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AFINAL, O QUE É ARTESANATO ?

Raul
Córdula

Para quem não viveu no Brasil de duas décadas atrás, artesanato nada
mais é do que bugigangas produzidas por hippies tardios, vendidas como
curiosidades nas feiras turísticas, calçadas do down town, estações rodoviárias
e aeroportos. A palavra artesanato saiu do nosso repertório econômico, social e
cultural desde que a aventura neoliberal passou a assolar nossas vidas.
Desde então o desprezo para com a cultura do povo tem sido
perversamente estratégico desvalorizando a identidade cultural, fator
complicador nos negócios globalizados que exigem produtos enquadrados em
normas dirigidas a um tipo de mercado que se caracteriza por "zero
expressão", planejado para não provocar nenhum esforço mental diante do ato
de comprar, e orientado na direção do baixo preço, facilitando sua
massificação.
Essa estratégia introduz o conceito de que, do ponto de vista do produto,
o uso é mais importante do que a beleza e muito mais importante do que a
tradição cultural. Isso significa que um recipiente de plástico será, em tese,
melhor do que um de cerâmica, pois é mais barato e substitui grande parte das
funções do outro e, ainda mais, sua fabricação e distribuição no mercado
atende aos acordos estabelecidos em função da expansão do sistema
financeiro, como conhecemos hoje, fortemente excludente do ponto de vista
social e injusto no âmbito das relações de trabalho. Um sistema que não leva
em conta as diferenças entre povos e nações.
Qualquer economista de neoliberal, porém, dirá que o artesanato, como
meio de produção pré-industrial, é uma atividade economicamente inviável, e
desaconselhará sua inclusão nos projetos de desenvolvimento. São, portanto,
incapazes de imaginar o significado da relação natural entre o homem e a terra.
Jamais poderão supor que a vida reside também no ato de arar, plantar, colher
e fazer o pão, e que a felicidade reside, para muitos, em apanhar o barro,
amassar, modelar, pintar, cozer e utilizar o utensílio que surgir da argila como
produto de sua mão, da dignidade do seu trabalho e da pureza de sua alma.
Todo produto artesanal comporta também um valor agregado insubstituível: a
marca da mão do homem.
Eis o que é o artesanato: obra material do artesão, que em sua origem é arte
popular; fruto do trabalho realizado através das mãos na confecção de objetos
destinados ao conforto do homem, carregados de expressões da cultura, onde
a máquina, se utilizada, será apenas ferramenta, nunca fator determinante para
sua existência.
O artesanato é instrumento de melhoria e distribuição justa da renda de
comunidades pobres, como fruto do trabalho autônomo e vivo, pois seu produto
pertence ao artesão que o produziu, diferente do trabalho enterrado nas
fábricas pelas mãos dos operários. Contrapõe-se, portanto, ao sistema de
produção industrial.
Mesmo marginalizado pelos programas de desenvolvimento regionais e
nacionais o artesanato continua sendo no Brasil uma atividade cultural de
grande importância econômica. Por sua informalidade escapa aos planejadores
da economia oficial, tendo como área de atuação as casas dos artesãos, a
periferia das grandes cidades, longe dos sistemas urbanos e das regiões fabris,
e principalmente no mundo rural.

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Os números são eloqüentes: a revista Exportar & GERÊNCIA, dedicada à
pequena empresa exportadora, no seu número de maio de 1999 anunciou que
o mercado internacional está de olho no nosso artesanato. Apresenta a
seguinte e surpreendente informação: estima-se que o artesanato brasileiro
movimente três bilhões de dólares, envolvendo oito milhões e quinhentas mil
pessoas!
A tradição reside tanto na expressão que os objetos transmitem, como
na maneira pela qual são feitos. Um pão francês, por exemplo. Uma
Boulangerie da Rue des Les Gravilliers, em Paris, que ostenta um brasão do
século 18, faz o mesmo pão de nozes que alimentava à soldadesca de
Napoleão, embora suas dependências permaneçam as mesmas, uma área de
não mais do que 50m2. Aquele pão de nozes, assim como a maior parte da
produção do vinho Francês, o papel de aquarela D'arche que é feito da mesma
maneira há 6 séculos, as rendas belgas, irlandesas, iugoslavas portuguesas,
brasileiras, a cerâmica não industrial praticada em todo o mundo, a cachaça de
Brejo de Areia, na Paraíba, ou de Minas Gerais, a carne de sol do Serido, as
charqueadas, a comida de Santo da Bahia, a doçaria brasileira, os queijos do
Sertão, os mosaicos, os objetos feitos de marchetaria, marcenaria, carpintaria,
funilaria, cantaria, tecelagem manual, tecelagem de redes de dormir, trançados
de palha, trançados de couro, papel machê, brinquedos populares, bruxas de
pano, cestaria, peleteria, ourivesaria, engaste de pedras preciosas, lapidação,
forja, fundição, e tantas outros tipos de objetos que quase não se pode nomear,
são manifestações do artesanato.
O conceito de "arte popular", no entanto, não vigora em todo o mundo.
Nas megalópoles como Nova Yorque, São Paulo, São Francisco, Londres,
Tóquio e mesmo em cidades menores, mas cosmopolitas, há o conceito de
"artesanato urbano", onde o artífice alia as técnicas tradicionais aos estilos da
época. Exemplo disso são os ornatos da arquitetura e os utensílios da casa,
desde a antigüidade clássica, passando pelo renascimento, até agora. Grandes
períodos do artesanato foram a arte nouveau e a art deco diante produção de
ornamentos e utensílios portadores dos estilos correspondentes de autoria de
artistas/artesão como o vidreiro Galé e o joalheiro Lalic, por exemplo. Neste
período um fenomenal artista, arquiteto e artesão proporcionou à humanidade
um dos seus tesouros modernos: trata-se de Gaudi, que além de criar e
projetar, executou ornatos e mobiliários utilizando materiais diversos, desde
cacos de azulejos na forma de mosaicos, à cerâmica de revestimento,
ladrilhos, entalhes em madeira, ferros forjados, vidros, metais diversos, pedras
e relevos em reboco. Gaudi aliou, com uma maestria sem par, o artesanato e o
material industrial, combinando-os com total harmonia.
A utilização das técnicas artesanais por Gaudi, de certa forma,
determinou o "artesanato contemporâneo", consolidado pelo advento do
"estilo", isto é, a maneira de época. A Bau Haus, escola alemã que implantou
no mundo o conceito de design moderno, fechada pelo nazismo, mas depois
reabilitada, com outro conceito embora, como Escola de Ulm (Hokschülle Für
Gestautung) também foi responsável pelo "artesanato contemporâneo" pois
nem tudo que é desenhado dentro de uma estética atual pode ser destinado a
produção por meio industrial. O mobiliário, a poteria, a tecelagem e a joalharia,
por exemplo, são atividades tradicionais, mas constantes do artesanato
contemporâneo, praticado maciçamente nos dias de hoje.

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O Brasil tem seus representantes neste setor, como o design de móveis
e arquiteto Sérgio Rodrigues, autor da Poltrona Mole, o arquiteto "artesanal"
Zanini, os joalheiros Caio Mourão, Márcio Mattar e Clementina Duarte, os
ceramistas Megume Yuasa, Francisco Brennand e Miguel dos Santos, o mestre
"jardineiro" Burle Marx, a tapeceira Ceça Colaço, entre outros.
A mão do Homem, no entanto, é o fator determinante do artesanato
tradicional ou contemporâneo. É conhecida a comparação do Visconde de
Eccles sobre este fato: “A excelência do objeto artesanal está no fato de que a
mão do homem além do poder de fazer, também tem o poder curar”.
Os objetos artesanais carregam a identidade e a tradição cultural de
seus autores, sejam tradicionais ou contemporâneos. A obra de arte aplicada
de Burle Marx (ele é autor do maior piso de mosaico português do mundo, o
calçadão do aterro de Copacabana) tem nítida expressão brasileira com a
influência ibérica do tema principal: as ondas da calçada de Copacabana que
são reprodução das existentes na beira do Tejo, em Lisboa. A Poltrona Mole, as
Jóias de Clementina, as casas de Zanini e as cerâmicas de Brennand, já
citadas, exaltam as florestas, as flores, os troncos das árvores e as clareiras do
Brasil.

ARTESANATO E ARTE

Não se pode confundir, no entanto, artesanato com arte. A arte como


conhecemos hoje tem a mesma origem do artesanato e, podemos dizer,
grande parcela de sua produção depende dele. Mas não significam mais a
mesma coisa. Sucede que, numa visão greco-clássica, arte e técnica vêm da
mesma raiz lingüística. A civilização Européia cuidou de dividir este conceito,
pois as obras dos "artistas" ou pendiam para um ideal de perfeição, desprovido
de alma embora, ou para o êxtase estético, sem muito compromisso com a
maneira de fazer. Aparecem aí dois sentidos opostos de realização: pela
perfeição do trabalho, apolíneo (do deus Apolo, protetor do homem como ser
físico), ou pela qualidade do sentimento, dionisíaco (do deus Dioniso, ou Baco,
deus do vinho, mas também dos sentimentos e do êxtase). Esparta e Atenas
traduzem bem essa divisão de territórios, uma realizada através do ideal físico
do trabalho (apolíneo) e outra através do ideal filosófico (dionisíaco).
O artesão é aquele que sabe fazer, o artista aquele que cria. Um
depende do outro no momento em que a criação necessita de realização física,
a presença de uma obra de arte de pintura, por exemplo, somente é possível
se o artista utilizar o artesanato da pintura para dar à luz seus sentimentos. Em
todo artista que trabalha com as mãos existe um artesão. Nas comunidades de
artesãos como o Alto do Moura, em Caruaru geralmente existem "Mestres
Artesãos". É o caso de Vitalino, Zé Caboclo, Manoel Eudócio e Galdino.
Vitalino, Caboclo e Eudócio criaram modelos, "protótipos" de figuras ou grupos
que foram multiplicados pelos seus seguidores. O caso mais notável é mesmo
o de Vitalino que "desenhou" uma verdadeira sociologia do Agreste, desde o
boi isolado, simbólico, quase rupestre, até o rebanho, a caça, a retirada da
seca, as cenas de seca e de fartura, as cenas da vila do Alto do Moura, a vida
comum, o dia-a-dia, as atividades domésticas, as profissões, os casos trágicos
e humorísticos. Na verdade todos os artesãos do Moura acrescentam,
eventualmente, alguma cena a este painel sociológico que o Mestre Vitalino
iniciou. O caso de Galdino é diferente, ele é um artista que trabalha com a

