Вы находитесь на странице: 1из 64

©2007, Editora Sundermann Hiro Okita

A editora autoriza a reprodução d e partes desse livro para fins acadêmi-


cos e/ou de divulgação eletrônica, desde que mencionada a fonte.

Supervisão editorial: João Ricardo Soares e Luiz Gustavo Soares


Produção editorial: Fernando Ferrone
Revisão: Luiz Gustavo Soares e Diego Siqueira
Projeto gráfico, capa e editoração eletrônica: Kit Gaion

D a d o s internacionais dc catalogação elaborados na rbntc


por Iraci Borges - C R B 8 - 2 2 6 3

Okita, Hiro
Homossexualidade: da opressão à libertação. S 3 o Paulo: Editora S u n d e r m a n n .
Homossexualidade
2007.

136p. (Coleção 1 0 . 4 ) da opressão à libertação


ISBN: 978-85-99156-18-5
[.Homossexualidade. 2.Hornosscxualismo - história. ^ . H o m o s s e x u a l i s m o - opressão.
4.Homofobia. I. T í t u l o
C D D 301.41

í n d i c e para catálago sistemático

O N G s , M o v i m e n t o G L B T T . Preconceito, Marxismo

A primeira edição dc Homossexualidade: da opressão à libertação foi lançada cm 1981 pela


Pntposza Editorial dc São Paulo, Brasil.

Editora Sundermann
Rua Matias Aires, 78 • 01309-020 • Consolação • São Paulo • Brasil Sundermann
+55 -11 3253 5801 (tel) • +55 -11 3289 8097 (fax)
vendas@editorasundcrmann.com.br • wwvv.editorasundcrrnann.com.br São Paulo, 2007
SUMÁRIO

07 Apresentação
81 Brasil
15 Introdução
97 Problemas e perspectivas
21 Origem
105 Um programa para a libertação
53 Alemanha
109 Palavras com a imprensa alternativa
63 URSS e Cuba
127 Bibliografia recomendada
73 Estados Unidos
APRESENTAÇÃO

A reedição deste livro tem um grande significado


para o movimento homossexual atual, bem como para
os demais movimentos sociais e o conjunto da esquerda
no país.
Seu texto foi publicado pela primeira vez por volta
de 1981, como tese da Facção Homossexual da Conver-
gência Socialista (CS). Ele servia como guia para a fun-
dação da Secretaria de Gays e Lésbicas desta corrente,
na época ainda uma tendência interna do Partido dos
Trabalhadores (PT). Posteriormente, a CS se unifica
com outras correntes e forma o Partido Socialista dos
Trabalhadores Unificado (PSTU) e a Secretaria de Gays
e Lésbicas é mantida como uma de suas secretarias
permanentes.

7
Hiro Okita Homossexualidade: da opressão à libertação

O valor deste documento está na contribuição teórica que nos permite repensar radicalmente não só os cami-
que traz ao debate, a partir de uma abordagem materialis- nhos trilhados ao longo dos últimos anos, mas, sobre-
ta histórica, que revela, pelas lentes da História, a relação tudo, refletir sobre as possibilidades que se abrem no
da opressão com o tipo de sociedade em que vivemos. O presente, quando ressurgem lutas sociais profundas,
resultado é que o ele tem uma grande importancia políti- que vêm abalando as relações de poder no continente
ca para aqueles que buscam entender a historicidade do latino-americano e no mundo todo, abrindo caminho
fenômeno da opressão e se armar para combatê-lo. para novas possibilidades. Quando as velhas esquerdas,
Além dessa contribuição, em razão de ter sido parte carcomidas pela adaptação aos aparatos do Estado, de-
da elaboração e do debate que caracterizaram os pri- monstram a falência da estratégia de acumular forças
meiros passos do movimento gay no país - e que foi por dentro das instituições estatais. E quando a pala-
se perdendo ao longo dos anos 1990 - ele oferece um vra "socialismo", ainda que com diferentes significa-
marco histórico. Expressa as preocupações, os debates dos, retorna ao vocabulário político no continente. Se
e as polêmicas que impulsionaram os sujeitos daquele por um lado, o caminho da institucionalização da luta
período, cujo contraste com as contradições e os limites se revela cada vez mais condizente com os interesses
em que se encontra o movimento nessa primeira década conservadores, por outro, se torna evidente a urgência
do novo milênio não pode deixar de nos fazer refletir. do movimento debater quais alternativas e, sobretudo,
Pois, mesmo com uma análise e um objetivo tão atuais, qual a estratégia diante dos desafios reais da violência e
a obra de Hiro causa estranhamento aos que conhecem do preconceito que sofremos no dia-a-dia. E com base
o movimento apenas em sua conjuntura atual. O mo- nesses dilemas, para os quais já não é mais possível fe-
vimento de gays, lésbicas, bissexuais, transgêneros e char os olhos, que este livro ganha importância.
travestis (GLBTT) está distante do seu perfil original. Do ponto de vista histórico, a leitura deste livro per-
Olhando para o momento atual, não podemos deixar de mite perceber o fio de continuidade que se estende do
pensar na idéia de uma ruptura. presente momento até um período da história desse mo-
A distância que nos separa do contexto deste livro vimento que poucos conhecem e reivindicam, o que abre
não é somente temporal. É, acima de tudo, política, o a possibilidade da crítica e da superação. Hoje as orga-

8 9
Hiro Okita Homossexualidade: da opressão à libertação

nizações não-governamentais (ONGs) hegemonizam a militar, à exploração e à opressão. Ou seja, a leitura deste
organização de gays e lésbicas em todos os lugares, apon- livro nos ajuda a prestar contas com o passado, mostran-
tando como norte a busca por uma cidadania que só ga- do que a atual postura de isolamento do movimento não
nha conteúdo concreto para aqueles que podem pagar por corresponde ao que foi sua fase inicial no país.
ela, e oferecendo como caminho a luta restrita ao espaço Ainda, é de grande atualidade para aqueles que per-
institucional. Para aqueles homossexuais pertencentes à cebem a enorme incongruência entre o peso real da vio-
classe trabalhadora, que não podem ter acesso ao merca- lência e da opressão e o caráter formal e pouco efetivo
do que sustenta a milionária indústria dos guetos gays, dos debates e das lutas travados contra o preconceito.
a opressão é quase tão intensa quanto há décadas atrás. Os setores que sentem a falta de uma resposta concre-
Nesse sentido, tomar contato com um momento da luta ta para os problemas que nos atingem cotidianamente
onde os caminhos e os objetivos eram radicalmente te começam a perceber que o movimento está diante de
diferentes dos de hoje nos permite fazer um balanço bas- um profundo dilema. Não se vislumbram grandes pers-
tante crítico dos rumos trilhados nos últimos quinze anos. pectivas de mudança no horizonte da comunidade de
Assim, o livro nos mostra também que foi no contexto da GLBTT nos atuais marcos de organização do movimen-
reorganização dos trabalhadores na virada dos 1970 para to. As ONGs não respondem à necessidade de organi-
os 1980, em meio às greves operárias e à construção do zação e aglutinação de gays e lésbicas, tornando-se cada
PT, que os primeiros grupos se organizaram para debater vez mais empresas que disputam migalhas de governos
as questões de referentes a gays e lésbicas no país. Além e da iniciativa privada para programas sociais ineficazes.
destas questões, estes grupos estiveram marcados por A canalização das demandas para espaços institucionais
uma forte ligação com as demais lutas sociais que ocor- como meio de luta esvaziou o conteúdo real de contradi-
riam na época, fazendo um intenso debate político dos ção com o sistema e o potencial transformador de nossas
problemas que permeavam a sociedade. Isso revela uma lutas. O auto-isolamento, elevado a status de princípio,
preocupação com sua inserção na realidade, o que fez o não fez mais que diminuir o poder de pressão e a capaci-
movimento atuar próximo aos trabalhadores, aos negros e dade de diálogo com outros setores combativos das lutas
negras e às mulheres e unir forças no combate à ditadura sociais. Finalmente, a luta limitada aos marcos desta so-

10 11
Hiro Okita Homossexualidade: da opressão à libertação

cicdadc não pode oferecer uma situação muito mcllmr reprodução da desigualdade c da injustiça na sociedade
do que a que vivemos hoje. Não há solução para a opres- capitalista. Assim, nossa luta passa a ter outro signifi-
são na sociedade de classes porque esta se fundamenta cado, deixando de ser somente "nossa", bem como nos
e se perpetua através do preconceito e da homofobia. obriga a reconhecer que as lutas de outros setores não
O valor teórico desta obra está em apresentar ao pertencem somente aos "outros", mas são indissociáveis
leitor uma análise marxista da luta pela libertação ho- umas das outras no contexto geral da luta de classes.
mossexual. Em meio a um conjunto de concepções Assim, a atualidade desta obra está em recolocar o
pós-modernas, que relativizam a realidade e desco- problema da homofobia dentro de seu contexto históri-
lam a ideologia homofóbica da sociedade concreta da co, ou seja, numa sociedade que se mantém a partir da
qual esta é conseqüência, o resgate de uma abordagem opressão e da exploração. O combate a um está inevi-
que sintetiza teoria e prática oferece uma alternativa tavelmente ligado ao combate ao outro. Disso resulta a
para compreensão dos problemas enfrentados pelos necessidade de definir, no terreno da luta social, quem
homossexuais. Com este instrumento, podemos com- são os aliados e os inimigos e, principalmente, qual é o
preender a natureza histórica da opressão, seu desenvol- programa a ser levantado. Desse modo, o modelo de so-
vimento e o papel que cumpriu para reforçar a estratifi- ciedade que pode atender as nossas reivindicações é o
cação social nas sociedades de classes. Mais do que isso, mesmo que permitirá o fim da exploração e da domina-
tomamos conhecimento dos diferentes interesses que se ção. Trata-se, portanto, de uma sociedade sem classes, de
associam ao preconceito sexual e como sua combinação uma sociedade socialista, o que torna nossa luta parte da
auxilia a reprodução do status quo. Da mesma forma, luta geral dos trabalhadores, e o que nos faz seus aliados
percebemos como a luta contra a opressão homossexual em sua luta. A conclusão não pode ser outra: uma nova
está indivisivelmente ligada às lutas contra o machismo concepção de movimento, pautada pela combatividade,
e contra a exploração de uma classe por outra. Ou seja, pela unidade e pela superação da atual ordem social.
a análise marxista deste tema nos permite enxergar os
elos que ligam o problema específico da opressão coti- Douglas Borges
diana que sofremos com os mecanismos mais gerais de Wilson H. Silva

12 13
INTRODUÇÃO

O ano de 1977 viu os universitários de São Paulo sa-


írem às ruas gritando por liberdade, por "liberdades de-
mocráticas". Um ano depois, uma greve no ABC pegava
todo mundo de surpresa, lançando a classe trabalhadora
novamente na cena política brasileira. O movimento
negro subiu as escadas do Teatro Municipal para ques-
tionar um dos mais arraigados mitos brasileiros, o da
inexistência do racismo no lado de cá do Equador. Gru-
pos feministas se organizaram colocando em cheque a
estrutura do machismo brasileiro.
Em meio a essa efervescência toda, provocada pe-
los novos movimentos e pelos debates entre os novos
grupos, surgiram também pequenos agrupamentos no
Rio e em São Paulo, que colocavam em discussão o pro-

15
Hiro Okita Homossexualidade: da opressão è libertação

blema da sua sexualidade, e das restrições impostas aos mossexual não seria uma questão a ser resolvida depois
homossexuais. da transformação política, econômica e social do sis-
Desde as primeiras reuniões semiclandestinas do tema, que culminaria no desaparecimento do Estado.
primeiro grupo homossexual de São Paulo, em 1978, Implícita nesta colocação, no entanto, estava sempre
muita coisa aconteceu. 1980 marca a realização do I En- a perspectiva de "solução" da questão homossexual
contro Brasileiro de Grupos Homossexuais Organizados através do afogamento dos homossexuais, que também
e, em 1981, acontecem dois encontros regionais, um no desapareceriam.
nordeste e outro em São Paulo. A este tipo de questionamento seguiam-se, também
Um ato público e uma passeata de quase mil pessoas, inevitavelmente, frágeis contestações de algum grupo
entre homossexuais, negros, feministas e travestis, rea- do movimento homossexual com suas invariáveis e aca-
lizados no inverno de 1980 contra a onda de repressão loradas argumentações contra a esquerda, que "não ser-
policial, transformaram o 13 de junho no Dia Nacional ve para nada" e que "em Cuba, por exemplo, levaram os
da Luta Homossexual. homossexuais para cortarem cana, depois da revolução".
O texto que apresentamos é o produto da participa- O movimento homossexual, ainda segundo a frágil
ção e da discussão de um grupo de homossexuais so- argumentação dos grupos que dirigiam esses debates,
cialistas, que acompanha o movimento desde os seus seria um novo fenômeno social de marginalizados ou
primeiros passos. Surgiu da necessidade de se elaborar minorias, que em seu conjunto formam a maioria da
um estudo mais profundo acerca da nossa opressão, en- sociedade.
quanto homossexuais, para melhor entender o processo Os homossexuais, ao lado das mulheres, dos negros,
da nossa libertação e a sua inter-relação com outros mo- dos índios e ecologistas, formariam o cenário das lutas
vimentos sociais que lutam contra a opressão e a explo- reivindicatórias dos anos 1980, à revelia e quase contra
ração e pela transformação total da sociedade. qualquer outro movimento político ou social que lutasse
Nos primeiros debates sobre o movimento homos- pela transformação do sistema.
sexual levados nas universidades era quase inevitável O balanço destes debates também aparecia como ine-
que alguém se manifestasse para colocar, se a luta ho- vitável: as "lutas maiores" relegavam aos homossexuais

16 17
Hiro Okita Homossexualidade: da opressão á libertação

o espaço de "luta menor" e, portanto, de pouca impor- origem e a dinâmica da opressão aos homossexuais e o
tância, ou pelo menos, de pouca importância imediata. caminho para a sua libertação.
Sobrava, então, o movimento homossexual prensa- Não é um tratado do tipo Homossexualidade. Doen-
do, por um lado, pela esquerda ortodoxa com sua moral ça ou Normalidade, que é um dos temas mais escolhidos
burguesa, que ridicularizava o movimento e, por outro, para trabalhos de fim de semestre nas escolas de So-
pelos grupos de homossexuais que ignoravam qualquer ciologia e Psicologia. Tampouco tem a pretensão de ser
discussão sobre uma possível combinação da luta ho- uma resposta a todos os trabalhos pseudocientíficos ou
mossexual no contexto da luta de todos os explorados de psicologia popular que poluíram o espaço da literatu-
e oprimidos. ra sobre homossexualidade nos últimos cinqüenta anos.
No mesmo ano dc 1980, os debates dentro do próprio Analisamos a homossexualidade enquanto uma va-
movimento homossexual começaram a tomar outros ru- riação de comportamento sexual, que se remete a todas
mos. Preocupava ao movimento uma suposta postura as sociedades, épocas, culturas e classes sociais.
oportunista das esquerdas brasileiras em relação à dis- O nosso trabalho é uma tentativa de analisar a ques-
cussão homossexual. tão da discriminação e opressão aos homossexuais no
Essa preocupação leva todos os grupos do movi- seu contexto histórico-social. A partir dessa análise,
mento homossexual a colocarem-se "contra qualquer apontar perspectivas para a sua libertação, sobre a base
tipo de poder" (menos o da ditadura militar!) e a senha da transformação radical da atual sociedade, no cami-
para esses grupos passou a ser "autonomia". Todos os nho de uma sociedade sem classes.
homossexuais brasileiros, de todas as classes sociais e
ideologias, independente de qualquer postura políti-
co-social, unidos em sua sexualidade e marginalização,
caminhariam juntos até o paraíso, se a esquerda não os
desviasse de seu curso!
Este nosso trabalho é uma tentativa de ampliar o de-
bate dentro e fora do movimento homossexual, sobre a

18 10
ORIGEM

Antes da existência de um movimento de libertação


homossexual militante, existia um tabu universal de que
a homossexualidade não era tópico para uma discussão
séria. O tema restringia-se apenas a livros psiquiátricos,
condenações murmuradas, piadas degradantes e refe-
rências históricas e literárias veladas. A verdade sobre a
homossexualidade, bem como suas origens e a história
do preconceito anti-homossexual, tem sido escondida e
deturpada perante a sociedade.
A repressão anti-homossexual tem obrigado a maio-
ria deles a esconderem-se como seres humanos, atrás
de uma máscara de conformismo heterossexual. Sem
sua identidade social e política, como outros grupos
oprimidos, é um setor sobre o qual recaem muitos pre-

21
Hiro Okita Homossexualidade: da opressão à libertação

conceitos e idéias distorcidas. inerente à História da Humanidade, não existiu sempre


