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Na VIRADA DO SECULG, PERCEBEMO-NOS “cIDADADS DO MUNDO” ~ NAO NO ANTI GO SENTIDG, DE PESSOAS viAuADaS, MAS SIM DAS QUE GOMPARTILHAM UM MESMO COTIDIAND. MARLBORO, DISNEY, FAST-FOOD, LOJAS, CHOCOLATES, COMPU- TADORES INVADEM NOSSAS VIDAS, NOS CONSTRANGEM GU NOS LIBERTAM, FAZEM PARTE DA MOBILIA DO DIA-A-DIA. ESTA & UMA REFLEXAG SOBRE A MUNDIALIZAGAOQ DA CULTURA E A INEVITAVEL REGRIENTA- GAO DAS SOCIEDADES ATUAIS. AREAS DE INTERESSE: CIENCIAS Socials, COMUNICAGGES E ARTES ISBN 85-11-08078-3 brasiliense RENATO ORTIZ ] [MUNDIALIZAGAQ E CULTURA E CULTURA RENATO ORTIZ 4. editora brasiliense Copyright © by Renato Ortiz, 1994 Nenhuma parte desta publicacdo pode ser gravada, ‘armazenada em sistemas eleirénicos, fotocopiada, reproducida por meios mecénicos ou outros quaisquer sem autorizagao prévia da editora Preparagdo de origina: Isabel Rodrigues "rr Rovado: Comem 18 Core ‘edna Maria OM Barbosa Capa e projet grifico: Mara Ehana Paiva Dados Interacionais de Catalogagio na Publicagdo (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Ontz, Renato, 1947 - Mundalizagdo¢cutura Renato Ori. ~ Sto Paulo: Brsliens, 2003, 5 reimpr. da Ie. de 1994, Bibliograta ISBN 85-11-08078.3 lizagio moderna Século 20 2. Cultura 3. Comunicago I. Tula, 03.0469 cop-306 indices para catilogo sistemitico: |. Mundializagio e cultura; Sociologia 306 ‘ua Emil Marengo 210" Tetapé ua Emi 16 — Ta (CEP 03336-000~ Sao Paulo SP Fone/Fax (bell) 6675-0188. MUNDIALIZACAO E CULTURA 104 RENATO ORTIZ Ges procuram despertar e entreter a crenca na sua legitimi- dade”, O mundo da cultura é 0 espago no qual essas “crencas” se transformam em conivéncia, No caso da. mundializagao torna-se importante .cias e as formas como imidade se implanta, No seio de uma civilizagdo que la surgem novos habitos e costumes, que consti- tuem a “tradigdo” da modernidade-mundo. Este movimento planetario nao se restringe aos territ6rios nacionais, nem pode ser compreendido como difusao cultural, a maneira como a velha his sociais mundializadas exprimem a estrutura interna de um pro- cesso mais amplo. Entretanto, a emergéncia desta modemidade centripeta, na qua localizar a centralidade das coisas, nao significa a auséncia do poder, ou sua partilha em termos de- mocriticos. Pelo contririo, as relacdes de autoridade, ao se tor- narem descentralizadas, adquirem outra abrangéncia. A civi lizag4o mundial, a0 nos situar em outro patamar da hist6ria, traz com ela desafios, esperancas, utopias, mas engendra também novas formas de dominacao. Entendé-las é refletir sobre as raizes de nossa contemporaneidade. capiTuLo 1v UMA CULTURA INTERNACIONAL-POPULAR Enzensberger conta a historia de um executivo alemao que foi mandado a China para projetar uma grande instalago in- dustrial." Durante algumas semanas, devido as exigéncias de sua profissdo, ele se vé obrigado a viver uma experiéncia amarga, Nao fala chinés, desconhece os costumes locais, res- sente-se da falta dos automéveis, encontra-se na contingén- cia de partilhar um modesto quarto de hotel com outro via- jante qualquer. De retorno a Hong Kong, sua conexio para voltar a Europa, respira aliviado. A paisagem que o cerca é sua velha conhecida. Mas por que um alemao “sente-se em casa” em Hong Kong? O que lhe é tao familiar neste lugar longinquo? A hist6ria de Enzensberger, talvez uma fabula, recoloca o tema da desterritorializagao. Sao varios os autores que procu- ram entender as transformagées ocorridas com o processo de globalizagao. Jean Chesnaux nos diz que “o ‘hors-sol’ consti- tui uma categoria geral da modemidade, uma situagdo de dissociagao em relacdo ao meio natural, social, hist6rico e cultural”? Contrariamente aos “lugares”, carregados de signi- ficado relacional e identitario, o espaco desterritorializado “se esvazia” de seus contetdos particulares. Os free-shops nos aeroportos, as cidades turisticas (Acapulco, Aruba), os hotéis internacionais parecem constituir uma espécie de “nao-luga- 1. H.M, Enzensberger, Com raiva e paciéncia, R. Janeiro, Paz e Terra, 1985, J. Chesnaux, La modernité-monde, Paris, La Découverte, 1989, p. 12. , 1992, 106 RENATO ORTIZ res”, locais anénimos, serializados, capazes de acolher qual- quer transeunte, independentemente de sua idiossincrasia. Espaco que se realiza enquanto sistema de relagdes funcio- nais, circuito no qual 0 individuo se move. Dai a necessidade de sinalizé-lo, para que as pessoas nao se percam no seu in- terior. Numa civilizacdo na qual a mobilidade é essencial, é necessario que existam balizas, um c6digo de orientacao. Um aeroporto, uma grande estagdo ferrovidria, ou uma cida- de so andlogos a um texto semiol6gico, recortado por indi- cages e painéis, comunicando ao usuario um conjunto de informacdes que Ihes permite enveredar nesse labirinto de signos. Espaco impessoal, no qual o individuo se transforma em usuario, isto é, em alguém capaz de decodificar a inte ligibilidade funcional da malha que o envolve’ (fazer com- pras, passear, tomar um avid, ir ao trabalho, etc). Mas como se sentir “em casa” no seio deste anonimato? Alguns gedgrafos, como Milton Santos, se perguntam se real- mente 0 espaco teria se esvaziado.' Nao seria o contrério? Hoje, com as transformagdes tecnologicas ele estaria “mais cheio”. Com efeito, pela primeira vez na historia dos ho- mens, a idéia de um mundo-mundo se realiza com a globa- lizagao da Terra. A velocidade das técnicas leva a uma unifi- cacio do espaco, fazendo com que os lugares se globalizem. Cada local, néo importa onde se encontre, revela o mundo, ja que os pontos desta malha abrangente sao susceptiveis de intercomunicagio. Neste sentido o munto teria se tormado menor, mais denso, manifestando sua imanéncia em “todos 0s lugares”. Espaco “cheio” ou “vazio”? Talvez pudéssemos resolver esta antinomia numa afirmagdo comum: 0 espaco toma-se “cheio” porque se “esvaziou". Isto significa que o movimento da mundializacao percorre dois caminhos. O pri- 3. Ver P. Virlio, O expaco critico, R.Janeito, ed. 34, 1993, 4, M. Santos, “A aceleragdo contemporinea: tempo, mundo e espago mun- do” in M. Santos et ali (orgs.), Fim de século e globatizagdo, 8, Paulo, Hucitec, 1993. MUNDIALIZAGAO E CULTURA 107 meiro € 0 da desterritorializacao, constituindo um tipo de es- paco abstrato, racional, des-localizado. Porém, enquanto pura abstracao, 0 espaco, categoria social por exceléncia, nao pode existir. Para isso ele deve se “localizar", preenchen- do 0 vazio de sua existéncia com a presenca de objetos mundializados. O mundo, na sua abstra¢ao, torna-se assim reconhecivel. Por isso temos a tendéncia em detectar a mundializagao por meio de seus sinais exteriores. McDonald's, Coca-Cola, ‘cosméticos Revlon, calcas jeans, televisores € toca-discos so sua expresso. Nos pontos mais distantes, Nova York, Paris, Zona Franca de Manaus, na Asia ou na América Latina nos deparamos com nomes conhecidos - Sony, Ford, Mitsu- bitshi, Phillips, Renault, Volkswagen. Qual o significado dis- s0? Que a mundializag4o no se sustenta apenas no avanco tecnologico. Ha um universo habitado por objetos comparti- Ihados em grande escala. Sao eles que constituem nossa pai- sagem, mobiliando nosso meio ambiente. As corporagdes transnacionais, com seus produtos mundializados e suas marcas facilmente identificdveis, balizam 0 espago mundial. Biscoitos Nabisco, iogurte Danone, chocolate Nestlé, cerveja Budweiser, ténis Reebok mapeiam nossa familiaridade. Sem essa modermidade-objeto, que impregna os aeroportos in- ternacionais (sao idénticos em todos os lugares), as ruas do comércio (com suas vitrinas e mercadorias em exposicao), ‘os méveis de escrit6rios, os utensilios domésticos, dificilmen- te uma cultura teria a oportunidade de se mundializar. E a esta presenca cheia, de um espaco desterritorializado, que Enzensberger se refere. A China Popular, para nosso executi- vo alemdo, é um “mundo” distante, indspito. Em seu territo- rio, tudo lhe é estranho. Em contrapartida, Hong Kong repre- senta algo proximo, um recanto povoado por coisas de sua vida prosaica (hotéis, padro de refeicao e de conforto, taxis, etc.) Envolvido por uma miriade de objetos-mobilias, ele sente-se a vontade neste mundo-mundo. Familiaridade que 108 RENATO ORTIZ se realiza no anonimato de uma civilizagao que minou as raizes geograficas dos homens e das coisas. Sao varios os sinais de desterritorializagao da cultura. Um carro esporte Mazda é desenhado na California, financiado por T6quio, o prototipo é criado em Worthing (Inglaterra) e a montagem € feita nos Estados Unidos e México, usando componentes eletrénicos inventados em Nova Jérsei, fabrica- dos no Japio. O “Ford-Fiesta" € montado em Valencia (Espa- nha), mas os vidros vém do Canada; 0 carburador da Italia; os radiadores da Austria; os cilindros, as baterias € a ignicao da Inglaterra; o pistao da Alemanha; e o eixo de transmissdo da Franca. Uma campanha publicitaria de cerveja, feita pela Saatchi & Saatchi, é concebida na Inglaterra, rodada no Cana- da, e editada em Nova York. Um “filme-global”, realizado para um ptiblico-alvo mundial, € produzido por uma major de Hollywood, dirigido por um cineasta europeu, financiado pelos japoneses, contém no elenco vedetes internacionais, e as cenas se passam em varios lugares do planeta. As roupas japonesas, consumidas no mercado americano, sdo fabri- cadas em Hong Kong, Taiwan, Coréia do Sul e Cingapura; ja a industria de confeccao norte-americana, quando inscreve em seus produtos “made in USA”, esquece de mencionar que eles foram produzidos no México, Caribe, ou Filipinas. Uma forma de se entender 0 que esta se passando é foca- lizarmos 0 movimento de deslocalizagdo da produgao. Um mesmo elemento encontra-se na origem deste fendmeno. A competi¢ao internacional faz com que as grandes empresas tenham interesse em diminuir 0 custo de seus produtos. A flexibilidade das tecnologias Ihes permite descentralizar a producio e acelerar a produtividade. Isto é vilido para filmes € automéveis. Com a crise do studio-system, modelo de pro- dugao cinematografica, Hollywood volta-se para o mercado mundial, sendo obrigada a deslocalizar a fabricacdo dos MUNDIAUZAGAO E CULTURA 109 filmes (entre 1978 e 1982, o numero de peliculas filmadas fora dos Estados Unidos passa de 41% para 5796). © mesmo acontece com o carro mundial. Diante da concorréncia glo- bal, as grandes firmas fragmentam o processo de produgio, fabricando, em lugares distantes, as pecas que serio mon. tadas posteriormente. Do ponto de vista da Sociologia do