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cerâmica e que absorveu a maneira de trabalhar dos artesãos do Moura,
utilizando o material, a forma de trata-lo e queima-lo para expressar seu
universo fantástico de poeta, cantador e escultor.
É comum à atividade artesanal a repetição, a tranqüilidade, a paciência, a
harmonia e a paz, como acontece no Alto do Moura, em Tracunhaem, em
comunidades de louceiras em todo interior, nos grupos de bordadeiras,
rendeiras e tecelões.
O artesanato tradicional e popular é uma atividade pacífica, enquanto que a
arte não necessita de ser. O artesanato é socializante, pois é possível, e
desejável, que ele se organize em grupos, associações ou cooperativas pois
sua vida econômica depende, em parte, de sua capacidade de organização
coletiva, da solidariedade, da boa divisão de trabalho e de lucro.
A convivência do artesanato com a agricultura é perfeito, pode-se dizer
que ele é uma atividade sazonal, pois existe nas entressafras, atende aos
momentos de falta de colheita. Na pesca o artesanato da rede subsidia o
pescador da sua "arma de guerra", mas a mulher do pescador também faz a
renda de praia (filé, labirinto, renda de bilro). Diz-se que "onde há rede há
renda", e quando a rede não traz o peixe, a renda põe o peixe na mesa.

ARTESANATO, EMPREGO E TRABALHO

Tratado no Brasil como atividade marginal, desde que as doutrinas que


privilegiam o mercado como única atividade humana respeitável são tidas
como vitoriosas, o artesanato resiste, aos trancos e barrancos, mas resiste. A
revista Exportar & GERÊNCIA, dedicada à pequena empresa exportadora, no
seu número de maio de 1999, anuncia que o mercado internacional está de
olho nosso artesanato. No artigo Espaço aberto para o artesanato estão
informações surpreendentes para quem não conhece as dimensões dessa
atividade: estima-se que o artesanato brasileiro movimenta três bilhões de
dólares, envolvendo oito milhões e quinhentas mil pessoas.
Estes números surpreenderão ainda mais a quem acredita que o
artesanato significa apenas a parafernália de bugigangas dos famigerados
"mercados de artesanato" que assolam, em nome do turismo, nossas cidades
de norte a sul. É até possível que neles se achem alguns produtos de boa
qualidade, mas encontra-los depende de sorte. O comerciante de artesanato
destes mercados, os intermediários dos artesãos com raríssimas e honrosas
exceções, tem o interesse único do lucro, para tanto as qualidades sutis do
bom artesanato tornam-se fatores complicadores diante da guerra do mercado.
No México chamam um determinado tipo de artesanato voltado para o
mercado turístico de artesanato de aeroporto. Nada mais indigno para o
artesão daquele país, altamente politizado e orgulhoso de suas origens
culturais, do que ser comparado com quem produz estes souvenirs para
turistas desavisados. Este tipo de produto, no México, vem da periferia da sua
enorme capital, fruto da exploração de comerciantes inescrupulosos,
proprietários de "fábricas de artesanato", que utilizam apenas a mão de obra do
artesão como se ele fosse um operário, não valorizando a autoria do produto e
recusando a liberdade inerente ao seu sistema de trabalho, fator que diferencia
a produção do artesão, como classe social, da produção do operário.
No Brasil temos visto dois tipos de política em nome do desenvolvimento
do artesanato: a disseminação de mercados turísticos de artesanato e a

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tentativa de inserir o artesão no mercado formal de trabalho. Ambas as ações
são devastadoras, ambas tiram do artesão a autonomia e a força de sua
atividade, drenam sua economia e fazem o artesão desacreditar do seu futuro.
O México, no entanto, é um país que cultiva o artesanato do seu povo, rural e
urbano, com orgulho e dignidade, e a produção artesanal faz parte do
planejamento nacional.
Proletarizar o artesão é um erro social crasso, trata-se de inverter
qualquer possibilidade de desenvolvimento da atividade artesanal. Em nome de
uma pretensa segurança social - que a prática afirma não existir - sugere-se
que o artesão formalize sua relação de trabalho com o Estado, solicita-se que
ele torne-se um cidadão possuidor de uma carteira de trabalho, que pague
seus impostos para ter seus direitos civis, assim por diante... Muito que bem,
todo cidadão pode e deve estar ligado formalmente ao Estado, mas isto não
significa que ele tenha que sofrer as conseqüências deste vínculo. Não
significa, por exemplo, que ele aceite possuir a obrigação de contribuir sem ter
de onde tirar esta contribuição, de pagar impostos sem ter benefícios, de
apresentar o fruto do seu trabalho sem ter crédito para financiar os insumos
básicos de sua produção.
A formalização profissional é própria e exata para a atividade operária ou
para quem tem de depender de emprego. Os meios e os modos que uma
indústria possui para estabelecer um contrato de trabalho seja ou não justo,
passam pela formalização da situação civil do operário. Aí devem estar
embutidos os direitos e os deveres de ambas as partes. Mas um artesão não é
um operário, ao contrário, seu regime de trabalho, geralmente doméstico e
familiar, é incompatível com os horários e as metas de produção,
especialização, visão fragmentada do produto, e outras características do
trabalho operário.
O artesão é dono do seu tempo, do seu espaço e dos resultados de
seus empreendimentos, incluindo os frutos do seu trabalho. Ele faz seu horário,
determina sua produção e seus meios para alcançar as metas que,
eventualmente, impõe a si mesmo. O artesão tem uma visão completa do seu
produto, não participa apenas de um detalhe ou uma parte do produto final,
como acontece com o operário, e sendo assim ele pode perfeitamente projetar
sua produção e seus lucros. A questão do artesão é a liberdade, ele pode até
mesmo utilizar seu trabalho em dois tempos, um para uma atividade operária
ou camponesa, outro para o seu artesanato.
O operário, no entanto, necessita ser empregado para poder trabalhar, o
artesão se auto-emprega. O operariado existe em função de uma classe
patronal que enriquece com o trabalho cativo, pois a riqueza do empresariado
industrial provém do trabalho que o operário enterra na fábrica, que é
transformado em capital para o patrão. O artesão, ao contrário, pode ser um
trabalhador livre, dono do seu trabalho e de seus frutos. O artesão capitaliza o
objeto que produz, transforma-os em estoque, capital mobilizado, riqueza
potencial.
Não é fundamental gerar emprego, mas gerar renda, fruto do trabalho
autônomo, livre, capaz de capitalizar aquele que trabalhou.
A atividade artesanal é socializante, comporta, e muito bem, o trabalho
em grupo. Pode tornar-se formalmente associativa, o que se constitui num fator
desejável. Uma associação de artesãos com caráter cooperativo pode
perfeitamente substituir, e com inúmeras vantagens, a figura do intermediário.

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Uma cooperativa artesanal, por exemplo, pode ser responsável pela produção
e pela comercialização do produto, envolvendo os detalhes de marketing,
embalagem, distribuição, representação e outras atividades inerentes ao
mercado. O artesão isolado, por sua vez, dependerá sempre de um
intermediário para vender seu produto. Um exemplo típico das conseqüências
desse intermédio foi relatado pela pesquisadora e colecionadora de brinquedos
populares Macao Góes. Ela conta que uma determinada artesã produtora de
"bruxas de pano" no Sertão da Paraíba fornece suas bonecas em sua casa por
oitenta centavos cada exemplar, no entanto elas são vendidas nas lojas da
capital por dez Reais. Sua relação com o intermediário é de tal maneira
dependente que este não lhe dá mais dinheiro, troca toda sua produção por
cestas básicas fornecidas mensalmente.
Além das vantagens comerciais a organização cooperativa conta com
parcerias desejáveis entre si, há hoje uma rede mundial de cooperativas
artesanais que formam uma considerável força de resistência. Ajustes de
produto como peso e dimensões, detalhes técnicos como queima cerâmica,
correções de design, embalagem e transporte, assistência jurídica para
créditos e exportação, tudo isto pode ser tratado com mais facilidade se o
artesão estiver organizado em um grupo que tenha como base o trabalho
solidário.