A sexualidade tem sido sempre parte integrante da e não tem razão de continuar a existir no futuro.
experiência humana, porém as atitudes sobre ela varia- Na análise que se segue, os termos "fundacional"
vam de acordo com a época, sociedade e condições ma- e "comunismo fundacional" são usados para descrever
teriais. A homossexualidade sempre foi parce integrante sociedades que existiam em baixo nível de desenvolvi-
da sexualidade e aceita na grande maioria das sociedades mento tecnológico, mas com alto grau de desenvolvi-
fundacionais, embora não fosse a forma predominante. mento humano. Todas as necessidades básicas para a
Para entender como é vista hoje, é importante examinar sobrevivência humana, como alimentação, eram distri-
todas as mudanças históricas e as atitudes sexuais em buídas igualitariamente, não havendo divisões de clas-
geral, e da homossexualidade em particular. ses. Nas sociedades fundacionais, ao contrário do que
Utilizaremos o método histórico. Estudaremos as aconteceu com a sociedade de classes, a luta era contra
mudanças das atitudes da sexualidade e da homossexu- a natureza e não contra outros seres humanos.
alidade nas sociedades humanas que se desenvolveram Quase todos os estudos históricos c antropológicos
desde a pré-História (de talvez quatro milhões de anos) exibem um forte preconceito contra a mulher e os ho-
até os últimos oito mil anos, onde as mudanças sociais mossexuais. Na sociedade pré-histórica, homem e mu-
se realizaram de maneira muito mais rápida. Por falta de lher conviveram em igualdade de condições e somente
dados mais profundos, estudaremos a história do mundo no desenvolvimento da sociedade de classes (entre qua-
ocidental, onde a opressão anti-homossexual nos parece tro c oito mil anos atrás) começou a opressão da mulher.
que se manifestou de maneira mais brutal. Atualmente, mesmo nos trabalhos históricos e antro-
Cada fenômeno tem uma história. Desenvolvimento pológicos mais "objetivos", as contribuições da mulher
e transformação são características de tudo o que existe. para o desenvolvimento humano são ignorados. Aconte-
Acreditamos que redescobrindo a verdadeira história da ce a mesma coisa em relação aos homossexuais. Mesmo
opressão anti-homossexual, ajudaremos a luta pelo seu com todo o preconceito que se manifesta nesses estu-
fim. dos, eles mostram claramente que a homossexualidade
Os fatos provam que essa opressão não é um fator sempre foi parte integrante da sexualidade humana, e

22 23
Hiro Okita Homossexualidade: da opressão á libertação

que as sociedades fundacionais viam a sexualidade de balho existentes nas sociedades fundacionais eram ba-
forma completamente diferente da visão atual. seadas nas condições materiais, principalmente no fato
E importante mencionarmos que a homossexualida- de que a mulher como reprodutora fixava-se mais pró-
de abarca diversas maneiras de comportamento, como xima à comunidade. Mas o lar não era um lugar isolado
a das travestis, que adotam vestimenta e alguns com- socialmente como o é na sociedade capitalista, e sim o
portamentos do sexo oposto. Elas sempre existiram na centro da vida comum e da atividade social.
História, mesmo nas sociedades fundacionais. Nestas, A caça era uma atividade do homem, porém não ex-
e nas primeiras sociedades de classes, eram altamente clusiva deste. As tarefas das mulheres eram mais coo-
respeitadas. Eram consideradas possuidoras de poderes perativas e sociais, e suas contribuições para a sobrevi-
especiais e eram consultadas sobre assuntos importan- vência eram enormes. Há indícios de que foi a mulher
tes, sendo muitas vezes destacadas nas cerimônias re- que desenvolveu a linguagem, domesticou os animais,
ligiosas. Em tempos modernos, são objeto de escárnio iniciou o cultivo de plantações e construiu as primeiras
cruel, marginalizadas e alvo de toda espécie de repres- moradias. A mulher foi o fator principal para o desenvol-
são civil e policial. Se por um lado existe o travestismo vimento das sociedades fundacionais.
como mais uma forma de gratificação sexual, por outro, Engels caracterizou a sociedade fundacional como
esta é uma saída encontrada por alguns homossexuais matriarcal, mas isto não queria dizer que a mulher do-
que procuram assim seu equilíbrio emocional e, muitas minou o homem, pois nas sociedades tribais não exis-
vezes também, sua segurança financeira. tiam dominadores, nem a opressão de um sexo sobre
outro. A autoridade que os líderes masculinos ou femi-
Sociedade fundacional ninos tinham surgiu das necessidades de organização
tribal e foi baseada em suas reais capacidades de ação
Engels, em sua grande obra A Origem da Família, e respeito mútuo.
da Propriedade Privada e do Estado, notou que nas so- O que caracterizou a sociedade matriarcal foram os
ciedades fundacionais, em relação à mulher, existia um laços maternais. A concepção de paternidade não existia
grande respeito e igualdade. As divisões sexuais de tra- ali e a co-habitação, ou seja, homem e mulher que man-

24 25
Hiro Okita Homossexualidade: da opressão à libertação

tinham relações sexuais vivendo juntos, só apareceu nos em seus relatórios sempre consideram a homossexuali-
últimos períodos do comunismo fundacional. Os des- dade como um fenômeno.
cendentes de sangue eram identificados através da mu- Muitos observadores notaram que entre os papua, os
lher. A organização tribal concentrou-se em relação às keraki e os kiwai, da Nova Guiné, os atos sexuais entre
mulheres e seus filhos. O cuidado das crianças era divi- homens mais velhos e mais jovens são parte essencial
dido entre a mulher e seus irmãos. Os pais eram apenas dos rituais de passagem para a idade adulta.
visitantes do lar tribal, que era a residência da mãe e de A única pesquisa antropológica feita por um homos-
seus parentes de sangue. Os homens viviam com a mãe sexual assumido é o estudo de Tobias Schncbaum, que
e os irmãos dele, cuidando dos filhos das irmãs. viveu com um grupo tribal Amarakaeri do Amazonas
A homossexualidade não só existiu, como foi um fato peruano. Em seu livro Keep the River on Your Right,
comum. Claude Lévi-Strauss, um líder da escola bur- ele descreveu os costumes sexuais dessa tribo totalmen-
guesa da antropologia, em seu relatório (no livro Tristes te isolada do contato com o homem branco - as mulheres
Trópicos) sobre os índios nhambiquara, do Brasil cen- e filhos amarakaeri dormiam separados dos homens. As
tral, observou que as relações homossexuais, comuns relações na tribo eram unicamente homossexuais, tanto
entre os jovens, se manifestavam de uma maneira pú- do homem como da mulher. Só nas ocasiões cerimo-
blica, ao contrário das relações heterossexuais. niais, duas ou três vezes por ano, existia a relação hete-
Ford e Beach {Parterns of Sexual Behavior) pesqui- rossexual, visando unicamente a reprodução.
saram relatórios de 76 sociedades fundacionais em suas Literalmente, centenas de relatórios antropológicos
atitudes sobre a homossexualidade. Na forma feminina, das primeiras sociedades espalhadas por todos os conti-
quase não encontraram citações. Porém, na masculina, nentes mencionam o fenômeno berdache (travestismo).
encontraram citações sobre dois terços destas socieda- E impossível ignorar o status especial dado aos travestis
des. Essas relações eram consideradas normais e aceitas masculinos e femininos nessas sociedades. O antropó-
socialmente. Se esses dados parecem exagerados, é im- logo alemão Hermann Bauman documentou a existên-
portante considerar que esses antropólogos e observado- cia do berdache em quase todas as tribos indígenas da
res são em geral puritanos, machistas e homofóbicos, e América do Norte. Eram pessoas altamente respeitadas

26 27
Hiro Okita Homossexualidade: da opressão á libertação

e tinham um papel sexual-ritual com as pessoas não- Em artigo sobre a mulher de Samoa, Margaret Mead
berdachc nas cerimônias religiosas. Também documen- destaca que "existiam relações homossexuais casuais
tou a existência de travestis masculinos e femininos que entre as meninas, embora nunca assumissem uma im-
eram feiticeiros em muitas tribos africanas. portância em longo prazo. As meninas c mulheres que
No seu livro Origin and Devchpmcnc of che Moral trabalhavam juntas consideravam o contato homossexu-
Ideas, Edward Westcrmarck. observou que "não existe al como diversões naturais e gostosas". Ela afirma ainda
indicação de que os índios norte-americanos tivessem que as relações heterossexuais também eram casuais c
algum preconceito contra o homem que tinha relação completadas somente por "filhos e pelo lugar que os
sexual com outro do mesmo sexo, que assumia os atos casamentos tinham na estrutura econômica e social da
e vestimentas de uma mulher. Ao contrário, essa pessoa aldeia".
era considerada grande aquisição e o homem efeminado Engels postulou que no começo da sociedade huma-
não era odiado, mas sim respeitado pelo seu povo e, na na e durante um período do comunismo fundacional,
sua maioria, eram feiticeiros [...]". Os índios sioux, saes o comportamento sexual humano era caracterizado por
e fox davam, pelo menos uma vez por ano, uma grande relações promíscuas e mais tarde pelo chamado "casa-
festa ao berdache. mento grupai".
Apesar das poucas informações, as indicações nos A sexualidade casual que Mead observou na socieda-
mostram que era comum a homossexualidade entre as de de Samoa, e que muitos outros também registraram,
mulheres nessas sociedades. O jesuíta machista Lafi- parece claramente uma caracterização geral da socieda-
tan, que se chocou com o homem feminino em várias de pré-classes. Engels diz que ciúmes e possessividade
tribos indígenas, ficou completamente escandalizado têm suas raízes na instituição da propriedade privada.
ao observar mulheres, que ele chamou de "amazonas", No primitivismo, a sexualidade, como todas as necessi-
que caçavam juntamente com os homens. Outros obser- dades básicas, era compartilhada livremente.
vadores constataram a homossexualidade entre mulhe- O objetivo destas citações, é mostrar que a homos-
res que não assumiam comportamentos ou vestimentas sexualidade não é um fenômeno alienado dos seres hu-
masculinas. manos, e que se desenvolve naturalmente na sociedade

28 29
Hiro Okita Homossexualidade: da opressão à libertação

fundacional. Aqueles que defendem a posição de que homens da tribo. Em determinados momentos, ficou
homossexualidade não é "natural", ou é resultante de evidente que a criação de animais e a agricultura "ren-
condicionamento não-natural, devem ter dificuldade diam" mais do que a caça. Isto não quer dizer que foi
para explicar a ampla aceitação da homossexualidade um plano consciente do homem, nem indica uma luta
nas sociedades fundacionais. sexual entre homens e mulheres pela dominação. Fo-
ram as condições materiais que provocaram essa mu-
Da matriarcalismo para as classes dança. O fato dos homens terem mais experiências com
animais maiores, e então começarem a cuidar do gado,
Na sociedade fundacional a luta contra a natureza, levou a mulher a cuidar dos animais menores e com me-
ou seja, a luta pela sobrevivência, tomava toda a energia nos interesse. Também como lutador, o homem tinha
e tempo. A medida que o desenvolvimento tecnológico maiores condições de dominar outras tribos, utilizando
produziu riquezas materiais acima das necessidades bá- os dominados como escravos, e tinha também mais li-
sicas e possibilitou a acumulação, trouxe consigo uma berdade de ação, devido à sua velha posição de caçador,
transformação fundamental nas relações humanas. O de planejar a executar a agricultura. Esses fatores, den-
excesso de bens materiais, na forma de animais do- tre outros, foram a base material para o enriquecimento
mesticados, cereais e outros produtos, acumulando-se dos líderes masculinos das tribos, acima da mulher e
nas mãos de certos indivíduos, resultou na formação outros membros da tribo em geral.
das classes. Com esse desenvolvimento gradual da pro- O eixo da luta contra a organização matriarcal da
priedade privada, formaram-se relações de exploração sociedade era sobre a questão da linhagem dos filhos.
entre os que tinham e os que não tinham. Queremos Mesmo nas últimas etapas da sociedade matriarcal,
estabelecer a relação de como essas mudanças implicam quando a organização da família tinha desenvolvido a
na modificação da estrutura matriarcal, assim como nas forma que conhecemos hoje, a descendência continuou
relações sexuais e atitudes religiosas. a ser reconhecida através da mãe. A riqueza do marido
Esse processo histórico mundial tinha como pré- passava, não aos seus próprios filhos, mas sim às suas
condição a acumulação de bens materiais entre alguns irmãs. Num determinado momento do desenvolvimen-

30 31
Hiro Okita Homossexualidade: da opressão à libertação

to, surgiu o casamento comprado, isto é, o homem, para lhos. Relações homossexuais, assim como as heterosse-
casar, pagava um dote à família da mulher. Isto era mais xuais casuais, ficaram fora desse sistema de herança da
uma pressão contra os traços do sistema matriarcal. Os propriedade.
homens começaram, então, a exigir que os seus bens Pela primeira vez, sentimentos sexuais e emocionais
passassem para os seus próprios filhos, para que estes começaram a ser influenciados pelo controle social, e
pudessem continuar a acumulação de bens. proibições sexuais rígidas foram construídas. Vergonha,
O desenvolvimento da sociedade de classes, resul- culpa e medo passaram a ser relacionados com o sexo e
tante da desigualdade econômica, resultou na transfor- como forma de opressão para a manutenção da ordem.
mação da ordem matriarcal para o patriarcado e com O que era casual, espontâneo e natural começou a ser
a dominação dos homens. As relações sexuais tinham objeto de conflitos e, em última instância, perseguição.
muito mais restrições na nova sociedade. No matriarca- Com a propriedade privada, o natural passou a ser não-
do, por exemplo, tanto homens como mulheres tinham natural.
direito de escolher novos companheiros sexuais, caso o Nessa época, ciúmes sexuais eram implícitos entre
interesse no antigo companheiro tivesse acabado. Esse o homem, sua mulher e seus filhos. Mulher c filhos,
direito era possível já que não havia uma dependência como gado e cereais, viraram propriedade privada. Em
econômica da mulher em relação ao homem. alguns códigos legais desta época, a violação da mulher
Essas expressões sexuais poderiam ser casuais na era considerada um crime contra a propriedade.
medida cm que não entravam em conflito com os in- A sexualidade em geral, assumiu uma significação
teresses das propriedades dos líderes tribais. Essas re- social negativa. Era uma forma de expressão pessoal in-
lações e atitudes relaxadas do comportamento heteros- compatível com a nova ordem patriarcal, somente sendo
sexual de fato entraram em conflito com os interesses permitido dentro dos limites rígidos da familia monogâ-
dos novos líderes. Era de grande interesse dos novos se- mica dominada pelo homem. Este fato resultou em que
nhores, que seus bens e seu nome passassem para seus a homossexualidade, pela primeira vez, era um fenô-
filhos e isto pré-condicionava a monogamia da mulher. meno condenado. As relações homossexuais da mulher,
Só assim ele teria certeza da paternidade de seus fi- como também as heterossexuais, eram limitadas pela

32 33
Hiro Okita Homossexualidade: da opressão à libertação

dominação patriarcal. As relações sexuais do homem cerimoniais religiosos da Africa do Norte, América do
eram mais livres do que as da mulher. Porém, aquelas Norte e outros lugares.
relações masculinas que não resultassem herdeiros eram As práticas religiosas também se transformaram sob
condenadas pelo sistema patriarcal, cujo pai adquiriu o a influência das novas condições sociais, até refletirem-
direito de passar suas propriedades para os filhos. E pro- na. A nova classe dominante, que tinha tomado o acú-
vável que o medo de não deixar herdeiros fosse um dos mulo de riquezas, também passou a influenciar gradual-
fatores principais para a proibição homossexual. mente a vida religiosa. Como todos os novos fenômenos
sociais, organizações religiosas da primitiva sociedade
Evolução da religião patriarcal de classes mantiveram coisas do seu passado. Quando
o templo já era um instrumento de repressão às massas,
Na sociedade fundacional havia uma relação entre muitas cerimônias religiosas antigas, incluindo atos se-
sexualidade e religião. Atos rituais homossexuais e he- xuais, continuaram.
terossexuais eram muitas vezes parte integrante dos A forte ligação entre sentimentos religiosos e ritos
cerimoniais. Travestis também tinham um papel im- sexuais tinham origem nos rituais das sociedades fun-
portante nesses atos. Por exemplo, os índios de Illinois, dacionais. Os sacerdotes e sacerdotisas que participa-
na América do Norte, chamavam os homens efemina- vam desses atos sexuais religiosos eram considerados
dos para todos os conselhos da tribo e nada poderia ser possuídos por um deus ou deusa. O ato sexual era com-
decidido sem sua opinião, pois eram considerados seres preendido como um ato de comunhão entre deus e o
sobrenaturais e pessoas de grande importância. Essas participante.
atitudes frente ao travesti existiram em diversas socie- A troca de dinheiro nessas cerimônias era o elemento
dades, desde a Patagônia até os esquimós Konyaga. O novo e refletia de forma significativa o desenvolvimento
famoso antropólogo James Frazer notou que bruxos das classes, que limitou a participação das massas nessa
efeminados existiam entre os povos de Bornéu, Ma- antiga cerimônia. Pela primeira vez, o sexo virou uma
dagascar e o Congo. Existem relatórios sobre o papel troca comercial. Mesmo assim, as massas continuaram
da mulher homossexual como pessoa importante, nos nos seus velhos comportamentos sexuais. Porém, os