Trabalho, isto implica um conjunto de transformacées — sub- contratac4o, enfraquecimento dos sindicatos, integrac3o do trabalho num modelo flexivel, fim da linha de montagem tal como eta definida pelo fordismo, exploracao do trabalhador em escala mundial, etc, Para a discussio que nos interessa sublinho um aspecto. Os objetos transformam-se em com- postos resultantes da combinacdo de pedacos dispersos alea- toriamente pelo planeta. Nao hé como definir sua origem. Como as unidades produtivas encontram-se interligadas, a acdo final nao possui nenhuma autonomia, ela s6 ganha sen- tido como acoplagem de parcelas distintas. A rigor, este fendmeno nao se manifesta apenas no seio da produgao flexivel, como muitas vezes pensam os econo- mistas. A des-localizacao exprime o “espirito de uma época”. Basta olharmos a discussdo que os arquitetos pos-modemos fazem na esfera da arte. O problema que eles enfrentam é semelhante. Criticos do modernismo, eles buscam valorizar as formas estéticas do passado. Ao se rebelarem contra a unicidade do estilo internacional, tentam valorizar as formas esquecidas pela arquitetura modema. Pirdmides, colunas gregas, frontispicio neoclassico adquirem assim direito de ci- dadania. Mas fica a dtivida. Trata-se realmente de uma recu- peracao do passado? Os proprios artistas se encarregam de esclarecer os possiveis mal-entendidos. “O passado do qual reclamamos a presenca nao é uma idade de ouro a ser recu- perada, Nao é a Grécia como infancia do mundo da qual fa- lava Marx, atribuindo-lhe a universalidade, a permanéncia e Dréle de drame du cinéma mondial, Paris, La Décou- 10—_-RENATO ORTIZ exemplaridade de certos aspectos da tradi¢o européia. O passado com a sua presenca, que hoje pode contribuir para fazermos ser 0s filhos de nosso tempo, € no nosso campo o passado do mundo. Ele é o sistema global das experiéncias conectadas € conectiveis pela sociedade.”* Nao ha, pois, uma visao nostlgica, O clissico nao é recuperado enquanto tal, mas como forma produzida em algum tempo e lugar. Dizer, porém, que o passado é um sistema significa atri- buir-lhe uma intemporalidade. Retirados do contexto origi- ja egipcia ou um pantedo ao ar livre podem coabitar ao lado de arcos 208 ou goticos. Por isso 0 pas- sado do qual falam os pos-modemos é estrutural, ele se com- poe de invariantes. Pirimides, catedrais goticas, palhogas, colunas helénicas ou j6nicas, formas abobadais, teto japonés so elementos de um conjunto légico atemporal. Ele consti- tuiria, por assim dizer, o legado da humanidade, englobando quantitativamente todas as formas conhecidas, ontem e hoje. ‘A consciéncia pés-moderna exprime o desenraizamento das formas e dos homens. O espaco, que surgia ainda como uma resisténcia 4 mobilidade total, definindo os individuos e as formas em relagio ao solo, as cidades, aos paises, transubstancia-se em elemento abstrato. O presente se alinha ao passado, e as arquiteturas nacionais, desvencilhadas do peso da tradigio, se articulam no interior deste megaconjunto, domini de todas as formas. Resta 20 arquiteto relacionar-se ecleti- camente com esta disponibilidade estética quase infinita. Se- gundo suas necessidades, ele escolheria (ou conectaria, como sugere Portoghesi) os termos adequados para compor seu projeto particular. Como um fabricante de carro mundial, ou realizador de um filme global, ele age seletivamente para res- ponder a cada problema que enfrenta. Sua arquitetura é um “composto” desterritorializado. O movimento de desterritorializagao nado se consubs- tancia apenas na realizacdo de produtos compostos, ele esta 6.P. Portoghesi, Postmodernism, N. York, Rizzoli, 1983, p. 26 DIALIZAGAO E CULTURA 1 na base da formacao de uma cultura internacional-popular cujo fulcro é o mercado consumidor. Projetando-se para além das fronteiras nacionais, este tipo de cultura caracteriza uma sociedade global de consumo, modo dominante da modernidade-mundo. Vejamos alguns casos, Todos conhe- cem a propaganda da Marlboro, um homem forte, cavalos, a paisagem rude e, finalmente, 0 cigarro. Ela foi concebida em Nova York, rodada no interior dos Estados Unidos, e certa- mente editada em outro lugar qualquer, No entanto, nao me interessa mais sublinhar 0 aspecto da deslocalizacao da pro- duo, €0 proprio encadeamento das imagens que chama a tengo. O que esta publicidade faz. ¢ capitalizar determina- dos signos e referéncias culturais reconhecidos mundialmen- de, valor universal, € traduzida em termos imagé- ticos, imediatamente inteligiveis, a despeito das sociedades nas quais 0 anincio é veiculado. Isso implica que no s6 os objetos, mas também as referén- cias culturais que o compéem, devem se desenraizar. O univer- s0 da publicidade é rico em ensinamentos desta natureza Antncio de cookies “Lu” (veiculados na Franca) Filha telefona para os pais nos Estados Unidos. A conversa se passa em inglés, com legendas em francés. Cena: mie no fundo, cozinhando cookies, primeiro plano, pai sentado no sofé falando ao telefone. mae que estou comendo cookies’. Pai disfarca. Mae murmura = "Pobre filhinha, to longe, sozinha na Franga!” Tudo é verossimilhante neste cenario idealizado. A con- versa em inglés, 0s personagens, “tipicos americanos”, e claro, 0 biscoito. Um detalhe porém: “Lu” é uma empresa francesa. O que confere sentido a mensagem ~ “nao é preciso ir 4 Amé- rica para se comer um verdadeiro cookie’, No fundo, a alu- sdo aos Estados Unidos nada tem de real. inp porém que ela seja consumida na sua “americanidade” isto 6, nao mais enquanto simbolo nacional (ai terfamos um merca- 12 RENATO ORTIZ do reduzido de consumidores), mas como referéncia signica, inglés, lingua mundial, nao veicula neste caso as qualida- des de um povo, ele é suporte de um trago cultural hors-sol, que num passado remoto teve algo de americano. O mesmo acontece com o vinho e o queijo “francés”, fabricado e con- sumido nos Estados Unidos. A francité que anunciam est distante das raizes gaulesas, podendo ser encontrada na pra- teleira de qualquer supermercado. Temos apenas uma série de referéncias simbdlicas que funcionam como sinais de dis- ting4o social no mercado consumidor. Sua nacionalidade conta pouco. Esta ressemantizacao dos significados pode ser observa- da em relacdo ao western. A pi vista, todos concorda- tiamos em dizer: trata-se de um auténtico valor americano. interpretagao fez escola entre os criticos cinematografi- cos. André Bazin o considera como simbolo por exceléncia do cinema americano. Para ele, o western seria uma epopéia que refletiria a esséncia do mito do Oeste.’ Alguns criticos ar- riscam inclusive uma definicao inequivoca do género: “Um filme, tendo por quadro geogrifico o Oeste americano, por quadro historico a marcha de um povo na diregio de uma fronteira mével (1820-1890); por critérios dramaticos, as ca- racteristicas, material, humana, moral e sociolégica, ligadas a uma e a outro, agenciadas segundo as necessidades dinami- cas inerentes 4 aco do individuo, ou de um grupo de indivi- duos, engajados nesta aventura, e diretamente dependentes de sua paisagem natural e da sua hist6ria’.* A veracidade de um westem é dada pela sua geografia. A agio vincula-se umbilicalmente ao solo. Montanhas rochosas, desertos do Arizona, pradarias do Rio Grande nao sao simplesmente ce- narios, mas territ6rios que ontologicamente constituem a hi toria que esta sendo relatada. Dai o fracasso das tentativas 7.A. Bazin, “Le western ou le cinéma américain par excellence” in Quest ce que le cinéma, Pars, Les Ed. du Cerf, 1990. 8.J.L. Rieupeyrout, La grande aventure du western, Pars, Les Ed. du Cerf, 1971, pp. 423-424 MUNDIALIZAGAO E CULTURA 43 indteis em imité-la. Os “falsos” faroestes produzidos na Aus- tralia, nos anos 40, no Brasil com os filmes de cangaceiro, ou no Japa, nos anos 60, seriam apenas uma copia malfeita, a palida presenca de um ideal inatingivel. Bazin acredita que 0s filmes de John Ford, Raoul Walsh, Frank Lloyd, cineastas da primeira geracio, constituiriam uma espécie de modelo classico, no qual o mito americano se encaixaria na sua in- teireza. Dai seu desgosto pelos filmes do pés-guerra, que pejorativamente ele denomina de sur-western. “Esse € um faroeste que tem vergonha de ser ele proprio, procurando justificar sua existéncia por um interesse suplementar, de or- dem estética, moral, sociolégica, psicol6gica, politica, erdtica, em resumo, por um valor extrinseco ao género, que suposta- mente 0 enriqueceria.” Para os criticos do Cahier du Cinéma ‘© género teria uma identidade propria, uma unicidade, faria pouco sentido buscar entendé-lo por meio de elementos ex- teriores, estranhos a sua definicao. Dai sua forca e perenida- de. Como epopéia modem, o faoreste estaria acima das modas, das mudancas, e, por que nao, da historia. Confiantes, nossos criticos concluem: “Apesar de tudo, no devemos nos inquietar demasiadamente com o futuro do faroeste. £ tarde demais para maté-lo. Mesmo se ele morresse, renasceria sob outra forma. Mas a morte do faroeste significaria que o cinema se encontra bem perto do fim. Significaria também que os Esta- dos Unidos estariam prestes a morrer. Melhor nem pensar”."” Mas é justamente a ronda da morte que toma intrigante a discussio. Morte nao por exaustio, mas por ampliagio. Na verdade, o western sera arrancado do solo americano, para se projetar, fora dele, enquanto cenario. Género em de nos esttidios de Hollywood, ele ira florescer na Australia Silverado”), € com 0 spaghetti italiano. A reagio dos ctiticos @ imediata, Eles recusam a incursdo italiana junto ao 1nito sacramentado internacionalmente. Como observa Christo- 9. A. Bazin, op. cit, p. 231, 10. J. Wagner, “Le western, Phistoire et Vactualité” in Hensi Agel (org), Le ‘western, Panis, Lettres Modemes Minard, 1969, 114 RENATO ORTIZ, pher Frayling, “um argumento que se repete como regular monotonia € 0 seguinte: dado que os faroestes produzidos nos estiidios da Cinecitt ndo possuem raiz na historia e no folclore americano, eles s6 podem ser produces baratas, imitagdes oportunisticas’.”' A idéia de falsificacao prevalece, mas nao consegue explicar como esta distorgdo é pronta- mente aceita pelo pblico. Na verdade, nada ha de casual na emergéncia do faroeste na Italia. Durante um periodo consi- dervel, os italianos transformam a “esséncia” da america- nidade em ponta-de-lanca de sua industria cinematografica (entre 1963 e 1973 sao produzidos 471 westerns, uma média de 47 filmes por ano). Isto s6 € possivel porque o género deixa de se vincular a sua territorialidade. Um critico italiano faz uma observacao arguta a esse respeito: “Enquanto no faroeste classico 0 ponto de referéncia para a construcao.do mito é providenciado pelo passado historico, no faroeste ita- liano, 0 ponto de referéncia é 0 mesmo mito (o mito cinema- tografico) olhado pela luz sombria do presente”.”