ARTESANATO E MERCADO
O mercado natural para o artesanato é o mercado interno.
Primeiramente a rua onde mora o artesão ou o grupo de artesãos, em seguida
o bairro, a cidade, o país. Depois, dependendo do tipo de produto, do design,
do material e outras características, o artesanato poderá ter características de
produto exportável.
O mercado do artesanato depende exclusivamente de promoção, de
elementos de comercialização exatamente iguais ao do marketing industrial. É
fundamental, porém, a projeção de uma política capaz de estabelecer a
concorrência entre produto artesanal e produto industrial, nisto pode residir a
diferença entre estes dois extremos e, quem sabe, a solução para um
verdadeiro caminho de desenvolvimento da produção nacional.
Temos informação sobre a China, em entrevista da senhora Lee Han,
Diretora de Artesanato do Ministério de Indústrias Ligeiras daquele país nos
anos 70, que indicava que o artesanato chinês estava a serviço de 800 milhões
de pessoas. Não desconhecemos as relações de consumo num país de 2
bilhões de habitantes, mas provavelmente a recente aceitação de indústrias
capitalistas não substituiu, e não substituirá pois não se trata deste enfoque, o
trabalho artesanal na China.
Vimos na cidade do México supermercados destinando, através de uma
lei municipal, 20% do seu espaço para o produto artesanal mexicano. Não para
o produto comprado pelo departamento de comercialização da empresa, isso
temos aqui, embora em menor proporção, mas oferecido pelo FONART, um
Fundo de Fomento Para o Artesanato que existia naquele país nos anos 70.
Desde os tempos que a SUDENE mantinha a ARTENE, que contava
com uma equipe heróica lutando por idéias como estas, não se vê em
Pernambuco ou em qualquer outro estado nordestino qualquer discussão sobre
a promoção do artesanato. Temos visto políticas assistencialistas, eleitoreiras,
paternalistas, shows para turistas, etc., mas não se fala em financiamento,

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recursos técnicos, estudos de embalagens e transporte, análise de produtos,
controle de qualidade, autonomia de produção e comercialização, proteção
contra a exploração intermediária, etc. Precisa-se de assistência sim, mas
assistência técnica, organizacional, contábil, desenvolvimentista.
Fato é que qualquer campanha de promoção do artesanato necessita
passar pelo orgulho que o povo tem pela sua cultura. A chamada "classe
média", tão espoliada em seus desejos de felicidade, é o mercado certo para o
produto artesanal que contenha, além das características da habilidade
manual, o valor agregado da “alma do povo”. Não é exatamente o que se
oferece quando, em nome da cultura, se promove festivais de dança e música
exógena, carnavais fora de tempo, etc. O objetivo principal é o lucro, é a venda
de cerveja, não das belas máscaras carnavalescas feitas por Julião e sua
família, é a venda de "mortalhas e abadás", não das belas fantasias
confeccionadas pelas costureiras de Olinda, e assim se sucedem as inversões
de valores sem que haja, na verdade, agentes governamentais responsáveis
por políticas ou orientações públicas realmente eficientes com a finalidade de
preservar, promover, manter viva a tradição e a voz do povo.
Apesar das dificuldades por que passou, a ARTENE teve uma função
excelente: detectar os bolsões de produção de artesanato para usar a
informação como subsídio numa política de implantação de novas indústrias.
Um dos princípios éticos dos criadores da SUDENE era a sensibilidade à
tradição e à vocação de cada lugar, de cada povo. Mas não teve sucesso, as
pressões políticas derrubaram esta tarefa ao ponto de a ARTENE, aquele digno
departamento, transformar-se numa mísera lojinha de artesanato tão medíocre
quanto qualquer uma da Casa da Cultura. É famoso o caso que investigamos
quando representamos o Conselho Mundial de Artesanato, da fábrica de
sandálias japonesa BESA, de Campina Grande, que produz milhões de
calçados/mês. Tudo bem, certamente deixa um belo imposto para a Paraíba, e
este caso não é único, haveremos de encontrar iguais em todo o Nordeste
assistido pela antiga SUDENE. Mas onde está toda a produção de calçado
popular que se nucleava em Campina Grande através dos seus
artesãos/sapateiros? E por gravidade, a produção de couro, os dois curtumes e
parte do rebanho existente, desapareceram? Para onde foram os artesãos?
Vender picolé no Meninão (Estádio de Futebol que homenageia o Prefeito da
cidade)? Quantos eram eles? Mil, dois mil, dez mil? Provavelmente dez mil
pessoas, diretas ou indiretamente, perderam suas fontes de lucro. O polo
calçadista de Franca, em São Paulo, certamente um dia foi um núcleo de
sapateiros igual ao que havia em Campina Grande antes da implantação da
BESA, mas lá não chegou nenhuma fábrica de sandálias de borracha sintética,
em vez disso investiram no desenvolvimento dos sapateiros-artesãos, que hoje
incorporam um dos melhores itens de exportação do Brasil.
Artesanato está ligado historicamente à indústria manufatureira o Norte
da Europa nos conta esta história eloqüentemente. Mas ele tem que evoluir
como artesanato, desenvolver-se como produto feito com a mão, que passará
a ser industrial se suas características permitirem. Concorrerá com a indústria
como o pão e o vinho francês, e sempre ganhará.

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AFINAL, O QUE É ARTESANATO ? (2)
Raul Córdula

Seria desnecessária uma definição de artesanato se o processo de


desenvolvimento social e econômico não tivesse esbarrado nas teses néo-
librerais dominantes há duas décadas no nosso universo político. Teses que
parecem desconhecer, e por isto parecem menosprezar, a importância da
cultura na construção do País.
Na verdade a atitude de desprezo para com a cultura é perversamente
estratégica, existe para afastar a possibilidade de uma identidade social que
poderia ser um fator complicador dos negócios globalizados que exigem
produtos equalizados, dentro das normas técnicas de um tipo de mercado que
se caracteriza por "zero expressão", arquitetado para não exigir nenhum
esforço intelectual diante do ato de consumir, e orientado no sentido do baixo
preço para facilitar sua massificação.
Esta estratégia introduz conceitos que modificam a natureza do
artesanato impondo a idéia de que, do ponto de vista do produto, o uso é mais
importante que a beleza, muito mais importante que a tradição cultural e
muitíssimo mais importante que o seu envolvimento sócio-econômico. Isso
significa que um recipiente de plástico será, em tese, melhor do que um de
cerâmica, pois é mais barato e substitui grande parte das funções do outro e,
ainda mais, sua fabricação e distribuição no mercado atende aos acordos que
as classes dominantes mantêm em função dos seus compromissos políticos
voltados para a expansão do sistema financeiro mundial, como conhecemos
hoje, profundamente excludente do ponto de vista social e injusto no âmbito
das relações de trabalho.
Qualquer economista recém-formado de orientação neoliberal dirá que o
artesanato, por conta de seu meio de produção "pré-industrial", é uma atividade
economicamente inviável, e desaconselhará sua inclusão nos projetos de
desenvolvimento. Trancados nos seus gabinetes os burocratas do sistema são
incapazes de imaginar o significado da relação natural entre o homem e a terra,
jamais poderão supor que a vida reside também no ato de arar, plantar, colher
e fazer o pão, e que a felicidade reside, para muitos, no ato de apanhar o barro,
amassar, modelar, cozer, pintar, cozer de novo e utilizar o pote, a panela e o
prato que surgiram da argila como produto de sua mão, da dignidade do seu
trabalho e da pureza de sua alma.
Eis o que é o artesanato: o fruto do trabalho, realizado através das mãos
na confecção de objetos destinados ao conforto do homem, onde a máquina,
se for utilizada, será apenas ferramenta, nunca um fator determinante para a
existência do objeto.
Os mexicanos são mais radicais. No documento que define as funções
do Fundo de Fomento Para o Artesanato - FONART, que existiu no Governo
Echeverría, está expresso que "artesanatos são as obras materiais do artesão
que em sua origem é arte popular". Consideram ainda que o artesanato que se
cultiva sob uma influência artística comercial ou estranha à tradição mexicana
não é objeto de interesse do Fundo.
O conceito de "arte popular", no entanto, não vigora em todo o mundo.
Nas megalópoles como New York, São Paulo, São Francisco, Londres, Tóquio
e mesmo em cidades menores mas cosmopolitas, há o conceito de "artesanato
urbano", ou onde o artífice alia as técnicas tradicionais aos estilos da época.

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Exemplo disso são os ornatos da arquitetura e os utensílios da casa, desde a
antigüidade clássica, passando pelo renascimento, até agora. Grandes
períodos do artesanato foram a arte nouveau e a art deco diante da grande
produção de ornamentos e utensílios portadores dos estilos correspondentes
de autoria de artistas/artesão como o vidreiro Galé e o joalheiro Lalic, por
exemplo. Neste período um fenomenal artista, arquiteto e artesão proporcionou
à humanidade um dos seus tesouros modernos: trata-se de Antonio Gaudí, que
além de criar e projetar, executou ornatos e mobiliários utilizando materiais
diversos, desde cacos de azulejos que usou como mosaicos, passando pela
cerâmica de revestimento, ladrilhos, entalhes em madeira, ferros forjar, vidros,
metais diversos, pedras e relevos em reboco. Gaudí aliou, com uma maestria
sem par, o artesanato e o material industrial, combinando-os com total
harmonia.
A utilização das técnicas artesanais por Gaudí, de certa forma,
determinou o "artesanato contemporâneo", consolidado pelo advento do
"estilo", isto é, a maneira de época. A Bau Haus, escola alemã que implantou
no mundo o conceito de design moderno, fechada pelo nazismo, mas depois
reabilitada, com outro conceito embora, como Escola de Ulm (Hokschülle Für
Gestautung) também foi responsável pelo "artesanato contemporâneo" pois
nem tudo que é desenhado dentro de uma estética atual pode ser destinado a
produção por meio industrial. O mobiliário, a poteria, a tecelagem e a joalharia,
por exemplo, são atividades constantes do artesanato contemporâneo
praticado maciçamente nos dias de hoje.
O Brasil tem seus representantes neste setor, como o design de móveis
e arquiteto Sérgio Rodrigues, autor da Poltrona Mole, o arquiteto "artesanal"
Zanini, os joalheiros Caio Mourão Márcio Mattar e Clementina Duarte, os
ceramistas Megume Yuasa, Francisco Brennand e Miguel dos Santos, o
"jardineiro" Burle Marx, a tapeceira Ceça Colaço, entre outros.
A mão do Homem, no entanto, é o fator determinante do artesanato
tradicional ou contemporâneo. É conhecida a comparação do Visconde de
Eccles sobre este fato: "A excelência do objeto artesanal está no fato de que a
mão do homem além do poder de fazer, também tem o poder curar.
Os objetos artesanais carregam a identidade e a tradição cultural de
seus autores, sejam tradicionais ou contemporâneos. A obra de arte aplicada
de Burle Marx (ele é autor do maior piso de mosaico português do mundo, o
calçadão do aterro de Copacabana) tem nítida expressão brasileira com a
influência ibérica do tema principal: as ondas da calçada de Copacabana que
são reprodução das existentes na beira do Rio Tejo, em Lisboa. A Poltrona
Mole de Sérgio Rodrigues, as Jóias de Clementina Duarte, as casas de Zanini
e as cerâmicas de Brennand exaltam a floresta, a flor, o tronco, a clareira deste
país Brasil.
A tradição reside tanto na expressão que os objetos transmitem como na
maneira pela qual são feitos. Uma determinada Boulangerie da Rue des Les
Gravilliers, em Paris, que ostenta um brasão do século 18, faz o mesmo pão de
nozes que alimentava à soldadesca de Napoleão, embora suas dependências
permaneçam as mesmas, uma área de não mais do que 50m2. Aquele pão de
nozes, assim como a maior parte da produção do vinho Francês, o papel de
aquarela D'arche que é feito da mesma maneira há 6 séculos, as rendas
belgas, irlandesas, iugoslavas portuguesas, brasileiras, a cerâmica não
industrial ainda praticada em todo o mundo, a cachaça de Brejo de Areia, na

