a observação, a leitura e o
registro de variáveis resultantes de um processo investigativo que já tenha
identificado uma série de eventos a modificar, com uma projeção descritiva.

A projeção descritiva consegue relacionar as características e


atributos de tais eventos a modificar estabelecendo a pertinência do
processo investigativo orientado para uma projeção analítica, através da
qual se estabelece o tema da pesquisa de maneira sintagmática (nominal,
preposicional, verbal, adjetival e adverbial) e estratégica, conseguindo,
assim, configurar um diagnóstico de potencialidades que possibilita avaliar
os benefícios de assumir tal ou qual postura paradigmática ante os desafios
que representam os eventos a modificar.

Até aqui, apenas definimos o cenário tendencial de uma projeção


exploratória, descritiva e analítica possível para entender com vem se
299

configurando o paradigma dominante - de uma postura pré-científica até


outra de ciência “normal”, onde prevalece o senso comum.

Esta fase também corresponde à compreensão da borda como


periferia de um centro claramente estabelecido de forma hierárquica e seria
um processo investigativo adequado à cidade pré-moderna, algo valioso
para um tipo de pesquisa histórica.

O passo seguinte, segundo Kuhn, é a fase na qual o aparecimento de


“anomalias” se transforma em um novo paradigma. Esta fase poderia se
chamar de contratendencial, devido ao conflito de interesses entre atores a
favor, contra ou indiferentes à tendência dominante; configurando um novo
senso “comum” que consegue ressignificar a realidade, embora ainda não
transformá-la de todo, apenas entendê-la em suas muitas faces e
magnitudes.

A descoberta começa com a percepção da anomalia; ou seja, com o


reconhecimento de que a natureza de certo modo violou as expectativas induzidas
pelo paradigma que rege a ciência normal. Em seguida, se produz uma exploração
mais ou menos prolongada da zona da anomalia. E só termina, quando a teoria do
paradigma foi ajustada de tal modo que o anormal tenha se convertido no esperado
(KUHN, 1992, p. 93).

O encadeamento fractal e sequencial desta segunda fase contratendencial


não constitui em si uma revolução científica, tal como Kuhn entenderia. É,
antes, um estágio prévio ou protoparadigmático, próprio da ciência que
estuda a “vida” dos signos no seio da vida social, mediante o qual a
projeção comparativa de antecedentes em termos de diferenças e
semelhanças das características contratendenciais determina a oferta de
oportunidades de mudança que, encadeadas de maneira coerente
81
configuram o sintagma gnoseológico (desde a perspectiva gnoseológica,
do sujeito cognoscente), que caracteriza uma projeção explicativa da
realidade desejada ou a imagem do que se quer mudar.

81
Ferdinand de Saussure (1971) identifica o eixo sintagmático (baseado em palavras ou
diretamente em significantes) como um dos eixos que dá sentido à linguagem.
300

Assim, se estabelecem na projeção explicativa os processos


geradores dos futuros projetos emergentes, os mesmos que vão orientar a
investigação até uma projeção previsiva, com base na viabilidade de
supostos objetivos urbanísticos e arquitetônicos e antecipando situações
futuras que dependem da resolução - geração dos conflitos de interesses
entre atores dominantes e representativos; mas também e de maneira
transconsciente depende de como nós mesmos agimos.

A terceira fase parte de uma suposta ciência revolucionária a um


estágio de coisas ainda incerto, muito similar à contemporaneidade. É neste
momento do processo que, para passar do holótipo preditivo ao projetual é
preciso primeiro empreender a projeção interativa ou ação participativa para
daí passar a uma projeção verificativa e finalmente chegar a uma projeção
avaliativa de todo o processo, um novo começo onde muito provavelmente
(imaginamos que Kuhn diria o seguinte se houvesse conhecido a proposta
holística de Barrera) – anomalias tornarão a aparecer, as fissuras na
estrutura do pensamento que levariam a um futuro paradigma, uma vez que
este tenha sido reconhecido pela “nova ciência”.

Quer dizer, antes de propor um desenho arquitetônico e/ou urbano,


um plano, um método, nós temos que mudar a realidade objeto de estudo,
modificando-nos também nós mesmos num processo amplo, participativo e
vivencial que permita aceder a uma tomada de consciência ao mesmo
tempo individual, coletiva, cósmica e quântica.

Compreendemos depois de tudo isto, que a investigação projetiva


não é o mesmo que um projeto de investigação, nem que a investigação
projetiva de um pensamento de borda obtém os mesmos resultados de um
pensamento “normal” que repousa comodamente em um paradigma
“normal” (supostamente científico).
301

Nesse sentido, a investigação projetiva pode ser classificada como


categoria projetual de um projeto de borda, quando surge de condições e
situações desde/em/à borda.

Melhor dito, não é a mesma coisa conhecer e saber, supor e ter


vivido a borda/à borda. É como o carnaval: quem vive é quem curte.

No marco de uma estrutura de pensamento convencional, a fase


projetiva da investigação científica se baseia em um processo causal e tem
como resultado o desenho de um projeto acabado. Em vez disso, no limite e
para além do pensamento racional dominante, a mudança esperada, além
de emergente e incerta, acontece pela sincronicidade e, simultaneamente,
no espaço e no tempo.

O encontro inesperado e enriquecedor entre a ciência e as diferentes


tradições do mundo torna possível imaginar a aparição de uma nova visão
da humanidade e até de um novo racionalismo, capazes de desembocar em
uma nova perspectiva metafísica 82.

3.7._Conclusão Capítulo III.

A formulação de uma política pública favorável à reconfiguração urbana


desde/em na borda/ à borda requer um enfoque voltado para projetos
emergentes que procurem ações satisfatórias e que se origine de um
diagnóstico de potencialidades. A gestão do processo de reconfiguração
urbana desde/em na borda/à borda deverá ser, então, participativa e efetiva,
no sentido de conseguir transformar as ações coletivas, que buscam a
emancipação quanto aos sistemas de regulação de poder, em intervenções
transformadoras num nível transconsciente.

82
Declaração de Veneza. Comunicado final do colóquio “A ciência ante os confins do
conhecimento: prólogo de nosso passado cultural”. Março, 1986.
302

Esta sabedoria interior é meu verdadeiro poder e nada pode afetá-la.


Respeitando este princìpio, devo confiar em “meu habitante de borda” e ter
fé de que posso ser-lhe útil para que encontre essa sabedoria dentro de si
mesmo e possa se tornar uma realidade holística que cure as fraturas da
cidade.

Mudar o mundo sem tomar o poder, reconfigurar as estruturas


visíveis e ocultas que sustentam a ideia de um mundo fragmentado,
segregado e radicalmente violento pressupõe superar as estratégias que
possibilitam a mistificação da experiência cotidiana, no sentido de que o
orbanismo contemporâneo não deve ser uma fórmula para desordenar uma
informação para que ela se torne incompreensivel, usando um código ou
chave entendido apenas pelos orbanistas, os «iluminados», os
«universais».

Um processo realmente emancipador, que nos liberte das cadeias da


prisão do poder implica a reconciliação com a criação inteira, no sentido de
reconhecer que existem outras formas de pensamento não humanas,
igualmente válidas, para mudar eventos humanos considerados desafios
em nosso processo evolutivo.

Algo assim somente poderia acontecer em uma nova realidade de


borda/à borda aonde e mediante a qual o poder seja mais distribuído e os
centros de poder menos centralizados, configurando uma heteronomia
cultural policêntrica, uma topologia de rede, em que os fenômenos de
borda/à borda sejam entendidos como a probabilidade emergente de
estruturas dissipativas em rede.
303

Figura 4: Partindo de uma situação interessante.

Fuente: Grosso, 1993


304

Capítulo IV–PROJETO DE BORDA

[...] O Projeto é a maneira de conhecer e transformar a realidade.

Argan, Giulio Carlo 83. "Projeto e Destino", 1970.

4.1._Introdução Capítulo IV.

Continuo acreditando que nós arquitetos deveríamos fazer projetos de


pesquisa na escala da cidade. Os processos urbanísticos, tanto os
burocráticos e planejados quanto os espontâneos, vêm construindo nossas
cidades com uma irresponsabilidade ímpar com respeito à sua forma e à
qualidade de vida de seus habitantes.

Nosso urbanismo, nossa arquitetura da cidade e nossos planos,


oriundos do legado histórico com seus aspectos bons e ruins, devem a sua
essência à contemporaneidade.

O projeto de borda é um projeto de lugar (ainda que negado), que


emerge da realidade complexa de nossas cidades latino-americanas e que,
cada vez mais, reclama seu próprio espaço na prática de nossa profissão,
enquanto projetos urbanos e arquitetônicos; éstes últimos, cada vez mais
inter-relacionados e aplicados à intervenção transformadora de nossas
cudades.

Nas cidades contemporâneas (mas fora delas também) são distintas


as maneiras de transformar o espaço urbano e a arquitetura. Entretanto,
mesmo na mais desenvolvida das intervenções, nem sempre o êxito é
obtido quanto aos objetivos traçados pelas políticas públicas. O que está
acontecendo, por que as políticas públicas fracassam?

83
Giulio Carlo Argan (Turim, 1909-Roma, 1992), historiador e crítico de arte.
305

Parte da resposta encontra-se, talvez, nas categorizações projetivas


das intervenções estabelecidas pelas instituições voltadas para o
crescimento urbano, tais como as associações de arquitetos e engenheiros.

No enfoque adotado pelas instituições para intervir na cidade


contemporânea, encontramos erros profundos de percepção da complexa
realidade que são responsáveis por agudas diferenças, desigualdades e
desconexões, bem como pela emergência no espaço urbano e arquitetônico
de interfaces e interstícios, produtos da atual fragmentação física e da
segregação social do espaço urbano; as mesmas interfaces e interstícios
que categorizam os tipos de projetos de borda.

4.2._Categoria e Projeto.

Convém diferenciar a ideia de projeto urbano ou arquitetônico da ideia de


categoria como resultado do processo de classificação de tais projetos,
sejam obras já realizadas, por realizar e até mesmo ideias que nunca foram
materializadas, embora a noção de realidade física também tenha sido
questionada suficientemente nesta tese, até a compreensão de que o que
existe é a potencialidade, a probabilidade emergente de um projeto
desde/na borda/à borda.

A ideia ocidental de projeto surge historicamente no Renascimento


europeu, entre os séculos XV a XVI, quando o teocentrismo foi substituído
pelo antropocentrismo. Neste contexto de mudança, a vida passa a ser vista
como possível de ser construída e não como algo projetado de antemão.

«Tendência não é destino». Tendência não significa, necessariamente, que este


seja o destino. [...] O projeto, dizia Argan, é o que pode mudar o destino. Não há
destino se não há projeto. [...] a condição humana é projetiva, do contrário, não é
condição humana (PESCI, 2007, p. 111).

A ideia moderna de projeto, consonante com o projeto de modernidade,


constitui uma evolução do referido processo que passa a ser compreendido
306

como um conjunto de atividades que visa atingir determinados objetivos, a


partir de atributos de capacidade, desempenho, originalidade e gradualismo.

Contemporaneamente, a ideia de projeto que emerge se assemelha


mais a ideia de projeto de borda, que vamos desenvolver mais adiante. Por
ora, nos concentraremos em uma das inúmeras classificações da noção de
projeto, relativa ao arquitetônico e ao urbano; classificação que se baseia no
conteúdo e na complexidade que um projeto tem e que pode alcançar em
uma etapa determinada de sua realização.

É assim que a ideia de projeto arquitetônico e urbanístico se assenta


no seu conteúdo construtivo. Esta construção pode atingir graus diversos de
complexidade: simples, complexa, técnica, tecnológica, podendo ser
considerado projeto desde um programa de projetos até um megaprojeto.
Uma cidade vertical, por exemplo, pode ser simultaneamente um
macroprojeto arquitetônico e um projeto urbano.

Assim como a ideia de projeto foi evoluindo, a sua classificação


também foi mudando e se ajustando a estas alterações.

A noção de categoria surge de maneira sistematizada no


pensamento ocidental na obra Organon, instrumento e método, na qual
Aristóteles (segundo a interpretação do filósofo M. Candel, em 1988)
consegue transformar conceitos em categorias, constituindo assim uma das
características mais essenciais do pensamento abstrato.

O desafio contemporâneo consiste em superar o desenvolvimento


histórico do conhecimento, construído sobre as bases da prática social da
hierarquia, gerando categorias projetivas a partir da heterarquia.

No caso colombiano, as categorias surgiram do trabalho


descoordenado das associações de arquitetos e escolas de arquitetura,
durante várias décadas da última metade do século passado.
307

Nós acreditamos (neste trabalho) que, contudo e apesar de serem


entidades muito relacionadas ao exercício profissional, somente com a
participação de graduados e pós-graduados nos concursos e concorrências
anuais será possível consolidar um corpo teórico que sustente a ideia de
projeto como categoria básica de intervenção na cidade, nas edificações e
nos processos construtivos.

A intenção das associações que reúnem as disciplinas responsáveis


pela construção material da cidade e sua arquitetura sempre esteve
orientada em termos de projeto, entendido como projeto acabado ou em
processo (ideia). Por outro lado, a academia (leia-se escolas de arquitetura
e urbanismo e recentemente as carreiras “afins”), além de procurar orientar
seus processos de ensino e pesquisa para o desenho de projetos, tal como
o entendem as associações, vem participando atualmente da discussão da
pesquisa como tal, ou seja, considerando as categorias de Projeto
Arquitetônico e Projeto Urbano por um lado e, por outro, as categorias de
Investigação Projetiva em tais projetos.

Assim, vem se configurando um quadro bastante dinâmico no meio


institucional e de pesquisa em torno das ideias de projeto e categorias de
projeto, que se torna muito mais interessante à medida que surgem e se
reconhecem novas categorias projetivas no futuro do urbanismo e da
arquitetura contemporâneos.

Tendo entendido a ideia de projeto como uma das principais formas


de intervenção urbana e arquitetônica contemporânea, se percebe o
renovado interesse de classificação por categorias de projeto.

É interessante notar que existe uma feliz confusão entre a ideia de


projeto com as etapas que seguimos no processo de consecução do
mesmo (ideia, desenho, execução, avaliação). Isto gera categorizações
ambíguas que confundem, por exemplo, a planificação urbana com o
308

urbanismo, o desenho urbano com a planificação, para mencionar alguns


casos mais comuns.

Igualmente, a nossa mente tem a tendência de separar e hierarquizar


as coisas, de entender separadamente o urbano e o arquitetônico em
qualquer projeto construtivo, o que nos leva a atribuir metas e
compromissos em âmbitos gerais e éticos aos projetos urbanos e em
âmbitos particulares e estéticos aos projetos arquitetônicos.

Há também uma propensão, esta derivada da confusão


administrativa, a discriminar os projetos urbanos preferivelmente como
projetos “públicos” e “sociais” e os projetos arquitetônicos como “produtivos”
e “rentáveis”. Isto ocorre porque normalmente existe a crença de que um
projeto lucrativo deve favorecer o capital e a propriedade privada ficando a
responsabilidade social e coletiva como dever do Estado, principalmente.

Isto nos leva a cometer graves erros, tanto na execução do gasto


público como nos critérios de investimento privado, desconhecendo a
responsabilidade social da arquitetura no edifício e em seu processo
construtivo, e ignorando a possibilidade de gerar riqueza e o senso estético
ligado ao fenômeno urbano.

A cidade é muito mais do que uma paisagem, a arquitetura é muito


mais do que o edifício e isto se percebe melhor em um projeto emergente
concebido sob a lógica não linear do pensamento de borda. Em todo caso,
os limites entre o arquitetônico e o urbano (felizmente) nunca foram
totalmente claros.

Há um processo renovado e produtivo de discussão entre diversos


setores da universidade e as associações do qual os habitantes da cidade
só podem se beneficiar se fizerem parte desse debate; sempre que houver
estratégias que envolvam o ponto de vista do cidadão e seus critérios de
309

valorização da forma, função, tecnologia, expressão e relação com o


contexto construìdo ou “natural”.

A crescente preocupação com o tema da cidade e seus espaços


públicos e equipamentos urbanos se somou ao reconhecimento da
arquitetura como responsável pela configuração de espaços que contribuam
desde o individual à construção de uma sociedade mais justa, tolerante e
participativa.

O desenvolvimento sustentável, embora um mandato quase mundial


e a principal preocupação das políticas de desenvolvimento do milênio, não
foi explicitamente classificado e deveria fazer parte do Projeto de
Paisagismo, mas transcendendo a sua condição puramente cenográfica e
ganhando um status de carreira profissional.

Estes e outros temas de igual importância, como o habitat e a gestão


integral do risco, serão retomado nos Projetos de Borda, quando estes
forem finalmente entendidos como uma forma de totalidade e não como
simples limites do existente, e que se reconheça como potencialidade o
caráter híbrido dos Projetos de Interfaz, (sejam de interface espacial e
84
interfase temporal como subcategorias do Projeto Urbano) e dos Projetos
de Interstício, em qualquer de suas modalidades, como subcategorias do
Projeto Arquitetônico. Tais projetos são realmente indispensáveis para
alcançar a sustentabilidade, a equidade e a justiça no habitat
contemporâneo.