? Portanto, jA ndo é mais a realidade mitica (que nao corresponde a rea- lidade social) que conta, mas sua imagem. Enquanto signo ela possui uma identidade propria, afastando-se de suas ori- gens hist6ricas, A inddstria cultural italiana se apropria do formato imagético, podendo reelaboré-lo segundo suas con- veniéncias mercadol6gicas. ‘Mas seria ingénuo pensar que 0 western se manifesta apenas no cinema. O caso do jeans revela sua associacao in- tima com o universo do consumo." Inventado por Levi Strauss, um judeu da Baviera, o jeans era uma calga resisten- te, feita de denin, tecido originario de Nimes (Franga), pinta- do com indigo. Nada de especial existia nessa vestimenta de trabalho. Ela atendia a demanda de um mercado pouco so- 11. C. Frayling, Spaghetti westerns, London, Routledge & Kegan Paul, 1981, p21 12, Dados in Dictionnaire cu western lalien, Paris, Ed. Grand Angle, 1983. 13, Cltagao in ibid, p. 124, 14, Ver D. Friedman, Histoire du blue jeans, Pat Ramsay, 1987 MUNDIALIZACAO E CULTURA ns fisticado, e sua Ginica qualidade era resistir por mais tempo ao uso € as intempéries, No entanto, por volta da década de 30, © jeans adquire uma outra conotagio. Ele é descoberto pela moda dos duke ranch que revaloriza 0 Oeste. Americanos ri- cos, citadinos, comegam a comprar ranchos como residéncia secundaria, Durante suas férias eles querem “viver a aventu- ra do oeste”, adotando, simbolicamente, os costumes popu- lares. A firma Levi Straus Co. aproveita esta onda mercado- logica para remarcar seu produto. Patrocina rodeios, distribui prémios entre os campeGes de montaria, e agora, uma “au- camisa faroeste acompanha suas calcas tradicionais. a revista Voguetraz. a seguinte publicidade: “O ver- dadeiro chic do oeste foi inventado pelos vaqueiros, se vocé se esquecer deste principio, estar perdido” > O que era si- nénimo de simplicidade, labuta, roupa de trabalhador, trans- forma-se em sinal de distingao. Apropriado pelo mercado publicitario, 0 western ira viajar rapidamente para fora de suas fronteiras, adequando sua imagem a demanda funcional das mercadorias. ‘Também a literatura se ocupa do faroeste."* Mas nao sao unicamente os escritores americanos (como Louis |'Armour) que se interessam pelo tema. Na Europa, entre 1870 e 1912, Karl May vende mais de 30 milhdes de exemplares de seus livros populares; metade deles se ocupam do Oeste america- no, Em meados do século XIX, 0 escritor francés Gustave Aimard redige livros como Os piratas das pradarias, Aventu- ras no deserto americano, A filha do cagador, O matador de tigres. Com a televisio € os seriados tipo “Bonanza” e “Bat Materson”, 0 faroeste se difunde ainda mais. Neste sentido, é possivel dizer que 0 Oeste ja nao é mais americano. A ima- gem, nele operacionalizada, pertence a um dominio comum, distante da territorialidade dos Estados Unidos. Por isso ela é 15. In D. Friedeman, op. cit, p. 43, 16. R. Athearn, The mytbic west in twenty-century America, The University Press of Kansas, 1986. 16 RENATO ORTIZ: mundialmente inteligivel. Isto explica em boa parte 0 suces- so da propaganda de Marlboro.”” Sua eficacia reside em algo que Ihe é anterior, uma educagao, tematica e visual, propici- ada pelo cinema, televisio, historias em quadrinhos, literatu- ra, que divulgou entre os povos uma imagem verossimil do que seria 0 faroeste. Evidentemente, a estratégia de Marlboro, que algumas vezes procura se adaptar a exigéncia dos mercados locais (na Africa, 20 lado da mensagem “Marlboro: 0 gosto da aventura”, 0 cavaleiro é negro), evita 0s pontos conflituosos da historia sangrenta dos homens. A luta entre o branco € 0 indio, os massacres, os sinais de vio- lencia e de trabalho sao apagados. Assepsia signica necess4- ria para a aceitagdo do produto, pois o mercado nao tolera as. contradi¢des da vida real. Mas os elementos imagéticos prin- cipais, o horizonte, os cavalos, a cerca, a sela, a corda, assim como 0 jeans utilizado pelo personagem principal, estao pre- sentes para nos lembrar que nos encontramos diante do ver- dadeiro/falso velho Oeste. Refletir sobre a mundializagio da cultura é de alguma maneira se contrapor, mesmo que ndo seja de forma absolu- ta, a idéia de cultura nacional. Diante deste desafio, temos as vezes a tendéncia em negar o proceso que estamos viven- ciando, nos refugiando nas certezas e convicgdes contidas nas anilises cissicas das Ciéncias Sociais, Curioso, alguns autores acreditam que uma cultura mundializada seria algo inipossivel, pois nos encontrarfamos diante de uma cultura sem memoria, incapaz de produzir nexos, vinculos entre as Pessoas."* Caberia, pois, unicamente 4 meméria coletiva na- ional integrar a diversidade das populacdes e das classes 17. Ver. G. Blair, "Cowboys, Europe and smoke; marlboro in the saddle", Reanie Francaise d'Etudes Américaines, n° 24/25, 1985. 18. Ver A.D. Smith “Towards a global culture?" in Global culture, op. cit. MUNDIAUIZAGAO E CULTURA 7 sociais, definindo desta forma a identidade do grupo como um todo. Neste caso, apesar das transformagdes tecnolé- gicas, da globalizagao da economia, a cultura nacional, en- quanto formadora de relagdes identitérias, estaria incdlume as mudancas atuais. O mundo seria composto por nagdes culturalmente auténomas, independentes umas das outras. Certamente, parte deste raciocinio € verdadeiro. De fato, a meméria nacional confere uma certidao de nascimento para 0s que vivem no interior de suas fronteiras. Todo um esforco foi feito para que isso acontecesse. A lingua oficial, a escola, a administragio piblica, a invencao de simbolos nacionais (bandeiras, comemoragées de independéncia, herdis, etc.) agem como elementos que propiciam a interiorizacao de um conjunto de valores partilhado pelos cidadaos de um mesmo pais. Existe uma historia da formagdo das nacionalidades, cristalizando maneiras de pensar, formas de conduta. Mas al- gumas objecdes podem ser levantadas a este entendimento do problema. Primeiro, do ponto de vista histérico, é preciso reconhecer que a nacao e, por conseguinte, as identidades nacionais sio fatos recentes na historia dos homens. Por que reific4-las, imaginando que representariam uma espécie de término da humanidade? Nao ha nada nos tempos moder- nos, a no ser certos habitos intelectuais, que nos leve a pen- sar desta forma. Se a autonomia do Estado-nagao encontra-se comprometida com o processo de globalizagao das socieda- des, por que a cultura permaneceria intacta, imune aos hu- mores do sistema mundial? Mas é possivel ir mais longe em nossa anilise, Efetivamente, falar em cultura significa privile- giar uma instincia social na qual as identidades sao formu- ladas. Fica, porém, a pergunta: seria a nacao a insténcia por exceléncia de articulagao da identidade dos homens? Os exemplos que vimos nao fornecem indicios de que nos en- contramos diante da formagao de uma meméria coletiva in- temnacional-popular? A idéia pode parecer incongruente, pa- radoxal, pois nos habituamos a falar em memoria nacional, Mas as transformagdes que conhecemos exigem que a hip6- 118 RENATO ORTIZ tese seja levada a sério. Gostaria de desenvolvé-la, tomando como objeto o mundo do consumo. Para isso, quero num primeiro momento mostrar como consumo e meméria nacio- nal se entrelacam. Em seguida, procurarei argumentar como este consumo, ao se mundializar, configura um tipo de relacdo identitaria especifica. Inicio minha reflexao com os Estados Uni- dos, pois trata-se a meu ver de um caso paradigmatico. Entre o final do século XIX e as primeiras décadas do sé- culo XX, a sociedade americana passa por um conjunto de transformagGes. Urbanizacao e industrializagdo s4o fendme- nos que mudam a cara do pais. Este € 0 momento de for- macao de um mercado nacional, favorecendo o floresci- mento do big business, 0 advento dos oligopolios — Swift (desde 1880 transporta carne congelada do Oeste para os centros urbanos do Leste), American Tobacco Company (1890), National Biscuit Company (1898), etc. Os historiado- res da Administracdo de Empresas nos mostram como essas grandes corporacdes, diante da preméncia em distribuir seus produtos, tém a necessidade de se reestruturar, promovendo um processo intenso de racionalizacao de suas operacées.”” Nascem assim os principios da administracao moderna, inte- grada horizontal e verticalmente, fundada no marketing e na publicidade. No contexto emergente jé ndo é mais suficiente que as mercadorias sejam produzidas, é importante que se- jam difundidas e consumidas em escala nacional. Essas mu- dancas que se realizam na esfera econdmica supdem, no en- tanto, uma outra, de natureza cultural. Os homens devem estar aptos a comprar os produtos fabricados. Existe, porém, resisténcias e habitos que os levam a agir de outra forma. No mundo “tradicional” da sociedade industrial que se forma até 0 final do século XIX, 0 produto é percebido apenas como algo funcional. Ele serve para alguma coisa (lavar roupa, ma- 19. Ver A. D. Chandler, “The beinnings of big business in American Industry” in R, Tedlow, R. John (orgs.), Managing big busines, Boston, Harvard Business School Press, 1986." MUNDIALIZAGAO E CULTURA 9 tara sede, embriagar-se, cozinhar, etc.). Sua utilidade € o ele- mento preponderante na sua definigao. A sociedade emer- gente requer, no entanto, um outro entendimento das coisas. ‘As mercadorias tém de ser adquiridas independentemente de seu “valor de uso”. A ética do consumo privilegia sua “inutilida- de”. Ha, portanto, um choque de valores. A reflexio de Veblen sobre 0 consumo conspicuo revela bem esse impasse.” Ela tra- duz um momento no qual a sociedade americana encontra-se ainda marcada pelo pensamento puritano, racional, preconi- zando, mesmo aos ricos, uma vida simples e frugal. Sabemos que Veblen, critico da ostentagao ¢ dos excessos, toma parti- do pela moralidade protestante, pela valorizacao do trabalho enquanto esfera de dignidade do homem. Ele acredita que a classe dirigente norte-americana se corrompeu diante do luxo e do brilho dos objetos. Mas nao ¢ isso que importa re- ter. Como outros autores da época (Simon N. Pattern e George Gunton), Veblen reflete um momento de transicao no qual os outros valores se consolidam. Uma ética do consumo nao deriva apenas de necessida- des econdmicas. £ preciso que ela se ajuste as relages deter- minadas pela sociedade envolvente e, simultaneamente, seja compartilhada pelos seus membros. Com 0 advento da so- ciedade urbano-industrial, a nogdo de pessoa jé ndo mais se encontra centrada na tradigao. Os lagos de solidariedade se rompem, O anonimato das grandes cidades e do capitalismo corporativo pulveriza as relagdes sociais existentes, deixando 0s individuos “soltos” na malha social. A sociedade deve por- tanto inventar novas instancias para a integracao das pes- soas. No mundo em que o mercado torna-se uma das prin- cipais forcas reguladoras, a tradico torna-se insuficiente para orientar a conduta. Uma dessas instincias ¢ a publicidade, 20.T. Veblen, The theory of the leisure class, N. York, New American Libray, 1953, 21. Ver D. Horowitz, The morality of spending, Baltimore, John Hopkins University Press, 1985. Consultar ainda R. W, Fox e T. J.J. Lears, The culture of consumption, N. York, Pantheon Books, 1983. 