34 35
Hiro Okita Homossexualidade: da opressão à libertação

costumes da classe dominante, forçando sua influência, outras religiões da época. Eles tinham seu deus tribal
e os novos fatores como a necessidade da monogamia, (Yahweh, Javé) mas também pregavam outros deuses
e hostilidade à homossexualidade, trouxeram grandes e praticavam sexualidade ritual, tanto homo como he-
distorções nas relações sexuais entre os povos. Essas terossexual. Karl Kautsky sugere em seu importante
cerimônias eram comuns no Egito, Babilônia, Assíria, trabalho A fundação do cristianismo, que o conceito de
Canaã, Caldeia, Suméria, Grécia etc. Os mitos sobre os monoteísmo patriarcal, ou seja, um deus masculino, só
vários deuses e deusas continham vários símbolos sexu- se desenvolveu em vários lugares na época em que os
ais. Por exemplo, o mais antigo testemunho literário, de hebreus pós-exílio abraçaram fanaticamente o monote-
mais de 4.500 anos, é um papiro egípcio que prova que ísmo. Havia algumas manifestações de monoteísmo no
homossexualidade era muito comum naquela região e Egito, durante o reinado de Akinaton e nas doutrinas
que pressupunha sua existência também entre os deu- ocultas dos sacerdotes da Babilônia. Porém, Kautsky ob-
ses, de uma maneira natural (Hans Licht, Sexual Life serva que os sacerdotes da Babilônia e do Egito tinham
in Ancient Greece). um interesse material na preservação das doutrinas po-
Uma das primeiras transformações da sociedade liteístas, que era a base de seu poder e privilégios.
fundacional foi o sistema de escravidão das sociedades Os líderes judaicos (religiosos) pós-exílio, estavam
de classes mediterrâneas orientais e da Mesopotâmia. abertos a novas idéias e não tinham nada a perder. Quan-
Raptar povos estrangeiros era uma das fontes principais do os judeus voltaram para Jerusalém e restabeleceram
de um exército de trabalho barato. O sistema econômi- seu comércio, a idéia de um deus só, ou seja, um deus
co baseado na escravidão estimulou guerras entre cida- masculino vingativo, não era completamente nova. Era
des-Estado vizinhas. Na verdade, guerras de conquista parecido ao velho deus Javé e muitas mitologias eram
dominaram a história desses antigos povos e nações. emprestadas dos mitos da Babilônia.
Nesse período histórico, até o exílio dos hebreus, não A criação de só um verdadeiro deus levou a destruir
havia uma religião do povo do Oriente Médio que refle- todos os resquícios das práticas religiosas matriarcais.
tisse as características da sociedade patriarcal. A religião Wainwright Churchill observou no seu livro Homos-
hebraica primitiva, no fundo, não era diferenciada das sexual Behaviour Among Males que dos 36 crimes pu-

36 37
Hiro Okita
Homossoxualidade: da opressão à libertação

nidos por morte no Código Mosaico pos-cxílio, a meta- chamada prostituição do templo, embora muitos ritos
de era sobre atos sexuais. Os atos homossexuais foram sexuais de vários cultos não acontecessem em troca de
punidos com apedrejamentos, que era a punição mais dinheiro. Na sociedade grega, a autoridade moral era
severa. Churchill sugere que esta transformação moral descentralizada e, por isso, permaneceu a cultura tribal
radical era baseada em parte na necessidade dos judeus que convivia com as novas normas. Por exemplo, os gre-
distinguirem-se de uma maneira decisiva das outras gos continuaram a gostar do corpo humano nu em plena
nações hostis que ameaçavam conquistá-los cultural e época patriarcal, enquanto a nudez era considerada ver-
militarmente. Nos escritos talmúdicos, o homossexua- gonhosa em todas as outras sociedades patriarcais.
lismo é associado ao comportamento dos canãenses, dos Na Grécia helénica, a homossexualidade era comum
caldeus e dos selvagens em geral. Logo, toda a socieda- na maioria das cidades-Estado, e existiam mesmo exér-
de de classes foi dominada pelo monoteísmo patriarcal, citos compostos de amantes homossexuais, como por
que necessita da dominação da mulher e dos homosse- exemplo, o "bando sagrado de Tebas", que lutou vito-
xuais para sua sobrevivência. riosamente por mais de trinta anos, até ser totalmente
destruído em 338 a.C, pelo exército macedónico do rei
Na Grécia clássica
Felipe.
Plutarco reportou que as relações lésbicas entre as
Na mesma época em que os hebreus transformavam mulheres de Esparta eram comuns. Muitos exemplos
radicalmente seu pensamento religioso, as necessida- de literatura, pintura e cerâmica gregas clássicas, re-
des dos Estados gregos estavam se desenvolvendo de manescentes do século 5 a.C, registram claramente a
forma diferente. Como todo povo antigo, as primeiras prática do amor lésbico em muitas comunidades gregas
tribos gregas eram organizadas no sistema matriarcal e daquela época. Na mitologia histórica e religiosa grega,
a homossexualidade existia entre elas. Ali também a se- temos muitas referências a relações homossexuais entre
xualidade ritual fazia parte das práticas religiosas. Com os deuses e os homens. Povos de várias cidades cultua-
o desenvolvimento da sociedade escravaglsta, houve vam figuras homossexuais e hermafroditas, homenage-
uma tendência a que estes rituais evoluíssem para uma ando-as com festivais anuais. Por exemplo, em Esparta,

38
39
Hiro Okila Homossexualidade: da opressão à libertação

era dedicada uma festa anual a Hyacinthus, um jovem Ao contrário, em Atenas, a família monogâmica do-
amado pelo deus Apolo. minada pelos homens já predominava. Engels descre-
Tanto Esparta como Atenas usaram força de traba- veu nestas palavras: "[...] a sua vitória é um destes sinais
lho escravo. Em Atenas, porém, o sistema era muito do começo da civilização". Baseado na supremacia do
mais desenvolvido. Em Esparta, as mulheres ainda ti- homem, com objetivo explícito da produção de filhos
nham um tipo de igualdade social: as meninas e me- com paternidade provada, para assegurar que os filhos
ninos recebiam treinamento militar e atlético. Homens herdassem os bens de seus pais, naturalmente; isso le-
e mulheres tinham maior liberdade sexual. Segundo vou à extrema submissão da mulher e o contraste com
Engels, os dois sexos tinham direito a mais do que um Esparta era marcante. As mulheres não tinham liberda-
companheiro sexual. Ele observou que isto era, clara- de sexual, nem oportunidades educacionais, a não ser
mente, um fenômeno que sobrou da prática fundacional aprendizagem doméstica e viviam em uma parte sepa-
de casamento grupai. rada da casa. Engels enfatizou que a monogamia das so-
Sabemos que relações homossexuais de homens e ciedades de classes sempre quis dizer, na prática, mono-
mulheres eram comuns, e que existiam formas institu- gamia para a mulher e poligamia para seu marido.
cionalizadas de relações sexuais entre jovens e homens Expressões sexuais, mesmo entre homens, começa-
de Esparta, que provavelmente tinham suas origens nos ram a sofrer restrições por medidas políticas. Exemplifi-
rituais tribais da puberdade. O mais velho dos dois era cando: a prostituição masculina e feminina, com motivos
responsável moralmente pelo comportamento e desen- estritamente monetários, apareceu nas ruas de Atenas.
volvimento do mais jovem. Tinha que ajudar na educa- Este desenvolvimento complementou a transformação
ção e formação do jovem e ser seu exemplo. Se os pais do sexo em um produto de consumo, que começou com
deste não estivessem presentes, o jovem poderia ser a prostituição do templo. Uma outra restrição, que to-
representado na assembléia pública pelo seu amante. mou forma de código legal, foi a que proibiu relações
Na batalha, os dois tinham que lutar próximos e o mais homossexuais entre homens livres e escravos. Vale lem-
velho era responsável por todas as deficiências de seu brar que na chamada democracia ateniense, a população
amante mais jovem, podendo até ser punido por elas. era formada em seus quatro quintos de escravos. Apesar

40 41
Hiro Okito Homossexualidade: da opressão a libertação

de limitar severamente o comportamento homossexual, queria que os convertidos ao cristianismo renunciassem


está claro que é mais uma proibição de classe. completamente à sexualidade, como ele fez. Se Paulo
Na época de Platão, muitas vozes, incluindo a dele não tinha muito entusiasmo por relações heterossexu-
nos seus últimos anos, protestaram contra esta falta de ais, suas atitudes a respeito de outras formas de expres-
liberdade sexual e contra a opressão homossexual. A so- são sexual eram históricas! Na epístola aos romanos, ele
ciedade que mais tarde seria conhecida pelo amor gre- condena qualquer ato homossexual e diz que as pessoas
go, ou seja, o amor homossexual, já começa a refletir as que o praticassem iriam queimar no inferno.
restrições sexuais da sociedade patriarcal. Paulo e outros líderes cristãos estabeleceram ati-
tudes de auto-repressão sexual para evitar o pecado e
Roma e o cristianismo
conseguir um lugar no céu. Este aspecto da nova reli-
gião tinha um apelo para certos membros da classe do-
Roma tem sido caracterizada pelos historiadores minante, que tinha vivido todos os prazeres eróticos e
como decadente sexualmente e existem argumentos de sentia-se vazia. Esses convertidos da classe dominante
que isto foi a causa de sua decadência político-militar. deram apoio financeiro importante c o cristianismo, de
É verdade que a classe dominante romana participou de uma religião do povo, transformou-se em uma religião
muitos excessos violentos e degradantes, na sua procura hierárquica estatal, que servia aos ricos.
de novas sensações. Mas a base material desta desinte- O imperador Alexandre Severo, que governou Roma
gração gradual não era a decadência moral e sim a de- no começo do século 2, foi o primeiro que assumiu publi-
cadência de um sistema econômico e político, que não
camente uma posição anti-homossexual. Oficialmente
mais conseguia controlar o império que criou.
ele era pagão, mas sua mãe era convertida ao cristianis-
As pequenas seitas cristãs apareceram entre os po- mo, e ele foi influenciado pela posição anti-homossexual
bres de Roma. Os primeiros cristãos tinham ódio do da Igreja cristã. No começo de seu governo, ordenou a
rico e uma certa organização coletivista. Desde o come- prisão massiva de prostitutos masculinos e a deportação
ço eram completamente contra as chamadas tentações de muitos homossexuais participantes da vida pública.
terrenas. Um de seus primeiros líderes, Paulo de Tarso, Em 342, o imperador Constantino decretou o cris-

42
43
Hiro Okita Homossexualidade: da opressão à libertação

tianismo como sua religião pessoal. Elevada ao serviço nâmico: o servo feudal era mais produtivo que o escravo.
direto do poder estatal, a escravidão religiosa das mas- Havia uma instituição poderosa que reunia toda a Eu-
sas oprimidas estava garantida. O próximo imperador, ropa. Engels, em Do Socialismo utópico ao socialismo
Valentino, instituiu a pena de morte na fogueira (modo científico notou que "[...] o grande centro internacional
de execução até ali não utilizado) para "crime" de so- do feudalismo era a Igreja católica romana. Ela reuniu
domia. Em 538, o imperador Justino codificou a lei ro- toda a Europa feudalizada, apesar das guerras internas,
mana. Num clima de pessimismo e medo, provocado num grande sistema político [...] deu uma auréola divina
pela desintegração da sociedade romana e o colapso de a todas as instituições feudais, organizou sua hierarquia
seu império, Justino prescreveu torturas, mutilações e nesse modelo e foi o senhor mais poderoso, com um
castrações para os homossexuais, como prelúdio para a terço das terras". Nesse sentido, a ordem do celibato
execução. O édito diz em determinado momento: "[...] era para a Igreja mais uma consideração econômica que
certos homens possuídos pela excitação diabólica, prati- moral. Queria ser a única herdeira de todos os bens das
cam entre eles os atos mais degradantes contra a natu- pessoas que ingressassem nas ordens religiosas.
reza: nós imploramos que se abstenham, para não serem Embora toda poderosa, a Igreja não era aceita univer-
visitados pela vingança divina [...] como resultado, ci- salmente. Havia, algumas vezes, uma forte resistência à
dades serão destruídas com seus habitantes e por causa autoridade papal entre os senhores feudais e os servos.
desses crimes existem crianças famintas, terremotos e A tática favorita da Igreja durante a época da Santa In-
pestes". A morte na fogueira tornou-se comum para o quisição, que começou em 1233, era acusar os nobres
"pecado" tão horrível, que não pode ser mencionado na ricos, cujas terras e bens lhe interessavam, da práticas
presença de cristãos. de heresias religiosas ou de homossexualismo, ou os
dois juntos (foram feitas tantas vezes as duas acusações
A Igreja e a Europa feudal ao mesmo tempo, que chegou-se a considerar que uma
. implicava a outra). Isso permitiu à Igreja ter em suas
O sistema de produção romano baseado no trabalho mãos uma arma econômica e apoderar-se dos bens dos
escravo foi gradualmente substituído por outro mais di- acusados.

44 45
Hiro Okita Homossexualidade: da opressão à libertação

As primeiras manifestações anti-homossexuais por a "Mãe Terra". Se houvesse um deus, essa figura era
parte da Igreja deram-se na forma de advertência, como explicitamente fálica. Esses movimentos tentaram re-
por exemplo a que Santo Agostinho dirigiu a um gru- jeitar os valores existentes, que exigiam a submissão da
po de freiras em 423: "[...] amor entre vocês não deve mulher e a proscrição dos homossexuais. Alguns destes
ser carnal". Mas logo as proibições cléricas tomaram um grupos eram abertamente hostis à Igreja e ao Estado,
caráter muito mais sério. Em 693, a Igreja espanhola re- desafiando a necessidade do clero, do governo, do casa-
afirmou a punição de Justino para homossexuais mascu- mento e da hierarquia religiosa organizada.
linos: castração, depois execução. Para as freiras, novas A influência da posição anti-homossexual da Igreja
penas foram desenvolvidas, mas não tão severas quanto na autoridade secular é demonstrada no seguinte item
para os padres. do código francês, de fins do século 13: "se alguém é
Antes do século 11, a Igreja católica tinha uma certa suspeito de sodomia, o magistrado deve prendê-lo e
tendência aos rituais pagãos, que conviveram com as no- mandá-lo ao bispo e, se for condenado, deve ser quei-
vas cerimônias religiosas católicas. Muitos desses rituais mado c todos os seus bens confiscados para o barão
sobreviveram da época pré-cristã e tinham práticas se- [...]". Sobre o lesbianismo: "a mulher que pratica a sodo-
xuais e homossexuais em suas cerimônias. Mas a Igreja, mia tem que ser submetida à mutilação para primeiras e
numa tentativa de maior controle sobre os camponeses, segundas ofensas, na terceira condenação deve ser quei-
passou a reprimir brutalmente estes resquícios da época mada e todos seus bens passam a pertencer ao rei".
tribal. A perseguição de Joana D'Arc (1412-1431) é muito
Temos dois casos documentados de processos con- significativa do ponto de vista da história da opressão
tra "bruxos", um em 1022 e outro em 1114. O primeiro homossexual. Ela era acusada, na verdade, de bruxaria,
aconteceu em Orléans, e o réu era acusado de participar travestismo e crimes políticos. Quando ela voltou a usar
de "orgias religiosas", o outro, em Bucy-Saint-Liphard, suas roupas masculinas, após ter prometido reformar-se,
sob acusações de rituais homossexuais. foi executada pelas autoridades.
Na Europa feudal, muitos grupos continuaram com Os chamados processos de bruxaria prosseguiram
suas práticas antigas. Muitas vezes, a figura central era por muitos anos, depois do fim da Inquisição. Os ino-

46 47
Hiro Okita Homossexualidade: da opressão à libertação

vimencos de reformulação protestantes continuaram a Sob o capitalismo


caça às bruxas. Todas as maneiras possíveis de torturas
eram utilizadas para forçar as vítimas a "confissões", e Quando a revolução industrial começou a transfor-
milhares de pessoas foram torturadas, mutiladas e mor- mar os países de feudais em industriais, as persegui-
tas. Fato que exemplifica o nível da opressão anti-ho- ções histéricas contra a mulher e o homossexual haviam
mossexual na Idade Média, é o caso da palavra fagget, diminuído. Mas se a histeria diminuiu, o preconceito
que originariamente queria dizer lenha para fogueira, tornou-se parte integrante da sociedade. Os cultos reli-
tornando-se, depois, termo pejorativo para homossexu- giosos sexuais dos camponeses foram em grande parte
al, assim como "bicha" ou "viado". Na execução de bru- eliminados. A subjugação da mulher não era questiona-
xas, que eram em grande parte provavelmente lésbicas, da. O cristianismo patriarcal era o rei.
ou pelo menos, mulheres que recusaram a dominação A grande revolução burguesa na França, no fim do
do homem, as autoridades usaram homossexuais como século 18, eliminou os resquícios do poder feudal na so-
parte da lenha da fogueira. ciedade francesa. A revolução era uma ruptura radical
A Igreja medieval, junto com a classe feudal domi- com o passado. No novo código legal, chamado Código
nante, levou a perseguição aos homossexuais a um nível de Napoleão, atos homossexuais foram excluídos da lis-
histérico, estabelecendo atitudes e práticas existentes ta de ofensas, sendo que a maioria das nações européias
até hoje. Deveu-se essa perseguição ao fato da amea- seguiram este código nas décadas seguintes; Grã-Breta-
ça que homossexuais e mulheres, persistindo em suas nha, Alemanha e Estados Unidos, porém, mantiveram
práticas religiosas nitidamente matriarcais, representa- as velhas leis reacionárias.
vam ao catolicismo e à nova ordem social (patriarcal). A diminuição da histeria anti-homossexual era o
E importante observar que nem todas as milhares de reconhecimento da jovem burguesia democrática aos
pessoas condenadas e executadas por práticas homosse- direitos sexuais burgueses. Na prática, a opressão sexu-
xuais, eram realmente "culpadas". Esses bodes expiató- al continuava para as grandes massas. Todos os países
rios eram convenientes, pois desviavam a frustração das capitalistas perpetuaram a opressão anti-homossexual,
massas exploradas pelo sistema feudal. com ou sem a ajuda da lei, assim como perpetuaram a