84
Interfase temporal ou Interfase diacrônica. É a ideia de borda como conceito geral de
sincronicidade, no sentido especial de uma coincidência temporal de dois ou mais
acontecimentos relacionados entre si de uma maneira não causal, cujo conteúdo
significativo seja igual ou similar. É diferente do termo sincronismo, que constitui a mera
simultaneidade de dois eventos. Se também entendemos o tempo como uma maneira de
perceber o espaço, toda interfase é também uma interface espacial de borda e, portanto,
sincronicidade e sincronismo seriam a mesma coisa, só que percebida por nosso ser
dividido pelo pensamento racional dominante.
310

4.3._Categorias Urbanas e Borda.

Ilustramos, em certa medida, as diferenças e semelhanças entre as noções


de projeto e planificação do projeto e a importância de discriminar as razões
que deram origem à classificação das categorias projetuais de intervenção
na realidade arquitetônica e urbana contemporânea.

Precisamos agora descrever estas categorias em termos de projetos


urbanos e projetos arquitetônicos e relacioná-las, por semelhanças e
diferenças, com o que estamos chamando de Projetos de Borda.

O projeto urbano contemporâneo, diferente do projeto urbano francês


das últimas décadas do século passado, vai além da crítica à produção
modernista e ao urbanismo funcionalista e considera a natureza estratégica
dessas obras uma resposta às políticas públicas de desenvolvimento local
baseadas na busca da inserção da cidade no mercado globalizado do
capital.

O termo projeto urbano, […], vem da tradução literal de projet urbain, cunhado na
França, na década de 1970, num contexto de revisão de paradigmas para atuação
na cidade contemporânea, tendo em vista suas problemáticas e demandas. [...] Na
origem, estão as críticas à produção modernista e ao urbanismo funcionalista,
elaboradas a partir dos anos 1950, sobretudo nos anos 1960 e 1970, não apenas
no campo da arquitetura e do urbanismo, mas também em outras áreas do
conhecimento (BARANDIER, 2006, p. 146).

Segundo a professora e arquiteta brasileira Denise Barcellos Pinheiro


Machado (2002), a compreensão do projeto urbano como estratégia e do
planejamento urbano estratégico como um processo indispensável para
criar e renovar física e ambientalmente a cidade, em parte explica porque
eles não são considerados projetos urbanos, se isolados e rígidos, pois sua
capacidade para ressignificar a cidade, a sua “emergência”, depende de
nossa capacidade de assumir um olhar alternativo que permita
precisamente ver o que não é evidente, com imaginação e visão
prospectiva, com responsabilidade e compromisso ético e estético.
311

No caso colombiano, as categorias de intervenção projetual na


contemporaneidade são o resultado do desempenho de nossos sindicatos e
instituições públicas e privadas no espaço de nossas cidades e, em geral,
no território legalmente constituído como nação e regulamentado pelo
Estado.

Elas fazem parte dos instrumentos de ordenação urbana e, como tal,


pertencem a um marco legal que foi validado na prática do ofício daqueles
que ostentam o título de arquitetos e urbanistas. Certamente, fazem parte
deste complexo processo múltiplas disciplinas associadas - ou não – no
intuito de construir, reconstruir e renovar constantemente o habitat humano.

Como resultado imediato de qualquer pesquisa, devemos referir o


“dever ser” institucional em uma comunidade imaginada chamada nação.
Neste caso, falamos do marco legal e constitucional que levou à
instrumentação de políticas públicas, tomando como exemplo a cidade de
Bogotá, na Colômbia. Este referente legal e constitucional vem sofrendo
uma série de reformas, sendo reconhecido hoje como a base para um
estatuto orgânico que sustenta as ações dos sindicatos e associações.

Convém esclarecer que estes sindicatos e associações são


anteriores ao marco legal e têm sido a prática daqueles que fizeram a
cidade, de muitas e variadas maneiras, todas conflituosas, algumas mais
criativas, mas que vieram configurando os diferentes modos de intervenção
urbana e arquitetônica através dos projetos construídos ou em
desenvolvimento.

85
A investigação de Pinheiro, em curso , portanto lança as primeiras
luzes no sentido de tentar descrever essas operações urbanas e
arquitetônicas mediante projetos contemporâneos. Até aqui parece uma
tarefa fácil, porém, é saudável considerar que a visão oficial do assunto não
85
Bolsa de Produtividade de Pesquisa em curso. Título da proposta: Projetos Urbanos e
cidade: desafios da metrópole contemporânea. Período da pesquisa: 01/03/2010 a
28/02/2014. PQ-CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).
312

é suficiente e que a cidade, e o território habitado pela consciência humana,


em geral, se constroem de múltiplas maneiras, algumas consideradas
“formais” no sentido da legalidade, outras não.

Por sua parte, para a maioria dos arquitetos, um projeto urbano é um


instrumento de intervenção urbana que engloba todas as dimensões do
físico, do social e do institucional com o propósito de resolver problemas
específicos em um território definido (preferivelmente naquelas regiões onde
o Estado tem se mantido ausente), garantindo a melhoria das condições de
vida de seus habitantes.

Enquanto instrumento, o projeto inclui componentes de participação


comunitária, coordenação interinstitucional, reabilitação de bairros, melhoria
da moradia, do espaço público e da mobilidade, adequação de
equipamentos coletivos e recuperação do meio ambiente.

No projeto urbano, os conceitos do conceito evoluíram em torno de


três (3) subcategorias de projeto. Este processo envolve de maneira multi-
inter-trans várias disciplinas que têm relação com a cidade, especialmente
com o seu processo de construção e renovação, incluindo, obviamente, a
discussão sobre o meio ambiente e os conflitos que esta relação representa
na cidade contemporânea quanto ao território e à paisagem.

Redesenho da interfaz rural-urbana.

O desenho urbano “convencional” tem por objetivo interpretar a forma do


edifício e o espaço público com critérios físico-estético-funcionais,
procurando ações capazes de satisfazer as necessidades e os desejos das
comunidades ou das sociedades urbanas, considerando o benefício coletivo
em uma área urbana existente ou futura e buscando definir melhor a
estrutura urbana.

O necessário redesenho das interfaces se coloca para além dos


critérios antropocêntricos do habitat urbano humano, mesmo na ausência
313

de uma verdadeira participação cidadã e da confusão generalizada entre


projeto urbano e planejamento urbano. O desenho urbano leva o exercício
planejador (separatista e hierarquizador) a distintos níveis de análise da
questão do desenvolvimento tais como a região, o centro urbano, as áreas
urbanas e até mesmo ao mobiliário urbano.

O redesenho da interfaz emergente envolve escalas intra e


supraurbanas e, nesse sentido, pensa-se também no redesenho da Interfaz
Regional. Em qualquer caso, inclui planos, projetos, propostas de
ordenamento zonal, urbano e regional, assim como projetos de normativa
urbana que considerem aspectos arquitetônicos, sociais, econômicos,
estéticos e ambientais que afetem o contexto urbano e seu território
correspondente.

Os projetos de borda não escapam deste ímpeto planejador, já que a


borda, por sua natureza enquanto interfaz rural-urbana faz parte das
intervenções que visam consolidar a cidade ou resolver a conurbação entre
cidades. Apesar de não conseguir ultrapassar a ideia de limite e não
tratando do desenvolvimento próprio da área rural da qual fazem parte,
poderiam ser classificados como Projetos de Redesenho de Interfaz Rural-
Urbana.

Requalificação ambiental da interfaz rural-urbana.

A intervenção nas bordas da paisagem urbana, convencionalmente foi


chamada de Paisagismo. São projetos de desenho urbano do espaço
público que permitem, entre outras coisas, a integração dos projetos
arquitetônicos com o seu entorno, o desenho de áreas externas dos
edifícios, o delineamento da paisagem e o desenho de elementos do
mobiliário urbano. Tudo isto, buscando uma apropriação criativa da
natureza.
314

A requalificação ambiental é mais do que projetar jardins para as


edificações, do que desenhar parques recreativos para áreas residenciais
de uma cidade. Trata-se de integrar ao projeto urbano várias disciplinas
além da arquitetura, como agronomia, sociologia, ecologia, geografia, arte,
etc., levando em conta, ao produzir espaços, tanto a sua forma e volume
como a troca de energia com o ambiente, fatores que se desenvolvem e
transformam no tempo, uma vez que se trabalha com seres vivos.

Em termos de um projeto de borda e compreendendo a cidade como


um organismo vivo (com a probabilidade emergente de projetos em
condições e situações de borda/à borda), a requalificação ambiental
também é vista como uma oportunidade de renovação urbana em termos de
Projeto de Requalificação Ambiental de Interfaz Rural- Urbana.

A reconfiguração urbana.

A reconfiguração da forma urbana como uma estratégia para modificar o


comportamento humano até o ponto de alcançar a sua adaptação ao meio
urbano enquanto cidadão é uma antiga utopia fascista que se oculta
habilmente nos mecanismos planejadores, formulando-se como política
pública, da modernidade à contemporaneidade.

Enquanto projeto urbano, a renovação urbana normalmente é


entendida como a remodelação necessária dos edifícios, equipamentos e
infraestruturas de uma cidade em função do seu desgaste “natural” ou para
conseguir adequar a cidade a novos usos e atividades exigidos pelo
processo de desenvolvimento.

Trata-se de um projeto que responde a fenômenos complexos e,


portanto, pode tomar muitos caminhos. É também um processo no tempo
que demanda um exercício de planejamento relacionado a outros tipos de
processos urbanos como a reabilitação, a remodelação e a requalificação
da cidade construída.
315

A indesejável (mas hipocritamente conveniente) gentrificação de


zonas da cidade com a evidente deterioração física, ambiental e social e
com baixas taxas de ocupação, que implica em graves conflitos funcionais
internos ou com setores circundantes, com uma alta percentagem de
infraestruturas subutilizadas, com proliferação de vazios urbanos, etc.,
geralmente é a solução encontrada como estratégia de renovação urbana
em uma cidade regida pelas leis do mercado imobiliário de terras.

Neste sentido, a segregação, a fragmentação e até a violência


urbana contemporâneas são fenômenos funcionais ao sistema de
dominação que atualmente se globaliza. O resultado de um esforço
deliberado e consciente para alcançar a transformação do meio ambiente
urbano em meio à gravidade dos conflitos derivados dos desafios
mencionados surge de um ajuste das políticas públicas e da intervenção
através de projetos urbanos em diferentes escalas, do existente e do futuro,
conforme as exigências atuais e por vir de uma cidade que está prestes a
surgir e cujo rosto definitivo ainda (ou talvez nunca) não conhecemos.

A renovação urbana vista assim, como reconfiguração urbana,


produz ao menos três (3) efeitos principais: o aumento da qualidade das
estruturas até um padrão prefixado por políticas públicas ou pelo mercado
de capitais; a demolição, realinhamento e reconstrução de uma área
completa (dependendo de suas interfaces) da cidade; e a substituição ou
deslocamento dos habitantes originários (especialmente os pobres) de uma
zona.

Ainda se discute em salas de aula dos cursos de arquitetura na


Colômbia se isto é ou não ético, ou se faz parte de nosso trabalho induzir
esta transformação social. Entretanto, e de acordo com os princípios de
uma educação supostamente “humanista”, trata-se, acima de tudo, de uma
adaptação da população existente às mudanças futuras, presumidamente
316

desejadas (pela maioria) e seguindo o perfil de uma cidade que se


autointitula educadora e civilizadora.

O evidente fracasso de uma arquitetura e urbanismo humanistas não


pode ser substituído por outro esforço desumanizante. A verdadeira
renovação urbana ocorre mediante um Projeto de Reconfiguração Urbana
através do qual, tanto as manipulações da forma como a readequação do
comportamento cidadão fazem parte de caminhos distintos da política
pública que vão confluir para um mesmo resultado: a coerência.

4.4._Categorias de Arquitetura e Borda.

Convencionalmente e de forma extremamente simplificada, o projeto


arquitetônico é um conjunto de plantas, desenhos, esquemas e textos
explicativos utilizados para apresentar (em papel, digitalmente, em
maquetes e por outros meios de representação) o desenho de uma
edificação antes de sua construção.

De uma forma mais ampla, o projeto arquitetônico completo


compreende o desenvolvimento do desenho de uma edificação, a
distribuição de usos e espaços, a maneira de utilizar os materiais e as
tecnologias e a elaboração do conjunto de plantas com detalhes e
perspectivas.

Em um projeto arquitetônico consistente existem pelo menos quatro


(4) subcategorias de projetos do tipo borda. Isto não necessariamente está
de acordo com algumas formas de intervenção, principalmente às relativas
ao projeto, que é visto por alguns como um simples desenho (design),
enquanto outros insistem em afirmar que se trata do projeto “real” como tal.
Ou seja, a materialização da ideia colocada em cena com a potencialidade
“real” de ser executada hoje ou no futuro.
317

O projeto arquitetônico intersticial “poroso”.

Um projeto arquitetônico convencional (acadêmico) oferece exercícios que


desenvolvem uma edificação ou um conjunto de edificações sem limitações
de escala, uso ou complexidade. Em termos gerais, esta subcategoria exclui
todas as demais subcategorias arquitetônicas projetuais; por isto, podemos
dizer que se trata de projetos sem classificação e que dependem da escala,
do uso ou da complexidade para se diferenciar.

Enquanto desenho arquitetônico, um projeto de borda implica a


caracterização dos espaços tipo interstício como centralidade do programa
de desenho, o que se consegue definindo as metas, as etapas e os
objetivos do projeto em uma nova perspectiva e desde uma visão de borda
/à borda, chegando inclusive a emergir uma nova arquitetura porosa,
pervasiva, omnijetiva no âmbito da fronteira do desenho contemporâneo em
um Projeto Arquitetônico Intersticial Poroso.

Arquitetura intersticial interior,

Em termos convencionais, a arquitetura interior tende a se confundir com a


86 87
decoração de interiores , ou com o desenho de cenários , mas,
realmente, a arquitetura de interiores é constituída por um conjunto de
saberes, linguagens, ferramentas, experiências e habilidades pertencentes
às disciplinas das artes e do desenho, por meio das quais se responde a
perguntas relacionadas à construção de um habitat humano, ou ao menos,
“humanizado”, tendo em conta as vivências e as relações do exterior ao
interior das edificações.

86
Decoração de interiores: (ou interiorismo), mobiliário e decoração de interiores
domésticos e de trabalho, normalmente de uma perspectiva prática e estética.
87
Desenho de cenários: como espaços, o desenho de cenários não está comprometido
apenas com a forma e o comportamento, a arquitetura e a psicologia, senão que
igualmente trata da adequada inter-relação do interior e exterior das edificações.
Concentra-se no desenho do efêmero e da imagem.
318

Os interstícios, que correspondem a esta subcategoria (uma vez


identificados e tipificados como tal), podem, por sua vez, ser diferenciados
no interior de um edifício ou no exterior do mesmo em relação a um entorno
tìpico, próprio do desenho arquitetônico “poroso”.

Um Projeto de Arquitetura Intersticial Interior é aplicável a qualquer


outra subcategoria de projeto arquitetônico e isto se presta a confusões.

Retomando uma velha discussão da arquitetura, se a


compreendemos como um diálogo entre habitações e o edifício, entre os
edifícios e seu conjunto urbano imediato é possível também entender como
a forma modifica o comportamento das pessoas.

Interstício histórico do patrimônio.

Em termos convencionais, o projeto de patrimônio arquitetônico faz parte da


gestão do patrimônio cultural que representa a herança cultural própria do
passado de uma comunidade, com a qual ela convive na atualidade e que
transmite às gerações presentes e futuras.

O patrimônio arquitetônico são os projetos de conservação,


restauração e reabilitação de edificações, reciclagem de usos e de espaços
de interesse histórico e valor estético em setores urbanos declarados
patrimoniais, nos centros históricos e lugares patrimoniais em territórios
diversos.

A noção de patrimônio entendida como um Projeto de Interstício


Histórico Patrimonial é resultado da superposição de uma estrutura física
contemporânea sobre outra precedente, pertencente a um período histórico
que faz parte da memória de um povo e que vale a pena conservar
fisicamente visando renová-la espiritualmente em termos de valores
estéticos. Visto assim, o interstício patrimonial envolve valores ambientais
além dos culturais, ultrapassando a ideia de patrimônio, no tempo, e
reconhecendo a presença de estruturas e ambientes patrimoniais futuros.
319

O que permanece entre os monumentos e locais considerados


patrimônios e seu entorno físico-ambiental, seja natural e/ou construído, é o
que se entende então, nesta nova ideia de projeto emergente, como
patrimônio arquitetônico. O projeto de patrimônio arquitetônico visto por um
olhar de borda vai muito além do encargo primeiro: do edifício, do conjunto
de edifícios ou das ruínas do edifício ou do conjunto de edifícios que, ao
longo do tempo, vão adquirindo um valor maior que o original.

88
Estes valores, que são classificados pelo ICOMOS como culturais
ou emocionais, físicos e intangíveis, históricos ou técnicos, devem sua
natureza não ao edifício, não ao conjunto de edifícios, não ao monumento,
senão ao interstícios que restam entre estes e a cidade contemporânea.

O habitat intersticial emergente.

Compreende os projetos que tratam da moradia como espaço físico e social


que cada pessoa, família ou grupo humano têm o direito de possuir e
construir para o seu desenvolvimento (entendido como plano de vida).
Geralmente, o caráter “popular” da habitação é determinado pelas
condições socioeconômicas do usuário.