120 RENATO ORTIZ pois cumpre o papel de elaborar o desejo do consumidor atomizado, conferindo-lhe uma certa estabilidade social. Como observa Roland Marchand: “Nos anos 20, a percep¢ao de um tempo de mudanca acelerado intensificou 0 receio das pes- soas em perderem 0 passo em relago as novas complexida- des, transformando-se em individuos solitérios na multidao. A tendéncia societaria para a organizacao burocratica, a alta mobilidade, e as relagdes anémicas e segmentadas, se multi- plicaram. Mesmo no final do século XIX, uma rede, confusa e distendida de relagdes econémicas e sociais, assim como 0 esfacelamento da fé na comunidade, ética ou religiosa ti- nham distanciado muitos americanos do sentido de auto-se- guranca. Agora, para sua maior seguranca e auto-realizacio, um grande niimero deles passa a procurar indicios e acon- selhamentos junto a uma nova fonte disponivel - a midia. Os publicitarios, consciente ou inconscientemente, gradualmen- te reconhecem a complexidade do modo de vida urbano, espe- cializado, interdependente, que cria um residuo de neces- sidades desencontradas. Percebendo 0 vacuo na orientacao das relacdes pessoais, eles comecam a oferecer seus produ- tos como resposta para o descontentamento moderno”? A publicidade adquire assim um valor compensatério e peda- gOgico. Ela € modelo de referéncia. Por isso os publicitérios da década de 20 e de 30 se consideram como “apéstolos da modernidade”. Eles procuram guiar os individuos, ensinando- Ihes, por meio dos produtos, como se comportar. Dentro desta perspectiva, os modos vigentes so vistos como algo ultrapas- sado (0 que significa que a ética calvinista do inicio do capitalis- ‘mo toma-se um anacronismo), e a fugacidade e efemeridade das coisas, um valor do tempo presente. O interessante no caso americano é que essas mudangas vinculam-se intimamente ao processo de construcao nacio- nal. Para os homens de negécio, a produgao de massa impli- 22, R. Marchant, Advertising the American dream, Berkeley, University of California Press, 1985, MUNDIALIZAGAO E CULTURA 121 ca. educagao do povo. Consumo e na¢ao sao faces da mes- ma moeda. Como a escola, © consumo impele a coesdo so- cial. Os publicitarios se consid ssim como verdadeiros artifices da identidade nacional. Ensinando aos homens as maneiras, e o imperativo de consumir, eles trabalham para a eficacia do mercado e o reforgo da unidade nacional. Como ‘observa Stuart Ewen: “Através da publicidade o consumo ad- quiriu um tom nitidamente cultural. Com a ret6rica empresa- rial e governamental, ele assume 0 véu ideol6gico do nacio- nalismo e do patud democritico. O tipico americano de massa, em resposta a produgio capitalista, nasce dos desejos massificados. A indiistria requeria portanto uma individuali- dade de massa correspondente, denominada de civilizada e americana, heranca que encontrava-se no mercado”.2* A ri- gor, esta associagao entre consumo e nagdo nao se faz so- mente no caso da publicidade. Também as historias em quadrinhos sio vistas como cimento da unificago nacional. Co- mo dizem alguns estudiosos: “Durante séculos consideramos as escolas como agentes da unidade nacional de uma po- pulagio heterogénea, inculcando nas criangas, quando elas crescem, conceitos comuns, doutrinas, atitudes, sentimentos. Mas as histOrias em quadrinhos, consideradas mais como di- versio, vém fazendo isso continuamente, muito mais do que a escola ou a imprensa” Na medida que expressariam a auten- ticidade das crencas e dos sonhos do homem médio ameri- cano, os gibis difundiriam uma consciéncia do destino e das aspiracdes da América O exemplo do automével é ainda sugestivo.** No inicio da historia automobilistica, os carros americanos, como os europeus, eram produzidos para um mercado restrito, consti- tuindo-se num produto de luxo. Apenas uma elite tinha ca- pacidade econémica para absorvé-lo. O advento do Ford T, 23. 5S. Ewen, Captains of consciousness: advertising and the roots of consumer culture, N. York, McGraw-Hil, 1976. 24. D.M. White, R. H. Abel, The funnies: an Americans idiom, op. cit, p. 8 25. Ver j.Flink, The car culture, Cambridge, MIT Press, 1975 122 RENATO ORTIZ produzido em série nas linhas de montagen, inverte esté qua- dro. Em poucos anos 0 automével penetra profundamente nos habitos americanos (em 1924, 53% da populacao que vi- via em fazendas e cidades com menos de 5 mil habitantes possuiam um veiculo motorizado). O Ford T passa entéo a ser considerado como um arquétipo da cultura nacional. Ele simboliza “a vitoria do povo, que considerava 0 automobilis- mo uma reforma social contra uma visio mfope, na qual a unidade dos lucros se contrapunha ao automobilismo de massa, desejado por todos’.** Henry Ford torna-se um her6i popular, simbolo da amalgama entre democracia e consumo. O exemplo contém as premissas ideol6gicas de toda a dis- cussdo sobre cultura de massa nos Estados Unidos. Contra- riamente a visdo, dita européia, e evidentemente rotulada como elitista, os americanos contrapdem a idéia de democra- cia = mercado. Como dizem nessa época os executivos das grandes corporacées: “o dever primeiro de todo cidadao é ser um bom consumidor”. O universo do consumo surge as- sim como lugar privilegiado da cidadania, Por isso os diver- sos simbolos de identidade tém origem na esfera do mercado. Disneyland, Hollywood, Superbowl e Coca-Cola constituem © espelho do auténtico american way of life” A memoria nacional, para se constituir, nao faz apelo aos elementos da tradicao (0 folclore dos contos de Grimm na Alemanha, o ar- tesanato na América Latina, ou os costumes ancestrais no Ja- pao), mas 4 modernidade emergente com o mercado. Ser americano significa estar integrado a este sistema de valores. ‘A presenca deste mundo de signos e de objetos ser inclusi- ve legitimada pela arte. Tal é 0 destino da pop art, ao traduzir sua americanidade em contraposi¢ao a tendéncia artistica 26. Idem, p. 55. 27. Ver, por exemplo, D. M, White ¢ J. Pendleton, Popular culture: mirror of American lif, Publisher's inc. 1977. Consultar também R. Malthy, Passing parade; a bistory of popular culture in the Twenty Century, Austin, University of ‘Texas Press, 1989, MUNDIALIZAGAO CULTURA 123 ceuropéia.* Os temas das pinturas de Rosenquist - Cadillac, Marilyn Monroe, Joan Crawford -, de Wesselman — Kellog’s Com Flakes, Coca-Cola, latas Del Monte -—, de Warhol — Pepsi- Cola, Dick Tracy, Popeye — mostram como a consciéncia ar- tistica capta o universo do consumo, promovendo, no imagi- nario, os simbolos identitérios gerados no seu contexto. Memoria nacional e consumo se entrelacam a tal ponto que aparentemente a propria tese da americanizacao se justi- fica. De fato, a ilusio do modo de vida americano se fortale- ce quando comparada com 0 exterior.” Em 1932, os 19 mi- Ihoes de telefones em uso nos Estados Unidos deixam longe s outros paises: Argentina, 300 mil; Japdo 965 mil; Franca, 1,232 milhdo; Italia, 479 mil; Noruega, 197 mil. Como compa- rar, em 1938, os 41 milhdes de receptores de radio america- nos com o restante do mundo? Argentina, 1,1 milhdo; Japao 4,1 milhes; Franca, 4,7 milhdes; Itdlia, 978 mil. Na década de 50 a televisao é uma realidade de massa nos Estados Unidos, quando em outros lugares nao passa de um bem restrito: EUA, 31 milhoes de aparelhos; Argentina, 125 mil; Japao, 250 mil; Franca, 314 mil; Alemanha Ocidental, 445 mil; Italia, 224 mil. Ainda em 1963, dos 53 milhdes de aparelhos de TV existen- tes, 50 milhdes encontravam-se nos Estados Unidos.*” Ja em 1927, em todo o mundo, 80% dos automéveis eram america- nos, uma taxa de 5,3 pessoas/veiculo contra 44 pessoas/vei- culo na Inglaterra. Basta compararmos esta preponderancia da “sociedade de abundancia” com a Franca, pais que co- nhece sua segunda revolugao industrial ainda no final do sé- culo XIX. Em 1954, apenas 20% dos domicilios franceses possuia um carro, 8% telefone, geladeira e maquina de lavar roupa. Na década de 50, a revista Elle, referindo-se ao padrio de vida americano, nos diz: “Essas novidades, corriqueiras na 28. Ver C.J. Mamiya, Pop art and consumer culture, Austin, Universty of “Texas, 1992. 29, Dados in Statistical Yearbook, United Nations, 1956. 30, Dados in T. Vas, “La television circule-elle a sens unique”, op. cit 124 RENATO ORTIZ América, vém povoar o imagindrio frustrado das donas de casa francesas, que assistem, & conta-gotas, a proposiczio dos frutos to esperados da inddstria agroalimentar ainda balbu- ciante’." A pentiria de alguns realca a riqueza de outros. En- quanto 0 mundo dos objetos manifesta indubitavelmente sua presenca nos Estados Unidos, nos diferentes locais do plane- ta (sem contar 0 “Terceiro Mundo” que se debate com pro- blemas de colonialismo e de subdesenvolvimento) ele é incipiente. No entanto, as premissas relativas 4 sociedade de consu- mo emergem com a modernidade, elas naio reconhecem as fronteiras nacionais. Os dilemas sobre a legitimidade de uma ética do consumo também surgem na Europa.* Na Franca, jf no século XIX, os criticos do luxo “iniitil” dirio: “O luxo peri- 050 no é o uso da riqueza mas 0 seu abuso, Ele nao con- siste em satisfazer mais ou menos nossas necessidades legiti- mas, mas na criago de necessidades facticias e um consumo prejudicial ao individuo e ao Estado. Ele poder ser definido como a mé utilizacao do supérfluo”.* Um economista como Leroy-Beaulieu afirma: “O luxo modem, pelo menos aquele que nao é depravado, consiste sobretudo em objetos duri- veis, j6ias, mobilias, objetos de arte, colecdes. £ 0 que cha- mamos de capitais de fruiao. Ele € bem superior ao luxo que se difunde nos objetos passageiros’.