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Tradução

de Maria João Bento


Título original: Rowan and the Keeper of the Crystal
PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA

ÍNDICE
1 A Mensagem
2 O Cristal dos Maris
3 O Selecionador
4 A Viagem
5 Perigo
6 Veneno
7 O Guardião
8 Os Candidatos
9 O Enigma
10 A Ilha
11 O Início
12 Longe da Vista
13 Água de Prata
14 Lagoa Faminta
15 O Plano
16 O Lutador
17 O Mais Temível Medo
18 A Lua da Escolha
19 Uma Gota
20 O Dissimulado
21 A Escolha
22 Terror
23 Despedidas

1
A MENSAGEM
Sete palavras, escritas a tinta negra num pergaminho com cheiro a óleo e peixe: O
Cristal enfraquece. O Selecionador foi convocado…
O sol aquecia suavemente o vale de Rin no dia em que a mensagem chegou. Uma
brisa ligeira agitava os rebentos das árvores de hoopberry no pomar.
Rowan encontrava-se junto da lagoa dos bukshah, inalando a fragrância doce trazida
pelo vento. Enquanto os potentes animais que ele guardava bebiam, olhou para o topo da
Montanha revestido de neve que se erguia acima do vale. Podia ouvir o som dos pássaros,
dos insetos sobre a vegetação, das pessoas a trabalhar nas hortas e nos campos. Podia
ouvir o borbulhar do riacho, atravessando a aldeia e estendendo-se pelas encantadoras
colinas verdes atrás dele, em direção ao mar.
Para Rowan, aquele parecia um dia como os outros. No entanto, o mensageiro estava
já muito próximo. Já não era apenas um ponto azul ao longe. Avistava já a aldeia enquanto
avançava, meio a correr, meio tropeçando pelas colinas, seguindo o riacho como uma
linha de vida. As suas mãos apalpavam já o interior da capa, sentindo o pergaminho que
transportava.
Dentro de alguns momentos, o sino da praça da aldeia começaria a tocar, assinalando
a sua chegada, convocando uma assembleia.
E, depois deste dia, nada voltaria a ser igual para Rowan.
* * *
Rowan juntou-se à população na praça, pondo-se em bicos dos pés para ver melhor o
mensageiro. Viera a correr, tal como os outros, quando ouviu o sino. Via agora Lann, a
pessoa mais velha da aldeia, a receber o pergaminho das mãos do exausto homem dos
Maris e a lê-lo em voz alta.
Sete palavras.
O Cristal enfraquece. O Selecionador foi convocado.
Mais tarde, Rowan iria recordar-se de tudo como um sonho. A voz de Lann, alta na
praça. A mão enrugada a segurar o pergaminho. O sol do meio-dia filtrando-se por entre as
árvores. A multidão surpreendida, murmurando entre si.
As brisas suaves e aromas adocicados do vale de Rin moviam-se à sua volta. Estava
rodeado de pessoas que conhecia desde que nascera. Pássaros familiares cantavam nas
árvores acima da sua cabeça. Não sentia medo nem nenhum alerta interior. Tudo o que
sentia era interesse, e prazer, porque algo de inesperado acontecera, interrompendo a
rotina do dia a dia. Um visitante desconhecido, vindo da longínqua costa, da terra dos
Maris. E uma mensagem ainda mais estranha.
O Cristal enfraquece…
— O que acha que significa? — sussurrou Rowan para Jiller, sua mãe, muito
perfilada junto dele.
Ela não respondeu. Mas, quando olhou para ela, para repetir a pergunta, as palavras
morreram-lhe nos lábios. O rosto de Jiller estava isento de cor e os seus olhos fixavam o
pergaminho na mão de Lann. Atrás dela, Jonn Forte do Pomar deu um passo e colocou um
braço à volta dos ombros dela. A boca estava severa.
Rowan percebeu então que a mensagem era de extrema importância. Mesmo assim,
não fazia idéia que era algo que o iria afetar.
Sentindo uma curiosidade crescente, fitou de novo a figura exausta, sentada nas
pedras rijas da praça da aldeia. Era a primeira vez que via um homem dos Maris. E
nenhuma das histórias contadas pelos aldeãos regressados de viagens à costa, nenhuma
das imagens que vira na casa dos livros, o tinham preparado para a realidade. Sabia que
não devia fixar o olhar, mas era difícil não fazê-lo.
O homem estava vestido dos punhos aos tornozelos com umas vestes justas azuis que
reluziam à luz do sol. Nos pés, umas botas leves. Tinha tirado o capuz e luvas que usava
quando entrou na aldeia. Agora, todos conseguiam ver a pele reluzente, desprovida de
pêlos e azul-esbranquiçada da cabeça, rosto e pescoço, os olhos lisos e vidrados, a boca
branca e as pequenas mãos de dedos unidos por uma membrana.
Permanecia sentado, ofegante, aos pés de Lann. Esta baixou os olhos para ele,
apoiando-se na sua bengala.
— Como se chama, homem de Maris? — perguntou, abruptamente.
— Perlain, do clã dos Pandellis.
— Há quanto tempo deixou a costa, Perlain?
— Há quatro sóis — respondeu o homem. A voz era monótona e rouca, e levou a
mão à garganta ao falar, como se as palavras o ferissem.
Um murmúrio de surpresa ergueu-se da multidão. As pessoas de Rin necessitavam
pelo menos de uma semana para viajar entre o vale e a costa. Aquele homem deve ter
corrido grande parte do percurso e dormido muito pouco. Não admirava que estivesse
exausto. Encararam-no com novo respeito.
— Chegou em tempo muito curto — disse Lann. — Bom trabalho, Perlain dos
Pandellis.
— Há um grande perigo — disse com dificuldade o homem Maris. — O
Selecionador…
— O Selecionador de Rin escutou o chamamento e irá obedecer — disse Lann
calmamente. — Sempre existiu perigo. Mas nunca, em trezentos anos, deixamos de
responder ao chamamento. O Selecionador e o Primogênito partirão contigo para a costa
ao pôr-do-sol.
O coração de Rowan deu um salto. Perigo! Alguém ia partir para o seio de um grande
perigo. Alguém de Rin. Mas que perigo seria esse? O que significava tudo aquilo?
Quem era o Selecionador? Selecionador de quê?
Perlain abanava a cabeça.
— Não. Não… podemos demorar tanto tempo. Cada hora… cada minuto… é
precioso! — A garganta moveu-se ao engolir dolorosamente.
— Viajou demasiado tempo sob o sol e também sob a lua. Precisa de descansar.
Precisa se molhar. Ou morrerá, Perlain — disse Lann.
— Não importa. — O homem Maris umedeceu os lábios ressequidos. — A morte de
um… não é importante.
— Essa pode ser a sua opinião, mas não a nossa — respondeu Lann, com firmeza. —
Além do mais, os nossos têm de se preparar para a viagem. O Selecionador partirá ao pôr-
do-sol. — Levantou o tom de voz. — De acordo?
Houve um momento de silêncio. Rowan olhou com curiosidade para o rosto de Lann.
Franzia o cenho, fitando alguém na multidão. Alguém próximo de Rowan.
Virou a cabeça para ver quem era. A sua volta, outras crianças e a maioria dos adultos
faziam o mesmo. Mas as expressões de alguns adultos eram sérias e concentradas.
Eles sabem, pensou Rowan. Eles sabem.
— De acordo? — repetiu Lann. — O Selecionador concorda?
Rowan sentiu um movimento quando alguém avançou para o centro da praça.
— Sim — disse uma voz calma. — Concordo. Partimos ao pôr-do-sol.
O homem Maris olhou ansiosamente na direção da voz e depois baixou a cabeça,
tocando com a testa no chão.
— Selecionador de Rin que tem o destino dos Maris nas tuas mãos, saúdo-te em
nome do Guardião do Cristal — disse. — Sou teu servo. Sou a areia sob os teus pés. A
minha vida é tua.
Rowan pestanejou e conteve a respiração. Não acreditava no que se passava. Não
conseguia compreender.
Não pode ser! Eu teria tido conhecimento. Deve haver algum erro, pensou, perdido.
Mas não havia nenhum erro.
A pessoa que aceitava a reverência do homem Maris, a pessoa que a mensagem
apelidara de Selecionador, a pessoa prestes a partir para o perigo desconhecido, era Jiller,
a sua mãe.

2
O CRISTAL DOS MARIS
— O que se passa? Mãe, diga-me!
Rowan agarrava no braço de Jiller ao dirigirem-se apressadamente para casa. Mas ela
continuava a andar, de cenho franzido e em silêncio.
— Espere, coelho magricelo — disse Jonn Forte para ele. Fez sinal com a cabeça
para as pessoas na praça, atrás deles. — A sua mãe não falará até estarmos a sós. Seja
paciente. — A sua voz era confiante como sempre, mas Rowan percebia pela sua
expressão que estava preocupado e abalado.
Jonn e Jiller caminharam rapidamente. A irmã mais nova de Rowan, Annad, corria na
frente deles. Annad pouco percebeu do que se passara na praça. Ela e os seus amigos
estiveram demasiado ocupados a sussurrar uns para os outros e a observar o estranho
homem Maris para prestar atenção a qualquer outra coisa.
Rowan arrastava-se atrás, a mente turbulenta com perguntas, pensamentos e receios.
Tudo o que compreendera até agora era que a mãe tinha de ir a Maris. Que ele, o seu
filho primogênito, a tinha que acompanhar. E que um terrível perigo os aguardava no final
da viagem.
Mas, que perigo? E, por que tinham sequer que ir? Maris. Rowan tentou recordar
tudo o que sabia. Timon, o professor, contara às crianças muitas narrativas sobre a terra na
costa. Narrativas de serpentes do mar, de batalhas e tempestades — e parte da história do
estranho povo Maris.
Subitamente, Rowan recordou-se de um dia especial sob a árvore-escola. Um dia
quente de Verão.
Timon estivera a mostrar-lhes imagens de um livro. Imagens do povo Maris. Para
Rowan, eram todos iguais, exceto que uns usavam roupas prateadas, outros azuis e alguns
verdes.
— Os Maris são um povo secreto — dissera Timon, apontando para as imagens uma
a uma. — Embora tenham relações comerciais conosco e com outros do outro lado do
mar, não abrem os corações a estranhos e pouco se sabe em relação a eles.
— Mas algumas coisas sabemos. Os Maris dividem-se em três tribos, ou clãs: o clã
prateado, os Umbray, o clã verde, os Fisk e o clã azul, os Pandellis. Em tempos remotos,
houve guerras terríveis entre os clãs. Conta-se que, todas as noites, o mar estava tingido de
sangue e as serpentes alimentavam-se da carne dos Maris.
— Mas há mil anos que os clãs estão unidos sob o poder de um só líder… o Guardião
do Cristal. O primeiro Guardião foi um homem chamado Orin, o Sábio. Foi ele quem
encontrou o Cristal, um tesouro de grande poder e mistério, numa gruta sob o mar de
Maris…
Naquele dia, Rowan estava cansado. Fora despertado a meio da noite por um
pesadelo e levara muito tempo a voltar a adormecer.
Pelo que estava meio adormecido debaixo da árvore-escola, escutando apenas
parcialmente o que Timon dizia.
— Rowan dos bukshah! O que acabei de dizer?
A voz de Timon acordou-o repentinamente.
— Ah… ah… existem três clãs… — gaguejou, sentindo-se corar. — O líder deles
é… o Guardião do Cristal.
As outras crianças riram-se e trocaram cotoveladas. Sabiam como Rowan era tímido.
E, habitualmente, estava sossegado e era bom nas aulas. Acharam engraçado por ele ter
sido apanhado.
Timon franziu o cenho para eles e prosseguiu.
— Muito bem. Antigamente havia um quarto clã, o clã dos Mirril. Eram peritos em
venenos. Criaram mil e um venenos mortais e, para cada veneno, um antídoto. Mas os
Mirril foram todos destruídos quando os Zebak invadiram a costa, há trezentos anos.
Olhou de novo para Rowan, os olhos cinzentos penetrantes.
— O que mais aconteceu há trezentos anos, Rowan?
— Os nossos antepassados vieram para este local e Rin teve a sua origem — disse
Rowan em voz baixa.
Timon anuiu.
— Correto. Os Zebak tentaram muitas vezes invadir a costa desta zona. Mas, há
trezentos anos, vieram com um exército de escravos guerreiros acorrentados aos remos das
embarcações. Esses escravos foram os nossos antepassados.
O rosto de Timon estava sério ao continuar.
— Na manhã em que os Zebak desembarcaram, todos os clãs Maris estavam reunidos
nos seus edifícios de assembléia separados. Não fora deixado ninguém cá fora, de guarda.
Ninguém sabia que o inimigo chegara. Os Zebak alcançaram o edifício dos Mirril e
atiraram um fogo explosivo para o interior. Houve um estrondo enorme. Colunas de
chamas dispararam para o céu. O edifício ruiu e incendiou-se. Todos morreram. Não
restou vivo nem um único elemento do clã Mirril. Nem homem, nem mulher, nem criança.
Timon concentrava agora a atenção de todos. As crianças sentadas sob a árvore-
escola estavam em silêncio. Todos conheciam bem o terror do fogo.
— Os nossos antepassados presenciaram isto — prosseguiu Timon. — Assistiram às
gargalhadas dos Zebak enquanto o fogo se desenvolvia. O horror desse momento foi uma
das razões por que se revoltaram por fim contra os Zebak. Partiram as correntes e uniram-
se ao povo deste território para combater e derrotar o inimigo. Foi o dia mais importante
na nossa história.
Depois, Timon fez uma coisa estranha. Fechou o livro e inclinou-se para a frente.
Rowan ficou subitamente com a impressão que Timon se dirigia especificamente a ele.
— Nunca nos deveremos esquecer — disse Timon lentamente, os olhos fixos nos de
Rowan — que, desde então, o povo Maris tem sido vital para a nossa segurança. Sem eles,
os Zebak teriam regressado para nos reclamar, há muitos anos atrás. O objetivo
permanente dos Zebak é apoderarem-se deste território, e a sua astúcia cresce em cada ano
que passa. Nunca podemos perder a confiança dos Maris, seja a que custo for.
Pouco depois, a lição terminou. Pensando no assunto mais tarde, Rowan decidiu que
fora pateta ao pensar que Timon falava com ele em particular. Por que razão haveria
aquela história de ser mais especial para Rowan do que para qualquer outra criança de
Rin?
Mas agora, com a mensagem dos Maris ainda ecoando na sua mente, sentia de modo
diferente.
Timon estava a falar especialmente para mim naquele dia, pensou, o coração
acelerando. Timon sabia que, um dia, chegaria a mensagem dos Maris. Avisava-me que
não devia lutar contra ela. Que tinha de cumprir a minha obrigação.
Que obrigação?
Tinha algo a ver com o Cristal. O lendário Cristal dos Maris.
O Cristal enfraquece. O Selecionador foi convocado.
“Poucas pessoas à exceção dos Maris compreendem como é poderoso e misterioso o
Cristal. Muito poucas”, dissera Timon uma determinada ocasião.
De novo, os seus olhos cinzentos pareceram mover-se na direção de Rowan.
Rowan abrandou o passo. Sim. O que estava em jogo era o Cristal. Teria Timon dito
mais alguma coisa a esse respeito?
Apenas uma coisa. E dissera-o em tom grave, como se fosse muito importante.
“Os Maris vivem muito tempo. Muito mais do que nós de Rin. E os Guardiães
atingem uma idade superior em relação aos outros, devido ao poder do Cristal. Apesar de
tudo, há sempre uma altura em que cada Guardião sabe que a morte está próxima. Nessa
altura, o Cristal começa a perder o seu fogo e força. Deve então ser escolhido um novo
Guardião, para ocupar o lugar do anterior. O novo Guardião tem que se juntar ao Cristal
antes do velho Guardião falecer, para que não seja perdido o seu poder”.
O Cristal enfraquece…
Rowan sentiu um nó na garganta. Percebeu subitamente o significado da mensagem.
Lá muito longe em Maris, o Guardião do Cristal estava a morrer. E um novo Guardião
tinha de ser escolhido.
Mas por que fora a mensagem entregue a Jiller? Por que lhe chamara o mensageiro o
Selecionador? O que tinha ela, uma mulher de Rin, a ver com o Guardião do Cristal?
Rowan levantou a cabeça e viu que Jiller e Jonn tinham parado e que esperavam por
ele. Tinham chegado ao caminho que conduzia ao jardim deles e aos campos para além da
casa. Annad já tinha corrido pelo portão, deixando-o totalmente aberto.
Correu para se juntar a eles.
— Vai agora para casa, Rowan — disse Jiller em tom baixo. — Reúna roupas para a
viagem. Roupas quentes, pois vai estar frio em Maris. Depois vá ao campo dos bukshah e
prepare a Estrela. Terá de vir conosco para carregar os suprimentos.
Jiller esperou que ele fosse cumprir o que ela pediu, mas Rowan hesitou.
— Depressa — disse a mãe, severamente. — Partimos ao pôr-do-sol.
Rowan permaneceu imóvel.
— Por favor, mãe — disse. — Por que temos que ir? Como pode ser esse tal… esse
tal Selecionador?
— Jiller, tem de lhe contar — pediu Jonn Forte. — Não pode protelar mais.
Jiller suspirou. Fechou o portão e fitou os campos cultivados que ondulavam como
um mar verde diante dela.
— Sou o Selecionador porque nasci para essa missão, Rowan — disse, por fim. — É
um dever que tem sido transmitido na nossa família há centenas de anos.
— Na nossa família? — Rowan mal acreditava no que ouvia. — Mas… porquê? Por
que nunca soube disso? Lann sabia. Jonn sabia. Timon sabia. Muitos deviam saber. —
Sentiu uma fúria repentina. — Por que nunca me contaram? — inquiriu.
— É um assunto conhecido por poucos em Rin, por desejo dos Maris — disse Jonn,
pousando uma mão no ombro de Rowan.
— Talvez já devesse ter lhe contado antes. Mas não quis te perturbar até ser
necessário — afirmou Jiller, ainda olhando em frente. — Sempre foi um rapaz… que se
preocupava com as coisas, Rowan.
Rowan contraiu-se. Sabia que, se tivesse sido uma pessoa mais forte e corajosa, a
mãe teria partilhado o segredo com ele há muito.
Jiller pareceu compreender o que ele sentia, porque olhou para ele rapidamente e
tocou-lhe na mão.
— Quis proteger-lhe pelo mais tempo possível — murmurou. — É tudo.
— Bom, chegou a altura de contar a verdade — afirmou Jonn Forte. — Agora Rowan
tem de ouvir a história completa.