48 4')
Hlro Ok/ta Homossexualidade: da opressão à libertação

opressão e a exploração da mulher, dos povos não-bran- responsabilidade produtiva é visto com austeridade e
cos, dos membros das nacionalidades oprimidas e da suspeita. Na verdade, o comportamento homossexual
classe operária em geral. O comportamento homosse- nunca constituiu uma grande ameaça à reprodução. Na
xual continuou ameaçando o funcionamento da famí- sociedade livre de restrições sexuais, a homossexuali-
lia patriarcal, de tal maneira que teve que ser regulado, dade existia inter-relacionada com o heterossexualismo.
perseguido, e em alguns casos, eliminado. Na sociedade patriarcal, com a reprodução dentro da
A homossexualidade entra em conflito com a família, família tornando-se uma obrigação social, a homossexu-
que é o que sustenta e serve de base para o sistema ca- alidade, sendo um elemento imprevisível e não repro-
pitalista de reprodução de mão-de-obra barata. As fun- dutivo, é considerada anti-social.
ções essenciais desta instituição, com as quais a homos- • A família como instrumento de imposição da ide-
sexualidade entra em choque, seriam as seguintes: ologia correta aos filhos. E na família que os primeiros
• A família como base para a transferência da heran- papéis sexuais são rigidamente delineados e com isso, a
ça na sociedade patriarcal e para manutenção da linha- correta atitude de submissão à autoridade dos patriarcas,
gem familiar, impõe virgindade e monogamia à mulher, por parte das mulheres e dos filhos. A família patriarcal
para que o pai tenha certeza de que os herdeiros são é composta de modo a evitar a livre expressão da sexu-
filhos dele. Perspectivas de herança também amarram alidade. E uma instituição heterossexual, e assim, tenta
os filhos aos pais, e dispõe-nos a aceitar a autoridade oprimir todos os impulsos homossexuais dos seus mem-
paterna, o que aumenta a autoridade do pai sobre toda bros. E uma camisa-de-força heterossexual que oprime
a família. qualquer comportamento que fuja às suas normas.
• A família como base de reprodução para fornecer
uma força de trabalho e soldados, tanto como reserva de
força de trabalho, composta pela mulher. O casamento
se torna uma obrigação na qual a linhagem dos ascen-
dentes tem que ser perpetuada. Se a mulher casa-se
com o objetivo da reprodução, o homem que evita sua

50 51
ALEMANHA

Em fins de 1860, a Federação Alemã do Norte re-


digiu um novo Código Penal, no qual declarava que os
atos homossexuais (entre homens) eram delitos. Essa
disposição entrou em vigor em 1871 e ficou conhecido
como Parágrafo 175 do Código Penal do II Reich (im-
pério). Ainda que os legisladores alemães mostrassem
uma atitude muito despreocupada ao legalizar a opres-
são sobre os homossexuais, estes, porém, os advertiram
imediatamente.
Em 1869, um médico húngaro chamado Benkert
(que usava o pseudônimo de K. M. Kertbeny) escreveu
uma prolixa carta ao ministro da Justiça, descrevendo a
história do exame racional da homossexualidade e argu-
mentando que o Estado não tem porque meter o nariz

53
Homossexualidade: da opressão à libertação
Hiro Okita

nos dormitórios de seus cidadãos. Foi Benkert quem mossexuais, refletidos na carta aberta de Benkert, tar-
cunhou o termo homossexual para designar relações se- daram quase um quarto de século para darem frutos.
xuais entre pessoas de um mesmo sexo. Em 1897, formou-se na Alemanha a primeira orga-
A carta aberta de Benkert refletia sua indignação nização em favor da libertação homossexual. Seu fun-
contra o fanatismo, a ignorância e a intolerância, em dador e guia durante a maior parte dos seus 35 anos de
uma atitude que podemos facilmente associar à militân- existência foi o Dr. Magnus Hirschfeld. Os objetivos do
cia contemporânea do movimento homossexual. Nesse Comitê eram:
momento, o estado de Hanôver havia modificado sua • Ganhar os corpos legislativos para que apoiassem a
legislação colocando as relações homossexuais no mes- petição de abolir o Parágrafo anti-homossexual 175;
mo nível legal das heterossexuais, cujo esboço da lei • Trazer a público a verdade sobre a homossexuali-
foi feito por Benkert em 1840, quando foi ministro da dade.
Justiça. • Interessar os próprios homossexuais na luta em fa-
Benkert advertia que a aplicação do Parágrafo 175 em vor de seus direitos.
nível nacional era um perigoso sintoma de que o relógio De acordo com esses objetivos, o Comitê levou a
da História começava a retroceder. Essa preocupação cabo diversas atividades: organizou regulamente reu-
não surgia do vazio, pois durante o ano de 1860 havia niões públicas sobre a homossexualidade; mandou seus
começado um interesse científico pelo comportamento representantes proferirem conferências, inclusive em
homossexual, e, como raízes do movimento homosse- organismos internacionais; enviou exemplares de sua
xual, os primeiros esforços para desenvolver uma com- publicação e outros textos de interesse aos organismos
preensão racional da homossexualidade na Alemanha. governamentais que estudavam as revisões dos códigos
As duas últimas décadas do século 19 presenciaram penais (Rússia e Suíça, por exemplo) e às bibliotecas
uma grande proliferação de obras literárias e científicas públicas.
que tratavam da homossexualidade, especialmente na Porém, o foco ativista do Comitê durante mais de
Inglaterra e Alemanha. Realmente, os esperançosos duas décadas foi a campanha em prol da abolição do
inícios de um movimento em favor dos direitos dos ho- Parágrafo 175 (abolição da condição criminal de atos

54 55
Hiro Okita Homossexualidade: da opressão â libertação

homossexuais, exceto nos casos que houvesse sido em- A 8 de março de 1922, a petição foi apresentada ao
pregado força, se produzissem "moléstias públicas" ou Reichseag (parlamento alemão), depois de 25 anos de
quando tivessem lugar entre um adulto e um menor de seu início. Em dezembro desse ano, o Reichseag devol-
16 anos). veu-a ao Governo, para um novo exame. Aí ficou estan-
O propósito da campanha era reunir o maior núme- cada, pois em 1923 o caos econômico e social do pós-I
ro possível de assinaturas de personalidades políticas, Guerra chegou a tal extremo que a existência do Co-
artísticas, científicas e médicas para uma petição que mitê viu-se seriamente ameaçada e seus esforços foram
reinvidicava a abolição da condição criminal dos atos eclipsados. Este famigerado parágrafo ainda existe no
homossexuais. Os partidários dessa petição sublinha- Código Penal alemão, apesar de ter sido modificado em
vam, entre outros pontos, a injustiça da lei, que poderia 1969 - cem anos depois da carta aberta de Benkert.
fazer com que milhares de cidadãos caíssem em mãos O Comitê teve suas atividades paralisadas pelo na-
de chantagistas e extorsionistas e que ao invés de liber- zismo em 1933.
tar o homossexual da sua inofensiva inclinação os jogava
nos braços do desespero, e freqüentemente os levava ao Participação da socialdemocracia
suicídio.
Essa campanha, que tinha absoluta prioridade para Desde o princípio, o Comitê gozou de eminentes
o Comitê, tomou grande impulso depois da I Guerra partidários, que apoiavam a causa homossexual. A 13
Mundial (1914-1918), quando se uniram à Amizade Ale- de janeiro de 1898, seu primeiro partidário importante
mã e à Comunidade dos Especiais outros grupos de li- tomou a palavra no Reichseag para defender a emen-
beração homossexual. Mais de seis mil personalidades da ao Parágrafo 175. Tratava-se do grande líder social-
assinaram a lista, entre eles: Hermann Hesse, George democrata August Bebei. Ridicularizando a condução
Grosz, Karl Kautsky, Albert Einstein, Heinrich Mann, burguesa que o governo havia dado ao assunto, Bebei
Rainer Maria Rilke, Stefan Zweig. Recebeu o apoio es- indicou que: "o número dessas trinta pessoas (homos-
pontâneo de inúmeras personalidades de renome, como sexuais) é tão grande e perpassa tão profundamente to-
Zola e Tolstói. dos os círculos sociais, desde o mais acarpetado ao mais

56 57
Homossexualidade: da opressão à libertação
Hiro Okita

mísero, que, se a polícia levasse a cabo seu dever como dade, comunidade, mutualidade e maior desenvolvi-
assinala a lei, o Estado prussiano ver-se-ia imediatamen- mento da sociedade para formar um corpo unificado.
te obrigado a construir novas penitenciárias, para alojar Um por todos e todos por um! Mas queremos ainda
aqueles que haviam infringido o Parágrafo 175, somente uma terceira coisa: a comunidade dos povos, a luta
dentro de Berlim". contra o racismo e o chauvinismo nacionalista, a abo-
O jornal socialdemocrata Vorwärts descreveu proli- lição das limitações sobre os intercâmbios econômi-
xamente uma reunião realizada em 10 de fevereiro de cos e pessoais entre os povos, o direito dos povos à
1911, em Berlim, contra a tentativa de incluir o relacio- auto-determinação sobre a qual deve ser sua relação
namento entre mulheres como delito. Grupos socialde- com o Estado e sua forma de governo. Queremos tri-
mocratas participavam ativamente dessas reuniões. bunais populares e um parlamento mundial. A partir
de agora, já não devemos dizer "proletários de todos
A revolução alemã de 1918 deu ao movimento ho-
os países, uni-vos!", mas sim "Cidadãos do mundo,
mossexual renovadas esperanças, pois desde o início
uni-vos!".
desse levante o Comitê em peso apoiava a nova repú-
blica. Um exemplo dessa atitude foi o discurso pronun-
ciado por Hirschfeld diante uma concentração massiva, Repressão nazista
em Berlim, em pleno clímax da revolução, a 10 de no-
vembro. Essa concentração realizada em frente ao edi- Em julho de 1919, o Comitê Científico e Humanitário
fício do Reichstag ío\ convocada pela organização Nova instalou seus escritórios no palacete inaugurado nesse
Liga Patriótica e dela participavam de três a quatro mil dia pelo Instituto de Ciência Sexual, que foi um arquivo
pessoas. Seu discurso foi proferido enquanto o Exérci- de todo tipo de documentação e dados biológicos, antro-
to Vermelho atacava, não longe dali, os partidários do pológicos, estatísticos e etnológicos relacionados com a
kaiser. Como conclusão disse: sexologia. Converteu-se em uma espécie de universi-
dade para tudo o que fosse relacionado com a ciência
Além de um verdadeiro Estado do povo, de estrutura
sexual. Foi o primeiro instituto desse tipo existente no
genuinamente democrática, queremos também uma
mundo. Era não só o centro da ciência sexual, como
república socialista. E socialismo significa: solidarie-

59
58
Hiro Okita Homossexualidade: da opressão à libertação

também, o centro do movimento homossexual de liber- Às 9:30 da manhã alguns caminhões estacionaram em
tação. As consultas médicas eram gratuitas e as confe- frente ao Instituto. Neles estavam algumas centenas
rências dos especialistas eram abertas ao público. de estudantes e uma banda de música. Formaram
Entre as várias delegações internacionais que o vi- militarmente em frente ao Instituto... Pelas impre-
sitaram, em 21 de janeiro de 1923, uma foi a russa, em cações usadas, Ficou claro que os estudantes conhe-
cuja direção estava o Comissário do Povo para a Saú- ciam muito bem os nomes dos autores dos livros que
de. Durante 14 anos, funcionou o Instituto que, pela Figuravam na biblioteca especial.
sua grande obra de investigação, arquivos e bibliotecas,
recebeu um reconhecimento internacional. Sua curta Poucos dias depois todos os livros e fotografias, junto
existência deveu-se ao auge do nazismo. com grande número de outras obras, foram queimadas
Já em 1920 a onda do fascismo e anti-semitismo publicamente. Aí foram destruídos mais de dez mil vo-
provocava incidentes, como o de 4 de outubro, quando lumes da especializada biblioteca do Instituto. Entre
Hirschfeld foi atacado durante uma palestra, sem que 1933 e 1935, o movimento homossexual, continuou sen-
a polícia fizesse nada para deter tal infâmia. Em 1921, do brutalmente exterminado tanto pelos fascistas, como
foi atacado pelos anti-semitas, e deixado como morto na pelos stalinistas.
rua, escapando do ataque com uma fratura de crânio. Mais de cem mil homossexuais foram exterminados
Em 1923, durante uma reunião realizada em Viena, a nos campos de concentração pelos nazistas. Eles eram
juventude nazista o atacou, primeiro lançando bombas diferenciados dos outros cativos por serem obrigados a
de efeito moral e depois abrindo fogo, ferindo inúmeras usar uma estrela cor-de-rosa na roupa, enquanto que os
pessoas. socialistas e comunistas usavam uma estrela vermelha e
A 6 de maio de 1933, um periódico de Berlim anun- os judeus uma amarela.
ciou que as bibliotecas da cidade iriam ser depuradas de
todos os livros "pouco alemães", a começar pelo Institu-
to de Ciência Sexual. Eis a descrição de uma testemu-
nha ocular:

60 61
U R S S E CUBA

Em dezembro de 1917, o governo bolchevique acabou


com todas as leis que condenavam os atos homossexuais.
Esta ação - junto com outras destinadas a estender a re-
volução sexual - foi considerada como parte integrante
da revolução social. As transcendentais reformas concer-
nente a assuntos sexuais, o resultado imediato da revo-
lução russa, abriram caminho a uma nova atmosfera de
liberdade sexual. Essa atmosfera, que deu grande ímpe-
to ao movimento de reforma sexual na Europa ociden-
tal e nos Estados Unidos, foi conscientemente ampliada
para que incluísse a homossexualidade; "era necessário
abolir as barreiras que separavam os homossexuais da
sociedade", explicou Wilhelm Reich. Essa atitude era,
no geral, compartilhada pela população. A atitude sovi-
Hiro Okita Homossexualidade: da opressão à libertação

ética oficial, sob os bolcheviques, era a de que a homos- ou coação e geralmente quando se ferem ou lesem os
sexualidade não fazia dano a ninguém e que, em todo direitos de outra pessoa, existe motivo de persegui-
caso, era um problema científico, não legal. ção criminal.
O ponto de vista bolchevique está refletido num
panfleto escrito pelo Dr. Grigory Batkis, diretor do Ins- A primeira edição da Grande Enciclopédia Soviética,
tituto Moscovita de Higiene Social, que dizia em sua publicada em 1930, dizia a respeito dos homossexuais:
introdução: "nos países avançados capitalistas, a luta pela abolição de
A atual legislação sexual da União Soviética é obra da leis hipócritas está em plena ebulição [...] a lei soviética
Revolução de Outubro. Esta revolução é importante não considera 'delito' contra a moralidade". Porém, em
não somente como fenômeno político que garante o 1971, na terceira edição da Grande Enciclopédia, ela diz
governo político da classe trabalhadora, mas também somente: "Homossexualidade é uma perversão sexual
porque as revoluções que emanam desta classe che- consistente em uma atração anti-natural entre pessoas
gam a todos os setores da vida... do mesmo sexo. Ocorre em pessoas de ambos os sexos.
Os estatutos penais da URSS, dos países socialistas e
Declara a absoluta não-interferência do Estado e inclusive Estados burgueses castigam a homossexuali-
da sociedade nos assuntos sexuais, sempre que não dade". As coisas mudaram bastante!
lese a pessoa alguma e não prejudique interesses de A União Soviética enviou delegados aos congressos
ninguém. internacionais da Liga Mundial para a Reforma Sexual
A respeito da homossexualidade, sodomia e outras de Berlim (1921), Copenhague (1928), Londres (1929) e
várias formas de gratificação sexual, que na legislação Viena (1930). Um quinto congresso, que originalmente
européia são qualificadas de ofensas à moral pública, deveria celebrar-se em Moscou, tendo como tema nú-
a legislação soviética as considera exatamente igual mero um de sua agenda "O Marxismo e os problemas
qualquer outra forma da chamada relação "natural". sexuais", aconteceu em Brno, na ex-Tchecoslováquia,
Qualquer forma de relacionamento sexual é um as- em 1932.
sunto privado. Somente quando séemprega a força Já no Congresso de 1928 começaram os indícios das

