Академический Документы
Профессиональный Документы
Культура Документы
ÍNDICE
1 O Aviso
2 O Ataque
3 A Decisão
4 A Prenda
5 Os Versos
6 No Meio da Escuridão
7 A Tempestade
8 Nas Mãos de Destino
9 As Terras Perdidas
10 O Perigo da Noite
11 Contra a Parede
12 O Espelho Parte-se
13 O Labirinto
14 A Mão Deve Sangrar
15 Correntes e Sofrimento
16 Surpresas
17 Sombras Pintadas
18 Tal como Começou…
19 …Assim Terminará
20 Terror
21 A Lição
1
O AVISO
O grach voou para ocidente, seguindo o cheiro. Estava voando há muito tempo e
sentia-se cansado e tinha fome, mas não pensou sequer em comer ou parar para descansar.
Não havia qualquer pensamento por trás dos seus olhos amarelos planos. Apenas uma
idéia fixa. Seguir o rastro, chegar ao lugar aonde lhe tinham dito que chegasse e levar de
volta para os seus amos o que lhe tinham dito que levasse.
O grach chamava-se Bara e tinha cento e vinte anos. Tinha sido bem treinado. Não
com doçura, talvez, mas com inteligência e durante muitos, muitos anos. A idéia de que
agora, longe dos chicotes e dos gritos dos seus amos, era livre de escolher o que fazer,
nunca lhe viera à cabeça.
Há muito que o mar tinha ficado para trás, e o grach tinha vagamente a noção de que
por baixo dele havia agora colinas verdes e um riacho sinuoso a brilhar à luz do sol.
Percebeu de que uma montanha, com o pico escondido no meio das nuvens, se elevava na
distância azul à sua frente.
Mas, naquele momento, os seus olhos não eram importantes. Nem os ouvidos,
fechados para se protegerem do vento, nem o bater das suas próprias asas tinham qualquer
importância. A única coisa que era importante era a língua bifurcada que entrava e saía
rapidamente da boca, provando o ar, provando o cheiro.
Ele sabia que estava perto do seu objetivo. O cheiro era mais forte — o cheiro de
animal quente que fez os seus maxilares descair de fome. Bukshah. Ele até sabia o nome
deles.
«Bukshah», tinham dito muitas vezes os seus amos, agitando a pele cinzenta coberta
de lã em frente do seu focinho, dando-lhe pedaços de carne ensangüentada, de modo a que
o sabor delicioso se misturasse com o cheiro da pele. Quando o enviaram à sua procura,
eles tinham repetido: «Bukshah. Busca.» E depois tinham-lhe soltado a corrente.
O cheiro de bukshah era forte, mas havia outros cheiros além desse. Alguns, o grach
já tinha provado antes, mas havia um que ele não conhecia. O que ele nunca provara
continha muitos perigos. Era fogo, neve e gelo. Era hálito quente, presas gotejantes e um
poder antigo, cioso.
O grach sentiu um formigamento de aviso na espinha coriácea. Os seus olhos
amarelos de lagarto não pestanejaram, e o bater das asas escamosas pintalgadas não
vacilou, e ele continuou a voar em direção a Rin.
* * *
O olhar de Rowan percorreu o céu muito azul por cima da sua aldeia. Ainda estava
límpido, com exceção da nuvem que envolvia sempre o cume da Montanha proibida. E, no
entanto, certamente que uma tempestade de Verão se aproximava. De que outro modo
conseguiria ele explicar a estranha e persistente sensação de que algo inesperado e
assustador estava prestes a acontecer? A sensação de medo tinha começado no meio da
manhã e, desde essa altura, fora-se tornando cada vez mais forte.
Não é nada, disse ele a si próprio com firmeza. Lutou para afastar o medo, e não
falou nele a Jiller, a sua mãe. Para quê preocupá-la desnecessariamente, ainda por cima
naquele dia?
Hoje, Jiller devia estar tão despreocupada como a sua irmãzinha Annad, que já estava
a dançar no jardim do chalé, julgando-se muito bonita num vestido novo cor-de-rosa. Ela
devia estar tão alegre como o Jonn Forte que, esplêndido no seu traje de casamento,
passava agora o portão a balançar Annad nos braços e a dirigir-se para a casa.
Rowan obrigou a si próprio a acenar a Jonn e a gritar uma saudação. E, quando a
misteriosa sensação de medo o assaltou de novo, ele fê-la desaparecer.
* * *
Não era freqüente os diligentes habitantes de Rin porem de parte as suas tarefas do
dia a dia para celebrarem festas e feriados. Mas mesmo em Rin um casamento era motivo
para celebração, e este casamento — o casamento de Jonn Forte do Pomar com Jiller do
Campo — era uma ocasião muito importante.
Jonn e Jiller eram pessoas muito estimadas, e o filho de Jiller, Rowan dos Bukshah,
era o maior herói de Rin, embora fosse um herói extremamente improvável.
Tímido, sonhador e acanhado, ele tinha conquistado a Montanha proibida e
enfrentado o dragão que reinava no seu cume. Ele tinha se aliado a Viajantes errantes para
salvar Rin de um destino terrível. E dizia-se que ele estava ligado aos Maris, homens
parecidos com peixes que viviam na costa, através de um estranho vínculo com o seu
misterioso líder, o Guardião do Cristal.
Outrora a criança mais decepcionante da aldeia, Rowan era agora respeitado. Hoje
em dia ninguém troçava dele nem o criticava. Ninguém lhe dizia que ele era demasiado
velho para ser o guardião dos meigos bukshah.
Ele era até temido por alguns que pensavam que ele tinha poderes sobrenaturais.
Essas pessoas calavam-se quando Rowan entrava no armazém ou passava por um local de
reunião, e avisavam os seus filhos para que não o importunassem. Quando, na Primavera,
nasceu um bukshah preto — em vez do habitual cinzento claro —, essas pessoas
murmuraram que era um augúrio, um sinal do poder de Rowan.
Se alguém lhes dissesse que a única coisa que Rowan queria era ser aceito como um
deles, que isso era o que ele sempre quisera, elas ter-se-iam rido.
Era em grande parte por causa de Rowan que este casamento era mais do que uma
simples celebração da aldeia. No dia anterior, tinham surgido no céu por cima do vale os
três grandes papagaios dos Viajantes, com os seus passageiros a balançar, suspensos neles.
Desde então, a tribo que sempre os seguia tinha acampado nas colinas, pronta para se
juntar à festa e fazer música. Perlain de Pandellis tinha vindo de Maris para representar o
seu povo e trazer ofertas. Ele tinha, de bom grado, deixado o mar e o borrifo das ondas,
embora a pele dos Maris secasse e estalasse rapidamente longe da água, e a viagem não
tivesse sido muito confortável para ele.
Este dia era suficientemente importante para convencer os imperturbáveis moleiros,
Val e Ellis, a sair do seu moinho. Tinha até levado a rabugenta e solitária Bronden, a
marceneira, a fechar a oficina por um dia. Ninguém queria perder a celebração, nem
deixar de prestar a sua homenagem.
Assim, ao meio-dia, quando Jiller e Jonn se dirigiram, juntamente com Rowan e
Annad, para a grande árvore acima do campo dos bukshah, havia uma multidão à espera
deles. Apenas Sheba, a feiticeira da aldeia, se mantivera ausente, tendo ficado sozinha,
agachada na sua cabana atrás do pomar. Isso não surpreendeu ninguém e, intimamente,
ficaram todos satisfeitos. Pois embora procurassem Sheba em momentos de doença ou
perigo, ela teria sido uma convidada embaraçosa.
Quando chegou à agradável sombra da árvore, Rowan mal percebeu de que Annad
dançava excitadamente ao seu lado, de que Jonn e Jiller caminhavam à sua frente e de que
a multidão os olhava atentamente. A sensação de medo aumentava, perturbando-lhe a
mente, ensombrando-lhe os pensamentos, tornando-o silencioso e vigilante.
Cerrou os dentes, tentando assegurar-se de que ninguém reparava na sua tristeza.
Toda a gente em Rin está feliz, pronta para celebrar, disse ele a si próprio. Porque é que eu
hei de ser diferente?
Você foi sempre diferente, disse uma voz no fundo da sua mente. E agora mais do
que nunca.
Afastou a voz, zangado. Virou a cabeça e viu Ogden, o contador de histórias, líder
dos Viajantes, ao lado de Zeel, a sua irmã adotiva, e o resto da tribo a um lado da
multidão.
Ao lado dos habitantes de Rin, sóbrios mesmo quando vestidos com as suas melhores
roupas, os Viajantes estavam resplandecentes como aves com as suas sedas coloridas e o
cabelo comprido encaracolado salpicado de fitas, contas e penas. Mas Rowan reparou,
com uma sensação de temor, que os seus rostos estavam vigilantes. Estavam de pé,
imóveis, como se todos os músculos dos seus corpos castanhos e magros estivessem
preparados para fugir. E os olhos encovados de Ogden tinham um ar grave.
Jonn e Jiller não repararam em nada. Eles sorriram e fizeram uma vênia aos
Viajantes, e Ogden retribuiu com uma vênia ainda maior. Mas o seu olhar sombrio
estendeu-se para além deles, para Rowan, e nos seus olhos havia uma pergunta. Rowan
sabia qual era.
Passa-se algo de errado nesta terra. Nós o sentimos. Você também o sente. Eu vejo
que sente. O que é?
Rowan abanou levemente a cabeça. Não sei.
Os olhos de Ogden deslocaram-se para a frente da multidão onde Perlain, o homem
de Maris, estava ao pé de Allun, o padeiro, e Marlie, o tecelão, os grandes amigos de Jonn
e Jiller.
Marlie e Allun sorriam enquanto entregavam flores a Jiller. Mas Perlain, baixo e
cintilante na roupa azul justa, estava muito rígido, com as mãos palmípedes apertadas
contra os lados. O capuz que ajudava a protegê-lo do sol tinha sido empurrado para trás
em sinal de respeito, pelo que Rowan conseguia ver que os seus olhos vidrados,
inexpressivos, olhavam fixamente.
Perlain estava com medo. Mas o que haveria a recear ali sob aquela sombra verde,
naquele vale protegido?
Há perigo, Rowan. Há perigo na terra.
A mensagem soou repentinamente, com toda a clareza, na mente de Rowan. Era o
Guardião do Cristal de Maris a avisá-lo, tal como avisara Perlain.
Mas Jonn e Jiller já estavam em frente da velha Lann, e a cerimônia tinha começado.
Não posso dizer nada agora, pensou Rowan com desespero. Mesmo se tentasse,
ninguém me irá prestar atenção, por muito que digam que sou um herói. Eles iriam pensar
que estou a tentar impedir o casamento. A Mãe e o Jonn pensarão o mesmo. Não posso
fazê-lo.
Tinha havido uma altura em que ele detestara a idéia de que Jonn pudesse ocupar o
lugar de Sefton, o seu pai. Mas agora ele sabia que nunca ninguém ocuparia o lugar de
Sefton — quer no coração de Jiller, quer no seu. O que acontecia era que os corações eram
suficientemente grandes para aceitar mais de um amor. E Jonn Forte do Pomar, o amigo
do seu pai, era também seu amigo.
Ele nunca dissera isso a Jiller nem a Jonn. Em Rin, conversar abertamente sobre
sentimentos era considerado um sinal de fraqueza. Só tendo um ar feliz naquele casamento
é que Rowan podia mostrar que estava satisfeito por ele estar a ter lugar.
Havia ainda mais alguém a ter em conta. Rowan olhou para a sua irmãzinha, de olhos
muito abertos ao seu lado. Annad não chegara a conhecer o pai deles, pois este tinha
morrido quando ela era bebê. Ela adorava Jonn. Ela tinha ansiado por aquele dia. Ela
adorara a idéia de vestir roupa de cerimônia e de se exibir em frente dos habitantes da
aldeia.
Não posso fazê-lo, pensou ele outra vez. Não posso estragar este momento. Perlain e
Ogden não se importam de esperar. Assim, vou esperar também. Que mal fará esperar
apenas um pouco?
Nos dias que se seguiram, Rowan desejou muito amargamente, ter tomado outra
decisão.
2
O ATAQUE
Fez-se silêncio debaixo da enorme árvore quando Jonn e Jiller fizeram os seus votos
finais. Depois, quando Lann os declarou marido e mulher, houve uma ruidosa explosão de
palmas, aplausos e parabéns.
Os adultos de Rin formaram um grupo e levaram Jonn e Jiller para o banquete que
tinha sido preparado perto, certificando-se cortesmente de que Perlain e os Viajantes eram
arrastados pela corrente. Annad deu um salto para ir ter com os seus amigos, como se uma
mola se tivesse solto dentro dela. Rowan deixou-se ficar onde estava, a observar.
Jonn e Jiller sentaram-se à cabeceira da mesa principal do banquete, a rir e a
conversar. Todas as mesas estavam cobertas com o que de melhor a aldeia proporcionava.
As travessas estavam empilhadas de fruta e vegetais para salada, do melhor queijo de
bukshah, dos pãezinhos mais macios que Allun e a mãe, Sara, conseguiam produzir, e de
caramelos, gelatinas e bolos de todos os tipos feitos por Solla, a doceira. Aqui e ali havia
enormes jarros frescos de sumo de frutos silvestres e vinho de flores.
A música dos Viajantes começou. Ogden deve ter decidido que era melhor prosseguir
com os festejos como se nada de errado se passasse. Rowan encostou-se ao tronco liso da
enorme árvore, tentando ordenar os pensamentos.
A luz do sol brilhava por entre as folhas, salpicando o chão com pontos dourados.
Debaixo daquele enorme dossel, os habitantes de Rin tinham-se casado, dado o nome
aos filhos e despedido dos seus mortos desde que tinham chegado ao vale, trezentos anos
antes. Nessa altura, a árvore tinha sido grande. Agora era gigantesca.
— Rowan! Olha! — A voz penetrante de Annad elevou-se acima da música, das
conversas dos adultos e dos risos dos amigos dela.
Rowan olhou em volta. Annad estava junto da cerca, a olhar para o campo dos
bukshah, e chamava-o num tom excitado.
—Venha ver! — gritou ela.
Ele foi ter com ela. Os amigos da irmã calaram-se e recuaram timidamente quando
ele se aproximou, mas Annad correu para ele, agarrou-lhe no braço e empurrou-o na
direção da cerca.
— Estão a dançar — disse ela com uma gargalhada, apontando.
Rowan, surpreendido, susteve a respiração. Os animais cinzentos tinham-se colocado
lado a lado, ombro com ombro, num círculo apertado. As cabeças pesadas estavam todas
viradas para fora. Os seus corpos estavam tão juntos que as crinas pareciam estar todas
ligadas. Muitos estavam a escavar o chão com as patas. A primeira vista, parecia que
estavam, de fato, a fazer algum tipo de dança.
Annad estava aos saltos.
— Rowan, anda! — gritou ela, puxando-lhe a mão.
— Anda vê-los comigo!
— Não, Annad — respondeu Rowan, com um sorriso. Por muito que ele gostasse de
deixar a festa e ir até ao campo dos bukshah, ele sabia que pareceria estranho e indelicado
se o fizesse.
Annad soltou uma exclamação de impaciência e retirou a mão da dele.
Seguidamente, descalçou os sapatos macios e, sem se preocupar com a sua roupa de
cerimônia, subiu a cerca e começou a correr através do campo.
— Annad! — chamou Rowan. Mas a menina não lhe prestou atenção. Ele sorriu e
abanou a cabeça ao vê-la saltar o riacho e correr na direção dos bukshah, a chamar a
Estrela, a líder. O cabelo dela esvoaçava como fios de ouro à volta da cabeça. O vestido
cor-de-rosa ondeava na brisa suave. Ela parecia uma enorme borboleta a flutuar através da
erva.
Rowan estava à espera que os bukshah desfizessem a sua estranha formação quando
Annad se aproximou mas, para sua surpresa, a manada não fez qualquer movimento.
Estavam imóveis como rochas, com o nariz levantado, a farejar o ar.
Rowan ficou a olhar, intrigado. E depois percebeu outra coisa. Onde estavam os
bukshah jovens — os bezerros que tinham nascido na Primavera? Não os via em lado
nenhum. Nem mesmo o preto, o mais pequeno, lá estava.
Annad estava agora a dançar em direção a Estrela, conversando com ela, de mão
estendida. Rowan deu um salto, chocado, quando Estrela rugiu e sacudiu a cabeça,
afastando Annad.
Estrela era sempre muito meiga. A criança mais pequena de Rin conseguia levá-la
pela trela. Ela amava Annad tanto quanto amava Rowan. No entanto, ela parecia estar a
tentar manter Annad afastada da manada.
Rowan franziu o cenho, agarrando a cerca. Ou… estaria Estrela a tentar fazer com
que Annad voltasse rapidamente para o local de onde viera? Para um local protegido. Para
um local seguro…
— Annad! — chamou ele num tom de urgência. Mas a sua voz foi abafada pela
música e pelo riso à volta das mesas do banquete, e Annad não ouviu.