3
O SELECIONADOR
Foi assim que, finalmente, caminhando de um lado para o outro sob as árvores do
jardim, Rowan ouviu o segredo que a mãe guardara tanto tempo dele.
Quando os Zebak invadiram a costa, no dia que Timon apelidara o mais importante
na história de Rin, programaram bem a sua chegada. Os seus espiões tinham informado
que o Cristal dos Maris estava a enfraquecer. O Guardião estava moribundo. Estava
prestes a iniciar-se a Escolha de um novo Guardião.
Os Zebak perceberam que aquela era a altura perfeita para atacarem. Não só porque
os clãs rivais dos Maris estavam a conspirar para que um dos seus fosse escolhido como o
novo Guardião. Mas também porque o próprio Cristal estava fraco e não voltaria a
fortalecer-se até estar terminada a Escolha.
Os Zebak sabiam que a Escolha dependia de regras especiais, estabelecidas por Orin,
o Sábio. Orin antecipara que, quando morresse, cada clã iria exigir que um dos seus
elementos fosse o Guardião. Não queria que o poder do Cristal se perdesse enquanto os
clãs lutavam entre si. As regras de Orin eram simples. Os Candidatos a Guardião iriam
juntos para a ilha existente no porto dos Maris. Não para lutar, porque os Maris não
apreciavam grandemente o confronto físico, mas para realizar diversos testes de
inteligência e astúcia. Os Candidatos seriam avaliados por um único Selecionador. O
Candidato escolhido no final dos testes seria o novo Guardião do Cristal.
Orin era inteligente e compreendia bem o seu povo. Sabia que o Selecionador tinha
de ser alguém em que toda a gente confiasse. Pelo que decretou que o Selecionador seria
sempre do seu próprio clã, o clã de Mirril. Contudo, em retribuição desta honra, nenhum
Mirril poderia voltar a ser Guardião do Cristal.
O Selecionador dos Mirril faria a escolha a partir apenas de três Candidatos — um
dos Fisk, um dos Umbray e um dos Pandellis. Deste modo, o clã do Selecionador não teria
nada a ganhar ou a perder. A escolha seria sempre justa.
As pessoas aceitaram a norma de Orin. Manteve-se inalterada durante séculos — até
que algo aconteceu que nem mesmo Orin poderia ter antecipado.
Os Zebak atacaram, enquanto o velho Guardião estava às portas da morte. E o seu
primeiro ato foi destruir os Mirril.
Não foi fruto do acaso. Não foi por o edifício dos Mirril se encontrar mais próximo
da costa. Mas porque queriam destruir o clã do Selecionador. Pretendiam evitar que fosse
escolhido um novo Guardião. O Cristal perderia assim a sua potência para sempre e a
vitória seria alcançada por eles.
O plano deles quase foi bem sucedido. Havia Candidatos à posição de Guardião mas,
com todos os Mirril mortos, não havia Selecionador. Apesar desta crise, com uma batalha
a desenrolar-se na costa Maris, os clãs dos Fisk, Pandellis e Umbray não chegavam a um
acordo para atribuir a escolha a um deles. Nem permitiram que fosse o Guardião a
escolher, que por sinal estava a morrer e incapaz de se deslocar da Gruta da Cristal, onde
estava acamado.
Mas os Zebak esqueceram-se de um pormenor: o Cristal, mesmo enfraquecido,
continha dentro de si a sabedoria de várias eras. E o velho Guardião, mesmo moribundo,
possuía a astúcia do próprio Orin.
O velho Guardião sabia onde encontrar um Selecionador que o seu povo aceitaria.
Voltou-se para os estranhos — os escravos guerreiros que se amotinaram contra os
senhores Zebak e que lutavam lado a lado com o seu povo. Com ajuda do Cristal,
selecionou um homem para Selecionador. Esse homem era um antepassado de Jiller e de
Rowan. O seu nome era Lieth.
— Assim, enquanto a batalha se travava, Lieth foi para a Ilha e escolheu o novo
Guardião — disse Jiller. — O Cristal começou a reluzir com uma vida nova e radiante. O
meu pai contou-me que o seu poder atinge o ponto máximo quando é escolhido um novo
Guardião. O que se provou verdadeiro nesse dia.
— Logo de imediato, a maré da batalha virou. Os Zebak foram vencidos e repelidos.
Esta terra ficou a salvo. E os nossos antepassados ficaram livres da escravatura, para
darem início a uma nova vida.
— Isso foi há centenas de anos — disse Rowan.
Jiller anuiu.
— Foi. Mas o dever que Lieth aceitou em Maris naquele dia tem passado pela nossa
família desde então.
— É uma grande honra — disse Jonn calmamente.
— Uma grande honra e, ao mesmo tempo, uma maldição. — O rosto de Jiller estava
determinado e pálido. — Porquê? — perguntou Rowan com ansiedade.
— Por que é uma maldição?
Jiller estendeu a mão para a maçaneta da porta.
— Porque ser um Selecionador em Maris é colocarmo-nos num terrível perigo —
murmurou. — Trata-se de um risco de morte.
Virou-se subitamente e tomou o rosto de Rowan nas mãos.
— Daria tudo para lhe poupar, Rowan. Tudo. Mas nada posso fazer. Tenho que te
levar comigo, para que ocupe o meu lugar de Selecionador, se eu morrer. Ambos teremos
que enfrentar o que nos espera com coragem. Ambos. Sozinhos.
Afastou as mãos, voltou-se e correu para dentro de casa. Rowan seguiu-a. A sua
mente estava cheia de confusão e medo.
— Porquê, mãe? Por que podemos ficar em perigo? — gritou. — Por causa dos
Zebak? Porque sabem que a altura para atacar a costa é quando o Cristal está
enfraquecido?
— Não! — exclamou Jiller. O seu olhar era ardente. Rowan retrocedeu. Assustava-o
ver a mãe assim. Era habitualmente tão calma e destemida.
— Jiller! — Jonn Forte deu um passo em frente. — Vamos sentar-nos. Vamos
sentarmo-nos, comer e beber. Poderá responder às perguntas de Rowan como devem ser
respondidas. Em paz.
— Não há tempo… — começou Jiller, esfregando as mãos. Depois, subitamente,
cedeu. Os seus ombros descaíram. Puxou uma cadeira e sentou-se à mesa. — Tem razão
— disse, suavemente. — A culpa é minha. Carrego este fardo sozinha há tanto tempo que
me é difícil partilhá-lo, agora que chegou a altura. — Abanou a cabeça. — O meu pai
disse-me a mesma coisa, na sua época. — O avô escolheu um Guardião? — perguntou
Rowan, sentando-se timidamente ao lado dela. O avô morrera quando ele era muito
pequeno. Rowan recordava-se sobretudo de um sorriso rasgado e gentil, olhos azuis e
mãos calosas e rijas devido ao trabalho no campo e aos animais que esculpia em madeira
com uma navalha pequena e afiada.
Jiller abanou a cabeça.
— Não, o meu pai nunca foi convocado — respondeu.
— O atual Guardião foi escolhido pela mãe dele, a minha avó. Mas o meu pai sabia
que o Cristal iria quase de certeza perder a intensidade durante o meu tempo. E isso
preocupava-o, bastante.
Jonn colocou pão, queijo e leite sobre a mesa.
— Coma, Jiller — disse. — E você, Rowan, coma também. Vão precisar de todas as
forças nos próximos dias. Perder refeições não terá qualquer utilidade.
Começaram a comer. Jonn estava certo, pensou Rowan. Alimentar-se o ajudou de
fato. Nem percebera que tinha tanta fome.
— Quer então dizer que é perigoso ser Selecionador — disse, com a maior calma
possível. — Porquê?
— Porque os Maris não mudaram — afirmou Jonn. — Os ciúmes entre clãs é como
uma loucura. — Pousou a mão no braço de Jiller. — Conte-lhe o resto, Jiller.
A mãe de Rowan anuiu com relutância e começou a falar de novo.
— À medida que cada Guardião envelhece, os clãs Maris preparam-se para a
Seleção. Cada clã tem pelo menos um Candidato, treinado ou treinada desde tenra idade
para os testes. Os elementos de cada clã farão tudo, tudo mesmo, para assegurarem a
vitória do seu Candidato. Poderão roubar, espiar, enganar e mentir. Poderão mesmo matar,
se suspeitarem que o Selecionador está a favorecer outro.
Esmigalhou o pão no prato, fitando-o sem ver.
— Muitos membros da nossa família morreram em Maris. O meu bisavô foi o último.
Em luto pelo pai e cheia de medo, a minha avó, a sua primogênita, teve que assumir a
posição dele como Selecionador enquanto ele jazia morto na Caverna do Cristal. Dizem
que se portou com muita coragem, apesar de ter apenas quinze anos.
Rowan sentiu o coração a dar voltas. Mas forçou-se a manter-se em silêncio.
Jiller prosseguiu.
— Ela sempre teve consciência do perigo. Muitos outros na nossa família morreram
nos séculos anteriores, assassinados por Candidatos ciumentos, ou por espiões dos clãs.
Com muita frequência, a Escolha tem ocasionado a morte do Selecionador. Veneno.
Lâminas afiadas na cobertura da noite. Corpos envoltos em redes e lançados ao mar
faminto.
Rowan olhou para a mãe horrorizado.
— Mas… isso é uma loucura.
Jonn anuiu.
— Tal como lhe disse. Uma loucura — ecoou. — Uma loucura que se tem
prolongado por um milhar de anos.
— É a forma de ser dos Maris — suspirou Jiller. — De nada serve revoltarmo-nos
contra isso. Pelo menos agora os clãs só lutam entre si quando o cristal enfraquece. Assim
que um novo Guardião for escolhido, os Maris unir-se-ão de novo, jurando lealdade e
obedecendo ao seu líder sem questionarem. Sempre foi assim.
Sempre foi assim… Rowan respirou fundo.
— Se ambos formos mortos — disse, num tom de voz inexpressivo —, isso quer
dizer que Annad…?
— Não. — Jiller sorriu, cansada. — O meu único alento é que Annad é demasiado
jovem para ser convocada. Se você e eu morrermos, Rowan, o dever passa para outro.
Para Timon. A família dele é a seguinte na linha.
Timon. Por isso os olhos de Timon estavam tão sérios ao falar do Cristal dos Maris.
Jonn afastou o prato e ergueu-se.
— Bom — disse —, já conversamos, já comemos e agora temos de lançar mãos ao
trabalho. Se vamos partir ao pôr-do-sol, há muito a fazer.
Jiller olhou para cima, surpreendida.
— Vamos? — perguntou. — Não virá conosco, não é, Jonn?
— Claro que sim — respondeu ele. — Pensou que permitiria que você e Rowan
fossem sozinhos?
Jiller abanou a cabeça.
— Jonn, este é o meu dever e o de Rowan. Não há necessidade de se por também em
perigo. Não há necessidade.
— Há necessidade, sim — disse Jonn gentilmente. — Sabe isso. Também sabe que,
se o pai de Rowan fosse vivo, os acompanharia à costa. Para ficar com Rowan enquanto
você participa na Escolha, nem que seja para isso.
Tem de me conceder o mesmo direito.
— Estamos noivos, ainda não somos casados. Agora, talvez… — a voz de Jiller
tremeu e virou a cara.
Rowan sentiu a respiração contida na garganta. Jonn agarrou na extremidade da
mesa, o olhar duro.
— Não diga essas coisas — disse, em voz alta. — Vai correr tudo bem. Ficaremos em
segurança, tal como Rowan. Farei tudo por isso.
As palavras eram corajosas. Mas Rowan sabia que Jonn, apesar de toda a sua força,
não poderia os proteger contra o que estavam prestes a enfrentar. Ninguém os podia
proteger.
A voz da mãe ecoou na sua mente. Ambos teremos que enfrentar o que nos espera
com coragem. Ambos. Sozinhos.
4
A VIAGEM
Partiram assim que o sol se pôs. Poucos os viram partir. Apenas Timon e a velha
Lann se deslocaram ao limite da aldeia para se despedirem.
Annad iria ficar com Marlie, a tecedeira, enquanto Jiller e Rowan estavam fora.
Ficaria aí em segurança e feliz. Para além de que se sentiria importante, pois iria cuidar
dos bukshah no lugar de Rowan.
— E se… — murmurara Jiller para Marlie. — Se Rowan e eu não voltarmos…
— Cuidarei de Annad como se fosse minha — disse Marlie rapidamente. — Nada
receie. Mas, Jiller… vocês vão voltar.
A velha Lann fez eco destas palavras ao despedir-se deles.
— Vocês vão regressar — disse, o rosto forte e enrugado não demonstrando o receio
que talvez sentisse. — Pelo menos um de vocês regressará. A convocação chegou tarde. O
homem Maris contou-me que o Guardião está ficando débil muito rapidamente. Não
haverá tempo para vir buscar a Rin outro Selecionador. O que, sem dúvida, Timon
agradece.
Timon baixou a cabeça.
— Não é bem assim. Se pudesse, tomava o lugar de Jiller. Mas os Maris não me
aceitarão como Selecionador enquanto ela e Rowan forem vivos.
Lann olhou para Perlain, que aguardava impacientemente junto ao riacho.
— Os Maris já não são o que eram — afirmou. — Atados de mãos e pés por regras e
obedecendo apenas aos costumes antigos, as pessoas não aprendem nada. Os Guardiães
velam pelo Cristal, mas já não o usam como antigamente. Temem novas idéias. Não
querem mudar. Não querem crescer. Mas os Zebak tornam-se mais astutos em cada ano
que passa.
Franziu fortemente o cenho.
— Peço-lhe, Jiller, e a você, Rowan dos bukshah, que, quando tiverem que cumprir o
vosso dever, escolham com sensatez e ponderação.
— Vou tentar — murmurou Jiller.
Rowan engoliu em seco e anuiu.
Lann inclinou-se para a frente.
— E tenham cuidado — recomendou, num sussurro. — Aqueles demônios dos Maris
vão estar de olho em vocês a todo o momento. Agora vão. Os nossos pensamentos e
confiança estarão convosco.
* * *
Há anos, tal como qualquer criança de Rin, que Rowan desejava visitar a costa.
Ansiara por observar o grande oceano, reluzente, em movimento, azul até onde se
conseguia ver.
Imaginara-se a olhar para o misterioso povo Maris, de pele pálida, navegando os seus
barcos para onde o sol nascia, deslizando como peixes através das ondas no calor do meio-
dia, remendando as redes ao entardecer. Em segurança em casa no seu vale verde,
estremecera com o medo agradável ao pensar nas mandíbulas enormes, cintilantes e
gotejantes das serpentes marinhas, caçando as presas sob o luar.
Tantas imagens que vira e tantas histórias que escutara sobre este local. Desejava
ardentemente ver tudo com os próprios olhos.
Pensara que viajaria para a terra dos Maris numa das deslocações comerciais da
aldeia. Todos os anos um grupo de aldeãos partia entusiasmado. Com eles iam quatro ou
cinco animais da manada dos bukshah, puxando carruagens repletas de queijo, fruta,
vegetais, lã cardada dos bukshah e outros bens.
Rowan escapava sempre do seu trabalho nos campos dos bukshah para vê-los partir.
E três ou quatro semanas depois, juntava-se aos outros habitantes para lhes dar as boas-
vindas.
Se as transações comerciais tivessem corrido bem, os artigos de Rin teriam
desaparecido das carruagens. Em seu lugar, haveria peixe seco, frascos de óleo,
embalagens de sal e esponjas.
Os aldeãos que viajaram mostrariam as pequenas coisas que compraram para si e
para os amigos: ornamentos estranhos e bonitos, esculpidos em madeira e madrepérola,
biscoitos pequenos, duros e matizados que sabiam a mar, cintos em pele de peixe, colares
com pequenos cristais. Rowan escutava as suas histórias com entusiasmo e inveja.
Um dia, disse a si mesmo, terei idade e força suficiente para ir à costa. Um dia…
Mas esse dia chegara muito mais cedo do que antecipara. E chegara de uma forma
que o chocara. Por um motivo que jamais imaginara.
* * *
Os dias e as noites passaram. Era uma viagem longa. Para além de ser dura, porque
viajavam de noite e apressadamente. Percorrendo os caminhos sinuosos na escuridão,
seguindo primeiro o riacho e depois o rio que conduzia ao mar, todos eles ficaram
exaustos. Embora descansassem o mais possível durante o dia, era difícil dormir profunda
e longamente com o sol brilhante no céu.
Viajavam de noite por causa de Perlain, o homem Maris. Longe da umidade do mar, a
sua pele macia secava e estalava. O sol do interior, mesmo naquela estação mais
temperada, queimava-o.
Ele não lhes agradeceu a atenção. Disse-lhes que não o deviam poupar. Disse que o
tempo era demasiado precioso para ser desperdiçado. Mas, após três noites de caminhada,
sentia-se demasiado cansado para continuar a argumentar. Cingiu-se ao silêncio.
A noite, seguia na frente deles, os pés suaves no terreno, as vestes azuis brilhando ao
luar. Durante o dia, molhava-se no rio enquanto eles dormiam na margem.
Uma tarde, quando se encontravam próximos do final da viagem, Rowan despertou
de um sono intranquilo e viu Perlain sair de dentro de água, pingando, sentando-se no
solo.
As sombras eram extensas. Rowan sabia que em breve seriam horas de comer e de
partirem de novo. Mas Jiller e Jonn continuavam a dormir. Até Estrela dormitava. Sob
impulso, Rowan levantou-se e aproximou-se do homem Maris.
Perlain viu-o chegar. Os seus olhos planos não revelavam nem surpresa nem agrado.
Rowan pensou que poderia conversar com Perlain, fazer-lhe perguntas sobre Maris.
Mas descobriu agora que não sabia por onde começar. Olhou para ele sem conseguir falar,
muito consciente da estranha aparência do indivíduo, do seu cheiro estranho a peixe.
— Dormiu bem, primogênito do Selecionador? — perguntou Perlain, educadamente.
— Sim, obrigado — mentiu Rowan. — E você?
Perlain encolheu os ombros e os seus lábios finos desenharam um sorriso.
— De manhã já estarei em casa — disse, simplesmente. Olhou para o céu.
— Está na altura do Selecionador acordar — afirmou. Era evidente que desejava que
Rowan o deixasse só.
Rowan mordeu o lábio.
— Perlain — disse, repentinamente. — O Cristal de Maris. Pode falar-me sobre ele?
Perlain olhou para ele.
— Sou apenas o mensageiro do Guardião. Não conheço todos os segredos do Cristal.
— Não quero saber os segredos — afirmou Rowan. — Apenas as coisas que todas as
pessoas em Maris devem saber. Até nós em Rin sabemos um pouco. O Cristal foi
encontrado há muito tempo atrás por um homem chamado Orin, o Sábio. Eu sei isso. Mas
não sei onde foi encontrado, ou como. Não me pode contar pelo menos isso, por favor?
Perlain pareceu ponderar por instantes. Depois, lentamente, anuiu.
Vou contar-lhe o que sei — disse. Estendeu o olhar sobre o rio.
— Orin andava à pesca, de forma imprudente, quando o sol se punha — começou. —
A lua cheia exibia-se no céu. A Grande Serpente, a mãe de todas as outras serpentes do
mar, ergueu-se das águas negras, atacou a embarcação de Orin e perseguiu-o até à Ilha, no
porto.
Rowan estremeceu. Na casa dos livros havia uma imagem da Grande Serpente dos
Maris. Sempre provocara nele um temor imenso. Uma besta enorme, retorcida e
escamosa, com a cabeça de um dragão e o corpo de uma cobra gigantesca, erguendo-se do
mar. Uma embarcação com elementos do povo Maris aos gritos, de mãos nos ouvidos,
esmagada por entre as terríveis mandíbulas gotejantes. Perlain sorriu levemente e
prosseguiu.
— Movido pelo terror, Orin fugiu para uma gruta e, aí, mergulhou num túnel sombrio
que conduzia muito abaixo do nível do mar. Numa caverna pequena e rochosa, encontrou
o Cristal. Quando lhe tocou, começou a brilhar… como se uma centena de luzes de arco-
íris estivessem enclausuradas no seu interior. Permaneceu na caverna toda a noite e, na
manhã seguinte, levou o Cristal para terra.
— As pessoas perceberam de imediato que o Cristal era um grande prodígio, embora,
naquele tempo, ninguém se percebesse o seu verdadeiro poder. Não tardaram a verificar
que só brilhava para Orin. E perceberam que Orin fora mudado por ele. Subitamente,
começou a ver coisas que eles não viam. A sentir o peixe abaixo da superfície do mar. A
sentir a aproximação de serpentes. A saborear o vento e a antever a aproximação de
tempestades.
Mesmo a ver no interior do coração das pessoas.
E Orin sofreu modificações de outra ordem. Antes de encontrar o Cristal, era um
homem com ódio aos outros clãs que não o seu. Contudo, agora, mesmo com o seu clã a
pedir-lhe que usasse o seu poder para destruir os seus rivais, nunca o fez. Partilhou com
todos o conhecimento e sabedoria do Cristal.
— Quer dizer que se tornou o líder dos Maris — interrompeu Rowan. — O primeiro
Guardião.
— Sim. Pelo poder do Cristal — disse Perlain. — Depois, tudo aconteceu como ele
disse que aconteceria. Assim que as pessoas se dedicaram à construção, planejamento e
armazenamento de alimentos, em lugar de se guerrearem entre si, a nossa nação
prosperou. Seguiram-se outros Guardiões a Orin, cada um deles escolhido de acordo com
as regras que estabeleceu. E o Cristal…
— Sim? — perguntou Rowan ansioso. — O que tem o Cristal?
— Com os anos, descobriu-se que o Cristal era mais, muito mais do que até Orin
supusera.
Perlain hesitou e depois prosseguiu, escolhendo com prudência as palavras.
— O Cristal não se limita a dar. Também recebe e guarda. Contém agora todo o
conhecimento dos Maris. Quando um velho Guardião morre, todas as suas aprendizagens
e experiências passam para o Cristal. E deste, para o novo Guardião. Pelo que nada se
perde. Tudo é recordado.
— Isso quer dizer que cada Guardião é mais sábio do que os Guardiões do passado!
— exclamou Rowan. — Mais sábios e mais poderosos.
— É o que se diz.
Não admira então que o lugar de Guardião seja tão pretendido — disse Rowan. —
Todas as pessoas de Maris devem desejar ser escolhidas como Candidatas.
— Oh, não — respondeu Perlain suavemente. — Nem todas. Eu, por exemplo, não
podia pensar em nada que me interessasse menos.
Então, parecendo subitamente sentir que dissera demasiado, pôs-se de pé e afastou-
se.
Rowan mirou o rio. A água corria veloz, transportando paus e folhas com ela,
deslocando-se interminavelmente em direção ao oceano.
Amanhã, pensou Rowan, estaria para onde aquela água corria. Estaria no local onde o
rio se encontra com o mar.
Amanhã, estaria em Maris.

5
PERIGO
De pés doridos, gelado e exausto até à medula, Rowan sentiu o vento cortante no
rosto, sentiu o sabor do sal nos lábios e fitou, com olhos lacrimejantes, o mar interminável
e ondulado. Estendeu a mão para o calor reconfortante da crina de Estrela.
Estrela mugiu bem fundo na garganta e roçou-se nele. Tal como Rowan, estava
distante de casa. Sentia saudades do ar doce do vale de Rin e da erva macia dos campos
dos bukshah.
Não lhe agradava o vento gélido que soprava borrifos salgados para os seus pequenos
olhos negros e o cheiro pungente e a peixe para o seu nariz sensível. Não gostava da areia
e das pedras sob os cascos. Não gostava do estábulo sombrio onde a prenderam, nem das
estranhas e silenciosas pessoas que a miravam quando passavam.
— Vai sentir-se melhor quando descansar, Estrela — murmurou-lhe Rowan,
esfregando-lhe o focinho. — Todos nos sentiremos melhor depois.
Sabia que falava tanto para si como para ela.
O vento soprou com maior intensidade. Estrela raspava a pata no chão, virando a
cabeça para a porta do estábulo, ao ruído do vento e à areia que aferroava.
— Agora tenho de ir— disse Rowan. — Jonn está à minha espera. Mas não tardarei a
vir ver-te.
Estrela mugiu num tom infeliz.
— Tem aqui água e comida. Vá comer, beber e depois dormir — pediu-lhe Rowan.
— Se dormir, o tempo passa mais depressa.
Afagou de novo o pescoço de Estrela e afastou-se. Desejou que as suas palavras de
conforto correspondessem à verdade. Detestava ter de deixar Estrela sozinha, trancada
daquele modo. Mas os Maris não tinham outro lugar para guardá-la.
Pelo menos aqui ficará em segurança, pensou Rowan, trancando a porta do estábulo e
começando a percorrer a calçada de pedra onde ele e Jonn iam ficar. O estábulo era forte,
construído com os tijolos tipo pedra que os Maris fabricavam para as suas próprias casas.
As terríveis criaturas que se arrastavam do mar para caçar pela calada da noite não
conseguiriam derrubar aquelas paredes sólidas.
Fora Perlain quem lhe dissera isso, sorrindo levemente, a cabeça pendendo para o
lado. Os Maris não tinham por hábito relacionarem-se com animais. Perlain estava
divertido por Rowan se interessar tanto por Estrela, mas era demasiado delicado para o
afirmar.
Rowan observou de novo o porto, onde a Ilha se destacava, negra e coberta de
espessa floresta, fustigada pelas ondas e vento. Não avistava nenhum movimento nas orlas
rochosas, mas era possível que a mãe já lá estivesse, oculta por entre as árvores. Fora
levada assim que chegaram a Maris. E tinham já decorrido umas duas horas, no mínimo.
Rowan e Jonn foram informados que ela iria primeiro à Caverna do Cristal e depois à
Ilha. Iria permanecer aí até a conclusão da Escolha.
Rowan mirou o mar reluzente e a forma negra da Ilha, mas não os estava de fato a
ver. Já não avistava a costa Maris, nem a calçada empedrada em que se encontrava, nem as
casas arredondadas que se aglomeravam atrás dele. Deixou de reparar nos olhares curiosos
dos Maris que por ele passavam.
Na sua mente, estava de volta a Rin, junto à lagoa dos bukshah. Os animais
deambulavam à sua volta. A mãe trabalhava no campo. Jonn Forte estava no pomar. Tudo
estava calmo. Tudo estava em segurança…
Rowan sentiu uma mão no ombro e deu um salto. Virou-se e deparou com Perlain,
que o fitava com ar inquisidor.
— O que faz aqui sozinho, primogênito do Selecionador? — perguntou o homem
Maris. — Por que não está na casa segura, com Jonn do Pomar, onde te deixei?
— Eu… eu fui ver como estava a Estrela, o meu bukshah — gaguejou Rowan.
Um sorriso cansado rasgou o rosto de Perlain.
— As pessoas de Rin são muito estranhas — suspirou. — Quer ser encontrado
amanhã de manhã numa vala, apunhalado no coração, meu amigo? Esse animal, esse
bukshah, é tão importante para se arriscar a isso?
— Não há motivo para alguém desejar matar-me, Perlain — afirmou Rowan. — Não
fiz nenhum mal a ninguém. E ainda não sei nada sobre a Escolha. Nem sequer vi os
Candidatos. Ninguém poderia saber como eu votaria, no caso de competir a mim.
Os olhos pálidos de Perlain pareceram toldar-se por momentos e depois, mais uma
vez, exibiu um sorriso.
— É mais sábio do que parece, Rowan de Rin — murmurou. — No entanto, não tão
sábio quanto se crê. Os Candidatos estudam a forma de vida de Rin, sobretudo a da sua
família. Os treinadores deles sabem como você pensa. Colheram informações a seu
respeito desde o dia em que nasceu.
As faces de Rowan enrubesceram, apesar do vento gélido.
Não lhe agradava que a sua vida fosse espiada à distância por estranhos de olhos frios
e pálidos. Olhou para Perlain e o seu rosto demonstrou claramente o que sentia.
O homem Maris abriu as mãos de dedos unidos por uma membrana.
— É assim que sempre foi — disse. — É melhor para você aceitá-lo. Venha agora
comigo para a casa segura. Sugiro que, a partir de agora, aguarde lá e que não ande pelas
ruas sozinho.
Pegou no braço de Rowan e conduziu-o pela rua de pedra.
— Tenho de visitar a Estrela pelo menos duas vezes por dia — disse Rowan,
teimosamente. — Para lhe encher a tigela com água e dar-lhe de comer. Está sozinha e
talvez mesmo com medo.
— E você não tem medo? — Perlain fitou-o. Os seus olhos planos pareceram
penetrar na alma de Rowan. Depois anuiu. — Oh, sim. Estou percebendo. Está com medo,
mas esforça-se por não o demonstrar. Esse é o modo de ser de Rin, não é?
Rowan nada disse. Continuou a andar, sentindo o hálito frio de Perlain na cara. Viu as
outras pessoas Maris, sobretudo aquelas que usavam o prata e verde dos clãs Umbray e
Fisk, a observarem e a sussurrarem à sua passagem. Talvez se questionassem o que Perlain
lhe estaria a dizer. Questionando-se se Perlain estaria a aproveitar-se da sua posição como
mensageiro do Guardião. Se estaria a comunicar as virtudes do Candidato do clã de
Pandellis. Apenas no caso do primogênito se tornar no Selecionador.
A voz baixa prosseguiu, junto do seu ouvido.
— Contudo, é diferente dos outros que conheci. Diferente das pessoas grandes e
ruidosas que vêm negociar conosco todos os anos. Diferente da sua mãe alta e corajosa, o
Selecionador. Os seus olhos contêm a expressão de alguém que já viu a Grande Serpente e
que sobreviveu. Profundos e extremamente conhecedores. Estranho, num rapaz tão jovem.
Só conheci outro assim.
Rowan tropeçou e olhou para os pés, sem saber o que dizer.
— Mantém o silêncio — disse Perlain. — Isso é bom. Em silêncio, está em
segurança. — Parou e apontou. — Ali está a sua casa segura — afirmou. — Não vou lhe
acompanhar mais. Em breve lhes trarão comida. O melhor do nosso peixe. Os ovos do
Verme Kirrian, colhidos frescos esta manhã. Mas sugiro que comam os seus próprios
mantimentos.
— Porquê? — questionou Rowan.
Perlain encolheu os ombros.
— Poderá encontrar alguma coisa nos alimentos dos Maris que não te agrade —
disse, calmamente. — Informe o seu amigo Jonn, se assim desejar. Se valoriza a vida dele
tanto quanto valoriza a sua.
Fez uma vênia e afastou-se, deslizando como uma sombra azul por um estreito
caminho entre duas casas e desaparecendo de vista.
Rowan deu os últimos passos até ao pequeno edifício onde estava hospedado com
Jonn.
Perlain, alertava-o para o veneno. Alimentos envenenados, bebidas envenenadas.
Jiller levara os seus próprios alimentos e água para a Ilha. Ela, Rowan e Jonn
concordaram que seria o melhor. Mas não pensaram que Jonn e Rowan teriam de ter os
mesmos cuidados. Não tão cedo. Não até que o pior acontecesse e Jiller fosse morta.
Os elementos de cada clã farão tudo, tudo mesmo, para assegurarem a vitória do seu
Candidato. Poderão roubar, espiar, enganar e mentir. Poderão mesmo matar, se
suspeitarem que o Selecionador está a favorecer outro.
Tome cuidado, mãe, pensou Rowan, unindo as mãos. Não permita que ninguém
perceba como se sente. Não emita sequer uma sugestão sobre o Candidato que pensa ser
melhor. Oculte as palavras, o rosto e, mesmo, os pensamentos…
Talvez porque, após mil anos da existência do Cristal, o Guardião não seja o único
em Maris que consiga ler os pensamentos. Rowan recordou-se como os olhos pálidos de
Perlain investigaram os seus. Perlain pareceu saber o que ele pensava. Poderia ser? Se
assim era, Jiller não podia estar em segurança, por muito que se precavesse.
Não ficaria em segurança até chegar à Caverna do Cristal, até pousar a mão no ombro
de um dos Candidatos e ter proferido as palavras que sussurrara a Rowan durante a
viagem. As palavras proferidas por todos os Selecionadores desde a época de Orin.
O Selecionador fez a sua Escolha. Que os outros Candidatos abandonem este local.
Rowan percebeu que arfava de medo. Deliberadamente, abrandou o ritmo da
respiração. Passou as mãos transpiradas pela camisa. Sabia que tinha que se manter calmo.
Tão calmo como a mãe desejaria que ele estivesse. Mas era difícil. Tão difícil.
Questionou-se pela milésima vez se a mãe agira corretamente ao ocultar-lhe o
segredo da família todos aqueles anos. Teria sido melhor estar preparado?
Ou teria a história perturbado a sua infância, como o perturbava agora? Ter-se-ia ele
preocupado com isso e receado, em cada dia, a chegada de um mensageiro dos Maris?
Teriam os seus sonhos sido assombrados por pessoas pálidas e vigilantes, de olhos gelados
e mãos unidas por membranas, por uma ilha rochosa negra rodeada de espuma, um cristal
que reluzia como fogo?
Rowan escutou um som e olhou para cima. As pessoas na rua afastavam-se para dar
passagem a um grupo apressado. Um grupo de três pessoas, dois homens e uma mulher,
usando capas que esvoaçavam e estalavam ao vento.
Um homem usava o prateado dos Umbray, o outro o azul dos Pandellis. A mulher
usava o verde dos Fisk. Os rostos exibiam gravidade. Vinham diretamente na direção dele.
Algo acontecera. Algo terrível.
Todo o corpo de Rowan começou a tremer. O seu coração parecia ir explodir. Ouviu
murmúrios à sua volta enquanto as pessoas se concentravam para observar. Os três Maris
pararam diante dele e fizeram uma vênia acentuada. O homem de azul olhou para os
outros e começou a falar.
— Selecionador de Rin, que tem o destino dos Maris nas tuas mãos, saúdo-te em
nome do Guardião do Cristal… — começou.
À medida que a sua voz se ouvia, o burburinho elevou-se por entre as pessoas,
enchendo os ouvidos de Rowan, intensificando-se e diminuindo, como a espuma das
ondas sobre a areia. Selecionador… Selecionador… a mãe… Veneno… Veneno…
Veneno…
Quando a maré de horror chegou e inundou a mente de Rowan, um único pensamento
emergia. Jiller fizera bem em mantê-lo na ignorância enquanto foi possível. Porque nada
que lhe pudesse ter dito o teria preparado para esta agonia. Absolutamente nada.
6
VENENO
Quem fez isso? — Rowan escutou a sua própria voz falando como que ao longe.
— Não há forma de o sabermos — disse o homem mais alto, o homem dos Umbray.
— A sua mãe adoeceu na Ilha. Estava lá sozinha com os Candidatos. A escolha tinha
acabado de se iniciar. — O seu rosto não denotava qualquer expressão. Os olhos planos
eram puro gelo.
Um dos Candidatos, pensou Rowan. Alguém que pensou que ia perder. A sua cabeça
era um verdadeiro turbilhão. Não há forma de o sabermos. Mas tinha de haver.
A mulher vestida de verde olhou para o sol.
— Temos de nos apressar — disse. — O Cristal está a apagar-se. A Escolha tem de
prosseguir. O tempo escapa-nos tal como a maré. — Começou a afastar-se.
Cegamente, Rowan agarrou-lhe o braço para segurá-la. Os seus dedos deslizaram na
superfície macia das suas vestes. Sob o tecido, a carne transmitia uma sensação de frio e
umidade.
— Jonn! Jonn já sabe? — gritou, olhando para a porta fechada da casa segura, um
pouco mais à frente.
— Ainda não — respondeu ela.
— Tem de ser informado!
— E será. Já saberia, se você estivesse com ele como seria de esperar — afirmou a
mulher. — Ficamos surpreendidos por lhe encontrar na rua sozinho. — A voz dela era
gélida: o seu desagrado era evidente.
— Eu não estava… — começou Rowan, contendo depois as palavras. Ia dizer que
não estivera só. Que Perlain estivera com ele. Mas, com uma punhalada de medo que
trespassara inclusive a dor e confusão que sentia, teve consciência que seria perigoso
admiti-lo naquele momento.
Perlain pertencia ao clã Pandellis. Se os elementos dos Fisk e Umbray considerassem
que se estava a tornar demasiado próximo de um Pandellis, mesmo sendo o mensageiro do
Guardião, poderiam sentir ciúmes. Podiam decidir que Rowan iria seguramente escolher
um Candidato dos Pandellis para Guardião. Podiam…
— Venha — disse uma voz calma atrás dele. Era o homem dos Umbray. O seu rosto
estava tão próximo que Rowan podia ver o seu próprio reflexo nos olhos incolores. —
Venha — repetiu o homem. — Não podemos demorar mais. É agora o Selecionador. O
destino dos Maris está nas suas mãos.
— Quero ver a minha mãe — conseguiu dizer Rowan.
O homem anuiu.
— Claro. Por isso foi levada para a Caverna do Cristal, por ordem do Guardião. Tem
que se despedir dela antes de assumir o seu lugar na Ilha, Selecionador de Rin. Já não
estará viva quando voltar.
O coração de Rowan deu um salto gigantesco.
— Quer dizer que ela ainda… está viva? — exclamou. — Pensei…
— Respira— murmurou o homem dos Umbray, voltando a cara para o mar crispado.
— Mas o coração vai batendo mais lentamente à medida que o veneno alastra dentro dela.
Em breve deixará de respirar.
— Não está a sofrer — acrescentou o homem dos Pandellis, percebendo a expressão
mortificada de Rowan. — Está a dormir e a sonhar e, com cada sonho, afasta-se cada vez
mais da costa da vida. É só isso.
O homem dos Umbray sorriu, os lábios finos.
— Não queira se fazer parecer com Selecionador que tem o coração mole como ele e
a sua gente, Pandellis. Todos os Maris sabem que os Pandellis nascem com fragmentos de
gelo a flutuar nas veias. Que são frios e que não sentem nada. Ao passo que os Umbray…
A mulher dos Fisk contornou-o e pôs-se na frente dele.
— Os Umbray são tão maus quanto os Pandellis. São simplesmente melhores a
enganar, escorregadios como as enguias que se esgueiram no lodo do rio — exclamou
com desprezo. — O meu clã, pelo contrário…
— Cala essa boca de serpente, Fisk! — rosnou o homem dos Umbray, erguendo um
braço prateado reluzente.
Os três juntaram-se mais uns aos outros, prensando Rowan entre eles. Os tons de
vozes elevaram-se, transmitindo rancor. Em volta, as pessoas murmuravam entre si,
formando grupos separados. Pandellis. Umbray. Fisk. Mãos unidas por membranas
moveram-se para navalhas, longas e estreitas. Lâminas brilharam e cintilaram ao sol.
A cabeça de Rowan girava. Olhou em redor para os rostos pálidos e estranhos,
retorcidos de fúria, os lábios finos abertos e aos gritos, os olhos planos vidrados de raiva.
A cólera cresceu dentro dele. Odiava aquela gente. Odiava-os a todos. A rivalidade
estúpida e assassina entre eles matara-lhe a mãe.
Rangeu os dentes.
— Parem com isso! — gritou, tapando os ouvidos com as mãos. — Parem com isso!
Com respirações ofegantes, os Maris ficaram imóveis e silenciosos e retrocederam.
Os seus rostos tornaram-se vigilantes.
O vento soprava, as ondas esmagavam-se na costa.
Rowan sentiu um nó na garganta. Parecia que ia sufocar. Os olhos ardiam-lhe das
lágrimas. Engoliu em seco e pestanejou.
Por fim, conseguiu encontrar a voz.
— Levem-me à Caverna do Cristal — disse. — Levem-me à minha mãe! Já!
* * *
Enquanto caminhava, Rowan olhava em frente para as costas magras do homem dos
Umbray que seguia na dianteira. Tinha vagamente consciência da mulher dos Fisk
seguindo à esquerda e do homem dos Pandellis â direita. Não eram muito mais altos do
que ele mas agora que a sua raiva acalmara, deixando-o apenas envolto num
entorpecimento, sentia-se encurralado por eles. Enclausurado, rodeado, indefeso.
O grupo avançou rapidamente pelas ruas, passando pelos aglomerados de pessoas de
verde, azul e prateado como um peixe enorme através das águas.
“O Selecionador… o Selecionador…”, ouvia Rowan ao passar. As pessoas falavam
sobre ele. Sabiam. Sabiam o que acontecera à mãe. Talvez alguns até soubessem quem a
envenenara, e porquê.
Em breve deixará de respirar.
As palavras eram tão definitivas. No entanto… Rowan apressou o passo até estar
praticamente colado ao homem dos Umbray. Como tinham os Maris tanta certeza? Não
conheciam a mãe. Não conheciam a força dela. Talvez pudesse ser feita alguma coisa para
ajudá-la.
— Ainda falta muito? — perguntou, em voz alta. Sentiu-se subitamente aterrorizado
por Jiller poder morrer antes de ele chegar.
— Não — respondeu o homem dos Pandellis sucintamente. — Já chegamos. — O
ombro dele roçou no de Rowan ao virarem bruscamente para a direita, em direção ao mar.
As ondas rebentavam ruidosamente. Rowan sentiu borrifos de água no rosto. Olhou
para cima e em volta.
Encontravam-se diante de um edifício redondo e cor de areia, com portas enormes
cobertas de madrepérola. No telhado existia uma forma em concha onde uma chama seria
acesa para informar todos os Maris que a Escolha fora concluída e que o Selecionador
estava prestes a indicar o nome do novo Guardião. Agora estava fria e vazia.
Diante do edifício havia um pátio de pedras verde-pálido. Para lá dele, o mar,
colidindo contra as rochas.
E, mais à frente, orlada por espuma branca, a negridão da Ilha.
O homem dos Umbray estacou e afastou-se para o lado.
— Tem de entrar sozinho, Selecionador de Rin — afirmou, com um respeito cuidado.
A mulher dos Fisk fez um movimento rápido, como se se preparasse para falar. Mas
pareceu mudar de idéias. Olhou para baixo para as mãos e manteve-se em silêncio.
Rowan sentiu, sem propriamente ver, os três Maris a observá-lo quando se
encaminhou para o edifício. Já não se importava com o que eles faziam ou o que
pensavam. Quando empurrou as portas reluzentes e penetrou no estranho aposento, nem
sequer sentiu medo. Era como se estivesse incapaz sequer de sentir. Como se se estivesse a
ver em sonho.
As portas fecharam-se atrás dele e viu que estava só. O aposento era enorme. As
paredes e tetos eram curvos.
Estes, tal como o chão, eram feitos de pedra polida, dura e brilhante. A única luz
provinha de velas que ardiam em candelabros fixos ao chão.
Umas escadas, num dos cantos, conduzia para baixo.
Rowan dirigiu-se às escadas. Ao fundo, avistou uma luz tremeluzente. Colocou a
mão no corrimão e o pé no primeiro degrau.
Bem-vindo, Selecionador de Rin.
A voz ecoou no cérebro de Rowan. A cabeça estremeceu. Chocado, olhou em volta.
Estou aqui em baixo. Venha até mim.
A voz era suave, persuasiva. Rowan obedeceu-lhe.
Sabia que estava prestes a conhecer o Guardião do Cristal.