*8 Objetos duriveis/ passageiros, luxo ttil/iniitil, a polaridade revela 0 mesmo fe- n6meno que Veblen e os pensadores americanos enfrentam 431, Gitagdo in P. Pynson, “Le four et le snack", op. p. 336. ‘mudangas ocorrem, embors tard riar-se da ética do trabalho. A todos a trabalhar com afinco, Mas esta cconhecidas como “cigarra” (em opos is com 0s valores tradicionais. Elas pri tos, as viagens. Ver Yasuyuki une révolution inte. Até 1970 0s japoneses padiam vanglo- i¢2o confuciana, em nome da nacdo, impelia a itude se modifica. As novas geragdes, as “formigas"), jd ndo se contentam 33.P. Le Mondes, 1° noven ‘MUNDIALIZACAO E CULTURA 125 A ética capitalista, que prescrevia ao individuo uma vida ra- ional e laboriosa, comeca a se desagregar. O reino da “inuti- lidade”, do supérfluo, deita sua sombra sobre os frutos do trabalho, honesto, arduo e frugal. A fugacidade da moda, 0 advento dos grands-magazins, dos utensilios domésticos sio indicios de que as sociedades industrializadas européias abrem-se para o universo do conforto, promovendo valores contrastantes com 0 capitalismo classico.* Da mesma forma que o big business, para distribuir em massa suas mercado- rias, deve estimular as vendas, sobretudo via publicidade, as lojas de departamento surgem como centros difusores de uma nova postura, voltada para a efemeridade das coisas Existe, porém, uma diferenca substancial entre a Europa e os Estados Unidos. Este universo, que nos paises europeus fruto da segunda revolugio industrial, limita-se a determina- dos setores da sociedade —e a alguns paises mais industriali- zados: Inglaterra, Alemanha e Franca. Apenas um grupo so- ciologicamente restrito pode desfruti-lo. Dito de outra forma, a sociedade de consumo ¢ incipiente, e ndo determina as re- laces sociais como um todo. Esta indefinicdo permanece ao Iongo da primeira metade do século XX, devido a problemas econémicos ¢ politicos (a Europa passa por duas guerras mundiais). Nos Estados Unidos, ao contrario, gracas a dind- mica da economia ea estabilidade politica, os principios do mercado podem nao apenas se cristalizar, como florescer plenamente. A relagio entre consumo e americanidade pro- vém desta conjuncio hist6rica fortuita, Sabemos, porém, que as inclinagdes do mercado ndo se contentam com 0s limites nacionais. A modemnidade-mundo, consubstanciada no con- sumo, tem uma dindmica propria. O processo de globali- zago das sociedades e de desterritorializacao da cultura rompe o vinculo entre a meméria nacional ¢ os objetos.* 34.J.P. Goubert (org), Du luxe au confort, Paris, Belin, 1988. * Na minha opiniao, boa pane da crise da atual identidade norte-americana esti diretamente relacionda com o processo de globalizagio. Porém, no é ape- ras a posigio poltico-militar dos Estados Unidos que se debilitou. Hoje, o pais 126 RENATO ORTIZ Com a sua proliferacdo em escala mundial, eles serio desen- raizados de seus espacos geograficos. Por isso podemos falar do automédvel como um mito do homem moderno. Como as catedrais géticas, ele seria o simbolo de uma época. Suas qualidades, mobilidade e velocidade sao atributos de uma ci- vilizagdo, nao a mera expressio da personalidade de um Henry Ford, Afirmar a existéncia de uma meméria internacional-po- pular é reconhecer que no interior da sociedade de consumo sao forjadas referéncias culturais mundializadas, Os per- sonagens, imagens, situacdes, veiculadas pela publicidade, historias em quadrinhos, televisdo, cinema constituem-se em. substratos desta memoria. Nela se inscrevem as lembrancas de todos. As estrelas de cinema, Greta Garbo, Marilyn Mon- roe ou Brigitte Bardot, cultuadas nas cinematecas, pasteres e aniincios, fazem parte de um imaginario coletivo mundial Neste sentido pode se falar de uma memoria cibernética, banco de dados das lembrangas desterritorializadas dos ho- mens. Marcas de cigarro, carros velozes, cantores de rock, produtos de supermercado, cenas do passado ou de science- fiction sao elementos heteréclitos, estocados para serem uti- ados a qualquer momento. A meméria internacional-popu- lar contém os tragos da modernidade-mundo, ela € seu receptaculo. Esses objetos-souvenirs sao carregados de signi- ficado e, ao se atualizarem, povoam e tornam 0 mundo inte- . Dai, ao contempli-los, esta sensacao de familiaridade que nos invade. O viajante de Enzensberger, ao ser atraves- sado pelas coisas da modernidade, lembra-se que est4 “em casa”, O ato mnem6nico se realiza mediante re-conhecimen- to (nao podemos esquecer que Adorno faz do reconheci- mento um dos mecanismos fundamentais da cultura popular faz parte do mercado mundial. Isto significa que a identficagio entre cultura americana e sociedade de consumo se cindiu. Os objetos que envolvem o cot diano dos cidados perderam sua territorialidade. Carros japoneses, artigos euro- peus, roupas do “Terceiro Mundo", curto-circuitaram os mecanismos laboriosa- mente construidos pela ideologta da americanidade, MUNDIALIZAGAO E CULTURA wz de mercado). A familiaridade emana deste mecanismo, a im- pressao de se encontrar em um ambiente “estranho” (propi- iado pelo deslocamento no espaco) mas envolvido por ob- jetos proximos. O espaco dilatado, serializado, anénimo, imanente 4 racionalizagao funcional da sociedade, 6 desta forma “compensado” em suas qualidades abstratas. As lem- brangas transformam os “nao-lugares" em lugares, Um arquivo de lembrancas permite que cada dividual seja agenciado em diferentes contextos. Eles sao, portanto, em funcio de seu uso, intercambiaveis, ajustando- se, combinando-se uns com 0s outros. Essa caracteristica nos leva a um tema, bastante tratado pela literatura pos-modema, © da intertextualidade.** Os criticos literarios tem demonstra- do como, na literatura atual, um texto é sempre construido a partir de outros discursos anteriores, Como se cada escritor, a sua maneira, contasse uma hist6ria que jé foi contada. O ar- gumento nos lembra Borges, com sua Biblioteca de Babel. Nela, todos 0s livros estariam contidos — a historia minuciosa do futuro, o evangelho gnéstico, o comentario desse evange- Iho, 0 comentario do comentario desse evangelho, e assim por diante. A versio de qualquer livro, que porventura viesse a ser escrito, seria apenas a combinacao dos elementos exis- tentes nesta biblioteca universal. O raciocinio nos leva a dis- cussio sobre a des-centralizacdo do autor, da originalidade da obra, da parédia dos textos passados. Um aspecto deste debate me interessa particularmente: a idéia de citagao. O que € uma citacdo? Trata-se de uma referéncia que baliza o leitor na compreensio de um texto determinado. Por que o inte- resse por tal assunto? E que os pés-modernos entendem, e com razdo, que as fronteiras rigidas que existiam, separando, a arte erudita da cultura popular, se desgastaram. Na esfera erudita, a citacdo cumpria um papel de referéncia e de legiti- midade.®O que era citado (autor, idéias ou formas), pela sua 35. Ver L. Hutcheon, Poética do pés-modernismo, R. Janeiro, Imago, 1991, 36. Ver F. Jameson, “Pés-modernidade e sociedade de consumo", Novas E5- tudos Cebrap, n® 12, juno, 1985, 128 RENATO ORTIZ presenga no texto, conferia autoridade ao que estava sendo enunciado. Legitimidade garantida pelo circulo fechado das regras do universo artistico. A emergéncia de uma “cultura de bens ampliados” fez com que este mecanismo de citagio se dilatasse. No contexto das sociedades atuais, os filmes B de Hollywood, os livros de bolso com hist6rias de detetive, os seriados de televisio e a propaganda constituem-se agora em elementos legitimos, passando a integrar a intertextualidade da linguagem dos artistas. Um livro, um quadro, um filme, uma obra arquiteténica, nao s6 dialogam, como assimilam, na sua constituigao, os tracos da cultura de mercado. As pin- turas de John Wesley tém como referéncia o mundo das his- t6rias em quadrinhos. O mesmo se da com Robert Venturi, ao integrar o kitsch de Las Vegas as suas preocupagOes arquite- tOnicas.* Isto significa que 0 artista trabalha com um conjun- to de referéncias, uma memoria, cujos tracos podem ser usa- dos, “citados’, no momento de realizagao de sua obra. Posso agora retomar 0 fio de minha argumentagao. O mecanismo da citagao € imprescindivel no reconhecimento das imagens-gesto desterritorializadas. Ele garante a inteligi- dade da mensagem. A publicidade é prodiga em exem- plos deste tipo. Um antincio das botas Camel u enredo “Os Cacadores da Arca Perdida”; a loja, “A Samari- tana”, para sugerir a grandiosidade de seu estabelecimento, coloca King Kong no alto de seus telhados; uma propaganda de cigarro, para ser convincente, cita Humphrey Bogart, com sua capa de gabardine, o cigarro nos labios, e o ambiente noir dos filmes de detetive da década de 40; uma publicida- de do tenis Nike cruza um idolo do basquete americano com figuras de ciéncia de ficgdo, representadas em desenho ani- mado. O western de Marlboro é também uma citagao. Na verdade, devido a abrangéncia desta meméria internacional popular e a diversidade de grupos que envolve, a evocagio 37. Ver R, Venturi et ali, Learning from Las Vegas, Cambridge, MIT Press, 1972. MUNDIALIZAGAO E CULTURA 129 da lembranga s6 pode se concretizar quando referida a um “conjunto bibliografico” partilhado pelos seus membros. Este conhecimento, fragmentado nos objetos-lembrangas, é 0 ves- tigio que ‘lhes permite re-conhecer, rememorar 0 que est sendo dito. A memOria internacional-popular funciona como um sistema de comunica¢ao. Por meio de referéncias cultu- rais comuns, ela estabelece a conivéncia entre as pessoas. A “juventude” é um bom exemplo disso. T-shirt, rock-and-roll, guitarra elétrica, idolos da musica pop e pésteres de artistas Cou até mesmo de Che Guevara, “Hay que endurecer, pero con ternura”) sao elementos partilhados planetariamente por uma determinada faixa etdria. Eles se constituem assim em cartelas de identidade, intercomunicando os individuos dispersos no espaco globalizado. Da totalidade dos tracos- souvenirs armazenados na meméria, os jovens escolhem um subconjunto, marcando desta forma sua idiossincrasia, isto é, suas diferencas em relacdo a outros grupos sociais. Familiaridade e citagao. O imaginario contemporaneo é fortemente impregnado desses termos. Basta olharmos a EuroDisney. Logo ao chegar, o visitante percebe que se en- contra num lugar de memoria. Para se ter uma visio de con- junto, ele pode, utilizando-se o “Expresso EuroDisney”, optar em dar a volta panorimica pelo parque. Antes mesmo de se chegar a Fantasyland, Frontierland, Adventureland, inicia-se um mergulho no tempo. O trem, a roupa dos empregados, (8 jomnais distribuidos na estado, tudo sugere que nos retra- mos ao passado. Caso nossos olhos nos traiam, os folhetos da empresa garantem a veracidade desta ilusdo. “Os trens funcionam realmente a vapor. Para construi-los, foi neces- sArio reviver técnicas artesanais, que ha muito nao eram utili- zadas na Europa.” Em “Main Street”, nos deparamos com os veiculos motores, movidos a eletricidade ou a gasolina — car- ros, 6nibus -, sem esquecer, é claro, os cabriolés e o bonde 38, As ctacbes que se seguem slo todas retiradas do prospecto “Les hotels et les activités de oisirsd'EuroDisney resort, publicado pela empresa Disney. 