Ele viu-a hesitar por um momento, depois dar um passo em frente e estender outra
vez a mão. Desta vez, a sacudidela da cabeça de Estrela foi suficientemente forte para
fazê-la cair na erva. Os enormes animais à esquerda e à direita de Estrela escavavam o
chão, mas não saíam dos seus lugares.
Eles não querem quebrar o círculo, pensou Rowan. E subitamente compreendeu
porquê. Os bezerros estavam no interior, cercados e escondidos por uma parede de corpos
adultos fortes.
Um medo terrível apoderou-se dele. Escalou desajeitadamente a cerca e começou a
correr na direção do riacho.
— Annad! — gritou ele. — Annad! Cuidado!
Mas já era demasiado tarde. O que aconteceu a seguir demorou apenas alguns
momentos, mas depois, até ao fim da sua vida, Rowan recordar-se-ia como se tivesse
demorado longos, longos minutos.
Ele estava correndo, correndo, ofegante, com o peito a doer de medo, mas não
conseguia correr suficientemente depressa. Viu Annad virar-se para ele enquanto se punha
de pé, alisando o vestido. Viu o seu rosto rosado, aborrecido, o cabelo dourado,
subitamente escurecido por uma sombra que bloqueou o sol.
Ouviu um terrível rugido oriundo do cume da Montanha, bem como a resposta vinda
do céu, um silvo áspero de desafio. Ouviu o bater de asas e o grito dos bukshah quando
uma forma enorme desceu em direção a eles — um animal horrendo com manchas verdes,
amarelas e cinzentas, com espigões e três caudas cortantes. Ouviu o seu próprio grito de
aviso e o grito estridente de Annad quando ela percebeu o perigo e começou a correr, com
o vestido a enrolar-se e a emaranhar-se no vento provocado pelas enormes asas.
Rowan saltou o riacho, gritando aterrorizado, gritando para que Annad se atirasse
para o chão, para que se escondesse na erva alta. Mas, mesmo enquanto gritava, ele sabia
que Annad não ouvia nem compreendia nada a não ser a sua própria necessidade de fugir.
Horrorizado, ele viu os olhos planos amarelos do animal deslizarem para um lado e
fixarem-se na figura pequena que corria, esvoaçante, cor-de-rosa e dourada contra o
campo verde. Por um instante, o animal pairou no ar, e Rowan viu de relance algo à volta
do seu pescoço que o espantou e intrigou.
Depois a sua mente foi varrida pelo pânico. O animal estava a rodar no ar, afastando-
se dos bukshah e mergulhando em direção a Annad, com as enormes garras vermelhas
estendidas para ela.
— Não! — Rowan atirou-se para a frente, acenando os braços, gritando para o
animal, tentando desviar-lhe a atenção e levá-lo a rodar outra vez. Mas, num instante, ele
tinha atacado e depois, com as enormes asas a bater com um barulho que parecia um
trovão, silvou, triunfante, afastando-se rapidamente.
O seu fardo era leve e não o fez abrandar a velocidade. Em poucos segundos, era uma
mancha escura por cima das colinas distantes. Ao fim de poucos minutos, tinha
desaparecido de vista.
E Annad tinha desaparecido com ele.
3
A DECISÃO
Temos que ir atrás do animal. Atacá-lo onde ele aterrar. — Não podemos deixar a
aldeia indefesa. Ele pode voltar.
— Mas a Annad…
— A criança morreu. Morreu. Não há nada a fazer.
Sentado no chão, tolhido pela infelicidade, Rowan ouvia as vozes à sua volta. Vozes
familiares. Sara. A Velha Lann. Marlie. Bronden.
Pôs-se de pé e olhou em redor, confuso. As pessoas tinham vindo correndo das mesas
do banquete. Agora estavam todas juntas, chocadas e perplexas, com as roupas de
cerimônia amarrotadas e os sapatos bons a enterrar-se na erva comprida do campo. Não
havia sinal dos Viajantes nem de Perlain.
Jiller, extremamente pálida, estava de pé, muito reta. Jonn estava ao seu lado, mas ela
não se apoiava nele.
Não era essa a sua maneira de ser.
A Velha Lann virou-se para ela.
— O que quer de nós, Jiller do Campo? — perguntou ela num tom formal.
— Nada. — Jiller falou através de lábios que mal se moveram. — Não há nada a
fazer. A Annad morreu.
— Não! — A palavra irrompeu de Rowan antes de ele a conseguir travar.
A mãe virou-se para ele. Os seus olhos estavam negros de dor.
— Ela morreu, Rowan — repetiu ela. — Você viu o animal levá-la. Nesta altura ela
já está morta.
Rowan abanou a cabeça.
— Nós… nós não sabemos — gaguejou ele. — O animal… não era selvagem, era
domesticado.
Houve um momento de silêncio chocado, depois Lann aproximou-se dele a coxear.
— O que quer dizer com isso? — perguntou ela.
— Ele… tinha uma coleira. Eu vi. Uma coleira de metal, com uma argola para uma
corrente — respondeu Rowan.
Lann fitou-o atentamente. O seu rosto estava franzido em mil rugas que mostravam a
sua dor. Ela também tinha amado a pequena Annad.
Rowan respirou fundo.
— Eu acho… que ele atravessou o mar — disse. Ele sentia os olhos de todos os
aldeões pousados em si, sobretudo os da sua mãe. O rosto ardia-lhe, mas ele obrigou-se a
si próprio a prosseguir. — Na costa, o Guardião do Cristal sentiu o perigo a aproximar-se.
Os Viajantes também sentiram algo estranho em terra.
Um murmúrio perpassou a multidão.
— E você, Rowan? — A voz de Jiller era inexpressiva. Rowan engoliu em seco. Esta
era a pergunta que ele receava. Baixou a cabeça e obrigou-se a si próprio a falar.
— Eu senti… qualquer coisa. Um aviso. Mas pensei… que havia tempo. — O tom de
infelicidade da sua voz ficou a pairar no ar. Ele ergueu os olhos.
O rosto da mãe tornara-se uma máscara.
— Não me disse nada — disse ela.
— Eu… senti que não podia. Não queria estragar este dia — balbuciou Rowan.
Jiller acenou lentamente a cabeça. Depois deu meia volta e afastou-se.
Marlie foi atrás dela, mas Jonn ficou mais um pouco e colocou a mão no ombro de
Rowan. Tinha o rosto franzido de dor, mas a sua voz era firme.
— Você não podia ter sabido, Rowan — disse ele.
— Não culpe a si próprio. Venha conosco para casa agora.
Rowan abanou a cabeça. Não podia ir para casa. Ele sabia que a mãe não se sentiria
reconfortada com a sua presença. No seu íntimo, ela devia detestá-lo pelo que ele fizera.
Pelo que ele não fizera.
Jonn hesitou. Depois apertou o ombro de Rowan e deixou-o.
A multidão moveu-se impacientemente. Rowan viu Allun de pé a um lado, e o seu
rosto, habitualmente bem-humorado, estava tenso e pálido.
— Se um animal atravessou o mar para chegar aqui, quem sabe o que poderá
acontecer a seguir? — perguntou alguém. — Temos que nos armar e preparar.
Timon, o professor, ocupou o lugar de Jonn ao lado de Rowan.
— Há mais alguma coisa que nos possa dizer, Rowan? — perguntou ele num tom de
urgência.
— Não precisamos de saber mais nada — disse bruscamente Val, a moleira, no meio
da multidão. — Quem iria domesticar um animal daqueles de modo a que ele lhe
obedecesse? Quem lhe poria uma coleira de metal em vez de tecido ou cabedal? Quem o
mandaria atravessar o mar para nos atacar? São os Zebak.
O nome odiado caiu sobre a multidão como uma pedra num lago parado. Começaram
a ouvir-se murmúrios, que se foram espalhando.
— Os Zebak foram derrotados em Maris não há muito tempo — protestou Bree do
Jardim. — Eles sofreram baixas pesadas. Será que iriam tentar novamente tão cedo?
— Pode ser que os seus líderes tenham finalmente decidido que uma invasão por mar
é demasiado perigosa — disse Timon. — Assim, eles estão a testar uma nova forma de
nos atacarem… a partir do ar.
Os murmúrios transformaram-se em gritos irados, e muitos cerraram os punhos. Só
os mais velhos dos atuais habitantes de Rin tinham lutado corpo a corpo com os Zebak.
Mas todos eles tinham visto imagens dos rostos cruéis dos Zebak, com as testas marcadas
com uma linha preta que ia do cabelo até ao nariz. Todos sabiam que os seus antepassados
tinham vindo para aquela terra como escravos de guerra dos Zebak. Todos eles estavam
dispostos a lutar para manter a sua liberdade.
À medida que o barulho à sua volta aumentava, Rowan olhou para o local onde vira
Allun. Mas ele já não estava lá.
A velha Lann bateu com a bengala numa pedra, e fez-se silêncio.
— Havemos de falar mais sobre isto — disse ela com firmeza. — Mas primeiro
temos que levantar as mesas do banquete e levar a comida que sobrou para a casa fria.
Não se deve desperdiçar nada. Podem vir aí tempos difíceis.
Rowan ficou em silêncio enquanto a multidão se dispersava para cumprir as ordens
de Lann.
— Sem dúvida que fez o que achou ser melhor, Rowan dos Bukshah — comentou
Bronden num tom ríspido, ao passar por ele. — Você e os seus amigos Maris e
Viajantes… que, já reparei, fugiram ao primeiro sinal de perigo. Mas talvez para a
próxima vez você pense melhor antes de guardar os conhecimentos especiais só para si.
Antes de ele conseguir responder, ela desapareceu.
— A sua gente não compreende o que se passa com você — disse uma voz baixa ao
seu ouvido.
Rowan deu meia volta e viu Perlain ao seu lado. O homem de Maris estava todo
molhado, a pingar.
— Eu não quis interferir na sua reunião — explicou ele. — E estava seco. Por isso
fiquei de molho no riacho, ouvindo. Acho que o homem dos olhos inteligentes… falou
sabiamente.
— O Timon. Sim — murmurou Rowan.
— Este episódio pode ter sido apenas um teste — disse Perlain calmamente. — Mas,
se assim foi, o teste foi bem sucedido. Em breve os Zebak terão a prova de que o animal
deles veio a Rin e voltou.
Rowan sentia a boca seca como pó. Passou a língua pelos lábios.
— Acha que ele vai entregar Annad aos Zebak… viva? — perguntou ele ao fim de
algum tempo. O seu coração começara a bater como o som de um tambor dos Viajantes.
— Acho — respondeu Perlain. — Os Zebak sempre preferiram capturar vivos os
seus prisioneiros.
Embora o sol estivesse quente, Rowan estremeceu como se se sentisse gelado até aos
ossos. A sua mente era um redemoinho de choque e dor, mas no centro do redemoinho
havia um pensamento claro. Annad estava prisioneira por causa dele. Porque ele não tinha
dado o aviso assim que percebera o perigo. Porque ele a deixara ir ao campo dos bukshah
sozinha. Porque ele fora demasiado lento a chegar ao pé dela antes de ela ser levada.
Perlain estava a olhá-lo com um ar pensativo.
— Está a sofrer muito — disse ele. — O que posso eu dar-lhe para o ajudar?
E, subitamente, Rowan soube.
— Pode dar-me um barco, Perlain — respondeu ele. — Vou voltar para Maris com
você. Depois vou à terra dos Zebak procurar a minha irmã e trazê-la para casa.
Perlain abanou a cabeça.
— Não conseguirá fazê-lo, meu amigo. Uma viagem dessas estaria cheia de perigos.
E, no fim, acabaria por ter o mesmo destino que a sua irmã, sem esperança de poder
escapar.
Ele ouviu um som atrás de si e deu um salto ao ver Estrela ali.
— A sua bukshah exige a sua atenção — disse ele com nervosismo, deslocando-se
para o lado.
Rowan esfregou o nariz macio de Estrela, encontrando algum consolo na sua enorme
força lanosa. Ela pressionou o focinho contra ele e a sua garganta emitiu um ruído surdo e
prolongado.
— Não chore — murmurou-lhe ele. — Fez o possível para avisar Annad para que ela
saísse do campo. E protegeu corajosamente as crias. Elas estavam em segurança no
interior do seu círculo.
— O animal compreende as suas palavras? — perguntou, curioso, Perlain.
— Ela compreende o que eu quero dizer — respondeu Rowan. Ele viu o nariz de
Estrela estremecer e virou-se para olhar para o céu. Mas não viu qualquer forma escura…
apenas uma mancha amarela a cintilar no azul. A mancha desceu cada vez mais até a
figura da garota que balançava no enorme papagaio se tornar clara. Zeel.
Estrela bufou suavemente ao ouvido de Rowan. Ele virou-se e viu Ogden, o contador
de histórias, a atravessar o campo em direção a eles.
— Antes de conseguirmos chegar ao nosso acampamento e lançar o papagaio, o
animal já estava muito longe — disse Ogden. — Infelizmente, Zeel perdeu-o de vista. O
sinal que ela enviou foi de desapontamento.
Rowan não ouvira qualquer sinal. Mas ele não estaria à espera de o ouvir. As flautas
de cana dos Viajantes produziam sons demasiado agudos para os ouvidos dos outros
homens.
Os pés de Zeel tocaram com leveza no chão. O papagaio ergueu-se numa onda atrás
dela, depois caiu em dobras suaves, garridas. Ela apanhou-o e dirigiu-se para eles. O vento
puxara-lhe o cabelo para trás. As sobrancelhas retas estavam unidas, e os seus olhos claros
estavam zangados.
Rowan sentiu Perlain ficar tenso ao seu lado.
— Rowan! Ela não é uma Viajante! — silvou o homem de Maris ao seu ouvido. —
Ela não tem a linha preta tatuada na testa… mas, mesmo assim, é uma Zebak! Eu percebo
isso. — A mão dele moveu-se, procurando a faca que tinha no cinto.
— Paz, Perlain — murmurou apressadamente Rowan. — Zeel é Zebak de nascença,
mas foi trazida pelo mar quando era pequena, e Ogden acolheu-a. Ela é de confiança. É
tanto uma Viajante como qualquer membro do seu povo. Acredite em mim.
Perlain baixou a mão, mas permaneceu vigilante enquanto Zeel se juntava a eles.
— Lamento muito, Rowan dos Bukshah — disse ela. — O animal foi muito mais
rápido que eu. — Ela virou-se para Ogden. — Foi como você supôs. Ele virou e seguiu o
caminho mais direto para a costa. Nesta altura, já estará do outro lado das falésias.
Rowan umedeceu os lábios secos.
— Vai atrás dele? — perguntou-lhe Zeel num tom quase casual, atirando o papagaio
de seda por cima do ombro.
Ele anuiu.
— Isso é uma loucura — disse Perlain friamente. — Por mais corajoso que um peixe
possa ser, se ele se atrever a entrar no covil de uma serpente, está condenado à morte.
— Não será apenas um peixe — disse Zeel bruscamente. — Rowan vai ter muitos
companheiros. O povo de Rin está…
— Não — interrompeu Rowan apressadamente, sentindo o rosto a começar a arder.
— Eu irei sozinho.
Zeel pareceu espantada e incrédula.
— Perlain vai me arranjar um barco — prosseguiu Rowan apressadamente, para o
caso de Zeel também começar a argumentar com ele. — E se os Viajantes pudessem
dispensar dois papagaios e dois condutores que nos levassem rapidamente até Maris,
pouparíamos muito tempo.
Ele viu Perlain abrir a boca, alarmado, para protestar, mas Ogden já estava a acenar a
cabeça em sinal de concordância. — Tor poderá ir a Maris — disse ele. — Tor e…
— E eu — interrompeu Zeel.
Ogden sorriu ligeiramente.
— Então… está resolvido.
— É uma loucura! — bufou Perlain. — Os mares daqui até à terra dos Zebak são
traiçoeiros. E mesmo que, por milagre, Rowan consiga sobreviver e chegar a terra, o que
irá ele fazer a seguir? Para onde irá? Ninguém sabe.
Rowan pensou nisso, e o seu estômago pareceu dar uma volta.
— Há alguém que talvez saiba — disse ele com relutância.
Que tolice, pensou ele, olhando para os olhos divertidos de Ogden, ter medo disso,
quando a viagem que se avizinha é tão perigosa.
— Não é uma tolice assim tão grande — sorriu Ogden, e Rowan percebeu, chocado,
de que o contador de histórias tinha lido os seus pensamentos. — Mas é sensato da sua
parte enfrentar o seu medo. O tempo que a reunião durará pode ser bem empregue. — Ele
pensou por um momento, acariciando o queixo, depois ergueu os olhos. — Tenho que te
deixar — disse ele. — A Zeel irá acompanhar-te ao nosso acampamento, quando estiver
pronto.
Ele fez uma vênia e deixou-os. Estrela encostou o nariz ao pescoço de Rowan, e ele
acariciou-a suavemente.
— Eu vou para muito longe, Estrela — disse ele em voz baixa. — Se eu não
regressar, será nomeado outro guardião dos bukshah. Alguém bondoso… não tenha medo.
E, entretanto, a minha mãe tomará conta de você… por mim, e pela Annad.
Os olhos pequenos e sábios de Estrela fitaram-no com gravidade, como se ela
compreendesse e se sentisse infeliz.