7
O GUARDIÃO
As escadas desciam, desciam, em espiral. Rowan perdeu conta do número de
degraus. Percebeu que se encontrava debaixo de terra, sob o mar. Um brilho suave e azul-
esverdeado iluminava-lhe o caminho. As paredes de ambos os lados eram de pedra, tal
como os próprios degraus, duros e frios debaixo dos seus pés. Ouvia-se o som de água a
pingar e havia o cheiro a sal e plantas marinhas.
Em cada passo que dava, mais sentia que algo o atraía. As pernas pareciam mover-se
contra sua vontade. Era como se estivesse a ser puxado na água por uma rede invisível.
Sentiu medo, que se sobrepôs a qualquer outro sentimento, a qualquer outro
pensamento.
Estremeceu e agarrou no corrimão até os nós dos dedos ficarem brancos. Desejava
deixar-se afundar na pedra fria. Desejava conseguir regressar à força à superfície. Mas,
apesar de tudo, continuava a descer, sempre a descer.
Não tenha medo. É o poder do Cristal que sente. Não lhe fará mal. E a sua mãe está
aqui comigo.
A voz possuía-lhe a mente, sobrepondo-se ao medo, arrastando-o para longe,
deixando tristeza e vergonha no seu lugar.
Mãe, pensou Rowan. A mãe está ali. Como me posso ter esquecido? Como posso ter
hesitado? Nem que por um instante?
Agora, o seu medo parecia loucura. Apoiando-se firmemente ao corrimão para não
cair, avançou. A luz azul-esverdeada intensificou-se. O som de água a pingar aumentou.
Por fim, viu que se encontrava praticamente no fundo das escadas. À frente, havia
uma parede de pedra reluzente. Nela fora cortado um arco, coberto com uma cortina de
gotas de água que reluziam como pequenos cristais na luz que fluía do interior da
Caverna.
Chegamos.
Rowan já não necessitava da luz para o guiar. Podia sentir o poder do Cristal, luzindo
da Caverna com a mesma intensidade da luz.
Desceu o último degrau e, com duas passadas, mergulhou através do véu aquoso.
Gotas frias e salgadas afagaram-lhe suavemente o rosto, encheram-lhe os olhos e fixaram-
se ao seu cabelo. Sentiu depois areia sob os pés. Olhou para cima. Avistou,
desfocadamente, paredes rochosas e brilhantes, de onde escorria água e luz.
— Mais uma vez, bem-vindo, Selecionador de Rin.
Desta vez, a voz falou em tom alto. Sussurrante, rouca, antiga, ecoou das paredes
gotejantes vezes sem conta até cada nicho da Caverna parecer ter o som penetrado. Era
impossível perceber onde estava quem proferia as palavras. Rowan esfregou os olhos e
olhou nervoso em volta.
O espaço era iluminado por luz azul-esverdeada, pelo que o ar era como água
profunda e cristalina iluminada pelo sol. A fonte luminosa provinha de algures no centro
do aposento, mas Rowan nem sequer olhou para lá. Porque, num dos lados, vestida com
trajes de seda e deitada sobre um sofá, estava Jiller.
Correu para ela, caindo de joelhos junto ao sofá. A mãe estava perfeitamente imóvel.
Tinha os olhos fechados. A mão que ele tocou estava fria. Mas, quando aproximou o rosto
do dela, sentiu-lhe a respiração suave. Era como se estivesse simplesmente adormecida.
Está a dormir e a sonhar e, com cada sonho, afasta-se cada vez mais da costa da vida.
— Mãe — murmurou. — Mãe, sou eu. O Rowan. — Gotas de água da sua cara e
cabelo precipitaram-se sobre a face dela. Rowan limpou-as com a mão.
Os lábios pálidos desenharam lentamente um leve sorriso. O coração de Rowan
acelerou. Ela podia ouvi-lo!
Apertou-lhe a mão com força.
— Mãe, acorde — suplicou. — Tem de lutar contra os sonhos. Lutar contra o veneno.
A mãe é forte. Não pode morrer! Tem de viver! Por Annad. Por Jonn. Por mim!
O esboço de uma ruga surgiu no cenho de Jiller e os seus olhos pestanejaram.
— Não perturbe a paz dela, Rowan — sussurrou uma voz. — Ela não pode despertar.
Faça as suas despedidas e deixe-a descansar. Você é agora o Selecionador.
Rowan voltou-se repentinamente. Mas as palavras de raiva que se preparava para
dizer morreram-lhe nos lábios quando enfrentou os olhos do ser que falara.
A Guardiã do Cristal estava sentada, imóvel, no centro do aposento, banhado em luz.
Não parecia velha como as pessoas de Rin pareciam velhas. Não tinha uma pele
enrugada como Lann. Mas Rowan percebeu logo que nunca vira uma criatura humana tão
idosa. Parecia quase transparente. Estava tão abatida, tão magra e encolhida, e a pele era
tão fina e pálida, que se tornava difícil vê-la claramente tendo como fundo a cadeira.
E os seus olhos! Eram desmedidos no pequeno rosto. Pareciam falar da sabedoria e
conhecimento de uma eternidade e, acima de tudo, de uma terrível ânsia para repousar.
As coisas que já vi, pareciam afirmar os olhos. As coisas que eu sei. Mas agora estou
exausta. Tão exausta.
As pequeninas mãos, as membranas entre os dedos quase transparentes, abriam-se
harmoniosamente sobre a fonte de luz— um cristal enorme e reluzente que tinha no
regaço. Inclinou-se então lentamente sobre ele. A luz inundou-lhe o rosto e fechou os
olhos, como que assimilando calor.
— Os Candidatos aguardam-no, Rowan de Rin — disse. — A Escolha tem de
prosseguir sem demora. A minha hora aproxima-se.
Rowan sentiu-se a estremecer por completo.
— Um dos Candidatos envenenou a minha mãe — disse.
— Pode ser — respondeu a Guardiã.
— Qual deles?
— Não sei dizer. O Cristal está a perder a potência. Já não consigo ver até à Ilha. E
não consigo ler os pensamentos dos que foram treinados para velarem as mentes, como é o
caso dos Candidatos desde a mais tenra infância. O veneno é uma poção Mirril antiga
chamada Sono da Morte. Há anos que não é vista em Maris. Mata lentamente, mas mata.
É tudo o que lhe posso dizer.
Os Mirril. Peritos em venenos. Subitamente, Rowan viu-se de volta a Rin, sob a
árvore-escola, escutando as histórias de Timon sobre os clãs dos Maris. Os Mirril. Peritos
em venenos. E, para cada veneno…
A voz sussurrante continuou, interrompendo-lhe as recordações.
— Rowan! Preste atenção! O tempo urge. Tem de continuar com a Escolha.
— Como posso continuar? — perguntou Rowan. — Como posso fazê-lo, sabendo
que um dos Candidatos é um assassino? Enquanto a minha mãe está ali deitada,
despedindo-se da vida?
— Pode porque é a sua obrigação. Tal como os seus antepassados antes de você —
disse a Guardiã. — E os Selecionadores dos Mirril antes deles. Assim tem sido sempre. —
Debruçou-se sobre o Cristal. Aguardando.
— Só porque tem sido sempre assim, não significa que continue a sê-lo. — As
palavras irromperam de Rowan antes de ele pensar.
A Guardiã libertou um longo suspiro. Lentamente, abriu os olhos.
Rowan olhou para trás, para a mãe que jazia no sofá. Sabia o que ela diria. Pedir-lhe-
ia que fosse forte. Que aceitasse a dor e que cumprisse o seu dever. Tal como sucedera
com a avó. Tal como sucederia com ela. Como sucedia com os elementos da sua família
há séculos.
— Sim — disse a Guardiã, quando ele se virou para ela. — Tem de ser forte. Ela
lera-lhe a mente. Rowan fitou-a diretamente.
— Serei forte, Guardiã dos Maris — afirmou. — Serei forte ao meu modo.
Rowan pareceu detectar um lampejo, como cinzas a tornarem-se subitamente
incandescentes num fogo moribundo. Talvez fosse ira. Talvez fosse surpresa. Ou…
qualquer outra coisa. Era impossível saber. Nem um só movimento perturbava a
serenidade naquele rosto.
— Tem de existir um antídoto para o Sono da Morte — disse Rowan.
Ela abanou a cabeça.
— Nada pode ser feito. — Baixou de novo a cabeça para o Cristal.
Rowan cerrou os punhos. Ela mentia-lhe. Sabia-o. Recordou de novo as palavras de
Timon.
Os Mirril. Peritos em venenos. Mil e um venenos mortais.
E, para cada veneno, um antídoto.
Para cada problema, uma solução. Para cada veneno, um antídoto.
Mas não havia forma de obrigar a Guardiã a dar-lhe a informação que sabia
seguramente. Tudo o que ela pensava agora era na Escolha. Na necessidade da diligência.
Não estava disposta a desperdiçar tempo precioso em busca da cura para Jiller. Por muito
velha, sábia e rica em conhecimentos que fosse, continuava a ser um Maris.
“A morte de um não é importante”, dissera Perlain na praça da aldeia de Rin.
Era assim que os Maris pensavam.
Mas a velha Lann respondera, “Essa pode ser a sua opinião, mas não a nossa”.
— Não a nossa — afirmou Rowan baixo.
O Cristal reluziu. Em algum lugar para lá da Caverna, escutou um som de algo a
ranger, como de uma porta a abrir.
— Convoquei os Candidatos — disse a Guardiã.
Afastou-se do Cristal e reclinou-se na cadeira.
De novo, o Cristal reluziu. O rosto da Guardiã manteve-se inalterado. Contudo,
Rowan teve a sensação que a mente dela estava fixa em algo fora daquela sala.
— O seu amigo Jonn do Pomar aproxima-se — disse. — Mas tenho que lhe negar a
entrada na Caverna. Jonn está cheio de tristeza e raiva. Pretende vingar a morte da sua
mãe.
— A minha mãe não está morta — disse Rowan em voz alta. A sua voz fez eco. Não
está morta. Não está morta.
No sofá coberto de seda, Jiller agitou-se. Veio um ruído do fundo da sala.
— Entrem — disse a Guardiã.
Surgiram três figuras. Uma de prateado, uma de azul e outra de verde.
Rowan fitou-os. Contava que os Candidatos tivessem pelo menos a idade da mãe, ou
de Jonn. Mas aquela gente era muito mais nova. Por momentos, esse fato surpreendeu-o.
Recordou-se então que o Cristal transmitia o conhecimento e recordações de milhares de
anos da história dos Maris. A idade e a experiência de vida não eram qualidades
importantes para os Candidatos: apenas o teste de capacidade intelectual, delineado por
Orin, o Sábio, para o qual estudaram ao longo das suas vidas. A inteligência era
importante. A determinação era importante.
E uma vontade de ganhar também é importante, pensou Rowan furioso. E, pelo que
parece, também instintos assassinos. Continuou a observar as figuras junto à porta. A sua
mente estava fria do ódio.
Um de vocês tinha motivos para desejar tirar a vida à minha mãe, pensou. E pensa
que teve êxito nisso. Mas, de algum modo, vou derrotar-te. E ninguém, nem mesmo a
Guardiã do Cristal, me vai impedir de fazê-lo.
8
OS CANDIDATOS
Asha, dos Umbray — disse a Guardiã.
A figura vestida de prateado avançou e fez uma vênia. Era alta, para os Maris, e
olhou para baixo para Rowan, enfrentando o olhar dele sem pestanejar.
— Saúdo-o, Selecionador de Rin — disse, num tom de voz regular. — O destino dos
Maris está nas suas mãos.
Será você? Pensou Rowan, fitando bem no fundo daqueles olhos cinzentos pálidos e
firmes. Poderia olhar assim para mim se tivesse envenenado a minha mãe, Asha? Talvez
sim, porque, pelo que me disseram, os Umbray são manipuladores e enganadores.
Escorregadios, como as enguias que se esgueiram no lodo do rio. Achou que a minha mãe,
forte e prática, era difícil de manobrar? Pensou que iria ser mais fácil impressionar um
Selecionador mais jovem e mais tímido? Um rapaz? Como eu?
— Seaborn, dos Fisk — zumbiu a voz da Guardiã.
A figura em verde fez uma vênia e repetiu as palavras de Asha. Era ainda mais alto
do que ela, parecendo mais forte. Permanecia perfilado, com os braços alinhados
rigidamente com o corpo. Mas falou suavemente e, ao falar, os seus olhos não paravam de
se desviar para a figura imóvel no sofá e para a cadeira da Guardiã.
Ou é você o culpado, Seaborn dos Fisk?, pensou Rowan. É por isso que não consegue
olhar para mim? Foi você quem colocou o veneno na comida ou bebida do Selecionador
pensando que, como mulher, poderia favorecer Asha, em vez de você? Ou os seus olhos
desviam-se de mim porque está desapontado, valente e forte Fisk? Pensou que a minha
mãe ia te escolher? Lamenta que agora tenha que me enfrentar a mim, em vez dela? —
Doss, dos Pandellis — disse a Guardiã.
A figura em azul deu uns passos em frente, e mais uma vez, foram repetidas a vênia e
as palavras.
Doss era mais novo do que os outros Candidatos. Era também menos encorpado e
baixo e os seus olhos pareciam mais sombrios, mais profundos e mais misteriosos.
Uma lembrança surgiu na mente de Rowan. Perlain, fitando-o com curiosidade. As
palavras de Perlain: Os seus olhos contêm a expressão de alguém que já viu a Grande
Serpente e que sobreviveu. Profundos e extremamente conhecedores. Estranho, num rapaz
tão jovem. Só conheci outro assim.
Serás o “outro” de Perlain, Doss?, pensou Rowan. Tal como ele, pertences ao clã
Pandellis. Terá Perlain visto em mim algo que o recordava de você? Será que outros o
viram? Outras pessoas do seu clã? Terão lhe contado? Terão pensado que me ligaria mais
a você do que a minha mãe? Que haveria mais probabilidades de eu lhe escolher? É por
isso que…
— O Selecionador está pronto, Candidatos — disse a Guardiã. — Só tem que se unir
ao Cristal, no lugar da mãe. Poderão depois regressar à Ilha, e a Escolha pode iniciar-se de
novo.
Os três fizeram uma vênia.
Unir-se ao Cristal?, pensou Rowan. O que significava isso? Poderia aquela ser a sua
oportunidade? Sentiu o estremecimento de uma esperança receosa.
— Aviso-os a todos — alertou a Guardiã. — Se algo acontecer a este rapaz, tal como
sucedeu à mãe, não haverá tempo para dar início à Escolha por uma terceira vez. A
Guardiã voltou a cadeira para enfrentá-los. — O Cristal está a perder a intensidade —
afirmou, fitando-os um a um. — Em breve morrerei. E, se não houver um Guardião junto
de mim quando morrer, para receber de mim os conhecimentos do Cristal e renovar o seu
poder, também o Cristal morrerá. Os clãs Maris ficarão de novo divididos e, com o Cristal
sem poder para sempre, não haverá proteção quando os Zebak chegaram de novo às
nossas costas, como chegarão certamente. Para nós, e para esta terra, tudo ficará perdido.
Perdido, perdido, perdido, murmuraram os ecos. Os Candidatos ergueram a cabeça e
permaneceram silenciosos.
— Dê-me a sua mão, Selecionador de Rin — pediu a Guardiã.
Rowan hesitou. O coração batia-lhe desordenado no peito. Esforçou-se por se
acalmar.
— Por favor, explique-me por que tenho que fazer isto — disse, em tom baixo.
De novo, algo cintilou nos olhos da Guardiã. Raiva?, pensou Rowan. Divertimento?
— É necessário que o Cristal o conheça, através de mim — explicou. — Quando isso
acontecer, irá reconhecê-lo como o único Selecionador. Por favor, apresse-se. Jonn, do
Pomar, está muito perto. Quero que isto esteja terminado antes que ele exija a entrada.
Rowan deu um passo à frente. Com todo o seu ser, concentrou-se, ocultando os
pensamentos, aguardando o momento. Serei forte ao meu modo.
Estendeu a mão. Os dedos ligados por membrana da Guardiã tocaram nele. Suaves,
frios, úmidos. Rowan sentiu um formigamento pelo braço acima.
Agora, pensou. Cerrou os olhos e agarrou fortemente nos dedos. Depois virou, caiu,
mergulhou nas águas profundas, profundas da mente da Guardiã, nas memórias da
Guardiã.
Imagens.
Beleza e luz. Ondas formando-se, em azul e verde, rebentando em espuma branca em
areia dourada. Uma criança, rindo, livre, escondendo-se, mergulhando, brincando com
amigos. Há muito, muito tempo atrás…
Estudos, professores, conselheiros, velas ardendo pela noite dentro. O Cristal,
brilhante como o sol, emitindo sinal. Um mundo reduzido a uma caverna por baixo da
terra…
Em pânico, Rowan debateu-se, afundando-se ainda mais. Para mentes mais antigas,
para memórias mais antigas.
Mares remotos. Criaturas retorcendo-se, caçando, ocultando-se em águas
cintilantes… a Grande Serpente elevando-se acima de mim, as presas gotejando veneno…
Veneno. Rowan agarrou a palavra e segurou-se a ela como uma linha salva-vidas.
Apagou as imagens de turbilhão. Criou a sua própria imagem.
Jiller, a minha mãe. Envenenada. Estendida e completamente imóvel. Sonhando
enquanto a vida lhe escapa.
Fixou a mente na imagem e nas palavras Sono da Morte. Diga-me, Guardiã, exigiu.
Diga-me, Guardiã.
O Cristal está a perder a intensidade… estou tão exausta… não há tempo… Diga-me!
Então, subitamente, algo cedeu, e a resposta apresentou-se perante os seus olhos. Viu
um frasco, numas mãos pequenas de dedos unidos por membrana. O frasco estava meio
cheio com um líquido prateado. Enquanto Rowan olhava, o líquido mudou de cor,
tornando-se tão azul quanto o céu. O azul transformou-se em verde. Em seguida, o líquido
alterou-se de novo, perdendo qualquer cor, tornando-se límpido. E uma voz falou.
“Para preparar a poção que desperta o Sono da Morte Encha uma mão cheia com
água de prata. Em lagoa faminta, alvas erguem as suas coroas: Colha uma e adicione as
lágrimas que derramar. Mexe lentamente com a pluma nova do lutador, Três vezes, não
mais, e deixe repousar. Adicione o veneno do seu mais temível medo… Uma gota… e a
verdade tornar-se-á cristalina”.
Com uma expressão de triunfo, Rowan libertou-se. Retrocedeu, a cambalear, da
cadeira da Guardiã. A sua mente fervilhava. A mão ardia-lhe.
Lentamente, abriu os olhos. Avistou trevas, rasgadas por colunas e remoinhos de
cores. Depois, finalmente, recuperou a visão.
A Guardiã estava desfalecida na cadeira. Tinha os olhos fechados. O Cristal pulsava
sem vigor debaixo das suas mãos flácidas. Atrás da cadeira estavam Asha, Seaborn e
Doss, fitando-o como se fosse um demônio das profundezas.
— O que fez? — exclamou Seaborn.
— O que tinha que fazer — disse Rowan. As palavras transmitiam força, mas não era
assim que se sentia. As pernas cambaleavam como as pernas de uma cria bukshah recém-
nascida. A mão que segurara os dedos da Guardiã ainda latejava e ardia.
As pálpebras da Guardiã palpitaram e abriram-se.
— Guardiã… — começou Asha. Mas a anciã nem sequer olhou para ela. Toda a sua
atenção focava-se em Rowan.
— O que pretende? — perguntou-lhe, bruscamente. Rowan não teve oportunidade
para responder porque, naquele instante, ouviu-se o som de pés nos degraus de pedra e
Jonn Forte irrompeu pela cortina de água para a Caverna.
Olhou rapidamente em volta, assimilando tudo num só relance. Encaminhou-se então
para junto de Jiller e inclinou-se sobre ela. Tomou-a nos braços, levantando-a para junto
do peito, chamando por ela. Ela não se mexeu. Voltou-se para Rowan com uma expressão
grave.
— Ela falou de perigo, mas não a levei muito a sério — disse. — Pensei, não, não
com Jiller. Nada podia acontecer a Jiller. Rowan…
— Tudo vai ficar bem — respondeu Rowan calmamente. — Há um antídoto para o
veneno que deram à mãe. A Guardiã acabou de me revelar.
Alguém soltou uma exclamação por detrás da cadeira da Guardiã. Rowan olhou
rapidamente para cima. Asha? Seaborn? Doss? Não tinha forma de saber.
— Não permitirei que a mãe morra — afirmou. E transmitia essa informação a si
próprio e a todos os presentes na sala, incluindo Jonn.
— A Escolha tem de continuar— disse a Guardiã, ansiosa.
Rowan virou-se para ela.
— Não — respondeu. Escutou a sua própria voz a tremer quando a palavra ecoou nas
paredes da Caverna.
— Lamento, mas a Escolha terá de aguardar.
Sentiu os olhos de Jonn fixos nele. Sabia que também Asha, Seaborn e Doss o
observavam. Mas apenas via a Guardiã.
— Sei que temos pouco tempo — disse. — Mas, antes de qualquer outra coisa, a
minha mãe tem de tomar o antídoto contra o Sono da Morte. Tem de o dar, Guardiã. Ou
dizer-me onde o encontrar. Tenho de ajudar a minha mãe. Nada é mais importante do que
isso.
9
O ENIGMA
Disse que seria forte, Rowan de Rin — acusou-o a Guardiã. — Permiti que se unisse
ao Cristal, que se confirmasse como o Selecionador. Ludibriou-me.
— Disse que seria forte ao meu modo — afirmou Rowan, esforçando-se em
desespero por se mostrar calmo e firme enquanto as suas pernas tremiam. — Tem de
me dizer o que devo fazer para salvar a minha mãe.
— É impossível! — disse a Guardiã. Agarrava o Cristal com as pequenas mãos,
como que lhe pedindo que a salvasse daquela situação. Mas este limitava-se a brilhar sem
fulgor.
— Falem com ele! — ordenou a Guardiã aos Candidatos. Mas estes permaneceram
silenciosos, pasmados.
A Guardiã respirou fundo.
— Bem lhe disse. O Sono da Morte não é utilizado em Maris desde os tempos dos
Mirril.
Rowan olhou para Jonn. Este deitara Jiller e encontrava-se de pé junto ao sofá, de
punhos cerrados. Rowan sabia o que lhe passava em mente. Se o veneno era tão raro, não
seria difícil descobrir a sua origem. Descobrir qual o clã que se apoderara do segredo dos
Mirril e que o pusera em prática.
Mas Rowan não estava interessado em vingança.
Pelo menos por agora.
— Existe um antídoto — repetiu. — Vi-o, Guardiã. Um líquido prateado, que mudou
várias vezes de cor, do azul para verde e depois se tomou cristalino. Vi-o, em mãos de
Maris.
O olhar parado da Guardiã não se alterou.
— As mãos eram de Orin — disse ela.
— Orin — murmurou Asha. Seaborn levou as mãos à boca. Doss manteve-se
inexpressivo.
— Orin estava a fazer o antídoto para o Sono da Morte na Ilha, no dia em que
encontrou o Cristal — disse a Guardiã. — Foi o que viu na sua mente, Selecionador de
Rin. Viu as memórias de Orin. A última gota da mistura nesse frasco foi usada há
quinhentos anos. Já não existe mais.
Não existe mais, não existe mais, sussurraram os ecos.
— Nesse caso, a mistura tem de ser feita de novo — afirmou Rowan, levantando o
queixo. — Se foram as mãos de Orin que vi, então também as palavras que ouvi eram
dele.
— Que palavras, Rowan? — insistiu Jonn.
Os três Candidatos inclinaram-se para a frente, em simultâneo. Mesmo a fria Asha.
Mesmo o Doss introvertido.
— A receita para o antídoto — disse Rowan. Proferiu as palavras em voz alta. Não
teve dificuldade em recordá-las. Parecia que tinham sido cauterizadas no seu cérebro.

“Para preparar a poção que desperta o Sono da Morte


Enche uma mão cheia com água de prata.
Em lagoa faminta, alvas erguem as suas coroas:
Colhe uma e adiciona as lágrimas que derramar.
Mexe lentamente com a pluma nova do lutador,
Três vezes, não mais, e deixa repousar.
Adicione o veneno do teu mais temível medo…
Uma gota… e a verdade tornar-se-á cristalina”.