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Paraíba, ou de Minas Gerais, a carne de sol do Seridó, as charqueadas, a
culinária de Santo da Bahia, a doçaria brasileira, os queijos do sertão, os
mosaicos portugueses das cidades como Recife, Rio, Salvador, Manaus e
Belém, os ladrilhos hidráulicos, os objetos feitos de marchetaria, marcenaria,
carpintaria, funilaria, cantaria, tecelagem manual, tecelagem de redes de
dormir, trançados de palha, trançados de couro, papel marche, brinquedos
populares, bruxas de pano, cestaria, peleteria, ourivesaria, engaste de pedras
preciosas, lapidação, forja, fundição, e tantos outros fazeres que quase não se
pode nomear, são manifestações do artesanato.
Não se pode confundir, no entanto, artesanato com arte. A arte como
conhecemos hoje tem a mesma origem do artesanato e, podemos dizer,
grande parcela de sua produção depende dele. Mas não significam mais a
mesma coisa. Sucede que, numa visão grego-clássica, arte e técnica vêm da
mesma raiz lingüística. A civilização Européia cuidou de dividir este conceito,
pois as obras dos "artistas" ou pendiam para um ideal de perfeição, desprovido
de alma embora, ou para o êxtase estético, sem muito compromisso com a
maneira de fazer. Aparecem aí dois sentidos opostos de realização: pela
perfeição do trabalho, apolíneo (do deus Apolo, protetor do homem como ser
físico), ou pela qualidade do sentimento, dionisíaco (do deus Dioniso, ou Baco,
deus do vinho, mas também dos sentimentos e do êxtase). Esparta e Atenas
traduzem bem esta divisão de territórios, uma realizada através do ideal físico
do trabalho (apolíneo) e outra através do ideal filosófico (dionisíaco).
O artesão é aquele que sabe fazer, o artista aquele que cria. Um
depende do outro no momento em que a criação necessita de realização física,
a presença de uma obra de arte de pintura, por exemplo, somente é possível
se o artista utilizar o artesanato da pintura para dar à luz seus sentimentos. Em
todo artista que trabalha com as mãos existe um artesão. Nas comunidades de
artesãos como o Alto do Moura, em Caruaru geralmente existem "Mestres
Artesãos". É o caso de Vitalino, Zé Caboclo, Manoel Eudócio e Galdino.
Vitalino, Caboclo e Eudócio criaram modelos, "protótipos" de figuras ou grupos
que foram multiplicados pelos seus seguidores. O caso mais notável é mesmo
o de Vitalino que "desenhou" uma verdadeira sociologia do Agreste, desde o
boi isolado, simbólico, quase rupestre, até o rebanho, a caça, a retirada da
seca, as cenas de seca e de fartura, as cenas da vila do Alto do Moura, a vida
comum, o dia-a-dia, as atividades domésticas, as profissões, os casos trágicos
e humorísticos. Na verdade todos os artesãos do Moura acrescentam,
eventualmente, alguma cena a este painel sociológico que o Mestre Vitalino
iniciou. O caso de Galdino é diferente, ele é um artista que trabalha com a
cerâmica e que absorveu a maneira de trabalhar dos artesãos do Moura,
utilizando o material, a forma de trata-lo e queima-lo para expressar seu
universo fantástico de poeta, cantador e escultor.
É comum à atividade artesanal a repetição, a tranqüilidade, a paciência,
a harmonia e a paz, como acontece no Alto do Moura, em Tracunhaem, em
comunidades de louceiras em todo interior, nos grupos de bordadeiras,
rendeiras e tecelões.
O artesanato tradicional e popular é uma atividade pacífica, enquanto
que a arte não necessita de ser. O artesanato é socializante pois é possível, e
desejável, que ele se organize em grupos, associações ou cooperativas pois
sua vida econômica depende, em parte, de sua capacidade de organização
coletiva, da solidariedade, da boa divisão de trabalho e de lucro.

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A convivência do artesanato com a agricultura é perfeito, pode-se dizer
que ele é uma atividade sazonal pois existe nas entressafras, atende aos
momentos de falta de colheita. Na pesca o artesanato da rede subsidia o
pescador da sua "arma de guerra" , mas a mulher do pescador também faz a
renda de praia (filé, labirinto, renda de bilro). Diz-se que "onde há rede há
renda", e quando o pescador não traz o peixe, a renda põe o peixe na mesa.

ARTESANATO, EMPREGO E TRABALHO

Tratado no Brasil como atividade marginal, desde que as doutrinas que


privilegiam o mercado como única atividade humana respeitável são tidas
como vitoriosas, o artesanato resiste, aos trancos e barrancos, mas resiste. A
revista Exportar & GERÊNCIA, dedicada à pequena empresa exportadora, no
seu número de maio de 1999, anuncia que o mercado internacional está de
olho nosso artesanato. No artigo Espaço aberto para o artesanato estão
informações surpreendentes para quem não conhece as dimensões dessa
atividade: estima-se que o artesanato brasileiro movimenta três bilhões de
dólares, envolvendo oito milhões e quinhentas mil pessoas. Estes números
surpreenderão ainda mais a quem acredita que o artesanato significa apenas a
parafernália de bugigangas dos famigerados "mercados de artesanato" que
assolam, em nome do turismo, nossas cidades de norte a sul. É até possível
que neles se achem alguns produtos de boa qualidade, mas encontra-los
depende de sorte. O comerciante de artesanato destes mercados, os
intermediários dos artesãos com raríssimas e honrosas exceções, tem o
interesse único do lucro, para tanto as qualidades sutis do bom artesanato
tornam-se fator complicador diante da guerra do mercado.
No México chamam um determinado tipo
de artesanato voltado para o mercado turístico de artesanato de aeroporto.
Nada mais indigno para o artesão daquele país, altamente politizado e
orgulhoso de suas origens culturais, do que ser comparado com quem produz
estes souvenirs para turistas desavisados. Este tipo de produto, no México,
vem da periferia da sua enorme capital, fruto da exploração de comerciantes
inescrupulosos, proprietários de "fábricas de artesanato", que utilizam apenas a
mão de obra do artesão como se ele fosse um operário, não valorizando a
autoria do produto e recusando a liberdade inerente ao seu sistema de
trabalho, fator que diferencia a produção do artesão, como classe social, da
produção do operário.
No Brasil temos visto dois tipos de política
em nome do desenvolvimento do artesanato: a disseminação de mercados
turísticos de artesanato e a tentativa de inserir o artesão no mercado formal de
trabalho. Ambas as ações são devastadoras, ambas tiram do artesão a
autonomia e a força de sua atividade, drenam sua economia e fazem o artesão
desacreditar do seu futuro. O México, no entanto, é um país que cultiva o
artesanato do seu povo, rural e urbano, com orgulho e dignidade, e a produção
artesanal faz parte do planejamento nacional.
Proletarizar o artesão é um erro social
crasso, trata-se de inverter qualquer possibilidade de desenvolvimento da
atividade artesanal. Em nome de uma pretensa segurança social - que a
prática afirma que nunca existiu - sugere-se que o artesão formalize sua
relação de trabalho com o Estado, solicita-se que ele torne-se um cidadão

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possuidor de uma carteira de trabalho, que pague seus impostos para ter seus
direitos civis, assim por diante... Muito que bem, todo cidadão pode e deve
estar ligado formalmente ao Estado, mas isto não significa que ele tenha que
sofrer as conseqüências deste vínculo. Não significa, por exemplo, que ele
aceite possuir a obrigação de contribuir sem ter de onde tirar esta contribuição,
de pagar impostos sem ter benefícios, de apresentar o fruto do seu trabalho
sem ter crédito para financiar os insumos básicos de sua produção.
A formalização profissional é própria e
exata para a atividade operária ou para quem tem de depende de emprego. Os
meios e os modos que uma indústria possui para estabelecer um contrato de
trabalho, seja ou não justo, passam pela formalização da situação civil do
operário. Aí devem estar embutidos os direitos e os deveres de ambas as
partes. Mas um artesão não é um operário, ao contrário, seu regime de
trabalho, geralmente doméstico e familiar, é incompatível com os horários,
metas de produção, especialização, visão fragmentada do produto, e outras
características do trabalho operário.
O artesão é dono do seu tempo, do seu espaço e dos resultados de
seus empreendimentos, incluindo os frutos do seu trabalho. Ele faz seu horário,
determina sua produção e seus meios para alcançar as metas que,
eventualmente, impõe a si mesmo. O artesão tem uma visão completa do seu
produto, não participa apenas de um detalhe ou uma parte do produto final,
como acontece com o operário, e sendo assim ele pode perfeitamente projetar
sua produção e seus lucros. A questão do artesão é a liberdade: ele pode até
mesmo utilizar dois tempos, um para uma atividade operária ou camponesa,
outro para o seu artesanato artesão.
O operário, no entanto, necessita de ser empregado para poder
trabalhar, o artesão se auto-emprega. O operariado existe em função de uma
classe patronal que enriquece com o trabalho cativo pois a riqueza do
empresariado industrial provém do trabalho que o operário enterra na fábrica,
que é transformado em capital para o patrão. O artesão, ao contrário, pode ser
um trabalhador livre, dono do seu trabalho e de seus frutos. O artesão
capitaliza o objeto que produz, transforma-os em estoque, capital mobilizado,
riqueza potencial.
Não é fundamental gerar emprego, mas gerar renda, fruto do trabalho
autônomo, livre, capaz de capitalizar aquele que trabalhou.
A atividade artesanal é socializante, isto é, ela comporta, e muito bem, o
trabalho em grupo. Pode tornar-se, portanto, formalmente associativa, o que se
constitui num fator desejável. Uma associação de artesãos com caráter
cooperativo pode perfeitamente substituir, e com inúmeras vantagens, a figura
do intermediário. Uma cooperativa artesanal, por exemplo, pode ser
responsável pela produção e pela comercialização do produto, envolvendo os
detalhes de marketing, embalagem, distribuição, representação, e outras
atividades inerentes ao mercado. O artesão isolado, por sua vez, dependerá
sempre de um intermediário para vender seu produto. Um exemplo típico das
conseqüências desse intermédio foi relatado pela pesquisadora e
colecionadora de brinquedos populares Macao Góes. Ela conta que uma
determinada artesã produtora de "bruxas de pano" no Sertão da Paraíba
fornece suas bonecas em sua casa por R$ 0,80 (oitenta centavos) cada
exemplar, no entanto elas são vendidas nas lojas da capital por R$ 10,00 (dez
Reais). Sua relação com o intermediário é de tal maneira dependente que este