O habitat humano como categoria implica a garantia do emprego, da


vizinhança e da integração social, a construção de uma identidade ligada ao
território, o direito à saúde, à educação, à moradia, à posse e propriedade
de um terreno, o acesso oportuno a serviços públicos e domiciliares, a
garantia da segurança cidadã, a melhoria dos bairros, um meio ambiente
saudável, etc.

As situações e condições no limite da vida humana se manifestam


em ações que inibem a adequada satisfação do habitat nos termos

88
International Council on Monuments and Sites: Organismo da ONU-UNESCO, fundado
em 1965, como resultado da Carta de Veneza de 1964. O ICOMOS é responsável por
propor os bens que recebem o título de Patrimônio Cultural da Humanidade. Seu principal
objetivo é promover a teoria, a metodologia e a tecnologia aplicada à conservação,
proteção e valorização de monumentos e sítios de interesse cultural.
320

anteriormente mencionados e constituem os desafios que devem ser


superados em um Projeto de Habitat Intersticial Emergente.

A moradia, entendida em sentido amplo do habitat, encontra o limite


de sua realização no limiar da vida coletiva que se desenvolve nos espaços
considerados públicos e que são os interstícios funcionais onde se busca a
otimização das vivências cotidianas; lembrando que a porosidade
arquitetônica é de via dupla e tem múltiplas dimensões.

4.5._Categorias de Projeto de Borda.

A probabilidade de um projeto de borda emergente, seja ele urbano ou


arquitetônico, é algo que depende de uma atitude coerente com a
determinação de reconfigurar, tanto a espacialidade quanto o espaço, a
partir de/na borda/à borda; proposta que está alicerçada em uma
mentalidade não antropocêntrica, omnijetiva e, portanto, pervasiva.

A noção de emergente não é sinônima de emergência. Ao menos nos


termos em que em geral se entende a palavra emergência: como algo
“urgente” e “imediato”. O emergente, nesse contexto, se refere a uma
maneira de pensar aleatória que reconhece o princípio da incerteza, que o
físico Werner Karl Heisenberg (Wurzburgo, 1901- Munique, 1976)
desenvolve como a base teórica subjacente à teoria dos sistemas de
Bertalanffy, que fundamenta uma filosofia do limite em Trias (1998) e um
pensamento de borda como conceito em construção apresentado na
presente tese.

Em mecânica quântica, a relação de indeterminação ou Princípio da


89
Incerteza de Heisenberg (1927) estabelece o limite além do qual os

89
A primeira edição do Princípio de Indeterminação foram as 14 páginas da carta, escrita
por Heisenberg a Wolfgang Ernst Pauli, em fevereiro de 1927.
321

conceitos da física clássica não podem mais ser empregados; e, como a


ideia de projeto, surgida desde o Renascimento, se fundamenta, entre
outras coisas, na física newtoniana, logicamente, ao se modificar a ideia de
limite se modifica também a de projeto.

Esta maneira de pensar gera a noção contemporânea de projeto


emergente. Não há nenhum destino a se transformar em um projeto
emergente porque não há condição humana. Trata-se, então, de
reconfigurar a realidade sob um enfoque de omnijetividade não
antropocêntrica.

A arte de projetar ganhou status de disciplina de estudo em meados


do Renascimento, depois de uma batalha de séculos até se chegar ao
entendimento de que o ser humano não era apenas uma criação divina,
senão que também tinha a possibilidade do livre arbítrio e, portanto, não
estava obrigado a viver, irremediavelmente, de acordo com as ordenações
das estruturas de poder soberano ou simbólico.

Infelizmente, confundíamos, nessa época, a possibilidade de


transformar para fora com dominação e não pensávamos, como hoje, na
possibilidade de nos transformar através de um projeto emergente.

Os verdadeiros resultados deste esforço (de se transformar através


de um projeto emergente), em distintos campos de atuação da arquitetura e
do urbanismo começam, então, a apontar possíveis formas de intervenção
urbana e arquitetônica que normalmente escapam a nossa visão formal,
dada a maneira como o direito, a ciência e em geral o urbanismo concebem
a realidade dos assentamentos, entendendo que a cidade também é fruto
dessa visão, às vezes recortada e limitada por critérios de nosso
pensamento ocidental dominante.

Para compreender como acontece a implosão do projeto de borda é


imprescindível comprometer-se com uma nova estética do urbano como
322

fragmento e como fractal, na medida em que reconhecemos novas formas


de centralidade e de totalidade e à medida que vamos percebendo as
múltiplas escalas do fenômeno urbano interconectando-se através das
redes evidentes e ocultas que tecem o orbanismo contemporâneo.

Reconhecendo o caráter fragmentário e segregacionista de nossas


cidades latino-americanas contemporâneas podemos também reconhecer
aì uma realidade, não de todo “aceitável” em termos urbanìsticos
“modernos” e “humanistas”, mas ao menos uma oportunidade para projetar
novas maneiras de entender e fazer a outracidade.

[...] e assim, o que importa na determinação da humanidade do homem como


outra-existência é que o homem não é o essencial, mas o ser como a dimensão do
estático da outra-existência [...] (HEIDEGGER, 1946, p. 24).

Nesse aspecto, é fácil concordar com Sloterdijk (1999), quando afirma que é
preciso abandonar a palavra “humanismo” para recuperar a tarefa do
pensar e daí, por certo: a verdadeira tarefa de pensar a arquitetura e o
urbanismo contemporâneos.

Isto se torna particularmente difícil porque é raro encontrar formas de


intervenção oficial que realmente promovam uma reconfiguração tanto física
como social e que permitam, igualmente, acreditar que estamos
construindo, entre todos, habitats dignos, sustentáveis e esperançosamente
enriquecedores (em todos os aspectos) para as gerações futuras.

Por exemplo, nas áreas de transição entre favelas e bairros, entre o


campo e a cidade, entre as metrópoles conurbadas, entre arranjos
urbanorregionais, entre países, etc. Ou seja, em áreas que têm limites
aparentes, que não necessariamente têm características urbanas e não
obrigatoriamente estão situadas na periferia funcional às estruturas de
poder. Nesses lugares, muitas vezes considerados lugares-nenhum e até
ignorados por nossas entidades e associações oficiais, existe um enorme
potencial de transformação.
323

Estamos falando do poder “transformador” da vida, dessa atitude


emancipadora do sujeito de borda, quando se encontra à borda dos
acontecimentos que determinam as transformações grandes e pequenas,
externas e internas, que operam tanto na cidade como no cidadão. Isto
acontece na medida em que entendemos o processo de satisfação humana,
individual e coletiva, como um conjunto de ações em torno de um projeto
que vai além das expectativas individuais no coletivo, bem como das
expectativas individuais que não são expressas pelas pessoas.

Ambas projetam o ser humano de maneira transitiva e imanente para


fora e para dentro, na medida em que vamos transformando os limites
aparentes da representação urbana contemporânea em novas realidades
emergentes, em autênticas interfaces funcionais que precisam ser
categorizadas para ser reconhecidas e operadas institucionalmente, tanto
com eficiência (da melhor maneira possível) como com eficácia (com
sucesso).

Na verdade, tudo isto vem sendo tentado desde sempre. É a velha


luta entre as forças de emancipação e as forças reguladoras da
humanidade que se manifestam fisicamente em estruturas físicas e
simbólicas.

Só que agora, assim como entendemos e manipulamos a realidade


virtual através dos meios digitais (o que permite compreender melhor o
projeto psicodélico dos anos 70 do século passado), podemos também “ver
melhor”, através de um olhar que capta a realidade muito mais complexa,
como operam as redes sociais contemporâneas em um projeto emergente
de borda.

Referimo-nos a um projeto que consiga transformar o transeunte em


transcendente, que consiga fazer emergir um projeto de borda de um vazio
projetual (Borde, 2006), transformando as interfaces e interstícios urbanos e
arquitetônicos de maneira funcional e não antropocentricamente.
324

De fato, se não se trata de diluir as fronteiras entre a cidade informal


e aquela considerada formal, mas de caracterizar e reconfigurar as formas
urbanas de transição tanto no interior como no exterior da cidade, nossa
proposta se orienta para a consolidação de espaços públicos de uso
coletivo que incrementem as probabilidades de interação entre as pessoas,
que tornem acessíveis e exequíveis os serviços e benefícios que a cidade
oferece aos seus habitantes. Esses espaços de interface vão, enfim,
possibilitar às pessoas o enraizamento cultural ao seu lugar de pertença e,
antes de tudo, ao lugar que se quer pertencer.

Tudo isto, não vai ser feito, exclusivamente, de maneira física, há


múltiplas possibilidades no virtual-real. Mas é necessário diluir as barreiras
simbólicas que separam as pessoas e sustentam as estruturas de
dominação de uns sobre os outros. É por isto que um projeto de borda só
pode ser construído coletivamente e de maneira consciente.

Investigação e borda.

Longe de ser uma pretensão “humanista”, os projetos de borda nas nossas


cidades latino-americanas são uma realidade inegável e uma necessidade
urgente. Basicamente, podemos distingui-los como projetos através das
subcategorias projetuais que, no caso colombiano, na medida em que
pretendem gerar uma intervenção no tecido urbano de tipo arquitetônico,
podemos entender como parte integral de qualquer projeto de borda.

A pesquisa em arquitetura mostra que cada projeto é único e que,


portanto, não existe apenas uma maneira de encontrar a verdade, a beleza
e o conhecimento. Neste sentido, o projeto é uma probabilidade tanto de
invenção como de descobrimento.

- Pesquisa de História, Teoria e Crítica: segue o método das chamadas


ciências sociais, principalmente o método crítico, para estabelecer conceitos
e significados aplicáveis a qualquer tipo de projeto urbano ou arquitetônico.
Dependendo do tema do projeto, pode-se aplicar melhor ao patrimônio e em
325

geral aos projetos urbanos, embora também se aplique a projetos de


desenho arquitetônico de grande complexidade teórica, que impliquem um
verdadeiro “insight” ou revelação heurìstica.

A pesquisa “de fronteira”, em termos de pensamento arquitetônico e


urbano é constituída, na contemporaneidade, pelo estudo da arquitetura
líquida e do urbanismo fluido, segundo Araujo (2006), que não diferencia o
que flui (as pessoas – sua mente) do que permanece (a cidade – suas
bordas), quando enfoca a realidade de uma maneira não antropocêntrica.

- Investigação da Técnica, Tecnologia e Inovação: pesquisa empírica afim


ao método científico das engenharias, cujo desenvolvimento, no projeto,
está alicerçado no uso, utilidade e propósito. Geralmente associada a
projetos arquitetônicos, a técnica é um procedimento ou conjunto de regras,
normas e protocolos que tem como objetivo obter um determinado
resultado.

A tecnologia, por sua vez, faz parte de um conjunto de


conhecimentos e atividades que permitem construir objetos e máquinas
para ajustar o meio ao projeto e satisfazer as necessidades do usuário.
Enquanto que, para alcançar uma verdadeira inovação é preciso obter
novos produtos ou processos produtivos que melhorem os existentes; em
arquitetura, geralmente associados à construção física dos edifícios
projetados.

As pesquisas de vanguarda, em termos técnicos e tecnológicos, são


aquelas que procuram uma adaptação e uma resiliência às mudanças
climáticas e suas consequências nos ecossistemas extremos, no limite da
existência humana.

- Pesquisa de Expressão, Representação e Comunicação: em arquitetura,


se associa a expressão à forma, como tudo aquilo que a articula e dá
sentido enquanto disciplina estética. Todo projeto arquitetônico ou
urbanístico possui técnicas de representação da forma e tecnologias
326

associadas que vão do analógico ao digital, embora acreditemos que


somente se alcança uma verdadeira inovação no âmbito da arquitetura,
quando conseguimos comunicar ao usuário o projeto, ou seja, quando
conseguimos “vendê-lo”. Tornando-o desejável como arquitetura e como
cidade.

O método artístico aplicado a projetos arquitetônicos é capaz de criar


inovação na forma na medida em que o desenhista lhe dá um sentido,
alcançando uma arquitetura expressiva. Os umbrais da representação
urbana e arquitetônica contemporânea são um dos temas de fronteira na
pesquisa de borda.

Distinguimos os projetos de borda dos projetos convencionais que


normalmente são concebidos de maneira paradigmática, lógica, racional e
dominante. Os projetos convencionais têm a mesma lógica que separa,
hierarquiza e produz resíduos físicos e humanos na borda/à borda das
condições e situações no limite humano do aceitável.

Da mesma maneira, e tendo-se entendido que existe a borda/à borda


como um projeto distinto do projeto urbano e do projeto arquitetônico (em
termos convencionais) podemos, nos projetos de borda, descrever ao
menos duas subcategorias básicas.

Embora sejam muito gerais, estas subcategorias permitem um


posicionamento teórico bastante sólido para materializar os projetos de
borda como empreendimentos que poderiam ser classificados como “no
meio” e hìbridos; numa mistura entre as várias subcategorias de projeto
urbano e arquitetônico mencionadas anteriormente.

As Interfaces Urbanas:

São maneiras de ver as intervenções que afetam principalmente o tecido


urbano difuso. Aquelas formas urbanas que não são claramente
327

identificáveis como tal a partir da classificação lógica e racional que separa


as coisas, como por exemplo: o urbano e o rural.

Tratando-se de uma situação e condição intermediárias, que não


estão presentes apenas em uma cidade historicamente configurada ou
planejada como compacta, mas que vêm se tornando cada vez mais
frequentes e massivas em qualquer tipo de assentamento, as interfaces da
cidade, seja antiga, moderna ou contemporânea, emergem de forma
fragmentada, como resultado de um comportamento altamente
segregacionista de seus habitantes.

Tais interfaces, que antigamente eram claramente identificáveis como


periferias urbanas, também se encontram, hoje, no interior das cidades,
entre limites já conhecidos como bairros e favelas, ou no entorno sempre
cambiante de corredores ambientais, como limites aparentes em relação
aos acidentes geográficos (mudanças bruscas, dobras na paisagem). Elas
atuam também como barreiras sanitárias em áreas urbanamente já
degradadas e inclusive em áreas de risco iminente ou latente (potencial),
algumas devendo ser removidas e sua população realocada em processos
(ambientais, sociais, culturais, econômicos e políticos) de gestão integral de
risco.

As interfaces, segundo Ábalos e Herreros (1997), podem ser


consideradas áreas de impunidade: lugares onde se produz de forma
excepcional uma condição ambígua que tem a ver com a dissolução da
oposição natural-artificial que observamos em todas as escalas urbanas e
arquitetônicas, e cuja definição como espaços públicos ou espaços naturais
é imprecisa. Lugares antes considerados politicamente “negativos” e que
encontram uma nova urbanidade através de práticas vitais, produto da
experiência dos novos sujeitos sociais.

No caso desta tese, interpretamos o “entre” das interfaces espaciais


(e interfaces temporais) de acordo com a visão contemporânea de
328

espacialidade da cidade atual, diferente do enfoque clássico, por exemplo,


que tinham os antigos gregos da polis, que, como vimos no capítulo III,
corresponderia à ágora, aquele espaço intermediário entre o público e o
privado que hoje não pode se definir assim, porque não há espaços com as
características da polis como tal. Quer dizer, não existe,
contemporaneamente, a democracia plena.

Também, e como já começáramos a explicar nos capítulos


anteriores, as interfaces espaciais podem atuar como interfases; algo
provisório no tempo ou entre períodos históricos de um assentamento
humano particular. Por isto, muita confusão é produzida no momento de
caracterizar um projeto de borda com critérios de intervenção, neste caso,
critérios de reconfiguração.

Vamos acreditar, então, que podemos, através de mecanismos de


intervenção convencionais, alternativos ou mesclados, desenhar
instrumentos de gestão para modificar as condições iniciais de uma
situação de interface até transformá-las em algo reconhecível, como alguma
das realidades aparentemente separadas por limites físicos ou bordas
invisíveis. Isto é o que normalmente ocorre ao longo do tempo, seja na
ausência ou presença da planificação do Estado.

Entretanto, também podemos configurar uma nova realidade, distinta


das precedentes, que não seja nem cidade nem campo, nem bairro nem
favela, nem água nem terra, nem acima nem abaixo (para mencionar
algumas realidades claramente identificáveis), e, neste caso, fazer emergir
um projeto de borda autêntico.

As interfaces urbanas são aqueles lugares-nenhum nos quais surgem


as práticas de uma nova sociedade de borda/à borda. É nessas áreas de
“impunidade” que podem emergir projetos que desenvolvam o espaço
vetorial. Neste sentido, as interfaces são também interfases (com s), um
tempo entre tempos, propício aos projetos de borda, livres de restrições
329

legais, longe do jugo das hierarquias, das instituições ou das formas


patronais retóricas.

Não funcionam por reforma nem através da crítica; se materializam pela utilização
de técnicas contemporâneas, em contextos cuja realidade física é diferente da
tradicional. Procuram isolar, no sistema de regulação social dominante hoje
(produtor do novo sujeito e de suas práticas), novos espaços políticos extraídos da
hibridação entre cultura, produção e ócio (ÁBALOS e HERREROS, 1997, pp. 186-
253) 90.

Os interstícios arquitetônicos.

São aqueles espaços (e tempos) que não chegaram (nem chegarão talvez)
a se constituir como parte funcional da cidade contemporânea, mesmo que
aparentemente façam parte de projetos (na definição convencional) de
obras já construídas ou em processo.