Asha resfolegou.
— Que ingredientes são esses? — murmurou Seaborn. Os olhos de Doss brilharam
de interesse.
— Orin transformou a receita num segredo — disse.
— Sim — exclamou a Guardiã. — E os segredos dele são meus. — Voltou-se para
Rowan. — Por vontade de Orin, não posso te dizer como deve ler o enigma — afirmou,
friamente. — Mas, acredite, mesmo que lhe pudesse contar quais são os ingredientes,
nunca os conseguirias obter. O antídoto não pode ser feito.
— Pode — respondeu Rowan. — Tem de poder.
O Cristal reluziu. Rowan sentiu um puxão na mente. Combateu-o desesperadamente.
— Não pode me obrigar a satisfazer a sua vontade, Guardiã — disse. — Não
consegue mudar a minha mente. Está demasiado fraca.
— Não há tempo! — exclamou a Guardiã. — E o que planeja é impraticável, rapaz
de Rin. Se a preparação do antídoto fosse uma questão tão fácil como parece acreditar, já o
teria aqui, e a sua mãe estaria a se recuperar. Não sou nenhum monstro. Curá-la-ia, se
pudesse. Mas o antídoto para o Sono da Morte é composto por coisas raras e quase
impossíveis de obter. Você sozinho nunca as conseguiria, nunca…
— Ele não estaria sozinho — interrompeu Jonn Forte. — Eu estaria com ele.
Deixou o lado de Jiller e dirigiu-se para o centro do Caverna, para junto de Rowan.
Ficou como uma torre relativamente à Guardiã. Comparada com ele, parecia tão pequena e
frágil quanto uma criança. Mas ela abanou a cabeça, sem qualquer receio.
— Por decreto de Orin, a Ilha está proibida a todos, à exceção do Guardião — disse
ela. — E, na altura da Escolha, estão autorizados o Selecionador e os Candidatos, que
devem estar sós. Não pode lá ir, Jonn do Pomar, sem enfrentar a morte.
Jonn comprimiu os lábios. Virou-se para olhar para Jiller, imóvel e pálida, mal
respirando.
— Há coisas que receio mais do que a minha própria morte — disse.
— Também eu — exclamou a Guardiã. — E uma delas é quebrar a minha confiança.
Não pode ir à ilha, Jonn. Tudo farei para impedi-lo. Ainda me resta o poder suficiente para
o fazer.
— O que significa que Rowan irá sozinho, por sua vontade. — Os olhos de Jonn
eram duros. — Vai sozinho e nós esperamos aqui. E diz que ele nunca será bem sucedido
sozinho. O que quer dizer que não terá êxito. Nem regressará para escolher um novo
Guardião. Jiller morre. Você morre. O Cristal extingue-se, para sempre. Não será isso
também quebrar a sua confiança?
A Guardiã sorriu levemente.
— Argumenta bem, homem de Rin. Mas não pode ir à Ilha.
O silêncio instalou-se, apenas quebrado pelo ruído suave da água que caía
incessantemente.
Rowan percebeu o que tinha que fazer. Necessitava de ajuda. Sabia qual o caminho a
seguir. Não tinha alternativa. Olhou para as três figuras ainda por trás da cadeira da
Guardiã. Sobrepondo uma máscara à desconfiança e receio nos seus olhos, falou
diretamente para eles, pela primeira vez.
— Asha, dos Umbray, Seaborn, dos Fisk, Doss, dos Pandellis. A Ilha não lhes é
proibida. Irão ajudar-me?
Pensara que eles concordariam de imediato. Afinal, ele era o Selecionador. Iriam
querer impressioná-lo e agradar-lhe. Cada um iria desejar convencê-lo que não fora ele
quem envenenara a mãe.
Mas eles hesitaram, de olhos na Guardiã. Nunca o ajudariam contra a vontade dela.
A Guardiã permanecia imóvel, debruçada sobre o Cristal. Depois, por fim, anuiu.
— Muito bem — disse, a voz sem tonalidade e inexpressiva. — O que tem de ser,
tem de ser. Mas alerto-os. Ao nascer do sol, a minha vida terminará. E o Cristal morrerá
comigo, se a Escolha não tiver sido concluída até lá.
— Regressarei a tempo de terminar a Escolha — murmurou Rowan. — Prometo.
— Não duvido que esteja a ser sincero — respondeu a Guardiã. — Irá regressar… se
depender de si. Mas o percurso que escolheu é perigoso, Selecionador. Perigoso para você,
para os Maris e para todo o território. Mesmo neste momento, quem sabe, os navios dos
Zebak podem estar a dirigir-se para as nossas costas. Já devem ter tomado conhecimento
que o Cristal está a enfraquecer. Têm espiões por todo o lado.
— Esse é um perigo sempre presente na altura da Escolha — disse Rowan através de
lábios que pareceram subitamente secos e hirtos.
A Guardiã olhou para as suas mãos, as membranas transparentes à luz do Cristal.
— Mas apenas uma vez esteve o poder do Cristal em si em tamanho perigo. Uma
ocasião, há trezentos anos, quando os Mirril morreram. Depois o seu antecessor, Lieth,
aceitou para o seu povo o ônus da Escolha, permitindo que o Cristal vivesse para bem de
todos nós.
Levantou os olhos.
— É muito parecido com Lieth, Rowan de Rin — afirmou. — Muito, muito parecido.
É estranho pensar que, tal como ele salvou o poder do Cristal, você possa ser aquele que o
destruirá.
Rowan ficou gelado. Olhou para Jonn, que o observava gravemente. Apenas por
instantes, a sua determinação enfraqueceu. Olhou depois para a mãe e soube que estava
certo.
Seaborn vinha a mostrar-se inquieto.
— Permita que o acompanhemos — solicitou. — O sol iniciou já o seu caminho
descendente para oeste.
Devemos tirar proveito da luz.
Rowan voltou-se para Jonn.
— Cuida da Estrela enquanto eu estiver fora? — perguntou.
Jonn anuiu. Levou então a mão à algibeira e tirou uma bolsa em couro macio.
Despejou o conteúdo para a mão. Era um pequeno frasco de vidro, com uma reluzente
tampa em prata com a forma de um peixe voador sobre as ondas.
— Isto era para Jiller — disse. — Tinha acabado de comprá-lo no mercado quando
Perlain chegou até mim com a notícia do que lhe acontecera. Achei que era… lindo. E, por
isso, adequado para ela. Leve-o contigo, Rowan, e encha-o com o líquido que lhe há de
salvar a vida. Não vejo melhor propósito para ele.
A sua voz era forte e calma. Mas o seu dedo endurecido pelo trabalho estremeceu
quando tocou suavemente no pequeno peixe de prata antes de voltar a guardar o frasco na
bolsa, entregando-a depois a Rowan.
Rowan guardou cuidadosamente a bolsa na sua própria algibeira.
Desejava dizer algo que reconfortasse Jonn, mas sabia que tudo o que dissesse soaria
a falso. Não podia prometer que seria bem sucedido na sua missão. E sabia que, fossem
quais fossem os problemas e perigos que iria enfrentar, não se iriam comparar à dor que
Jonn Forte iria sofrer, enquanto ficava ali à espera.
— Farei o meu melhor, Jonn — murmurou. — O melhor que puder.
Jonn pousou uma mão pesada no ombro dele.
— Eu sei — afirmou. — E os meus pensamentos e esperanças vão contigo.
Rowan virou-se e dirigiu-se ao local onde os Candidatos o aguardavam.
— Não vai se despedir da sua mãe, Selecionador de Rin? — perguntou a Guardiã,
observando-o através de olhos meio cerrados quando passou pela sua cadeira.
Rowan sentiu-se invadir pela raiva. E a raiva conferiu-lhe a coragem para dizer as
palavras que não conseguira expressar a Jonn.
— Não. Não preciso de me despedir da minha mãe — disse, suficientemente alto
para que todos ouvissem. — Ela ainda estará aqui, e viva, quando regressar com o
antídoto.
— Veremos — disse a Guardiã. — Veremos.

10
A ILHA
Em silêncio, seguiram em fila indiana ao longo do túnel para a Ilha. Rowan ia na
dianteira. Asha, Doss e Seaborn deixaram-se ficar para trás, em tom de respeito, deixando-
o entrar primeiro na passagem escura e gotejante.
Caminhavam agora atrás dele, sintonizando os passos com os dele. Os seus sapatos
macios não provocavam nenhum som nas pedras lisas e úmidas. Por diversas vezes,
Rowan teve que olhar para trás para se certificar que ainda o seguiam. Mas estavam
sempre presentes, três passos atrás, os olhos vigilantes.
Levavam consigo archotes para iluminar o caminho. Sombras tremiam sinistramente
no teto e paredes de rocha. Água brilhava onde se escapava por fendas e escorria em fio
para o chão.
Estamos a andar debaixo do mar, não deixou Rowan de pensar. A idéia daquele vasto
peso de água em movimento por cima e em redor deles fê-lo estremecer.
Concentrou os pensamentos na missão a cumprir.
Na Caverna do Cristal, fora tão persuasivo a forçar a Guardiã a abrir-lhe o caminho
que não tivera de fato tempo para pensar. E, desde então, aquela viagem estranha sob o
mar afastara tudo da sua mente.
Não tentara ainda perceber o que poderia significar a lista enigmática de ingredientes
de Orin. Não levara efetivamente em conta o aviso da Guardiã de que não tinha qualquer
esperança de obter os ingredientes, mesmo que soubesse quais eram.
Mas agora pensava nessas duas coisas. Perguntou-se se os três Maris que seguiam
atrás dele pensariam o mesmo. Ou estariam demasiado preocupados com o Cristal, com a
Guardiã, com eles próprios, e no atraso a que estavam todos a ser forçados, para sequer
pensar?
Avistou uma luz fraca mais adiante. O túnel chegava ao fim. Percebeu que podia
também ouvir o som das ondas. Um rebentar distante de água nas rochas escarpadas e
penhascos da Ilha.
— No fim do túnel há uma escada, Selecionador de Rin. Era a voz de Asha,
impassível e fria.
Rowan voltou-se para ela.
— Talvez seja melhor tratarem-me pelo nome — disse, tentando sorrir.
Ela não retribuiu o sorriso.
— Como desejar — respondeu.
Rowan virou-se de novo para a luz no fundo do túnel. Asha, pelo menos, não se
estava a forçar muito para lhe agradar, pensou. Não pretendia mostrar-se diferente do que
realmente era.
Talvez os treinadores a tivessem instruído para agir assim, disse-lhe uma voz na
mente. Lembre-se do que Perlain disse. Os Candidatos estudam o modo de ser de Rin,
pelo que hão de saber como agradar ao Selecionador. Talvez os treinadores de Asha a
tivessem informado que nós, em Rin, odiamos falsas aparências. Por isso, faz o jogo de
parecer ser honesta comigo enquanto elabora secretamente esquemas. Quem sabe o que
ela de fato pensa?
Abanou a cabeça para afastar o pensamento desconfortável. Gostaria de poder confiar
nas três pessoas que o acompanhavam. Já seria suficientemente difícil para ele fazer o que
tinha a fazer, sem se questionar continuamente quem falava verdade e quem mentia. Muito
menos quem era o culpado do envenenamento, e quem era inocente.
No final do túnel havia umas escadas de pedra íngremes, tal como Asha informara.
Lá em cima reluzia a luz do dia.
Rowan começou a subir. O som das ondas intensificava-se em cada degrau que
avançava. A luz aumentou, penetrando por umas grades do que parecia um portão.
Começou a apressar o passo, embora já estivesse ofegante e com dores nas pernas.
Independentemente dos perigos que o aguardavam na Ilha, estava ansioso por respirar ar
fresco de novo e de ver o céu por cima da cabeça.
Com alívio, subiu os últimos degraus, abriu o portão de ferro enferrujado e passou
por ele. As pernas tremiam-lhe, depois do esforço da subida. Ficou a arfar, tentando
recuperar a respiração.
Permanecera por tanto tempo sob o solo que a luz do sol o parecia cegar. Tinha os
olhos tão lacrimosos que mal conseguia ver. Pestanejou furiosamente, limpando-os com as
costas da mão. À medida que a visão voltava ao normal, viu que se encontrava na costa
rochosa da Ilha. Diante dele havia uma densa floresta, com lianas.
Voltou-se para Asha, Seaborn e Doss que subiam para a claridade. O portão de ferro
cerrou-se após a passagem deles, protegendo as escadas que pareciam desaparecer na
escuridão. Mais ao fundo, as ondas lançavam-se em espuma sobre as rochas. E ao longe,
do outro lado do mar agitado, estendia-se a areia dourada e edifícios redondos de Maris.
Semicerrando os olhos contra os salpicos de água, Rowan analisou os edifícios,
tentando detectar o estábulo de Estrela. Sabia que esta estaria intrigada com a sua ausência
quando Jonn o fosse substituir no enchimento da tigela de água. Estrela iria sentir
saudades dele e ficaria infeliz.
Na praia, crianças corriam para a água, entrando e saindo das ondas, pouco
incomodadas com o vento frio. Aqui e ali, homens e mulheres remendavam redes,
sentados. Uma figura isolada encapuzada, uma mulher vestida com o verde do clã dos
Fisk, passeava pela praia.
Por algum motivo, parecia-lhe familiar. Tinha algo a ver com a forma como ela
caminhava. Tinha os braços dobrados sob a capa e as costas muito perfiladas. Ah, é claro.
Era a severa mulher Fisk que servira também de guia até à Caverna do Cristal.
Rowan percebeu que tinha alguém ao seu lado e, lentamente, virou a cabeça.
Era Seaborn. Não sabia que estava a ser observado. Apresentava uma expressão
grave e tinha os olhos fixos na praia.
Para onde olharia ele? Para as crianças? Para os edifícios? Para as pessoas que
remendavam as redes? Ou seria a mulher dos Fisk que ele observava?
A mulher na praia parou, virou-se e olhou para o mar. Permaneceu imóvel. A capa
verde esvoaçava ao vento, o capuz ocultava-lhe o rosto.
Ela está a olhar para nós, pensou Rowan. Fitou de novo Seaborn. Também ele
permanecia imóvel, como que intensamente concentrado. As gotículas de água salgada
fustigavam-lhe o rosto como chuva, mas ele não se virou nem semicerrou os olhos como
Rowan se vira forçado a fazer.
Eles não se mexem, nem acenam, nem fazem nenhum sinal, pensou Rowan. Mas,
mesmo assim, ela está a enviar alguma mensagem dos Fisk. Se não conseguem ler os
pensamentos um do outro, então a mensagem tem a ver como a forma como ela se
posiciona. Ou mesmo o fato de ter sequer aparecido na praia. As intrigas e planos desta
gente são intermináveis.
Cresceu dentro dele uma nova onda de raiva que se lhe fixou na garganta. Sentia-se
como se fosse sufocar.
Deve ter feito algum pequeno ruído, porque Seaborn olhou rapidamente para ele, o
rosto demonstrando surpresa e culpa.
— O seu clã já sabe que a Escolha foi atrasada? — perguntou Rowan. — É essa a
mensagem dela?
— Mensagem de quem? Não há mensagem nenhuma — respondeu Seaborn,
voltando-se.
Mas Rowan sabia que ele estava a mentir.
Não há nada a não ser mentiras aqui, pensou amargamente. A mentira contorce-se nas
mentes destas pessoas como as serpentes que se enrolam sob a superfície do mar deles.
A raiva ainda fervilhava dentro dele. Não lamentava ter mostrado a Seaborn que não
o enganara.
Não necessito de ter cuidado com as palavras, ou fingir, com esta gente, pensou. Seja
o que for que tenha que recear, não é seguramente a morte às mãos deles. A Guardiã disse-
lhes que não havia tempo para ir buscar outro Selecionador. Nenhum dos Candidatos
arriscaria a perda do Cristal matando-me agora.
No entanto… surgiu subitamente na mente de Rowan um outro pensamento, como
uma coisa viscosa nas trevas. Pensando bem, o tempo sempre fora curto. A Guardiã
chamara o Selecionador quando era já quase demasiado tarde. Os Candidatos sabiam-no
desde o início.
Mas Jiller fora envenenada. O atraso na Escolha era perigoso para os Maris, mas o
atraso fora provocado.
Este pensamento aumentou, intensificou-se e retorceu-se numa pergunta.
Porquê? Por que haveria alguém de colocar em jogo o destino dos Maris? O que teria
um clã a ganhar em ser selecionado na Escolha, se o Cristal deixasse de existir? Rowan
voltou-se para os Candidatos.
Seaborn baixara-se para ajustar melhor o sapato ao pé. Ou, pelo menos, pretendia dar
essa noção. Tinha o rosto convenientemente oculto. Asha e Doss estavam afastados um do
outro na neblina criada pelo rebentamento das ondas — uma figura alta prateada, a capa
esvoaçando ao vento, uma figura mais baixa em azul.
Rowan recordou-se das palavras de Perlain.
Os Candidatos estudam a forma de vida de Rin… Os treinadores deles sabem como
você pensa. Colheram informações a eu respeito desde o dia em que nasceu.
Se estes estranhos me conhecem, me conhecem de fato, poderiam ter calculado que
não deixaria a minha mãe morrer sem procurar ajudá-la, pensou Rowan. Podiam ter
calculado que eu retardaria ainda mais a Escolha. Tal como fiz.
O seu coração acelerou. Este pensamento enchia-lhe a mente agora. Podia vê-lo cara
a cara. E era horrível e aterrorizador.
Comportara-se exatamente como alguém esperara. Caíra na cilada de fazer parte do
plano de alguém. Alguém pretendia que a Escolha falhasse. Alguém pretendia que o poder
do Cristal se extinguisse. E estavam a utilizar Rowan para ajudá-lo a alcançar os seus
intuitos.
11
O INÍCIO
— Já descansamos o suficiente. Não devemos perder mais tempo.
Era a voz de Asha, severa e fria.
Rowan engoliu em seco. Não confiava em si para falar. Pressionou as mãos, tentando
evitar que tremessem.
— O que se passa? — perguntou Seaborn rudemente. — Está doente?
Embora não visse, Rowan sentiu os Candidatos a trocarem olhares rápidos e
suspeitos.
— Não estou doente — forçou-se a responder. Respirou fundo e tentou acalmar a
mente. Pensou em Estrela, em Jonn, em Annad em casa, em Rin. Na mãe deitada em
sonhos na Caverna do Cristal.
Nada mudou na realidade, disse, para si. Seja quem for que está por trás desta
perversidade, e sejam quais forem as suas razões, tenho de concretizar o que vim aqui
fazer. Tenho de seguir as instruções de Orin. Tenho de preparar o antídoto para o Sono da
Morte. E rapidamente.
Tinha na algibeira o frasco de vidro que Jonn lhe dera, protegido na sua suave bolsa
de cabedal. Tirou o frasco para fora e observou-o. Uma coisa bonita e brilhante, mas
vazia. Aguardando ser enchida com o que salvaria a vida da mãe.
Segurou o jarro na mão e repetiu o verso de Orin, em voz baixa.

“Para preparar a poção que desperta o Sono da Morte


Enche uma mão cheia com água de prata.
Em lagoa faminta, alvas erguem as suas coroas:
Colhe uma e adiciona as lágrimas que derramar.
Mexe lentamente com a pluma nova do lutador,
Três vezes, não mais, e deixa repousar.
Adicione o veneno do seu mais temível medo…
Uma gota… e a verdade tornar-se-á cristalina”.