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não lhe dá mais dinheiro, troca toda sua produção por cestas básicas
fornecidas mensalmente.
Além das vantagens comerciais a organização cooperativa conta com
parcerias desejáveis entre si, há hoje uma rede mundial de cooperativas
artesanais que formam uma considerável força de resistência. Ajustes de
produto como peso e dimensões, detalhes técnicos como queima cerâmica,
correções de design, embalagem e transporte, assistência jurídica para
créditos e exportação, tudo isto pode ser tratado com mais facilidade se o
artesão estiver organizado em um grupo que tenha como base o trabalho
solidário.

ARTESANATO E MERCADO
O mercado natural para o artesanato é o mercado interno.
Primeiramente a rua onde mora o artesão ou o grupo de artesãos, em seguida
o bairro, a cidade, o país. Depois, dependendo do tipo de produto, do design,
do material e outras características, o artesanato poderá ter características de
produto exportável.
O mercado do artesanato depende exclusivamente de promoção, de
elementos de comercialização exatamente iguais ao do marketing industrial. É
fundamental, porém, a projeção de uma política capaz de estabelecer a
concorrência entre produto artesanal e produto industrial: nisso pode residir a
diferença entre estes dois extremos e, quem sabe, a solução para um
verdadeiro caminho de desenvolvimento de uma produção nacional.
Temos informação sobre a China, em entrevista da senhora Lee Han,
Diretora de Artesanato do Ministério de Indústrias Ligeiras daquele país nos
anos 70, que indicava que o artesanato chinês estava a serviço de 800 milhões
de pessoas. Não desconhecemos as relações de consumo num país de 2
bilhões de habitantes, mas provavelmente a recente aceitação de indústrias
capitalistas não substituiu, e não substituirá pois não se trata deste enfoque, o
trabalho artesanal na China.
Vimos na cidade do México supermercados destinando, através de uma
lei municipal, 20% do seu espaço para o produto artesanal mexicano. Não para
o produto comprado pelo departamento de comercialização da empresa, isto
temos aqui em menor proporção, mas oferecido pelo FONART, um Fundo de
Fomento Para o Artesanato que existia naquele país nos anos 70.
Desde os tempos que a SUDENE mantinha a ARTENE, que contava
com uma equipe heróica que lutava por idéias como estas, não se vê em
Pernambuco ou em qualquer outro estado nordestino qualquer discussão sobre
a promoção do artesanato. Temos visto políticas assistencialistas, eleitoreiras,
paternalistas, shows para turistas, etc., mas não se fala em financiamento,
recursos técnicos, estudos de embalagens e transporte, análise de produtos,
controle de qualidade, autonomia de produção e comercialização, proteção
contra a exploração comercial, etc. Precisa-se de assistência sim, mas
assistência técnica, organizacional, contábil, desenvolvimentista.
Fato é que qualquer campanha de promoção do artesanato necessita
passar pelo orgulho que o povo tem pela sua cultura. A chamada "classe
média", tão espoliada em seus desejos de felicidade, é o mercado certo para o
produto artesanal que contenha, além das características da habilidade
manual, a alma do povo. Não é exatamente o que se oferece quando, em
nome da cultura, se promove nossa festivais de dança e música exógena,

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carnavais fora de tempo, etc. O objetivo principal é o lucro, é a venda de
cerveja, não das belas máscaras carnavalescas feitas por Julião e sua família,
é a venda de "mortalhas e abadás", não das belas fantasias confeccionadas
pelas costureiras de Olinda, e assim se sucedem as inversões de valores sem
que haja, na verdade, qualquer agente governamental responsável por uma
política ou orientação pública com a finalidade de preservar, promover, manter
viva a tradição e a voz do povo.
A ARTENE teve uma função, apesar das dificuldades, excelente:
detectava os bolsões de produção de artesanato para usar a informação como
subsídio numa política de implantação de novas indústrias. O princípio dos
criadores da SUDENE era ser sensível à tradição e à vocação de cada lugar,
de cada povo. Mas não teve sucesso, as pressões políticas derrubaram esta
tarefa ao ponto daquele digno Departamento transformar-se numa mísera
lojinha de artesanato tão medíocre quanto qualquer uma da Casa da Cultura. É
famoso o caso (o investigamos através do Planesc, escritório de planejamento
que implantou o projeto, quando representávamos no Brasil o Conselho
Mundial de Artesanato) da fábrica de sandálias japonesa BESA, que produz
milhões de calçados/mês. Tudo bem, certamente deixa um belo imposto para a
Paraíba, e este caso não é único, haveremos de encontrar iguais em todo o
Nordeste assistido pela SUDENE. Mas onde está toda a produção de calçado
popular que se nucleava em Campina Grande através dos seus
artesãos/sapateiros? E por gravidade, a produção de couro, os dois curtumes e
parte do rebanho existente, desapareceram? Para onde foram os artesãos?
Vender picolé no Meninão (Estádio de Futebol que homenageia o Prefeito da
cidade)? Quantos eram eles? Mil, dois mil, dez mil? Provavelmente dez mil
pessoas, diretas ou indiretamente, perderam suas fontes de lucro. O polo
calçadista de Franca, em São Paulo, certamente um dia foi um núcleo de
sapateiros igual ao que havia em Campina Grande antes da implantação da
BESA, mas lá não chegou nenhuma fábrica de sapato barato, em vez disso
investiram no desenvolvimento dos sapateiros, artesãos que hoje representam
um dos melhores itens de exportação do Brasil.
Artesanato está ligado historicamente à indústria manufatureira o Norte
da Europa nos conta esta história eloqüentemente. Mas ele tem que evoluir
como artesanato, desenvolver-se como produto feito com a mão, que passará
a ser industrial se suas características permitirem. Concorrerá com a indústria
como o pão e o vinho francês, e sempre ganhará.

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O ARTESANATO NA PARAÍBA

Raul Córdula

Sabe-se que o artesanato do Nordeste brasileiro é riquíssimo, mas


pouco se sabe sobre suas diferenças. Podemos dizer que acompanham a
geografia, com as inúmeras matérias primas que o artesão transforma em
objetos de rara beleza, com suas mãos armadas de talento. Destacamos, por
exemplo, o artesanato praieiro da pesca e da renda em todo o litoral, a palha
do Maranhão e do Piauí, o couro e o queijo do Agreste, os tecidos raros do
Ceará, de Alagoas e de Pernambuco, a cerâmica e o entalhe em madeira de
Pernambuco, a louça de Carrapicho (Sergipe), do Talhado (Paraíba) e de
Maragojipinho (Bahia), entre tantas ilhas de excelência expressiva advindas da
mão do homem do Nordeste.
A Paraíba é uma destas "ilhas" de maior atividade e expressão. O
artesanato aqui ainda é um dos meios mais importantes de produção de renda
em escala familiar. O universo artesanal paraibano abrange desde a confecção
de alimentos conservados naturalmente, como carne de sol e charque, queijo,
peixe seco, doces e bebidas, como licores, vinhos de frutas e cachaças, até
objetos do cotidiano como louças de barro, utensílios de funilaria, marcenaria,
atanato (artesanato do couro), tecelagem e tecidos raros, como rendas e
labirintos.
Ainda podemos nos referir ao artesanato que serve de manutenção ao
trabalho e à vida cotidiana, como a ferramentaria produzida em forja: martelos,
foices, facas e facões, estrovengas e arados, ou os feitos de cerâmica como
"formas" para água, panelas para cozinhar ou panelas furadas para irrigação
por gotejamento, manilhas sanitárias e manilhas de drenagem, vasos
sanitários, filtros de água, telhas e tijolos, ou ainda esquadrias e mobiliário de
madeira.
Se o artesanato no meio rural é, na maioria dos caos, uma atividade
sazonal (ele pode ser também atividade permanente, como é o caso da
produção de redes de dormir na cidade sertaneja de São Bento) no meio
urbano ele é sempre uma atividade permanente pois atende a um mercado de
classe média que compra o conforto e a beleza. O artesanato urbano, pródigo
na Paraíba, é aliado do design e das artes plásticas, fazendo parte de uma
produção sofisticada e reconhecidamente de boa qualidade, manifestando-se
em cerâmica, mobiliário, marcenaria, atanato, joalheria, luminárias e artigos de
moda.
Um destaque especial deve ser dado à produção de brinquedos
artesanais. Estes objetos não são produzidos por técnica, mas pela função.
São uma categoria de artesanato, uma das mais importantes por sua função
intrínseca de educação e lazer. Aqui se produz bonecas e "Bruxas" de pano,
carros de madeira e lata, "Mané Gostoso", "Borboleta", "Cavalo de Pau", e
tantos outros objetos que trazem em si a inocente função lúdica com a sua
fundamental conseqüência que é o crescimento humano.
Há ainda o artesanato ligado ao folclore: o artesanato de carnaval, como
máscaras e fantasias, as "Toldas" e os bonecos dos "Mamolengos", "Babaus"
ou "Joões Redondos", as "Barcas" ou "Naus Catarinetas", os ternos de
"Cambindas" e "Reisados", as ferramentas de "Candomblé", os objetos
circenses.