Rowan fez-lhe uma última carícia, depois deu rapidamente meia-volta e,
acompanhado de Zeel e do silencioso Perlain, dirigiu-se para o pomar. Serpentearam por
entre as árvores murmurantes na direção da pequena cabana. Rowan não sabia o que o
esperava lá. Só sabia que, se queria encontrar a Annad, ele precisava de ajuda. E a única
esperança de ajuda era Sheba.
A estranha erva pálida que crescia junto da cabana não tinha qualquer marca exceto
um único conjunto de pegadas que iam ter à porta.
— A sua feiticeira já tem uma visita — disse Zeel. — Um homem, julgo eu, com um
passo rápido e leve, como os Viajantes, mas com sapatos mais pesados, como os de Rin.
Rowan pensou que a visita de Sheba talvez fosse a única pessoa em Rin, tirando a
própria Sheba, que o deixaria seguir o seu caminho sem levantar obstáculos. Deixando
Zeel e Perlain, atravessou a erva nas pontas dos pés, aproximou-se da porta da cabana e
pressionou o ouvido contra ela. Uma enorme gargalhada soou no interior, e ele deu um
salto para trás, estremecendo de medo, sentindo que tinha outra vez seis anos.
— Entre, coelho magricela — rosnou Sheba. — Tenho estado à sua espera.
4
A PRENDA
Rowan entrou na cabana, esforçando os olhos para conseguir ver no escuro, e
engasgando-se um pouco no cheiro espesso a fumo, cinzas, pó e ervas amargas que
enchiam a sala.
Sheba estava sentada de costas para a porta. Tinha as mãos estendidas por cima do
fogo, esfregando-as como se estivesse a lavá-las na incandescência vermelha. De pé, no
outro lado da lareira, estava a sua visita. Tal como Rowan tivera esperança que
acontecesse, era Allun. O seu rosto estava pálido de ira.
— O entretenimento aqui tem sido pobre — disse Sheba na voz áspera, sem se virar.
— Este palhaço meio-Viajante não me divertiu com a sua história lamurienta. Uma
fedelha que desapareceu devido à sua própria tolice e à fraqueza do irmão… bah! E agora
ele ficou calado, amuado como uma criança. Você irá proporcionar uma diversão melhor,
coelho magricela.
Ela riu para si própria e abriu os dedos ossudos, admirando as unhas amarelas
compridas que se curvavam nas pontas como garras.
Embora as palavras dela o tivessem magoado e irritado, Rowan esforçou-se por se
manter calmo. Ele sabia que descobrir os pontos mais fracos dos seus visitantes e
espicaçá-los fazia parte do jogo de Sheba. Ela gostava de vê-los estremecer e depois ceder
ao medo ou à fúria.
— Parece que os seus truques não funcionam com toda a gente — troçou Allun. — O
rapaz é demasiado forte para você.
Oh, Allun, fica calado, pensou Rowan com desespero. Você não sabe como ela é
rancorosa. Mas não disse nada.
— Vá-se embora, Allun padeiro — silvou Sheba.
— Estou farta da sua cara idiota.
— Eu também já vi o suficiente da sua — respondeu Allun com um sorriso sombrio.
— Mas prefiro não deixar o meu amigo Rowan a sós contigo.
Sheba lançou-lhe um olhar de desdém e virou-se na cadeira para olhar para Rowan.
— Então, vamos ter uma reunião — disse ela com um sorriso horrível que colocava à
mostra os seus dentes castanhos compridos. — Nesse caso, os seus companheiros… os
que estão lá fora à espreita… têm que se juntar a nós. Apreciaria vê-los cara a cara.
Rowan hesitou.
O sorriso de Sheba desvaneceu-se.
— Vá buscá-los! — trovejou ela.
Rowan foi lá fora e chamou Zeel e Perlain.
— Ela quer que vocês entrem, e tenho a certeza de que não falará comigo se vocês
não vierem — murmurou-lhes. — Mas, quando estiverem lá dentro, não digam nada. Não
cedam à tentação de…
— Um conselho sensato — resmungou Sheba no interior da cabana. — Não tentem
sequer medir as suas faculdades mentais com as minhas. Mostrem-se!
Zeel, com as sobrancelhas juntas e a testa franzida, e Perlain, com o ar impassível
que só um Maris conseguia ter, seguiram Rowan até à divisão escura.
— Ah! Agora a reunião está completa — disse Sheba, olhando as novas visitas de
cima a baixo. — Eu tinha um palhaço mestiço e um fracote de Rin transformado em herói.
Agora, juntaram-se a eles um homem-peixe saído da água e uma Zebak que finge ser uma
Viajante. Que bela coleção de seres estranhos. — Ela riu-se, dando palmadas nos joelhos
que fizeram com que o ar espesso à volta da sua cadeira se enchesse de pó e cinzas.
Rowan viu Zeel inspirar rapidamente, irada, e viu Perlain olhar para ela e depois
velar os olhos. Mas mantiveram-se ambos em silêncio. Allun, infelizmente, não conseguiu
fazer o mesmo.
— Está esquecendo-se de incluir a si própria, boa mulher — disse ele em voz alta. —
O ser mais estranha de todos.
Sheba parou abruptamente de rir.
— Eu não me esqueço de nada, palhaço — rosnou ela num tom de aviso. — E seria
sensato da sua parte lembrar-se disso.
Houve um breve, desagradável silêncio. Depois Sheba virou-se novamente para
Rowan.
— Agora, que prenda trouxe para a velha Sheba, Rowan dos Bukshah? — resmungou
ela. — O que tem para trocar pelo conhecimento que procura? O conhecimento que só eu
te posso dar? Aproxime-se mais. — Ela sorriu o seu sorriso horrível.
— Tenha cuidado, Rowan — murmurou Allun. — Ela cospe como um gato, mas de
uma forma mais desagradável.
Rowan, desanimado, moveu-se mais para o interior da divisão. Esquecera-se
completamente de que Sheba estaria à espera de um presente. Allun tinha-lhe trazido
bolos de mel, arrufadas e uma taça de fruta do banquete abandonado. Rowan via-os num
cesto junto da cadeira. Meteu desesperadamente as mãos nos bolsos, na esperança de
encontrar alguma coisa, qualquer coisa, que pudesse oferecer-lhe.
Ela observou-o em silêncio, à espera.
— Desculpe — disse ele ao fim de algum tempo. — Neste momento, não tenho nada
para trocar. Mas o que eu te peço é… muito importante. Suplico-lhe que me ajude. Se o
fizer, certificar-me-ei de que será recompensada.
— Com que então — sorriu Sheba, com os dentes a brilhar, vermelhos, à luz da
lareira. — Certificar-te-ás, não é verdade? E como, meu pequeno herói, é que vai fazer
isso, quando estiver acorrentado na terra dos Zebak?
Rowan ouviu o suspiro abafado de Allun ao seu lado, mas não se virou para ele, nem
olhou para Perlain nem para Zeel, que estavam ao pé da porta. Ele concentrou toda a sua
força de vontade em Sheba.
— Vou escrever um bilhete, pedindo à minha mãe que cumpra a minha promessa —
disse ele. — Ela fá-lo-á.
— E dar-me-á o que eu te pedir? — perguntou Sheba. Rowan pensou rapidamente.
Ele sabia que ela estava a tentar apanhá-lo numa armadilha.
— Dar-te-ei o que me pedir se isso estiver dentro das minhas possibilidades — disse
ele ao fim de algum tempo. — E se o fato de eu o dar não ferir mais ninguém.
Ele observou Sheba atentamente, mas a velha não manifestou qualquer sinal de
desilusão nem de triunfo. Ela simplesmente acenou a cabeça em sinal de assentimento. —
Escreva, então — disse ela. — A caneta está aí ao seu lado.
Rowan olhou e viu uma caneta, tinta e uma folha de papel em cima de uma pequena
mesa junto do cotovelo de Sheba. Percebendo de que ela tinha planejado tudo desde o
início, ele ajoelhou-se ao lado da mesa e pegou na caneta com uma sensação de temor.
— Rowan, não confie nela — avisou Perlain.
Sheba lançou-lhe um olhar sombrio.
— Silêncio, homem-peixe! — ordenou ela. Mas Rowan tinha pousado a caneta.
— Antes de escrever, dê-me a ajuda que prometeu-me, Sheba — disse ele tentando
manter a voz firme.
Ela sorriu-lhe.
— Você se tornou astuto e ousado, coelho magricela. Astuto como o seu amigo meio-
peixe. Ousado como a garota Zebak de olhos claros. Mas o que o impedirá de fugir
quando eu lhe der o que tenho para dar e te disser o que tenho para dizer?
Rowan permaneceu calado e olhou para o papel. Sentia os olhos ardentes de Sheba
fixos na sua cabeça, mas não ergueu a vista. Ele sabia que, se o fizesse, não conseguiria
manter-se firme.
Passou-se um longo minuto. Depois, Rowan ouviu um suspiro e um ruído como se a
velha estivesse a mover-se na cadeira.
— Muito bem — disse Sheba.
Rowan ergueu o olhar e viu que ela estava a estender-lhe qualquer coisa. Era um
embrulho pequeno, fino, envolto em tecido encerado e atado com um cordão de seda
entrançada e desbotada. Pegou nele, excitado, com o coração a bater com força. O tecido
que o embrulhava era grosso e cheirava muito a fogo, cinzas e ervas amargas. Ele não
conseguiu adivinhar o que poderia estar lá dentro. Começou a puxar o cordão, mas os nós
não se soltaram.
— Só quando chegar à terra que procura é que ele se abrirá — murmurou Sheba. —
O seu conteúdo é para ser usado quando realmente precisar. Quando já não tiver
esperança. Até essa altura, guarde-o bem, porque é precioso.
Rowan enfiou o embrulho dentro da camisa, com os dedos a tremer.
— Eu te dei o que tenho para dar — disse Sheba num tom taciturno. — O que tenho
para lhe dizer será dito depois de ter cumprido a sua parte. Agora, escreva.
Rowan mergulhou a caneta na tinta e escreveu. Mãe, tenho uma dívida para com a
feiticeira Sheba. Deverá ser-lhe entregue…
Ele parou e ergueu a vista, com a caneta suspensa por cima do papel. Os olhos de
Sheba brilhavam. Ela esfregava as mãos, fazendo um ruído seco como algo a ser raspado.
— O que quer? — murmurou Rowan.
— O meu preço é baixo — disse Sheba. — É o novilho preto que nasceu na manada
dos bukshah na Primavera.
Rowan sentiu-se gelar. Os bukshah eram afetuosos e gostavam da companhia uns dos
outros. A idéia de o novilho preto ser obrigado a passar a vida ali sozinho, longe do campo
aberto, longe da sua mãe e dos seus amigos destroçava-lhe o coração.
— O novilho é demasiado… demasiado pequeno para deixar a mãe — balbuciou ele.
Um sorriso lento espalhou-se novamente pelo rosto de Sheba.
— Eu posso esperar. De fato, eu vou estar muito ocupada durante algum tempo, e não
terei tempo para ele.
— Porque é que o quer? — conseguiu Rowan perguntar.
— Porque ele me agrada — Sheba rodou para olhar de frente para ele, e o seu sorriso
alargou-se. — Porque é incomum. Diferente da manada. Como eu. — Ela inclinou-se para
a frente, com o cabelo oleoso a balançar à volta do rosto. — Como os seus amigos que
aqui estão. E como você, Rowan dos Bukshah.
As palavras atingiram o ponto mais sensível da mente de Rowan e permaneceram lá,
queimando como chispas de fogo. Ele baixou os olhos para a caneta.
— Talvez você se preocupe mais com a liberdade do animal do que com a sua irmã
— troçou Sheba. — Se assim é, devolva-me a minha prenda e pare de desperdiçar o meu
tempo.
Rowan soube que tinha que fazer o que ela pedia. Escreveu com um aperto no
coração, depois pôs-se de pé e estendeu-lhe o bilhete. Sheba pegou nele, estudou-o
cuidadosamente estreitando os olhos e depois, satisfeita, acenou a cabeça em sinal de
assentimento.
— Excelente — disse ela dobrando o papel e enfiando-o debaixo da almofada da sua
cadeira. — Então… chegou a altura. — Ela virou-se para Perlain, Allun e Zeel. —
Deixem-nos sozinhos — disse ela abruptamente.
— Eu sinto-me bem aqui — replicou Allun com um sorriso.
Os olhos de Sheba brilharam, vermelhos.
— Por favor vá-se embora — suplicou Rowan.
Zeel e Perlain olharam um para o outro. Zeel anuiu, pegou no braço de Allun e
puxou-o. Perlain abriu a porta e juntamente com Zeel, conseguiu persuadir Allun a sair. A
porta fechou-se atrás deles e o ferrolho caiu com um estalido.
A pequena divisão pareceu vazia sem eles. Rowan permaneceu de pé ao lado da
cadeira de Sheba, sentindo-se muito só.
5
OS VERSOS
Sem prestar atenção a Rowan, Sheba inclinou-se, tirou uma mão cheia de pauzinhos
da caixa que estava ao lado da sua cadeira e atirou-os para o fogo. Eles arderam
instantaneamente, com chamas vermelhas e verdes a dançarem na madeira enegrecida.
Sombras disformes saltavam pela sala como espíritos malignos. Rowan sentiu medo e
começou a ter uma sensação de formigamento na pele.
— Estenda a mão! — ordenou Sheba subitamente. Rowan estendeu hesitantemente a
mão direita e a velha pegou-lhe no pulso. Agarrou-o com força e as suas unhas afiadas
penetraram-lhe na pele. Ele respirou fundo e ergueu a vista. Os seus olhos cruzaram-se
com os dela. Estes eram estranhamente trocistas e muito, muito profundos. Ele não
conseguiu desviar o olhar.
— Agora vamos ver qual de nós dois é o mais forte — entoou Sheba, numa voz
alterada. Os seus olhos tornaram-se ainda mais profundos, atraindo-o. Era como se ele
estivesse a cair dentro deles, mergulhando, mergulhando…
Depois, vagamente, como se ela estivesse muito longe, ouviu Sheba cacarejar. Fez
um esforço, pestanejou e o feitiço quebrou-se. Ela estava rindo na sua cara, ainda a
agarrar-lhe no pulso.
— Vamos lá — sorriu ela. Com uma força espantosa, ela arrastou-lhe a mão na
direção do fogo. As chamas tremeluziram mais alto, lambendo os dedos de Rowan como
línguas ansiosas, chamuscando e queimando.
Com um grito, ele esforçou-se para se afastar, mas Sheba agarrava-o com uma dureza
de pedra e já não o ouvia. Tinha a cabeça atirada para trás, os olhos fechados, e estava a
balbuciar para si própria, oscilando ligeiramente de um lado para o outro. O fogo
queimava cada vez mais alto… ela começou a falar. As palavras chegaram até Rowan
através de uma névoa de dor:
8
A MÃO DO DESTINO
O embrulho estava encharcado — o tecido encerado não tinha conseguido resistir a
estar tanto tempo no mar.
— Rowan! O presente de Sheba… como é que eu pude me esquecer? — exclamou
Allun sentando-se ao seu lado. — Depressa, abre-a! Pode ser a única coisa que nos pode
ajudar agora.
— Está completamente molhado — disse Zeel franzindo a testa. — O que quer que
esteja lá dentro pode ter-se estragado.
Rowan puxou o cordão entrançado que atava o embrulho. Desta vez os nós soltaram-
se facilmente. Ele retirou o cordão e começou a desembrulhar lentamente o tecido
encerado. Tinha medo do que pudesse encontrar no interior. Não conseguiria suportar a
idéia de que o conteúdo se tivesse estragado. Ele tinha prometido o bukshah preto a Sheba
em troca daquele embrulho e depositara todas as suas esperanças nele.
O tecido estava dobrado muitas, muitas vezes. A maior parte da espessura do
embrulho era devida a isso. Havia muito menos no interior do que Rowan julgara.
— O que quer que ela nos tenha dado, protegeu-o bem — comentou Allun em tom de
dúvida.
— Dir-se-ia que quase demasiado bem para fazer sentido — acrescentou Perlain,
com o rosto impassível.
Com o coração a bater com força, Rowan retirou o último pedaço do tecido de
embrulho, revelando finalmente o que estava lá dentro.
Um pedaço de metal sujo. Um pequeno feixe da erva clara que crescia à porta da
cabana de Sheba. E alguns pauzinhos.
Ele ficou a olhar, incrédulo. A decepção era tão amarga que lhe fez vir lágrimas aos
olhos.
— O que é? — perguntou Zeel em voz baixa. O rosto de Perlain estava sério.
— Aquilo que eu temia. A bruxa pregou-nos uma partida… para se vingar de mim
por ter avisado Rowan para que não confiasse nela, para se vingar dele por me ter dado
ouvidos. Ele disse-lhe que não poria a sua promessa por escrito antes de ela lhe entregar a
sua parte do acordo.
— Ela deu-lhe uns pauzinhos do seu cesto da lareira, Rowan. E acrescentou um
pouco de erva e um pedaço de ferro velho para fazer peso — murmurou Allun, com
desprezo.