— Essas palavras não fazem qualquer sentido para mim — disse Seaborn.
— São as palavras de Orin — afirmou Asha rispidamente. — São palavras secretas,
não destinadas a serem compreendidas por outros. Há mil anos que estão ocultas. É errado
ir contra a vontade de Orin. Sempre foi.
Doss hesitou.
— A primeira linha é simples — começou finalmente.
— Mas a segunda… “água de prata”…
— A segunda também é simples — disse Seaborn com impaciência. — Para começar
a poção, temos de tirar uma mão cheia de água das profundezas. Do mar.
Asha mirou-o com desprezo.
— Até uma criança consegue entender as duas primeiras linhas — disse. — O
problema não está aí.
Rowan desatarraxou a tampa do frasco. Os seus dedos tremiam. Não dês ouvidos à
discussão deles, disse para si mesmo. Pense apenas no que está a fazer. Vai buscar a água.
O primeiro ingrediente. Inicia o processo.
Afastou-se dos Candidatos e caminhou rapidamente por entre os salpicos de água
para a orla rochosa da Ilha.
— Espere, Selecionador de Rin — ouviu Asha a chamar. Rowan continuou a andar.
Estava furioso. Quer que não seja bem sucedido nisto, Asha, zangou-se com ela
mentalmente. Tem tentado desencorajar-me. Mas não vai conseguir.
Alcançou as rochas e começou a descer por elas, em direção ao mar.
Foi então, quando a sua raiva começava a diminuir, que se percebeu o perigo. As
ondas lançavam-se sobre a Ilha, rebentando numa chuva de partículas e lençóis de espuma
sibilantes. Os seus sapatos pesados escorregavam nas rochas molhadas e polidas. Era
como caminhar sobre gelo. À medida que se aproximava da água, um chuveiro gelado
caia-lhe sobre a cabeça e fustigava-lhe o rosto, picando-lhe nos olhos e perturbando-lhe a
visão.
Sentiu um nó no estômago quando uma onda rebentou e sentiu o pé direito a deslizar
sob ele. Gritou, debatendo-se em desespero para recuperar o equilíbrio. Perante os seus
olhos umedecidos, o mundo inclinou-se estranhamente…
Depois, três pares de mãos agarraram-lhe nos braços, puxando-o para trás,
estabilizando-o. Virou-se, tossindo, vendo os rostos de Seaborn, Asha e Doss fitando-o
sombrios.
Rowan sentiu-se mal. Quase caíra. A cabeça teria embatido nas rochas duras como o
ferro. As ondas tê-lo-iam sugado para o mar frio e agitado.
Todos os Candidatos avançaram para salvá-lo. Será que, afinal, estava enganado?
Que não teria um inimigo entre eles?
Ou não seria apenas a altura ideal para ele morrer? Será que alguém precisava dele
vivo e a desperdiçar momentos preciosos, até a Guardiã se afastar das costas da vida e o
Cristal se extinguir para sempre?
Rowan pestanejou para os três rostos diante de si e limpou os olhos.
— Obrigado — disse, entorpecido.
Seaborn sorriu.
— Os seus sapatos não são feitos para caminhar sobre as rochas, Rowan.
— Pedi-lhe para esperar — disse Asha gravemente. — Tem que deixar que sejamos
nós a nadar nas águas turbulentas, se é que é mesmo necessário.
— Pedi para que me ajudassem — murmurou Rowan. — Mas não estou à espera que
arrisquem as suas vidas.
Os lábios de Asha assumiram uma linha reta e dura.
— A morte de um de nós não é importante — disse. — Mas, se o perdermos, então os
Maris também estarão perdidos.
Seaborn anuiu.
— Dê-me o frasco, eu vou buscar a água — afirmou. — Não devemos perder mais
tempo.
Doss abriu a boca como que para dizer algo, mas pareceu mudar de idéias. Os seus
olhos, tão estranhamente sonhadores para um Maris, desviaram-se do rosto de Rowan para
o mar irrequieto.
— O que foi? — perguntou-lhe Rowan.
— Eu… não acredito que esta água se ajuste às palavras do enigma — disse Doss. —
Penso que devemos procurar noutro local.
Os outros ficaram a olhar.
— O mar tem água de prata — disse Asha.
— E reluz como prata ao sol — disse Seaborn.
Doss abanou a cabeça.
— As palavras “água de prata” são tranqüilas e serenas, e cheias de mistério —
afirmou. — Mas, aqui, o mar é agitado. Luta com a terra. Desfaz-se em espuma. Não
acredito que Orin lhe tivesse chamado água de prata.
— Quem é você para conhecer a mente de Orin? — vociferou Asha.
Doss olhou para o chão e não respondeu.
Rowan mordeu o lábio. Lentamente, voltou a enroscar a tampa do frasco. Agora que
pensava nisso, percebia que Doss estava certo.
Sentiu-se mal com a sua própria falta de senso. Deixara-se levar pela fúria e medo.
Esquecera-se como o povo Maris era astuto — sobretudo o grande Orin. Sentira-se
desesperado e demasiado disposto a acreditar que o primeiro ingrediente de Orin seria
assim tão fácil de encontrar.
De fato, fora tão irrefletido que quase perdera a vida apressando-se a colher algo que
se iria revelar inútil.
Tenho de ser mais cuidadoso, pensou. Não posso voltar a entrar em pânico. Tenho de
ser tão frio quanto estes Maris, se quero ser mais astuto do que eles.
Respirou fundo.
— Na sua opinião, o que é água de prata, Doss? — perguntou, calmamente.
— Não sei — murmurou Doss. — Mas tem que ser aqui. Sobre ou em redor da Ilha.
Porque foi aqui que Orin preparou a poção.
— Sendo assim, vamos investigar. Vamos investigar até o encontrarmos. — Rowan
guardou o frasco de novo na bolsa e olhou em redor. Um litoral rochoso, ondas a rebentar,
vegetação agreste, uma floresta cerrada e enredada… Por onde deviam começar?
Repetiu a pergunta em voz alta.
— Por onde devemos começar?
A voz de Seaborn ergueu-se acima das nuvens.
— A Ilha é como águas desconhecidas para nós — respondeu. — Ninguém, a não ser
o Guardião, pode aqui entrar, exceto na altura da Escolha. Mas já naveguei muitas vezes
ao seu redor. E, do outro lado, que não se consegue ver de Maris, existem baías calmas e
arenosas e lugares protegidos. Talvez aí…
Rowan considerou e depois anuiu.
— Vamos tentar — disse. — Vamos contornar a costa. Não levará muito tempo. É
melhor do que experimentar atravessar a floresta.
— Se formos para o outro lado da Ilha, ficaremos fora de vista de Maris —
murmurou Asha. — E o Cristal está demasiado enfraquecido para a mente da Guardiã nos
seguir. Se depararmos com algum perigo no lado secreto, não teremos forma de pedir
auxílio.
— Teremos de depender uns dos outros para nos auxiliarmos — disse Rowan.
Assim que as palavras lhe deixaram os lábios, viu de novo os três Candidatos a trocar
olhares suspeitos, a franzir o cenho e a tocar nas navalhas que traziam nos cintos.
Foi invadido pelo desespero. Havia poucas probabilidades dos Candidatos dos Fisk,
Pandellis e Umbray dependerem uns dos outros. Naquele momento, para eles, nenhum
inimigo era mais perigoso do que um da própria espécie.
Começou a avançar pela costa, mantendo-se junto das árvores e o mais afastado
possível das rochas traiçoeiras.
Recordou as palavras de Asha. O que acontecesse do outro lado da Ilha não seria
avistado em Maris. Iria ficar bastante desprotegido. Nada poderia impedir que um dos três
Candidatos o matasse. Quem o fizesse poderia também matar os outros e depois regressar
para junto da Guardiã e contar a história que tinham caído acidentalmente no mar.
Faria aquela viagem também parte do plano de alguém?
12
LONGE DA VISTA
Rowan sentia-se só e temeroso. Se conseguisse ao menos falar com alguém que eu
soubesse poder confiar, pensou.
Olhou para trás. Os Candidatos seguiam-no em fila indiana. Asha, a capa prateada
refletindo à vez as árvores e o mar, seguia na frente, praticamente atrás dele.
Rowan percebeu subitamente que ela parecia muito familiar. Apesar do aspecto e
roupas estranhas, Asha recordava-o Jiller, a mãe. Parecia honesta, firme, direta,
determinada a fazer o que era correto, fosse a que preço fosse.
Virou-se para a frente e prosseguiu caminho. Contornavam agora a Ilha. Em breve,
deixariam de ver a costa Maris.
Os seus pensamentos não paravam. Sim, Asha fazia-o lembrar-se da sua mãe. Apesar
da fúria que ele sentia e da falta de encorajamento por parte dela, queria confiar nela.
Recordou-se que fora Asha quem soara o alarme sobre o lado secreto da Ilha.
Mas ela sabia que eu não hesitaria por causa disso, pensou. Sabia, mesmo, que isso
me tornaria mais determinado. Os treinadores deles sabem como você pensa.
Não posso esquecer-me disso, disse Rowan para si. Nunca o posso esquecer.
Centrou os pensamentos em Seaborn, que seguia atrás de Asha, alto e sólido em
verde. Seaborn era enérgico, confiante e forte. Um homem com quem se podia contar.
Recordava-lhe Jonn — Jonn Forte, que tantas vezes o ajudara e ficara do seu lado em
épocas de perigo.
Fora Seaborn quem sugerira deslocarem-se para o lado secreto da Ilha. Parecera
sugeri-lo apenas porque estava ansioso por ajudar. Ansioso por alguma ação, como seria o
caso de Jonn.
Mas, será que sim? Ou estaria simplesmente a desenrolar o próximo passo de uma
intriga?
Rowan abanou a cabeça. Também não podia estar seguro em relação a Seaborn.
Quanto a Doss. Este seguia no fim da fila. Era tão mais baixo em relação aos outros
que tudo o que Rowan conseguia ver era uma forma azul intermitente, aparecendo por
breves instantes e depois desaparecendo por trás do verde de Seaborn.
Doss era calmo e sonhador e mais inseguro do que os outros. Será que Doss
recordava alguém a Rowan?
Sim, claro que sim. Doss era como Rowan. Seria então a pessoa em quem confiar.
No entanto, fora Doss quem suscitara as dúvidas sobre a água de prata. Foram as suas
palavras alegadamente hesitantes que acabaram por dar origem àquela viagem, embora
Doss por si não a tivesse sugerido.
Seria Doss, de fato, o mais esperto e mais perigoso de todos eles?
A mente de Rowan era um verdadeiro turbilhão. Nada era certo. Flutuava indefeso
em marés agitadas de perguntas e confusão. Enfiou a mão na algibeira e segurou no frasco
de tampa de prata, retirando conforto da sua dureza sólida.
Não posso confiar em nenhum deles, pensou. Só posso confiar em mim.
Subitamente, percebeu que caminhava sobre areia e não sobre rocha. Olhou para
cima e verificou que, enquanto pensava para si, contornara a curva da Ilha sem reparar.
Tal como Seaborn dissera, o outro lado da Ilha era uma baía abrigada. As árvores que
o ladeavam já não eram uma massa sólida. Carreiros sombrios e com fetos mergulhavam
nas profundezas da floresta e podia avistar clareiras de vegetação rasteira por entre os
troncos.
Naquela costa mais amena, as ondas desfaziam-se calmamente, transformando-se em
espuma. Na outra extremidade da praia, um elevado penhasco recortado erguia-se do mar
como uma barreira. A sua volta, duas aves grandes voavam e piavam. Eram os únicos
sinais de vida.
Para lá das ondas, até onde os seus olhos conseguiam ver, não havia nada a não ser
mar e céu.
Agora, pensou Rowan, estou verdadeiramente sozinho. Forçou a mente a apagar este
medo.
Água de prata…
Rowan observou a linha de ondas rolando para a praia. Eram seguramente menores
do que do outro lado da Ilha. Mas, apesar de tudo, não pareciam adequar-se às palavras.
Sentiu um arrepio na nuca e virou-se, vendo Asha, Seaborn e Doss mesmo atrás dele.
Tinham alcançado o local onde Rowan se encontrava e aguardavam. Há quanto tempo
estariam ali? Não sabia dizer. Moviam-se em perfeito silêncio.
Tenho de informá-los sobre o que vamos fazer de seguida, pensou Rowan. E sentiu-
se de novo invadido pelo desespero.
Não sou um líder, pensou. Não sei para onde me virar. Sou um estranho aqui. Estou
com medo. Insisti em fazer isto e, agora, não sei para onde ir ou o que fazer.
Mirou mais uma vez os Candidatos. E percebeu lentamente que pareciam diferentes.
Há duas horas atrás, não o teria detectado. Mas, desde então, acostumara-se a ver
rostos de Maris. Já não lhe pareciam todos iguais. Começara a perceber expressões e
alterações de humor naqueles com quem falava.
Via agora que Asha, Seaborn e Doss estavam com medo. O olhar deles era cauteloso.
Permaneciam imóveis, preparando-se para o perigo. As mãos pairavam próximas das
navalhas nos cintos.
Neste lado da Ilha, pensou, são tão estranhos quanto eu. Não estudaram este lugar.
Não conseguem ver as suas casas. Nunca pisaram esta areia. Não sabem o que poderão
encontrar aqui.
Por alguma razão, esse pensamento deu-lhe alento.
— Penso que devemos começar por caminhar ao longo da areia — disse, em voz alta.
— Olhem para a esquerda e para a direita, tentando detectar algo que se adeque às
palavras.
— A água só pode ser o mar — disse Asha, atrás dele. — Não a encontraremos entre
as árvores, Selecionador de Rin.
— A água em si tem mais do que um significado — disse Doss, em voz baixa. — O
enigma não diz “as águas de prata” mas apenas “água de prata”.
— Que diferença faz? — retorquiu a mulher. — É claro ao que Orin se referia.
Seaborn riu-se.
— Quem é você, Asha dos Umbray, para conhecer a mente de Orin? — troçou.
— Cuidado com essa língua suja, Fisk! — cuspiu Asha.
— Cuidado com a sua — disse Seaborn.
Rowan não disse nada. Apetecia-lhe gritar com eles. Apetecia-lhe rogar-lhes que
trabalhassem em equipe, para o ajudarem. Mas sabia que não valia a pena.
Pôs-se a caminhar, sabendo que eles o seguiriam. A areia chiava sob os seus pés.
Seguindo em frente, olhava alternadamente da floresta para o mar e do mar para a floresta.
O seu coração entristecia-se à medida que os minutos passavam.
Nada. Não conseguia ver nada.
Não muito à frente, a areia terminava no sopé do enorme penhasco rochoso que se
estendia pela praia e penetrava no mar. Assim que o alcançassem, não poderiam avançar.
O único lugar que lhes restaria para investigar seria a floresta em si. E, embora a Ilha fosse
pequena, sem nenhuma pista de orientação isso poderia levar dias.
Se ao menos soubesse o que procuro, pensou Rowan desesperadamente. Passou por
uma outra abertura no arvoredo, espreitou, viu vegetação alta e aguçada a oscilar e seguiu
caminho.
Uma das aves que avistara antes piou das profundezas da floresta. Olhou na direção
do som. Então, quando voltava a cabeça de novo para o mar, avistou algo.
Apenas de relance, pelo canto do olho.
Estacou de imediato e retrocedeu um passo. Espreitou por entre as árvores. Sim, lá
estava de novo. Em algum lugar por entre as profundezas verdes, algo reluzia em tom de
prata. Como água parada e secreta, brevemente tocada pelo sol.
— Penso… há qualquer coisa ali — disse, apontando. Tentou falar com calma, mas o
coração batia desordenado.
De algum modo, sabia, sem sombra de dúvida, que encontrara finalmente a água de
prata de Orin.
13
ÁGUA DE PRATA
Abriram caminho por entre a vegetação alta e penetraram cautelosamente na floresta.
Hesitaram por momentos, apreensivos e silenciosos.
As árvores elevavam-se bem alto de ambos os lados. Ramos frondosos, entrelaçados,
formavam uma cobertura sobre a cabeça deles, bloqueando o sol. Agora que tinham
ultrapassado a vegetação alta, viram-se num caminho largo que se estendia para o seio da
floresta.
Rowan viu Doss a estremecer ao olhar ao redor.
— Quem abriu este caminho? — questionou-se Seaborn em voz alta.
Era certo que aquela trilha não existia ali por acaso. Era plano e largo —
suficientemente largo para os quatro caminharem facilmente lado a lado. Era ladeado por
montes de terra afastados para o lado, que ficaram depois cobertos de arbustos, musgo e
fetos.
— Deve ter sido a Guardiã — disse Asha. — Só um Guardião está autorizado a vir à
Ilha. Mas parece evidente que o caminho não é utilizado há muito tempo.
Apontou para a camada espessa de folhas apodrecidas que cobriam o trilho e os
grupos de fetos que estendiam as suas tenras folhas aqui e ali.
Rowan anuiu.
— Pelo menos um ano — disse. — Se estas plantas crescem como em Rin.
— Mesmo assim — afirmou Seaborn gravemente —, devemos manter a vigilância
quanto a um possível perigo.
Avançaram, os pés afundando-se no tapete castanho de folhas. Traças gordas e
cinzentas esvoaçavam cegamente no caminho, roçando-lhes com as suaves asas nos
rostos.
Rowan forçou a visão na penumbra, procurando à frente nova cintilação de prata.
Por entre as árvores, detectou o brilho de um verde mais brilhante e escutou de novo
o piar feroz de uma das aves que avistara junto do penhasco.
Não parece um som simpático, pensou. Uma idéia agitou-lhe a mente mas um
entusiasmo súbito dissipou-a rapidamente. Porque, mesmo à sua frente, ainda o piar da
ave esmorecia, o prateado que ele buscava reluziu de novo.
— Ali — exclamou. Começou a correr.
Podia ouvir Asha, Seaborn e Doss apressando-se atrás dele. Pela primeira vez,
estavam com maiores dificuldades do que ele. Os seus sapatos leves afundavam-se na
suavidade do caminho, retardando-os.
Das folhas emanava um cheiro a umidade e terra ao serem esmagadas debaixo dos
pés de Rowan. Misturou-se com outros odores da floresta. Folhas frescas, fetos partidos,
mofo… e algo mais.
Rowan torceu o nariz, tentando determinar o que era esse algo mais. Era um perfume
forte e doce. Talvez uma flor de floresta, mas não havia nada que se assemelhasse em Rin.
E era cada vez mais intenso.
O caminho fez uma curva ligeira e deu acesso ao que parecia ser uma clareira natural,
rodeada de árvores.
Havia folhas e vegetação em torno da clareira mas, no centro, erguia-se um rochedo liso e
descoberto, dobrado e curvo, como um grande animal enroscado a dormir.
O céu criava um círculo pálido por cima, iluminando a clareira. O enorme rochedo
elevava-se, cinzento, de um dos lados, acima dos topos das árvores.
Não havia vento. Nenhum ruído, à exceção do som distante do mar. Era um local
tranquilo e secreto. No rochedo, reluziam charcos de água.
— Deve haver uma nascente lá em cima — murmurou Rowan. — Alimentada de um
riacho sob o rochedo.
Não havia razão para murmurar. Mas Rowan sentia a pele eriçada. Pressentia perigo.
Talvez fosse a luz, depois da penumbra na floresta. Talvez fosse o cheiro estranho e
adocicado que surgiu subitamente à sua volta. Ou talvez fosse o silêncio do lugar, e a sua
estranheza.
Também Asha, Seaborn e Doss pareciam ter sido afetados. Rowan só sabia que
estavam atrás dele porque os ouvia a respirar.
Aproximou-se do rochedo. Eles o seguiram quando Rowan subiu lentamente para o
topo.
E ali, tal como ele contara, havia uma lagoa de água cristalina, escavada na rocha.
Era quase perfeitamente redonda e tão pequena que duas pessoas conseguiam tocar nas
mãos uma da outra no seu diâmetro.
Muito abaixo da superfície, um reluzir de prata. O fundo da lagoa estava coberto com
um tipo qualquer de lama ou areia reluzente.
Mas não foi isso que levou Rowan a libertar uma exclamação e o seu coração a
encher-se de esperança. Havia algo mais debaixo daquela superfície límpida e ondulada.
Algo redondo e branco, brilhando na água como uma lua cheia flutuando no céu.
Era uma flor. Tinha a face virada para o céu, as pétalas abertas, formando um círculo
perfeito. Rowan podia sentir o seu perfume elevando-se da água. A fragrância forte e
adocicada que já sentira.
Em lagoa faminta, alvas erguem as suas coroas…
— As flores não conseguem crescer debaixo de água — exclamou Asha, quebrando o
seu silêncio em choque.
Parecia quase irritada, porque aquilo revolucionava as leis que lhe ensinaram como
sendo inalteráveis. Para Asha, as flores cresciam ao ar e ao sol. Sempre assim fora.
Era assim que sempre teria que ser.
Mas o rosto de Seaborn estava intenso de curiosidade e entusiasmo.
— Não é o caso desta — disse. — E é o segundo ingrediente. Encontramos dois num
só lugar! Rápido, Rowan. A água e depois a flor.
Rowan tirou o frasco da algibeira e desapertou a tampa. Enche uma mão cheia com
água de prata… Estendeu a mão, inclinou-se sobre a água, olhou para os dedos, hesitou…
— Espera — disse Doss, tocando-lhe no braço. — Lembre-se…
Rowan mal o escutou. Fixava, fascinado, a água. Porque, subitamente, a flor alva
desaparecia. A lagoa deixou de ser cristalina. Transformava-se em cor de prata ao olhar
para ela.
Virou-se para Seaborn, para lhe dizer. E, nesse instante, viu o rosto do homem a
alterar-se, sentiu-se a ser rudemente empurrado para o chão.
— Cuidado! — gritou Seaborn.
Um grito terrível e penetrante cortou o ar. Asas enormes bateram sobre as cabeças
deles. Ouviu-se um som de chapinhar e água transbordou para o rochedo.
Depois, uma ave verde, enorme, voou para longe, regressando ao cume do penhasco
com vários peixes pequenos agitando-se por entre as suas garras. Rowan nunca vira uma
ave assim. Era tão grande quanto ele.
Seaborn resfolegou com um riso contido.
— Pensei que estava a nos atacar. Mas pretendia apenas encher a barriga! E as
barrigas das crias. Não admira que Orin lhe tenha chamado uma “lagoa faminta”.
Doss começou a falar, mas a sua voz foi abafada pela de Asha. Pusera-se de pé e
apontava receosa para a lagoa.
— Aquela luz! — disse. — O que é?
Rowan aproximou-se da beira da lagoa. O perfume da flor era muito forte. E a água
parecia prata fundida. Prateada como a capa de Asha. Prateada como os raios de sol
incidindo sobre a água. Prateada como um peixe. Mal conseguia olhar para lá, tal o brilho
que emitia com o sol.
Num instante, percebeu do que sucedera. Os peixes, mergulhando em busca de
segurança da ave, agitaram a areia brilhante no fundo da lagoa.
Enche uma mão cheia com água de prata…
— Seaborn! — gritou. — Rápido! Antes que a prata se afunde de novo. Tire uma
mão cheia de água!
Seaborn hesitou, intrigado.
— A minha mão não serve — gritou Rowan. — Compreendi isso antes da ave descer.
Aberta, a minha mão é inútil. O enigma refere-se a uma mão Maris. Com dedos unidos por
uma membrana, tal como a de Orin.
Seaborn anuiu e saltou para junto de Rowan.
— Não! — gritou Doss.
Mas Seaborn tinha já enfiado a mão aberta na água.
Começou a levantar o braço. Rowan preparou o frasco para colher a água. Então,
subitamente, Seaborn gritou em agonia.
Estremeceu a mão no ar. Tinha um líquido prateado na mão aberta em concha. Mas
as costas da mão e o punho estavam cobertos por dezenas de peixes sinuosos. Mesmo fora
de água, continuavam a morder-lhe a carne, regressando depois à lagoa coberta com o
pálido sangue do Maris.
Asha gritou repugnada e horrorizada.
— Lagoa faminta… — murmurou Doss.
— Rowan, o frasco — gritou Seaborn, estremecendo com dores. — Oh, depressa, por
amor de Orin! Estão a comer-me vivo!
Sem uma palavra, Rowan lançou-lhe o recipiente. Com a mão livre, Seaborn agarrou
no punho ferido, imobilizou-o e despejou o precioso líquido para o frasco.
Os peixes continuavam a cair-lhe da carne. O seu sangue pingava livremente para a
lagoa. E esta pulsava, fervilhava, enquanto os peixes se banqueteavam.
Grunhindo, Seaborn retrocedeu. Arrancou a última criatura da mão e atirou-a contra a
rocha. Vacilou. Tinha o rosto tão pálido quanto o ventre de um peixe.
Rowan correu para o seu lado e ajudou-o a sentar-se e depois a deitar-se no chão.
Suavemente, virou a pequena mão membranosa. Só então se revelou o total horror dos
ferimentos.
Os peixes tentaram de fato desossar a carne a Seaborn. Os ferimentos eram terríveis.
— Nos meus pertences — disse Seaborn com dificuldade. — Creme curativo.
Ligaduras.
Asha e Doss aproximaram-se quando Rowan tirou um frasco com uma pomada
castanha pegajosa e um rolo de ligadura sedosa de uma bolsa cozida à capa de Seaborn.
— Eu ajudo — disse Asha, estendendo a mão para a ligadura.
— Não! — gritou Seaborn fracamente, agarrando o casaco de Rowan com a mão sã.
— Rowan! Não permita que eles me toquem! Não os deixe aproximar das minhas coisas!
Asha deu um passo para trás.
— Não tentaria fazer-lhe mal, homem dos Fisk — disse, franzindo o cenho. — É
proibido. Seja como for, não havia qualquer necessidade. Já fez bastante mal a si mesmo,
sem a minha intervenção.
Rowan começou a espalhar a pomada castanha na mão de Seaborn. Fê-lo com a
maior suavidade possível, mas Seaborn fechou os olhos, o rosto retorcido em dores.
— Se Seaborn está ferido, é por culpa minha — murmurou Rowan. — A superfície
da lagoa estava ondulada, embora não houvesse vento. Não reparei nesse fato. Mesmo
quando vi a ave a levar os peixes da água, não considerei o perigo. Não prestei atenção ao
aviso no enigma de Orin.
Olhou para Doss.
— Mas você prestou — acrescentou. — Tentou alertar-me. Bem devia ter-lhe dado
ouvidos.
— Eu devia ter falado com maior firmeza — respondeu Doss. — Mas não estava
seguro. Era apenas uma idéia. — Fitou apreensivo o rosto pálido de Seaborn.
Agora que a crise passara, Doss estava calmo como sempre. Não parecia
particularmente preocupado com a aflição de Seaborn. Mesmo para um Maris, estava
estranhamento imperturbado.
Rowan questionou-se sobre isto ao dobrar-se para ligar a mão tremente do homem
que gemia. Estaria Doss secretamente satisfeito por Seaborn estar ferido? Ter-se-ia
deliberadamente calado até o alerta chegar demasiado tarde?
Ou seria apenas o fato de Doss ter presenciado tanto sofrimento e morte durante
ávida que já não ficava afetado?
Há tanta coisa sobre esta gente que eu desconheço, pensou Rowan. Quando chegar a
altura de escolher, como irei decidir qual destes Candidatos irá governar melhor os Maris?
Tentou desviar a mente da pergunta. O importante agora era curar Jiller. Isso estava
em primeiro lugar.
Fora já encontrado um ingrediente para o antídoto. Teria agora que ser adicionado o
segundo.
Em lagoa faminta, alvas erguem as suas coroas: Colhe uma e adiciona as lágrimas
que derramar.
Apenas há alguns minutos atrás, essa tarefa parecera fácil. Mergulhar um braço
naquela água clara e ondulante. Apanhar a flor que crescia bem lá no fundo. Mas agora…
quem arriscaria tal coisa? Ninguém.

14
LAGOA FAMINTA
Rowan acabou de ligar a mão de Seaborn e ajudou-o a sentar-se direito enquanto lhe
suspendia o braço. Viu o homem olhar com ódio para o peixe, agora imóvel sobre a pedra
onde caíra.
Agora, todos podiam ver claramente o seu corpo transparente e tipo verme e a cabeça
inchada que parecia ter apenas a dimensão suficiente para conter a fileira dupla de dentes
afilados.
— Nunca tinha visto nada assim! — exclamou Asha. — E são aos milhares.
Subiu para o rochedo e observou a lagoa.
— Está outra vez límpida — disse. Rowan foi ver.
Não havia dúvida, a lagoa brilhava cristalina. A areia prateada assentara de novo no
fundo. Também não havia sinal do sangue de Seaborn. Pelo que parecia, os peixes
trataram rapidamente dele.
A flor alva flutuava tentadora nas profundezas agitadas. Parecia que se conseguiria
estender a mão e apanhá-la… com a maior das facilidades. E, há apenas alguns minutos
atrás, Rowan pensou que o poderia fazer.
— Vamos ter de partir o pedúnculo da flor com dois paus e retirá-la da água —
sugeriu Asha.
Rowan abanou a cabeça.
— O enigma diz que temos de adicionar as lágrimas que a flor derramar. Penso que
as lágrimas devem ser a seiva que pinga do caule partido. Se partirmos o pedúnculo aqui
de cima, irá diluir-se na água. A flor tem de ser apanhada à mão e o caule protegido para
não deixar escapar a seiva.
Uma das grandes borboletas cinzentas da floresta pairou sobre a lagoa, atraída pelo
aroma da flor. A água estremeceu. Um perfume erguia-se da superfície em ondas de
doçura. A borboleta voou mais baixo. As suas asas tocaram na água…
Num abrir e fechar de olhos, desapareceu da superfície. A água borbulhou e ondulou
como se estivesse em ebulição. Depois, mais nada.
Rowan estremeceu. Combateu a agonia que sentia no estômago.
É assim que as coisas são no mundo, disse a si mesmo. Os peixes comem borboletas.
As aves comem os peixes. É assim o ciclo da vida.
Apesar de tudo, a morte da inocente borboleta perturbara-o.
— Se aquelas criaturas só comem borboletas, é de admirar serem em tamanho
número — comentou Asha, imperturbada.
Rowan engoliu em seco e anuiu.
— Temos de arranjar uma forma de lidar com eles — disse. — Seja como for, temos
de apanhar a flor alva.
— Só há um modo de lidar com peixes — afirmou Asha com firmeza. — Mesmo
peixes tão extraordinários como estes. Vamos capturá-los. Apanhá-los com uma rede, até
ao último.
— Não creio que tenhamos uma rede que os segure — disse Doss, ouvindo a
sugestão.
Asha voltou-se para ele, envolvendo-se na sua capa prateada.
— Não dispomos de uma rede suficientemente adequada, é verdade — respondeu. —
Mas, se unirmos todas as nossas redes, de forma a que a malha fique cruzada, a rede
servirá para o efeito. Tenho certeza.
Doss olhou para o céu.
— É melhor afastarmo-nos da lagoa — disse. — A ave está de volta.
Recordando-se do que acontecera da última vez, Rowan e Asha apressaram-se a
descer do rochedo.
Rowan virou-se para observar. A ave mergulhou na direção da lagoa a uma
velocidade vertiginosa. Era enorme. O seu bico era cruel e curvo. Tinha as garras
estendidas, prontas a capturar a presa.
Enquanto Rowan olhava, a ave pairou por instantes sobre a lagoa. A água começou a
ficar prateada quando os peixes procuraram segurança.
Então, subitamente, a ave guinou no ar e, libertando um pio, lançou-se direta a
Rowan e Asha.
— Para baixo! — gritou Rowan, empurrando Asha para o chão.
Mesmo a tempo. O bico a estalar, as asas em movimento e as garras afiadas como
lâminas não os apanharam por uma fração de segundo.
Rowan ficou a ver, perplexo, a ave a afastar-se.
— O que… o que ela está a fazer? — gritou Seaborn.
— Não sei — respondeu Rowan, ofegante. — Parece ter decidido que somos
inimigos dela.
Asha pôs-se de pé, lívida e abalada.
— Ficarei satisfeita quando sair deste lugar — disse. Tirou uma rede fina da bolsa na
capa. — Com esse fim — acrescentou —, pedirei aos Candidatos dos Pandellis e dos Fisk
que me entreguem as suas redes, para que possa limpar a lagoa.
Sem uma palavra, Seaborn levou a mão sã à sua capa e retirou uma rede ainda mais
fina do que a de Asha.
Estendeu-a.
Doss hesitou e depois procedeu de igual modo.
Asha estendeu as três redes sobre a rocha, umas por cima das outras, e atou as
extremidades em vários lugares. Rowan viu que, em conjunto, as redes formavam uma
teia fina. Havia muito poucos orifícios através dos quais peixes podiam escapar, mesmo
peixes tão pequenos como os que viviam na lagoa.
Asha levantou-se, com as três redes tornadas numa só na mão. Olhou para o topo do
penhasco para lá das árvores. A ave verde guinchava aí, batendo as asas para um animal
da sua espécie que se atrevera a entrar no seu território.
— O nosso amigo está ocupado por agora — disse. — Este é o momento oportuno.
Levou a rede para a lagoa da flor alva e ajoelhou-se junto a ela. Rowan e Doss
correram para a ajudar. Baixaram-se à beira da lagoa, segurando a rede entre si.
— Temos de mergulhar a rede, erguer os peixes para fora, lançá-los para a rocha onde
não nos possam fazer mal e mergulhar de novo o mais depressa possível — afirmou Asha.
— Vai levar algum tempo a esvaziar a lagoa por completo. — Olhou para trás para
Seaborn, que observava sem nada poder fazer, afagando a mão ferida. — Avise-nos se a
ave se aproximar — ordenou. — Certamente que ficará satisfeito por ter algo útil para
fazer.
Virou-se para Rowan e Doss. Agrada-lhe estar no comando, pensou Rowan.
Prontos? — perguntou Asha. — Agora!
Mergulharam a rede na lagoa. A água agitou-se. Rowan sentiu um ligeiro esticar nas
mãos. Tornou os músculos tensos, pronto a levantar…
— Para fora! — gritou Asha.
Puxaram em simultâneo. Rowan contara com um pequeno peso… mas não havia
qualquer peso.
Retrocedeu alguns passos, mirando estupidamente o fragmento de rede esfarrapado
que segurava. Olhou para os outros. Também eles estavam perplexos, como se não
entendessem o que acontecera.
Toda a zona central da rede desaparecera. E, na lagoa, os peixes banqueteavam-se.
— Nunca… — Asha tremia em choque e raiva. — Nunca vi nada assim. Que diabos
serão estes?
A água acalmava-se. Não tardou a ondular de novo e puderam avistar outra vez a flor
alva. Não havia sinais da rede, nem de qualquer pedaço. Fora completamente consumida.
— Não acredito! — gritou Asha. — Comem a nossa rede, mas não tocam na flor!
— Penso que sei porquê — disse Doss. — É porque necessitam da flor. O seu
perfume atrai as borboletas que eles usam como alimento. — Sorriu. — E, como é
evidente — acrescentou —, a flor também precisa dos peixes. Eles devoram tudo o que cai
na lagoa, pelo que a água permanece límpida e cristalina e a flor consegue sempre ver o
sol.
— Cuidado! — gritou Seaborn.
Apressaram-se a afastarem-se da lagoa, mantendo-se acocorados.
A ave de penas verdes fez um vôo raso. A lagoa começou a ficar prateada. A ave
mergulhou e depois ergueu-se, guinchando, levando consigo presas que se contorciam.
— A ave consegue apanhar os peixes — disse Doss lentamente.
— Foi adequado pela natureza para poder fazê-lo! — exclamou Asha. — Mas não
podemos esperar que esvazie a lagoa para nós.
— Temos algum recipiente com o qual consigamos retirar a água para fora? —
perguntou Seaborn.
Ninguém tinha. E, depois do que acontecera com a rede, todos sabiam que um
recipiente feito de folhas, tecido ou casca de árvore seria inútil.
— Já sei! Vamos encher a lagoa com areia e rochas — disse Asha, dando um salto.
— Depois a água transborda e os peixes demônios morrem.
— Não temos tempo a perder. Seriam necessárias muitas, muitas horas para encher
aquela lagoa — murmurou Seaborn. — E eu… — Fez uma careta, afagando a mão dorida.
— Eu pouco os posso ajudar.
— Não importa! — Os olhos pálidos de Asha reluziam de fúria. — Aquelas criaturas
têm de ser destruídas. Têm mesmo!
Rowan abanou a cabeça.
— Está a esquecer-se — disse, gentilmente. — O nosso objetivo não é destruir os
peixes. O nosso objetivo é colher a flor alva. Se enchermos a lagoa, a flor ficará soterrada
no fundo. Ficará danificada, talvez mesmo partida. Depois, será inútil.
Asha levantou as mãos.
Temos de destruir os peixes antes de conseguirmos chegar à flor! — explodiu. — Se
não os conseguirmos destruir, nada se poderá fazer!
— Pode, sim — gritou Rowan. — Tem de poder.
— Pode ser feito — disse Doss. — Porque Orin fê-lo. Tem de existir uma forma. Só
precisamos descobrir.
Fez-se silêncio. Baixaram-se no rochedo, observando a ave grande a aproximar-se de
novo da lagoa, a pairar por um segundo enquanto a água se tornava prateada sob a sua
sombra e depois a mergulhar.
— Os peixes têm medo da ave — disse Doss subitamente.
— Correm a esconder-se sob a areia prateada antes de ela mergulhar. E é aí que
permanecem até o perigo passar.
— Está a pensar que, nesse momento, poderíamos apanhar a flor em segurança —
murmurou Rowan.
Seaborn parecia duvidoso.
— Tudo sucede num abrir e fechar de olhos — disse.
— E continua a haver peixes na água, porque a ave captura alguns. Mas poderíamos
tentar, e esperar, que sejam em número suficientemente reduzido para provocar muitos
danos.
Asha resfolegou.
— Estão a sonhar, vocês três, se pensam estar no caminho daquela ave quando ataca.
Seria uma loucura. Seriam dilacerados.
Olhou de novo para o topo do penhasco, onde a ave lutava de novo com outra da sua
espécie. No mar, caíam penas verdes enquanto ela batia as asas em fúria, as garras curvas
golpeando o intruso.
Rowan anuiu. A seu modo, a ave era tão perigosa quanto os peixes vorazes. Seja
como for, a objeção de Seaborn também fazia sentido. O momento de segurança, enquanto
a ave pairava, era mínimo. Nem os peixes dispunham todos de tempo para se esconderem
na areia prateada.
Mas todos tentavam. Porque sabiam que estavam em perigo. Como os pássaros que
se afastavam rapidamente dos campos de cereais em Rin quando alguém se aproximava.
Ou quando Jiller colocava um…
Rowan conteve a respiração.
— O que foi? — perguntou Doss.
— Já sei o que tenho que fazer — disse Rowan. — Preciso de uma navalha. E da
capa de Seaborn. E de alguns paus compridos e direitos.