130 RENATO ORTIZ puxado a cavalo. Existe até mesmo um empério da época, “do inicio do século, e que abriga um antigo e surpreenden- te sistema de pagamentos, composto de pequenos panos méveis, que através de um sistema de cabos se deslocam até a caixa”. A preocupacdo com os detalhes, com 0 realismo, manifesta-se em todos os recantos. Em Frontierland, uma das principais atragdes € 0 “Diorama do Grand Canyon’, “cons- truido ao longo do circuito do trem a vapor, com um realis- ‘mo espetacular. Ele mostra ao visitante o panorama e a vida selvagem do Oeste, no quadro das mais extraordindrias re- presentagdes das maravilhas da natureza. Uma iluminacao especial di ao viajante a sensacao de caminhar, ao longo do Grand Canyon, do nascer ao pér-do-sol”. No palacio da Bela Adormecida, o cenario é minuciosamente composto — a pon- te elevadica, as escadas, as figuras de Branca de Neve e dos sete andes. Esta obsessao pela reproducao fidedigna das coi- sas € uma constante — 0 barco dos piratas, as canoas indige- nas que descem o rio Mississipi, 0 saloon do velho Oeste, etc. Gragas as técnicas e aos efeitos especiais pode-se tam- bém visitar o futuro. Em Discoveryland, uma nave espacial conduz o visitante a um passeio estelar, Fortes emogdes 0 esperam durante 0 trajeto, rumo ao planeta desconhecido. A nave é atacada pelos senhores da guerra e, perigosamente, consegue desviar-se de uma chuva de misseis. Mas tudo se acalma. “Alguns segundos mais tarde, na melhor da tradigao de na Guerra das Estrelas, a nave desacelera para tocar 0 solo, deslizando docemente sobre a plataforma de Disco- veryland.” ‘O que nos propée esta memoria? Seria uma fuga da reali- dade, um mergulho no universo magico, fantastico e imprevisivel da fantasia? Pelo contrério, em seu dominio 0 destino est4 tragado de antemao. Mickey, os sete andes, Pluto, a barca do Mississipi, a luta entre o mocinho e o bandi- do no velho Oeste sio imagens-situagdes que trazemos conosco desde a infancia. Até mesmo as melodias, tocadas como fundo musical das apresentacdes, nos so proximas — MUNDIALIZAGAO E CULTURA BI country em Frontierland, futurista (tema de Guerra nas Estre- las) em Discoveryland, de pirata (aquela musica de acor- deo, que nos filmes pontuam sempre as cenas de taberna). Tudo é costumeiro, nenhuma surpresa, Mas é justamente este aspecto que diverte as pessoas. O prazer est no re-co- nhecimento, na identificagao daquilo que se sabe. Prazer sin- cero, encantando-se com os detalhes das decoracdes, do rea- lismo dos bonecos e dos robés. Ja vimos este barco no filme de Peter Pan, ou nas hist6rias em quadrinhos. Agora, ele se encontra diante de nés, saido das telas, ou das paginas dos gibis. EuroDisney é um conjunto de citagdes das lembrangas estocadas em nossa meméria internacional popular. Para isso, nossa educagao imagética ¢ fundamental. O cinema sur- ge assim como uma referéncia privilegiada. A voz de Vincent Price habita o fantasma do casarao da Thunder Mesa, ela “ar- repia” o visitante. Bela Adormecida, apesar da expectativa va do patriotismo francés - diz um estudo do governo, cujo objetivo era fornecer subsidios para a construcao do parque: “A companhia Disney, tomando como fonte de inspiragao para o castelo da Bela Adormecida a gravura do antigo torredo do Louvre, do livro (As Ricas Horas), do duque ‘de Berry, mostrou sua capacidade de adaptar-se ao contexto eu- ropeu. Isso, para atender a algumas expectativas poderia ser aprofundado, valorizando-se o fundo comum euro-america- no”® -, pouco tem a ver com a cultura popular dos folclo- ristas europeus. A personagem, os andes, o castelo e a ma- drasta so retratos retirados do arquivo Disney. Inclusive 0 futuro tem um sabor banal. Ele é uma soma heterdclita de ci- tagdes de George Lucas, com sua Guerra nas Estrelas; a ma- sica, os robés, a nave espacial, a paisagem estelar € 0s ani- mais divertidos s4o fragmentos de situagdes projetadas nas telas de cinema. 39. ‘Rapport de mission sur le parc & thémes de Disney World (Floride, USA, 24-29 octobre 1988", Region d'lle de France, Comite Economique et Soci décembre 1988, p. 58. 132 RENATO ORTIZ Peter Berger considera que os universos simbélicos pos- suem um valor central em todas as sociedades.” Eles inter- pretam a ordem institucional das coisas, conferindo sentido a vida dos homens. Os universos simbélicos ordenam a hist6- ria, localizando os eventos numa seqiiéncia que inclui o pas- sado, o presente e o futuro. Em relacao ao passado estabele- cem uma “memoria”, partilhada pelos componentes de uma de projecdes, modelos para as acées individuais. Certamente, 0s universos simbélicos variam de acordo com os tipos de sociedades que os constituem. O mito tem um papel funda- mental nas sociedades primitivas. Ele explica a atu: pelos acontecimentos passados nos tempos imemoriai idade em que os deuses ainda estavam fixando a mitologia dos povos. A saga das divindades possui um valor exemplar, ela fixa a conduta e o destino dos homens. O presente é uma constante rememorizacao do que “se passou", reminiscéncia ‘a de algo que se cristalizou na memoria coletiva. O mundo das sociedades primitivas encontra sua razio de ser no relato mitolégico, garantindo a eternidade do gesto fun- dador contra os avatares do futuro. Jé a mentalidade utopica caminha em outra direcdo. Presente e passado sao preteri- dos pelo topos criado pela imaginacao. O pensamento entra assim em contradicao com a realidade existente. As energias so canalizadas para a construcdo de uma ordem que se en- contra ainda fora do hist6ria. Transformacao e esperanca ali- mentam a visdo ut6pica. O que dizer da meméria internacional-popular? A visita a Euro-Disney nos sugere algumas idéias, Nela, passado e fu- turo se fundem na familiaridade dos objetos. O ensinamento deste grande espeticulo € lembrar-me que no posso esca- par da inexorabilidade do mundo que me rodeia. Se eu imaginar © futuro, terei de fazé-lo como George Lucas; se m para as €pocas pretéritas, descobrirei diante de mim uma car- 40. P, Berger, A construcdo social da realidade, Petropolis, Vores, 1973, MUNDIALIZAGAO E CULTURA 133 tografia onirica mapeada em seus minimos detalhes. Na ver- dade, uma meméria-arquivo me aprisiona no presente. Os elementos que a compoem sio atemporais, podendo ser reciclados a qualquer momiento. Como a desterritorializacao eliminou o peso das raizes, cada sinal, trago, adquire uma mobilidade que desafia a seqiiéncia temporal. A imagem de Humphrey Bogart existe como virtualidade, e se atualiza ape- nas quando “citada” em algum filme ou aniincio publicitério. Os robés de Guerra nas Estrelas desfrutam a mesma posi¢do que Bogart. Eles repousam, lado a lado, no do arquivo-mem6ria. Passado e presente pa ma dimensio. A desterritorializaco prolonga o presente nos espacos mundializados. Ao nos movimentarmos percebemos que nos encontramos no “mesmo lugar”. Neste sentido, a idéia de viagem (saida de um mundo determinado) encon- tra-se comprometida. Desde que © viajante, nos seus deslo- camentos, privilegie os espacos da modernidade-mundo, no “exterior”, ele carrega consigo seu cotidiano. Ao se deparar com um universo conhecido, sua vida “se repete”, confir- mando a ordem das coisas que o envolvem. Por isso Frederic Jameson diré que as sociedades “pés-modemas” tém uma “nostalgia do presente”." Nos grupos primitivos, para se atualizar, o mito tinha a necessidade de se materializar nos ri- ligiosos. Porém, entre um rito € outro, uma va no ar. A meméria coletiva, a cada vez que era invocada, funcionava como alimento na renovacao das forcas sociais. Nas sociedades atuais, a ritualizacdo deve ser permanente, sem 0 que o presente se esvairia na sua subs- tancialidade. Os objetos e as imagens tém de ser incessante- mente reatualizados, para que 0 vazio do tempo possa ser lo. Neste sentido, a meméria internacional-popular se aproxima do mito como Barthes 0 define*? (e nao como os 41, Ver F.Jamenson, Postmodernism or the cultural logic of late capitalism, London, Verso, 1992 42. R. Barthes, Mithologies, Paris, Seuil, 1970. 134 RENATO ORTIZ antropélogos 0 entendem). Mito enquanto palavra despoliti- zada que “congela” a historia, Ele imobiliza o presente dan- do-nos a ilusao que o tempo chegou a seu término. Muitas vezes temos tendéncia a imaginar as sociedades modemas como um organismo anémico. A fragmentacdo seria sua caracteristica principal. Na multidao solitaria, o homem caminharia sem sentido nas malhas de sua irracionalidade. Cada parte formaria assim uma entidade fechada, opaca, evo- luindo segundo sua légica intema, incomunicavel 4s outras. No entanto, basta olharmos para os “ndo-lugares” (retomo a ex- pressio de Marc Augé) para percebermos como nesses espa- 0s serializados a ordem se instaura na sua plenitude. Um aeroporto possui um conjunto de normas que orienta o via- jante desde que chega ao estacionamento até o momento do embarque ~ horario de chegada e de partida, compra do bi- Ihete, check-in, check-out, acesso as bagagens, exibicao do documento de identidade. Cada aco é minuciosamente des- ctita no plano de funcionamento do todo-aeroporto, e independe da individualidade daquele que a executa, Um supermercado agrupa de maneira l6gica os produtos nas suas prateleiras: cereais, latarias, laticinios, carnes e frangos, além de sugerir ao cliente toda uma atitude de comporta- mento quando este caminha pelos corredores repletos de mercadorias. Um shopping center, apesar do movimento erratico da multidao que nele transita, tem uma l6gica inter- na, dispondo suas lojas de maneira adequada nas ruas cuida- dosamente projetadas em seu plano arquitetnico. O deslo- camento das pessoas é particular, porém, como ocorre em fungao de uma atividade-fim, sua orquestracao é coletiva. Nao