Os interstícios espaço- temporais se originam, em sua maioria, de


interfaces-interfases urbanas não resolvidas como, por exemplo: o resultado
não previsto de intervenções viárias e ferroviárias planejadas, obras ou
empreendimentos em áreas históricas degradadas ou que provavelmente
vão se degradar em função das ditas intervenções.

De acordo com o arquiteto Fernando Fariña (n. La Plata, 1977),


existem três tipos “básicos” de interstìcios: o interstìcio histórico, o interstìcio
instantâneo e uma mistura de ambos. Assim, qualquer interstício é um
espaço arquitetônico, produto da diferença (porção não comum) entre uma
entidade territorial anterior (hoje obsoleta) e outra “nova”, sobreposta,
redundante da hibridização material ou funcional das respectivas condições
originais.

Apresenta-se uma investigação sobre o espaço intersticial, condição implícita na


cidade contemporânea, com base na análise relacional de conceitos e categorias
antecedentes e na verificação empírica de parâmetros emergentes. Constrói-se um

90
Segundo Ábalos e Herreros, foram analisadas as áreas de impunidade e espaços
vetoriais: Majadahonda, Guadalhorce, Abandoibarra, Doñana.
330

traçado, extraído do entendimento da problemática que, na sua própria definição


fica num lugar indefinido: o entre (FARINA e SCHAPOSNIK, 2007, p. 223) 91.

Uma vez que tais espaços, por sua natureza incerta não são claramente
identificáveis, eles são considerados inexistentes, anônimos e inéditos e,
nesse sentido, podem ser vistos como lugares-nenhum: espaços da
92
maismodernidade , entendidos como vetores resultantes dos fluxos –
entre e o interior dos espaços. Trata-se, pois, da negação do espaço
antropológico porque não é habitado e apenas temos consciência deste
espaço vetorial, quando o abandonamos.

Devido ao status “ilegal” e às condições de irregularidade do


comportamento ligado à forma e à imagem difusa da mesma nos
interstícios, estes só podem ser resolvidos em termos de projeto de borda e
podem ser considerados, segundo Ábalos e Herreros, como espaços
vetoriais: o espaço criado pelo sujeito de borda.

Denominaremos espaço vetorial aquele tipo de instalação no meio físico que é


construída pelo [sujeito de borda] por sua própria percepção, pelas formas de se
localizar e usar o espaço que desenvolve. [...] é o entorno que cria o [sujeito de
borda] em sua instalação no mundo. Através do [sujeito de borda] podemos
assimilar uma forma de interpretação [da cidade e da arquitetura] e, portanto,
articular um [meta] método de ação, uma estratégia projetual [emergente] (ÁBALOS
e HERREROS, 1997, pp. 186-253).

Os espaços intersticiais, tanto os não planejados como os que são fruto da


planificação do espaço arquitetônico contemporâneo, são espaços
configurados a partir de vetores de apropriação que implicam conflitos
legais pela posse da terra entre diversos atores (privados, estatais,
informais, etc.), assim como representam transformações materiais e

91
Esta palestra é fruto do projeto Globalização e Entropia Urbana: para uma nova leitura e
interpretação do interstício – Bolsa de Iniciação, SCT- UNLP. Bolsista: arquiteto Fernando
Fariña. Diretora: arquiteta. Viviana Schaposnik. Período abril 2004 – abril 2006.
92
A ideia da maismodernidade como a possibilidade de configurar coletivamente diversos
estados de consciência que coexistem de maneira conflituosa, mas criativa em diversos
espaços-tempo, está baseada em outra ideia que possibilita entender como ultrapassar as
distintas escalas de fractalidade da realidade: a ideia de complexidade como propriedade
inerente aos sistemas não lineares de realimentação múltipla; chamem-se organismos
vivos, cidades, etc.
331

funcionais implícitas, restrições legais em diferentes graus de aplicação.


Sempre supondo uma transgressão.

4.6._Limiares de representação em Arquitetura e Urbanismo


Contemporâneos.

Uma pesquisa de borda que traga uma contribuição verdadeira à teoria da


maismodernidade necessariamente tem que ser feita sob um olhar de
complexidade, quando o objeto de estudo é o espaço-tempo-consciente
arquitetônico e urbano contemporâneos.

Para considerar uma investigação de borda também um projeto de


pesquisa, retomamos o exposto no final do capítulo anterior onde falamos
da investigação projetiva, que vai se ocupar de como as coisas devem ser
para alcançar fins e funcionar adequadamente em termos urbanísticos e
arquitetônicos.

Para considerar um projeto de borda uma investigação projetiva, a


proposta tem que estar fundamentada em um processo sistemático de
busca e indagação em que a totalidade do ciclo holístico de investigação
esteja envolvida efetivamente no desenho ou criação de uma proposta
capaz de conduzir as mudanças desejadas em um nível possível.

Inicialmente, nós tínhamos dúvida da capacidade-de-ser sujeitos


conscientes e complementar a ideia de espaço-tempo como objeto à
maneira de omnijeto. Posteriormente, superamos o esquema dialético
racional de pensamento passando das falsas dualidades (tese - antítese) às
prováveis sínteses triádicas.

Finalizamos este capítulo respondendo ao questionamento inicial que


deu origem a três (3) falsas dualidades fundamentais: espaço e lugar,
espaço e tempo, espaço e poder, colocando a ideia de sincronicidade como
332

fundamento para um tetragrama que procura responder quatro (4)


perguntas fundamentais: Quem eu posso ser? (‫ )י‬Para onde vou? (‫ )ו‬De
onde venho? (‫ )ה‬Quem sou eu? (‫)י‬.

Somos a espécie mais inteligente do planeta Terra, embora não


93
sejamos realmente capazes de provar isto. Talvez, o problema, “falso” ,
resida na ideia equivocada que temos de inteligência (que nossa mente é
real). Em todo caso, se a nossa mente existe realmente, o desafio não seria
uma questão de fato, mas de valor. Isto é, não estamos botando toda essa
inteligência a serviço da humanidade e menos ainda do planeta.

Então, quiçá o evento a modificar não diga respeito ao conhecimento,


senão à consciência e, neste caso, a pergunta seria: a quem serve
realmente a inteligência humana? Esta questão primordial estaria posta
num nível interativo (próprio de uma projeção participativa) da pergunta de
investigação de borda, formulada em termos holísticos. Neste nível, supõe-
se que já tenhamos superado a falsa dualidade sujeito-objeto.

Nas suas exposições, o professor Sierra nos recorda e adverte que a


consciência é, antes de tudo, polimórfica, indiferenciada, caótica e
caleidoscópica, embora também orquestral e talvez sinfônica. Os esforços
de diferenciação são analíticos e dialéticos, sujeitos ao devir do tempo e à
historicidade. Contudo, a dimensão intelectual é uma das dimensões da
consciência, que não é nem melhor nem pior que outras diferenciações da
experiência humana integral.

93
Refiro-me ao problema criado com o fim de dominar a humanidade através do medo. Em
troca, proponho investigar as potencialidades humanas e, a partir delas, transformar a
realidade.
333

94
O caráter “polimórfico” da consciência, segundo Sierra (2007b) ,

encontra sua explicação nos distintos focos de atenção com respeito à

intenção de explicar, entender ou transformar a realidade do objeto de

estudo complexo pelo sujeito da ação, visto de diversas maneiras quanto ao

que percebemos como níveis da dita consciência.

Tratando-se de processos coletivos de reconfiguração de espaços


físicos e de poder que focam a atenção em diversas escalas de
aproximação da realidade (individual, coletiva, cósmica e inclusive
quântica), ficam evidentes os diferentes níveis de consciência
epistemológicos (quanto ao objeto, o método e à experiência vital) e
existenciais (individuais e coletivos) que coexistem no fenômeno urbano em
torno da noção de espaço-tempo.

Ambos os processos, tanto a reconfiguração de espaços urbanos tipo


interface como a reconfiguração de espaços de poder em meio de uma
interfase, são condições-situações que convivem de maneira simultânea em
um mesmo percurso consciente.

Nesta perspectiva, a ideia de superioridade-inferioridade subjacente à


noção de níveis de consciência, que está intimamente relacionada à ideia
de hierarquia oculta em critérios como perfeição e simetria, se dissolve à luz
da ideia de simultaneidade que o enfoque da complexidade traz,
desvelando a aparência subjacente nas supostas dualidades.

Uma primeira falsa dualidade diz respeito aos conceitos de espaço e


lugar. Nem todo lugar existe no espaço, mas todo espaço precisa ao menos
de um lugar para declarar a sua existência. A prática do lugar por seus
habitantes o converte em um espaço. Se nós definimos o critério de

94
Curso de Filosofia da (s) ciência (s) orientado pelo professor Francisco Sierra, filósofo,
Ph.D, em dezembro de 2007 no doutorado de Urbanismo, convênio entre a Universidade
Central da Venezuela e a Universidade Nacional da Colômbia.
334

existência de um ponto de vista antropocêntrico (não omnijetivo), baseado


na ideia de sujeito, quantas tipologias de espaço/tempo/consciente
dependem (ou não) da existência entendida como lugar? Esta segunda
questão está colocada em um nível comparativo dentro de uma estrutura
holística em uma investigação projetiva de borda.

Uma segunda falsa diferença é entre o tempo e o espaço. A ideia de


espaço se refere a uma noção fìsica de um “algo” que é por sua vez
continente e conteúdo de outro “algo”, enquanto a ideia de tempo refere-se
à percepção psicológica do espaço ligada à memória que, pela ótica da
arquitetura é uma qualidade da consciência da forma.

Entendendo que toda tentativa de conceituação racional gera uma


dualidade e que o critério de existência tende à sua natureza subjetiva,
quando e onde seria oportuno que emergisse de maneira individual,
coletiva, cósmica e quântica a proposta de borda entre espaço e tempo sem
que caísse na dualidade e subjetividade próprias de nossa maneira racional
de pensar e de nossa natureza existencial antropocêntrica?

Os critérios para definir uma interfaz (interface-interfase), um


interstício e até uma abertura fugaz entre nossos pensamentos surgem, a
partir deste terceiro questionamento, num nível preditivo da estrutura
holística na investigação projetiva de borda e deveriam estabelecer tanto o
contexto físico da proposta (em termos de espaço e tempo) como as outras
instâncias não físicas do mesmo.

Trata-se de estabelecer aonde e quando fazer esta transição em


termos de uma interfaz física tanto de interface (espaço) quanto de interfase
(tempo), reconhecendo-nos nós mesmos como investigadores e parte da
proposta. Passar de uma instância topológica, alicerçada na ideia de lugar,
a outra baseada na ideia de redes.

Partindo dessa predição que identifica tendências futuras, possíveis


alcances e limitações, poderíamos estabelecer uma proposta de mudança
335

que seja igualmente possível de desenhar em termos de um projeto ou


plano que envolva o arquitetônico e o urbanístico.

Uma terceira aproximação questiona a utilidade de toda esta


discussão em termos da consciência e para além do conhecimento do
espaço-tempo. É este o sentido da necessidade de colocar em dúvida a
intencionalidade paradigmática mediada por instrumentos pedagógicos,
estruturada por mecanismos de dominação simbólica e baseada em uma
falsa dualidade (in)divíduo-sociedade.

Se nós compreendemos que estamos voluntária ou involuntariamente


“presos” em uma aparente separação do sujeito como indivìduo em relação
à sociedade, o que acontece com a diferença entre espaço e poder em
meio ao processo de reconstrução intercultural do sujeito-objeto
contemporâneo? Este quarto questionamento baseia-se em um nível
exploratório da estrutura investigativa holística e poderia representar a
problemática inicial da investigação projetiva de borda.

Estas quatro questões iniciais que partem da pergunta fundamental


quem (?), colocam dualidades (falsas) e tríades (novos pontos de partida)
como conclusões em processos simultâneos – como a reconfiguração
urbana de espaços e de poder e o entendimento de conceitos como
alternatividade, apropriação, maismodernidade, simultaneidade e qualidade
de vida. Tudo isto acontecendo desde/nas bordas e visto desde/em
enfoques de complexidade.

Entender a noção de limiar a partir da ideia de realidade complexa


amplia nossos próprios limites conhecidos e por conhecer e coloca a
discussão acerca da representação urbana contemporânea em um novo
contexto epistemológico próprio do debate nunca esgotado da
contemporaneidade. O que é a atualidade? Um conjunto de circunstâncias
ou simplesmente uma mudança, anterior ou posterior, de “algo” que vamos
descobrir?
336

Este quinto questionamento obriga a concluir em um nível avaliativo


da investigação holística, de maneira que gere um novo ponto de partida,
um devir que vai levar a uma nova investigação projetiva que, por sua vez,
vai modificar a proposta de reconfiguração desde/na borda/à borda logrando
a interação com aqueles que habitam (ou que habitamos) esta realidade.

Ainda estamos por descobrir se esta maismodernidade é uma


continuidade da modernidade ou uma autêntica ruptura com a mesma. A
este respeito, vamos olhar a evolução histórica humana como um assunto
que envolve diversos estágios e níveis de consciência.

A cada nível (da consciência), corresponde uma escala de


aproximação da realidade física conhecida ou por conhecer. Distinguimos
ao menos três escalas evidentes: uma primeira, que desvela o mundo das
partículas materiais (o átomo); uma segunda que intui um mundo do
movimento na mínima escala possível (quanta); e uma terceira escala que
requer uma mudança na percepção para ser reconhecida: trata-se do
mundo dos bits de informação.

Cada mudança de foco da consciência gera uma borda, uma dobra,


um “algo” que complica e complexifica o objeto de estudo do “real”, até o
ponto de se dizer que, na contemporaneidade, temos consciência de uma
realidade complexa que somente poderia ser interpretada, em termos
“lógicos” e contemporâneos, combinando a arquitetura com a neurofìsica, a
etologia e a neuropsicologia.

A dimensão intelectual do processo de tomada de consciência da


realidade complexa talvez não seja a melhor maneira de se relacionar, na
atualidade, com os fenômenos urbanos na escala planetária, mas é, talvez,
a única forma que dispomos, desde nossa lógica ocidental, para diferenciar
a experiência de ser-no-mundo.

Historicamente, nos acostumamos (convenientemente) com a direção


linear da consciência, que entende as coisas de trás para frente (às
337

avessas), de cima para baixo e, no caso do Ocidente, da esquerda para


direita. Também estamos acostumados a apreender o real por nossos
sentidos e, pois, a entender a realidade através da mente, o que nos torna
particularmente vulneráveis ao engano midiático e à virtualização.

Aceitar a ideia da existência simultânea de processos que tendem à


modernidade demanda da sociedade uma postura epistemológica que
ultrapasse os quadros paradigmáticos que conformaram o pensamento
ocidental. A modernidade, embora não seja realmente um conceito
“moderno”, também é um conceito entendido de múltiplos pontos de vista,
dependentes, por sua vez, do paradigma que orienta nossa intencionalidade
ao intervir na realidade, cuja ideia também se acha submetida a uma atitude
frente à vida.

Tratando-se de arquitetura (pensamento=forma), a história das


vanguardas supõe pelo menos um estado de arte do que comumente se
considera “moderno”: a materialidade do tempo presente como um processo
independente das modas que condicionam a evolução a uma ideia de
progresso e de uma maneira midiática ou ao menos ideologizante 95.

Para não cair no eterno debate sobre o que é ou não considerado


moderno, é indispensável questionar a ideia da linearidade do tempo.
Pensar em algo “pré” ou “pós” “alguma coisa” supõe a existência de uma
continuidade no tempo e espaço. Não havendo tal continuidade, a
humanidade pode experimentar múltiplas dimensões da realidade, de
maneira aleatória e inclusive simultânea.

Apesar de termos superado – até certo ponto – o legado reacionário


e conservador dos antigos pensadores ocidentais, por que renunciar à ideia
de linearidade? Se ainda não desistimos da busca da verdade e, em troca,
estamos conseguindo criar nossa própria realidade virtual, por que se

95
A imagem ideologizante se transforma em uma prática consciente que pretende
ideologiz-arte.
338

insiste tanto na busca de uma virtualidade verdadeira na


contemporaneidade?

Estas duas últimas interrogações, que se acrescentam às sete


anteriores, são formuladas em um nível descritivo da projeção holística, na
medida em que, através de suas respostas se consiga identificar
necessidades e se defina o evento a modificar.

A outra ideia que é preciso abandonar é que o tempo (e o espaço) é


eterno e, portanto, infinito. É possível, ao menos teoricamente, prever o fim
do tempo (e consequentemente do espaço) e, a este respeito, a maioria dos
aportes vem da antropologia e da filosofia quando refletem sobre o espaço.

Graças à memória da forma, a arquitetura é contemporânea tanto do


sujeito enquanto intérprete do objeto, quanto do objeto mesmo da
arquitetura. A imagem representada vale tanto para o presente como para o
passado e, nessa medida, sempre estamos diante de uma arquitetura do
aqui agora. Certamente, o aqui (espaço) e o agora (tempo) latino-americano
são bem diferentes da centralidade moderna europeia (ocidental). É
impossível conceber outra ideia de borda (e, portanto de centro), se
continuamos presos a paradigmas ocidentais e não somos capazes de
refrescar nosso pensamento.

Se a humanidade está condenada a uma ruptura definitiva com a


ideia de modernidade por uma suposta maismodernidade, poderíamos
aproveitar esta brecha, esse “entre” [...] como uma oportunidade para
deslizar a um campo unificado da consciência que possibilite a construção
coletiva do território.