15
O PLANO
A ave verde mergulhou muitas vezes na lagoa até Rowan terminar a sua obra.
— Em nome de Orin, por favor despache-se — pediu-lhe Seaborn, mirando o sol,
inquieto.
Rowan mordeu o lábio, forçando-se a concentrar-se no que fazia. Sabia perfeitamente
que o tempo era precioso. Mas o trabalho tinha que ser feito adequadamente, sob pena de
não resultar.
Atou por fim os últimos nós e retrocedeu.
Asha, Doss e Seaborn fitaram em silêncio a coisa que Rowan criara. Tinha a forma
de um pássaro, feito com partes da capa verde de Seaborn, formando uma estrutura tipo
papagaio de papel com diversos paus.
Seaborn franziu o cenho.
— É uma idéia curiosa — disse. — Como lhe ocorreu tal coisa?
— A minha mãe faz uma figura em madeira e veste-lhe as suas roupas, para
afugentar os pássaros dos nossos campos — disse Rowan, erguendo a forma nos braços.
— Mas tenho certeza que não enganará os peixes diabo — disse Asha.
— Tenho esperanças que sim — disse Rowan. — Em Rin, o truque não resulta com
os pássaros mais velhos. Mas assusta aqueles que não sabem ainda diferenciar o perigo
verdadeiro do falso. E penso que estes peixes são como esses pássaros mais jovens.
Porque, se estiver certo, nunca ninguém tentou este truque aqui desde o tempo de Orin.
Levou a estrutura para a lagoa e observou os céus.
A ave verde não estava à vista.
— Agora é o momento — disse, acenando. — Rápido, antes que o pássaro
verdadeiro regresse ou o sol se ponha. É importante que a sombra do pássaro incida na
superfície da água.
Doss e Asha afastaram-se da lagoa e seguraram a estrutura pelas extremidades das
asas.
Rowan deitou-se junto à lagoa, de olhos fixos na flor alva. Seaborn, contraindo-se
com dores ao mover-se, ajoelhou-se ao lado dele, segurando o frasco de vidro.
Em lagoa faminta, alvas erguem as suas coroas: Colhe uma…
— Agora — murmurou Rowan.
Asha e Doss avançaram, um de cada lado da lagoa. A sombra da forma de pássaro
que seguravam incidiu sobre a água.
De imediato, a lagoa começou a turvar-se e depois a brilhar. Os peixes enterravam-se
na areia de prata, procurando salvar as vidas.
— Espera… espera — murmurou Doss. — Deixa que todos se escondam.
Rowan sentia formigamento na mão. Contou lentamente até cinco. Depois, soube que
não podia esperar mais. Rangendo os dentes, mergulhou o braço nas profundezas frias e
prateadas. Cada vez mais fundo… esperando a cada segundo aquela dor penetrante que
assinalaria que os peixes vorazes tinham abandonado o esconderijo, conscientes de que
tinham sido enganados.
Tinha o caule da flor alva entre os dedos, suave e duro. Dobrou-o, mas este não se
partiu.
— Depressa! — suplicou Seaborn. Desesperadamente, Rowan inclinou-se mais sobre
a lagoa e enfiou o outro braço na água, cortando o caule da flor com as unhas. A água
prateada roçava-lhe o peito, o pescoço, o queixo. Se os peixes atacassem agora…
Sentiu o caule a partir. Apertando a extremidade entre os dedos de uma mão e
segurando na flor com a outra, puxou-se para trás, roçando na rocha. E, no preciso instante
em que a flor branca rasgou a superfície da água, uma dor ardente disparou pelos seus
antebraços e pulsos.
Ouviu Asha e Seaborn a gritar horrorizados. Cheirou o aroma pesado e sufocante da
flor que murchava já. Olhou para os braços, onde uma dúzia de criaturas transparentes se
agarravam a ele, mordendo e contorcendo-se.
A sua mente ficou toldada pela dor que se assemelhava a um milhar de agulhas. Mas
Seaborn segurava no frasco de vidro, chamando por ele.
Colhe uma e adiciona as lágrimas que derramar…
Rowan colocou o caule da flor sobre o jarro e libertou o aperto dos dedos.
…adiciona as lágrimas que derramar.
E gotas preciosas caíram no frasco. Misturando-se com o líquido prateado. Tornando-
o azul. Azul como o tecido brilhante da capa de Doss. Azul como o mar. Azul como o céu.
* * *
— Pronto. Está feito — disse Doss, apertando a última ligadura.
Rowan agradeceu-lhe. Os seus braços continuavam a latejar e a doer. Mas a pomada
pegajosa castanha e as ligaduras eram reconfortantes.
Olhou para a rocha onde se encontrava a flor alva, já amarelecendo. Sentiu pena que
ela tivesse que morrer.
Doss seguiu o olhar dele e emitiu um dos seus sorrisos raros.
— Venha aqui — disse, chamando. Rowan levantou-se e seguiu-o.
A lagoa estava ondulante e límpida. Muito abaixo da sua superfície, reluzia a corola
branca de outra flor alva.
— Havia um botão por baixo da flor que apanhou — disse Doss, enquanto Rowan
continha a respiração. — Abriu assim que a água da lagoa se tornou clara. Vi isso a
acontecer. Foi como um milagre.
— Um milagre!? — exclamou Asha, juntou-se a eles. — Como pode chamar a uma
coisa tão demoníaca um milagre?
Doss virou uns olhos sérios para ela.
— A flor não é demoníaca por florir onde floresce — disse. — Limita-se a existir. Tal
como os peixes na lagoa e a ave no penhasco e você e eu.
Asha retribuiu-lhe friamente o olhar.
— Nunca se esqueça que é um Candidato, pois não, Doss dos Pandellis? —
escarneceu. — E como estudou bem o Selecionador! Diz exatamente o que lhe agrada.
Doss franziu o cenho.
— Não, não digo — retorquiu. — Afirmo aquilo que penso.
Ela riu-se em descrença e foi sentar-se sozinha na extremidade do rochedo.
Rowan olhou rapidamente para Doss e desviou logo o olhar. Sentia-se chocado
consigo mesmo. Percebera subitamente que deixara cair a guarda.
Por momentos, esquecera-se que os seus companheiros não eram seus amigos nem
mesmos ajudantes voluntariosos. Esquecera-se do que Perlain lhe dissera: tinham sido
criados desde tenra idade para serem astutos e agradarem ao Selecionador,
independentemente do que pudessem pensar.
Esquecera-se que um deles envenenara a sua mãe.
Mas recordara-se agora e a sua raiva regressou. Ergueu a cabeça, ignorando a dor
dilacerante nos braços e a dor ainda mais intensa no coração.
— Temos de localizar o terceiro ingrediente — disse, em voz alta, evitando olhar
para eles.
Mexe lentamente com a pluma nova do lutador, Três vezes, não mais, e deixa
repousar.
A voz calma e forte que proferiu as palavras foi a de Seaborn.
— Penso que já tenho o terceiro ingrediente, Rowan — disse. Mostrou uma pena
verde comprida — A ave arrancou-a da sua própria asa, irada, quando atacou Asha.
Rowan pensou rapidamente. Uma pluma era uma pena. Isso era verdade. A ave podia
ser considerada um lutador. Isso era verdade. Os outros dois ingredientes tinham sido
encontrados ali, naquele lugar. Era muito provável que a ave fizesse parte.
E o quarto?
Rowan cerrou os olhos. Não pensaria no quarto.
Nunca desejara pensar no quarto.
Estendeu a mão e Seaborn entregou-lhe a pena. Viram que a ave se aproximava de
novo na direção deles e saltaram para o lado. Mas a ave não lhes prestou nenhuma
atenção. Limitou-se a mergulhar na lagoa como antes e depois afastou-se.
Rowan desapertou a tampa do frasco. Enfiou a extremidade aguçada da pena verde
no líquido azul e mexeu.
Uma, duas, três vezes.
Nada aconteceu.
O enigma diz, “deixa repousar”, pensou. Pousou o frasco sobre a rocha e observou
cuidadosamente o conteúdo.
Lentamente, o líquido assentou. Mas a cor permaneceu inalterada.
Rowan esforçou-se por se manter em silêncio. Virou a pena, forçou a extremidade
mais larga pelo gargalo do frasco e mexeu de novo a mistura. Retrocedeu de novo, para
observar e aguardar.
Após dois longos minutos, soube que não podia esperar mais. Lentamente, enroscou
a tampa do frasco.
Os três Candidatos miravam-no com curiosidade. Percebiam que algo se passava,
mas não entendiam qual era o problema.
— A mistura devia ter ficado verde — disse-lhes Rowan. Tentou falar num tom forte,
como um líder. Mas ouvia a sua voz a transmitir desapontamento.
— Quer dizer que o enigma não se referia à pena — disse Seaborn. Abanou a cabeça.
— Lamento — disse. — Tinha quase a certeza que era isso.
— Também eu — acrescentou Doss. Fitou por breves instantes os olhos de Rowan,
detectou inimizade e baixou o olhar.
— Não concordo — disse Asha firmemente. — Nunca compreendi como uma
simples pena podia adicionar fosse o que fosse à poção. As penas são usadas para
decoração e, por vezes, como caneta para escrever. É a única coisa para que servem.
Rowan rolou a extremidade pontiaguda da pena por entre os dedos. Apesar do que
Asha dissera, tinha a certeza que o enigma de Orin se referia à pena da ave verde. Repetiu
de novo as instruções para si. Será que fizera exatamente o que elas indicavam?
Mexe lentamente com a pluma nova do lutador,
Três vezes, não mais, e deixa repousar.
Mexera a mistura com a pena. Mexera três vezes, não mais. Deixara-a repousar. Não
havia nada mais. Nada…
Foi então que percebeu. A única palavra que não considerara.
Suspirou. Pelo menos sabia o que tinha que fazer.

16
O LUTADOR
Nova. Essa era a palavra chave.
— Uma pena pode adicionar algo à poção — disse Rowan para Asha. — Pode
adicionar um vestígio do óleo do corpo da ave que a torna impermeável. Mas só quando é
acabada de apanhar. O óleo deve secar e evaporar muito rapidamente.
Em simultâneo, os Candidatos olharam para cima, para o céu que escurecia acima do
topo do penhasco, onde a ave piava, atacava, esvoaçava e lançava as garras a outro
invasor. Naquele momento, uma pena caiu da asa da ave e planou para o mar muito
abaixo.
— As penas caiem quando as aves combatem — disse Doss.
— Não podemos escalar aquele penhasco, Doss dos Pandellis — escarneceu Asha.
— As mãos dos Maris não são feitas para escalarem. E o Selecionador não pode ir só para
enfrentar tamanho perigo.
— Seria idiota só de tentar — afirmou Rowan com desalento. — Não estou
suficientemente forte para escalar. Tenho os braços feridos. Além do mais, tenho vertigens
e acabaria provavelmente por cair.
Nenhum dos Candidatos considerou isto surpreendente. Claro que não iriam
considerar, pensou Rowan. Ao contrário de Perlain, que ficara surpreendido de como ele
era diferente das pessoas de Rin que se deslocavam a Maris nos dias de mercado, sabiam
tudo a respeito dele. Os seus treinadores devem ter-lhes dito que ele não tinha nada a ver
com o seu povo, que era forte e corajoso por natureza.
Sentiu as faces a enrubescerem. Por vezes, era ainda difícil enfrentar esta diferença.
Não pela primeira vez, desejou de todo o coração que Jonn forte estivesse ali com ele.
Jonn não teria ficado a falar e com receios. Jonn já estaria a meio daquele penhasco.
— As aves combatem sobre o mar — disse Doss. — As penas caem na água. Não
acredito que conseguíssemos apanhar uma lá em cima, mesmo que lá chegássemos.
— Então? — Seaborn esperava com impaciência.
— O que sugere então?
Doss mirou-o, sem pestanejar.
— Esperamos que a ave venha até nós. Não tardará a chegar, quando desejar mais
peixes.
Asha anuiu.
— Sim. Depois capturamo-la — disse, com entusiasmo.
— E tiramos uma pena à força.
Rowan meio sorriu.
— E capturamo-la com o quê? — inquiriu.
— Com as nossas redes, é claro — respondeu ela. — O que mais poderíamos…? Oh!
— A sua boca cerrou-se numa linha rígida ao perceber o problema.
Seaborn riu-se.
— Infelizmente, não dispomos de uma única rede. Devido à sua experiência na
pesca, Asha!
Ela voltou-se furiosa, sabendo que estavam a gozar com ela. Seaborn anuiu para
Rowan.
— É simples. Aguardamos que a ave chegue à lagoa. Mas, desta vez, não fugimos
dela. Enfrentamo-la. Obrigamo-la a lutar conosco.
O coração de Rowan inchou de gratidão. Se Jonn não podia estar com ele, pelo
menos podia contar com Seaborn.
Asha virou-se para os enfrentar.
— Está louco, Seaborn dos Fisk? — gritou. — Começou a acreditar ser você próprio
aquilo que os seus treinadores te ensinaram a representar? O destemido herói, tão amado
pelos agricultores de Rin?
Mais uma vez, Rowan sentiu um aperto.
Seaborn não é Jonn, recordou-se. Seaborn é um Maris. Os Maris valorizam a astúcia,
não a força. Deve estar a representar um papel, tal como Asha diz.
Mas Seaborn fuzilava Asha com o olhar.
— É você quem está louca, Asha dos Umbray — disse, friamente. — Sou o que sou.
E, se o que necessitamos é de uma pena acabada de cair da ave, estou disposto a lutar por
ela.
— Uma das suas mãos já não está funcional — retorquiu ela.
Seaborn pegou na sua navalha.
— Nesse caso, utilizarei a outra — respondeu.
— A ave vem aí — alertou Doss.
Tentando ignorar a dor lancinante nos braços envolvidos por ligaduras, Rowan pegou
num pau e correu para a lagoa. Seaborn acompanhou-o, a mão sã empunhando a navalha.
Após um momento de hesitação, Doss sacou a sua e seguiu-os. Mas Asha envolveu-se na
sua capa prateada e voltou de novo as costas.
A ave avançava na direção deles. Podiam ouvir o esvoaçar das suas asas. Rowan,
Seaborn e Doss ficaram à espera, ombros com ombros.
É enorme, pensou Rowan. As garras são como navalhas. Abraçou-se.
— Deixe a luta conosco, Rowan — gritou Seaborn.
— Tente apanhar a pena enquanto nós…
A voz dele foi abafada pelo grito irritado da ave. Estava sobre eles! Rowan percebeu
o brilho perverso dos seus olhos negros. Retrocedeu, vacilante, enquanto as asas gigantes
fustigavam o ar acima da cabeça dele.
Depois, perplexo, percebeu que a ave passara por ele, passara por todos eles. Seguia
direta para Asha, que permanecia teimosamente de costas voltadas para eles.
— Asha! — gritou.
Ela virou-se ligeiramente, viu o que se passava e atirou-se para o chão rochoso. A ave
roçou por cima dela, o bico abrindo e fechando, e depois elevou-se no ar.
Rowan correu para ela. Asha levantava-se já, machucada, arranhada e estremecendo
do choque.
— O que aconteceu? Por que ela fez aquilo? — disse, com dificuldade.
— Não ligou para nós! — gritou Seaborn, quando ele e Doss correram para junto
deles. — E estávamos ao lado da lagoa onde se alimenta.
— Já uma dada ocasião atacou Asha, ignorando-nos a todos — murmurou Rowan.
— Mas, porquê? Porquê? — Asha olhou para cima, temerosa. Levou a mão à boca.
— Está voltando! — gritou.
— Vem de novo atrás de mim!
Rowan olhou para cima. Não havia dúvida. Bem alto no céu, a ave voava em
círculos, preparando-se para atacar mais uma vez.
— Esconda-se na floresta — disse Rowan. — Vamos tentar impedi-la.
Asha começou a descer a rocha em direção às árvores. A capa prateada ondulava
atrás dela. Na sua superfície brilhante, movia-se uma confusão de imagens: o rochedo, o
céu, a forma pequena da ave que se aproximava, as formas maiores de Rowan, Doss e
Seaborn. Rowan esbugalhou os olhos.
— Asha! — gritou. — A capa! Tire-a! Tire-a!
A mulher hesitou.
Mas Rowan corria já para ela, chamando pelos outros.
— Não percebe? A capa é um espelho! — disse Rowan rapidamente, alcançando
Asha. Começou a puxar pelas fitas que prendiam a capa prateada sobre os ombros dela. —
Quando vira as costas, a ave vê o seu próprio reflexo. Por isso ataca. Pensa que está a lutar
com uma ave igual a ela.
Agora, Asha não conseguia desprender a capa com a velocidade necessária. Esta
acabou por cair no chão e Asha afastou-se.
No preciso instante. A ave quase os alcançara.
— Não desperdice a oportunidade — gritou Doss, correndo para a capa e pegando
num dos lados. — Asha, afaste-se! Seaborn… levante-a comigo.
Seaborn assim fez, sem qualquer pergunta. Estenderam a capa entre eles. A ave
gigantesca lançou um grito furioso de aviso. O seu reflexo na capa foi aumentando
gradualmente, enchendo a superfície prateada com um verde em movimento.
A ave estendeu as garras e bateu as asas numa exibição frenética de raiva. Um rival
atrevera-se a invadir o seu território! Era como aquele que por vezes aparecia na lagoa
prateada. Mas este rival era maior. Batia as suas próprias asas e estendia as garras.
Recusava-se a voar dali para fora. Recusava-se a render-se!
Guinchando, a ave embateu na capa com as asas enormes, rasgando-a com as garras
afiadas como lâminas. Doss e Seaborn cambalearam e vacilaram, tentando manter o
equilíbrio.
De novo, a ave atirou-se contra o inimigo imaginário. O coração de Rowan deu um
salto quando uma pena caiu, reluzente, para o chão.
— Larguem a capa! — gritou. — Atirem-na para longe!
Doss e Seaborn lançaram a capa para o lado. Foi cair amontoada sobre a rocha. A ave
pousou sobre ela, rasgando-a com o bico e guinchando em triunfo.
Rowan mergulhou para a pena, as lágrimas surgindo-lhe nos olhos quando a dor
disparou nos seus braços feridos. Retirou o precioso frasco de cristal da algibeira.
Tentando impedir que os dedos tremessem, desatarraxou a tampa.
Mexe lentamente com a pluma nova do lutador, Três vezes, não mais, e deixa
repousar…
A pena estava ainda quente na sua mão. A extremidade macia e pontiaguda reluzia
com óleo. Rowan mergulhou-a na mistura azul. Contendo a respiração, mexeu lentamente.
Uma, duas, três vezes.
Pousou a mistura sobre a rocha na sua frente e fechou os olhos. Nem se atrevia a
olhar.
Escutou então três vozes a gritar. Abriu os olhos.
O líquido no frasco brilhava num verde brilhante. Verde como as árvores. Verde
como as penas da ave lutadora. Verde como a vegetação no vale de Rin.
17
O MAIS TEMÍVEL MEDO
Foi agora a vez de Asha ser ligada. As mãos tinham raspado na rocha e as costas e
ombros estavam arranhados e magoados devido às asas e garras da ave.
Não permitiu que ninguém lhe tocasse nos ferimentos a não ser Rowan. Ficou
rigidamente sentada enquanto ele aplicava a pomada através dos rasgões na roupa dela.
Deve-lhe ter doido, mas não emitiu um único som de lamento.
Doss e Seaborn observaram ao longe. Seaborn olhava constantemente para o céu. Por
fim falou.
— Temos de nos apressar a encontrar o último ingrediente — disse. — Já está a ficar
escuro. A noite não tarda a cair.
Rowan sabia que Seaborn pensava na força em decadência da Guardiã. Mas Rowan
apenas conseguia pensar na mãe. Quanto tempo lhe restaria?
— A Escolha já devia estar concluída — murmurou Asha. — Nesta altura, o
Selecionador devia estar a nomear a Escolha.
— Como pode a Guardiã ter tanta certeza que irá morrer ao nascer do sol? —
inquiriu Rowan.
— Sempre assim foi — respondeu Asha. — Faz
parte do mistério do Cristal. Esta noite, de todas as noites do ano, é sempre a noite da
Escolha. A noite da lua cheia. Orin encontrou o Cristal neste mês, na noite de lua cheia.
Mas antes, a chama acima da Caverna do Cristal sempre esteve acesa ao pôr-do-sol.
Olhou de forma acusadora para Rowan.
— Não tenho culpa que tenhamos tão pouco tempo — exclamou Rowan. — Viemos
de Rin assim que fomos convocados. E não pedi para que a minha mãe fosse envenenada.
As últimas linhas do verso de Orin não paravam de repetir-se na sua mente.
Adiciona o veneno do seu mais temível medo… Uma gota… e a verdade tornar-se-á
cristalina.
Qual era o seu mais temível medo? Era que falhasse tudo o que tinha que fazer. Que a
sua mãe morresse. Que não fosse escolhido um novo Guardião a tempo para manter o
Cristal vivo. Que, por sua causa, a sua terra ficasse à ameaça de uma última e terrível
invasão pelos Zebak. Que ele e Jonn, Annad e todos os seus amigos fossem de novo
escravizados e o encantador vale destruído.
Mas, não podia ser aquilo o que o enigma de Orin aludia. Orin referia-se a um tipo
diferente de medo. Orin era um Maris. A receita tinha como fim ser compreendida pelas
mentes dos Maris.
Olhou para Doss, Seaborn e Asha, um a um. Rostos pálidos e tensos. Olhos
inexpressivos.
— Qual é o seu maior receio? — inquiriu.
Houve apenas um segundo de hesitação. Depois, todos afirmaram em simultâneo:
— A Grande Serpente.
Rowan respirou fundo. Já o suspeitava. Mas nem quisera pensar nisso.
— As garras da Grande Serpente libertam veneno — disse Doss. — Penso que é a
isso que se refere o enigma de Orin. Temos de obter uma gota do veneno para completar o
antídoto.
Os outros dois anuíram.
Instalou-se um silêncio pesado entre eles. Na clareira, estava tudo tranqüilo e escuro.
A ave lutadora já não guinchava contra os rivais no topo do penhasco. E não regressara à
lagoa. Talvez tivesse regressado ao ninho durante a noite.
— Como encontramos a Grande Serpente? — perguntou Rowan por fim.
Na sua mente, agigantava-se a imagem que vira na casa dos livros em Rin. Já nessa
altura o amedrontara. O pensamento de ter que enfrentar o animal em pessoa enchia-o de
terror.
— O mar está cheio de serpentes — disse Seaborn. — Não são difíceis de encontrar.
É uma questão de nos aventurarmos na praia depois do sol se pôr, que elas encontram-nos.
— Mas, e a Grande Serpente? — persistiu Rowan. Asha e Seaborn olharam para
Doss. E Rowan recordou-se do que Perlain dissera.
“Os teus olhos contêm a expressão de alguém que já viu a Grande Serpente e que
sobreviveu. Profundos e extremamente conhecedores. Estranho, num rapaz tão jovem. Só
conheci outro assim.” Virou-se para Doss.
— Você já a viu — afirmou, calmamente. Doss anuiu.
— Já. — Não olhou para Rowan ao responder. Rowan aguardou. Sabia que, se
esperasse o tempo suficiente, Doss voltaria a falar. — Foi exatamente nesta altura, há um
ano atrás — acabou por murmurar Doss. — Nesse dia, estava com a minha família, no
nosso barco. Ia estar lua cheia, como estaria durante a Escolha. Era o meu Dia da
Despedida.
— Todos os Candidatos têm um Dia de Despedida — disse Seaborn, respondendo ao
olhar intrigado de Rowan. — É o dia em que nos despedimos da nossa família. Depois
disso, vivemos afastados dos restantes Maris. Retiramo-nos para a casa do Candidato do
nosso clã, tendo apenas por companhia os nossos treinadores e livros, para nos
prepararmos integralmente para a Escolha.
— Isso deve ser duro — afirmou Rowan, pensando no que sentiria se tivesse que se
separar de todos e tudo que conhecia e amava.
— É necessário — retorquiu Seaborn.
— E representa também preparação — acrescentou Asha. — Porque o novo
Guardião só é levado uma vez à superfície para ser mostrado às pessoas. Posteriormente,
ele ou ela regressa à Caverna do Cristal, para sempre.
Rowan sentiu um arrepio gelado de horror.
— Querem dizer… que os Guardiães não voltam a sair da Caverna? — afirmou,
perplexo. — Nunca mais vêem as suas casas e famílias, não respiram ar puro, não vêem o
céu?
Doss sorriu.
— Não precisam de fazê-lo, Rowan. O Cristal é tudo para eles.
— Estão lá para servir — disse Seaborn.
Rowan fechou os olhos. Para ele, aquilo soava a uma morte viva. Compreendia agora
o que queria Perlain dizer quando dissera que nem toda a gente desejava ser Guardião.
— Não entende — afirmou Doss. — Não é dor, é alegria.
— É um dever glorioso — disse Asha. — Sempre foi. — Os olhos dela reluziam.
Rowan disse a si mesmo que aquilo era algo que não lhe dizia respeito. Não lhe
competia julgar a forma de vida dos Maris.
— Fale-me da Grande Serpente, Doss — disse, abruptamente.
— Tínhamos navegado para longe — disse Doss. — Pensávamos regressar a casa
quando o nosso barco começou a meter água. Não só num local, mas em vários. A madeira
tinha sido perfurada e os orifícios sagazmente preenchidos com algo que só caía passado
bastante tempo, quando o barco já estivesse muito afastado da costa.
Olhava diretamente em frente. Não acusava ninguém. Mas Seaborn e Asha franziram
o cenho.
— O meu clã não tocou no seu barco! — exclamou Asha.
— Nem o meu — retorquiu Seaborn. Doss continuava a não olhar para eles.
— Seja o que for que aconteceu, o barco afundou-se — disse. — Nadamos, mas a
corrente estava forte. — Falava tão baixo que Rowan teve que se inclinar para ouvi-lo.
— Não tardei a perder de vista a minha mãe e o meu pai, tal como os meus irmãos —
prosseguiu a voz calma. — Lutei contra a maré. Estava exausto. O sol começou a pôr-se.
Foi então que ouvi um barulho. Um som alto e estridente. Parecia vir de toda a volta. Do
céu por cima e do mar por baixo. Aumentou de intensidade. Sempre contínuo. Enchia-me
os ouvidos e pareceu-me penetrar na mente, enchendo-a também, de tal modo que não
conseguia pensar em mais nada. Era o cântico da Grande Serpente.
Mais uma vez, surgiu na mente de Rowan a imagem que vira. O barco, e as pessoas
aos gritos, com as mãos sobre os ouvidos. Estremeceu.
A voz de Doss tornara-se monótona e inerte, um cântico, como se recitasse uma lição
repetida tantas vezes.
— A Grande Serpente surgiu das profundezas. Elevou-se como uma torre diante de
mim. Os seus olhos eram dourados e repletos de segredos ancestrais. As escamas refaziam
como fogo no pôr-do-sol. Mirou-me. Soube que ia morrer.
— Mas não morreu — exclamou Rowan. O seu próprio coração batia rápido. Sabia o
que era enfrentar pesadelos.
— Não — respondeu Doss simplesmente. — Fui envolvido por uma negridão. Não
sei o que se passou depois disso. Não me recordo de nada nessa noite. Mas, quando
acordei, o sol levantava-se e eu estava deitado num fragmento do barco da minha família,
à deriva junto à costa. O meu clã avistou-me e trouxe-me para terra. Também procuraram
os outros. Mas nunca foram encontrados.
Voltou os olhos sonhadores para Rowan.
— Da minha família, apenas eu fui poupado. E eu… mudei. Sentia-o. Todos à minha
volta perceberam isso. Era como se algo tivesse sido perdido… ou acrescido. Não sei qual
dos casos.
— Não deixa de ser invulgar — disse Asha rudemente — que o seu clã tenha
permitido que continuasse a ser o Candidato deles. Não havia outros, imperturbados, que
pudessem tomar o seu lugar?
— Claro que sim — respondeu Doss. — E eu contava com isso. Mas depois percebi
que os meus treinadores encaravam a mudança como algo positivo. Não afetara a minha
perspicácia. Mas separou-me dos outros.
Tornou-me diferente. E, na opinião deles, especial.
De novo, um estranho sorriso aflorou nos seus lábios.
— Porque, como é evidente, ver a Grande Serpente e sobreviver é um poderoso
sortilégio. Nunca aconteceu a ninguém desde Orin, o Sábio.
Seaborn, que estivera a ouvir em silêncio, acabou por falar.
— Há quem diga que toda essa história é uma mentira — roncou. — Uma mentira
inventada pelos seus treinadores para impressionar as pessoas e, um dia, o Selecionador.
Como talvez esteja a acontecer neste momento.
Doss enfrentou calmamente o olhar frio dele.
— Bem que gostaria que fosse uma mentira — retorquiu. — Porque, se assim fosse,
aquele som, e aqueles olhos amarelos, não assombrariam os meus sonhos… como, depois
desta noite, poderão assombrar os seus.
…como, depois desta noite, poderão assombrar os teus.
Rowan endireitou os ombros. Apesar dos seus medos, das suas dúvidas, sabia que a
única alternativa era ir em frente.
— O sol já se pôs — disse. — O tempo escasseia. Temos de encontrar a Grande
Serpente. Como acham que devemos começar?