64 65
Hiro Okita Homossexualidade: da opressão à libertação

mudanças que se avizinhavam. Ainda que acentuando a baseado principalmente numa economia agrícola com
legalidade dos atos homossexuais e do aborto, o delega- resquícios fortes do feudalismo, vinha de um período de
do naquele congresso, Dr. Nikolai Pasche-Oserski tam- guerra civil que enfraqueceu consideravelmente a classe
bém antecipou a reforma legal que estava em projeto, já operária. A visão stalinista diante desta necessidade de
nessa ocasião considerando a homossexualidade como desenvolvimento não passava por levar a revolução para
"perigo social" em potencial e o aborto como algo ruim. fora da URSS, como forma de acabar com o capitalismo
No congresso de 1929 já não mencionaram nada sobre e a pressão que sempre exerceu sobre a URSS, nem ga-
homossexualidade. rantir o desenvolvimento da revolução de seu país atra-
vés do socialismo mundial. Ao contrário disto, Stalin
Contra-revolução stalinista sempre defendeu que era possível desenvolver a URSS
independentemente das pressões e dependências eco-
Esta posição negava todo o processo de avanço que nômicas e políticas com o resto do mundo capitalista.
a Revolução de Outubro garantiu, no que se referia à Esta política só pôde ser levada a cabo através de um li-
questão sexual. No entanto, não está desligada de ou- mite total da democracia operária conseguida até então,
tras vitórias que a classe operária conquistou com a Re- reprimindo politicamente qualquer tipo de organização
volução e que se foram perdendo, como por exemplo: o operária, que questionasse suas condições de vida; e fa-
poder dos conselhos operários, a falta de liberdade de zendo acordos com o imperialismo através de divisão de
expressão e organização política e social, o direito das áreas de influência, acordos econômicos etc. Isso levou,
mulheres ao aborto etc. em última instância, a tirar o poder da classe operária,
Tudo isto fez parte de um mesmo processo, a buro- exercido através dos seus conselhos, os sovietes, e tomá-
cratização do primeiro Estado operário, e a origem dele lo para si, instaurando uma burocracia com a polícia se-
está na visão política que Stalin tinha para conduzir a creta como seu braço direito.
revolução. A partir daí, todo espaço que havia sido conquistado
A URSS vivia neste período um processo de reestru- para organização dos jovens, em defesa de novas formas
turação, visto que, além de ser um país bastante pobre, de livre associação para discussão da sua sexualidade

66 67
Hiro Okita Homossexualidade: da opressão à libertação

passou a ser reprimido. O stalinismo, para se consoli- dos a vários anos de prisão e exílio siberiano. Isso pro-
dar, também foi forçado a construir uma ideologia que duziu uma onda de pânico entre os homossexuais, que
recuperava os elementos mais atrasados da cultura cam- foi seguida de numerosos suicídios, inclusive no próprio
ponesa, tais como a preservação da família, a opressão Exército Vermelho.
das mulheres e de todas as manifestações de liberalismo Em março de 1934, foi promulgada uma lei federal,
sexual. Isso não é estranho à necessidade da burocracia com a intervenção pessoal de Stalin, que condenava a
emergente de se apoiar no campesinato para levar adian- oito anos de cadeia os atos homossexuais, e cinco anos
te a contra-revolução burocrática. os atos de consentimento mútuo. Todas as repúblicas
Com relação à homossexualidade, já em 1929 o stali- soviéticas tiveram que inserir em seus códigos esse es-
nismo havia começado a desenvolver urna mitologia so- tatuto, sem poderem modificá-lo. Com isso fica mais
bre a "homossexualidade como produto da decadência claro ainda a traição stalinista aos princípios da revolu-
do setor burguês da sociedade e como resultado da 'per- ção, e que indiretamente fortalece a família patriarcal
versão fascista'", a que os fascistas (e nazistas) responde- tradicional.
ram qualificando qualquer desvio da pureza moral que A imprensa soviética empreendeu uma campanha
glorificavam como "bolchevismo sexual". Os stalinistas contra a homossexualidade como sintoma da "degene-
pregavam as excelências da "decência proletária" e co- ração da burguesia fascista". Uma das vozes que mais se
meçaram a purgar o partido. As discriminações, a vigi- elevaram nessa campanha foi a de Máximo Gorki, que
lância e a denúncia de homossexuais tiveram início. Em nessa mesma época também prestou seu entusiástico
alguns casos, velhos bolcheviques como Clara Zetkin apoio ao conceito reacionário, adocicado e insípido do
intervieram e conseguiram a absolvição dos companhei- "realismo socialista".
ros. Em janeiro de 1934, produziram-se em Moscou, Na Alemanha, existe um lema que diz: "erradicando
Leningrado, Kharkov e Odessa detenções massivas de os homossexuais, desaparece o fascismo". A bem da ver-
homossexuais. Entre eles figuravam grande número dade, em junho de 1934, somente três meses depois de
de atores, músicos e outros artistas. Foram acusados de Stalin promulgar o estatuto acima referido, Hitler elimi-
participarem de "orgias homossexuais",, sendo condena- nava todos os dirigentes da S.A., empregando argumen-

68 69
Hiro Okita Homossexualidade: da opressão à libertação

tos muito similares ao da perseguição anti-homossexual retamente na Revolução, pois sabiam que não seriam
na Rússia. aceitos, foram chamados de "alienados, decadentes e
contra-revolucionários".
Cuba Essa discriminação diminuiu somente depois de
uma intensa campanha internacional, que contou, entre
Nos Estados operários formados após a URSS as outros intelectuais, com Sartre, entre 1965 e 1967. Em
atitudes anti-homossexuais já existentes combinaram- 1971, no I Congresso Nacional de Educação e Cultu-
se com toda a ideologia stalinista, resultando disso uma ra, foi afirmado o "caráter patológico social dos desvios
repressão generalizada contra os homossexuais. Em- homossexuais". Resolveu-se que todas as manifestações
bora o ato homossexual não seja ilegal em vários Esta- ou desvios sexuais teriam que ser duramente rejeitados
dos operários da Europa oriental, eles sofrem o mesmo e sua expansão, freada. E assim, foram proibidos (os ho-
tipo de discriminação que os homossexuais dos países mossexuais) de entrarem no PC, além de se proceder
capitalistas. uma limpeza em todos os organismos, não permitindo
A Revolução cubana (1959), por sofrer a influência que fossem professores, para evitar seu contato com a
direta do stalinismo, considera a homossexualidade juventude. Fortaleceu-se o sistema de educação mis-
como decadência burguesa, como resquícios do bordel ta. Não havia tolerância, nem com méritos artísticos. A
que o país foi sob a ditadura de Batista, ou seja, Cuba idéia da revolução era criar uma nova sociedade, sem
era o paraíso dos cabarés e dos cassinos, para deleite homossexualismo, não só através das leis, mas também
dos turistas. Essa foi a justificativa da repressão anti- com a educação e a cultura. Então, a homossexualida-
homossexual, que teve como primeira medida concreta de acabaria se a juventude não tivesse nenhum contato
sob o governo revolucionário mandá-los ao campo para com qualquer homossexual conhecido.
trabalharem nas "unidades militares para aumento de Na recente migração de milhares de cubanos para
produção". Forçando-os a isso, o governo acreditava que os Estados Unidos, havia centenas, senão milhares de
era uma forma de eliminar o comportamento anti-re- homossexuais que procuraram naquele país uma maior
volucionário deles. Aqueles que não se, envolveram di- margem de liberdade sexual e uma discriminação me-

70 71
h/iro Okita

nor do que aquela existente em Cuba, hoje burocratiza-


da. A Revolução cubana, em vez de garantir a liberdade
sexual para o homossexual, reprime-o. O fato de muitos
deles, que saíram de Cuba, tornarem-se inimigos do Es-
tado operário ou indiferentes ao socialismo, é culpa total
da burocracia stalinista cubana.
O único caminho para o fim da discriminação e
opressão contra o homossexual nos Estados operários é ESTADOS UNIDOS
a revolução política dos trabalhadores, restabelecendo
o seu poder na direção do Estado, derrubando a buro-
cracia stalinista instalada no poder, e garantindo a total
liberdade sexual, o fim da opressão sobre mulher e os Em 28 de julho de 1969, a polícia de New York. fez
homossexuais, e o direito à autodeterminação das mi- uma invasão rotineira num bar homossexual, chamado
norias étnicas. Stonewall Inn, forçando os fregueses a saírem às ruas.
Ao invés de fugir, eles, liderados por travestis, tranca-
ram os policiais no bar, incendiaram e atiraram pedras e
garrafas quando os policiais tentavam sair.
Houve quatro noites de confrontos violentos entre
a polícia e homossexuais nas ruas de New York. Par-
ticipantes desse movimento e outros homossexuais
logo formaram uma organização política que se chamou
Frente de Libertação Homossexual, que ultrapassou,
,era seus objetivos, os pequenos grupos de homossexu-
ais para direitos civis, organizados nos anos 1950, que
tentavam se proteger contra a histeria anti-homossexual

72 73
Hlro Okita Homossexualidade: da opressão à libertação

de McCarthy. No aniversário da rebelião de Stonewall, professores tomaram posição em favor dos direitos civis
dez mil homossexuais saíram às ruas protestando con- pró-homossexuais.
tra a discriminação e opressão, gritando o slogan: "ser A comissão para serviço civil do governo federal, re-
homossexual é bom". Essa passeata militante tinha im- verteu uma proibição de homossexuais em serviço pú-
plicações mundiais e centenas de organizações de ho- blico. Dezoito dos cinqüenta estados anularam as leis
mossexuais apareceram em todas as principais cidades sobre sodomia, incluindo o estado da Califórnia, que
e universidades dos Estados Unidos e Europa. aboliu uma lei de 103 anos que punia o comportamento
Inspirados nas lutas dos negros, mulheres, heróis homossexual com a prisão perpétua e em alguns casos
vietnamitas, o movimento tomou uma orientação alta- até com a castração.
mente política. Nos anos seguintes o movimento forçou Essa vitória dos direitos democráticos básicos dos ho-
várias mudanças na sociedade norte-americana. Força- mossexuais e as mudanças nas atitudes do público em
ram a Associação Americana de Psiquiatria a repensar geral são resultados de uma luta militante de centenas
sua classificação tradicional de homossexual como do- de milhares deles. Nos anos 1970, enfrentando crises
ente e ganhou cobertura ampla nas suas reivindicações econômicas mundiais, a classe dominante norte-ameri-
básicas: fim da discriminação no emprego, na habitação, cana começou ataques contra a classe operária em geral
fim dos ataques policiais contra a comunidade homosse- e especialmente contra as vitórias do movimento das
xual, pelos direitos dos professores etc. Em várias cida- mulheres, dos negros, de outras nacionalidades oprimi-
des, os governos municipais instituíram leis pelos direi- das nos Estados Unidos e também dos homossexuais.
tos civis dos homossexuais, proibindo a discriminação Com cortes de fundos massivos de creches públicas,
no emprego e na habitação. As lésbicas organizaram-se serviços sociais para os pobres, passos para trás nas leis
nacionalmente e conseguiram se defender dentro do sobre a legalização do aborto e uma decadência em geral
movimento pela libertação da mulher, quando durante no nível de vida da classe operária, surgiu um movimen-
certa época houve tentativas de expulsá-las, pois as mu- to racista, antimulher e anti-homossexual, encabeçado
lheres heterossexuais não queriam que a imagem femi- por fundamentalistas religiosos, que escolheram esses
nista incluísse a lésbica. Os dois sindicatos nacionais de dois setores como alvo. Esses movimentos de libertação

74 75
Hiro Okita Homossexualidade: da opressão à libertação

consideraram isto uma tentativa clara, por parte da clas- população homossexual crescente nos últimos vinte e
se dominante, de instigar uma histeria anti-homossexu- cinco anos. Seus moradores fogem do ambiente anti-
al que iria tornar-se o bode expiatório da classe operária, homossexual de outras partes dos Estados Unidos. Ali,
desviando-a de seu verdadeiro inimigo. eles têm uma relativa liberdade. Hoje são estimados em
Depois da derrota de uma lei em 1977 sobre os direi- 20% a 25% dos habitantes e são bastante organizados,
tos civis dos homossexuais em Miami, Flórida, cente- pois têm serviços sociais e médicos exclusivos e inúme-
nas de milhares de homossexuais se mobilizaram contra ras organizações políticas, que conseguiram eleger um
essa ofensiva da direita. Em São Francisco, os homosse- vereador que defendia abertamente os direitos dos ho-
xuais, furiosos com o assassinato recente de um homos- mossexuais da cidade. A grande maioria dos políticos é
sexual por três adolescentes, saíram às ruas com mais de forçada a apelar à população homossexual para conse-
250 mil pessoas. Essa passeata foi a maior manifestação guir se eleger.
nos Estados Unidos, desde a famosa passeata de meio Em novembro de 1978, o ex-policial e ex-vereador
milhão contra a Guerra do Vietnã em Washington, em Dan White assassinou à queima-roupa o vereador ho-
1971. No ano seguinte (1978), porém, houve várias der- mossexual Harvey Milk e o próprio prefeito local, Geor-
rotas na legislação de direitos civis dos homossexuais. ge Moscone. Isso ocorreu durante uma crescente onda
Na Califórnia, um político da direita lançou uma cam- de violência anti-homossexual por parte dos policiais e
panha para adotar uma lei proibindo homossexuais, ou de bandos de adolescentes, que se divertiam surrando
os que os defendem, de ensinar nas escolas públicas. homossexuais anônimos nas ruas. Em maio de 1979,
Uma campanha massiva do movimento conseguiu explode a revolta desses mesmos homossexuais contra
neutralizar a direita, com o apoio de muitos líderes sin- a sentença dada a Dan White, considerada insultante:
dicais e entidades democráticas, e essa legislação foi apesar de todas as evidências ele recebeu a pena míni-
derrotada. ma de oito anos de prisão, com direito à liberdade con-
Porém, um novo ataque contra os homossexuais, em dicional depois de cinco anos. Mais de dez mil homos-
São Francisco, neste ano, impulsionou o movimento a sexuais reuniram-se em frente à Prefeitura e destruíram
novas atividades massivas. Esta cidade tem tido uma as janelas do edifício. Em seis horas de distúrbios e con-

76 77
Hiro Okita
Homossexualidade: da opressão à libertação

frontos com a polícia, havia um milhão de dólares em lésbicas e homossexuais masculinos como minas de vo-
prejuízos (imóveis públicos), muitos carros queimados, tos, sobretudo numa cidade como São Francisco.
119 pessoas feridas - das quais 59 eram policiais. Não há
O movimento homossexual nos Estados Unidos está
dúvida de que a rebelião é resultante tanto de um cres-
estruturado a partir de grupos autônomos que levam
cimento da consciência do oprimido quanto da violên-
uma política independente uns dos outros, mas que não
cia instituída. Aliás, durante os distúrbios, a polícia es-
se negam a fazer frente com outros setores, conforme
tava movida por algo mais que o mero cumprimento do
aconteceu em várias ocasiões.
dever, perseguia os homossexuais aos gritos de "Vamos
A visão minimizadora do sistema capitalista, que
recuperar a cidade", ou então invadia os bares homosse-
divide em grupos restritos as chamadas minorias, tem
xuais dando cacetadas e berrando "Fora daqui, viados,
nessa divisão sua maior arma, separando os oprimidos
filhos da puta". Por tudo isto, a revolta parece estar à
em grupos, atingindo-os como um todo, ao mesmo tem-
frente de seu tempo; deixa claro que os homossexuais
po em que lhes impede de ter claro, que, a exemplo do
não pretendiam perder o espaço que conquistaram até
opressor, a opressão é apenas uma.
aqui com suas lutas. A tendência será, portanto, uma
resposta cada vez mais à altura da repressão exercida Dentro dessa compreensão, fica evidente o sentido
pelo sistema - algo parecido à situação dos negros na das alianças entre os vários grupos oprimidos, inclusive
década anterior. a classe operária. Neste contexto, a luta dos homossexu-
ais tornou-se comum aos vários grupos contestadores da
Por outro lado, os homossexuais estadunidenses per- ordem social, assim como aos homossexuais ficou clara
cebem que, quanto mais se manifestam, mais cresce a a necessidade de encampar as lutas dos outros setores
repressão. O episódio da morte de Harvey Milk e de oprimidos. Assim aumenta a participação das organiza-
outros homossexuais menos conhecidos são muito sig- ções homossexuais nas lutas feministas, anti-racistas,
nificativos, em última análise, da filosofia "faça, mas antinucleares e no boicote contra governos ditatoriais.
não diga, senão apanha". Mesmo a participação direta
dos homossexuais na vida política estadunidense é uma
maneira de como o sistema "democrático" manipula as

78
79
BRASIL

Se existem problemas e repressão com os homosse-


xuais de outros países capitalistas, o homossexual brasi-
leiro vê agravada a sua situação de uma forma mais agu-
da, pelo fato de viver num país semi-colonial, que além
da discriminação e marginalização, leva-o a enfrentar a
crise econômica do país. Torna-se mais difícil escapar
à repressão familiar, devido às necessidades de sobre-
vivência e sustento familiar. Os guetos homossexuais
são cada vez mais reservados para a burguesia e para a
alta classe média, limitando as opções de vida da grande
maioria. Além disso, o machismo nos países semi-colo-
niais está super-enraizado na sociedade.
Na Constituição Brasileira e no Código Penal não
existe nenhum artigo que considere crime a prática ou a