As dobras do território (naturais ou artificiais) são também bordas,


rugosidades que complexificam a realidade consciente (catástrofes
topológicas). Mas, ao mesmo tempo, é através dos interstícios e das
interfaces que materializamos nossa capacidade para recriar a existência.
339

A simultaneidade de acontecimentos é virtualmente a diversidade de


opções da realidade e, nesse sentido, poderíamos afirmar como Derrida,
96
que “a identidade da diferença é também a sua diferenciação infinita” .
Isto, de acordo com as teses desconstrutivistas de Derrida, quando se
refere às análises de Heidegger em torno do conceito de tempo e o vê como
o ser temporal, o “ser aì” que transcende.

A primeira síntese é constituìda pela trìade: interstìcio→ fissura→


limiar↔. Seja como inìcio, começo, advento ou borda de “algo”, mas
também como porta, limiar, abertura ou fissura (inclusive como estatuto de
representação manifestado no sujeito que percebe). A ideia de umbral
remete a uma falsa dualidade vista em uma dimensão intelectual da
consciência.

Passado distinto de futuro, espaço distinto de tempo, a borda como


interstício ou interface da realidade. Estas falsas dualidades são produto da
atividade do pensamento racional em uma realidade complexa. O erro é
funcional ao sistema de dominação e, por isto: a lógica positivista reina no
paradigma dominante do modelo de desenvolvimento que pretende
globalizar o capitalismo em escala planetária.

As várias crises ou rupturas que originam novos paradigmas são as


representações sociais das pequenas fissuras que ocorrem no processo de
pensamento de cada in-dividuo. Separando cada pensamento a brecha, o
espaço entre as estruturas lógicas e organizadas linear e coerentemente
que conhecemos como linguagem. Infelizmente, nossa evolução se baseia
predominantemente na linguagem oral e escrita, sem se alternar com outras
formas de comunicar o pensamento, criando a ilusão de separação entre
um mundo material e outro imaterial.

96
“A Diferença”, versão on line da conferência pronunciada por Jacques Derrida na
Sociedade Francesa de Filosofia, em janeiro de 1968. Disponível em:
<http://www.jacquesderrida.com.ar/textos/la_differance.htm> (Acesso em: 01/12/2010)
340

A lacuna é também a borda, o limite aparente da realidade que, uma


vez transcendido, nos permite aceder a novos estágios de consciência.
Literalmente, nos filtramos conscientemente pela brecha para atingir o
campo unificado da realidade onde tudo é possível e onde não existem as
falsas dualidades. Há também fractalidade e unicidade entre o processo
pelo qual se toma consciência individual do campo unificado e o processo
de tomada transconsciente do território.

Teoricamente, é possível ter acesso a este nível de consciência do


campo unificado e conhecer a “ovelhidade” da qual Platão falava nos seus
diálogos, sem ficar preso nos artifícios das formas. Supunha-se que, uma
vez fora da caverna, o indivíduo seria capaz de reconhecer o mundo real,
precisamente porque era (ao menos) muito parecido com o mundo simulado
ou representado por fantoches e marionetes animados por atores e postos
em cena através da projeção de suas sombras sobre o fundo da caverna.

Mas não era essa ovelha do mundo real que Platão habilmente
indicava como a realidade. A “ovelhidade” da ovelha só pode ser vista pelos
olhos do espírito e a verdadeira cognitividade do conhecido somente pode
ser conhecida através da consciência desse conhecimento.

Estamos, pois, condenados a viver tentando sair das infinitas


cavernas do pensamento, a não poder entender realmente que a ovelha e
eu somos a mesma coisa, que não há diferença real entre o visto, o olhar, a
forma de olhar e quem vê.

O principal entrave a esta maneira de acessar o conhecimento se


encontra em outra qualidade da brecha, produto de sua conotação de
interstício: a superposição de pensamentos, em virtude da superabundância
de acontecimentos que o indivíduo procura calcular em seu cérebro. Neste
caso, forma-se uma nova estrutura múltipla de pensamento
341

sobrerracionalizado que acreditamos ser o que existe e que,


97
pomposamente, chamamos “pensamento complexo” .

Precisamos entender a virtualidade da realidade de um modo


radicalmente distinto de como mal a entendíamos em Platão. Não como
(veritas) verdade, mas como (virtus) virtude. Mas não estou falando de
benefìcios, senão de potência e capacidade de poder “artificializar” a
realidade sem medo de se perder em sua complexidade.

Fazer arte, saber fazer como o artesão, o artista e o técnico e, a partir


daí, começar a fazer simulacros que não imitem qualquer modelo da
realidade que damos por entendida.

A outra escala de complexidade, o espaço intersticial, surge da


sobreposição de entidades territorializadas através do exercício do poder na
realidade espaço-temporal, originando a aparição de um tipo particular de
borda.

Longe de ser uma realidade residual e marginal, o interstício surge


como uma informação inevitável no momento da construção coletiva do
território, já que deixa de ser um espaço que deve ser corrigido (o que
supostamente permitiria ordenar o território) e se converte (em uma vida
transconsciente) na abertura que se comunica com o campo unificado
regional, onde coexistem diversas probabilidades emergentes da realidade.

O que acontece quando vem a superabundância de acontecimentos,


se o espaço-tempo intersticial é oriundo da sobreposição e aparece no
território como informação “nova”, cada vez mais frequente e acelerada?

97
O pensamento ocidental “complexo”, por assim dizer, aos poucos, vai chegando a
compreender o que antigas culturas de pensamento não linear já sabiam: que a realidade é
o resultado complexo da interação de múltiplos elementos inter-relacionados que, ao formar
um todo dinâmico, mutante, polimórfico, apresenta características distintas e muito
superiores à soma (aritmética) das partes.
342

Se a maismodernidade se caracteriza pelo excesso de


acontecimentos, interpretados coletivamente como eventos da atualidade, e
se este excesso está igualmente sujeito a uma aceleração progressiva de
caráter geométrico, estamos então, necessariamente, ante um iminente fim
do tempo (e fim do espaço)?

A resposta a estas perguntas, somando nove ao todo, se encontra


em um nível explicativo da pesquisa holística, no qual uma explicação
plausível do evento a modificar permitiria prever certas circunstâncias ou
consequências, no caso de se introduzir as mudanças propostas através de
um projeto urbano e/ou arquitetônico.

Isto nos leva a pensar nessa realidade sobredimensionada como


uma segunda síntese triádica: tomada de consciência subjetiva→ objetiva→
omnijetiva ↔.

Optar por um ou outro caminho pode levar a um beco sem saída, a


uma armadilha da razão. O processo individual de tomada de consciência,
sem o coletivo, torna-se um rol de boas intenções que não transcendem. O
processo coletivo, entendido como social sem o individual, corre o risco de
ficar sem gente de carne e osso que lidere este processo e que, em vez de
propiciar a mudança, se refugie atrás de um discurso inspirador.

Realmente, ambos os processos, o individual e o coletivo, em matéria


de tomada de consciência são includentes e se complementam na
omnijetividade do campo unificado, segundo Izquierdo (1999). Importa
então, mais a postura frente à vida do que o conhecimento da realidade e,
uma vez assumido o desafio, a discussão sobre os diferentes paradigmas
do pensamento ocidental só interessa se for possível ir além de
simplesmente assumir tal ou qual postura epistemológica diante da
realidade.

O estatuto da realidade contemporânea se baseia mais em alcançar


a eficácia da ação do que na busca científica da verdade. Neste sentido,
343

trata-se, de alguma maneira, de conseguir orientar a discussão para o


processo coletivo de tomada de consciência do espaço-tempo.

Se existe alguma metodologia para este processo seria através da


indagação acerca da intenção dos investigadores quanto ao tratamento da
realidade e, assim, se coloca cada postura teleológica em uma linha
funcional, sob o pressuposto de que não se pode compreender a realidade
sem antes ter tentado explicá-la e menos ainda se pode transformá-la sem
haver antes compreendido.

O estágio transconsciente é necessariamente intencional quando se


reconhece como fenômeno social, ainda que não se trate de assumir o
“social” no indivìduo, no melhor estilo da sociologia clássica. Antes, a
intenção tem uma significação que transforma a ideia em ação
comunicativa, para além da significação cognitiva “explicativa” e é o que
permite a tomada da consciência individual-coletiva num nível também
cósmico- quântico.

Desta maneira, em um processo coletivo de tomada de consciência,


um determinado paradigma ou enfoque da intenção predomina sobre os
outros em um momento específico do processo, mas subordinando-se aos
demais paradigmas em qualquer outro.

A estrutura que daria suporte ao processo seria heterárquica, através


da qual se exerceria uma liderança por relevos e em cuja organização não
existiria um paradigma permanente já que sempre teríamos que
reconfigurar a realidade coletivamente e refrescando o pensamento 98.

Da mesma forma como se pretende recriar permanentemente a


cidade e sua arquitetura, existem (no processo de ensino-aprendizagem da
mesma) grupos de assuntos afins a diversas disciplinas, como as técnicas

98
Refrescar o pensamento: Consiste em uma prática indígena ancestral, indispensável para
reiniciar o sistema de pensamento de maneira integral e integrada: individual, coletiva,
cósmica e quântica. A este respeito, recomendo ver as experiências do povo Nasa.
Disponível em: <http://tierradentro.co/> (Acesso em: 29/06/2011).
344

construtivas, por exemplo, que representam uma abordagem do positivismo


lógico e que são pré-requisito no processo de ensino-aprendizagem para
(uma vez explicados os fenômenos [físico-construtivos] do espaço) entender
a espacialidade do conflito no desenvolvimento da humanidade através de
disciplinas como a planificação e o controle das obras que correspondem a
paradigmas construtivistas.

Visto de outra forma, depois de adquiridas as competências que


explicam os processos em um enfoque multidisciplinar, haverá um segundo
momento em que será preciso desenvolver as competências interpretativas,
onde as disciplinas de expressão e representação é que vão liderar o
processo coletivo de tomada de consciência e, posteriormente, aquelas que
desenvolvam habilidades na comunicação do discurso que sustenta o
projeto arquitetônico e urbanístico, através de um enfoque interdisciplinar.

Haveria um terceiro momento, para além da interdisciplinaridade,


tendendo à transdisciplinaridade (entendendo o processo de reconfiguração
paradigmática muito simplificadamente) liderado pelo paradigma crítico
hermenêutico segundo o qual: as disciplinas de urbanismo e de
planejamento contribuiriam para desenvolver no estudante as capacidades
para transformar a realidade transconscientemente.

Tais capacidades baseiam-se em virtualidades. Mas não no virtual


verdadeiro, “ideal” (veritas), conforme Platão no seu famoso livro VII, “A
República”, senão no virtual “verdadeiro” (virtus veritas) de Maquiavel em
seu também famoso livro “O Prìncipe”. Virtudes como capacidades para
transformar a realidade e ter o poder.

Se há diferentes níveis de consciência entre os cidadãos (como há


diversos momentos sob diferentes enfoques paradigmáticos no ensino-
aprendizagem da realidade urbana) poder-se-ia orientar a construção
coletiva de uma mesma maneira: sequencial e, por vezes, liderada
heteraquicamente.
345

O edifício, seu processo construtivo e a cidade habitada envolvem


diferentes níveis de representação da realidade que equivalem a distintos
níveis de consciência da relação sujeito-objeto que, por sua vez,
correspondem a paradigmas diferentes com relação à intenção dos
cidadãos empenhados em explicá-la, entendê-la ou transformá-la.

Isto nos leva à terceira síntese triádica, correspondente à relação:


explicação→ entendimento→ transformação ↔, que orienta o exercício
pedagógico de nossa carreira para além das mediações e das didáticas, tão
frequentes hoje. Esta preocupação é muito importante, porque se não
formarmos as novas gerações nos novos paradigmas não vamos alcançar a
transformação efetiva.

Cada nível de consciência corresponde a um mapa da realidade que


contém espaços-tempo dos quais temos consciência e outros que
permanecem ocultos à percepção, intencionalmente ou não.

Procurar recuperar, conscientemente, os espaços-tempo ocultos na


memória coletiva implica acessar o não espaço-temporalidade que não tem
coordenadas de localização e historicidade.

Por que continuariam existindo conflitos depois de se chegar às


consequências resultantes de alcançar um não espaço-temporal na
omnijetividade através da reconfiguração urbana em/desde as bordas?

Em termos dos antecedentes, a justificação e as consequências dos


conflitos, esta décima pergunta, situada no nível analítico da estrutura
holística da pesquisa projetiva de borda, fundamenta a proposta de
reconfigurar a cidade e o urbanismo contemporâneo desde/nas bordas em
um processo sistemático que consiga analisar as ofertas da
contemporaneidade em meio à glocalização, tanto do sistema de
dominação historicamente constituído a nível mundial, como das diversas
alternativas heteronômicas que estão emergindo simultaneamente nas
diferentes regiões do mundo.
346

Realizar os desejos, para além da interpretação consciente dos


sonhos, é algo que demanda muita responsabilidade. Não se trata
simplesmente de promover a proliferação de imagens sem referente
objetivo, projetá-las até um futuro incerto, independente da experiência do
passado 99, e esperar que a humanidade não perca seu senso de realidade.

O fundo histórico que permanece ainda hoje é a presença do


passado no presente (tempo), que o ultrapassa pelo excesso de eventos
tendentes à modernidade. A transconsciência considera a alternatividade
como um espaço de conciliação da maismodernidade.

A possibilidade de conviver criativamente em meio ao conflito


humano está vinculada a uma aproximação existencial e fenomenológica
que introduz a quarta sìntese triádica: antiguidade → contemporaneidade →
alternatividade↔.

A antiguidade não está localizada (espaço) no passado (tempo), se


consideramos a possibilidade de sua permanência na mudança e, mais
além, se tomamos consciência da simultaneidade que transcende o aqui e
agora, em que o passado (espaço-tempo) sempre estaria na frente (não
atrás) de nós.

O espaço-tempo arquitetônico (antigo- contemporâneo), que se


manifesta através da forma que tem a memória do sujeito, coexiste consigo
mesmo em múltiplas dimensões da realidade devido a uma condição
complexa e maismoderna de simultaneidade, agora chamada
“alternatividade”.

Em meio à simultaneidade do espaço-temporalidade e pelo padrão


de consumo da realidade atual, dos recursos (e mesmo do espaço-tempo)

99
Passado distinto de presente. O passado que já passou ficou diante de nós esperando-
nos no futuro. Num espaço-tempo em espiral, passado, presente e futuro ficam num
mesmo eixo existencial.
347

se manifesta uma condição da realidade maismoderna que está levando à


civilização ocidental (e o resto da humanidade por efeito da globalização
hegemônica) ao fim do espaço-tempo.

Harvey chamava esse fim – para muitos, apocalíptico – de “a


destruição do espaço pelo tempo”, que se produz na cidade “vodu”, aquela
onde o desenvolvimento é fictício e que esconde atrás de sua fachada a
degradação.

Houve uma mudança radical na vida cultural, assim como nas práticas político-
econômicas desde 1972 [...] Esta mudança radical está relacionada ao
aparecimento de novas formas dominantes, através das quais experimentamos o
espaço e o tempo [...] Enquanto que o câmbio simultâneo de dimensões de tempo
e espaço não significa necessariamente uma conexão causa-efeito, forte e a priori,
que possa ser invocada para supor que existe algum tipo de relação necessária
entre o surgimento de formas de cultura pós-moderna, o surgimento de modos
mais flexíveis de acumulação de capital, e uma nova maneira de “compressão
espaço-temporal” na organização do capitalismo. Mas essas mudanças, se revistas
sob as regras básicas do modo de produção capitalista, aparecem mais como
aparentes na superfície, que como signos da aparição de alguma sociedade pós-
capitalista ou pós-industrial totalmente nova [...] (HARVEY, 1992, p. 299).

Entender este processo citado acima consiste em compreender


“plenamente” a diferença entre as noções de espaço e lugar no espaço, e o
que acontece quando o espaço físico que separa as coisas “encolhe” para
dar lugar à “aldeia global” e ao mundo interligado e globalizado das
telecomunicações, a internet e os meios de comunicação de massa onde as
distâncias temporais se encurtam de tal maneira que o presente e a
simultaneidade são tudo o que existe. Boaventura de Sousa, por sua vez, o
chama “sentimento de urgência” e o relaciona com o processo que Augé
denomina maismodernidade.

O início do novo milênio é um tempo propício às interrogações. Na borda do tempo,


a perplexidade parece ser a forma menos doente de conviver com o drama das
opções ou da falta delas. O sentimento de urgência é o resultado da acumulação
de múltiplas questões na mesma hora ou lugar. Sob o peso da urgência, as horas
perdem minutos e os lugares se comprimem (BOAVENTURA de Sousa, 2008, p.
190).

A compreensão de como opera a falsa dualidade espaço-tempo em meio ao


processo de glocalização contemporâneo que, necessariamente, redefine a
ideia de sociedade e de cidade, até chegarmos a entender o orbanismo
348

planetário e a ressignificação de mim mesmo (assim como as novas


identidades híbridas que estão tomando seu lugar), nos leva a quinta
sìntese triádica em termos de identificação→ orientação → apropriação ↔.