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Não se pode esquecer o artesanato religioso, das ornamentações de
festas de Igreja, dos casamentos e de missas, como os belos trabalhos em
tecidos bordados ou pintados nos estandartes das procissões, os vestidos de
noivas, os bolos confeitados e os doces dos casamentos, os altares naves
enfeitados.
Há ainda uma outra categoria que localiza-se no limite entre artesanato
e indústria, possui ferramentas e máquinas para sua confecção mas não
dispensam uma grande parcela de mão de obra. Ou ainda fazem parte de um
saber ancestral que não cabe nas tecnologias da atualidade e não pode mais
se adaptar a elas sem perder suas principais e ricas características. Referimo-
nos às tecnologias patrimoniais, primeiramente às semi-industriais, como a
fabricação de vinhos de frutas (o vinho de caju da marca Celeste, por exemplo)
ou as cachaças da cidade de Areia, principalmente, e de toda região do Anel do
Brejo. A outra tecnologia é o saber do artesanato de restauração de
monumentos históricos, como o entalhe em madeira, o douramento e a
cantaria (entalhe em pedra) entre outras técnicas que são a base do trabalho
de restauração e conservação do nosso patrimônio histórico e artístico
construído em pedra e cal (porque existem outros tipos de patrimônios
históricos, artísticos e culturais como, por exemplo, o saber do artesão)
O Governo da Paraíba, através da Subsecretaria de Cultura e da Secretaria do
Trabalho e Ação Social, dispensa especial atenção à riqueza cultural,
civilizadora e econômica que é seu artesanato. Por meio de ações planejadas
entre elas, com apoio de diversos organismos interessados na melhoria da
economia popular, veremos em pouco tempo diminuir as distâncias que
separam esta extraordinária produção de bens materiais e culturais do seu
verdadeiro mercado, que é a própria população paraibana.

AFINAL, O QUE É ARTESANATO ?


Raul
Córdul
a

Para quem não viveu o Brasil de duas décadas atrás, artesanato nada
mais é do que as bugigangas produzidas por hippies tardios e vendidas nas
feiras turísticas, calçadas, estações rodoviárias e aeroportos. A palavra
artesanato saiu do nosso repertório desde que a aventura neoliberal passou a
assolar nossas vidas.
A atitude de desprezo para com a cultura do povo tem sido
perversamente estratégica: afasta a possibilidade da identidade cultural, fator
complicador nos negócios globalizados que exigem produtos limitados por
normas dirigidas a um tipo de mercado caracterizado por "zero expressão",
planejado para não provocar nenhum esforço mental diante do ato de
consumir, e orientado no sentido do baixo preço, para facilitar sua
massificação.
Essa estratégia introduz o conceito de que, do ponto de vista do produto,
o uso é mais importante do que a beleza, e muito mais importante do que a
tradição cultural. Isto significa que qualquer recipiente de plástico é, em tese,
melhor do que um de cerâmica, por ter melhor preço e substituir grande parte
de suas funções, e sua colocação no mercado está destinada a atender aos

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acordos estabelecidos em função da expansão do sistema financeiro mundial,
como conhecemos hoje, profundamente excludente do ponto de vista social e
injusto no âmbito das relações de trabalho.
Qualquer economista neoliberal, portanto, dirá que o artesanato, como
meio de produção "pré-industrial", é atividade economicamente inviável, e
desaconselhará sua inclusão nos projetos de desenvolvimento. São incapazes,
porém, de imaginar o significado da relação natural entre o homem e a terra,
jamais poderão supor que a vida reside também no ato de arar, plantar, colher
e fazer o pão, e que a felicidade reside, para muitos, em apanhar o barro,
amassar, modelar, pintar, cozer e utilizar o utensílio que surgir da argila como
produto de sua mão, da dignidade do seu trabalho e da pureza de sua alma.
Eis o que é o artesanato: obra material do artesão, que em sua origem é
arte popular, fruto do trabalho realizado através das mãos na confecção de
objetos destinados ao conforto do homem, carregados de expressões da
cultura, onde a máquina, se utilizada, será apenas ferramenta, nunca fator
determinante para sua existência.
Instrumento de melhoria e distribuição justa da renda de comunidades
pobres, o artesanato é fruto do trabalho autônomo e vivo, pois pertence ao
artesão que o produziu, diferente do trabalho enterrado nas fábricas pelas
mãos dos operários. Contrapõe-se, portanto, ao sistema de produção industrial.
Mesmo marginalizado pelos programas de desenvolvimento regionais e
nacionais o artesanato continua sendo no Brasil uma atividade cultural de
grande importância econômica. Por sua informalidade escapa aos planejadores
econômicos, existindo nas casas dos artesãos, fora das grandes cidades, longe
dos sistemas urbanos e das regiões fabris.
Os números são eloqüentes: a revista Exportar & GERÊNCIA, dedicada
à pequena empresa exportadora, no seu número de maio anunciou que o
mercado internacional está de olho no nosso artesanato. Apresenta a seguinte
informação, surpreendentes para quem não conhece as dimensões dessa
atividade: estima-se que o artesanato brasileiro movimenta três bilhões de
dólares, envolvendo oito milhões e quinhentas mil pessoas.

AFINAL, O QUE É ARTESANATO ?


Raul
Córdul
a

Para quem não viveu o Brasil de duas décadas atrás, artesanato nada
mais é do que a bugiganga produzidas por hippies tardios, vendida como
curiosidade nas feiras turísticas, calçadas do down town, estações rodoviárias
e aeroportos. A palavra artesanato saiu do nosso repertório econômico, social e
cultural desde que a aventura neoliberal passou a assolar nossas vidas.
Desde então a atitude de desprezo para com a cultura do povo tem sido
perversamente estratégica. Afasta a possibilidade da identidade cultural, fator
complicador nos negócios globalizados que exigem produtos limitados por
normas dirigidas a um tipo de mercado que se caracteriza por "zero
expressão", planejado para não provocar nenhum esforço mental diante do ato
de consumir, e orientado no sentido do baixo preço, para facilitar sua
massificação.

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Essa estratégia introduz o conceito de que, do ponto de vista do produto,
o uso é mais importante que a beleza e muito mais importante que a tradição
cultural. Isso significa que um recipiente de plástico será, em tese, melhor do
que um de cerâmica, pois é mais barato e substitui grande parte das funções
do outro e, ainda mais, sua fabricação e distribuição no mercado atende aos
acordos estabelecidos em função da expansão do sistema financeiro mundial,
como conhecemos hoje, profundamente excludente do ponto de vista social e
injusto no âmbito das relações de trabalho.
Qualquer economista de neoliberal dirá que o artesanato, como meio de
produção "pré-industrial", é uma atividade economicamente inviável, e
desaconselhará sua inclusão nos projetos de desenvolvimento. São incapazes,
porém, de imaginar o significado da relação natural entre o homem e a terra,
jamais poderão supor que a vida reside também no ato de arar, plantar, colher
e fazer o pão, e que a felicidade reside, para muitos, em apanhar o barro,
amassar, modelar, pintar, cozer e utilizar o utensílio que surgir da argila como
produto de sua mão, da dignidade do seu trabalho e da pureza de sua alma.
Eis o que é o artesanato: obra material do artesão, que em sua origem é
arte popular, fruto do trabalho realizado através das mãos na confecção de
objetos destinados ao conforto do homem, carregados de expressão de sua
cultura, onde a máquina, se utilizada, será apenas ferramenta, nunca um fator
determinante para sua existência.
Fator de melhoria de renda de comunidades pobres, o artesanato é fruto
do trabalho autônomo e vivo, pois pertence ao artesão que o produziu,
diferente do trabalho enterrado nas fábricas pelas mãos dos operários.
Contrapõe-se, portanto, ao sistema de produção industrial.
Mesmo marginalizado pelos programas de desenvolvimento regionais e
nacionais o artesanato continua sendo no Brasil uma atividade cultural de
grande importância econômica, responsável por uma distribuição justa de
renda. Por sua informalidade esta distribuição escapa aos planejadores
econômicos, acontecendo na casa do artesão, fora das grandes cidades, longe
dos sistemas urbanos e das regiões fabris.
Os números são eloqüentes: a revista Exportar & GERÊNCIA, dedicada
à pequena empresa exportadora, no seu número de maio anunciou que o
mercado internacional está de olho no nosso artesanato. Apresenta a seguinte
informação, surpreendentes para quem não conhece as dimensões dessa
atividade: estima-se que o artesanato brasileiro movimenta três bilhões de
dólares, envolvendo oito milhões e quinhentas mil pessoas.

A tradição reside tanto na expressão que os objetos transmitem, como


na maneira pela qual são feitos. Um pão francês, por exemplo, de uma
determinada Boulangerie da Rue des Les Gravilliers, em Paris, que ostenta um
brasão do século 18, faz o mesmo pão de nozes que alimentava à soldadesca
de Napoleão, embora suas dependências permaneçam as mesmas, uma área
de não mais do que 50m2. Aquele pão de nozes, assim como a maior parte da
produção do vinho Francês, o papel de aquarela D'arche que é feito da mesma
maneira há 6 séculos, as rendas belgas, irlandesas, iugoslávas portuguesas,
brasileiras, a cerâmica não industrial praticada em todo o mundo, a cachaça de
Brejo de Areia, na Paraíba, ou de Minas Gerais, a carne de sol do Serido, as
charqueadas, a comida de Santo da Bahia, a doceria brasileira, os queijos do
Sertão, os mosaicos, os objetos feitos de marchetaria, marcenaria, carpintaria,

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funilaria, cantaria, tecelagem manual, tecelagem de redes de dormir, trançados
de palha, trançados de couro, papel machê, brinquedos populares, bruxas de
pano, cestaria, peleteria, ourivesaria, engaste de pedras preciosas, lapidação,
forja, fundição, e tantas outros fazeres que quase não se pode nomear, são
manifestações do artesanato.