81
Hiro Okita Homossexualidade: da opressão à libertação

divulgação da homossexualidade, portanto, a opressão e tiá-los. A repressão anti-homossexual é tão grande que
discriminação geralmente toma formas muito mais dis- nenhum dos cassados denunciou publicamente esses
cretas. Mesmo assim existem várias leis que são utiliza- fatos, e com a anistia o assunto foi encerrado.
das para discriminar e reprimir a homossexualidade. As leis sobre "atentado ao pudor" estão sendo utili-
A Lei de Imprensa dá poderes ao governo de cen- zadas especificamente para justificar a prisão arbitrária
surar ou fechar jornais sob a justificativa de divulgar de homossexuais que ousam sair dos padrões de com-
matérias atentatórias à "moral e aos bons costumes", portamento estabelecidos pela sociedade machista e
um critério completamente vago e arbitrário. No ano de anti-homossexual.
1979, o governo tentou usar esta lei contra o jornal Lam-
pião de Esquina, como parte de sua campanha contra a No trabalho
imprensa alternativa.
O Exército brasileiro tem poderes para dispensar o Existe uma série de testes e entrevistas, feitas em
homossexual do serviço militar, e se utiliza de um có- grande parte por assessorias de "recursos humanos"
digo cifrado para caracterizar a homossexualidade como filiadas às multinacionais, que são utilizadas para de-
fator de dispensa ou expulsão de suas fileiras. Isto pode tectar a homossexualidade nas pessoas entrevistadas.
causar dificuldades futuras ao indivíduo na procura de As pessoas que conseguiram responder corretamente e
trabalho etc. passar pelos testes e entrevistas, enfrentam inumeráveis
A implementação do AI-5, mesmo não estando mais restrições e discriminações no trabalho. A maioria das
em vigor, indica como a ditadura militar usou suas leis empresas só promovem casados para os postos de deci-
para discriminar o homossexual. Dezenas de pessoas do são. O homossexual tende a isolar-se dos companheiros
governo deposto foram cassadas por serem homossexu- de trabalho para evitar a marginalização e o patrão tem
ais, sem nenhuma explicação naquela época. Durante a todo o direito de mandá-lo embora sem maiores expli-
discussão da anistia, o governo propôs criar para aquelas cações. Assim, é difícil apontar discriminação contra um
pessoas e outros cassados por alcoolismo uma categoria homossexual quando ele é despedido do seu emprego.
especial, de "depravados", e a partir da,í decidir anis- Porém, poderiam ser citados centenas de exemplos

82
83
Hlro Okita Homossexualidade: da opressão à libertação

de operários, bancários, professores etc. que perderam estão confinados em sua maioria, a vigilância e o ataque
seus empregos por serem homossexuais. da polícia são constantes. A travesti, que vive da pros-
tituição, sofre a repressão policial muito mais intensa-
Na saúde mente que a prostituta em geral. Nos períodos em que a
repressão recrudesce, como no Projeto Rondão do dele-
Homossexuais com problemas de saúde, ligado à gado Richetti em São Paulo no inverno de 1980, bastava
sua atividade sexual, enfrentam muitos problemas para encontrar um homossexual visível nas ruas para levá-lo
conseguir tratamento médico adequado que, ao mes- à prisão, ainda que apresentando documentos suficien-
mo tempo, respeitem-no. Eles/elas têm duas opções: tes para comprovação de "honestidade".
ou correr aos poucos médicos homossexuais assumidos, Dentro das prisões, o tratamento dispensado aos ho-
que cobram caro para atendê-los, ou usar clínicas públi- mossexuais é muito mais repressivo que o dirigido aos
cas onde são vítimas do desrespeito e mau tratamento. demais detidos, que também passam a descarregar ne-
Antigamente, o código da Organização Mundial de les a revolta acumulada, através da violência física co-
Saúde considerava a homossexualidade como doença. A mum ou da violência sexual.
referência específica à homossexualidade foi retirada em Para toda essa violência, a polícia conta com o respal-
vários países depois de protestos do movimento homos- do da própria sociedade, já que ninguém está ligando se
sexual. Aqui no Brasil, ainda persiste esta referência no uma bicha ou sapatão está sendo preso na rua, apanhan-
código. Uma pessoa que usa INPS, por exemplo, pode do de um policial, ou sendo agredido por "populares".
ser codificado "doente" com implicações nas fichas para
trabalho, tratamento médico, documentos etc. Com os meios de comunicação

Repressão policial Na grande imprensa, a questão da homossexualida-


de está sempre ligada à criminalidade. Os jornais dedi-
A repressão policial tem no homossexual um dos cados ao noticiário policial, principalmente, colocam-se
seus alvos favoritos. Nos seus locais de freqüência, onde claramente anti-homossexuais, promovendo os crimes

84 85
Homossexualidade: da opressão à libertação
Hiro Okita

praticados por eles e usando uma linguagem desmorali- tão homossexual seriamente, sem apelos comerciais, es-
zante e agressiva ao se referir a estes casos. Jamais se lê tão metidos pela Censura.
uma manchete: "Heterossexual mata amante". Poucos
noticiam sobre os crimes praticados contra os homosse- Apontamentos da evolução no Brasil
xuais, que são sempre agredidos nas ruas, moral e fisi-
camente, fazendo aumentar mais ainda o desinteresse Pode-se dizer que o movimento homossexual não
dasociedade, a qual além de não dar a mínima atenção aconteceu no Brasil enquanto não aconteceram os
para estes fatos, recebe até com simpatia e humor essas movimentos de juventude, que a partir dos anos 1960
agressões. viriam questionar todos os valores da sociedade burgue-
Esta visão cômica dos homossexuais é muito promo- sa, como reflexo dos movimentos europeu e norte-ame-
vida pelos "fabricantes de cultura". No cinema, teatro, ricano, que pelo próprio caráter de suas contestações
TV, ele ou ela é sempre um sujeito estereotipado, cheio impulsionaram o movimento homossexual em nível
de trejeitos e melindres, sem outros sentimentos que mundial.
não seja sexo. E visto como algo que provoca risos e não O reflexo desse movimento mundial no Brasil foi a
uma pessoa como todas as outras, como um oprimido radicalização do movimento estudantil, que se tornaria
igual a todos. ponta de lança no enfrentamento com a ditadura.
Principalmente depois de 1968, a ditadura esme- Em nível cultural, toda essa mobilização vai se refle-
rou-se em retirar dos vídeos a figura dos homossexu- tir no surgimento do movimento tropicalista, que traz
ais, mesmo quando estereotipado. Na novela "Espelho para o campo das artes, e principalmente o da música,
Mágico", a travesti Rogéria foi proibida de continuar toda a gama de contestações ao sistema.
no elenco. Já na "Hora do Bolinha" pode-se até fazer As palavras de Caetano Veloso, "E proibido proibir",
concurso da "mais linda travesti" e os jornais de hoje não só refletiram todo conteúdo contestatório do movi-
trazem a estampa de um costureiro famoso vendendo mento estudantil, violentamente reprimido, como tam-
apartamento para "pessoas de classe". bém apontava uma revolta contra toda a rigidez moral
Alguns filmes que se propuseram a discutir a ques- da sociedade brasileira.

86 87
Hiro Okita Homossexualidade: da opressão à libertação

Todo espaço estava preparado para que surgisse o autores homossexuais, desencadeou o processo de mo-
movimento homossexual no Brasil. No entanto, todo o vimentação dos homossexuais.
aparato repressor desencadeado pelo sistema, como a Leyland recebeu mais notoriedade do que se espe-
censura, a lei de imprensa, o AI-5, a proibição de qual- rava por parte da grande imprensa, e a visita dele pro-
quer organização de cunho político, foram limitando vocou uma série de reuniões de um grupo de escritores,
esse espaço até abafá-lo. jornalistas e intelectuais, que resolvem editar o jornal
No entanto, durante a época do milagre brasileiro, Lampião da Esquina.
a juventude continuava solapando a moral rígida da Este jornal alternativo propõe-se a discutir, além da
sociedade brasileira, num questionamento dos valores questão homossexual, também o feminismo, a luta con-
impostos sobre sexualidade, casamento, família e modo tra o racismo e o movimento em defesa do índio.
de vida. Nesta época de "meia-abertura", a revista Isto é de-
A partir de 1975, com a crescente deteriorização do já dicava uma capa e extensa matéria ao tema do homos-
falido milagre, começa a abrir-se um espaço para apro- sexualismo, sendo por isso ameaçada de processo pela
fundamento dessas discussões e críticas do sistema. Lei de Imprensa; também o jornalista Celso Cury, do
O movimento homossexual, então, vai assumir o es- jornal Última Hora, por ter publicado em sua coluna
paço que lhe foi roubado pela repressão no fim dos anos várias matérias sobre homossexualismo, foi vítima da
1960. mesma Lei.
O primeiro passo é dado em 1976 por um grupo de Por esta ocasião, o governo pretendia acabar com
homossexuais masculinos, em São Paulo, que tenta se toda a imprensa alternativa, por vias indiretas, ou seja,
organizar para discutir sua sexualidade e reagir à repres- pela fiscalização e pressão. Dentre as publicações indi-
são ao homossexual. Esse grupo não conseguiu avançar, cadas no relatório do Centro de Inteligência do Exérci-
desfazendo-se pouco depois. to, como alvo deste plano do governo, encontrava-se o
No fim de 1977, a vinda de Winston Leyland, edi- jornal Lampião, que segundo o relatório, dispunha-se "a
tor da revista americana Gay Sunshine, para coletar no defender as atitudes homossexuais como atos normais
Brasil e no resto da América Latina material literário de da vida humana" (!). O governo abriu inquérito contra

88 89
Hiro Okita
Homossexualidade: da opressão à libertação

os editores do jornal, baseado na Lei de Imprensa, ale- proletário, colocou-se contra a mobilização do próprio
gando um "atentado à moral e aos bons costumes". movimento homossexual, criticando setores e grupos
Ao mesmo tempo em que o Lampião surgia, come- mais ativos do movimento, acabando por fazê-lo retro-
çaram a aparecer grupos homossexuais baseados na ceder no seu ascenso, dividindo os grupos e boicotando
experiência vivencial de seus integrantes, como por informes da luta).
exemplo, o grupo que se autodenominava Núcleo de O ano de 1979 marcou a participação das mulheres
Ação pelos Direitos do Homossexual, que através da no grupo Somos, que passaram a se organizar dentro do
consciência individual procurava criar uma identidade grupo, enfrentando barreiras de machismo entre os ho-
enquanto grupo de homossexuais. mossexuais masculinos. A discussão surgida em torno
Além de discussões internas sobre homossexua- da questão do machismo levou as lésbicas a organiza-
lidade, o grupo fez uma denúncia do jornal Notícias rem-se com uma semi-autonomia dentro do grupo, para
Populares, órgão reconhecidamente anti-homossexual poderem colocar as suas questões específicas. Surge,
dentro da imprensa paulista. No começo de 1979, com então, dentro do Somos, o grupo Lésbico-feminista,
o nome "Somos - Grupo de Afirmação Homossexual", que vai desenvolver todo um trabalho com o movimen-
participava de debates na USP sobre "mostras", que to feminista e que em maio de 1980 se desligaria da
estimulariam a formação de outros grupos na Grande totalidade do grupo.
São Paulo.
A primeira participação do Somos em mobilizações,
O Grupo Somos cresce muito neste período, e uma como grupo de homossexuais, foi no 20 de novembro
das primeiras atividades externas foi a formação de um de 1979, na comemoração do Dia de Zumbi, promovida
comitê em defesa do jornal Lampião, quando do proces- pelo Movimento Negro Unificado, quando portou uma
so que este sofria pelos órgãos de segurança. O Somos faixa contra a discriminação racial, assinada "Somos -
fez circular um abaixo-assinado nos meios artísticos e Grupo de Afirmação Homossexual".
intelectuais pela causa do jornal (o mesmo jornal que Em fins de 1979, há três grupos em São Paulo e co-
três anos depois de sua criação, distante das feminis- meçam a surgir grupos no Rio e em outras cidades. O
tas, do negro, do movimento em defesa 'do índio e do Lampião chama, então, estes grupos ao Rio de Janeiro,

90
91
Hiro Okita Homossexualidade: da opressão à libertação

para organizarem o I Encontro Brasileiro de Grupos Ho- em relação à reação dos operários a essa atuação inédita
mossexuais, que seria realizado em São Paulo, durante a na história do país, mas quando os cinqüenta homosse-
Semana Santa de 1980. xuais (homens e mulheres) entraram no Estádio de Vila
O I Encontro foi fechado aos grupos nos dois primei- Euclides, a reação dos cem mil operários ali reunidos
ros dias, tendo no terceiro dia uma plenária aberta ao foi das mais inesperadas. Aplaudiram vivamente o gru-
público, com mais de 800 participantes. po que portava duas faixas: "Contra a intervenção nos
Na abertura da plenária, foi lida uma moção de apoio sindicatos" e "Contra a discriminação do trabalhadora)
aos metalúrgicos do ABC, em plena greve, tendo sido homossexual".
muito aplaudida. Enquanto isso, os membros do Somos que se opu-
A discussão da relação do movimento homossexual seram à participação no ABC faziam um piquenique no
com outros setores oprimidos e explorados, ocupou Zoológico.
grande parte dos dois dias anteriores, e acabaria por A polarização do grupo não se restringiu às discus-
tumultuar a plenária diversas vezes. Uma proposta de sões sobre o Primeiro de Maio. Nas reuniões que se se-
participação no Primeiro de Maio foi levada à votação, guiram, deu-se início a uma verdadeira "caça às bruxas",
perdendo por um voto. Foi um divisor de águas dentro dirigida a certos ativistas acusados de serem membros
do movimento homossexual, enquanto questionava os da Convergência Socialista, que teriam se infiltrado no
rumos que o movimento tomaria. grupo para levar o movimento homossexual a lutas que
Logo depois do Encontro a discussão sobre a parti- nada tinham a ver com a questão homossexual.
cipação no Primeiro de Maio polarizou o Grupo Somos, Os elementos do Somos que sustentavam as acusa-
que não conseguiu chegar a um consenso sobre uma ções, ao invés de levarem uma discussão interna sobre a
atuação unitária no Dia do Trabalhador. Formou-se, questão, retiraram-se do grupo.
então, uma comissão de homossexuais pró-Primeiro de Em fins de maio de 1980, culminando numa sutil
Maio para organizar o primeiro contato do movimento campanha moralista na imprensa, é desencadeada em
homossexual com os trabalhadores do ABC. São Paulo a operação Rondão, encaminhada pelo delega-
Havia uma certa apreensão, por parte dos ativistas, do Wilson Richetti, que através de prisões arbitrárias im-

92 93
Hiro Okita Homossexualidade: da opressão à libertação

põe o terror ao gueto homossexual, prendendo travestis, lésbicas que ocorreu em São Paulo em novembro de
homossexuais, lésbicas, prostitutas e desempregados. 1980.
Os grupos, mesmo divididos pelas questões ideoló- Essa inatividade é reflexo, principalmente, das dife-
gicas, organizaram junto com o Movimento Negro Uni- renças ideológicas. Mas não significa, absolutamente, a
ficado e grupos feministas uma série de atividades con- estagnação. Prova disso foi o Encontro Regional, realiza-
tra a onda de repressão policial, culminando com um ato do na USP em abril de 1981, onde, superando essas dife-
público nas escadas do Teatro Municipal no dia 13 de renças, os grupos paulistas optaram pela unidade de ação,
junho. Quase quinhentas pessoas se acercaram do auto- atuando juntos contra a repressão e a discriminação.
falante ali instalado, saindo logo após numa passeata Nesse Encontro Regional, foi tirado um ato come-
pelas principais ruas do gueto homossexual masculino. morativo em 13 de junho, quando houve a mobilização
Gritando palavras de ordem como "Abaixo a repressão, contra Richetti e a repressão policial. Esta data está sen-
mais amor e mais tesão", a passeata foi engrossada no do proposta como Dia Nacional da Luta Homossexual.
caminho, terminando na boca do lixo com aproximada- No Nordeste, realizou-se também um encontro re-
mente mil pessoas. gional para discutir atividades em comum entre os vá-
Depois dessa manifestação contra a violência, o rios grupos que surgiram no último ano e meio.
Movimento Homossexual entrou num processo de de- As vésperas do Primeiro de Maio deste ano, formou-
saceleração, voltando-se para dentro, repensando suas se o grupo de militantes homossexuais construindo o
posições. Pode-se dizer que ele está entrando definiti- PT, Partido dos Trabalhadores, que, além de ter parti-
vamente na sua maturidade. cipado do Dia do Trabalhador no ABC, tem uma pro-
Três anos depois do início do movimento os grupos posta de levar a discussão da homossexualidade à classe
ainda parecem estar num processo de perplexidade trabalhadora, através do Partido dos Trabalhadores.
quanto aos rumos de atuação. Não chegaram a um acor- Esse projeto de trabalho dentro de um partido po-
do sobre o II Encontro Brasileiro de Grupos Homosse- lítico, proposto por militantes de vários grupos homos-
xuais, que deveria se realizar no Rio, em abril de 1981; sexuais, poderá abrir um novo espaço de atuação para
mal conseguiram uma resposta à onda de repressão às os homossexuais, num terreno privilegiado, por tratar-

94 95
Hiro Okita

se de um partido de trabalhadores - único setor social


cujos interesses coincidem com a necessidade de trans-
formação radical da sociedade, caminho da libertação
definitiva dos homossexuais.