Supomos que a identificação de um método explicativo (metamétodo)


e a orientação que um novo paradigma epistemológico (heteroparadigma)
oferece, finalmente vai nos levar à apropriação da verdade. Já
mencionamos anteriormente que não basta compreender os três ramos do
saber: epistemologia, metodologia e lógica, porque a verdade não está em
conhecer, mas no sentimento que gera este pensamento e mais além: o
desafio é perceber isto que consiste, para nós arquitetos, em conceber
nossos projetos como mente-fatos 100.

A busca e a apropriação da verdade através do conhecimento, em


meio à defasagem dos processos de tomada transconsciente (insight),
registrados historicamente (defasagem ocasionada por métodos
comportamentais no pior dos casos, ou pelo isolamento acadêmico do
contexto de estudo e o enquadramento do objeto na maioria das disciplinas
do conhecimento), é um processo que requer hoje, pelo menos se libertar
de uma suposta hegemonia da pedagogia e interagir com processos de
identificação e orientação para, desta maneira, gerar competências e
habilidades em todos os indivíduos, chamem-se educandos ou educados.

O modo como apreendemos a realidade urbana contemporânea está


mais baseado na representação do que no seu conhecimento. Basta ver, na
televisão e/ou na internet, um evento que supostamente aconteceu ou está
acontecendo para acreditar que efetivamente existe ou existiu na realidade.

A identidade é um fenômeno de borda próprio do sujeito (aquele que


configurou sua identidade mais além do processo que constituiu o sujeito do
Iluminismo europeu, o sujeito sociológico da modernidade e inclusive o que,
100
Eles são formas gráficas para representar os diferentes modos de pensamento e valores
humanos.
349

na época, foi chamado sujeito “pós-moderno”), que está profundamente


envolvido com o processo de representação da realidade.

Assim, a configuração e a reconfiguração das relações de espaço-


tempo que constituem o fenômeno urbano nos diferentes sistemas de
representação (que correspondem também a diferentes sistemas de
dominação) têm efeitos profundos na forma (cidade) e na maneira
(cidadania) como tais identidades são localizadas e representadas.

Isto ocorre de maneira mais simples e funcional no poder


convencional, quando as estruturas simbólicas que sustentam tal
dominação se comportam homogênea e hegemônicamente. Assim como é
impossível distinguir um som do ruído de fundo em meio de uma algaravia,
tampouco é possível diferenciar o sujeito isolado, individualizado e colocado
sobre o pano de fundo da multidão em uma metrópole anônima e
impessoal. Igualmente, é impossível discernir a realidade frente a um
padrão homogêneo de formas.

Os processos de apropriação do conhecimento em ambientes


híbridos e interculturais – propícios ao surgimento de projetos de borda –
impõem limites à tomada transconsciente (como mediação pedagógica), ao
ponto de se considerar antipedagógicos se este processo – que
eventualmente levaria à apropriação da verdade – não implicasse também
um processo simultâneo de ecoconstrução da realidade.

O processo de ensino-aprendizagem contemporâneo implica, pois,


uma tomada de transconsciência dos diversos estados não lineares e
realidades complexas que requerem ir além dos paradigmas, se o que se
pretende alcançar desde/nas bordas é a reconfiguração dos padrões de
assentamento populacional em termos de um orbanismo planetário.

Como propriedade inerente dos sistemas não lineares de


realimentação múltipla, a tomada de consciência de uma realidade
350

complexa se refere a um processo aprendido tanto coletivamente como por


diferentes caminhos indivisíveis e baseado na prática da docência; apoiado,
também na reflexão em torno do omnijeto de estudo da arquitetura, visto
como espaço-tempo-consciente.

Uma vez desprovidos das restrições lineares do modo ocidental de


entender a direção do tempo (e do espaço), acessamos os princípios da
incerteza e da complementaridade como noções que fazem parte da
realidade mesma (real). Estabelecendo-se a sexta síntese de momentos
não necessariamente consecutivos enquadrados na tríade:
permanência→mudança→ simultaneidade↔.

As partes do todo estão submetidas a critérios de dualidade,


enquanto uma exclui a outra e, contudo, todas são necessárias para a
compreensão da totalidade. Por outra parte, a complementaridade das
partes é uma ideia que se encontra em outro nível de consciência que
requer a simultaneidade das partes no todo.

Provavelmente, nunca saberemos se todas as partes estão sendo


realmente consideradas ou se realmente existem, talvez tenham existido ou
existirão. Se não podemos conhecer a realidade, ao tentar responder ao
“onde” e “quando”, podemos ao menos estabelecer o “como”.

Como podemos ter consciência da realidade em diferentes níveis de


complexidade? E também, como podemos complexificar a análise até o
nível de complexidade da própria realidade? Com que recursos contamos
para enfrentar o desafio da maismodernidade, a simultaneidade dos
eventos tendentes à modernidade, o aparente fim do tempo e, portanto, do
espaço?

O precedente se constitui em três (3) perguntas, colocadas em um


nível verificativo da estrutura holística na pesquisa projetiva de borda que
somam doze (12) no total.
351

Acessar um nível de consciência simultaneamente individual e


coletivo, cósmico e quântico é um desafio possível, hoje, graças à
possibilidade de aproveitar a tendência global predominante e as
contratendências regionais e locais de reconfiguração das estruturas de
poder para reconfigurar o fenômeno urbano contemporâneo como
orbanismo.

Ou, pelo menos, isto é o que promete a tecnologia e a estética nas


múltiplas, diversas e simultâneas culturas contemporâneas. Tecer
conscientemente essa rede de espaços-tempo incorpora e (nos incorpora),
de alguma forma, à cidade, já que percorrer os espaços-tempo de uma
cidade que não conheço fisicamente é semelhante a percorrer os rincões da
mente e conscientizando-os.

Assim, por uma espécie de “pedagogia urbana” baseada nesses


percursos vão se configurando pouco a pouco, tanto uma tomada de
transconsciência como uma imagem hologramática da realidade urbana.
Realidades ambas muito diferentes da ideia planimétrica de cidade da
maioria das entidades que planejam em meio ao cotidiano.

O holograma consciente permite interagir como cidadão em níveis


que possibilitam o empoderamento coletivo e, daí, aceder à reconfiguração
dos espaços onde se exerce o poder desde e nas bordas. A
intencionalidade política de transformar asim a realidade é fazer com que
certos coletivos humanos, tradicionalmente marginalizados do
desenvolvimento convencional, se reposicionem frente ao poder
estabelecido e liderem seu próprio processo vital em meio de múltiplas
probabilidades emergentes.

O psicólogo e comunicador argentino Marcelo Manucci descreve a


incerteza do tempo presente, enquanto a complexidade da realidade é uma
qualidade dos sistemas. Nesses termos podemos entender que a condição
maismoderna considera a incerteza como um espaço de intervenção e,
352

portanto, a complexidade da realidade tem um caráter estratégico


demarcado, em uma aproximação teleológica, pela sétima síntese triádica:
conservação → desenvolvimento→ qualidade de vida↔.

A incerteza está no olhar do observador sobre uma realidade complexa. Portanto, é


inerente a qualquer projeto porque, como toda construção, tem os limites de um
modelo elaborado com fragmentos de uma realidade complexa e instável
(MANUCCI, 2006, p. 11).

A conservação biológica como objetivo da espécie humana se converte em


uma estratégia que permite garantir o futuro da vida no planeta diante da
incerteza do processo de desenvolvimento presente. Isto demanda que as
alternativas de desenvolvimento coexistam, simultaneamente, desde níveis
de consciência alternativa nos quais o “desenvolvimento” seja realmente um
objetivo da espécie humana compatível com a vida e não um ideal da
modernidade.

No entanto, a tomada transconsciente não envolve a noção de


desenvolvimento convencional em si mesma. Não no sentido da ideia
funcional e conservadora de progresso; não se é mais ou menos consciente
em si mesmo e menos com relação aos outros. Trata-se mais de um
desenvolvimento das probabilidades emergentes de sintonizar diversos
estados de consciência, o que implica a simultaneidade espaço-temporal de
processos que tendem a (alguma coisa), e da sincronicidade e unidade
entre a representação virtual da forma, a forma e o conhecimento da forma
urbano-arquitetônica. Neste sentido, além de coletiva e individual, é uma
consciência cósmica e quântica.

Imagine que você está diante de um antigo rádio, girando o dial para conectar uma
de suas emissoras favoritas. Gira à esquerda e/ou à direita, até que a encontra, em
meio a um ruído de fundo. Se a mente humana não processasse a informação do
mesmo modo que a natureza, possivelmente apenas detectaria ruído. Ao longo da
evolução, aprendemos a viver na natureza evitando a nossa extinção. Esta
[natureza] guarda formas ótimas para solucionar certos problemas. Se nós
trabalhássemos em outras “frequências” usarìamos outros procedimentos, mas não
353

poderíamos entender facilmente o porquê dos padrões e pautas da natureza. Caso


101
contrário, dificilmente sobreviveríamos (IBÁÑEZ, 2007) .

Isto talvez fosse possível manter na mediação pedagógica funcional do


sistema de dominação que, até hoje, tem sustentado a ideia de
modernidade. No entanto, quando a imagem que apreendemos já não
corresponde mais à realidade (como é o caso da realidade mediada pelo
poder das ferramentas virtuais de representação que estão em poder
daqueles que controlam e modelam a opinião pública), tampouco é possível
reconhecer o mundo real.

Não é necessário renunciar à ideia de uma “substância lógica” em


termos de poder e abraçar unicamente a outra, igualmente totalizadora,
como é a ideia de uma substância física (embora evidente) que relaciona
poder com energia.

Basta pensar o objeto de estudo a partir de outra lógica, algo que não
altere a substância nem a forma, mas que a qualifique e dignifique um
pouco e, sobretudo, que possa “humanizá-la”. Refiro-me a pensar a cidade
e sua arquitetura a partir da categoria do desejo.

Desejo consciente a nível individual e coletivo, cósmico e quântico;


para além da unicidade do referente – do lado da realidade – e sem contar
com a persistência ou permanência da memória – do lado de quem observa
a realidade. Trata-se, pois, de reconhecer-se como sujeito no objeto, sem
distinção entre natufato e artefato e que a inteligência seja útil ao planeta e,
portanto, à humanidade que se sustenta das formas de vida que aí
coexistem.

O “novo” ponto de partida: ressignificar o princìpio inacabado da


racionalidade estético-expressiva da modernidade, radica em resolver este

101
A hipótese do dial, publicado por Juan José Ibáñez, em 1º de agosto de 2007.
Disponível em http://www.madrimasd.org/blogs/universo/2007/08/01/71004> (Acesso em:
11/11/2007).
354

desafio em cada instância da oitava equação triádica, colocada no final


deste capítulo: modernidade→pós-modernidade →maismodernidade↔.

Falar da maismodernidade em termos da complexidade dinâmica da


realidade, referindo-se a conceitos próprios de disciplinas tão elaboradas
como a arquitetura, exige ao menos uma postura definida de quem pretende
explicar, entender, transformar e recriar o espaço. Mas, com quem
explicamos, entendemos, transformamos e recriamos o tempo?

Esta décima terceira interrogação coloca o contexto ideológico da


proposta em um nível interativo da estrutura holística da pesquisa projetiva
de borda que nos obriga a retomar a discussão fundamental e básica que
questiona seriamente a sua utilidade, no sentido de que a inteligência
humana, na verdade, serve à natureza humana que, já sabemos, é, por
definição, projetual (emergente).

Sabemos, como quem sabe alguma coisa que lhe ensinam na escola
primária, que dois mais dois são quatro, que o tempo está indissoluvelmente
ligado ao espaço, mas, esta realidade não nos preocupa mais do que uma
curiosidade teórica, nós que supostamente manipulamos a substância
desde o ponto de vista físico.

A existência da possibilidade simultânea de muitos acontecimentos


(condições e situações) deveria significar não depender mais da lógica do
poder, no sentido da não submissão a uma única lógica razoável, a um
logos, a uma ordem estabelecida como válida e hegemônica.
355

Além disso, implicaria aceder a uma verdadeira noção de poder


102
distribuído , no sentido do virtual (o virtuoso). Ou seja, ter as capacidades
para realizar o representado e o advento do futuro desejado no presente,
assim como a possibilidade de produzir imagens de representações
urbanas contemporâneas que não imitem os modelos preestabelecidos ou,
o que dá no mesmo: modelos de urbanismo e padrões arquitetônicos cujas
imagens sejam autônomas e arbitrárias.

A própria ideia da maismodernidade questiona as pretensas


diferenças entre as noções de modernidade, pré-modernidade e pós-
modernidade, quando se liberta das limitações do tempo e do espaço
lineares, dando um status ao imediato, ao evento fugaz; quebrando a
hierarquia e a partir daí, questionando todo o temor que a ideia pudesse
causar aos guardiões mais retrógrados e tradicionais do sistema de
dominação. Qual seria o futuro que decorre de qual passado de um suposto
presente, para além da pretendida atualidade que a ideia de modernidade
introduziu?

As consequências de renunciar à ideia de atualidade em prol da


simultaneidade implicam uma reconciliação da sincronicidade com a
diacronicidade e, destas, com a causalidade: espaço com tempo com
motivação.

Entretanto, a maismodernidade, vista como processos simultâneos


que tendem à modernidade sem restrições do espaço-tempo, sem algo pré
ou pós que explique um estado de coisas “atual”, não resolve o antigo
dilema sobre o que é ou não é moderno. Dependendo do grau de satisfação

102
A intencionalidade política traz consigo uma nova concepção do desenvolvimento e uma
nova proposta de sociedade. Da mesma maneira, o comportamento emergente traz
consigo um pensamento distribuído, o qual gera um poder distribuído para uma cultura
emergente.
356

dos desejos pela forma arquitetônica, que tipo de “atos de arquitetura”


refletem o pensamento e a sociedade maismodernos enquanto construção
coletiva da espacialidade-temporalidade contemporâneas?

Estas duas últimas questões, que somam quinze (15) no total,


colocadas em um nível projetivo da estrutura holística do projeto de borda,
arquitetônico e urbanístico, permitem considerar a necessidade de pensar
uma arquitetura líquida e um urbanismo fluido que respondam à
maismodernidade contemporânea e a uma estrutura distribuída de poder.

Não é tão simples quanto convidativo. Se nós prescindimos da ideia


de um poder único cuja lógica sustenta a dominação, a substância lógica de
Spinoza (OP: 1677) desapareceria em termos de múltiplos pensamentos
diferentes e múltiplas extensões espaço-temporais da forma consciente e
poderíamos concluir, finalmente, que tudo (ou nada) pode ser o mesmo:
Deus sive natura.

Uma imanência que não volte a produzir transcendência, tal como


propõe Agamben, retiraria todo o fundamento da ideia que Spinoza tem da
imanência, que, em todo caso, é um conceito no qual a existência de todos
os seres não pode ser explicada sem a presença de Deus, e seria uma
imanência que formalmente rechaça a ideia do nada, como em Nietzsche,
103
na medida em que é compatível com uma crítica do niilismo ; assim como
essa rejeição à transcendência seria a explicação filosófica da práxis em
Gramsci, para quem a imanência absoluta é também o historicismo absoluto
e o humanismo absoluto.

Segundo Mainländer, a vontade de morrer – inerente a todo o ser –


se origina no ato primordial da substância divina (mônada), conceito que ele

103
Segundo o Brockhaus Universal Lexikon: Niilismo (do latim nihil, “nada”). Remete à
forma de pensar que nega devidamente todo o conhecimento, obra ou ato humano. O
niilismo filosófico se refere a toda gama possível de negação de conhecimento ontológico,
metafísico ou ético.
357

retoma de Spinoza. Ela transita de sua unicidade transcendente até a


diversidade imanente do “unus mundus” que, nessa liminidade, recebe sua
própria gênese.

“Deus morreu e sua morte foi a vida do mundo” [...] (MAINLÄNDER, 1876,
p. 108).

O medo racional de que a proliferação de imagens que copiam a


realidade leve (no limiar da representação urbana contemporânea) a uma
dissolução total das formas, ocasionando a perda da realidade sensível
contaminada por fantasmas virtuais, e que o original que deu origem ao
modelo se torne inatingível para a grande maioria da humanidade, são
talvez a causa da maior resistência a uma possível transformação,
resultante de uma tomada de consciência individual, coletiva, cósmica e
quântica desde/na borda do pensamento ocidental.

O anterior joga por terra não só as colocações deterministas de


Spinoza (mente-corpo, Deus-natureza), (OP: 1677), mas também os pilares
fundamentais do racionalismo cartesiano que, desde o século XVII, vêm
sustentando a ideia da modernidade e, portanto, a crença em uma suposta
pós-modernidade.

Também não é simples determinar a que modernidade nos referimos,


no sentido da compreensão de como tendem tais processos simultâneos à
modernidade. Se não existisse um referente único de poder, tampouco
haveria de “uma” atualidade, de “um” momento. E, se fossem muitas e
variadas as modernidades em conflito, em luta para alcançar o status de
atualidade, também não iriam obter, por si mesmas, este status e menos
ainda em escala planetária.