18
A LUA DA ESCOLHA
Não vejo como seja possível — disse Asha. — Só os incautos se aventuram no mar à
noite, mesmo de barco. E não temos nenhum barco. Se formos a nado, seremos
seguramente apanhados pelas serpentes mais pequenas, sem nunca avistarmos a grande
que procuramos.
O céu estava negro e cheio de estrelas. A flor alva reluzia branca na lagoa negra. As
ondas rebentavam na praia, para lá da floresta.
— Tem de haver uma forma — disse Rowan, observando Doss. — Porque Orin
conseguiu. A resposta reside nele.
Ver a Grande Serpente e sobreviver é um poderoso sortilégio. Nunca aconteceu a
ninguém desde Orin, o Sábio. Orin, o Sábio…
Há mil anos atrás, no dia em que encontrou o Cristal, Orin deparou com a Grande
Serpente, pensou Rowan. Foi exatamente nesta altura do ano. É por esse motivo que a
Escolha decorre nesta época.
Recordou mentalmente a história. A história que Perlain lhe contara. Orin andava à
pesca. Começou a dirigir-se para casa no seu barco, depois do pôr-do-sol. A Grande
Serpente ergueu-se do mar. Intrometeu-se com o barco dele e perseguiu-o. Orin fugiu para
a Ilha. Encontrou o Cristal.
E foi assim que tudo começou, pensou Rowan.
Depois, franziu o cenho.
Havia algo de estranho na história. Algum pormenor que não estava correto. No
início, Rowan não conseguiu perceber o que era. Recordou-se então.
Orin não andava a pescar no dia em que encontrou o Cristal. A Guardiã contara, sem
intenção, que Orin se encontrava na Ilha nesse dia, preparando o antídoto para o Sono da
Morte.
Rowan refletiu. Orin deve ter dito que andava à pesca, para ocultar os seus
verdadeiros objetivos. Não queria que os outros soubessem que estava a preparar o secreto
antídoto para o Sono da Morte. E nessa altura, e desde então, ninguém questionara a sua
história.
Ninguém questionara porque Orin trouxera o Cristal com ele e todos os interesses se
focaram no seu prodígio. E, depois disso, ninguém questionou a história porque Orin se
tornara em Orin, o Sábio. Alguém extraordinário. O primeiro Guardião do Cristal.
Mas, no dia em que encontrou o Cristal, não passava de um vulgar homem Maris. E,
vendo as coisas sob esse prisma, a história do seu encontro com a Grande Serpente era
ainda mais improvável.
Teria Orin mais medo de passar a noite na Ilha do que fazer avançar o seu barco pelas
águas negras? Quase certamente que não.
E, mesmo que tivesse enfrentado a água, teria mesmo Orin conseguido escapar à
Grande Serpente, se esta o estivesse a perseguir? De novo, quase certamente que não.
Rowan continuou a refletir. Nesse caso, então também essa parte da história era falsa.
Orin não abandonara a Ilha depois do pôr-do-sol. Não encontrara o animal no mar. Será
que o chegara a ver?
Sim, porque o seu veneno era o quarto ingrediente do antídoto.
Então… Rowan sentiu os pêlos da nuca a arrepiarem-se. Então isso significava algo
muito estranho de fato. Significava que, de alguma forma, Orin e a Grande Serpente se
encontraram em terra. Na Ilha. Talvez mesmo…
— Olhem para a lua — murmurou Doss, apontando. Uma enorme lua cheia erguera-
se acima das copas das árvores. Calma, fria e branca, flutuava no céu cinzento como a flor
nas profundezas da lagoa negra.
— A lua da Escolha — murmurou Asha.
Foi então que ouviram. Um som pesado e arrastado, vindo do caminho por entre a
floresta. Aproximando-se.
— O que é? — perguntou Seaborn, ofegante.
Doss levantou-se, os olhos esbugalhados.
— Rápido — disse. — Vamos sair daqui! Embora! Correram para longe da rocha e
esconderam-se por entre as árvores.
O som intensificou-se. O ruído das folhas a serem esmagadas e arrastadas. O som dos
fetos a serem vergados e quebrados sob um peso gigantesco.
Surgiu na clareira a Grande Serpente, deixando atrás de si um caminho rasgado,
como acontecera tantas vezes antes. A água do mar ainda escorria da sua cabeça de
dragão. Os olhos amarelos estavam vidrados. As escamas douradas que secavam
brilhavam à Lua da Escolha.
O seu corpo enorme e inchado açoitava e ondulava.
Ondas de terror invadiram Rowan. Escutou o choramingar baixo de Doss, a
respiração pesada de Asha e Seaborn, logo atrás dele. Levou a mão à algibeira e pegou no
pequeno frasco, o frasco que continha a mistura que iria salvar a vida da mãe. Se fosse
adicionada uma pequena coisa. Uma gota…
— Por que estará aqui? — sussurrou Asha, surpreendida. — Por que invade a terra?
O mar… o mar é o reino da Grande Serpente. Sempre assim foi.
Mas Rowan já adivinhara.
— Vem aqui uma vez por ano — murmurou em resposta. — É assim que sempre tem
sido. Mas vocês não o sabiam, porque acontece deste lado da Ilha. O lado que vocês em
Maris nunca avistam, depois do sol se pôr.
O aroma da flor alva pairava forte no ar. Elevava-se da lagoa. A serpente retorceu-se
até ela, lentamente, trepando com dificuldade pelo rochedo.
— Está à nossa procura — disse Seaborn, numa agonia de medo.
— Não — respondeu Rowan. — Nem sequer sabe que estamos aqui. Procura outra
coisa. Um lugar. Observem. Esperem.
A serpente alcançou a lagoa no topo do rochedo. Fitou com os olhos amarelos a flor
alva, flutuando branca na água ondulada. Olhou depois para a lua no céu. Abriu as
mandíbulas enormes e libertou um grito. Um som estranho e estridente que penetrava nos
ouvidos e enchia a mente.
Doss envolveu a cabeça com os braços e gemeu suavemente.
Também Asha tapou os olhos.
Mas Seaborn observava, fascinado, enquanto o monstro enrolava o corpo enorme em
tomo da lagoa.
— Está a pôr ovos — exclamou.
— Sim — disse Rowan. — É como as tartarugas gigantes que nadam nos seus mares.
Como o verme Kirrian, cujos ovos vocês apanham todas as manhãs da Primavera. Vive no
mar, mas põe os ovos em terra. E este é o lugar dela. Foi aqui que Orin a encontrou.
A serpente estava de fato a pôr ovos. Brilhavam como prata ao luar. Com cada um
que saía, a ponta da cauda enorme lançava-o para o interior da lagoa da flor alva, onde
afundava e pousava no leito da areia prateada.
— Não podia haver local melhor para esconder os ovos. — Rowan estava
maravilhado. — Nenhuma criatura se atreveria a tocar neles. A casca deve ser dura como
pedra, pelo que os peixes não lhes podem fazer mal.
Doss e Asha já se atreviam a olhar.
— Mas, quando chocarem… — começou Asha.
— Quando chocarem, não haverá muitos peixes — disse Rowan calmamente. — A
ave lutadora já terá levado bastantes.
— Os peixes que restarem atacarão as serpentes recém-nascidas — anuiu Doss. — E
muitas serão mortas. Mas algumas irão sobreviver, nadando para a superfície, arrastando-
se para fora da lagoa, rastejando pelo caminho até à praia e mergulhando no mar.
— E as cascas dos ovos irão ficar, sendo gradualmente esmagadas pela água em
movimento, criando mais areia prateada — disse Seaborn. — Por Orin, é incrível. — O
seu rosto revelava uma expressão de vivo interesse. Estava tão maravilhado que se
esquecera do medo.
— Se não fosse a ave lutadora, a lagoa estaria repleta de peixes, e as serpentes bebês
morreriam todas quando saíssem dos ovos — murmurou Rowan. — Se a ave lutadora não
defendesse a lagoa contra todos os vizinhos, esta ficaria sem nenhum peixe. Assim, todos
os ovos seriam chocados e o mar ficaria infestado de serpentes, mas sem qualquer outro
ser vivo.
— Sem peixe — disse Doss. — Sem alimentos para os Maris, sem óleo para as
nossas lanternas, pele de peixe para os nossos sapatos e roupas. Sem segurança, nem
mesmo de dia, para as embarcações que vêm negociar, porque as serpentes estariam
esfomeadas e desesperadas. Desse modo, os Maris morreriam. E também as serpentes, no
final de contas. Faz tudo parte de um grande círculo.
— Não tem qualquer significado! — Seaborn franzia agora o sobrolho. — As aves
comem os peixes. Os peixes comem as serpentes. Para que existe afinal o ciclo? Se
viermos todos os anos à Ilha e destruirmos os ovos da Grande Serpente, conforme Rowan
nos ensinou, os nossos mares não tardariam a ficar livres de perigo. Podíamos pescar tanto
de noite como de dia, e duplicar, ou mesmo triplicar, a apanha. Podíamos vender aos
comerciantes e alimentar muitas, muitas pessoas.
— A Ilha está proibida por Orin, Seaborn dos Fisk — disse Asha teimosamente. — E
sempre existiram serpentes nos nossos mares. Sempre foi assim.
Para Asha, era o bastante. Mas não para Seaborn.
— Por que não haveremos de destruir as serpentes? — inquiriu. — Que utilidade
têm? Tudo o que fazem é impedir-nos de pescarmos quando queremos.
Não está entendendo, Seaborn?, pensou Rowan. Não vê a utilidade? Acabou de a
explicar.
Mas não disse nada. Levantou-se. Todo ele tremia, mas sabia o que tinha que fazer.
Desatarraxou a tampa prateada do frasco e caminhou para o rochedo.

19
UMA GOTA
A Grande Serpente virou a cabeça. Os seus olhos amarelos fixavam-se em Rowan. —
Não olhe para ela — gritou Doss.
Mas era demasiado tarde. Rowan mirava já aqueles olhos vidrados. E não conseguia
desviar o olhar. Era como se o seu corpo estivesse entorpecido.
Mãos puxaram-lhe pela manga.
— Rowan! — disse uma voz sufocada. — Lembre-se! A sua mãe! O veneno!
Rowan desviou os olhos do olhar frio e dourado. Doss, Asha e Seaborn estavam atrás
dele. Os seus rostos pareciam fantasmas ao luar.
Fora Asha quem falara. Como que em sonho, Rowan percebeu que ela utilizara pela
primeira vez o seu nome. Era ela quem segurava fortemente o seu braço.
— Você é o Selecionador. Não pode fazer isto. Irei no seu lugar. A minha morte não
teria qualquer importância. A sua representaria o fim dos Maris. Dê-me o frasco.
Rowan fitou os olhos pálidos dela. Demonstravam um medo profundo, mas mirava-o
com firmeza. Ela era como a minha mãe, pensou. Fará sempre o que considerar que está
certo. Até à morte.
Seaborn abanou a cabeça.
— Sou mais forte e mais alto — disse, em voz baixa. — Compete-me a mim
enfrentar o animal. Dê-me o frasco.
No rochedo, a serpente aguardava. Rowan hesitou e depois virou-se para Doss, uma
pequena sombra azul na luz fosca.
— Não — disse Doss calmamente. — Nenhum de nós pode fazer isto no lugar de
Rowan.
Asha e Seaborn começaram violentamente a argumentar, mas Doss ergueu a mão.
— Desde que nascemos que receamos esta criatura e a sua espécie. E ela conhece-
nos, e à nossa espécie. Conhece o nosso cheiro. Conhece a nossa pele pálida. Sabe como
nos movemos. Somos as suas presas naturais. Irá atacar-nos sem pensar. O único com
possibilidades de se aproximar é o que lhe for desconhecido.
Rowan respirou fundo.
— Sim — afirmou.
Virou-se e enfrentou de novo o animal. Desta vez, este não o fitou nos olhos. Rowan
deu um passo em frente. E depois outro.
A serpente não se moveu mas abriu as maxilas enormes, estendeu uma língua negra e
bifurcada e sibilou. O interior da sua boca era mole e amarelo. As presas eram brancas,
com as pontas negras. O veneno pingava daquelas agulhas pretas como gotas de ouro
líquido fumegante e caíam, chiando, no solo.
Rowan subiu. Sentia a rocha macia sob os pés. Ouvia-se a arfar. Segurava com força
o frasco.
O pé roçou em algo no chão. Era a flor alva morta. Já castanha e seca, as suas pétalas
estavam engelhadas como taças de couro rasas. Ajoelhou-se e pegou numa das pétalas.
A serpente continuava a pôr os seus ovos. Ainda empurrando-os, um a um, para a
lagoa. Por cima, a lua brilhava enorme e branca. Mas os seus olhos amarelos estavam
fixos em Rowan.
Doss estava certo, pensou Rowan. Não sabe bem o que eu sou. E quer acabar de pôr
os ovos. Irá ameaçar, mas não se moverá a menos que eu faça um movimento brusco. Há
uma possibilidade.
Foi subindo em direção à lagoa. Cada vez mais perto, e mais ainda… até conseguir
avistar a flor alva brilhando sob as águas negras, como um reflexo da lua no céu.
Começou a deslocar-se em redor das vastas espirais que contornavam a lagoa, em direção
à cabeça.
Os olhos da Grande Serpente reluziram. Arqueou o pescoço e o seu grito estranho e
estridente rasgou o ar.
O som era tão penetrante que surgiram lágrimas nos olhos de Rowan. Desejava tapar
os ouvidos. Mas tinha a pétala da flor numa mão e o precioso frasco na outra. Não podia
fazer nada.
Depois, a serpente sibilou de novo. As mandíbulas, que conseguiam desfazer um
barco dos Maris, abriram-se largamente. A língua vibrou, saboreando o ar. As presas
reluziam ao luar, brancas com pontas de negro, gotejando ouro líquido letal.
Agora! Rowan lançou-se rapidamente para a frente, segurando a pétala da flor alva,
captando o veneno no recipiente em que se tornara.
A serpente lançou-se a ele, gritando de raiva. Rowan caiu desamparado para trás, o
som rasgando-lhe o cérebro. Sentiu uma dor terrível nos braços ligados. O veneno
fumegava e chiava na pétala da flor alva. O frasco inclinou-se perigosamente.
Adiciona o veneno do teu mais temível medo… Uma gota…
Em pânico, Rowan olhou para o frasco. O líquido verde estava ainda em segurança.
Voltou depois os olhos para a pétala e, horrorizado, viu que o veneno começava a queimá-
la. O precioso líquido dourado escapava por entre orifícios negros e queimados,
desperdiçando-se sobre a rocha. Caía numa corrente fina e fumegante. Já havia muito
pouco.
— Não! — Mal percebera que tinha gritado.
— Rowan, sai daí! Oh… oh, em nome de Orin, corre! Corre! Está a mexer-se! Vai…
Mal escutou os gritos dos três Maris. Percebeu a uma forma monstruosa erguendo-se
acima dele, bloqueando a lua. De grandes espirais arrastando-se e desenrolando-se da
lagoa. De maxilas gotejantes abrindo-se para atacar de novo.
Mas o antídoto…
Uma gota…
Com as mãos a tremer, virou a pétala sobre o frasco.
E uma última gota dourada caiu, chiando, nas trevas do líquido verde. Tornando-o
límpido. Límpido como a água na lagoa. Transparente como o vidro do frasco.
Cristalino como a verdade.
— Rowan!
Colocou a tampa de prata no frasco. Cambaleando, pôs-se de pé. Saltou para salvar a
vida, correndo aos tropeções pela superfície castanha lisa da rocha, o seu bem mais
precioso nas mãos latejantes.
Mas o animal manifestava a sua ira, lançando-se atrás dele com uma rapidez
assoladora. Ouvia-o atrás dele — mais próximo em cada segundo. Atordoado pela dor e
terror, nunca parou. Para onde devia ir? Para onde devia correr?
— Aqui!
Os três Maris chamavam-no. Com os olhos ofuscados, avistou-os correndo para ele,
os seus próprios rostos desfigurados pelo medo.
Cegamente, Rowan estendeu as mãos. Asha e Seaborn apanharam-no e puxaram-no
do rochedo para as árvores. Meio arrastando-o, começaram a abrir caminho por entre o
arvoredo cerrado.
Por todos os lados, viram-se envolvidos por arbustos e fetos. Das árvores pendiam
um número sem fim de lianas, retorcidas e emaranhadas, prendendo-lhes as mãos, pés e
roupas, retardando a fuga. As folhas formavam uma cobertura sobre as suas cabeças,
bloqueando a luz da lua. Seaborn e Asha arrastavam Rowan entre eles. Doss seguia na
traseira.
O monstro roncava. As árvores estalavam e caiam à medida que a serpente,
guinchando e sibilando, se retorcia atrás deles. Não necessitava de luz. Seguia o som
deles, bem como o cheiro. Aproximava-se em cada segundo. Eles iam rasgando o caminho
através da vegetação, soluçando e arfando, cegos na escuridão, os gritos horríveis ecoando
nos seus ouvidos. Também Orin deve ter corrido assim, aterrorizado pela sua vida.
— Para onde? — Rowan ouviu Asha a perguntar. — Não consigo ver!
Ouviu-se então um grito aterrorizado e sufocante atrás deles.
No início, esforçando a visão nas trevas, Rowan não conseguiu ver o que acontecera.
Mas depois viu. Doss estava preso numa liana. Envolvera-se à volta do pescoço dele e, ao
debater-se para se libertar, cingira-a ainda mais. Estava a sufocar e imobilizado.
O animal estava quase em cima dele. Podiam ver as árvores a sacudirem e a caírem
no seu caminho. Roncou ao cheirar o terror deles. Doss permanecia pendurado, indefeso,
as pontas dos pés batendo inutilmente no terreno macio.
— Deixem-no! — gritou Asha.
Mas Rowan não o podia fazer. Soltou-se das mãos de Asha e de Seaborn e dirigiu-se
ao local onde Doss se encontrava.
Tentou partir a liana com os dedos, ignorando os seus próprios ferimentos. Uma dor
agonizante difundiu-se pelos braços ligados.
Doss soltou um grito estrangulado. Depois, uma navalha cortou a liana e ele caiu no
solo. Ficou aí imóvel, ofegante.
— Levante-se! — gritou Asha, dando-lhe um pontapé. A navalha que o libertara
cintilava na sua mão.
Seaborn baixou-se e levantou Doss para os seus braços.
— Rápido! — exclamou. Vacilando com o peso que carregava, lançou-se a correr de
novo, com Rowan e Asha logo atrás.
Avançaram às cegas pela noite escura como breu.
— Deixem-me — pediu Doss, agitando-se. — Ponham-me no chão. Deixem-me. O
Selecionador tem de viver… O Cristal tem de viver…
— Fique quieto. O Selecionador não quer te deixar — disse Seaborn ofegante.
— Ali! — exclamou Asha. — Oh, ali!
Apontava para uma luz cintilante. Tão débil, tão pequena, que reluzia através das
árvores negras como uma estrela.
— Maris! — gritou Seaborn.
Marcharam com ímpeto em direção à luz. Foi aumentando de tamanho e intensidade.
Começaram a ouvir o rebentamento das ondas. Nunca teriam encontrado o caminho tão
rapidamente à luz do dia. Mas, durante a noite, as luzes de Maris brilhavam sobre as
águas, rasgando a escuridão, guiando-os.
Sibilando, retorcendo-se, a serpente avançava atrás deles. A terra não era o seu
ambiente. Mas estava irritada. Estava esfomeada. Caçava.
Respirando com dificuldade, gritando de medo, abandonaram a floresta e chegaram à
praia. Ondas enormes esmagavam-se contra as rochas. A espuma salgada salpicou-lhes os
rostos. Do outro lado do mar, todas as casas em Maris estavam iluminadas.
— Acederam todas as lanternas para nós — disse Seaborn, pousando Doss
finalmente. — Devem… devem estar todos… à espera.
— Depressa! — rogou Asha.
Ali, diante deles, estava o portão de ferro.
Arrastando Doss entre eles, correram para lá e abriram-no. Entraram de rompante nas
escadas e, no preciso momento em que a enorme serpente derrubava o último anel de
árvores, o portão fechou-se.
Ouviram a cauda da criatura a bater furiosamente. Avistaram a enorme cabeça a
virar-se de um lado para o outro, em busca deles.
Permaneceram juntos, tremendo e exaustos. Mas sabiam que estavam em segurança.
O animal não os conseguiria seguir naquele espaço exíguo. Tal como Orin antes, tinham
escapado.
Rowan tocou no frasco na sua algibeira. E, tal como Orin, pensou, trazemos de volta
algo precioso. Precioso, se não fosse tarde demais. A sua voz abalada ecoou nas paredes
rochosas do túnel.
— Venham — disse. — Temos de nos apressar.
20
O DISSIMULADO
Eles meio saltaram, meio correram pelo túnel. Pare cia interminável. Pela frente,
apenas escuridão.
— Onde está a luz do Cristal? — perguntou Asha, arfando. — Devemos estar muito
próximo da Caverna, mas não a consigo ver. E se…
— A Guardiã está viva— afirmou Seaborn com firmeza. — De outro modo, as
pessoas não estariam nas suas casas, com as luzes acesas para nós.
— Ali! — exclamou Rowan.
Apontou para uma luz fraca que coloria apenas as trevas mais à frente.
Correram nesse sentido. A cabeça de Rowan batia ao ritmo do coração. Sentia a
garganta fechada e contraída.
Estavam praticamente na Caverna mas não sentia nada. Nenhuma atração invisível
do Cristal, atraindo-o. Nenhuma voz sussurrando na sua mente como os seus próprios
pensamentos.
Encontravam-se na entrada. No interior, tudo estava silencioso, exceto o pingar
constante da água. Seaborn, Doss e Asha ficaram para trás. Rowan respirou fundo e
entrou, temendo aquilo com que poderia deparar.
A Guardiã estava sentada na cadeira no centro da Caverna. O Cristal brilhava
fracamente debaixo das suas mãos, difundindo um círculo de luz verde em redor da
cadeira, deixando o restante espaço mergulhado na escuridão.
Nas sombras, Jonn estava ajoelhado junto ao sofá de Jiller, a cabeça inclinada.
Rowan sentiu o coração a saltar.
— Então, Selecionador de Rin. Regressou.
A Guardiã não se moveu nem olhou para cima. Mas a sua voz baixa encheu a
Caverna.
Jonn ergueu a cabeça. Pôs-se de pé, num salto. E pela expressão de louca e descrente
esperança no rosto dele, Rowan percebeu que, afinal, não chegara tarde demais.
Atravessou a caverna a correr e ajoelhou-se ao lado da mãe. Sim. Ela ainda respirava.
Mas fracamente. Tão fracamente.
Rowan batia os dentes. Todo ele tremia. Tinha os dedos rígidos e desajeitados ao tirar
o frasco da algibeira e ao desapertar a tampa.
— Tenho o antídoto, Guardiã — disse, olhando por cima do ombro. — Que
quantidade devo utilizar?
A Guardiã continuava sem se mover. Mas pareceu-lhe detectar um sorriso a delinear-
se na fina boca dela.
— Parece que você é tudo aquilo que dizem, Rowan de Rin — afirmou ela. —
Mergulhe o dedo na poção, apenas uma vez, e esfregue-lhe nos lábios. Será suficiente.
O líquido no frasco estava frio. Ardeu-lhe no dedo quando o esfregou na boca da
mãe.
Jiller franziu levemente o cenho no seu sono. Depois, suspirando, lambeu os lábios.
A mão forte de Jonn agarrou no ombro de Rowan.
— Quando…? — começou Rowan.
— Em breve. — A voz da Guardiã era seca e calma, como o restolhar de folhas
mortas. — O Sono da Morte leva duas horas completas a manifestar-se. Não pode contar
que seja neutralizado em momentos. Mas não podemos esperar. Eu não posso esperar. O
Cristal apaga-se. A minha hora está prestes a chegar. Muito em breve. Dirija-se para a luz.
— A Escolha… — começou Rowan, pondo-se de pé.
A Guardiã olhou para cima. Atrás dela estavam Doss, Seaborn e Asha, mas ela não
lhes prestou nenhuma atenção. Os seus grandes olhos pálidos, perdendo o brilho como o
Cristal, procuraram Rowan nas trevas.
— Dirija-se para a luz, Selecionador de Rin — repetiu.
Rowan assim fez.
Ela fitou-lhe o rosto.
— A chama está acesa. A Escolha está feita — afirmou ela.
Rowan abriu a boca. Olhou para lá da Guardiã, para as figuras silenciosas dos
Candidatos. O olhar deles revelava choque e descrença.
— Guardiã, a Escolha ainda não se iniciou — balbuciou. — Os testes…
— As provações por que passaram foram os testes — disse ela.
Rowan fitou-a.
Exausta, cerrou os olhos.
— Os testes antigos já não são úteis. Cada vez mais, os Candidatos estudam para
eles. Tal como estudam as pessoas de Rin, para que consigam os favores do Selecionador.
São fechados longe dos seus. Fechados e afastados da própria vida. Esta não é a forma de
escolher o líder dos Maris. Já há muito que percebera que era um erro. Tive noção disso
quando eu própria nunca pude fazer mais do que guardar o Cristal. Que eu não conseguia
chefiar os Maris nem mudar os seus costumes.
— Você… — Rowan conteve a respiração. Olhou como louco para o Jonn vigilante,
para Jiller, deitada imóvel e silenciosa no sofá.
Virou-se de novo para a Guardiã. O que compreendeu inundou-o numa maré
vermelha de fúria que neutralizou o medo e a dúvida.
— Foi você! — sibilou. — Foi você quem planejou tudo isto. Foi você quem deu o
Sono da Morte à minha mãe.
— Atreve-se a me acusar, a mim… — A voz era baixa e repleta de aviso. Mas
Rowan pouco se importou com isso.
— Sim, acuso-a — gritou. — Acabou de admitir que o veneno levou duas horas a
atuar. Isso significa que a mãe tomou o veneno quando chegou a esta Caverna. Mesmo
antes de ter conhecido os Candidatos. Antes de pôr o pé na Ilha.
Apontou para a Guardiã com uma mão enfaixada.
— Foi você a responsável, a pessoa que planejou isto tudo. Enganou-me a mim, aos
Candidatos e pôs em risco a vida da minha mãe! Apenas porque desejou estabelecer novos
testes para os quais ninguém estava preparado!
A Guardiã abriu os olhos e, por momentos, o Cristal brilhou com o antigo fogo verde.
— A Escolha tem de revelar a verdade — disse. — O Cristal fornece o
conhecimento, a experiência e o poder. Mas os cuidados e a astúcia são fornecidos pelo
Guardião. Este tem de ser capaz de resolver novos problemas, bem como os antigos. O
Guardião deve poder mudar tal como o mar muda, atrever-se a experimentar caminhos que
nunca foram trilhados. Só assim poderão os Maris sobreviver.
— Quase matou a minha mãe — disse Rowan ofegante.
— A morte de uma pessoa não é importante.
— E pôs tantas outras coisas em risco.
— Talvez não assim tanto. Mas confiei no Cristal, como sempre confiei, e ele disse-
me que tudo iria correr bem. Que você seria bem sucedido e que regressaria a tempo. Tive
de partir as correntes que nos ligam. Fi-lo na única forma que pude. Utilizei-te. A única
pessoa que eu sabia não ser igual às outras de Rin.
Colheram informações a seu respeito desde o dia em que nasceste.
Rowan fitou-a. Devia ter percebido que, se os Candidatos o conheciam, o mesmo se
aplicava à Guardiã. Ela, mais do que qualquer outro.
— A Escolha está concluída — disse a Guardiã com voz arrastada. — Indique a sua
escolha.
Rowan ergueu os olhos para os três Candidatos, atrás da cadeira da Guardiã.
Asha. Seaborn. Doss. Aprendera a admirá-los a todos. Todos se uniram a ele quando
enfrentou a Grande Serpente. E sabia agora que nenhum deles estivera a representar.
Seaborn era de fato corajoso e forte, para além de amar a vida, tal como Jonn. Fora
escolhido como Candidato dos Fisk por esse fato. Era invulgar para um Maris, mas
acreditaram que ele iria impressionar o Selecionador de Rin.
Asha era realmente dedicada às suas obrigações, honesta e prática, tal como Jiller.
Fora escolhida pelo clã dos Umbray por causa disso. Era invulgar para um Maris, mas
acreditaram que ela iria impressionar o Selecionador de Rin.
E Doss. Doss era uma simpatia. Preocupava-se com as coisas vivas e enfrentara a
morte, como o próprio Rowan. Fora escolhido pelo clã dos Pandellis por esse fato. Era
invulgar para um Maris, mas acreditaram que ele iria impressionar o Selecionador de Rin.
Todos os três Candidatos tinham ajudado Rowan a solucionar o enigma do antídoto
para o Sono da Morte. Cada um, a seu modo. Mas, qual deles demonstrara maiores
cuidados e astúcia, a disposição para experimentar novos procedimentos, que a Guardiã
dissera serem necessários aos Maris?
— Indique a sua escolha — disse a Guardiã fracamente. — Tem… tem… de indicar.
Fala!
O Cristal tremeluziu.
Ouviram-se passos apressados nas escadas. Através da cortina de água, irrompeu
Perlain.
— Velas. Avistamos velas — disse ofegante. — O horizonte está repleto delas. E
estão a aproximar-se. São os Zebak!