PROBLEMAS E PERSPECTIVAS

A opressão aos homossexuais, apoiada por mais de


cinco mil anos na sociedade de classes, não será elimi-
nada facilmente. Quais são as perspectivas para acabar
com todas as atitudes anti-homossexuais e construir
uma sociedade sem opressores e oprimidos, sem explo-
radores e explorados?
A resposta, a princípio, é simples: só a transforma-
ção total da sociedade em seu conjunto, desde as suas
raízes, pode destruir a organização econômica e social
que permite que uma pequena parcela da população,
alguns empresários e generais, controlem e aproveitem
as riquezas produzidas pela humanidade.

96 97
Homossexualidade: da opressão à libertação
Hiro Okita

Agentes indiretos Agentes diretos

Mas não é somente isto, se a resposta fosse esta es- Quando a polícia prende o homossexual na rua, para
taríamos fabricando uma solução simplista. Além do do- ele, homossexual, o inimigo fica claro: trata-se da re-
mínio direto da repressão que esta pequena, mas forte, pressão do Estado. Mas muitos militantes do movimen-
classe têm sobre a sociedade, através de seu governo, to homossexual se recusam a reconhecer que por trás
exército e polícia, impondo seu modo de pensar, ela do policial que o empurra para o rabecão, está o próprio
conta ainda com seus serventes. regime.
Estes serventes se refletem em todo um sistema de O golpe de 1964, foi um dos fatores que impediu e
apoio na Igreja, na educação e na família, organizando reprimiu o aparecimento, há mais tempo, dos movimen-
a sociedade com sua ideologia moral, anti-sexual e anti- tos de reivindicação dos homossexuais por mais de uma
homossexual. década. Enquanto em outros países este movimento
A educação, a Igreja e a família exercem um papel surgiu na década de 1960, aqui no Brasil ele só apareceu
de agentes indiretos da repressão contra os homossexu- em fins de 1970. Até na Argentina houve uma tomada
ais. Ao governo e seus órgãos de segurança cabe o papel de consciência maior por esta questão, antes da dita-
de agente direto desta repressão. dura do general Videla. Depois, a ditadura argentina o
Na maioria das vezes, o homossexual sente sua mar- sufocou.
ginalização através destes agentes indiretos do sistema Por isso dizemos que as nossas reivindicações são de
capitalista, na moral anti-homossexual do padre; na re- caráter democrático também, mas não só isso. Como é
pressão ao sexo em geral por parte da família; onde na- que se pode acabar com a repressão policial sem des-
moro, casamento e filhos são as exigências "naturais" e mantelar todo o sistema repressivo pós-1964? Como
na ausência da educação sexual nas escolas. O autorita- se pode impedir a manipulação dos homossexuais, a
rismo do ensino em geral reprime qualquer manifesta- imagem negativa, nos meios de comunicação, se estes
ção da sexualidade. meios estão nas mãos de pessoas ligadas ao governo, ou
de multinacionais?

99
98
Hiro Okita Homossexualidade: da opressão à libertação

Discriminação trabalhista um pequeno número de pessoas, na maior parte da classe


média, e o pensamento dominante no movimento, e que
Não há condições de resolver a discriminação dos ho- gera muita confusão entre os participantes, é a visão de
mossexuais nos locais de trabalho sem resolver a ques- que todos nós, homossexuais, estamos unidos pela nos-
tão do desemprego, provocado pela crise econômica do sa opressão, que sofremos em comum. Portanto, deve-se
sistema. É claro que se o patrão está com a política de lutar para a nossa libertação sem olhar para as classes que
despedir seus trabalhadores, ele escolherá entre eles os nos separam, sem olhar para as lutas travadas por todos
chamados "agitadores", os que reivindicam seus direi- os trabalhadores oprimidos no Brasil, que são a maioria.
tos, e vai aproveitar para jogar para fora uma bicha ou Esta visão do movimento homossexual acredita que
sapatão, logo nas primeiras demissões. desde os homossexuais pobres que freqüentam a Av. São
Isto não quer dizer que não se deva lutar contra esta João até os que freqüentam a Boite Off em São Paulo,
opressão; ao contrário, cabe a cada um de nós estarmos desde os homossexuais que andam pela Ginelândia até
alertas, denunciar qualquer preconceito dentro dos lo- os que desfilam seus ricos trajes na Boite Sótão no Rio,
cais de trabalho, qualquer demissão motivada por isso. unidos, podem acabar com o machismo e conquistar seu
Mas é claro que o patrão usará da política do desempre- direito ao prazer.
go para botar para fora os homossexuais, dizendo que a Em resumo, o inimigo é o machismo, sua forma o
fábrica ou o escritório está em crise. autoritarismo, sua melhor manifestação a esquerda bra-
sileira, e o caminho para derrubar tudo isto a união dos
Classes e socialismo homossexuais, seja de que classe for.
Esquecem que as bichas e lésbicas dos lugares de eli-
A homossexualidade não é privilégio de nenhuma te de São Paulo ou de outra capital já conquistaram seu
classe social, mas a diferença é que um patrão homos- espaço, e a burguesia pouco se importa com quem eles
sexual tem interesses diferentes de um trabalhador dormem. Esta classe, os homossexuais ricos, têm lugar
homossexual. para onde levar uma trama, não dependem da família,
O movimento homossexual no Brasil é composto de não ficam presos (com poucas exceções) e tem uma

100 101
Hiro Okita Homossexualidade: da opressão à libertação

vida confortável entre seus íntimos círculos de amigos, E a classe trabalhadora é a única força social que
os bares e as viagens para a Europa ou São Francisco, pode cumprir esta tarefa. É a revolução socialista que
nos Estados Unidos. vai criar as verdadeiras condições para se desenvolver
A vida desta minoria privilegiada é à parte, longe da um processo cultural e sexual inteiramente aberto, livre
realidade da maioria que vive com a família, ganha pou- de repressões.
co, sonha com uma vida melhor e tem que agüentar o Com isso, não buscando o imobilismo, o movimento
sufoco da polícia. Para os homossexuais trabalhadores o homossexual deve, desde já, lutar contra todas as ma-
futuro é cada dia mais difícil. nifestações anti-homossexuais da sociedade. Mas todas
Isto não quer dizer que os homossexuais em seu elas, desde o fim da repressão policial até o fim da dis-
conjunto não devam se unir para as lutas específicas, criminação, só podem ser totalmente atendidas quando
ao contrário, esta união é necessária, mas sempre chega existir outro tipo de sociedade, igualitária, sem explo-
o dia em que a bicha rica terá interesses diferentes dos ração nem repressão. Por isso dizemos que esta luta é
trabalhadores. anti-capitalista, sem que com isso acreditemos que a
Outro aspecto é a união entre os trabalhadores ho- pura instauração do socialismo levará à libertação dos
mossexuais, o movimento homossexual em seu conjun- homossexuais. A revolução socialista é a única que cria-
to, as feministas e os negros em suas lutas específicas. rá o espaço para que esta luta seja vitoriosa.
Isto deve ocorrer, mas aí também está a divisão em
classes sociais diferentes, o que torna o problema mais Condições excepcionais brasileiras
similar com o nosso.
A luta por nossa libertação é dura e temos que exi- Abre-se neste momento no Brasil um fenômeno ex-
gir o nosso direito desde já, mas sabemos que somente cepcional: a organização da classe trabalhadora no seu
uma mudança da sociedade é que poderá levar esta luta próprio partido, o Partido dos Trabalhadores, sem a
para espaços maiores. Não há outra maneira de destruir participação dos patrões. E o primeiro passo no comba-
todas as forças que mantém a opressão. Ela passa pela te direto contra a classe dominante, em direção a uma
mudança da sociedade. sociedade dirigida por quem trabalha, o primeiro passo

102 103
Hiro Okita

em direção a uma sociedade sem diferenças de classe.


Neste processo o movimento homossexual tem que
estar ao lado da classe trabalhadora, conquistar seu di-
reito de lutar com o Partido dos Trabalhadores (PT),
discutindo e esclarecendo esta classe que também está
cheia de preconceitos, mas é a única disposta a superá-
los e combater o machismo, lutando contra o inimigo
em comum. UM P R O G R A M A PARA A LIBERTAÇÃO
O movimento trabalhador no Brasil ainda tem fortes
atitudes anti-homossexuais, herdadas da sociedade que
o explora dia a dia, e não será de um dia para outro que
se destruirá esta ideologia da classe dominante. Mas 1. Pelo direito de organização e expressão homossexual
este sem dúvida é o único caminho para a construção de a. Pelo direito de livre organização de grupos e jor-
uma nova sociedade. Uma sociedade socialista e anti- nais homossexuais
burocrática, onde a homossexualidade seja encarada b. Contra os ataques do governo e de grupos da direi-
como qualquer outra manifestação sexual. ta aos jornais homossexuais
c. Pelo fim da Lei de Imprensa, que entre outros ar-
tigos, consta o item da preservação da "moral e bons
costumes", usado para incriminar pessoas e jornais que
discutem a homossexualidade

2. Pelo fim da discriminação aos homossexuais


a. Por direitos iguais de admissão e promoção nos
locais de trabalho
b. Pelo direito de livre escolha de moradia

104 105
Hiro Okita Homossexualidade: da opressão à libertação

c. Pelo fim do código militar que classifica a homos- 5. Contra a exploração sobre os homossexuais
sexualidade como doença a. Contra a exploração econômica nos locais freqüen-
d. Pelo fim do teste de admissão ao trabalho com tados por homossexuais
orientação anti-homossexual b. Pelo fim do uso dos homossexuais como recurso
de venda
3. Pelo fim da ideologia anti-homossexual
a. Pelo fim da classificação psiquiátrica e médica que 6. Pelo apoio ao Partido dos Trabalhadores como pri-
considera a homossexualidade como "doença" meiro passo para o governo dos trabalhadores
b. Contra a divulgação e promoção do estereótipo
homossexual pelos órgãos de comunicação em geral 7. Por um governo dos trabalhadores que leve a um Bra-
c. Contra a relação promovida pelos jornais "poli- sil socialista
ciais" entre homossexualidade e criminalidade
d. Pela educação sexual nas escolas, incluindo dis- 8. Por um Brasil socialista onde todas as formas de ex-
cussões sobre a homossexualidade como uma das várias ploração e opressão sejam eliminadas
formas de gratificação sexual
e. Contra a condenação religiosa da homossexualida-
de como pecado ou "degradação da alma humana"

4. Pelo fim da repressão policial


a. Contra o controle policial aos locais freqüentados
por homossexuais
b. Contra a prisão de homossexuais pelo fato de se-
rem homossexuais
c. Pelo fim da perseguição policial aos homossexuais
e travestis '

106 107
PALAVRAS COM A I M P R E N S A
ALTERNATIVA

Fruto da "abertura" do governo, começa a se discutir


uma série de questões ligadas aos costumes.
A homossexualidade é parte capital deste debate
que se inicia.
Nas entrevistas que seguem, os jornais alternativos,
como representantes que são de correntes de pensa-
mento que arrastam atrás de si setores da população,
colocam suas posições, contribuindo assim para o acalo-
ramento das discussões.

Jornal A Hora do Povo

P: O que acha da homossexualidade?

109
Hiro Okita
Homossexualidade: da opressão à libertação

HP: Eu acho que é produto de uma série de meca- diz ser a homossexualidade "produto da decadência do
nismos de repressão que existem dentro da sociedade, capitalismo". Como você explica esta mudança?
que vão desde o Estado até a Família, que impedem HP: Não sei nada sobre estas leis. O que se verifica
que a criança dê vazão normal a seus impulsos sexuais, em todas as sociedades em decadência, no nazismo por
dê satisfação em relação à própria vida e faz com que exemplo é o surgimento, a reprodução da homossexua-
esses impulsos se desviem para outros objetos que não lidade nas classes dominantes. Aparece também nas ca-
os reais, à medida que considero que biologicamente o madas populares como produto do esmagamento que se
menino sinta atração pela menina e vice-versa. vive nestes períodos, muito maior que nos outros, que
P: Porque existe? E uma doença? se reflete nas condições de vida, na família.
HP: Acho que de acordo com este raciocínio, quan- O czarismo não tinha leis contra sua própria classe
do estes obstáculos à satisfação desses impulsos são dominante, onde pululavam homossexuais. Entendo
muito grandes, eles se voltam contra a própria pessoa, que a homossexualidade era produto das condições so-
ou tomam caminhos diversos. E justamente isso, uma ciais de antes da Revolução. Não seria por decreto que
forma de masturbação. É uma forma de realizar, fanta- as leis seriam abolidas. Seria necessário desenvolver
siosamente, um desejo que na verdade não se realiza, condições de educação. Acredito que estas mudanças
gerando outros problemas como frustrações, narcisismo, vieram no sentido de estabilizar a família, as relações
que são manifestações de homossexualismo. No fundo econômicas provenientes da Revolução, pois conti-
é uma doença, se doença é um desvio da natureza; uma nham uma certa anarquia, vinham de relações familia-
doença psicológica basicamente. res caóticas, gerando perturbações econômicas e é pre-
P: A Revolução bolchevique, de 1917, aboliu todas ciso lembrar que a partir de 1934, passando por 1936,
as leis anti-homossexuais do czarismo e a posição do até o final da II Guerra Mundial e se prolongando na
novo governo foi que homossexualismo era apenas uma Guerra Fria a URSS viveu sob a ameaça do nazismo
outra variação de sexualidade. Porém, dez anos depois nas suas fronteiras, que colocava em risco as conquistas
da Revolução, começa um processo de proibição da ho- de Outubro, quer dizer, a partir desse perigo a URSS
mossexualidade na URSS e a criação de uma teoria que passou a desenvolver um esforço sobre-humano para

110 111
Homossexualidade: da opressão à libertação
Hiro Okita

tenham estes desvios, na medida em que o PC pre-


manter o socialismo e este esforço era dirigido à área
tende ser a liderança de um país socialista, voltado a
econômica.
desenvolver as potencialidades do povo e não dos pa-
P: Os nazistas tomavam a mesma posição anti-ho-
trões. E ainda, o povo deve ter demonstrado que não
mossexual, porém com outras justificativas de que, por
tem simpatia em que seus dirigentes sejam homosse-
exemplo, era contra a raça pura ou resultado da liberti-
xuais e tenham esses desvios. Recentemente tivemos
nagem sexual dos bolcheviques. Mataram mais de cem
o exemplo, com a saída livre de muitos homossexuais
mil homossexuais nos campos de concentração. Por que
de Cuba, justamente pela sua inadaptabilidade ao tra-
esta semelhança? balho socializado, às relações socialistas e a um Estado
HP: E cascata. Nas tropas de elite, nas "tropas-mo- que desenvolve as potencialidades do povo. O socialis-
delo da raça pura" havia e era incentivado o homosse- mo não é contra a homossexualidade. Faz com que eles
xualismo. A diferença é que para oprimir ainda mais desenvolvam sua sexualidade normal ou pelo menos dá
o proletariado, com a intenção de fazê-lo produzir condições para isso.
mais, é melhor uma família estável. Sobre o assassina-
P: O que você acha da organização dos homossexuais
to dos homossexuais, é possível que os tenham toma-
dentro de um partido para lutar contra a opressão e o
do como bode expiatório para sanar seu problema de
machismo?
desemprego.
HP: Acho completamente errado porque um partido
P: Em 1971, o I Congresso Cubano de Educação e
tem que colocar a questão do poder e o poder se esta-
Cultura taxou homossexualismo como problema pa-
belece não em cima da contradição entre homossexu-
tológico e os homossexuais foram proibidos de serem
ais e heterossexuais, mas se estabelece na contradição
membros do PC ou ocupar cargos na área de Educação
de classe, de uma classe sobre a outra. Acho também
e Cultura. Como você explica estas posições?
que esta organização dos homossexuais dentro de um
HP: A dificuldade do homossexual de se voltar para
partido não tem futuro, pelo menos no partido que luta
fora de si não permite que ele venha a ter uma posição
pelo socialismo, pois o socialismo não tende a manter o
de liderança na sociedade, por seus próprios proble-
homossexualismo, mas acabar com ele.
mas. Isso leva o PC a não permitir que seus militantes

113
112
Hiro Okita Homossexualidade: da opressão à libertação

P: Durante a realização do III Congresso da Mulher homossexual? A homossexualidade é uma doença, um