Que sentido tem, então, perguntarmos por tudo isto? A reflexão que
Prigogine e Stengers fazem quanto ao que realmente significa compreender
o mundo vai nos levar, finalmente, a direcionar a resposta a nós mesmos.
358

Podemos hoje continuar assimilando esta eleição metafísica ao ideal de


conhecimento científico? Por que afirmar como necessária esta perigosa
proximidade entre razão e desrazão que leva à física a identificar como ideal de
conhecimento o fantasma de um saber podado de suas próprias raízes? [...] A
objetividade científica não tem sentido se acaba por tornar ilusórias as relações que
mantemos com o mundo, ou por condenar como “meramente subjetivos”,
“meramente empìricos” ou “meramente instrumentais” os saberes que nos
permitem tornar inteligíveis os fenômenos que interrogamos. Einstein dizia que o
fato de que o mundo se revele compreensível é um milagre incompreensível. Mas
que a compreensão do mundo venha negar o que a torna possível, a reduzir suas
próprias condições a uma aproximação prática, isto já não é um milagre, mas um
absurdo! (PRIGOGINE &STENGERS, 1988, p. 45).

O desaparecimento consciente da realidade é para os racionalistas “o fim


do mundo”, o que é praticamente impossìvel, se entendermos que “já não
estamos mais em Deus [não] porque a unidade simples foi destruída e
morta” (MAINLÄNDER, 1876, p. 108), mas, precisamente, porque ao fazê-
lo, Deus está vivo em nós. O [não] entre colchetes é meu.

4.7._Anotações Finais.

Primeiro era o mar. Tudo estava escuro. Não havia sol, nem lua, nem gente, nem
animais, nem plantas. Apenas o mar em toda parte. O mar era a mãe.

G. Reichel-Dolmatoff, “A Grande Mãe e o Universo Kögi”, 1987.

Ultrapassando o estágio projetivo da investigação científica convencional


(que se baseia em um processo causal e tem como resultado o desenho de
uma proposta “lógica”) e para além do pensamento racional dominante, a
mudança esperada, além de emergente e incerta, surge pela
sincronicidade-diacronicidade, simultaneamente, no espaço-tempo-
consciente.

A multiplicidade e simultaneidade de processos que tendem para a


atualidade das formas conscientes anulariam a possibilidade de lembrar a
experiência de ser-no-mundo colocando o passado no futuro como
diversidade de caminhos possíveis. As consequências de reconhecer isto
359

poderiam se refletir num urbanismo fluido e em uma arquitetura mais


porosa, que promovam as redes e a organização heterárquica da
espacialidade-temporalidade.

O desenho do espaço-tempo “virtual” pertence a uma arquitetura


muito mais flexìvel, que “respira”, uma vez que as complexidades da vida
contemporânea não podem ser moldadas em simples quadrículas. Hoje, em
plena era digital, as vidas das pessoas são muito mais “flexìveis” e
“globalizadas” 104.

Igualmente, as arquiteturas híbridas materializam ações que


satisfazem todas as exigências da maismodernidade: promovem o livre
funcionamento das interações fora das tipologias, constroem relações de
poder oportunas para estabelecer as redes e permitem que a conectividade
se maximize no seu interior, enquanto elas se constituem urbanisticamente
em um modelo de controle inteligente para sistemas policêntricos em
sociedades complexas.

A visão conectivista tende para uma pedagogia conectivista na qual o


conhecimento e a aprendizagem são pensados como um fluxo constante,
no qual os dados não estão contidos em nenhum recipiente, em nenhum
cérebro. Não se trata de capturar e reter este fluxo, senão de navegar nele,
surfar nele. Uma pedagogia conceitual-conectivista seria, então, a maneira
de modelar e demonstrar, mais que de ensinar coisas. Aprender seria, pois,
praticar e refletir e a participação cidadã, por exemplo, ganha um novo e
autêntico significado nesta prática coletivista consciente.

Para atingir a alternatividade da proposta, antes colocada em termos


projetuais, cabe lembrar como temos configurado o cenário tendencial de
uma projeção exploratória, descritiva e analítica que possibilita, por sua vez,
entender como vem se configurando o paradigma dominante: de uma

104
Zaha Hadid, Opera House, Dubai, em projeto. Disponível em: http://www.magazine-
rem.es/pdf/REM_47/arquitectura_zaha_hadid.pdf> (Acesso em: 04/12/2011).
360

postura pré-cientìfica até outra de ciência “normal”, onde prevalece o


sentido comum.

Do ponto de vista da permanente reconstrução intercultural do


sujeito-objeto contemporâneo, não existe diferença entre sujeito individual e
sujeito coletivo manifestando-se no espaço-tempo porque a capacidade,
entendida como poder para transformar conscientemente nosso “entorno”,
depende da capacidade para transformar nosso “interno”.

Não podemos continuar qualificando com nossa limitada mente


racional àqueles aportes epistemológicos e filosóficos que transcendem no
tempo (e no espaço).

Dar o salto até a nova realidade virtual significa assumir a virtualidade


como verdadeira e válida, simultaneamente, e, nesse sentido, compreender
“atualmente”, com mente contemporânea, o sentimento que nossos
ancestrais quiseram ensinar ou revelar.

A transconsciência nos seres humanos é um processo que está


sendo orientado hoje por um exercício pedagógico, docente e discente, que
opera para além das simples mediações e didáticas. Para atingir isto,
estamos permanentemente nos “refrescando”: formando-nos e às novas
gerações em novos paradigmas.

O conflito de interesses entre atores, a favor, contra ou indiferentes à


tendência dominante, configura também um novo sentido “comum” que
conseguiria ressignificar a realidade (embora ainda não para transformá-la,
apenas entendê-la em suas muitas facetas e magnitudes) numa sequência
contratendencial de uma projeção comparativa, explicativa e preditiva.

Existem ao menos duas categorias e quatro subcategorias de


espaço-tempo-consciente relacionadas com o fenômeno urbano glocal
(orbano) de borda: espaço-tempo individual-coletivo e espaço-tempo
cósmico-quântico. Esta diferenciação não escapa do processo lógico
361

racional de pensamento ocidental e, portanto, seria um mero recorte


analìtico, ainda que com pretensões à chamada “complexidade” e apesar
dos usos possíveis, desde a alternatividade de processos ao
desenvolvimento regional.

Somente assim escaparíamos da vertigem produzida pela


maisracionalização intelectual do processo de superposição simultânea, e
cada vez mais acelerada, de acontecimentos que complexificam o que
consideramos real. Escaparíamos, conscientemente (desta vez sem o uso
de alucinógenos nem de artifícios metalinguísticos que alterem nosso
estado normal de pensamento), através da borda, em direção ao campo
unificado regional onde coexistem diversas probabilidades emergentes da
realidade. Visto assim, não acontece nada, embora tudo aconteça.

Temos que nos libertar de nossa própria armadilha racional do


pensamento ocidental que separa as coisas e coloca limite em tudo, ou,
então, vamos assistir o fim iminente do tempo e do espaço.

A borda é um “entre” espaço-tempo, é potencialidade pura, é uma


situação quântica de uma condição de fractalidade. Dito de outro modo: é
uma condição fractal de uma situação quântica. Tudo isto acontecendo
concomitantemente e em contínua atualização; o que gera um sentimento
de fugacidade e incerteza, quando pretendemos entender com nossa
limitada mente racional e lógico-formal.

A questão, então, é restabelecer o vínculo afetivo com a vontade de


poder. Afetar-se por uma realidade implica escolher; a eleição de uma
opção com base em um valor inferior (maldade, erro, etc.) ocorre por uma
ilusão insana (do espírito). Essa versão perdida (perversão) da realidade só
pode acontecer se não formos capazes de integrar
pensamento/sentimento/ação na imaginação criadora.
362

Para atingir o estágio projetivo da investigação holística passamos


pela projeção interativa ou participativa para, daí, passar a uma projeção
verificativa até chegar, finalmente, a uma projeção avaliativa da
alternatividade de todo o processo, um novo começo que parte de uma
suposta ciência revolucionária até um conjunto de circunstâncias ainda
incertas: de uma ciência consciente a uma ciência que sente.

Mostrar que somos inteligentes vai depender de nossa capacidade


(potência) de levar a cabo uma proposta de vida que beneficie todos os
implicados. Esta totalidade é igualitária e includente e isenta de qualquer
viés colonialista ou pós-colonial que gere dependência e
subdesenvolvimento.

Recuperar conscientemente os espaços-tempo ocultos na memória


coletiva implica assumir uma responsabilidade, como se fossemos os
irmãos mais velhos de uma grande família chamada humanidade. Este é o
compromisso que têm os líderes espirituais, que nos chamam (a nós
ocidentais), carinhosamente, de “irmãos mais moços”.

Sem precisar ir ao Tibete atrás dos Lamas, encontramos processos


muito interessantes entre nossos indígenas Kogi de Serra Nevada de Santa
Marta, ao norte da Colômbia. “Eles” têm o seu próprio mito da caverna
como uma prática consciente que forma a estrutura mental e espiritual com
a qual, há milhares de anos, guiam o seu povo e cuidam do mundo: uma
vez descoberto e revelado quem será o sucessor espiritual de um líder
morto, ele é afastado do seio de sua mãe e deixado sozinho, em uma
caverna, durante os primeiros nove anos de sua vida.

Então, e de maneira impecável, ao futuro mâma é contado,


absolutamente, como são todas as formas que existem lá fora, que tudo tem
vida e que ele deve cuidar e velar-a (a vida que ele finalmente vai encontrar
quando sair do encerramento), para que ela coexista harmoniosamente,
assim como o fez a mãe que criou tudo “antes”: Aluna.
363

Assim, o jovem aprendiz de mâma, quando sai da caverna e


reconhece tudo que conhecia por relatos de seus antepassados, está
plenamente consciente de seu papel no mundo, porque se sente cocriador
desta realidade.

Imagine o que aconteceria se, com toda essa capacidade de


virtualizar a realidade, criar próteses virtuais, potencializar a realidade
artisticamente que temos agora, os irmãos mais moços (os humanos no
mundo civilizado contemporâneo), também fossemos capazes de nos
comprometer com o seu cuidado e a sua recriação consciente.

Pretender explicar, entender, transformar e recriar o espaço sem


explicar, entender, transformar e recriar o tempo é como negar a realidade,
tratando de construí-la socialmente através de artifícios de caráter simbólico
que sustentam o poder hegemônico de um sistema de dominação cuja
tendência à globalização parece que não pode ser detido.

Pelo contrário, se aceitamos a ideia de múltiplos espaços, temos que


admitir também a existência de vários tempos e a consequente capacidade
de reconfigurar os espaços-tempo para tornar reais as bordas,
representadas pela multiplicidade e simultaneidade de modelos urbanos e
padrões arquitetônicos, que nos leva a considerar a necessidade de fazer
surgir novas estruturas de poder distribuído, heterárquico.

O presente está em constante mudança. Nesse sentido, é a


permanente mudança e, portanto: a modernidade é um sentimento de
câmbio vigente em qualquer época histórica da humanidade.

A mudança esperada por todos acontece na tomada de


transconsciência (simultaneamente individual, coletiva, cósmica e quântica)
na humanidade atual, a qual apresenta o ponto mais interessante da sua
evolução: passar da natureza competitiva (própria das espécies mais
364

jovens) para uma outra natureza solidaria (própria das espécies mais
maduras).

4.8._Conclusão Capítulo IV.

Os interstícios são projetos arquitetônicos pela possibilidade de chegar ao


detalhe do edifício ou do mobiliário público, à intervenção no habitat e na
paisagem de forma pontual. Eles são claramente identificáveis como
lugares-nenhum, espaços do anonimato e, inclusive, espaços vetoriais de
apropriação.

As interfaces são projetos urbanos por sua capacidade estratégica de


modificar as estruturas urbanas consolidadas e por consolidar. Sendo ainda
uma possibilidade entre tempos históricos de uma cidade, são interfases de
probabilidade emergente em termos projetuais, em áreas e ecótonos
urbanos.

Ambas as categorias, interstícios arquitetônicos e interfaces urbanas,


são projetos emergentes devido à indeterminação ou incerteza implícita
neles. Isto pode ser entendido como uma possibilidade real de mudança,
cuja materialidade depende não do status analítico do conflito lógico entre
normas urbanísticas e realidade cotidiana, mas da superação
transconsciente dos interesses em conflito pelo poder.

O projeto de borda é uma região filosófica, um campo unificado da


consciência (individual, coletiva, cósmica, quântica), cuja probabilidade
emergente depende do conflito criativo. Nesse sentido, o projeto, o plano, a
estratégia só existem enquanto possibilidade, algo que vamos investigar,
descobrir, criar. O projeto de borda é também um projeto de pesquisa, cuja
arena é a “outra cena” da realidade.

Os projetos de borda são oportunidades e capacidades que estão,


em grande parte, por se inventar e onde podem se desenvolver as formas e
365

os comportamentos dos novos sujeitos através de ações que permitam o


desdobramento de uma heterotopia consciente, uma topologia “tangente”.

Existe uma investigação de borda, no limite do pensamento racional


dominante: os umbrais da representação urbana e arquitetônica
contemporânea que são contribuições à teoria da “maismodernidade”,
desde um enfoque da complexidade e ao redor da noção de espaço vetorial
implícita no fenômeno urbano (orbano).

Concluindo, as consequências de renunciar à ideia da sequência


linear (pré-modernidade→modernidade→pós-modernidade), em prol da
maismodernidade consistem em reconciliar sincronicidade com causalidade,
espaço com tempo, convertendo a clássica imagem física triádica do
mundo, composta de espaço, tempo e causalidade, em uma tétrada, ao se
unir à sincronicidade. Isto possibilitaria um juízo, um conhecimento e um
poder glocal; uma consciência simultaneamente individual e coletiva,
quântica e cósmica que nos aproximaria de um conceito unitário do ser, dos
únicos-mundos, eliminando, assim, a incompatibilidade entre sujeito e
objeto na omnijetividade.

Somente assim tem sentido tentar modificar os eventos que


consideramos, erroneamente, como “problemas”, entendendo que o ser
humano é o verdadeiro evento a reconfigurar, não o falso humanismo e,
tampouco, o falso urbanismo.

Alcançado o anterior, através do projeto visto como processo de


reconfiguração urbana desde/ e nas bordas, teremos também superado o
processo de desenvolvimento histórico do conhecimento, construído sobre
as bases da prática social da hierarquia, e teremos assentado os alicerces
para gerar as categorias projetuais desde a heterarquia.
366

EPÍLOGO

A borda/à borda é um estado dinâmico e temporário entre duas realidades,


aparentemente, físicas (espaço-tempo), através do qual temos a
possibilidade de entrar na consciência de nós mesmos, depois de
desembaraçados de nossas amarras e manifestações inferiores:
necessidades e desejos de poder.

Tendo atingido este nível de consciência e abandonado a ideia de


espaço-tempo físico, tem início um processo de eliminação das estruturas
que, no passado e no presente, suportam a existência da realidade
conhecida, incluindo as formas, instrumentos e ideologias do poder
simbólico, sem os quais, agora, é possível uma reconfiguração urbana
desde/na/à borda.

A incapacidade de ver os problemas como eventos que podem se


modificar reside na natureza espaço-temporal da realidade, já que, sob uma
condição e situação de borda/à borda a percepção dos conflitos se agudiza,
porque as mudanças nos acontecimentos, que normalmente ocorrem em
meio a uma cotidianidade urbana e durante um longo período histórico ou,
pelo menos, assimilável por uma ou várias gerações, acontecem agora
acelerada e simultaneamente.

Igualmente, a impossibilidade de compreender as bordas como


interfaces e interstícios está em nossa capacidade limitada de pensar, tanto
infinitamente grande como infinitamente pequeno, a realidade conhecida e
por conhecer.

Superadas estas limitações epistemológicas, graças a uma tomada


de consciência individual, coletiva, cósmica e quântica, entenderemos como
o falso humanismo pode produzir humanoides (pessoas que se consideram
lixo humano) e o falso urbanismo urbanoides (assentamentos urbanos
367

precários incapazes de atingir o status pleno de satisfação, nem para as


necessidades fundamentais nem para os padrões que criam um habitat
humano sustentável, justo e solidário).

O pós-urbanismo, assim como o pós-humanismo, se volta


radicalmente à superação do fascínio do público pela liberdade e
superioridade dos “escolhidos”, os “mais” dotados, e ao reconhecimento e
proposição da verdadeira humanidade em todos os seres vivos e não vivos;
a consciência simultaneamente individual, coletiva, cósmica e quântica da
realidade.

Entendemos que o fundamental nas ações que procuram a


satisfação da condição /situação humanas está na interfaz/interstício entre a
necessidade e o desejo. Entre a necessidade de trabalhar e o desejo de
consumir, onde existe a possibilidade de encontrar um projeto emergente
urbano/arquitetônico que leve à reconfiguração, tanto da forma como do
poder desde- na borda- à borda.

O verdadeiro humanismo é aquele que supera o ser humano, da


mesma forma que o verdadeiro urbanismo é aquele que supera a cidade no
âmbito de um exercício transconsciente (YHVH), que consegue hibridizar
nossas culturas e traduzir as problemáticas particulares em eventos que
devem ser modificados nas margens.

Como tecido temporal-espacial-consciente, a borda não existe nem


nos humanos nem na cidade, como tampouco existem os problemas, se
vistos como bordas com potencialidades de reconfiguração. Somos todos
seres constelados (os verdadeiros iluminados); seres de borda,
representantes e responsáveis por aquelas constelações imateriais e físicas
do orbanismo contemporâneo. Somos condutores (e não vítimas) de nosso
tempo, embora a tendência humana de delegar as obrigações e cobrar do
outro nossos direitos civis.
368

Para tornar a ideia mais inteligível, imaginemos pessoas de


diferentes paìses “conspirando”, lutando por sociedades mais avançadas,
virtuosas, onde reine maior harmonia entre os seus membros, como se
fôramos parte de um único organismo, cujas células colaboram para tornar
as funções concretas. Através de cursos, conferências, redes profissionais e
sociais conectadas via internet, essas pessoas se conhecem, trocam
informações, contatos e expandem suas perspectivas e conhecimentos.