Zeel cerrou os dentes.
— Sem dúvida que ela acredita que não vai regressar e, por conseguinte, está segura.
— Desculpem — disse Rowan em voz baixa.
— Não tem nada que pedir desculpa — disse Allun. — Sheba deve ter planeado
enganar-te. Lembra-se que o embrulho estava pronto, à espera que ela o entregasse. A
culpa não é sua, nem do Perlain… nem minha, para variar.
Ele baixou os olhos para as mãos. Era óbvio que, apesar de ter falado num tom
ligeiro, sentia-se desanimado com o que acontecera. Zeel e Perlain também estavam
calados, a olhar para a fogueira. Rowan sabia que os mesmos pensamentos estavam em
todas as mentes. Uma pederneira. Um saco de água. Um pedaço de corda. Uma faca. Não
tinham forma de regressara casa. E dentro em pouco iria nascer o dia. Para onde havemos
ir? O que vamos fazer?
— Ainda há os versos — murmurou ele.
— Mas o que é que significam eles? — perguntou Zeel com azedume. — É
impossível compreendê-los.
— Não é nada impossível. A Sheba simplesmente não nos contou bem — gracejou
Allun. — Eu tenho estado a pensar nisso, e tenho a certeza de que, embora sejamos só
quatro, nós somos os dedos da mão do destino. Zeel é o dedo médio alto, direito. Perlain é
o irrequieto dedo mindinho no fim. Eu sou o anelar, que só serve para decoração. E
Rowan é o pequeno polegar forte que nos obriga a que nos comportemos como deve ser.
Até mesmo Perlain sorriu com as palavras de Allun, mas o sorriso depressa se
desvaneceu.
— Talvez tenha razão — disse ele em voz baixa. —
E talvez esta seja, afinal, mais uma das brincadeiras da Sheba, pois o dedo em falta é o
apontador. O que mostra o caminho. E com certeza que é exatamente dele que precisamos.
Zeel mexeu-se, impaciente, depois tirou um pedaço de madeira a arder do fogo e pôs-
se de pé. Passado pouco tempo, ela estava a subir as dunas de areia situadas atrás deles,
utilizando a madeira como archote. Um momento depois, Allun foi ter com ela. Foram os
dois rapidamente engolidos pela escuridão, mas Rowan viu a luz trêmula subir ao cume
das dunas e depois mover-se de um lado para o outro enquanto Zeel se deslocava em todas
as direções para perscrutar a terra ao longe.
— Não saias da nossa vista — gritou Perlain. — Não saia da praia.
— Perlain — disse Rowan em voz baixa —, que lugar é este? Porque é que está com
medo dele? Diga-me.
Perlain mexeu-se no seu lugar, pouco à vontade.
— Eu penso… que estamos na orla daquilo a que tenho ouvido chamar As Terras
Perdidas — disse ele ao fim de algum tempo. — Não sei nada sobre elas a não ser que se
diz que são ermas e estéreis. É território Zebak, mas nenhum Zebak se aventura a entrar
nas Terras Perdidas. É um lugar proibido.
— Porquê? — perguntou Rowan.
Perlain virou a cara para o outro lado.
— Não sei — balbuciou ele.
Ele ergueu a vista e viu Zeel e Allun a regressar. O archote era agora apenas uma
pequena chama.
— Não lhes diga nada ainda, Rowan — murmurou. — Talvez eu esteja enganado a
respeito de onde estamos. Espero estar.
Zeel e Allun sentaram-se novamente em frente da fogueira.
— Há uma luz, muito sumida e muito distante, naquilo que poderá ser o horizonte —
relatou Zeel atirando o archote a arder novamente para o lume. — Nós conseguíamos
ouvir gritos e ruídos de algo a raspar. Mas nada mais. A escuridão é quase total. Nem se
consegue distinguir as árvores do céu. Eu estava com esperança de poder lançar o
papagaio e assinalar o nosso percurso, mas temos que aguardar até ao nascer do dia.
— Como você disse — murmurou Perlain. — O nascer do sol será o teste.
Fez-se um silêncio desconfortável, quebrado apenas pelo som das ondas a
quebrarem-se na areia e do fogo a crepitar.
Rowan atirou um dos paus do embrulho para as chamas, mas ele ainda estava
demasiado molhado para arder e apenas fumegou. Ele olhou para ele, abanando a cabeça.
O embrulho de Sheba, com que ele tão tolamente contara, não era útil sequer para arder.
Como pôde ele deixar-se enganar por um dos truques dela? Como podia ele ter confiado
nela?
Porque ela sempre mostrara ser merecedora de confiança.
O pensamento veio-lhe à mente e ficou lá.
Ele olhou para o pedaço de metal, que, juntamente com os restantes quatro paus,
ainda estava em cima do tecido encerado que ele tinha no colo. Pegou nele e segurou-o
contra a luz. Não era apenas ferro velho, nem parte de uma grade de lareira velha, como
ele pensara no início. Estava sujo e baço, e era pesado, mas era… um medalhão.
Sentiu um lampejo de esperança no coração. Esfregou o medalhão na camisa. À
medida que a sujeira e a fuligem saíam da superfície baça, Rowan viu que ele estava
decorado e que havia um pequeno aro de metal num dos extremos. Era para ser usado num
fio — ao pescoço, sem dúvida.
— Pode ser mais útil do que parece — disse ele num tom hesitante, segurando-o de
modo a que os olhos conseguissem vê-lo.
Allun estendeu a mão e Rowan deu-lhe o medalhão. Mas fê-lo com relutância.
Subitamente, tomara consciência de que não queria largá-lo. Olhou ansiosamente
enquanto ele andava de mão em mão.
— Talvez seja um amuleto — disse Zeel, observando-o com curiosidade. —
Talvez nos traga sorte. — Ela passou-o a Perlain e voltou a olhar para a fogueira,
pensativa, com a testa franzida.
— Até agora não nos trouxe muita sorte — comentou Perlain devolvendo o medalhão
a Rowan. — Mas vamos ver.
Rowan manteve o pedaço de metal liso apertado na mão, avaliando-lhe o peso. Seria
alguma coisa? Ou não era nada? Não sabia. Mas Sheba tinha dito que o embrulho era
precioso. E o medalhão era a única coisa nele que poderia ser valiosa.
Com um impulso súbito, pegou no cordão de seda entrançada que amarrara o
embrulho e enfiou-o através da pequena argola de metal. Trabalhando rapidamente, atou
as pontas do cordão e colocou-o à volta do pescoço, de modo a que o medalhão lhe caísse
sobre o peito, dentro da camisa.
Depois de ter feito isso, sentiu-se estranhamente aliviado. Agora que o medalhão
estava seguro, protegido e escondido, era como se um enorme peso lhe tivesse sido
retirado da mente.
Mas porquê? perguntou ele a si próprio. Mesmo que fosse um amuleto mágico, por
que motivo deveria mantê-lo secreto? E se fosse apenas um ornamento, sem qualquer
significado… Abanando a cabeça, sorriu interiormente da sua própria tolice.
— Rowan!
A princípio, ele não reconheceu a voz de Zeel que lhe chegava muito baixa, muito
abafada. Ergueu a vista, sobressaltado. Zeel estava a afastar-se da fogueira, apontando
para as chamas. Tinha os olhos muito abertos, assustados.
Rowan olhou para o fogo. O pau molhado que ele atirara para lá tinha secado e
começado a arder. Chamas verdes dançavam ao longo de todo o seu comprimento. O fogo
verde disparava em várias direções, com laivos vermelhos e cor de laranja.
Ele ficou a olhar, fascinado. Ouviu as exclamações de Allun e Perlain quando eles
repararam no que estava a acontecer, mas não conseguiu desviar o olhar. Havia uma forma
a crescer no meio das chamas. Um rosto. Um rosto com olhos vermelhos, a fitá-lo.
E havia uma voz. Ela silvou dentro do seu cérebro como o próprio fogo, e a sua mão
começou a latejar de dor, à medida que ouvia as palavras:
10
O PERIGO DA NOITE
Partiram pouco antes do pôr-do-sol, quando o sol era uma bola de fogo escarlate a
arder baixo no horizonte à frente deles. O céu estava manchado de vermelho. Até o ar
parecia vermelho quando eles deixaram a areia das dunas e começaram a atravessar a
imensidão de pedras lisas, ainda quentes debaixo dos seus pés.
Caminhavam rapidamente, de cabeça baixa para que o sol não lhes queimasse os
olhos, a olhar para os pés para não tropeçarem.
— Os versos diziam que o nosso caminho seria duro e pedregoso — queixou-se
Allun. — Mas não nos avisou sobre os pés assados. Estas pedras são como tabuleiros
acabados de sair do forno.
— Em breve elas estarão frias — disse Zeel. — Penso que mais tarde ficará frio.
Acontece sempre isso em espaços grandes e vazios como este.
— Gosto de saber isso — comentou Perlain por cima do ombro. Ele ia muito à frente,
quase a correr por cima das pedras, ansioso por chegar ao chão mais macio, mais fresco,
que ficava ao longe. Ele levava um cobertor molhado em volta da cabeça e dos ombros
para se proteger do calor que o secava.
— Talvez o sol no alto seja o perigo durante o dia, e o frio o perigo vindo de baixo
que nos ameaçará durante a noite — sugeriu Allun.
— Nós conseguimos suportar o frio — disse Zeel num tom decidido. — Juntamo-
nos bem e embrulhamo-nos na seda do papagaio para aquecermos. Eu, o Tor e o Mithren
fizemos isso muitas vezes… no passado.
Quando ela disse as últimas palavras, a sua voz alterou-se. O seu rosto, habitualmente
forte, ávido, estava triste. Parecia mais suave e perdido.
Ela sente a falta do seu povo, pensou Rowan. Está a pensar se voltará a sobrevoar os
campos verdes com Tor e Mithren, ou a passear descalça na erva com Ogden. Está a
perguntar a si própria se voltará a ver a sua terra natal.
Ele viu Zeel levantar os olhos, franzindo a testa, para o horizonte incandescente onde
os lampejos de prata que assinalavam a cidade Zebak se misturavam com o escarlate do
céu.
Ela já viveu naquela cidade. O pensamento veio-lhe subitamente à idéia com um
pequeno choque. Como era fácil esquecer que Zeel não nascera uma Viajante, mas sim
uma Zebak. Lembrar-se-ia ela de alguma coisa da sua vida passada? Estariam algumas
recordações, boas ou más, a perturbá-la naquele momento?
— Até que enfim! Estamos chegando ao fim destas malditas pedras! — A
exclamação de Allun interrompeu os pensamentos de Rowan, e ele dirigiu o olhar para o
caminho à sua frente.
De fato, as rochas muito juntas estavam a dar lugar a argila lisa, rachada, e aos
tapetes de plantas que eles tinham visto das dunas de areia. E certo que havia também,
espalhadas, pedras granulosas, sarapintadas, mas estas poderiam ser facilmente evitadas.
Perlain já tinha chegado à orla das rochas. Olhou para trás, sorrindo aos seus
companheiros e pôs os pés na argila.
Depois, com um grito de choque, ergueu as mãos ao ar e desapareceu.
— Perlain! — gritou Rowan. Mas ele mal conseguia ouvir a sua própria voz… ou as
vozes de Allun e Zeel. Pois, quando eles gritavam, era como se a planície inteira gritasse
com eles e começasse a mexer-se.
As massas informes sarapintadas estavam vivas. Estavam a levantar-se, abrindo as
asas escamosas, saindo das pedras planas em cima das quais se tinham agachado e
erguendo-se no ar. Como um enorme bando de aves horríveis, inchadas, sem asas, os
animais disputavam o espaço, silvando e soltando gritos de medo estridentes. E de debaixo
da terra veio outro som… um som terrível de algo a arranhar e a fazer estalidos que fazia
gelar o sangue.
Zeel tinha chegado à orla das pedras e já estava a descer para o buraco na terra onde
Perlain tinha desaparecido.
— Perlain, aqui! — chamou ela, estendendo a mão. E ouviu-se novamente o som de
algo a arranhar, desta vez mais alto, e o tom da voz dela subiu, transformando-se num
grito estridente. — Oh, por favor! Allun! Ajuda-me!
Os animais voadores enchiam o ar aos milhares, ocultando as pedras da vista de
Rowan. Ele avançou desesperadamente, com os braços levantados para proteger os olhos.
Os seres escamosos chocavam contra as suas costas, cabeça e ombros, agarrando-se à
roupa e ao cabelo com as suas pequenas garras, batendo freneticamente as asas. Ele
agarrava-as, arrepiado, e tentava arrancá-las de cima de si.
— Rowan! — ouviu ele Allun chamar. — Aqui!
Aqui! E Zeel estava a gritar.
— Oh, eu não consigo segurá-lo. Ele agarrou-o!
Oh, ajudem-me!
Rowan deu meia volta e correu cegamente na direção do som.
Ao fim de algum tempo, conseguiu chegar à borda das pedras, onde Allun estava
estendido de barriga para baixo, com os braços em volta da cintura de Zeel, a puxar com
toda a força. Zeel estava deitada, com o corpo metade dentro e metade fora de um buraco
pouco fundo, com os braços estendidos na direção de um buraco negro situado a um dos
lados. Rowan compreendeu imediatamente o que se passava. Perlain tinha caído num
túnel que passava por baixo da planície. A camada fina de argila que formava o teto do
túnel tinha caído com o seu peso.
A princípio, Rowan não conseguia ver Perlain. Depois percebeu que as mãos
castanhas e magras de Zeel estavam a agarrar nos tornozelos de Perlain. O resto do seu
corpo estava escondido na escuridão do túnel. Zeel estava a tentar puxar Perlain, mas
havia algo que lhe oferecia uma enorme resistência.
— Não consigo segurá-lo! — exclamou ela de novo.
— Rowan, ajude-me! — gritou Allun.
Rowan estava petrificado. Uma dúzia de pensamentos invadiu-lhe a mente
aterrorizada. Ele podia segurar Allun e ajudá-lo a puxar. Podia saltar para o buraco para
junto de Zeel e tentar ajudá-la a libertar Perlain do que quer que o tinha atacado.
Mas ele sabia que não era suficientemente forte para que os seus esforços fizessem
mais do que uma pequena diferença. O medo talvez lhe desse forças para um último
esforço, mas essa força não duraria muito. Não o tempo suficiente.
Com um solavanco súbito, Zeel foi puxada para a frente, levando Allun consigo.
— Rowan! — gritou Allun, esforçando-se por não largar Zeel e tentando
desesperadamente arrastá-la para as pedras.
A terra em volta do buraco mexeu-se quando o que quer que estivesse debaixo dela, o
que quer que tivesse visto Perlain como sua presa, se sacudiu furiosamente. A argila abriu
uma fenda e desintegrou-se numa linha comprida e torta, mostrando claramente a
trajetória do túnel que passava por baixo da sua superfície e a forma longa e torcida do
animal no seu interior.
Ouviu-se um rosnado baixo, horrível. A fenda na argila tornou-se maior. Os seres
sarapintados gritaram e puseram-se em fuga, aterrorizados; as suas asas bateram no rosto
de Rowan, obrigando-o a baixar a cabeça, e ele olhou para as pedras debaixo dos pés.
As pedras…
— Rowan!
Um enorme esforço…
Mal pensando no que estava a fazer, Rowan inclinou-se e arrancou uma pedra grande
do chão. Retesando os músculos, ergueu a pedra por cima da cabeça e atirou-a com toda a
força para a linha de argila rachada.
— Agora! — gritou ele, ao mesmo tempo que atirava a pedra. — Allun! Zeel! Puxem
agora!
A pedra atravessou a argila e atingiu o que quer que estava por baixo dela.
Ouviu-se um grito áspero, a terra ondulou e subitamente Allun estava a cambalear
para trás, puxando Zeel para as pedras; o corpo mole de Perlain vinha com ela, como uma
rolha de cortiça a ser tirada de uma garrafa.
— Tragam-no para trás! — gritou Rowan, correndo a ajudá-los a levar o homem de
Maris para cima das pedras. — Para trás!
Mas eles tinham conseguido dar apenas alguns passos quando a pedra que Rowan
atirara surgiu de novo à superfície no meio de uma chuva de argila, e o animal a rugir que
estava debaixo da terra arremeteu em perseguição deles.
Ele irrompeu através do buraco no seu túnel em ruínas, empinando-se, precipitando-
se sobre eles com as suas enormes tenazes curvas a abrir-se e a fechar-se, rasgando o ar,
com os segmentos castanho-avermelhados do seu enorme corpo a ondular quando ele se
movia, e as suas mil pernas minúsculas a retorcer-se como vermes com chifres.
Zeel gritou… um grito estridente, de terror, que era ainda mais horrível do que o
rugido do animal.
Com os três a segurar Perlain, deram meia volta e correram o mais depressa que
conseguiram, tropeçando nas pedras, à espera, a cada momento, de ouvir o som do animal
atrás deles.
Mas não houve qualquer som. E quando, ao fim de algum tempo, olharam para trás, a
única coisa que viram foi o céu vermelho, a planície e os animais pequenos, granulosos, a
voar hesitantemente em círculos por cima dela.