O conceito de "arte popular", no entanto, não vigora em todo o mundo.


Nas megalópolis como Nova Yorque, São Paulo, São Francisco, Londres,
Tóquio e mesmo em cidades menores mas cosmopolitas, há o conceito de
"artesanato urbano", ou onde o artífice alia as técnicas tradicionais aos estilos
da época. Exemplo disso são os ornatos da arquitetura e os utensílios da casa,
desde a antigüidade clássica, passando pelo renascimento, até agora. Grandes
períodos do artesanato foram a arte nouveau e a art deco diante da grande
produção de ornamentos e utensílios portadores dos estilos correspondentes
de autoria de artistas/artesão como o vidreiro Galé e o joalheiro Lalic, por
exemplo. Neste período um fenomenal artista, arquiteto e artesão proporcionou
à humanidade um dos seus tesouros modernos: trata-se de Gaudi, que além
de criar e projetar, executou ornatos e mobiliários utilizando materiais diversos,
desde cacos de azulejos que usou como mosaicos, à cerâmica de
revestimento, ladrilhos, entalhes em madeira, ferros forjados, vidros, metais
diversos, pedras e relevos em reboco. Gaudi aliou, com uma maestria sem par,
o artesanato e o material industrial, combinando-os com total harmonia.
A utilização das técnicas artesanais por Gaudi, de certa forma,
determinou o "artesanato contemporâneo", consolidado pelo advento do
"estilo", isto é, a maneira de época. A Bau Haus, escola alemã que implantou
no mundo o conceito de design moderno, fechada pelo nazismo, mas depois
reabilitada, com outro conceito embora, como Escola de Ulm (Hokschülle Für
Gestautung) também foi responsável pelo "artesanato contemporâneo" pois
nem tudo que é desenhado dentro de uma estética atual pode ser destinado a
produção por meio industrial. O mobiliário, a poteria, a tecelagem e a joalharia,
por exemplo, são atividades constantes do artesanato contemporâneo
praticado maciçamente nos dias de hoje.
O Brasil tem seus representantes neste setor, como o design de móveis
e arquiteto Sérgio Rodrigues, autor da Poltrona Mole, o arquiteto "artesanal"
Zanini, os joalheiros Caio Mourão Márcio Mattar e Clementina Duarte, os
ceramistas Megume, Brennand e Miguel dos Santos, o "jardineiro" Burle Marx,
a tapeceira Ceça Colaço, entre outros.
A mão do Homem, no entanto, é o fator determinante do artesanato
tradicional ou contemporâneo. É conhecida a comparação do Visconde de
Eccles sobre este fato: "A excelência do objeto artesanal está no fato de que a
mão do homem além do poder de fazer, também tem o poder curar.
Os objetos artesanais carregam a identidade e a tradição cultural de
seus autores, sejam tradicionais ou contemporâneos. A obra de arte aplicada
de Burle Marx (ele é autor do maior piso de mosaico português do mundo, o
calçadão do aterro de Copacabana) tem nítida expressão brasileira com a
influência ibérica do tema principal: as ondas da calçada de Copacabana que
são reprodução das existentes na beira do Tejo, em Lisboa. A Poltrona Mole, as
Jóias de Clementina, as casas de Zanini e as cerâmicas de Brennand exaltam
as florestas, as flores, os troncos das árvores e as clareiras do Brasil.

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A tradição reside tanto na expressão que os objetos transmitem, como
na maneira pela qual são feitos. Um pão francês, por exemplo, de uma
determinada Boulangerie da Rue des Les Gravilliers, em Paris, que ostenta um
brasão do século 18, faz o mesmo pão de nozes que alimentava à soldadesca
de Napoleão, embora suas dependências permaneçam as mesmas, uma área
de não mais do que 50m2. Aquele pão de nozes, assim como a maior parte da
produção do vinho Francês, o papel de aquarela D'arche que é feito da mesma
maneira há 6 séculos, as rendas belgas, irlandesas, iugoslávas portuguesas,
brasileiras, a cerâmica não industrial praticada em todo o mundo, a cachaça de
Brejo de Areia, na Paraíba, ou de Minas Gerais, a carne de sol do Serido, as
charqueadas, a comida de Santo da Bahia, a doceria brasileira, os queijos do
Sertão, os mosaicos, os objetos feitos de marchetaria, marcenaria, carpintaria,
funilaria, cantaria, tecelagem manual, tecelagem de redes de dormir, trançados
de palha, trançados de couro, papel machê, brinquedos populares, bruxas de
pano, cestaria, peleteria, ouriversaria, engaste de pedras preciosas, lapidação,
forja, fundição, e tantas outros fazeres que quase não se pode nomear, são
manifestações do artesanato.
Não se pode confundir, no entanto, artesanato com arte. A arte como
conhecemos hoje tem a mesma origem do artesanato e, podemos dizer,
grande parcela de sua produção depende dele. Mas não significam mais a
mesma coisa. Sucede que, numa visão greco-clássica, arte e técnica vêm da
mesma raiz lingüística. A civilização Européia cuidou de dividir este conceito
pois as obras dos "artistas" ou pendiam para um ideal de perfeição, desprovido
de alma embora, ou para o êxtase estético, sem muito compromisso com a
maneira de fazer. Aparecem aí dois sentidos opostos de realização: pela
perfeição do trabalho, apolíneo (do deus Apolo, protetor do homem como ser
físico), ou pela qualidade do sentimento, dionisíaco (do deus Dioniso, ou Baco,
deus do vinho, mas também dos sentimentos e do êxtase). Esparta e Atenas
traduzem bem esta divisão de territórios, uma realizada através do ideal físico
do trabalho (apolíneo) e outra através do ideal filosófico (dionisíaco).
O artesão é aquele que sabe fazer, o artista aquele que cria. Um
depende do outro no momento em que a criação necessita de realização física,
a presença de uma obra de arte de pintura, por exemplo, somente é possível
se o artista utilizar o artesanato da pintura para dar à luz seus sentimentos. Em
todo artista que trabalha com as mãos existe um artesão. Nas comunidades de
artesãos como o Alto do Moura, em Caruaru geralmente existem "Mestres
Artesãos". É o caso de Vitalino, Zé Caboclo, Mannoel Eudócio e Gaudino.
Vitalino, Caboclo e Eudócio criaram modelos, "protótipos" de figuras ou grupos
que foram multiplicados pelos seus seguidores. O caso mais notável é mesmo
o de Vitalino que "desenhou" uma verdadeira sociologia do Agreste, desde o
boi isolado, simbólico, quase rupestre, até o rebanho, a caça, a retirada da
seca, as cenas de seca e de fartura, as cenas da vila do Alto do Moura, a vida
comum, o dia-a-dia, as atividades domésticas, as profissões, os casos trágicos
e humorísticos. Na verdade todos os artesãos do Moura acrescentam,
eventualmente, alguma cena a este painel sociológico que o Mestre Vitalino
iniciou. O caso de Gaudino é diferente, ele é um artista que trabalha com a
cerâmica e que absorveu a maneira de trabalhar dos artesãos do Moura,
utilizando o material, a forma de trata-lo e queima-lo para expressar seu
universo fantástico de poeta, cantador e escultor.

20
É comum à atividade artesanal a repetição, a tranqüilidade, a paciência,
a harmonia e a paz, como acontece no Alto do Moura, em Tracunhaem, em
comunidades de louceiras em todo interior, nos grupos de bordadeiras,
rendeiras e tecelões.
O artesanato tradicional e popular é uma atividade pacífica, enquanto
que a arte não necessita de ser. O artesanato é socializante pois é possível, e
desejável, que ele se organize em grupos, associações ou cooperativas pois
sua vida econômica depende, em parte, de sua capacidade de organização
coletiva, da solidariedade, da boa divisão de trabalho e de lucro.
A convivência do artesanato com a agricultura é perfeito, pode-se dizer
que ele é uma atividade sazonal pois existe nas entre - safras, atende aos
momentos de falta de colheita. Na pesca o artesanato da rede subsidia o
pescador da sua "arma de guerra" , mas a mulher do pescador também faz a
renda de praia (filé, labirinto, renda de bilro). Diz-se que "onde há rede há
renda", e quando o pescador não traz o peixe, a renda põe o peixe na mesa.