Caminhando à beira do abismo, aberto desde o primeiro experimento


falido de Urântia (grandemente ampliado pela recessão e a guerra e, mais
recentemente, pelo colapso e dissolução do guarda-chuva ideológico e as
categorias midiáticas, a partir dos anos 90 do século passado), abre-se um
enorme campo de ação à imaginação: da homotopia à heterotopia.

Finalmente, devemos reconhecer, também, os limites da teoria da


complexidade com relação às contribuições que podemos fazer a partir de
um olhar de borda. Não é possível prever com precisão a forma como se
organizará um sistema complexo para se adaptar aos temas (do global ao
local), nem a sua trajetória. Igualmente não podemos saber exatamente
como se ajustarão ou evoluirão conjuntamente a interfaz/interstício (como
sistema) em relação ao meio ambiente. Ainda não somos capazes de
especificar as condições iniciais que levarão a tais resultados de peso
(como condição/situação de borda/à borda).

De fato, sequer podemos prever se haverá ou não um resultado


importante na necessária/desejada reconfiguração urbana nas margens ou,
(se houver), qual a sua magnitude, pois, até a mais leve mudança em uma
condição/situação inicial pode ocasionar um desvio enorme do que teria
sido o resultado se não houvesse mudança.

Para ilustrar melhor estas conclusões, retomemos a discussão sobre


as noções de hegemonia em Gramsci e contra-hegemonia em Boaventura
de Sousa, em relação às quais, embora seja possível estabelecer a sua
369

linha divisória nos paìses do “centro”, é praticamente impossìvel na


“periferia”.

Isto porque, apesar do grau de visibilidade dos “contrários” poder


facilitar a distinção entre hegemônico e contra-hegemônico e, por sua vez,
os níveis de fragmentação da sociedade política ajudar a determinar as
diferenças; quando uma sociedade é mais fragmentada, mais difícil é fixar
as diferenças.

Entretanto, e tratando-se de uma tese cuja pretensão não vai além de


seus fins enquanto produto material humano, nós podemos afirmar também
que a possibilidade de prever o futuro de nossas cidades está no “ser”
consciente, para além de ser e estar ciente e, nesse sentido: passado,
presente e futuro podem ser vistos como um só no “eterno agora” da
borda/à borda.

Na verdade, o tempo e o espaço são preocupações humanas que


105
são ultrapassadas por uma omnijetividade não antropocêntrica . Isto
permite, por sua vez, entender o passado como “o passado”, no sentido de
que ao haver passado já está diante de nós e, por isto, o futuro de nossas
cidades latino-americanas não está no final de uma linha imaginária de
acontecimentos apocalípticos (imaginados), senão no início, na origem de
nossos tempos, em nossos ancestrais (não apenas indígenas) de todas as
raças e de todas as épocas que vieram a este belo continente.

Agora, com tudo isto escrito, falta apenas passar da hermenêutica do


texto à hermenêutica da ação, à imaginação enquanto discurso e ação.
Nesta interface/interfase emergente, onde as culturas se misturam e dão
lugar a diversos universos simbólicos entre culturas (desde/na/à borda).

105
Não antropocêntrica porque supera (inclui em seu interior) a epistemologia e, portanto, a
metodologia e a lógica, tanto da objetividade alienante das chamadas equivocadamente
ciências naturais, como a subjetividade antropocêntrica das igualmente mal denominadas
ciências sociais.
370

A diferença, a desigualdade e a incomunicabilidade são os eventos a


modificar no interior do evento simultaneamente individual, coletivo, cósmico
e quântico de condições de borda em situações à borda. Isto tudo no âmbito
multicultural, intercultural e transcultural do urbanismo planetário
contemporâneo globalizado.

Finalmente percebemos que a diferença entre nós é a borda entre


culturas, que é a semelhança que nos torna parecidos, mas diferentes, e
que essa diferença se converte em desigualdade (que é a borda entre
sociedades), que é o desequilíbrio de poder entre nós. As duas – diferença
e desigualdade – são vistas contemporaneamente como falta de
comunicação, desinformação que vêm da borda entre nós mesmos. A
conexão das redes cria novas diferenças e desigualdades à borda, entre
aqueles que estão conectados e os que não estão. A versão perdida do
poder (a verdade) já não interessa mais. Podemos ser diferentes e
desiguais, mas jamais estar desconectados.


Tomar a cidade pelas bordas significa a articulação da totalidade do todo
emergente como cuidado necessário para chegar à reconfiguração orbana
para a borda, na borda, da borda, à borda.
371

POSFÁCIO: Vou me tornar o que eu quero 106.

Pergunta: Muito interessantes as reflexões em torno de uma


realidade tão problemática como esta que você se propôs a investigar – a
borda. É evidente que os conceitos e o discurso também reproduzem o
caráter incerto e instável da borda, o que dificulta (para mim) a
compreensão de seu real significado e alcance. A maismodernidade dos
lugares-nenhum não acabará, então, com toda a dimensão territorial do
espaço urbano para fazer reinar a sua “virtualidade” inesgotável? Não está
sujeita a nenhum princípio de limitação? A intraduzibilidade radical e a
incomensurabilidade total do fenômeno urbano foram superadas na redução
semiótica dos programas das redes de informação? <Francisco Sierra
Gutiérrez> (Desde: 20/02/2008).

Resposta: Eu considero professor Sierra, que como entendera


Aristóteles – “é a potência que define a sua essência” (De Anima), e quando
o pensamento, transformado em informação digitalizada chegue a ser cada
coisa no ato (quando a gente saiba como chamar cada coisa em si), ele vai
permanecer sempre, de algum modo, em potência e vai poder pensar-se a
si mesmo.

Por outra parte, e ainda que esta tese tente sempre escapar do
reducionismo filosófico, considero que a incomensurabilidade e a
intraduzibilidade radical de qualquer fenômeno (númeno) são noções
incoerentes devido à impossibilidade, sequer, de ser nomeadas, (o que é
necessário para ser capaz de identificar um padrão de pensamento, de
cultura, do fenômeno urbano, etc.) nos sistemas de significação complexos
dos conceitos, das palavras, dos rituais e dos símbolos que têm sentido
para nós, os humanos. <Mauricio Sierra- Morales> (Para: 29/02/2012).

106
Y.H.V.H.
372

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YUJNOVSKY, Oscar. “La Estructura Interna de la Ciudad: El caso
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394

Experiências e processos.

GRUPO DE INVESTIGACIÓN CONSTRUCCIÓN DE LO PÚBLICO, “Deriva


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de Bogotá en convenio con la Universidad Piloto de Colombia y con el
auspicio del Programa de las Naciones Unidas para el Desarrollo (PNUD),
1994 – 1998.
395

ÍNDICE DE AUTORES

Argan 304, 305, 372


Ábalos e Herreros 105, 327, 329, 330, 331, 372
Adler 99, 101, 382
Agamben 15, 16, 30, 33, 41, 47, 71, 86, 92, 155, 200, 293,
294, 356, 372, 382
Aïvanhov 20, 220, 373
Alberti 169, 382
Alexander 121, 122, 123, 166, 266, 372
Althusser 44, 45, 372
Allegritti 69, 70, 222, 241, 372
Amaral 139, 382
Amendola 104, 111, 256, 292, 372
Araujo 52, 83, 103, 142, 153, 163, 165, 325, 372, 382

Aristóteles 13, 16, 32, 33, 61, 122, 306, 371, 373, 382
Augé 84, 191, 259, 347, 373
Bachelard 266, 373
Bakunin 126, 373
Barabási 117, 120, 382
Baran 93, 94, 95, 111, 112, 382
Barandier 310, 373
Bauer e Marx-Pressburg 42, 140, 373
Bauman 105, 287, 288, 373
Bazant 243, 245, 374
Beck 203, 382
Benedict 14, 123, 374
Benetti 265, 275, 276, 374
Benjamin 40, 59, 138, 274, 374
Bentham 139, 285, 382
Berardi 227, 228, 382
Berman 88, 93, 126, 292, 374
396

Bertalanffy 117, 120, 320, 382


Boaventura de Sousa 5, 13, 21, 54, 58, 112, 113, 156, 168, 182, 183, 185,
187, 189, 190, 192, 221, 223, 253, 256, 257, 263,
271, 272, 285, 286, 287, 292, 293, 347, 368, 374
Bobbio 154, 278, 382
Bolívar 262, 263, 374
Borde 80, 83, 247, 323, 374
Borges 257, 258, 374
Borja e Castells 17, 81, 375
Bourdieu 34, 37, 47, 218, 284, 375, 383
Breton 274, 383
Bruno 117, 383
Cannavò 273, 383
Careri 274, 275, 375
Cassirer 39, 375
Castoriadis 121, 214, 289, 376, 383
Cerdá 167, 383
Cervera 70, 383
Chalaux De Subirà 228, 383
Chichilnisky 247, 383
Choay 15, 148, 163, 164, 166, 173, 181, 375, 383
Chomsky 221, 231, 383
Chopra 136, 197, 375
Comte 175, 383
Cooley 73, 384
Cooper 231, 384
Cruz 76, 384
da Silva 196, 384, 384
Darwin 20, 230, 384
Davis 103, 268, 384
Dawkins 195, 384
Deleuze e Guattari 16, 68, 118, 212, 375
Déler 243, 384
397

Derrida 115, 155, 339, 384


Descartes 135, 136, 137, 138, 169, 384
De la dehesa 228, 384
Dick 184, 385
Dreyfus e Rabinow 46, 124, 127, 375
Duany 269, 385
Duek e Inda 11, 277, 375
Durkheim 42, 86, 191, 284, 385
Durkheim e Mauss 43, 86, 376
Dussel 32, 36, 110, 111, 112, 113, 376, 385
Eddington 4, 34, 385
Einstein 133, 136, 189, 358, 385
Eliot 25, 376
Ellin 269, 385
Euler 94, 385
Fals-Borda 172, 385
Fariña y Schaposnik 329, 330, 331, 376
Ferguson 57, 109, 376
Filibi-Lopez 14, 52, 376
Fogelson 8, 66, 385
Foucault 11, 15, 16, 43, 46, 47, 68, 124, 125, 127, 147,
155, 376, 385
Freire 109, 134, 376
Freud 20, 28, 45, 111, 385, 386
García-Canclini 243, 246, 263, 276, 277, 280, 281, 376, 386
Gardner 85, 220, 386
Gilroy 278, 279, 386
Goldin 284, 377
Gramsci 5, 23, 44, 45, 50, 58, 59, 154, 155, 156, 157, 158,
159, 160, 196, 356, 368, 377, 386
Gruppi 58, 59, 386
Gurvitch 192, 386
Guthrie 94
398

Gutiérrez 243, 244, 386


Habermas 106, 278, 386
Hadid 359, 386
Hall 83, 155, 264, 377
Haluani 5, 12, 115, 116, 386
Harvey 45, 49, 55, 161, 204, 347, 377
Hausdorff 28, 29, 386
Hegel 40, 98 138, 154, 386
Heidegger 19, 20, 21, 39, 40, 41, 71, 103, 164, 186, 213,
322, 339, 377
Heisenberg 320, 387
Hipódamo 78, 170, 387
Hobbes 11, 12, 138, 139, 387
Holl 3, 297, 377
Holloway 5, 49, 70, 71, 387
Hood 284, 387
Hurtado de Barrera 297, 298, 387
Husserl 40, 41, 133, 387
Huxley 184, 227, 377
Ibáñez 353
Izquierdo 26, 36, 37, 89, 119, 120, 130, 197, 256, 267, 342, 377
Jacobs 84, 128, 387
Jung 47, 88, 90, 96, 100, 101, 102, 179, 378
Kant 38, 39, 40, 41, 278, 387
Kniess e Lagos 272, 273, 387
Kropotkin 126, 127, 227, 378
Kuhn 297, 299, 300, 378
Lacan 28, 45, 387
Laclau e Mouffe 21, 134, 387
Laing 223, 387
Le Corbusier 167, 168, 244, 387
Lefebvre 80, 127, 378
Lévi-Strauss 42, 43, 100, 378
399

Locke 12, 138, 139, 388


Lonergan 165,184, 187
Lopes de Souza 55, 56, 275, 378
López Moreno 152, 378
Lorenz 4, 27, 66, 388
Lynch 8, 169, 283, 292, 379, 388
Mach 139, 189, 388
Mainländer 71, 128, 356, 357, 358, 378
Mance 290, 291, 378
Mandelbrot 29, 66, 67, 388
Manucci 351, 352, 378
Mao 44, 388
Marañón 240, 388
Maricato 287, 288, 388
Marshall 106, 277, 388
Marx 42, 44, 59, 140, 141, 154, 158, 186, 202, 204,
277, 388
Maslow 161, 162, 388
Maturana 42, 118, 121, 267, 270, 388
Mauss 42, 43, 86, 191, 218, 389
Max-Neef 161, 162, 389
Mazzilli 74, 389
McHarg 113, 389
Mead 73, 389
Mellaart 38, 48, 378
Mignolo 34, 110, 111, 238, 379
Morin 4, 197,198, 379
Moura 10, 250, 379
Muelas 43, 376
Nascimento 74, 389
Neumann 100, 389
Nietzsche 20, 21, 22, 31, 138, 190, 274, 356, 379, 389
Norberg-Schulz 48, 148, 389
400

Olson 277, 389


Olszewska e Trigan 250, 389
Ortoli e Pharabod 29, 30, 379
Orwell 229, 389
Pavez e Recart 146, 379
Pérgolis 6, 8, 135, 389
Pesci 82, 92, 182, 183, 305, 379, 390
Petersen 75, 211, 379
Pinheiro 310, 311, 390
Piaget 41, 119, 390
Platão 31, 39, 40, 121, 199, 340, 341, 344, 379, 390
Pradilla-Cobos 243, 246, 390
Prigogine e Stengers 108, 112, 117, 124, 165, 205, 357, 358, 379
Radeliffe-Brown 94,390
Rapoport 169, 390
Raymond 218, 219, 390
Redfield 131, 379
Reichel-Dolmatoff 220, 358, 380
Reynoso 94, 390
Ricoeur 99, 133, 219, 380
Robertson-Davis 221, 222, 390
Rodríguez e Prieto 213, 380
Rolnik 53, 391
Romero 228, 243, 244, 391
Rosenau 205, 380
Rossi 47, 48, 266, 380
Rousseau 10, 138, 139, 190, 391
Sabella 107, 108, 380
Sampaio 272, 391
Sansot 266, 380
Santos 242, 243, 391
Sapir 42, 43, 391
401

Sartre 98, 103, 380


Saussure 40, 43, 166, 299, 391
Schrödinger 83, 391
Schopenhauer 20, 128, 218, 252, 255, 380
Secchi 188, 238, 252, 255, 380
Segre 243, 245, 246, 380
Sierra 164, 165, 180, 184, 186, 187, 332, 333, 372, 381
Sierra-Morales 3, 22, 90, 97, 134, 144, 169, 224, 249, 265, 372,
381
Simmel 94, 391
Singer 243, 391
Sitte 167, 391
Sloterdijk 21, 164, 188, 322, 381
Soja 63, 64, 278, 381
Spinoza 230, 356, 357, 391
Stengers e Prigogine 117, 164, 212, 391
Still 221, 222, 392
Sullivan 230, 392
Thom 99, 115, 205, 392
Topalov 197, 392
Trias 68, 86, 320, 392
Turner 186, 252, 392
Varela e Maturana 118, 121, 392
Vasco 21, 392
Vattimo 21, 392
Vernadsky 51, 197, 219, 392
Vigarello 53, 392
Wallerstein 33, 392
Weber 11, 42, 44, 277, 292, 392
Webber 11, 268, 392
Whorf 42, 43, 393
Yori 195, 273, 394
Yujnovsky 243, 244, 393
402

ÍNDICE ALTERNATIVO

Os conceitos do problema. 25
De uma situação aborrecida: Isto não é real e o mundo real está em 145
outro lugar.
Borda da cidade. 81
Cidade da Borda. 81
Borda à borda. 89
Os problemas do conceito. 146
Em uma situação aborrecida para outra situação interessante: o 201
que é real não importa, o que importa é como vivemos nossas vidas.
Novo ponto de partida: ressignificando o (inacabado) princípio, da 281
racionalidade estética - expressiva da modernidade (sem
colonialidade).
A reconfiguração das interfa(s)es do tempo. 310
A reconfiguração das interfaces de espaço. 310
A reconfiguração dos interstícios da Arquitetura. 316
Categorização da interface urbana. 327
Categorização do interstício arquitetônico. 317
Projecto emergente contemporâneo. 320
Os problemas do problema. 202
De uma situação interessante: vou me tornar o que eu quero. 303
Abordagem multidisciplinar para o problema falso da borda. 173
Abordagem interdisciplinar para o problema falso da borda. 176
Abordagem transdisciplinar para o problema falso da borda. 178
Os conceitos do conceito. 304
Borda (desde-para). 90
Borda (Em). 90
Borda (À). 90
Borda (À). 91
A Borda à borda. 91
403

ANEXO ÚNICO: (Se você deseja ser contatado pelo autor).

Data Nome Completo Endereço (eletrônico)

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