Com um soluço, Zeel deixou-se cair em cima das pedras com a cabeça apoiada nas
mãos. Allun e Rowan baixaram suavemente Perlain até ele ficar deitado ao lado dela. O
homem de Maris estava coberto de argila da cabeça aos pés. Os seus olhos pareciam estar
selados.
Allun ajoelhou-se e pressionou o ouvido contra o peito de Perlain. Rowan ficou a
olhar para ele, de respiração suspensa, e soltou um longo suspiro de alívio quando Allun
ergueu a cabeça e acenou a cabeça em sinal afirmativo.
Ele pegou no saco da água e umedeceu os lábios de Perlain.
— Está em segurança, Perlain — murmurou ele. — O cobertor deve ter-lhe
protegido. E o animal desapareceu. Acorde, Perlain.
Ao fim de algum tempo, Perlain abriu os olhos. Estes estavam vidrados de medo.
— Serpente! — silvou ele.
— Não — estremeceu Zeel ao seu lado. — Ishkin. Allun e Rowan olharam para ela,
espantados. Por baixo da camada de argila, o seu rosto estava pálido, e a boca tremia-lhe.
Rowan nunca pensara ver Zeel, normalmente tão forte, com aquele ar.
— Zeel, você se lembrou — disse ele em voz baixa, percebendo subitamente do que
acontecera.
Ela umedeceu os lábios e acenou afirmativamente a cabeça.
— Eu… lembro-me de uma gravura — disse ela com voz rouca. — Uma gravura…
horrível, assustadora. Costumavam mostrar-me quando eu me portava mal. Quando eu…
desobedecia. Tinha-me esquecido. Até agora, quando vi… — Ela calou-se, depois
obrigou-se a si própria a continuar. — Também havia palavras. Apontavam todos para
mim e entoavam uns versos. Lembro-me deles. Lembro-me de ter muito medo. Eram
assim:
12
O ESPELHO PARTE-SE
Quantos desgraçados foram atirados para as Terras Perdidas para morrer? —
murmurou Allun. — Quantos milhares, ao longo dos séculos, para criar este… este horror.
Ele olhou com ódio para os animais grumosos, cujo motivo para se reunirem em tão
grande número e naquele local parecia agora horrorosamente claro.
— Olhe para eles… à espera que nós morramos, para nos comerem a carne —
resmungou ele. — Perguntou como é eles se alimentavam, Rowan. Agora já sabe a
resposta.
— Pode não ser — disse Rowan em voz baixa. Mas os animais aproximavam-se
deles, empurrando-os contra a muralha, silvando ansiosamente. Estavam tão perto que eles
conseguiam ver as suas línguas bifurcadas a entrar e sair da boca, e os seus pequenos
olhos ávidos.
Agora ele conseguia ver como eles se pareciam com o animal que levara Annad.
Eram os seus familiares mais pequenos e compensavam em número o que lhes faltava em
tamanho e força.
— Vão embora! — Zeel avançou ameaçadoramente e os animais afastaram-se. Mas
apenas por um momento. Ao fim de pouco tempo regressaram, empurrando-os mais uma
vez.
Os quatro companheiros ficaram a olhar para a muralha.
Atrás de si, o sol estava a clarear e a tornar-se cor-de-rosa. A muralha tinha começado
a refletir a cor. Ela também começou a refletir os seus rostos pálidos, cansados e os
animais a cercarem-nos, como seres de um pesadelo.
De ambos os lados, a muralha estendia-se na distância — intermináveis placas de
metal luzidio fundidas umas nas outras. Não havia qualquer buraco nem fenda. Nem
puxador nem batente. Nem sinal de um portão. Eles não tinham qualquer possibilidade de
escapar ao calor que aí vinha. E os ossos cintilavam no chão até onde a vista conseguia
alcançar.
— Será que viemos tão longe e sofremos tanto só para morrermos à vista desta
maldita cidade? — exclamou Allun.
Subitamente, as palavras de Sheba vieram à mente de Rowan.
Quando precisares realmente deles…
Ele tirou o embrulho da camisa e retirou um dos quatro paus que restavam.
— Zeel… temos que fazer uma fogueira — disse ele num tom de urgência. — Temos
que ver se Sheba pode nos ajudar.
Zeel cerrou os lábios.
— A bruxa atraiu-nos para este lugar de morte com as suas instruções para que
seguíssemos a luz. Ela traiu-nos.
— É verdade. — A voz de Allun era sombria. — Por razões que só ela conhece ou
por pura maldade, Sheba não quer que regressemos a Rin.
Rowan não conseguia acreditar nisso. Recusava-se a acreditar. Olhou para Perlain. O
homem de Maris estava encostado à muralha. Tinha os olhos fechados.
— Zeel, por favor! A pederneira! — suplicou ele. — Dê-me. Tenho que tentar. O sol
está quase a nascer. Em breve vai ficar calor. E Perlain… — Ele calou-se, sem conseguir
dizer mais nada.
Caiu de joelhos e remexeu os ossos, à procura de folhas mortas e galhos das plantas
do deserto trazidos pelo vento. Quando já tinha o suficiente para fazer uma pequena
fogueira, empilhou-os à sua frente, com o pau equilibrado no topo. Depois estendeu a
mão.
Zeel, relutante, deu-lhe a pederneira. Rowan fez uma faísca, e as folhas secas e os
galhos no meio dos ossos pegaram imediatamente fogo, fazendo fumaça no início e
irrompendo seguidamente em chamas.
O pau tremeluziu e ficou verde, depois começou a arder com força. O rosto de Sheba
apareceu, trêmulo, no fogo. Rowan ficou a olhar, fascinado pela imagem… pela sua força
crescente, pelos olhos vermelhos profundos. A sua mão direita começou a queimar tanto
que quase gritou de dor. E depois ele ouviu a voz:
“Ao amanhecer o inimigo ataca,
Enquanto a fome guincha, o espelho racha
Então, empurrado contra essa parede cintilante,
Como um verme por entre os ossos rastejarás…
Agora é inútil resistir ou suplicar…
Contorce-te suavemente, enquanto os animais estiverem a devorar.”
13
O LABIRINTO
A princípio, Rowan tentou fixar o caminho, mas depressa desistiu. Havia demasiadas
voltas e todos os corredores pareciam iguais. Além disso, agora que o perigo imediato de
serem descobertos pelos guardas tinha passado, o terrível cansaço que sentira ao pé da
parede estava novamente a invadi-lo. Pôr um pé à frente do outro era um enorme esforço.
A única coisa que lhe apetecia fazer era deitar-se a dormir.
— Isto é uma loucura — murmurou Allun, quando viraram pela décima ou décima
segunda vez. — Nunca haveremos de conseguir sair deste labirinto.
Rowan mal conseguia ouvi-lo. As pancadas secas, os rugidos, eram agora muito altos
e ele estava quase a dormir em pé.
— Se isto é um labirinto, acho que talvez tenhamos chegado ao centro — ele ouviu
Zeel dizer.
Ergueu a vista, cansado, e compreendeu o que Zeel queria dizer. Ao fim do corredor
em que tinham acabado de entrar havia uma porta de metal brilhante. Colada a ela estava
um desenho a preto e branco, mas ele não conseguia ver o que era.
A cada passo que davam, o rugido aumentava. Mesmo assim, Rowan conseguia ouvir
Perlain a respirar dolorosamente, enquanto seguia com dificuldade no meio de Allun e
Zeel, tentando apressar-se.
Chegaram, finalmente, suficientemente perto para conseguirem ver o desenho na
porta com nitidez. Era um crânio branco sorridente no meio de um quadrado preto.
Pararam abruptamente.
— Isto não tem um ar muito promissor — comentou Allun, de cenho franzido.
— Não significa que exista perigo para todos no interior da porta. Significa que é
proibido lá entrar e que o castigo por entrar é a morte — disse Zeel lentamente. Ela viu-os
olhar para ela com um ar de surpresa e encolheu os ombros. — Eu recordo-me — disse
ela. — Deve ser uma das primeiras coisas que nós aprendemos.
Nós, pensou Rowan através da sua névoa de cansaço. É a primeira vez que ouço Zeel
dizer nós ao falar dos Zebak. Ele olhou para o rosto perturbado de Zeel e uma sensação de
desconforto invadiu-lhe o peito.
Perlain agitou-se debilmente, tentando fazer com que Allun e Zeel continuassem a
andar. Eles ajudaram-no a chegar, cambaleante, à porta. Esta estava fechada com um
cadeado. Ele tentou inutilmente abri-lo com as suas mãos palmadas e gemeu.
— Perlain, como é que pode haver água lá dentro? — perguntou suavemente Allun.
— Há… água — disse Perlain com voz rouca, arranhando a porta. — Eu… tenho
que…
Zeel, com um ar severo e decidido no rosto, tirou a faca do cinto. Rowan sentiu
medo. Mas, em seguida, ela ajoelhou-se, pegou no cadeado com as mãos queimadas pelo
sol e começou a trabalhar nele com a ponta afiada.
— Isto eu aprendi com os Viajantes — murmurou ela. — Os Viajantes não gostam de
cadeados. Nem de castigos.
Ao fim de alguns angustiantes minutos, o cadeado deu um estalido e soltou-se. Zeel
pôs-se de pé e recuou um pouco. Rowan percebeu imediatamente que ela, embora tivesse
partido o cadeado, não tinha coragem para empurrar a porta.
Ele avançou para o fazer por ela, mas Perlain antecipou-se. Aporta abriu-se para um
espaço escuro ressonante do qual vinha um rugido quase ensurdecedor. Perlain não lhe
prestou atenção. Antes de alguém conseguir impedi-lo, já ele tinha passado a porta.
Rowan e Allun foram atrás dele. Zeel seguiu-os com relutância. Era óbvio que ela
tinha medo. Rowan interrogou-se novamente sobre a força da sua educação em pequena.
Tal como o seu medo dos ishkin, o medo do aviso era algo que ela não conseguia
controlar.
A luz do corredor jorrou na sala atrás da porta, brilhando num chão de metal. Mas
assim que eles entraram, Zeel fechou a porta com um empurrão e encostou-se a ela.
A escuridão era total. O espaço pulsava de som — um som semelhante a um rugido,
o som de água a precipitar-se. Rowan não conseguia ver nada. Estendeu os braços às
cegas.
— Allun! Perlain! — gritou ele, em pânico. Ouviu-se um ruído de algo a bater em
algum lugar à direita de Rowan, e Allun soltou um grito de dor.
Rowan começou a andar na direção do som, com o coração a bater com força.
— Está tudo bem. Desajeitado como sou, bati com a cabeça em qualquer coisa! —
gritou Allun. — O que foi? Esperem! Eu penso… sim! — Ouviu-se um ruído de algo a
arranhar, e apareceu uma pequena luz. Esta cintilou, depois tornou-se mais viva. Rowan
conseguiu finalmente ver o rosto de Allun, manchado com um risco de óleo escuro e a sua
mão a segurar uma lamparina a óleo suja. Allun sorriu.
— Se era necessário bater em qualquer coisa, ainda bem que foi isto — disse ele. —
Estava pendurada aqui, mesmo ao pé de mim, com fósforos numa prateleira ao seu lado,
tudo completo. Agora vamos poder ver onde estamos.
Ele ergueu a lamparina bem alto e moveu-a lentamente em volta. Rowan susteve a
respiração.
Estavam em cima de uma plataforma de metal suspensa sobre a orla de um enorme
lago subterrâneo — um lago do tamanho do campo dos bukshah em Rin. Ao lado deles,
ocupando a maior parte da plataforma, havia uma máquina monstruosa a trabalhar,
vibrando incessantemente. A lamparina tinha estado pendurada de uma prateleira ao seu
lado. Na prateleira estavam luvas, algumas ferramentas e uma lata de óleo.
Allun apontou para os canos prateados que saíam, serpenteantes, da água, subiam as
paredes e desapareciam dentro de buracos no teto.
— Eles bombeiam água para a cidade a partir daqui — exclamou ele, espantado. —
O lago é como uma enorme fonte. Esta máquina deve ser uma bomba gigante que trabalha
sozinha. Quem iria acreditar numa coisa destas?
Rowan olhou para a porta. Zeel permanecia de pé, completamente imóvel e em
silêncio. Tinha o rosto pálido e tenso.
Ele voltou-se para Allun e juntos aproximaram-se cautelosamente da orla da
plataforma, ajoelharam-se e espreitaram por cima da orla. Na água negra abaixo deles
flutuava Perlain. Tinha os olhos fechados, mas eles viram que não lhe tinha acontecido
nada de mal. Ele estava a recuperar lentamente as forças. Já não estava tão pálido e
respirava regularmente.
Ao olhar para baixo, Allun estremeceu. Rowan soube o que ele estava a pensar. Se
eles, no escuro, tivessem tropeçado na beira da plataforma e caído naquela água funda,
certamente que teriam se afogado. Perlain estaria demasiado fraco para salvá-los.
Como se sentisse o olhar deles, Perlain abriu os olhos, ergueu-os para eles e sorriu
tranqüilamente.
— Você tinha razão, Perlain — gritou-lhe Allun.
— Claro. Um homem de Maris consegue cheirar água onde quer que ela exista —
respondeu Perlain num tom sonolento.
— Descanse e absorva bem a água, Perlain — disse Rowan. — Nós estaremos de
volta daqui a pouco.
— Uma hora — retorquiu Perlain fechando novamente os olhos. As pálpebras do
próprio Rowan fecharam-se. Ele estava cansado. Muito cansado…
Sacudiu-se. Não havia tempo para dormir. Virou as costas para lago e seguiu Allun e
a sua luz até à porta onde Zeel ainda estava à espera.
— Este lugar é provavelmente tão seguro como qualquer outro para descansarmos —
disse Allun, acima do rugido da bomba. — Um pouco barulhento talvez, mas não se pode
ter tudo.
Sem dizer uma palavra, Zeel estendeu a mão para a lamparina. Allun pareceu
surpreendido, mas deu-lhe. Ela olhou-a cuidadosamente, rodou-a várias vezes, sem se
importar com o óleo preto que lhe deixou nos dedos.
Ela lembra-se de lamparinas iguais a esta, pensou Rowan, observando-a, fascinado.
Provavelmente tinha sido avisada para que não as tocasse. No entanto, ela sentia-se atraída
pela chama, como acontece com as crianças. E ela recorda-se.
Zeel pousou a lamparina no chão e ergueu os olhos para Rowan.
— Antes de descansarmos tem que queimar mais um pauzinho da feiticeira — disse
ela abruptamente. — Temos que saber o que nos vai acontecer.
Rowan hesitou. A sua mão latejava como seja sentisse a dor que viria quando
queimasse outro pau. E já tinha só três paus. Seria realmente necessário utilizar um agora?
Virou-se para Allun, sem saber bem o que fazer.
Allun acenou afirmativamente a cabeça.
— Se Sheba tem conselhos para te dar, devemos saber quais são. Assim, se os donos
desta lamparina nos fizerem uma visita dentro da próxima hora, estaremos preparados.
Com alguma relutância, Rowan tirou o embrulho da camisa, desembrulhou o tecido
encerado e tirou de lá um pau. Em seguida, voltou a embrulhar cuidadosamente os últimos
dois paus e guardou-os. Ao fazê-lo, a sua mão sentiu o medalhão quente. Que papel
desempenha ele em tudo isto?, perguntou ele a si próprio. Será o medalhão que me ajuda a
ouvir as palavras de Sheba?
— Queime o pau, Rowan! — gritou Zeel num tom impaciente. — De que é que está
à espera? Atire-o para a chama da lamparina.
Antes de poder pensar mais no assunto, Rowan fez o que ela lhe pedia. Uma chama
verde percorreu o pau em toda a sua extensão, aumentando progressivamente até as
sombras se refletirem nos rostos de todos e na porta atrás deles.
Desta vez, a dor na mão de Rowan foi tão grande e tão súbita que lhe vieram
lágrimas aos olhos. Pestanejando através de uma névoa aguada, ele viu o rosto de Sheba
surgir nas chamas. Parecia sorrir-lhe, com olhos incandescentes. E depois ele ouviu as
palavras:
15
CORRENTES E SOFRIMENTO
Mais tarde, Rowan percebeu que devia ter desmaiado quando o guarda o amordaçou
violentamente. Quando acordou, com o coração a bater aceleradamente e a garganta seca,
não fazia a mínima idéia de quanto tempo tinha decorrido. A única coisa que sabia era que
estava deitado no chão duro da gaiola de ferro, acorrentado de pés e mãos. Ouvia Perlain
gemer ao seu lado. Allun estava provavelmente no outro lado de Perlain.
Eles tinham sido feitos prisioneiros. Prisioneiros dos Zebak. Zeel passara-se para o
lado do inimigo. Ou teria ela, no seu coração, estado sempre desse lado? O pensamento o
fez sentir-se agonizado.
Lentamente, percebeu que a gaiola estava a dar solavancos e a balançar, e ouviu o
som das rodas de metal a rolar sobre tijolos. A gaiola estava a ser puxada ao longo de uma
estrada.
O tecido que tinha sido colocado por cima da gaiola não a cobria totalmente. Virando
ligeiramente a cabeça, Rowan via de relance a rua por onde passavam.