Paulista, um grupo de mulheres ligadas ao seu jornal desvio?
recusou-se a participar, alegando que as mulheres que OT: Consideramos a questão da homossexualidade
organizavam este Congresso eram burguesas e lésbicas. um assunto privado, ou seja, diz respeito ao direito de
O que você diz sobre isso? cada um dispor do seu corpo da maneira como bem en-
HP: Na nossa opinião os problemas mais sentidos pe- tender. Do ponto de vista político e social, não cabe a
las mulheres brasileiras são as questões ligadas à cares- nós - ou a qualquer um - julgar a escolha de cada um
tia, democracia, controle de natalidade, aborto etc. As neste terreno. Por outro lado, temos combatido todo tipo
mulheres a qual demos cobertura jornalística estavam de discriminação e de opressão, inclusive a que atinge
interessadas em discutir justamente estes problemas os homossexuais.
enquanto que as "outras" estavam interessadas em dis- P: Existem homossexuais que participam do jornal?
cutir seus problemas em relação aos homens. OT: Temos homossexuais entre nossos colaborado-
As mulheres que apoiamos não reclamaram da par- res. Não discriminamos qualquer trabalhador ou jovem
ticipação das lésbicas, reclamaram sim, que estas qui- que esteja disposto a levar conosco os combates de que
sessem se passar por representantes das mulheres. Na temos participado, independentemente das opções que
verdade quem atacou as mulheres foram as lésbicas, in- eles façam em termos sexuais. Apenas, no momento,
clusive fisicamente. não nos dedicamos a impulsionar a organização à parte
As "outras mulheres", por sua condição social, abas- dos homossexuais, mas incentivamos sua participação
tadas e por problemas com sua sexualidade queriam pri- nas lutas dos trabalhadores de uma forma geral, comba-
vilegiar seus problemas particulares e não os problemas tendo qualquer discriminação que eles sofram.
da maioria das mulheres paulistas. P: Qual a visão de O Trabalho sobre o papel dos ho-
mossexuais numa sociedade igualitária?
Jornal O Trabalho OT: Numa sociedade igualitária, se ela é mesmo igua-
litária, o papel dos homossexuais é o mesmo que está
P: Qual a posição de O Trabalho sobre a questão reservado ao conjunto da população trabalhadora, que

114 115
Hiro Okita Homossexualidade: da opressão à libertação

independentemente de sexo, idade ou qualquer outra P: Quais foram as primeiras formas de atuação, fruto
característica, terá o papel de construir esta sociedade e do trabalho da facção, dentro da Convergência, e que
garantir suas conquistas, defendendo-a contra qualquer passaram para fora?
ataque que vise destruir suas bases igualitárias e restau- CS: Participamos dentro do movimento homossexu-
rar a opressão, a exploração, a discriminação. al na campanha pró-Lampião, quando ele estava sen-
do processado pelos órgãos de segurança, levantamos a
Jornal Convergência Socialista questão dos homossexuais cassados pelo AI-5 no último
ato público em favor da Anistia e estivemos presentes
P: A Convergência Socialista compreende uma "Fac- no I Encontro Brasileiro de Grupos Homossexuais Or-
ção Homossexual", coisa inédita para um grupo político ganizados.
na América Latina. Como surgiu a Facção? P: Quais são as atividades atuais da Facção?
CS: Em junho de 1979, quatro homossexuais da Con- CS: Com a I Conferência Nacional dos Homossexu-
vergência Socialista começaram a se reunir, para discu- ais da CS, realizado em março de 1981, em São Paulo,
tir a questão homossexual dentro do grupo, já que desde nosso trabalho aumentou bastante. Foram realizadas
sua formação, a Convergência tinha em seu programa, discussões com todos os companheiros, visando a pre-
um ponto sobre a discriminação aos homossexuais. Em- paração da Conferência, isso gerou um crescimento
bora constasse do programa, a questão não chegava ao de 300%, pois através dessas discussões, muitos deles
nível de discussão, havendo dentro do próprio grupo assumiram sua homossexualidade, principalmente as
uma consciência anti-homossexual, fruto do conserva- mulheres e secundaristas. A Facção começou a editar
dorismo das várias linhas ideológicas da esquerda. Só a um boletim mensal, participando então do I Encontro
partir dessas primeiras discussões, a questão tornou-se, Paulista de Grupos Homossexuais Organizados, cujos
de fato, real, levando os demais companheiros a discuti- integrantes organizaram um ato comemorativo da pas-
rem a sexualidade, já que o machismo dentro do grupo seata dos mil, realizada o ano passado contra a repressão
levou as mulheres a iniciarem também um questiona- policial da qual vínhamos sendo vítimas, comandada
mento dessas posições. pelo delegado Wilson Richetti, partindo das escadarias

116 117
Hiro Okita Homossexualidade: da opressão à libertação

do Teatro Municipal no dia 13 de junho. Além desse te, porém, desde o início de nosso trabalho, temos claro
ato, os grupos organizaram três debates que o antecede- a diminuição da repressão anti-homossexual dentro do
ram, realizados na USP, PUC e em uma escola secunda- grupo, assim como também aumentou a necessidade de
rista, para discutir homossexualidade e mobilizar para discussão a respeito da sexualidade e especificamente
o ato. Além desse trabalho, levado conjuntamente com sobre a homossexualidade. Naturalmente esse processo
outros grupos homossexuais, a Facção leva a discussão é mais avançado onde há membros da Facção.
da questão a outras frentes e segmentos da sociedade, P: O ano passado, quando houve o racha do Somos, a
como a universitária, secundarista e sindical. Atualmen- Facção Homossexual da CS foi acusada de ter desviado
te, levamos também um trabalho no PT, o Partido dos a luta específica do grupo, sobre homossexualismo para
Trabalhadores, junto com outros companheiros do mo- outras lutas, manipulando assim o Somos. Poderia ex-
vimento homossexual, na Comissão de Militantes Ho- plicar o que aconteceu?
mossexuais Construindo o PT. Nosso principal objetivo CS: Mesmo antes do Somos escolher este nome, in-
é levar a discussão sobre a homossexualidade junto à divíduos da CS já participavam deste grupo. Isso era
classe operária, despertando-a para o problema da dis- conhecido, pois vendiam o jornal da CS, colocavam
criminação aos homossexuais. Esse trabalho já está efe- abertamente suas posições pró-socialistas e sempre
tivamente iniciado, pois saímos no Primeiro de Maio do trabalharam para que ele, Somos, assumisse um verda-
ABC, convocado pelo PT, com faixas contra a discrimi- deiro combate contra a discriminação. Levavam assim
nação do trabalhador/a homossexual e contra a Lei de posições definidas e do conhecimento de todos os in-
Segurança Nacional. tegrantes do grupo. Quando surgiu a proposta de uma
P: Mas, os homossexuais não sofrem discriminação participação no Primeiro de Maio de 1980, no ABC, ela
dentro da CS? foi colocada por outros membros do grupo e não por
CS: Um grupo sempre irá refletir a sociedade de companheiros da Facção, que apenas a apoiou. Essa
onde ele se origina. Vivemos numa sociedade machista idéia de levantar a questão específica da discriminação
e conservadora, logo, os grupos tendem a serem iguais, do trabalhador homossexual no Primeiro de Maio, es-
reservadas as proporções, é claro. Na CS não é diferen- tava clara, pois o fato do governo intervir no sindica-

118 119
Hiro Okita Homossexualidade: da opressão à libertação

to, cassando seus líderes, criava uma situação propícia respeito às diferenças, às liberdades do outro. Hoje, en-
àqueles que queriam manifestar-se contra o regime, tre os comunistas há uma situação de maior tolerância.
pois essa atitude ditatorial poderia ser levada a qualquer A sociedade, também os comunistas, começa a se abrir
momento para o débil MIL A confusão sobre o racha para discussões de novas questões e inclusive lê teses
foi reforçada por informações tendenciosas do Jornal sobre mulheres e negros. Eu particularmente não tenho
Lampião, indispondo assim a Facção com outros grupos nada contra a homossexualidade. Mas no que diz res-
de homossexuais. Além disso, julgar duas pessoas (era peito a uma posição oficial há resistências, a esquerda
o número de membros da Facção que estavam no So- tem suas resistências à novas questões. No dia em que
mos) capazes de dominar um grupo de cinqüenta que a questão dos homossexuais for aberta dentro do PCB,
funcionava por consenso, é no mínimo, superestima-los está aberta a revolução cultural.
intelectualmente Se propostas mais consistentes foram P: Por que existe? E uma doença?
aprovadas, é porque a maioria achou-as válidas. VU: Pessoalmente não sei. Não acho que é uma do-
ença. E a escolha de cada um. O terreno é movediço
Jornal Voz da Unidade para se concluir se é doença ou se não é, tanto em ter-
mos psicológicos como médicos. Agora, você tem um
P: O que acha da homossexualidade? dado cultural que é a família patriarcal, que coloca a
VU: Eu acho um problema deles. íntimo. De um homossexualidade na sociedade como "anormal". Nada
ponto de vista político só posso colocar o seguinte: me garante que naturalmente seja isto. A questão que
ninguém tem o direito de violar isto e nem de trans- se coloca é onde o indivíduo se sinta pleno numa re-
formar isto em geral. Não acho que se possa valorizar lação plena. Acho difícil que numa sociedade como a
em mais rico ou menos rico a relação homossexual da nossa você enquanto homossexual possa realizar isso,
relação heterossexual. O princípio político é do respeito mas também numa relação heterossexual é difícil. Do
à liberdade do outro. A luta pelo reconhecimento tanto respeito à liberdade do outro e da recusa de se achar ho-
da homossexualidade como das "minorias", a luta pela mossexualismo como anormal e sim como um dado da
diversidade ajuda a avançar na luta pela democracia. O natureza é que deve ser encarada a questão. Em termos

120 121
Hiro Okita Homossexualidade: da opressão à libertação

de origem desconheço as teorias. Minha preocupação é a realidade. Conjuntamente com isso, as dificuldades
política, ou seja, qualquer que seja a origem o que im- de construir o socialismo, a dificuldade de se romper
porta é a questão da democracia, das pessoas poderem com o cerco, a luta interna, tende ao enrijecimento das
expressar suas diferenças, incluindo as sexuais. posições, onde o velho prevalece. Em 1934, restabele-
P: Depois da Revolução de Outubro de 1917, todas ce-se um dos conceitos mais moralistas que é a família.
as leis czaristas anti-homossexuais foram abolidas e a A situação exigia a parada: os russos haviam perdido
posição da URSS foi que homossexualismo era apenas milhares de pessoas na revolução e precisavam de mão-
uma variação da sexualidade. Porém, dez anos depois, de-obra para uma industrialização acelerada, que obriga
começou uma modificação destas posições e em 1934, o controle da natalidade, o crescimento da população.
homossexualismo passou a ser considerado crime com Essa industrialização cria condições para a repressão. O
pena de cinco a oito anos de prisão, uma lei que existe velho foi abatido e acaba bloqueando o novo. Com isso
até hoje. Por que ocorreu esta mudança no tratamento é possível se explicar. Não justifica, mas é explicável o
da questão homossexual? reacionarismo no nível dos costumes.
VU: É difícil responder sem fazer uma análise do P: Em 1936, na URSS, começou a se taxar o homos-
processo da Revolução russa. Pura e simplesmente foi sexualismo como "produto da decadência da burguesia"
o predomínio do conservadorismo. Toda revolução em e colocava que acabaria com a revolução socialista. Por
alguma medida tende ao puritanismo. Quando você que tomava esta posição?
pega as leis dos bolcheviques do primeiro governo da VU: E secundário, tantas outras coisas se tiveram
revolução russa, sobre a questão da mulher, dos homos- como negativas. Pior que isso ou tanto foi o restabeleci-
sexuais e casamento, ela é a legislação mais bem feita, mento do casamento e da família nos moldes burgueses.
mais avançada que já foi feita em todas as sociedades. E uma conseqüência de um período onde a legislação
Mas não correspondia à realidade, são os belos ideais anti-homossexual é parte de tornar a sociedade mais
da revolução. De fato, essa legislação correspondia ao conservadora. Acho que é um desejo da elite sobre a re-
projeto da revolução. Porém, a realidade russa era atra- alidade atrasada, onde se denota o fracasso. No mínimo
sada para o período. O bolchevismo muda a lei, mas não a legislação bolchevique e suas tentativas de se estender

122 123
Hiro Okita Homossexualidade: da opressão à libertação

o grau de liberdade cotidiana vale como um exemplo. contra a homossexualidade. O Padilha, por exemplo, foi
P: Os nazistas tomavam a mesma posição anti-ho- chumbado não por ser homossexual, mais por divergên-
mossexual, porém com outras justificações, de que era cias políticas. Cuba é machista, basta ler os livros de
contra a raça pura e resultado da liberdade sexual do Loyola. Duvido, é difícil entre os comunistas uma proi-
bolchevismo. Mataram mais de cem mil nos campos de bição legislativa. Se existir uma deliberação, que desco-
concentração. Por que esta semelhança? nheço, acho que está errado. Numa sociedade as pes-
VU: São muito distintos. As tropas de elite dos nazis- soas que lutam pela renovação, elas também são filhas
tas praticavam isso. O nazismo foi pró-homossexual, o da velha sociedade. Os PCs em regra geral não fogem
partido nazista tinha na homossexualidade uma certa a isto e é até, pode ser, uma forma de se defender das
visão de elite, de vida superior, mais rica porque fugia propagandas burguesas contra-revolucionárias. Porque
ao padrão. Em ambos processos ditatoriais, um apesar os comunistas não são contra a família, são contra as ve-
do conservadorismo foi um meio de parir uma socieda- lhas formas dessa família que oprime a mulher.
de nova, veja que na URSS saiu uma sociedade nova. P: Por que o PCB não inclui no programa a luta con-
O nazismo era para restabelecer o capitalismo. É um tra a discriminação aos homossexuais quando sabemos
conteúdo diferente. A socialização é pressuposto, mas que existem milhares de trabalhadores homossexuais,
não basta. A URSS não democratizou outras relações que além de serem explorados, também são oprimidos?
como a mentalidade, os costumes. Não estou dizendo VU: Nós temos um programa contra o machismo e
com isto que a sociedade soviética deixa de ser o mode- discriminação da mulher e contra a opressão no geral,
lo. Comparar é no mínimo menosprezar o socialismo. embora não explícito inclui a opressão aos homossexuais
P: Em 1971, o I Congresso Cubano de Educação e porque somos contra qualquer tipo de opressão. Porque
Cultura taxou a homossexualidade como problema pato- é uma questão diferente, porque do ponto de vista na-
lógico e os homossexuais foram proibidos de serem mem- cional não tem a mesma expressão, a opressão do negro,
bros do PCC ou de ocupar cargos na área de cultura ou por exemplo, que é muito maior que a dos homosse-
educação. Como é que vocês explicam estas posições? xuais. Abarca um volume de pessoas maior. A opressão
VU: Desconheço. Houve um período onde ele foi dos negros é uma opressão relacionada com a condição

124 125
Hiro Okita

racial. A dos homossexuais é a opressão do ponto de vis-


ta ético-moral. Veja por exemplo a mulher; a mulher não
pode deixar de ser mulher e o homossexual pode deixar
de ser homossexual. O que não quer dizer que você de-
fenda que nenhuma pessoa deva ser vítima da opressão
sobre qualquer razão. No momento em que esta ques-
tão se tornar de peso ela será incluída.
P: Sabemos que existem homossexuais no PCB. Eles BIBLIOGRAFIA R E C O M E N D A D A
têm direito de se organizarem dentro do partido para
lutar contra a discriminação e o machismo?
VU: Os comunistas não se distinguem pela opção se-
xual mas pela aceitação do programa e das atividades Existem poucos livros sobre homossexualismo na
políticas. Os homossexuais, quando lutam, o fazem por língua portuguesa. Aqui listados estão alguns que tra-
suas reivindicações específicas e os operários, quando tam do assunto, de uma maneira positiva:
lutam, lutam por suas questões. O partido não admite.
Ele não tem dentro dele o negro, a mulher, e o homos- Mar Daniel e André Baudry, Os homossexuais, Ar-
sexual em separado, e sim comunistas. Quanto à orga- tenova,1977
nização, ele não admite dentro dele grupos de pressão. Friedrich Engels, A origem da família, da proprieda-
Você se organiza porque você é comunista. O que inte- de privada e do Estado, Civilização Brasileira, 1981
ressa ao PCB é adesão ao seu programa político e sua Daniel Guerin, Um ensaio sobre a revolução sexual:
disciplina. Pouco importa o que você pensa de resto. após Reich e Kinsey, Brasiliense, 1980
Guy Hocquenghem, A Contestação Homossexual,
Brasiliense, 1980.
Judd Marmor, A inversão sexual, Imago, 1973
William H. Masters e Virgínia E. Johnson, Homos-

126 127
Hiro Okita

sexualidade em Perspectiva, Editora Artes Médicas,


1979
Michel Misse, O Estigma do Passivo Sexual, Achia-
me, 1981
Wilhelm Reich, A Revolução Sexual, Zahar, 1980
David Thorstad e Jonh Lauritsen, The Early Ho-
mossexual Rights Movement
Vários autores, Sexo e Poder, Brasiliense, 1979
Winston Leyland (coord.), Sexualidade e Criação Li-
terária, Civilização Brasileira, 1980
Charlotte Wolf, Lesbianismo: Amor entre Mulheres,
Nova Fronteira

128

Вам также может понравиться