se trata, € claro, de uma ordem pensada em termos durkheimianos, na qual a solidariedade entre os individuos pertence inteiramente ao dominio das representag6es coleti- vas. Com efeito, Durkheim compreendia a coesio social MUNDIALIZAGAO E CULTURA 135 como resultante de uma consciéncia coletiva, cimento das re- lagdes sociais. Como a religido, que entre os povos primiti- Vos, ou nas civilizacdes cristae islmica, congregava as pes- soas dispersas na malha social. O todo pode desta forma ser ordenado segundo os principias de um mesmo universo simbélico. A comunhio entre os homens se faz na medida em que partilham ideais semelhantes. Evidentemente, essas premissas nao sao validas para o quadro atual, pontilhado pela multiplicidade ideolégica. A modernidade € pluri-reli- giosa, abrindo espaco para que as mais diversas concepcdes de mundo, inclusive idedrios politicos conflitantes, coabitem entre si. Eu diria que a globalizacdo acentua a erosio do mo- nolitismo simbélico. Nem mesmo os ideais nacionalistas pos- suem mais a dindmica que os caracterizavam. A coesio na- cional, quer se queira, ou nao, é de alguma maneira minada pelo avanco da modemidade-mundo. Entretanto, seria ilus6rio imaginarmos a vida social como resultado das volicdes pessoais. Como se seu fundamento re- sidisse no 4mbito da escolha individual. Esta visdo, bastante difundida no senso comum, geralmente procura justificar a existéncia do consumo como algo exclusivo de carater pes- soal. Argumento recorrentemente utilizado pelo meio em- presarial € publicitario. O produto é sempre apresentado a0 cliente como decorrente de sua vontade. Na verdade, a pul- verizacio das vontades revela uma anomia aparente. Jean Baudrillard tem raz3o quando insiste em dizer que o consu- 10 “é uma conduta ativa e coletiva, uma imposicao moral, uma institui¢ao. Ele é todo um sistema de valores, com tudo © que esse termo implica, isto é, sua fungao de integracao grupal e de controle social’. Moral que, mesmo vivida soli- tariamente, ultrapassa a contingéncia das necessidades parti- culares, O sistema de producao e o de consumo se integram no mesmo conjunto. As exigéncias objetivas da esfera da producao sao assimiladas subjetivamente, sem que os atores 43. J. Baudrillard, La société te consommation, Paris, Denc#!, 1970, p. 1 136 RENATO ORTIZ sociais tenham uma clara consciéncia de seus mecanismos. Mas para isso € preciso um aprendizado, uma socializaco de determinados habitos e expectativas. A substituicao da ética do trabalho pela ética do lazer nada tem de natural. Ela é fru- to de mudangas sociais e econémicas. Vimos como na pas- sagem do século XIX para 0 XX existe ainda uma indefini¢o a este respeito. A moral da frugalidade prevalece frente a condenagao da “inutilidade do luxo”. O trabalho é considera- do uma virtude essencial, seja para o capitalista, que aumen- ta seus lucros, ou para 0 operario, que nao s6 melhora suas condigdes de vida, como se afirma enquanto parte de uma classe social emergente. Até mesmo as grandes filosofias en- tendem o trabalho como fonte de liberacdo. Hegel e Marx viam no trabalho nao alienado o espaco de realizagdo das pontencialidades humanas. O trabalho deixa de ser um valor no momento em que a ética do consumo supera a ética ante- rior (Clauss Offe“* considera que ele ja ndo mais seria uma categoria central nas sociedades atuais). No entanto, foi ne- cessdrio, para isso, um enorme esforco de socializacao e de convencimento. Da mesma maneira que o camponés teve que aprender a prdtica da labuta industrial — postura do cor- po, pontualidade no servico, técnicas especificas, etc. -, 0 que lhe exigiu um esforco de disciplinarizacdo profundo, nos tivemos de interiorizar um conjunto de valores e de compor- tamentos que nos permitem circular com naturalidade entre os objetos. Neste sentido, a meméria internacional-popular cumpre um papel de destaque na constituigdo e na preserva- cdo deste universo, ela se revela como instncia de reprodu- Gao da ordem social. Sua presenga ndo garante apenas a pos- idade de comunicagio entre os espacos planetarizados, ela confirma os mecanismos de autoridade contidos na moderidade-mundo. Mas fica a pergunta: qual a especificidade desta memoria em relacao as outras? Uma comparacdo entre memoria coleti- 44, Ver C. Offe, “Trabalho: categoria sociolgica have in Capitalismo de- sorgantzado, , Paulo, Brasliense, 1989. MUNDIALIZAGAO E CULTURA 137 va € memoria nacional nos ajuda a refletir sobre este aspecto. Quando Halbwachs define 0 conceito de meméria coletiva, ele toma o grupo como unidade de referéncia sociolégica. Os grupos podem ser ocasionais e instaveis como um ntime- ro pequeno de amigos que se retinem para relembrar uma via- gem feita em conjunto. Ou permanentes, no caso das coletivida- des religiosas. Eles possuem uma caracteristica em comum, trata-se de comunidades de lembrangas. O ato mneménico atualiza uma série de fatos, situagdes, acontecimentos, parti- Ihados e vivenciados por todos. O exemplo do candomblé, jA citado, é esclarecedor. A celebracdo do ritual reforca os la- gos de solidariedade entre os membros da comunidade rel giosa. Cada terreito é uma unidade de evocacao, promo- vendo, entre seus componentes, os valores negro-africanos dispersos pela historia da escravidao. Mas a meméria coletiva possui um inimigo, o esquecimento. Ele espreita a evocagio do passado, trabalhando no sentido de sua desagregacio, ‘Todo o empenho da meméria coletiva é lutar contra o esque- cimento, vivificando as lembrancas no momento de sua rememorizacdo. Esquecer fragiliza a solidariedade sedimen- tada entre as pessoas, contribuindo para o desaparecimento do grupo. Comunidade e memoria se entrelacam. ‘A situacao € outra quando falamos de meméria nacional Neste caso, 0 grupo ja nao pode mais ser restrito, pois a na- do se define pela sua capacidade em transcender a diversi- dade da populacdo que a constitui. Ela é uma totalidade que nos faz passar da “comunidade” a “sociedade” (como dizia Ténnies). “Sociedade” enquanto conjunto de interagdes im- pessoais, distante portanto dos lacos solidarios imanentes a vida comunal. Na comunidade, os vinculos pessoais prevale- cem € 0 ato da rememotizacao reforga a vivéncia comparti- Ihada por todos. A sociedade-nacao quebra esta relagdo de proximidade entre as pessoas, Os cidadaos participam de uma consciéncia coletiva, mas ja ndo se situam mais no nivel das trocas restritas a um grupo autonomo e de tamanho re- duzido. Por isso a meméria nacional é um universo simbéli- 138 RENATO ORTIZ co de “segunda ordem”, isto é, engloba uma variedade de universos simbélicos. Ela pressupde um grau de transcen- déncia, envolvendo os grupos e classes sociais em sua totali- dade. A memoria nacional pertence ao dominio da ideologia (no sentido positive de ordenagao do mundo como a consi- dera Gramsci), dependendo de instancias alheias aos meca- nismos da meméria coletiva — Estado e escola (quando nos referimos a “comunidade nacional” o termo € utilizado no sentido metaf6rico e nao conceitual como entendia Tonnies). No fundo, todo o debate sobre a autenticidade das identida- des nacionais é sempre uma discussio “ideolégica’. Importa definir qual a identidade legitima, isto é, politica e cultural- mente plausivel para a maior parte da populacao de um ter- ritério determinado. Cito Renan: “Uma nacao é uma alma, um principio espiritual. Duas coisas, que na verdade fazem uma, constituem esta alma e este principio espiritual. Uma est4 no passado, outra no presente. Uma, € a posse em co- mum de um rico legado de lembrancas; 0 outro é o consenti- mento atual, 0 desejo de viver juntos, a vontade de validar a heranga que recebemos como individuo. A nacao, como o individuo, é resultado de um longo passado de esforgos, de sacrificios, e de devotamento. O culto dos antepassados é, de todos, o mais legitimo; os antepassados fizeram 0 que nés somos”. Mas seria realmente importante lembrarmos de “tudo”? O que dizer dos eventos contradit6rios, violentos, que poriam em risco a harmonia do presente? Renan é ex- plicito: “O esquecimento e, eu diria, 0 erro hist6rico sao fato- res essenciais na criagdo de uma nagao. Por isso 0 progresso dos estudos histéricos coloca freqiientemente a nacionalida- de em perigo. Com efeito, a investigagao historica ilumina os fatos de violencia que se passaram na origem de todas as for- macdes politicas, mesmo aquelas nas quais as conseqiiéncias foram benéficas”.“* Contrariamente ao caso anterior, 0 realis- 45. E. Renan, Qu est-ce qu une nation?, Paris, Presses Pocket, 1992, p. 54 46. Idem, p. 41. MUNDIALIZAGAO E CULTURA 139 mo do passado é uma ameaca. A construcao da meméria na- cional se realiza través do esquecimento. Ela € 0 resultado de uma amnésia seletiva. Esquecer significa confirmar deter- minadas lembrancas, apagando 0s rastros de outras, mais in- cémodas e menos consensuais. Devido a sua abrangéncia, uma mem6ria internacional- popular nao pode ser a traducao de um grupo restrito. Sua dimensao planetaria a obriga a envolver as classes sociais e as nacdes. Neste caso, 0 esquecimento € acentuado, pois os conflitos mundiais sao em bem maior ntimero, e profundos, do que os dilemas nacionais. Para garantir a “eternidade” do presente, a meméria internacional-popular deve expulsar as contradi¢ées da historia, reforcando 0 que Barthes chamava de 0 mito da “grande familia dos homens" — em todos os lu- gares, o homem nasce, trabalha, ri e morre da mesma forma. Esta postura universalista constitui uma unidade mitica, sen- do explorada em larga escala pela publicidade e pelas firmas transnacionais. Dentro desta perspectiva, as necessidades ba- sicas do homem seriam idénticas em todos os lugares, e sua vida cotidiana se nivelaria as exigéncias universais de consu- mo, prontamente preenchidas em suas particularidades. To- mar uma cerveja - “SO ha um lugar onde se tomar uma Heinecken: o mundo”. Calcar um ténis — planeta Reabok, onde se divertir prevalece sobre a monotonia das ideologias e dos conflitos. A metéfora do globo terrestre torna-se assim parte constituinte da mensagem publicitéria. Em Atanta (BUA), sede da Coca-Cola, qualquer um pode visitar “O Mundo de Coca-Cola”, uma exibicdo permanente do desem- penho da companhia. Ai, o visitante aprende como o produ- to é engarrafado em varios paises, e como ele é generica- mente consumido pelos habitantes do planeta. O intuito da visita € 6bvio: Coca-Cola unifica a “grande familia dos ho- mens”. Isto fica claro em um filme como “Todos os dias de sua vida", um