Viu casas. Viu a carroça de um padeiro. Viu bancas cheias de fruta, hortaliça e sacos
de cereais. Viu crianças a brincar. Viu adultos a trabalhar ou simplesmente a caminhar
levando consigo cestos, ferramentas, malas de cabedal, bebês. Todos eles olhavam para a
gaiola com um ar de curiosidade ou de medo, depois viravam a cara.
Ele ficou surpreendido ao ver que usavam roupas vulgares, não uniformes. Com
exceção da lista preta do cabelo até ao nariz, que todos eles tinham, menos as crianças
pequenas, não pareciam muito diferentes das pessoas no seu país.
— A cobertura da gaiola caiu. Coloque-a no lugar — gritou uma voz. O estômago de
Rowan deu uma volta. A voz era de Zeel, mas muito mudada, muito fria.
Ele virou um pouco mais a cabeça, estremecendo com a dor, e viu umas costas
cinzentas direitas, um braço a balançar, e depois o lado de um rosto severo, a olhar
fixamente em frente. Zeel caminhava, com passos largos, ao lado da gaiola. Zeel, a
traidora. Zeel, que tinha usado a confiança que eles depositavam nela para lhes preparar
uma armadilha.
Um dedo de pé, os outros a dobrar.
— Que diferença faz que os urks vejam os prisioneiros? — resmungou outra voz que
Rowan pareceu reconhecer. — Se souberem que os guardas capturaram espiões no interior
das muralhas da cidade, eles irão compreender até que ponto os nossos inimigos são
perigosos. Deixarão de estar descontentes. Irão compreender que a guerra é necessária
para sua proteção.
— Como se atreve a questionar as minhas ordens? — perguntou Zeel num tom
ríspido. — Eu já lhe disse. Este assunto é secreto! Faça o que eu te digo!
— Sim, sir — disse a outra voz apressadamente. Rowan percebeu subitamente de que
a segunda pessoa que falara era o guarda que se queixara de ter que empurrar a carroça do
lixo. Tentou recordar-se do nome dele.
Zanel. Era isso.
A coberta foi ajeitada em volta da gaiola, e Rowan deixou de poder ver para o
exterior. Mas conseguia ouvir. Enquanto escutava, a dúvida começou a assaltar-lhe a
mente. Seria possível que houvesse algo que ele não compreendia? Seria possível…?
— Se você e os palhaços dos seus colegas não tivessem tropeçado nisto, não
saberiam nada a este respeito! — estava a voz de Zeel a dizer com severidade. — Mas
cheguei à conclusão de que me podiam ser úteis e decidi não fazer queixa de vocês. Mas
tenham cuidado. Posso mudar de idéias a qualquer altura, e isso será pior para vocês.
— Nós só estávamos a fazer um intervalo, sir — lamuriou Zanel, cheio de medo. —
E só o fizemos cedo porque acabamos o nosso trabalho antes do tempo. Não sabíamos que
os espiões estavam sob a sua guarda. Pareciam estar sozinhos e não estavam acorrentados.
Que outra coisa havíamos de pensar senão…?
— Silêncio! — gritou Zeel. — Não têm nada que pensar. Vão lá na frente e digam ao
animal que ande mais depressa. Estamos a ir demasiado devagar.
— Desculpe, sir, mas este grach não consegue andar mais depressa — lamentou-se
Zanel. — Tive que ir buscá-lo no depósito, onde ele puxa o arado dos escravos. Sendo do
Controle Central, sir, talvez esteja habituado aos grach guerreiros, os que estão a ser
treinados para a invasão. Esses são jovens e fortes… e, segundo se diz, alimentam-se da
carne dos lagartos das Terras Perdidas. Mas este grach só come erva e restos. E o portão
do recinto cercado fica já ali.
— Estes prisioneiros devem ser levados para junto do outro, sem demora. — A voz
de Zeel era alta e gélida.
— As ordens são essas. Está a querer desobedecer-me?
Era óbvio que Zanel não queria. Um momento depois, Rowan ouviu a voz dele à
frente da gaiola.
— Up! Up! — gritava ele. A gaiola deu um solavanco quando o animal que a puxava
fez um esforço maior.
— Assim está melhor — disse Zeel em voz alta… tão alta que Rowan teve a certeza
de que ela queria que os prisioneiros no interior da gaiola ouvissem. — Assim, muito em
breve os nossos prisioneiros vão encontrar-se com a sua pequena compatriota. Como eles
devem estar gratos por darem este agradável passeio, conosco como seus guias. Talvez
pensem que as correntes e o sofrimento não sejam um preço demasiado alto a pagar. O que
acha, Zanel?
Com correntes e sofrimento tens que pagar Para outras mãos o caminho te assinalar.
O guarda que ia à frente riu-se do que julgou ser uma piada cruel. Mas Rowan sabia
que as palavras de Zeel tinham sido uma mensagem. Ela queria que eles soubessem que os
ia levar ao local onde Annad estava. E, para fazê-los saber isso, ela tinha utilizado o maior
número de palavras dos versos de Sheba que se atrevia a usar.
Rowan ouviu um som abafado ao seu lado. Virou a cabeça com dificuldade. Os olhos
de Perlain estava muito abertos e excitados. Não conseguia falar por causa da mordaça.
Mas Rowan sabia que ele também ouvira a mensagem de Zeel e compreendera.
— Abram o portão! — gritou Zeel. — Abram o portão!
Rowan sentiu a gaiola dar uma curva na estrada de tijolos e entrar noutra que parecia
ser feita de terra.
Um portão fechou-se com estrondo atrás deles. A gaiola deu um salto e o seu corpo
rolou, dorido, para o chão de ferro, mas ele mal prestou atenção à dor. A sua mente
fervilhava enquanto tentava imaginar o que devia ter acontecido.
Enquanto dormiam junto do lago subterrâneo, Zeel tinha ido explorar. De algum
modo, talvez seguindo os guardas que eles tinham visto regressar, ela tinha encontrado o
local onde eram guardados os uniformes e tirado um. Vestira-o e usara o óleo que tinha
nos dedos para fazer a marca na testa.
Era provável que Zanel e os seus colegas guardas tivessem entrado logo a seguir. Ela
escondeu-se deles, só se mostrando quando Rowan, Allun e Perlain foram atacados. Ela
salvou os amigos de serem mortos ou capturados da única forma que podia fazê-lo —
fingindo que eles já eram seus prisioneiros.
Agora ela continuava a desempenhar o seu papel. Estava a desempenhá-lo bem. E,
graças a ela, o problema de como iriam encontrar Annad tinha sido resolvido.
Ouviu-se um grito vindo da frente da gaiola e esta parou com um solavanco.
— Muito bem! — Rowan ouviu Zeel gritar. — Tragam-nos para fora.
A coberta foi retirada da gaiola. A forte luz súbita fez Rowan semicerrar os olhos à
medida que o mundo no exterior da gaiola assumia muito lentamente contornos distintos.
Ele ficou a olhar, estupefato. Estava à espera de ver uma prisão, com paredes de
pedra ou metal, barras de ferro, filas de prisioneiros acorrentados. Mas o que ele viu foi
árvores, campos verdes, um riacho, pequenos chalés, pessoas a colher trigo. Era tudo tão
familiar…
Uma onda de saudade invadiu-o e ele perguntou a si próprio se estaria a sonhar. Se
uma montanha alta dominasse a cidade, se os animais que pastavam nos campos fossem
bukshah em vez dos enormes animais dos Zebak chamados grach, ele teria pensado que
estava em Rin.
Uma coisa era clara: Annad não podia estar ali. Tinha havido algum erro. Zeel tinha
feito o possível, e pelo menos eles tinham saído do labirinto. Mas Zanel trouxera-os para o
local errado. Talvez por acidente, talvez não.
O lado da gaiola abriu-se com clangor. Zanel enfiou o braço e puxou Rowan para
fora como se ele fosse um saco de trigo, depois atirou-o ao chão.
— Tenha mais cuidado — gritou Zeel. — Eles não devem ficar feridos. São essas as
ordens.
Zanel resmungou com um ar zangado, mas tirou Perlain e Allun da gaiola com mais
cuidado. Eles ficaram deitados no chão ao lado de Rowan, sem se mexerem. Rowan olhou
para o grach que tinha puxado a gaiola. Ele tinha baixado a cabeça e estava a arrancar a
erva. Estava contente por a viagem ter terminado, e estava em casa.
— Pode ir embora agora— disse Zeel a Zanel num tom severo. — E não se esqueça
que está proibido de falar neste assunto. Se souber que o fez, vai acabar no lado de lá da
muralha com os ishkin.
— Muito bem, sir — balbuciou Zanel. Ele deu meia-volta para se ir embora.
— Espere! — ordenou Zeel. — Dê-me a chave das correntes dos prisioneiros. Posso
precisar dela.
Uma expressão estranha perpassou o rosto de Zanel. Surpresa, rapidamente seguida
de suspeita.
— Mas os guardas do Controle Central, como o meu oficial, têm chaves para abrir
qualquer fechadura — disse ele.
Rowan susteve a respiração. Zeel tinha cometido um erro.
Zeel endireitou-se.
— Eu quero a sua chave, Zanel — disse ela num tom ríspido. — Dê-me!
Zanel fitou-a, depois tirou uma chave do bolso e começou a aproximar-se de Zeel.
Ela esperou, imóvel.
Ela não queria parecer demasiado ansiosa, pensou Rowan. Ela sabe que ele está
desconfiado. Pressionou os pulsos contra a corrente, mas estava bem preso. Não podia
fazer nada.
Zanel estava agora muito perto de Zeel. Fitou-a, semi-cerrando os olhos. Ela estendeu
a mão para receber a chave.
Ele deu outro passo e depois fingiu tropeçar. Levantou a mão rapidamente, roçou a
testa de Zeel e tirou-lhe o boné. A linha preta que ia do nariz ao cabelo transformou-se
numa mancha preta. O cabelo comprido caiu-lhe sobre os ombros.
Durante um instante, Zanel olhou, espantado, para ela, para a sua própria mão, que
estava suja de óleo preto. Depois ele soltou um rugido, desembainhou o punhal e deu um
salto.
Zeel tentou dar um salto para se afastar dele, mas as botas pesadas e o uniforme
rígido atrapalharam-na, e ela tropeçou e caiu. Olhando-a sem poder fazer nada, nem
sequer gritar, Rowan gemeu, horrorizado, enquanto Zanel se lançava novamente sobre ela,
sorrindo de raiva triunfante.
E nesse momento, como que por magia, a figura alta de um desconhecido vinda de
detrás da gaiola vazia lançou-se subitamente na direção de Zanel. Ele parecia ter surgido
do nada. Devia ter-se aproximado deles sem que o vissem e permanecido escondido até
àquele momento.
Tinha cabelo louro ligeiramente arruivado, e era jovem… mal saíra da adolescência.
Vestia roupa de trabalho e trazia consigo uma pá de jardim. Mas o seu rosto tinha a
determinação de um herói e os seus ombros eram largos e os braços fortes. Com um grito,
ele ergueu a pá e baixou-a com força. No momento seguinte, Zanel estava caído no chão,
inconsciente.
O seu atacante ficou de pé, ofegante, junto dele, deu-lhe um pontapé suave para ver
se ele se mexia, depois pareceu satisfeito. Pegou no punhal e olhou para Rowan, Perlain e
Allun que estavam deitados, indefesos, na erva. E para Zeel, que se esforçava por se pôr
de pé.
— Eu sou Norris — disse ele num tom sóbrio. Encostou-se à pá enquanto os seus
olhos os observavam um a um, demorando-se, com curiosidade, em Perlain. Depois, olhou
novamente para Rowan e sorriu.
— Seja bem-vindo, Rowan— disse ele.— Temos estado à sua espera.
16
SURPRESAS
Rowan olhou, espantado, para o salvador de Zeel. O seu primeiro pensamento foi que
Norris era muito parecido com Jonn Forte, embora fosse muito mais novo… a julgar pelo
seu rosto largo, macio, ainda não tinha vinte anos.
Mantendo os olhos fixos em Norris, ainda sem confiar totalmente nele, Zeel baixou-
se para tirar o cadeado da corrente de Rowan. Enquanto ela se aproximava de Allun e
Perlain, Rowan sentou-se e, aliviado, arrancou a mordaça da boca.
— Como é que sabe o meu nome? — perguntou ele com voz rouca.
Nesse momento, o grach, que tinha recomeçado tranqüilamente a comer erva, ergueu
a cabeça e deu um grunhido de prazer. Rowan olhou para trás e viu que um velho de barba
e cabelo branco comprido vinha a coxear em direção a eles, oriundo de um dos chalés. Era
pequeno e magro e tinha um ar muito preocupado.
— Oh, Norris — suspirou ele ao chegar ao pé deles. — Mais uma vez agiu sem
pensar e usou a força em vez da inteligência. Meu pobre rapaz, o que hei de fazer com
você? — Enquanto falava, ele fazia carícias no grach, que se arrastava pesadamente até
ele, arrastando a gaiola atrás de si.
Norris corou e baixou a cabeça. Era óbvio que se sentia desajeitado e envergonhado.
Rowan teve pena dele. Ele compreendia bem o que significava ser uma desilusão para os
outros. Quantas vezes ele próprio sentira isso?
Mas pela razão totalmente oposta.
Zeel deu um passo em frente.
— Norris salvou-me a vida, velho — disse ela com firmeza. — Não tinha outra
opção a não ser atacar. Que outra coisa poderia ele fazer?
O velho abanou a cabeça. Era óbvio que não conseguia pensar em nada, mas olhou
para o corpo inconsciente de Zanel com ar de desânimo.
— Eles hão de vir à procura do desgraçado — disse ele ao fim de algum tempo com a
sua voz suave, hesitante. — Temos que o esconder… e também à gaiola. Talvez debaixo
do monte de feno atrás do chalé. Depois pensaremos no que iremos fazer.
Ele soltou outro suspiro quando Norris atirou bruscamente o guarda para dentro da
gaiola e fechou a porta. Depois pareceu lembrar-se dos desconhecidos que o observavam.
Voltou-se para Rowan e fez uma vênia.
— Saudações, Rowan — disse ele. — Desculpe os nosso transtorno. O pobre Norris
tem bom coração, mas os seus modos apressados levam-me ao desespero. Eu sou Thiery
da Seda. A minha casa é a sua casa.
Antes de Rowan poder responder, Thiery tinha se virado para Allun, Zeel e Perlain.
— Sinto-me muito satisfeito e interessado em os conhecer — disse ele. — Estávamos
à espera de Rowan, mas não pensamos que visse mais ninguém com ele.
Dando meia-volta, começou a dirigir-se lentamente para o seu chalé. Com Norris ao
seu lado, o grach seguiu-o puxando a gaiola atrás de si.
— Porque é que estavam à minha espera? — perguntou Rowan, indo atrás deles.
A sua irmã nos disse que viria — respondeu simplesmente Thiery.
— Annad! — O coração de Rowan deu um salto.
— Ela está realmente aqui!
Thiery pareceu ligeiramente surpreendido.
— Claro que está. Em que outro lugar eles iriam pôr um escravo novo?
— Nós pensamos que ela estaria encarcerada numa prisão — disse Perlain. Pelo tom
educado da sua voz e pelos olhos velados, Rowan percebeu que ele pensava que o velho
ou era estúpido ou não era digno de confiança.
Thiery parou.
— Isto é uma prisão, meu amigo — replicou ele. — Neste recinto, nós somos tão
prisioneiros dos Zebak como se estivéssemos dentro de gaiolas de ferro. — Ele ergueu a
sua bengala e rodou-a de modo a que a sua ponta lhes apontasse a alta cerca de arame que
se entendia à volta dos campos verdes.
Zeel virou-se para olhar para os trabalhadores distantes e franziu a sobrancelha.
— Mas aqueles são Zebak — comentou ela secamente. — Eu consigo ver as suas
marcas castanhas.
— É verdade — concordou Thiery. — São Zebak vulgares… aqueles a que os
guardas chamam “urks”… vêm todos os dias ao recinto trabalhar conosco nos campos. Há
muitos anos que não há escravos suficientes para fazerem o trabalho sozinhos. — Ele
olhou para Zeel. — Você também é Zebak — disse ele. — Onde está a sua marca na testa?
Zeel ergueu orgulhosamente o queixo.
Tornei-me filha de outra terra quando era muito pequena — respondeu ela. — Vesti
esta roupa só para enganar os guardas.
Rowan sentiu cheirarem-lhe o ombro e, sem pensar, levantou a mão. Quando os
dedos sentiram pele escamosa em vez de lã quente, retirou rapidamente a mão. Mas o
grach gemeu, desiludido, e ele voltou a pôr a mão em cima dele. Se um animal queria um
pouco de ternura, ele não podia negar-lhe, por mais medonho que fosse o seu aspecto.
— A profecia que nos foi feita disse que o primeiro que ouvisse os sinos dos Zebak
deveria utilizar a verdade que o espelho relatasse — estava Zeel a explicar. — Eu ouvi os
sinos há muitos anos, quando era muito pequena. E o meu reflexo nas paredes tinham-me
feito enfrentar a verdade de que era uma Zebak, por mais que fingisse não o ser.