21
A ESCOLHA
Por que chegam agora? — gritou Asha. — Não faz sentido! Conseguem seguramente
ver a chama da Escolha. O tempo para atacar teria sido antes, quando o Cristal estava
fraco e a Escolha ainda por concluir.
— Viemos a saber que se tornaram ardilosos. Talvez tenham um plano sobre o qual
nada sabemos — afirmou Seaborn severamente. — Ou talvez contem que o Cristal possa
ainda falhar antes do novo Guardião se unir a ele.
— Rowan! — gritou Perlain. — Indique a sua Escolha. O Cristal enfraquece.
Rowan ouviu uma exclamação atrás dele e virou-se. Jonn estava inclinado sobre
Jiller. Ela tinha os olhos abertos. Sorria para ele.
— Tenho estado a dormir — murmurou Jiller. — Jonn, tive sonhos tão maravilhosos.
— Mas depois, franziu levemente o cenho. — Onde estou, afinal? Onde está Rowan?
Uma alegria infinita invadiu o coração de Rowan. Mas teve uma breve duração. A
mãe estava viva. Estava acordada e feliz. Mas os Zebak chegavam. Tinha de agir. Tinha de
nomear o novo Guardião e renovar a vida do Cristal, ou estariam perdidos.
Virou-se de novo para os Candidatos.
— A Guardiã disse-me que devia esforçar-me por encontrar cuidado, astúcia e a
disposição para experimentar coisas novas — afirmou, rapidamente. — Disse que o
Cristal fornecerá tudo o resto. Fitou os olhos ardentes de Asha.
— Você… você é boa e fará sempre aquilo que achar correto — afirmou. — Mas
não tem uma mente aberta. Agarra-se às regras e aos velhos costumes, vivendo apenas
segundo esses parâmetros. Por isso, embora a admire, não posso lhe escolher.
A expressão dela não se alterou, mas baixou a cabeça. Rowan voltou-se para
Seaborn.
— Você é corajoso e forte — disse. — E está disposto a experimentar o que é novo.
Mas age muitas vezes sob impulso, sem o cuidado e astúcia que a Guardiã procura. Por
isso, esperando que possamos sempre ser amigos, não lhe posso escolher.
Também Seaborn baixou a cabeça. Mas, ao fazê-lo, os seus olhos pareceram cintilar
com algo — algo muito semelhante a alívio. Rowan questionou-se sobre isso apenas por
um segundo. Não havia tempo para nada mais a não ser a Escolha.
Avançou para Doss e pousou-lhe uma mão no ombro. Entreolharam-se. Um olhar
longo e penetrante. Rezo para que esteja certo, pensou Rowan.
— Tem de proferir as palavras — lembrou Perlain suavemente.
Rowan engoliu em seco.
— O Selecionador fez a sua Escolha — proferiu. Sentiu o ombro de Doss ficar tenso
sob os seus dedos, — Que os outros Candidatos abandonem este local.
Doss permaneceu imóvel. O seu olhar era inexpressivo, como se não visse nada.
Com o rosto habitualmente calmo tenso, Perlain levou Asha e Seaborn através da
cortina de água e depois regressou.
O Cristal reluziu fracamente. Uma vez, duas vezes, três vezes. A Guardiã mexeu-se.
— As portas estão trancadas e não se voltarão a abrir até essa ser a vontade do novo
Guardião — exalou.
— Rápido. O sol não tardará a nascer.
— Doss dos Pandellis — disse Perlain rapidamente. — O Cristal.
Doss deslocou-se para a cadeira da Guardiã como que em sonho. Rigidamente,
estendeu as mãos na direção do suave brilho do Cristal. Rowan olhou com curiosidade
para os seus olhos inexpressivos.
Os olhos de alguém que já viu a Grande Serpente e que sobreviveu.
Está certo, disse Rowan para si. A minha escolha está correta. Doss possui tudo
aquilo que a Guardiã solicitou. E estava destinado a esta tarefa. Tal como Orin, viu a
Grande Serpente. E, depois disso, modificou-se.
No entanto, havia algo de errado. Rowan sentia-o.
A mão de Doss pairou sobre o Cristal.
— Una-se ao Cristal e a mim — murmurou a Guardiã.
Eu também vi a Grande Serpente, pensou Rowan subitamente. Tal como Asha e
Seaborn. Mas nós não estamos mudados. Por que estaria então Doss? O que lhe sucedera,
há um ano atrás?
Não me recordo de nada daquela noite… Eu estava mudado… Era como se algo
tivesse sido perdido… ou acrescido. Não sei qual dos casos.
O que teria acontecido a Doss durante essa longa noite, sob a lua cheia, longe da
costa? Sob a lua cheia…
— Espere! — exclamou Rowan. Agarrou na mão de Doss. A sua voz ecoou,
chocantemente alta, pela Caverna. Jonn e Jiller olharam para cima, surpreendidos, e
Perlain agarrou as costas da cadeira da Guardiã.
Lentamente, Doss virou-se. Olhou inexpressivamente, primeiro para Rowan, depois
para a mão que lhe prendia a sua.
— Doss, não pode ter visto a Grande Serpente há um ano atrás — exclamou Rowan.
— Rowan, isso não importa agora — gritou Perlain. — Por Orin, não compreende? A
Guardiã está a morrer. A sua vida está por um fio. A cerimônia já se iniciou.
Deve prosseguir. Os Zebak…
A boca de Doss abriu-se.
— O Selecionador fez a sua Escolha — disse, sem emotividade. — Que os outros
Candidatos abandonem este local.
Rowan tremia, mas, apesar de tudo, não largava a mão fria e de dedos unidos por
membrana.
— Neste mês, na lua cheia, a Grande Serpente está na Ilha a pôr os seus ovos.
Sabemos isso agora. Doss, não a pode ter visto no mar, tão distante da terra.
— Rowan! — gritou Jiller. — Deixe-o!
Jonn pôs-se de pé e, com duas passadas, aproximou-se de Rowan.
— Rowan, largue-lhe a mão — murmurou com intensidade. — Agora já nada
importa. Todas as perguntas podem ser respondidas mais tarde.
Mas Rowan sabia que as perguntas não podiam esperar.
— Doss, fale comigo! — rogou. — O que se passa com você? Conte-me o que
aconteceu naquela noite. O que te fez mudar? Não foi a Grande Serpente. O que foi?
— A Grande Serpente surgiu das profundezas — disse Doss. — Elevou-se acima de
mim. Os seus olhos eram dourados e repletos de segredos ancestrais.
Rowan ouvia, horrorizado. Doss utilizava precisamente as mesmas palavras que
proferira na Ilha. Até a voz era igual. Entoava, como que repetindo uma lição que
decorara.
E ele acredita nisso, pensou Rowan. Acredita nisso. Mas não é verdade!
— As escamas reluziam como fogo no pôr-do-sol — entoou Doss. — Mirou-me.
Soube que ia morrer.
— Não está falando de algo que tenha realmente visto! — exclamou Rowan. — É
algo que alguém lhe meteu na cabeça!
Foi invadido por um medo terrível.
— Doss, quem danificou o seu barco? — gritou. — Quem esperava por você no meio
do mar, para lá do horizonte? Quem te apanhou das águas negras e te guardou toda a noite,
mandando-o de volta apenas com uma recordação falsa do que se sucedera?
Mas ele sabia a resposta. E pela expressão aterrorizada no rosto de Perlain, percebeu
que o homem Maris também sabia. Havia apenas uma explicação possível.
Tornaram-se astutos…
— Foi capturado por um barco dos Zebak! — exclamou. — De alguma forma, os
Zebak obrigaram-lhe a ceder à vontade deles, Doss. Infiltraram ordens secretas no interior
da sua mente e revestiram-nas com a recordação falsa da Grande Serpente. Quando
regressou a Maris, as pessoas perceberam que estavas mudado, mas desconheciam os
verdadeiros motivos. Como haveriam de saber? Nem você sabia.
— É impossível — ouviu Jonn a murmurar para Jiller.
— Os treinadores do rapaz tê-lo-iam detectado. A Guardiã tê-lo-ia percebido.
— Não! — exclamou Rowan sem se virar. — Há um ano atrás, o poder da Guardiã
tinha já enfraquecido. E mais ninguém o poderia ter visto, porque parte do plano deve ter
sido que as ordens secretas só poderiam aflorar à superfície da mente de Doss quando
certas palavras fossem proferidas.
Fixou diretamente os olhos inexpressivos de Doss.
— Eu disse essas palavras há pouco, não disse? São sempre proferidas quando um
Guardião é escolhido. “O Selecionador fez a sua Escolha”.
Doss estremeceu, olhando para ele. Rowan sentiu um nó no estômago. Era horrível
ver o rosto familiar tão alterado.
— Eu vi e senti isso a acontecer, Doss. Na altura perguntei-me o que se passaria e
agora sei. Naquele momento, perdeu a sua vontade própria. Tornou-se um servo dos
Zebak. É por isso que as suas embarcações surgem agora. Avistaram a chama e
compreenderam que tinha chegado a altura. Estão à espera do seu sinal de que o Cristal, e
este território, é deles.
Perlain gemeu. Cobrira o rosto com as mãos e oscilava lentamente para a frente e
para trás.
— Perlain! — disse Rowan com autoridade. — Não desperdice tempo com
desesperos! Traga Seaborn e Asha de volta aqui!
Perlain abanou a cabeça.
— Rápido! — gritou Rowan. — Não entende?
Doss não pode ser o Guardião. Irá trair os Maris. Irá trair-nos a todos!
— Cuidado! — gritou Jiller.
Antes de qualquer outro, avistara a faca a reluzir na mão de Doss.
Com um clamor, Jonn saltou para a frente e agarrou na faca que mergulhava para o
coração da moribunda Guardiã. Debateu-se com Doss para o afastar e conteve-o. Doss
lutou por alguns momentos e depois, subitamente, cedeu. Permaneceu imóvel, segurado
por Jonn.
— O Selecionador fez a sua Escolha — murmurou. — Se a Escolha não for Doss dos
Pandellis, a Guardiã tem de morrer. O Cristal tem de morrer.
— Perlain! — gritou Rowan. — De que está à espera? Traga…
— As portas estão trancadas — respondeu Perlain. A voz estava inundada de
desespero. — Só se abrirão para o Guardião. E não conseguimos que a Guardiã recupere a
consciência. Não conseguimos contar com ela.
— Terá de ser você! — disse Jonn. — Você, Perlain. Terá de se unir com o Cristal.
Poderá não ser o que desejava. Mas é melhor tê-lo como Guardião do que ninguém.
Perlain abanou de novo a cabeça.
— Não posso — afirmou. — Não sou conhecido pelo Cristal. Se lhe tocar, morrerei.
— Então, o que vamos fazer? — exclamou Rowan, desesperado. — Perlain, o que
vamos fazer?
Perlain olhou para ele.
— Só há uma coisa que podemos fazer — respondeu. — Para além de Doss dos
Pandellis, só há aqui uma pessoa que pode tocar no Cristal e sobreviver. Apenas uma
pessoa que se pode unir a ele, tornando-se no Guardião dos Maris. E essa pessoa é você.
22
TERROR
Não! — A palavra explodiu da boca de Rowan e ecoou na Caverna. Afastou-se da
cadeira da Guardiã, do Cristal enfraquecido, abanando incessantemente a cabeça.
Nunca mais voltar a ver a sua casa. Nunca mais voltar a ver o céu, as colinas
verdejantes, o riacho, a neve na Montanha. Nunca mais voltar a sentir o ar fresco e doce
no rosto nem os sons dos pássaros. Nunca mais. Passar o resto da vida abaixo do solo,
tragado, dissolvido, no grande mistério do Cristal.
— Não — repetiu. — Não!
— Tem de fazê-lo — disse Perlain.
— Não pertenço aos Maris — exclamou Rowan.
— Não posso…
— Pode — afirmou Perlain. — Se não o fizer, estamos perdidos. — Estendeu as
mãos para Jiller. — Explique-lhe — gritou.
Rowan virou-se para a mãe. As lágrimas corriam-lhe pela face.
— Tem de fazê-lo. É o único — murmurou ela. — O Cristal já não me conhece.
Apenas a você. Apenas a você…
— Depressa! — silvou Perlain. — Não há tempo.
Rowan voltou-se para Jonn, que continuava a agarrar em Doss, silencioso. A boca de
Jonn revelava uma linha severa. Os seus olhos estavam repletos de dor ao anuir.
Rowan não tinha para onde se virar, a não ser para o seu próprio coração. E sabia que
não lhe restava alternativa. Se abdicasse das coisas que amava, talvez os pudesse salvar.
Se recusasse abdicar delas, iria quase seguramente destruí-los.
Endireitou os ombros e encaminhou-se para a Guardiã. O Cristal era como uma pedra
no regaço dela. Detectava-se apenas um brilho fraquíssimo no seu núcleo, iluminando-lhe
as mãos com uma luz verde.
Rowan colocou as mãos sobre as dela. A Guardiã abriu os olhos.
— Você… — suspirou ela. — Porquê?
— Não há mais ninguém — respondeu Rowan suavemente. Atrás dele, ouviu o
soluçar baixo de Jiller.
A Guardiã cerrou de novo os olhos. Estava para lá da surpresa e perguntas. Mas os
seus lábios moveram-se. Rowan baixou-se para ouvir o que ela dizia.
— Eu digo as palavras mas ninguém acredita. Nada se pode opor ao poder do Cristal
— sussurrou a voz ao seu ouvido. — Sente… e… compreende.
E pareceu que Rowan estava a precipitar-se — lentamente, lentamente, flutuando
através das eras do tempo e recordações em turbilhão. Já não conseguia ver a Caverna. Já
não escutava a voz da mãe. Sentiu-se a abandonar-se. Entregando-se ao poder, não com
tristeza mas com uma profunda alegria.
E afundou-se mais… cada vez mais, sabendo que estava a tornar-se parte de algo
superior a ele. Era como um mar profundo, extenso, velho como o tempo.
Nada se conseguia opor a isso. Nenhum amor por um clã, por uma família. Sem laços
ou exigências de outros.
Tudo desaparecia. O seu próprio ser — os seus amores, receios, esperanças, erros —
tudo o que o ligava à sua vida sumia-se dele. Resistiu um pouco, não desejando abrir mão
deles.
Sente… e… compreende.
Teria a Guardiã falado de novo? Ou seriam as suas recordações?
As mãos sob as dele estremeceram.
Nada se pode opor ao poder do Cristal…
Foi então que Rowan compreendeu. Compreendia, por fim.
Ajude-me, Guardiã, disse, mentalmente. Ajude-me a cumprir o meu dever.
Sentiu uma vibração de poder. E depois gritava alto. Puxava uma mão do Cristal,
inclinando-se para trás e estendia a outra para a figura imóvel e pálida de Doss.
— Rowan! — Como que em sonho, ouviu o grito da mãe. Mas sabia o que tinha que
fazer.
Agarrou na mão de Doss e arrastou-o para longe de Jonn. Sentiu o forte poder
curativo passando dele para Doss como um rio correndo para o mar.
Depois, no limite das suas forças, puxou Doss para a frente. Conduziu a pequena mão
de Doss sobre as da Guardiã e retirou as suas.
A separação atingiu-o como um golpe. Cambaleou para longe da cadeira e caiu de
joelhos no solo. O seu peito estava oprimido com a dor súbita de solidão e perda.
As lágrimas cegavam-no.
Percebeu que a Caverna ecoava com sons.
— O que fez? — gritava Perlain em pânico.
— Rowan! Rowan! — bradava Jiller.
Tentou falar, mas as palavras sufocavam-lhe a garganta. Afastou-se engatinhando da
luz estonteante. O Cristal reluzia, cada vez com maior intensidade. Estava vivo de fogo,
cintilando com todas as cores da terra, mar e céu. Cor e luz encheram o ar, iluminava as
paredes da Caverna como arco-íris…
E, depois, tudo terminou. O pequeno corpo dobrado da velha Guardiã permanecia
como uma casca vazia na cadeira. Um novo Guardião olhava para eles. Os seus olhos
eram os olhos profundos e solenes de Doss dos Pandellis. Mas era um Doss mais perfilado
e alto. As suas roupas já não eram azuis, mas de nenhuma cor e de todas as cores em
simultâneo, como água reluzente. E, nas suas mãos, o Cristal brilhava e ardia como uma
estrela.
Perlain retrocedeu e fez uma vênia.
— Saúdo-lhe, Guardião do Cristal — murmurou.
O seu rosto estava tenso de terror.
— O sol está a nascer — disse o Guardião. Voltou-se para Rowan. — Venha comigo,
lá para cima para a luz.
Rowan e os outros seguiram em silêncio enquanto ele passava pela cortina de água,
subia as escadas e atravessava a enorme sala vazia por cima. Sem um som, as portas
abriram-se.
O espaço no exterior estava apinhado de pessoas. Pandellis em azul. Umbray em
prata. Fisk em verde. Todos nos seus clãs separados. Todos miravam o mar, na direção do
sol que nascia.
O Guardião saiu para o ar livre, o Cristal reluzente nas mãos. Ouviu-se uma
exclamação coletiva. Uma exclamação de boas-vindas, alívio e alegria, enquanto as
pessoas o saudavam e apontavam para o mar.
Lentamente, o Guardião virou-se e olhou. O horizonte estava picotado com velas dos
Zebak. Rowan sentiu um arrepio de medo.
O Guardião elevou o Cristal bem alto no ar. Brilhou como um farol no sol nascente.
As exclamações de júbilo das pessoas transformaram-se em gemidos de medo quando as
velas avançaram, como que em resposta a um sinal.
— Ele assinalou-lhes para avançarem. Estamos perdidos — murmurou Perlain.
O Guardião ficou a observar a frota dos Zebak avançarem para eles, impulsionados
pelo vento. Não fez qualquer gesto ou sinal.
Rowan sentiu um toque no braço.
— Leve a sua mãe — murmurou-lhe Jonn ao ouvido. — Infiltre-se por entre as
pessoas. Regresse o mais rápido possível a Rin.
— Não vou te deixar, Jonn — disse Jiller, ouvindo.
— Tem de fazê-lo — respondeu ele, severamente. — Alguém tem de avisar a nossa
gente, para não serem apanhados desprevenidos.
— Então Rowan irá sozinho — disse ela. — Estou ainda demasiado fraca para viajar.
Iria retardá-lo.
— Jiller, tem de ir!
— Não vou.
O povo Maris estava tão silencioso como a morte. Todos os olhos se fixavam no
Guardião. Aguardando o seu sinal. Aguardando a ordem que os conduziria à batalha.
Mas o Guardião não se moveu.
Fui eu a causa disto, pensou Rowan. E, no seu desespero, pensou em Estrela,
trancada no estábulo. Sem poder fugir ou defender-se. Aguardando ser abatida por mãos
cruéis.
Correu para junto do Guardião.
— Doss… — começou. Mas as palavras morreram na sua boca quando o Guardião se
voltou para ele.
— O Doss dos Pandellis já não existe, Rowan de Rin — afirmou o Guardião. — Sou
o Guardião do Cristal.
— Pensei… — começou Rowan de novo. E, mais uma vez, calou-se.
— Estava certo — disse o Guardião suavemente, como se Rowan tivesse vocalizado
os seus pensamentos.
— Aguarde.
As primeiras embarcações dos Zebak estavam agora tão próximas que Rowan
conseguia avistar os rostos cruéis e triunfantes dos guerreiros sobre o convés. Conseguia
avistar a linha negra que marcava cada testa, do nariz aos cabelos. Conseguia ver o metal
reluzente das suas armas.
O Guardião ergueu os braços.
— Agora! — disse, tranquilamente. O Cristal reluziu, cegando.
Nesse instante, grandes nuvens negras varreram o horizonte. Formavam-se grossas e
negras pelo céu, empurradas por um vento gelado, toldando o sol, toldando o céu pálido.
Todo o mundo enegreceu, tornando-se escuro como a noite.
— O que se passa? — gritou Jonn. Agarrou no braço de Rowan. — Rowan…
O Guardião elevou ainda mais o Cristal. Ouviu-se o ribombar de trovoadas e
relâmpagos rasgaram o céu, caindo como lanças nas águas límpidas.
As pessoas gritaram. No mar, as embarcações dos Zebak, muito próximas umas das
outras, oscilaram e balançaram. Mastros partiram-se e velas rasgaram-se enquanto o vento
rugia e os relâmpagos cintilavam em volta.
Seguiu-se um agitar e borbulhar no mar e as águas cobriram-se de espuma quando as
serpentes das profundezas subiram à superfície, irritadas por seu descanso ter sido
perturbado.
Sibilaram e lançaram-se contra os grandes barcos de guerra, os quais, perante a sua
raiva, eram tão frágeis quanto folhas na corrente de um riacho. A madeira foi partida e
despedaçada, armas inúteis chocaram e caíram na espuma e os gritos aterrorizados dos
Zebak condenados perderam-se no rugir do vento.
Rowan desviou o olhar. Tentou recordar-se que aqueles eram os inimigos do seu
povo. Que tinham chegado para trazer sofrimento e morte àqueles que ele amava. Apesar
de tudo, não conseguia assistir à sua destruição.
Mas o Guardião do Cristal presenciou tudo. E só quando tudo terminou é que
acalmou a tempestade.

23
DESPEDIDAS
Iam voltar a casa. Partindo com as bênçãos dos Maris, com muitas ofertas, com
promessas de regressarem em breve. Permaneceram por mais dois dias em Maris,
concedendo algum tempo a Jiller e a Rowan para descansar. Mas agora, todos ansiavam
partir.
Quando tudo já estava preparado para a viagem, Rowan deixou a casa segura e
seguiu sozinho para a Caverna do Cristal. As portas abriram-se para ele. Caminhou
lentamente para a vazia sala circular superior e desceu as escadas. Bem-vindo.
A Caverna estava banhada numa luz gloriosa. O Guardião estava sentado na sua
cadeira, rodeado de arco-íris.
— Vim despedir-me — disse Rowan.
— Não é uma despedida. Sabe que sempre estarei com você, Rowan de Rin — disse
o Guardião. — Tal como você estará comigo.
Rowan anuiu. Não conversara sobre isto com ninguém, nem mesmo com Jiller. Mas,
nos últimos dias, percebera lentamente a verdade. No momento em que o poder do Cristal
fluíra por ele, o Doss dos Pandellis mudara para sempre.
O Guardião sorriu.
— Tenho memórias de Rin, embora nunca a tenha visto — disse. — Vejo as
margaridas-selvagens florescendo amarelas nas colinas. Ouço os bukshah a mugir nos
campos. Sinto terra macia nas mãos e sinto prazer com as pequenas coisas a crescer.
— E eu sinto-me a deslizar pela água como um peixe — disse Rowan. — Sinto areia
fresca e úmida sob os pés. Remendo redes à luz de candeeiros de petróleo à noite. Ouço
aves marinhas a gritar e vejo peixes voadores a roçarem as ondas sob um céu azul escuro.
— Compreendemo-nos então um ao outro, o que nunca aconteceu entre duas pessoas
de Maris e de Rin — disse o Guardião. — E, quando te digo que, devido ao que aconteceu
na manhã em que nomeou a sua Escolha, a sua família não voltará a sofrer às mãos dos
Maris, acreditará em mim.
— Sim — respondeu Rowan. — Acredito.
— Satisfazendo as minhas ordens, Perlain dos Pandellis contou às pessoas o que
aconteceu entre nós — disse o Guardião. — Contou-lhes que era um inimigo secreto dos
Maris, que me encontrava sob o domínio dos Zebak, antes de me unir ao Cristal. Mas eles
viram com os próprios olhos o que aconteceu quando os Zebak chegaram.
Sorriu.
— Pelo que agora já compreendem. Pouco importa qual o clã onde tem origem o
Guardião. Nada se pode opor ao poder do Cristal. Nem o amor familiar, nem os amigos,
nem o lar. Nem a lealdade a um clã ou a um país. Nem mesmo os jogos mentais de um
inimigo.
— Só o entendi quando senti eu próprio o poder — murmurou Rowan. — Só então
percebi que nenhum Guardião podia trair o povo Maris. Virou-se para se ir embora.
— Adeus, Doss — afirmou.
— Adeus, meu amigo — disse o Guardião do Cristal.
* * *
Muitas pessoas juntaram-se nos limites de Maris para se despedirem deles. Asha,
Seaborn e Perlain estavam entre eles.
— Adeus, Selecionador de Rin. — Asha apertou gravemente a mão a Rowan. —
Eu… estou-lhe grata.
Rowan pestanejou, não sabendo o que dizer.
— Se eu tivesse sido a Guardiã, teria ordenado que os nossos barcos se fizessem ao
mar quando os Zebak atacaram. Porque foi isso que sempre foi feito. Teríamos lutado,
como sempre lutamos. Podíamos ter ganho, pelo poder do Cristal, mas muitos de nós
teriam morrido. Fez a escolha correta em relação a Doss dos Pandellis. A mente dele é
nova e fresca. Será como os Guardiões do passado. Utilizando o Cristal, aumentando o seu
poder, em vez de apenas retirar dele. Por isso, agradeço-o.
Retrocedeu, grave e calma como sempre.
Seguiu-se Seaborn. Com ele estava uma mulher alta vestida no verde dos Fisk, o
rosto já não tenso e sério, mas cheio de luz e alegria. Rowan reconheceu-a como uma das
três que o acompanhou à Caverna. A mulher que os observara da costa, quando se
encontravam na Ilha.
— Esta é Imlay. Vamos casar no Verão, quando os meus ferimentos tiverem sarado
— informou-o Seaborn. — Talvez queira vir ao nosso casamento. Gostaríamos de contar
com a sua presença, meu amigo. Sobretudo com a sua.
Rowan anuiu, sorrindo. Compreendia finalmente a expressão de alívio no rosto de
Seaborn quando lhe foi dito que não seria o Guardião do Cristal. Seaborn era um homem
forte e corajoso. Estava disposto a cumprir o seu dever. Esforçara-se por ser aquilo que o
seu clã desejara. Mas, tendo falhado, estava livre para conduzir a sua vida como sempre
ansiara. Estava livre para respirar o ar fresco, para ver o céu, para casar com a mulher que
amava.
Perlain foi o último a despedir-se deles. Apertou a mão a Jiller, a Jonn e a Rowan.
Mas Rowan reparou, com um sorriso secreto, que se mantinha afastado de Estrela.
— Poderá desejar não voltar a ver as costas de Maris, Rowan — disse Perlain, ao seu
jeito formal. — Mas deve vir. A minha casa será sempre a sua.
— Eu voltarei — respondeu Rowan. Olhou para Seaborn e Imlay, que observavam
afastados. — Nem que seja para um casamento no Verão — acrescentou.
Perlain sorriu e fez uma vênia.
Rowan, Jonn, Jiller e Estrela viraram então as costas ao mar e começaram a andar.
Caminharam durante muitos minutos sem trocar uma só palavra.
O rio serpenteava até se perder de vista, perdendo-se nas suaves colinas verdes.
Tinham uma extensa viagem diante deles, mas nenhum se queixava.
Estavam em segurança. Estavam juntos. E cada passo aproximava-os mais de casa.
Table of Contents
ÍNDICE
A MENSAGEM
O CRISTAL DOS MARIS
O SELECIONADOR
A VIAGEM
5
PERIGO
VENENO
O GUARDIÃO
OS CANDIDATOS
O ENIGMA
10
A ILHA
11
O INÍCIO
12
LONGE DA VISTA
13
ÁGUA DE PRATA
14
LAGOA FAMINTA
15
O PLANO
16
O LUTADOR
17
O MAIS TEMÍVEL MEDO
18
A LUA DA ESCOLHA
19
UMA GOTA
20
O DISSIMULADO
21
A ESCOLHA
22
TERROR
23
DESPEDIDAS

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