conjunto de cenas rodadas em mais de doze le des hommes" in Mythologies, op. cit, 47. R. Barthes, “La grand f 140 RENATO ORTIZ paises e em todos os continentes. “O conjunto do filme é uma mostra de clipes da Coca-Cola, relacionando sua ativi- dade gloriosa em todos os lugares. Alguns dos clipes encon- tram-se tematicamente ligados; um segmento, por exemplo, mostra uma sequéncia de férias pelo mundo. Outras vezes, sao apresentadas algumas vinhetas, como no episodio no qual uma estrela do rock tailandés transforma um caminhao de Coca-Cola num palco para concerto. O filme € a grande expressao da ideologia internacionalista da Coca-Cola; a no- ‘cdo de que seu consumo universal unifica numa irmandade a diversidade do mundo.” A dimensao global supera o aspecto nacional. Para que os homens se encontrem e se reconhecam no universo da modermidade-mundo € preciso que sejam forjadas outras re- feréncias culturais. Este desnivelamento entre meméria na- cional e meméria internacional-popular pode ser apreendido quando se toma como exemplo os parques Disney. Quando, na década de 50, a Disneylandia foi inaugurada na California, seu idealizador era movido por uma ideologia intrinseca- mente norte-americana. Walt Disney, cujas relagdes com 0 patriotismo do Pentagono e da CIA sao conhecidas de seus bidgrafos, imaginava construir um complexo no qual a lem- branga nacional estivesse contemplada. Seu testemunho é elogiiente: “A idéia de Disneykindia é simples. Sera um lugar onde as pessoas encontrario felicidade e conhecimento. Sera um lugar no qual os pais e os filhos partilharao momentos agradaveis, um lugar onde mestres € alunos descobrirao os caminhos abertos da compreensio € da educacao. Ai, as ge- ragdes dos mais velhos poderio reencontrar a nostalgia dos dias passados, e os mais novos poderdo saborear os desafios do futuro. Ai, existira para todos a possibilidade de com- preender as maravilhas da natureza e da humanidade. A 48, T. Fiedman, “The world of the world of Coca-Cola’, Communication Research, vol. 19, n° 5, 1992, pp. 654-655 MUNDIALIZAGAO E CULTURA m1 Disneylandia sera fundada e dedicada aos ideais, sonhos € realidades que criaram a América”. © “sonho americano” se materializaria assim num parque de diverses, “Main Street” representa a tranqiiilidade da vida ce uma pequena cidade do interior, Uma rua limpa, acolhedora, feliz, cujo intuito € relembrar o transeunte de um passado ideal A prefeitura, os veiculos antigos, as lojas, tudo é preparado para um retorno a0 pretérito. “Main Street pode ser entendida como um palco montado para cultivar a nostalgia do passado fabricado; ela contribui para o modelamento de uma imagem — atualmente profundamente inculcada na meméria popular — do ‘alegre fim de século’, um mundo sem classes, conflitos ou crimes, um mundo continuo do consumo, um supermercado do di- vertimento.”® Esta obsessao pela historia nacional se mani festa também em outros espeticulos. No “Magic Kingdom” vamos encontrar 0 “Hall dos Presidentes”. Situado na praca da Liberdade, numa velha mansao filadelfiana do século XVIII, ele contém os bonecos de todos os presidentes ameri- canos, de Washington a Reagan. A mesma atencdo para os detalhes se repete. A cadeira de George Washington é idénti- ca aquela em que se sentou em 1787 durante a convengio constitucionalista. As vestimentas e os cortes de cabelo da €poca transmitem ao espectador uma sensacao de realismo hist6rico. Tudo € preparado para a celebracdo da memoria nacional. Porém, quando mais tarde um novo parque é aberto em Orlando, a visio proposta por EPCOT (Experimental Proto- type Community of Tomorrow, inaugurada em 1982) € outra. Os promotores ja 0 percebem como “uma comunidade de idéias e de nagdes, um terreno para o teste, no qual a livre empresa pode explorar, demonstrar e apresentar novas idéias 49. Gitagao in R. Lanquar, Liempire Disney, Paris, PUF (Que saise?", nt 2726), 1992, p. 24 50, M. Wallace, “Mickey Mouse history: portraying the past at Disney World’, Radical History Review, 0° 32, 1985, pp. 36-37. 142 RENATO ORTIZ que aproximem as esperancas ¢ os sonhos dos homens’’5" A restricio nacional cede lugar a uma preocupacao global. EPCOT conjuga os interesses da empresa Disney com os das uansnacionais. Cada uma delas tem a responsabilidade de um pavilhao do parque.* Bell comparece com uma gigantes- ca esfera geodésica, na qual a historia das comunicagdes € contada, desde 0 povos primitivos até hoje. Exxon se ocupa da energia, relatando como a cada fase da humanidade os homens conseguiram suplantar os obstaculos da natureza. A General Electric fala do século XXI, e a General Motors dos meios de transporte. Kodak, Kraft e American Express (atual- mente pertencem aos japoneses) também encontram-se atuantes. No tiltimo pavilhao, “World Showcase”, reinem-se varias nacdes ~ Estados Unidos, México, Japao, Alemanha, Franca, Inglaterra, Canada -, cada uma delas mostrando sua particularidade no seio desta “grande familia” da humanidade. Sintomaticamente, este padrao se repete com a EuroDisney (1992). Agora, novas firmas transnacionais se associam ao empréendimento. “Em Discoveryland, a IBM apresenta ‘Via- gem ao Espaco’, o Banco Nacional de Paris ‘Orbitron’, Kodak o ‘Cinemégico’, Renault o ‘Visionarium’, Phillips ‘Videdpolis’ € Mattel ‘Autopia’. Por meio de suas numerosas marcas (Vittel, Chambourcy, Buitoni, Fiskies, Findus, Herta, Nescafé) a Nestlé patrocina os restaurantes. Os veiculos de Main Street rodam sob o emblema de d'Europcar, ¢ o restaurante ‘Casey's Comer’, assim como 0 ‘Café Hyperion’, sao colocados sob a guarda da Coca-Cola, A Esso patrocina Main Street Motors, ‘um posto de gasolina e uma radio FM. France Telecom asso- cia-se a uma das maiores atragdes do parque, It’s a Small World, em Fantasyland. A American Express esta ligada ao show de Bifalo Bill.”* 51. Citagdo in M. Wallace, op. cit. pp. 43-44. 52. Ver G. Hamel, “Evolution d'une entreprise vouée a la communication et aux nouvelles technologies". Tese de doutorado de Estado, Lettres et Sciences Humaines, Université de Paris XII, 1986. 53. "EuroDisney resort”, publicagdo interna de EuroDisney, MUNDIALIZAGAO E CULTURA 143 Disneylindia privilegiava a memoria nacional norte-ame- ricana, tendo sido edificada quando os Estados Unidos eram incontestavélmente a poténcia mundial hegeménica. EPCOT e EuroDisney representam um outro momento. A presenca ativa das corporacdes transnacionais desloca o nacionalismo de Disney (uma empresa que na década de 70 tomna-se mul- linacional) para a sociedade global. Os sinais de ameri- canidade ja nao podem mais desfrutar de uma posicao de centralidade. Na EuroDisney, a fachada de It’s a Small World “representa as formas e os estilos dos mais célebres monu- mentos do mundo: torte Eiffel, Big Ben, ponte de Londres, torre de Pisa, sem esquecer os minaretes do Oriente Médio, os arrinha-céus americanos, e os pagodes orientais”.* Numa outra apresentacio como o “Visionarium”, “subitamente 0 ptblico estard cara a cara com os dinossauros, antes de co- nhecer os cavaleiros da Idade Média, e os personagens len- darios, como Leonardo da Vinci, Mozart, e até Jélio Verne, 0 escritor visionario, pai da ciéncia-ficgao”. Saimos portanto do imaginario coletivo americano para mergulharmos numa es- fera de lembrangas mundializadas. Memoria que nos revela 0 caminhar da humanidade, segundo o relato conveniente do esquecimento: a Idade Média, os escritores famosos, € até mesmo a pré-historia dos dinossauros. EPCOT e EuroDisney atuam como museus, eles contam a historia das comunica- Ges, da energia, da terra, pacientemente ensinadas pelas transnacionais. Em Orlando, Kraft da as criancas nogées de agricultura, técnicas agricolas € nutricdo. EPCOT na verdade possui um “Conselho para Educacao Mediatica”, cujo obje- tivo é gerar programas educativos. Derivam dos diversos pa- vilhdes das exposigdes de filmes 16 mm e programas informatizados sobre energia, comunicagao, transporte, infor- mitica, agricultura, futuro, etc. Ligdes do tipo “Habilidades para as Novas Tecnologias”, “Vivendo com 0 Computador’ “Vivendo com a Mudanga”, “Como Decidir” so ministradas 54, Citagaoretrada de “Les Hotels et les Activites des Loisis Euro Disney Reson’, pci 144 RENATO ORTIZ a todos que tenham o interesse em melhorar sua per- formance na sociedade. Uma maneifa de se compreender a relacdo entre mem6- ria e consumo é sublinhar 0 vinculo econ6mico que os apro- xima. Este € 0 caminho apontado por varios autores. O design, os logotipos de cada produto, teriam a fungao de fi- Xar sua marca na meméria dos clientes potenciais. Exxon, Shell e Nabisco cruzariam 0 espago mundializado das socie- dades, sendo imediatamente reconhecidos por seus consu- midores. A imagem seria vendida enquanto mercadoria, a cada vez que fosse contemplada. Indelevelmente ela se in- crustaria na mente dos homens. A interpretagio contém mui- to de verdade, mas nao deixa de ser parcial, pois padece, a meu ver, de um certo economicismo crénico. A cada imagem corresponderia uma empresa, cujo produto estaria a disposi- 40 no mercado. Uma meméria internacional-popular é mui- to mais do que isso. Ela traduz o imaginario das sociedades globalizadas, Embora as imagens sejam muitas vezes produ- zidas por determinadas companhias (mas nem sempre, € 0 caso do cinema, televisao, video), elas ultrapassam a inten- iples ato promocional. Quando Heinecken, Reebok e Coca-Cola falam do mundo, nao se esta apenas vendendo esses produtos. Eles denotam e conotam um mo- vimento mais amplo no qual uma ética especifica, valores, conceitos de espaco e de tempo sao partilhados por um con- junto de pessoas imersas na modernidade-mundo. Nesse sentido a midia e as corporagées (sobretudo transnacionais) tém um papel que supera a dimensio exclusivamente econé- mica. Elas se configuram em instancias de socializagao de uma determinada cultura, desempenhando as mesmas fun- GOes pedagdgicas que a escola possuia no processo de cons- truco nacional. A memoria intemacional-popular ndo pode Prescindir de instituigdes que a administrem. Midia e empre- 55. Ver por exemplo, S. Ewen, All consuming images, N. York, Basic Books, 1988, MUNDIALIZAGAO E CULTURA 45 sas so agentes preferenciais na sua constituigao; elas forne- cem aos homens referéncias culturais para suas identidades. A solidariedade solitaria do consumo pode assim integrar 0 imaginario coletivo mundial, ordenando os individuos e os maodos de vida de acordo com uma nova pertinéncia social.

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