Subitamente, eu vi como eu, e só eu, conseguiria fazer-nos avançar. Era a minha vez de
desempenhar o meu papel. Tal como Perlain desempenhou o dele no mar e Allun nas
Terras Perdidas.
— As Terras Perdidas! — exclamou Norris, espantado, olhando-os com um novo
respeito.
— E qual será o papel de Rowan? — perguntou Thiery.
A sua voz era muito baixa. Rowan deixou de olhar para o grach e fitou-o nos olhos.
Pensou ver neles uma enorme tristeza e perguntou a si próprio porquê. Mas o velho virou-
se rapidamente para Zeel.
— Deve ter sido doloroso para você vir à cidade — disse ele num tom suave.
Foi sim — admitiu Zeel em voz baixa. — Senti que os meus amigos deviam detestar-
me por causa da minha origem. Detestei-me a mim própria.
Então foi por isso que Zeel parecera tão fria e distante no labirinto, pensou Rowan,
colocando a mão no braço dela.
— Detestá-la, Zeel? — estava Allun a exclamar nesse mesmo instante.
— Não é culpa sua que esta terra esteja em guerra com a nossa e que o seu povo seja
cruel — acrescentou Perlain em voz baixa.
Enquanto o rosto perturbado de Zeel se animava, Norris arrastou os pés.
— Devíamos ir andando — avisou ele. Era óbvio que aquela demonstração de
sentimentos o embaraçava. Mais uma vez, Rowan achou-o parecido com Jonn. E com
Jiller também, até mesmo com a pequena Annad. Todos eles compreenderiam a natureza
de Norris de uma forma que Thiery não conseguia entender.
Norris é um estranho para o seu próprio povo, tal como eu sou para o meu, pensou
Rowan, quando recomeçaram a andar, fazendo com que os seus passos acompanhassem os
passos lentos do velho.
Os chalés já não estavam muito longe e Rowan reparou, pela primeira vez, que todos
eles, com exceção daquele de onde Thiery saíra, estavam em ruínas. Tinham os telhados
cheios de buracos, as portas abertas descaídas e as janelas partidas.
Teve vontade de perguntar a Thiery sobre isso, mas o velho tinha estado a pensar nas
últimas palavras de Perlain e estava novamente a falar.
O povo Zebak não é cruel por natureza — disse ele, abanando a cabeça. — A maior
parte das pessoas é um pouco severa, mas isso é tudo. Os guardas é que são cruéis. Usam
os chicotes e as botas livremente para mostrar o seu poder. Muitas pessoas vulgares
fugiriam do país se pudessem. Mas há muitos anos que o mar, o seu caminho para a
liberdade, lhes é proibido. Ele voltou-se para Zeel.
— Os seus pais devem ter estado entre os últimos que tentaram fugir de barco —
disse ele suavemente.
— Se pagaram com as suas próprias vidas, o seu gesto deu-lhe, pelo menos, a
oportunidade de uma vida nova.
Zeel baixou a cabeça.
— Do mesmo modo que nós somos prisioneiros no recinto cercado, as pessoas são
prisioneiras na sua cidade — prosseguiu Thiery. — As muralhas da cidade são altas e as
asas dos grach que trabalham são aparadas todos os anos para que eles não possam voar.
— Ele cerrou os lábios. — É muito doloroso para os animais — acrescentou, como se isso
o magoasse quase mais do que tudo o resto.
— Os guardas fazem o que querem — rosnou Norris, olhando com ódio para a figura
imóvel no interior da gaiola. — As pessoas não podem fazer nada contra eles.
— Mas isso está a mudar — disse Thiery. — Eu sinto-o. As coisas estão a mudar.
Ele abriu a porta do chalé, ignorando a fungadela descrente de Norris. Rowan
caminhou do sol quente para a frescura agradável do interior e logo parou.
Apesar da sua ânsia para ver Annad, por um momento, tudo o que conseguiu fazer foi
olhar em redor, pensando porque razão se sentiu de imediato em casa. Em tamanho e
forma, era verdade, a divisão era como as salas de Rin. Mas em vez de ser simples e
apenas com coisas que fossem úteis, esta divisão estava repleta de luz e de cores vivas.
Longas cortinas azuis estavam nos lados das grandes janelas. Havia um bonito tapete
no chão e quadros nas paredes. O sofá estava repleto de almofadas fofas. Na prateleira em
cima da lareira, estava uma jarra amarela cheia de flores.
— O trabalho da minha neta e de mim — murmurou a voz gentil de Thiery. — Fico
satisfeito por a achar acolhedora. Mas vai querer ver a sua irmã…?
Com um olhar culpado, Rowan virou-se e seguiu-o através das escadas estreitas que
levavam ao sótão. Perlain, Allun e Zeel acotovelavam-se logo atrás.
* * *
— Está tudo bem, Shaaran — disse Thiery ao entrar num pequeno quarto.
Aí, numa estreita cama e debaixo de uma colcha bordada com flores e folhas, estava
Annad, profundamente adormecida.
Em pé, ao lado da cama e com uma mão apoiada nas costas de uma cadeira, estava
uma menina magra e de cabelos escuros. Os seus olhos doces estavam esbugalhados.
Ainda estava agarrada a um livro aberto, como se se tivesse assustado com o barulho dos
passos deles.
— Chegou o irmão da criança — disse-lhe Thiery, empurrando Rowan para dentro
do quarto. — Rowan, esta é a minha neta, Shaaran.
A menina era da mesma idade de Rowan, mas não era mais alta que ele.
Cumprimentou-o com um sorriso tímido e, para seu espanto, Rowan viu-se invadido pela
sensação de que já a tinha conhecido antes. Isso é impossível, disse para si próprio. Mas a
sensação era forte e persistia.
— Estou muito satisfeita por estar aqui — estava Shaaran a dizer. — Annad tem
dormido quase todo o tempo desde que está conosco mas, sempre que se mexeu, ela disse
o seu nome.
Enquanto os seus amigos ficaram na porta à espera, Rowan aproximou-se da cama na
ponta dos pés. Annad estava pálida e tinha alguns arranhões na cara, mas respirava
tranqüilamente. Uma sensação de alívio invadiu-o.
Enquanto a observava, ela pestanejou, depois abriu os olhos. Fitou-o sem se mostrar
minimamente surpreendida e sorriu.
— Eu sabia que havia de me vir buscar, Rowan — suspirou ela. — Não tive medo.
Rowan retribuiu-lhe o sorriso.
— Você nunca tem medo — disse ele. Inclinou-se sobre ela e o medalhão que tinha
no pescoço saiu da camisa. Ouviu uma exclamação de espanto atrás de si, mas não
conseguiu virar-se para olhar porque os dedos de Annad agarraram no medalhão e
seguraram-no com força.
— Bonito — disse ela, bocejando.
— Durma mais um pouco, Annad — disse Rowan.
— Eu estarei aqui quando acordar.
Annad acenou a cabeça com um ar sonolento.
— E vai me levar para casa — disse ela. As suas pálpebras já estavam a ficar
novamente pesadas. Pestanejou, olhando para Shaaran. — O meu irmão é um grande
herói, sabe — murmurou ela. Depois fechou os olhos, os dedos que agarravam no
medalhão abriram-se e ela voltou a adormecer.
Rowan endireitou-se e afastou-se da cama. Sentia o coração muito cheio. Casa? Será
que algum deles voltaria alguma vez para casa? Deu meia volta, ansioso por saber o que
tinha causado a exclamação de espanto que ouvira.
Shaaran tinha colocado o braço em volta dos ombros do avô. Para sua surpresa,
Rowan viu que os olhos mortiços do velho estavam rasos de lágrimas.
— Eu sabia que viria um dia — disse ele com voz trêmula. — Eu acreditava, tal
como o meu pai antes de mim. Como a nossa família sempre acreditou. E, assim,
continuamos a pintar as sedas para você, enquanto desaparecíamos lentamente…
Rowan olhou-o fixamente, confuso e um pouco receoso. Thiery seria louco? Voltou-
se para Shaaran e viu que ela estava a tremer.
— Avô, o Rowan não compreende. — Ela olhou novamente para Rowan. — Quando
Annad chegou, interrogamo-nos se a hora teria finalmente chegado — sussurrou ela. — O
rosto dela… a sua força…
Ela calou-se, engolindo desesperadamente para conter as lágrimas.
— Tínhamos esperança… mas não tínhamos a certeza — prosseguiu ela. — E
depois… há um instante… quando vimos o medalhão, ficamos a saber… É uma grande
felicidade para o meu avô e para mim. Mas também um grande choque.
Rowan abanou a cabeça. Sentiu-se aturdido.
— Que… que lugar é este? — gaguejou ele. — Quem são vocês?
— Nós somos o seu povo, Rowan — respondeu Shaaran em voz baixa. — Tudo o
que resta. E este é o seu lugar. Isto é Rin.
17
SOMBRAS PINTADAS
— Vocês não são o meu povo! Eu nunca os vi antes do dia de hoje. E isto não é Rin!
Rin fica muito longe, do outro lado do mar! — As palavras irromperam de Rowan num
tom quase irado. Shaaran recuou, olhando para o avô a pedir ajuda, consciente da presença
de Allun, Perlain e Zeel à entrada do quarto com uma expressão de espanto no rosto.
— Eles deram ao seu novo país o nome do antigo, Shaaran — murmurou o velho. —
As suas memórias foram-lhes apagadas, mas o nome veio-lhes à mente e eles usaram-no,
sem saber porquê.
— Quem? — perguntou Rowan. — De quem está falando? — Ele percebeu que
estava a tremer.
— Os seus antepassados — respondeu Thiery. — Os homens fortes que nos deixaram
há mais de trezentos anos e nunca regressaram.
Rowan ficou a olhar para ele, de boca aberta. Thiery sorriu, com um ar cansado, e
deixou-se cair na cadeira ao lado da cama de Annad.
— Estou muito cansado — suspirou ele. — Tem que lhe mostrar, Shaaran. Eu velarei
pela criança.
Era óbvio que Shaaran estava preocupada com ele, mas, obedientemente, fez sinal a
Rowan e os dois desceram as escadas estreitas atrás de Zeel, Allun e Perlain.
Shaaran tirou um lençol dobrado de um armário. Depois conduziu-os pela porta
traseira do chalé para o exterior.
Para além da horta, havia um enorme monte de feno. Norris estava a colocar feno em
cima da gaiola de ferro, que já estava quase completamente coberta.
Perto dali, o grach pastava tranqüilamente. Levantou a cabeça quando eles saíram de
casa, mas, ao ver que Thiery não estava com eles, perdeu o interesse e concentrou-se
novamente na comida.
Os amigos seguiram Shaaran quando esta desceu alguns degraus de pedra que iam
dar a um porão por baixo do chalé. No interior, estava escuro e frio como numa sepultura,
mas a menina acendeu uma vela. Eles viram molhos de tubérculos e uma pilha de lenha. A
luz brilhou, fantasmagórica, nas paredes e no chão. As sombras eram monstros negros
pretos a rastejar sobre as pedras.
Shaaran tirou uma barra de ferro pontiaguda do seu lugar encostado à parede, levou-a
para o canto mais escuro do porão e enfiou-a numa fenda entre a pedra angular e a parede.
Ao ver o que ela estava a tentar fazer, Zeel e Allun foram ajudá-la, adicionando peso à
barra de modo a conseguirem levantar a pedra.
Por baixo havia um buraco escuro.
Shaaran enfiou o braço no buraco e tirou de lá uma corrente presa a um gancho
colocado em algum lugar perto do topo. Ela puxou e, ao fim de pouco tempo, apareceu
uma caixa grande a balançar da extremidade da corrente como um peixe numa linha de
pesca.
Ela colocou a caixa no chão e abriu-a. No interior havia dúzias de rolos de seda finos.
Cada um dos rolos tinha a largura do braço de Rowan, e todos eles estavam atados com
um cordão entrelaçado semelhante ao que ele trazia ao pescoço. Alguns dos rolos
pareciam mais novos que outros. Alguns eram, de fato, muito antigos.
— O que são? — perguntou Allun, esticando o pescoço para ver.
— A nossa história — respondeu Shaaran. — Eu vou mostrar-lhes.
Ela estendeu o lençol no chão cheio de pó. Depois desenrolou os longos pedaços de
seda, um a um, em cima dele, começando pelo mais antigo.
A luz trêmula da vela, figuras e cenas pintadas pareciam saltar do fundo de seda em
direção a eles. Cores nítidas, garridas, davam vida a uma época há muito desaparecida.
Aquela aldeia, cheia de gente e chalés robustos. Homem, mulheres e crianças a trabalhar
nos campos. Grach sarapintados a puxar arados e carroças. Guardas Zebak, correntes,
gaiolas de ferro…
A mão de Rowan ardia.
As sombras pintadas vivem de novo…
Cada rolo de seda contava uma história diferente. E todas as histórias juntas
formavam uma história mais longa — uma história triste e terrível que esperara trezentos
anos para ser contada.
— Há muito tempo, Rowan, o nosso povo era um só — disse Shaaran, passando a
mão pelas sedas mais antigas. — Éramos escravos dos Zebak há tanto tempo que a nossa
história antiga se tinha perdido, pois os Zebak matavam todos os que se referiam ao
passado. Nós trabalhávamos nos campos, cultivando comida para a cidade. Éramos
muitos… corajosos e tímidos, fortes e fracos, os que sabiam pintar, costurar e curar os
doentes… e os que conseguiam escalar, correr e lutar.
Ela estava a repetir uma lição que tinha aprendido há muito tempo, e as palavras
vinham-lhe com facilidade.
Mas os seus olhos estavam tristes, como se, naquele momento, ela estivesse a viver
no passado e sofresse.
— Há trezentos anos, os líderes Zebak fizeram um plano grandioso para invadirem
um país do outro lado do mar — prosseguiu ela. — Eles já tinham lutado contra o povo
desse país e sabiam que eles iriam defender-se com todas as suas forças. Muitos Zebak
morreriam. Assim, eles decidiram aumentar o número dos seus guerreiros. Levaram os
mais fortes e os mais corajosos entre nós para serem treinados como guerreiros e
sacrificados à causa…
O rugido nos ouvidos de Rowan era tão grande que ele mal conseguia ouvir a voz
dela. Mas não precisava de fazê-lo. Uma pintura mostrava a história muito claramente.
Ela mostrava guardas a prender pessoas na aldeia e a metê-las em gaiolas de ferro a
que estavam atrelados grach. Mostrava os choros e o sofrimento quando filhos e filhas
eram arrancados das mães, irmãos eram separados de irmãos, maridos de mulheres.
Os que estavam a ser levados eram altos e fortes. Faziam-lhe lembrar a sua família,
as pessoas que ele conhecia no seu país, e Norris. Os que ficaram para trás eram mais
pequenos e tinham um ar mais fraco… não tinham qualquer utilidade como guerreiros.
Eram como Shaaran. Como Thiery. Como ele próprio.
O dedo magro de Shaaran apontou para uma velha curvada ao lado de uma das
gaiolas de ferro. Tinha na mão um molho de ervas, para mostrar que era feiticeira e
curandeira. Ela estava a passar secretamente algo a outra mulher, através das barras da
gaiola. A mulher no interior da gaiola era muito mais nova.
Rowan inclinou-se para ver o que era o objeto e quando viu, soltou uma exclamação.
Era um medalhão enfiado num cordão de seda entrelaçado.
— É o mesmo — disse Shaaran. — É o que está a usar agora. Tem passado de
geração em geração ao longo de trezentos anos, e agora foi devolvido. Nós sempre
acreditamos que o seria um dia.
— Então vocês sabiam que os escravos guerreiros não tinham morrido — disse
Rowan lentamente. — Sabiam que eles se viraram contra os Zebak e ajudaram a derrotá-
los.
Shaaran acenou a cabeça em sinal de concordância, apontando para o pedaço de seda
seguinte que mostrava cenas vividas de batalha. Os Zebak estavam a ser empurrados para
o mar pelos seus próprios escravos fortes. Com os escravos estavam os Maris, que tinham
sido pintados com caudas de peixe, e os Viajantes, com penas e rostos ferozes, sorridentes.
Perlain soltou uma risada de desdém.
— Os Maris não têm caudas — disse ele num tom rígido.
— E espero que os Viajantes também não tenham este ar de demônios — sorriu Zeel.
— Os meus antepassados não podiam pintar com exatidão o que nunca tinham visto
— disse Shaaran num tom apologético. — Eles tinham que se basear nas histórias que
ouviram quando os Zebak que tinham sobrevivido regressaram, derrotados. Foi assim que
eles souberam que a sua gente perdida tinha ficado na nova terra.
— E esqueceram alegremente os entes amados que tinham deixado para trás em
escravidão! — a voz de Allun era dura.
— Não os julgue, Allun — disse Rowan em voz baixa. — Os Zebak têm formas de
controlar mentes, e é óbvio que sempre assim foi. Eles apagaram as memórias dos
escravos guerreiros, para que eles combatessem bem e não tivessem saudades dos entes
amados.
Shaaran acenou a cabeça em sinal de concordância.
— Foi por isso que os meus antepassados correram um risco enorme e começaram a
pintar as sedas. Para que, se alguma vez os entes perdidos regressassem a esta terra, eles as
pudessem encontrar e ficar a conhecer a sua história… mesmo que não houvesse mais
ninguém para a contar.
Ela disse estas últimas palavras numa voz muito suave. Rowan olhou para os
restantes pedaços de seda. Eles mostravam pessoas a trabalhar como outrora, mas ainda
mais duramente e com maior tristeza. Mostravam guardas a prender os jovens que
manifestassem o mínimo sinal de rebelião e a atirá-los para as Terras Perdidas. Mostravam
campos mal tratados e casas a desabar gradualmente. Mostravam adultos a envelhecer e a
morrer, mas cada vez menos crianças a nascer para ocupar os seus lugares. Mostravam
Zebak a serem trazidos para fazer o trabalho deles, para que continuasse a haver comida
para alimentar a cidade. A última mostrava apenas três figuras. Duas crianças e um velho,
sozinhos de pé ao lado de uma sepultura.
Quando a dor é verdade e a verdade é dor…
— Os meus pais só tiveram filhos porque a nossa família sempre pintou sedas, e eles
queriam que o trabalho prosseguisse durante o mais tempo possível — disse Shaaran. —
Eles viram desde o início que Norris… não era adequado. Assim, tiveram-me a mim. Mas
nós somos os últimos.
Assim, Thiery, Norris e Shaaran eram tudo que restava daquele povo tranqüilo e
meigo. Eles tinham preferido definhar a continuar a ter filhos em escravidão.
Rowan compreendeu. Ele teria sentido o mesmo. E compreendeu também,
finalmente, a razão por que ele era diferente dos outros na sua aldeia e por que tinha
havido outros iguais a ele no passado.
Embora os habitantes de Rin tivessem esquecido os entes amados que tinham
deixado para trás, a natureza não esquecera.
De vez em quando, tal como sucedera com os novilhos bukshah pretos, nasciam seres
estranhos. Seres estranhos como ele, que saía ao lado da família de Rin que ninguém sabia
que existia.
— O avô pintou esta seda depois de os nossos pais terem morrido com uma febre, há
sete anos — estava Shaaran a dizer. — Ele nunca mais pintou. Não tem tido coragem e
não tem havido nada para contar.
— Bem, agora já há qualquer coisa — disse Zeel com veemência.
— Há, sim — concordou Allun. — Mas acho que não podemos esperar pela pintura.
Este lugar é perigoso para nós. Perlain já está impaciente. Eu noto isso na forma como ele
abana a cauda.
Shaaran soltou uma gargalhada, depois mordeu o lábio e olhou para Perlain, para ver
se ele se sentia insultado. Mas Perlain limitou-se a sorrir tranqüilamente.
— Eu estou, de fato, impaciente — disse ele. — E se tivesse realmente uma cauda,
estaria a agitá-la como uma serpente. Temos que encontrar uma forma de sair daqui o mais
depressa possível. Mas vamos precisar de ajuda.
— Eu e Norris os ajudaremos — ofereceu-se prontamente Shaaran. — Temos amigos
de confiança entre as pessoas que trabalham nos campos. E quando os guardas vierem, nós
podemos atrasá-los enquanto vocês…
— Não, Shaaran — interrompeu Rowan. — Nós não iremos sozinhos. Vocês
virão conosco.
Ela ficou a olhar para ele, espantada.
— Nós não podemos ir — murmurou ela. — Os guardas não nos deixarão partir.
— Eles também não vão nos deixar partir, se conseguirem evitá-lo — disse Rowan,
no tom mais alegre que conseguiu. — Arrume as sedas. Não vamos deixá-las para trás.
Shaaran deu meia volta e, com dedos trêmulos, começou a enrolar as tiras de seda.
— Rowan! — a expressão do rosto de Perlain era muito grave, e Rowan sabia em que
é que ele estava a pensar. Até àquele momento, eles tinham sobrevivido por milagre. A
partir dali, o caminho ia ser duas vezes mais difícil. Com mais quatro pessoas, incluindo
uma criança pequena e um velho frágil, como poderiam sobreviver?
Mas Rowan sabia que não podia deixá-los. Procurou o embrulho de tecido encerado
de Sheba na camisa, tirou de lá um pau e mergulhou-o na chama da vela.
A luz verde iluminou as paredes de pedra, as figuras imóveis dos seus amigos, o rosto
espantado de Shaaran, os rolos de seda. Sentiu a dor de queimadura. Viu o rosto de Sheba
a sorrir para ele…
20
TERROR
Não desperdicem setas, arqueiros — estava a velha Lann a gritar. — Façam pontaria
com cuidado! Esperem até verem bem!
Pela primeira vez em vários minutos, Jonn ergueu o olhar para a colina. Ogden já lá
não estava. Jonn perguntou a si próprio porquê.
Jiller e Marlie estavam agora à sua frente. Todos os arqueiros estavam na linha da
frente. Eram eles que iriam tentar fazer cair os que vinham montados no animal. Os
espadachins, como Jonn, e os que tinham lanças estavam atrás deles. O animal era o seu
alvo, tal como os animais que viriam a seguir.
Jonn sentiu a espada pesada na mão. Tinha pertencido ao seu pai, e estivera ociosa
desde a Guerra da Planície. Mas agora iria provar novamente o sangue Zebak. Talvez pela
última vez.
O animal aproximava-se. Não como um relâmpago, como fizera na primeira vez, mas
lentamente, como se tivesse dificuldade em mover-se sob o peso que transportava. Agora
via-se nitidamente a sua enorme e hedionda forma. Os seus passageiros eram figuras
escuras contra o céu. Eram sete.
— Sete alvos — resmungou Lann. — Sete alvos fáceis.
Os papagaios continuavam a descer, pairando entre o animal e o chão. Porque é que
eles não se afastam?, pensou Jonn com impaciência. Vão estragar a pontaria dos arqueiros.
Ogden devia fazer-lhes sinal para que se fossem embora. Ergueu novamente o olhar para a
colina, mas o contador de histórias não tinha voltado.
Ouviu-se um ruído surdo vindo do cume da Montanha. O Dragão estava a mexer-se
no seu palácio gelado.
A multidão virou-se para olhar, mas os arqueiros não tiraram os olhos do céu.
— Prontos! — gritou Lann. — Quando o papagaio branco passar…
Os arqueiros ergueram os arcos.
Estrela estava a chamar do seu lugar no círculo dos bukshah. Jonn deu meia volta
para olhar para ela, intrigado com o fato de o som não ser um grito de medo, mas sim um
som de saudação. Estava a escavar o chão e a acenar a cabeça. Ela voltou a chamar. Mas
não quebrou o círculo.
Jonn ouviu Lann fazer um estalido com a língua, irritada, quando o papagaio branco
se afastou e o papagaio vermelho ocupou imediatamente o seu lugar, interpondo-se entre
os arqueiros e o animal. Ele conseguia agora ouvir Tor e Mithren gritar ao longe. Mas
havia outros gritos a flutuar no ar. Com um choque, percebeu que os sons vinham dos que
montavam o animal. Por que motivo estariam eles a chamar? A não ser que…
— Lann… — começou ele a dizer.
O papagaio vermelho foi apanhado por uma rajada de vento e empurrado para cima.
O alvo estava finalmente bem visível.
— Prontos… — gritou Lann.
— Parem!
Era Ogden, a acenar, correndo em direção a eles com a testa alta a brilhar de suor.
— Deponham… as suas armas! — disse ele ofegante, enquanto corria. — Eu
recebi… uma mensagem. Os passageiros… são amigos.
Lann hesitou, franzindo a testa. Depois…
— Parem! — gritou ela para os arqueiros.
Eles ficaram imóveis, continuando a fazer pontaria.
— O que se passa? — perguntou ela bruscamente a Ogden. — Amigos? Como pode
isso ser?
— Não sei — respondeu o contador de histórias apontando para o céu e abanando a
cabeça. — A mensagem dizia “Amigos! Não tenham medo.” Vim a correr para lhes dizer.
Eu sabia… que você não prestaria ouvidos a mais ninguém. Deponham as suas armas.
Deixem-nos aterrar.
— O animal… — começou Lann a dizer.
Mas nesse mesmo momento Jiller gritou e baixou o seu arco. No momento seguinte,
ela estava a correr para a sombra do animal, erguendo os braços.
— Rowan! — gritou ela. — Annad!
— Annad! — Marlie apenas murmurou o nome.
Parecia petrificada, com as mãos ainda a agarrar no arco. O seu rosto pálido estava
ainda mais branco do que antes.
Jonn olhou para cima. E viu finalmente o que elas tinham visto.
Era algo que estava para além dos seus sonhos mais fantásticos. Presos com cordas
ao dorso do animal, a oscilar e a deslizar, enquanto ele aterrava no campo dos bukshah,
estavam Rowan, Annad, Zeel, Perlain e Allun.
E no meio deles já a deslizar para o chão com os outros à medida que as suas cordas
eram desapertadas, estavam dois desconhecidos. Um rapaz forte e belo e uma menina de
ar delicado que parecia ser mais a irmã de Rowan do que a impetuosa Annad alguma vez
conseguiria parecer.
Estupefato Jonn viu Jiller tomar os filhos nos braços e Marlie correr para junto de
Allun. Ouviu o calmo e tranquilo Perlain gritar como um louco.
— Estamos todos vivos! Mas Sheba tinha razão. Não regressaram cinco.
Regressaram oito. Oito! — ele sentiu as pessoas à sua volta avançar e ouviu-os dar vivas
de alegria, maravilhadas. Viu o enorme animal sarapintado dirigir-se para o riacho para
beber, enquanto os bukshah emitiam rugidos de aviso. Viu a velha Lann, tão perplexa de
alegria e espanto como ele, a observar os desconhecidos.
— Então — murmurou Ogden ao seu lado. — Rowan trouxe-os para casa. Eu devia
ter confiado nele. Em todos eles. Mas até eu tive medo. — Ele respirou fundo. — E, de
fato, já era tempo. Mas só há dois?
Jonn deu meia volta, com os olhos cheios de perguntas. Mas Ogden já estava a
avançar, abrindo os braços para Zeel, dando uma palmada nas costas de Perlain, e
conduzindo cortesmente Lann na direção dos desconhecidos.
— Esta é a sua gente — Jonn ouviu-o dizer à velha. — Dê-lhes as boas-vindas, mas
guarda as perguntas para mais tarde. Receio que a nossa provação ainda esteja para vir.
— É verdade — exclamou o rapaz. — Os Zebak não podem estar muito longe. E são
muitos.
— Quantos? — perguntou Lann, pondo à parte a surpresa e as perguntas como a
velha guerreira que era.
Mas no momento em que Norris começava a responder, ouviu-se um grito oriundo da
multidão e, no instante seguinte, estavam todos a apontar.
O horizonte estava cheio de formas pretas voadoras. No início parecia um enxame de
abelhas, depois foram-se tornando maiores e mais próximos a cada abrir e fechar de olhos
— um enorme exército sobre asas couraçadas a adejar.
Os bukshah gritaram, escavando a terra. A grach junto do riacho emitiu um silvo de
aviso. E a Montanha pareceu tremer com os rugidos do Dragão. O seu fogo ardia na
nuvem, manchando de escarlate o branco nebuloso.
— Posições, arqueiros! — ordenou Lann. — Os outros, recuem!
— Rowan, toma conta dela! — gritou Jiller, atirando-lhe Annad para os braços. —
As crianças estão todas no moinho. Leva-a para lá!
E ela afastou-se, correndo para o seu lugar.
As pessoas estavam a acender novos archotes, endireitando as costas, atirando os
ombros para trás e erguendo as armas. Allun, Perlain, Zeel e Norris estavam a juntar-se às
suas fileiras com as armas que conseguiram encontrar. Mas Shaaran tinha recuado para a
orla do campo, onde havia uma pilha de archotes apagados ao lado de uma fogueira.
Olhava para o céu com os olhos muito abertos de medo e segurava a caixa de sedas contra
o corpo como se ela a pudesse proteger do mal.
Rowan também olhou para o céu. Este estava a ficar mais escuro à medida que o
inimigo se aproximava deles, mais rápido do que o vento. Há demasiados, pensou ele.
Demasiados.
Ele levou Annad até onde Shaaran estava.
— Temos que levar Shaaran para o moinho, Annad — disse ele com urgência. —
Despache-se.
Annad abanou a cabeça.
— Leva-a você, Rowan — respondeu ela. — Eu vou lutar. — Soltando-se dele, ela
agarrou num archote e acendeu-o, brandindo-o por cima da cabeça com um ar feroz.
— Deixe-a fazer o que ela quer — disse Shaaran. Rowan viu com espanto que os
seus lábios pálidos se curvavam num sorriso enquanto ela observava Annad a voltar a
correr para o campo. Depois voltou-se para ele.
— Ela é forte e impetuosa — explicou ela. — É como o Norris. Todos eles são assim.
É tão estranho!
— Aqui não é estranho — disse Rowan num tom sombrio. — Aqui eu e você é que
somos os seres singulares.
Shaaran riu-se, voltando-se para ele.
— Não tão singulares, se somos dois — disse ela.
Rowan sentiu uma dor terrível no coração.
— Shaaran, vá para o moinho — suplicou ele. — Consegue encontrar o caminho…
— Mas, no preciso instante em que falou, ele soube que era demasiado tarde. O exército
Zebak tinha sobrevoado as colinas e a sua sombra estava a tornar o vale escuro.
Shaaran pousou a caixa no chão ao pé de si e acendeu o archote como Annad fizera.
— Não há esperança, não é, Rowan? — perguntou ela com tristeza.
Não há esperança.
As palavras ecoaram na mente de Rowan enquanto ele procurava o embrulho de
tecido encerado dentro da camisa e tirava de lá o último pau.
— Shaaran, aconteça o que acontecer, mantenha o archote reto — disse ele, enfiando
o pau na chama que ela segurava. A dor percorreu-lhe o braço e ele gemeu, mas manteve a
mão firme. Shaaran susteve a respiração quando o verde vacilante tomou o lugar do
vermelho e o rosto de Sheba surgiu na chama. Mas ela segurou um braço magro com o
outro, para que o archote não tremesse quando as palavras vieram.
21
A LIÇÃO
Os escravos estão a dispersar! A esconder as suas cabeças lamurientas! — O
comandante da frota Zebak olhou para o campo vazio lá em baixo, sorrindo de satisfação.
Mas, logo a seguir, gritou num tom zangado quando o seu grach rolou no ar, quase o
fazendo cair.
— E o rugido e o clarão da montanha ali adiante, sir — gritou o tratador do animal.
— O Bara tem medo deles.
— Seu idiota! O que poderá haver em qualquer montanha que um grach guerreiro
possa temer? — cuspiu o oficial. — Fá-lo provar o chicote!
Mas o tratador não teve oportunidade de erguer o chicote nem sequer de responder.
Subitamente, houve um rugido mais alto do que qualquer outra coisa que ele já ouvira e,
no momento seguinte, ele estava agarrado ao pescoço do grach, temendo pela sua vida. E
gritava, tal como o homem orgulhoso atrás de si e o próprio grach gritavam. De terror.
A nuvem que envolvia o cume da montanha estava a rodar para o lado. E, elevando-
se em direção a eles, rugindo fogo, havia algo sugerido apenas no seu pior pesadelo —
uma coisa antiga enorme, terrível, branca como o gelo com os maxilares abertos, dentes
afiados como agulhas e uma ira terrível.
Comparados com aquilo, os ishkin não passavam de pequenos vermes. Os grach
eram lagartos do deserto comedores de lixo. Este era soberano. Era poderoso. A terra
abaixo de si não lhe despertava qualquer interesse. Mas o céu era o seu domínio. Eles
tinham-se atrevido a invadir o seu espaço.
Bara estava a chorar, contorcendo-se, mergulhando, e os outros grach daquela
enorme frota que voava em formação cerrada faziam o mesmo. Os cintos que prendiam os
passageiros aos seus assentos estavam a partir-se como se fossem feitos de cordel. Os
guardas caíam, aos gritos, para a terra lá em baixo.
E o Dragão rugia numa fúria selvagem, e o seu hálito queimava a terra e o ar com
línguas de chamas.
— Ajudem-me! — O tratador ouviu o longo grito quando o seu chefe se despenhou
no chão que planejara possuir. Mas ele não se podia virar. Não podia fazer nada a não ser
agarrar-se ao pescoço escamoso de Bara quando o animal rodou, a silvar, e começou a
voar a grande velocidade, voltando para trás pelo caminho por onde viera. Para longe da
ira escaldante, ciosa. Para longe do local que os seus amos tinham julgado tão fácil de
conquistar, mas que provara ter um guardião que assombraria para sempre os seus
pesadelos.
* * *
Quando tudo terminou, o povo de Rin saiu dos seus esconderijos. Estavam todos
bem. Estavam todos em segurança.
— Eles nunca voltarão — disse Timon. — Aprenderam uma lição que nem nós
sabíamos. Os sobreviventes espalharão a palavra. Os nossos céus estão ainda melhor
protegidos que os nossos mares.