ARTESANATO, EMPREGO E TRABALHO


Tratado no Brasil como atividade marginal, desde que as doutrinas que
privilegiam o mercado como única atividade humana respeitável são tidas
como vitoriosas, o artesanato resiste, aos trancos e barrancos, mas resiste. A
revista Exportar & GERÊNCIA, dedicada à pequena empresa exportadora, no
seu número de maio de 1999, anuncia que o mercado internacional está de
olho nosso artesanato. No artigo Espaço aberto para o artesanato estão
informações surpreendentes para quem não conhece as dimensões dessa
atividade: estima-se que o artesanato brasileiro movimenta três bilhões de
dólares, envolvendo oito milhões e quinhentas mil pessoas. Estes números
surpreenderão ainda mais a quem acredita que o artesanato significa apenas a
parafernália de bugigangas dos famigerados "mercados de artesanato" que
assolam, em nome do turismo, nossas cidades de norte a sul. É até possível
que neles se achem alguns produtos de boa qualidade, mas encontra-los
depende de sorte. O comerciante de artesanato destes mercados, os
intermediários dos artesãos com raríssimas e honrosas exceções, tem o
interesse único do lucro, para tanto as qualidades sutis do bom artesanato
tornam-se fator complicador diante da guerra do mercado.
No México chamam um determinado tipo de artesanato voltado para o
mercado turístico de artesanato de aeroporto. Nada mais indigno para o
artesão daquele país, altamente politizado e orgulhoso de suas origens
culturais, do que ser comparado com quem produz estes souvenirs para
turistas desavisados. Este tipo de produto, no México, vem da periferia da sua
enorme capital, fruto da exploração de comerciantes inescrupulosos,
proprietários de "fábricas de artesanato", que utilizam apenas a mão de obra do
artesão como se ele fosse um operário, não valorizando a autoria do produto e
recusando a liberdade inerente ao seu sistema de trabalho, fator que diferencia
a produção do artesão, como classe social, da produção do operário.
No Brasil temos visto dois tipos de política em nome do desenvolvimento
do artesanato: a disseminação de mercados turísticos de artesanato e a
tentativa de inserir o artesão no mercado formal de trabalho. Ambas as ações
são devastadoras, ambas tiram do artesão a autonomia e a força de sua
atividade, drenam sua economia e fazem o artesão desacreditar do seu futuro.
O México, no entanto, é um país que cultiva o artesanato do seu povo, rural e

21
urbano, com orgulho e dignidade, e a produção artesanal faz parte do
planejamento nacional.
Proletarizar o artesão é um erro social crasso, trata-se de inverter
qualquer possibilidade de desenvolvimento da atividade artesanal. Em nome de
uma pretensa segurança social - que a prática afirma que nunca existiu -
sugere-se que o artesão formalize sua relação de trabalho com o Estado,
solicita-se que ele torne-se um cidadão possuidor de uma carteira de trabalho,
que pague seus impostos para ter seus direitos civis, assim por diante... Muito
que bem, todo cidadão pode e deve estar ligado formalmente ao Estado, mas
isto não significa que ele tenha que sofrer as conseqüências deste vínculo. Não
significa, por exemplo, que ele aceite possuir a obrigação de contribuir sem ter
de onde tirar esta contribuição, de pagar impostos sem ter benefícios, de
apresentar o fruto do seu trabalho sem ter crédito para financiar os insumos
básicos de sua produção.
A formalização profissional é própria e exata para a atividade operária ou
para quem tem de depende de emprego. Os meios e os modos que uma
indústria possui para estabelecer um contrato de trabalho, seja ou não justo,
passam pela formalização da situação civil do operário. Aí devem estar
embutidos os direitos e os deveres de ambas as partes. Mas um artesão não é
um operário, ao contrário, seu regime de trabalho, geralmente doméstico e
familiar, é incompatível com os horários, metas de produção, especialização,
visão fragmentada do produto, e outras características do trabalho operário.
O artesão é dono do seu tempo, do seu espaço e dos resultados de
seus empreendimentos, incluindo os frutos do seu trabalho. Ele faz seu horário,
determina sua produção e seus meios para alcançar as metas que,
eventualmente, impõe a si mesmo. O artesão tem uma visão completa do seu
produto, não participa apenas de um detalhe ou uma parte do produto final,
como acontece com o operário, e sendo assim ele pode perfeitamente projetar
sua produção e seus lucros. A questão do artesão é a liberdade: ele pode até
mesmo utilizar dois tempos, um para uma atividade operária ou camponesa,
outro para o seu artesanato artesão.
O operário, no entanto, necessita de ser empregado para poder
trabalhar, o artesão se auto-emprega. O operariado existe em função de uma
classe patronal que enriquece com o trabalho cativo pois a riqueza do
empresariado industrial provém do trabalho que o operário enterra na fábrica,
que é transformado em capital para o patrão. O artesão, ao contrário, pode ser
um trabalhador livre, dono do seu trabalho e de seus frutos. O artesão
capitaliza o objeto que produz, transforma-os em estoque, capital mobilizado,
riqueza potencial.
Não é fundamental gerar emprego, mas gerar renda, fruto do trabalho
autônomo, livre, capaz de capitalizar aquele que trabalhou.
A atividade artesanal é socializante, isto é, ela comporta, e muito bem, o
trabalho em grupo. Pode tornar-se, portanto, formalmente associativa, o que se
constitui num fator desejável. Uma associação de artesãos com caráter
cooperativo pode perfeitamente substituir, e com inúmeras vantagens, a figura
do intermediário. Uma cooperativa artesanal, por exemplo, pode ser
responsável pela produção e pela comercialização do produto, envolvendo os
detalhes de marketing, embalagem, distribuição, representação, e outras
atividades inerentes ao mercado. O artesão isolado, por sua vez, dependerá
sempre de um intermediário para vender seu produto. Um exemplo típico das

22
conseqüências desse intermédio foi relatado pela pesquisadora e
colecionadora de brinquedos populares Macao Góes. Ela conta que uma
determinada artesã produtora de "bruxas de pano" no Sertão da Paraíba
fornece suas bonecas em sua casa por R$ 0,80 (oitenta centavos) cada
exemplar, no entanto elas são vendidas nas lojas da capital por R$ 10,00 (dez
Reais). Sua relação com o intermediário é de tal maneira dependente que este
não lhe dá mais dinheiro, troca toda sua produção por cestas básicas
fornecidas mensalmente.
Além das vantagens comerciais a organização cooperativa conta com
parcerias desejáveis entre si, há hoje uma rede mundial de cooperativas
artesanais que formam uma considerável força de resistência. Ajustes de
produto como peso e dimensões, detalhes técnicos como queima cerâmica,
correções de design, embalagem e transporte, assistência jurídica para
créditos e exportação, tudo isto pode ser tratado com mais facilidade se o
artesão estiver organizado em um grupo que tenha como base o trabalho
solidário.

ARTESANATO E MERCADO
O mercado natural para o artesanato é o mercado interno.
Primeiramente a rua onde mora o artesão ou o grupo de artesãos, em seguida
o bairro, a cidade, o país. Depois, dependendo do tipo de produto, do design,
do material e outras características, o artesanato poderá ter características de
produto exportável.
O mercado do artesanato depende exclusivamente de promoção, de
elementos de comercialização exatamente iguais ao do marketing industrial. É
fundamental, porém, a projeção de uma política capaz de estabelecer a
concorrência entre produto artesanal e produto industrial: nisso pode residir a
diferença entre estes dois extremos e, quem sabe, a solução para um
verdadeiro caminho de desenvolvimento de uma produção nacional.
Temos informação sobre a China, em entrevista da senhora Lee Han,
Diretora de Artesanato do Ministério de Indústrias Ligeiras daquele país nos
anos 70, que indicava que o artesanato chinês estava a serviço de 800 milhões
de pessoas. Não desconhecemos as relações de consumo num país de 2
bilhões de habitantes, mas provavelmente a recente aceitação de indústrias
capitalistas não substituiu, e não substituirá pois não se trata deste enfoque, o
trabalho artesanal na China.
Vimos na cidade do México supermercados destinando, através de uma
lei municipal, 20% do seu espaço para o produto artesanal mexicano. Não para
o produto comprado pelo departamento de comercialização da empresa, isto
temos aqui em menor proporção, mas oferecido pelo FONART, um Fundo de
Fomento Para o Artesanato que existia naquele país nos anos 70.
Desde os tempos que a SUDENE mantinha a ARTENE, que contava
com uma equipe heróica que lutava por idéias como estas, não se vê em
Pernambuco ou em qualquer outro estado nordestino qualquer discussão sobre
a promoção do artesanato. Temos visto políticas assistencialistas, eleitoreiras,
paternalistas, shows para turistas, etc., mas não se fala em financiamento,
recursos técnicos, estudos de embalagens e transporte, análise de produtos,
controle de qualidade, autonomia de produção e comercialização, proteção
contra a exploração comercial, etc. Precisa-se de assistência sim, mas
assistência técnica, organizacional, contábil, desenvolvimentista.

23
Fato é que qualquer campanha de promoção do artesanato necessita
passar pelo orgulho que o povo tem pela sua cultura. A chamada "classe
média", tão espoliada em seus desejos de felicidade, é o mercado certo para o
produto artesanal que contenha, além das características da habilidade
manual, a alma do povo. Não é exatamente o que se oferece quando, em
nome da cultura, se promove nossa festivais de dança e música exógena,
carnavais fora de tempo, etc. O objetivo principal é o lucro, é a venda de
cerveja, não das belas máscaras carnavalescas feitas por Julião e sua família,
é a venda de "mortalhas e abadás", não das belas fantasias confeccionadas
pelas costureiras de Olinda, e assim se sucedem as inversões de valores sem
que haja, na verdade, qualquer agente governamental responsável por uma
política ou orientação pública com a finalidade de preservar, promover, manter
viva a tradição e a voz do povo.
A ARTENE teve uma função, apesar das dificuldades, excelente:
detectava os bolsões de produção de artesanato para usar a informação como
subsídio numa política de implantação de novas indústrias. O princípio dos
criadores da SUDENE era ser sensível à tradição e à vocação de cada lugar,
de cada povo. Mas não teve sucesso, as pressões políticas derrubaram esta
tarefa ao ponto daquele digno Departamento transformar-se numa mísera
lojinha de artesanato tão medíocre quanto qualquer uma da Casa da Cultura. É
famoso o caso (o investigamos através do Planesc, escritório de planejamento
que implantou o projeto, quando representávamos no Brasil o Conselho
Mundial de Artesanato) da fábrica de sandálias japonesa BESA, que produz
milhões de calçados/mês. Tudo bem, certamente deixa um belo imposto para a
Paraíba, e este caso não é único, haveremos de encontrar iguais em todo o
Nordeste assistido pela SUDENE. Mas onde está toda a produção de calçado
popular que se nucleava em Campina Grande através dos seus
artesãos/sapateiros? E por gravidade, a produção de couro, os dois curtumes e
parte do rebanho existente, desapareceram? Para onde foram os artesãos?
Vender picolé no Meninão (Estádio de Futebol que homenageia o Prefeito da
cidade)? Quantos eram eles? Mil, dois mil, dez mil? Provavelmente dez mil
pessoas, diretas ou indiretamente, perderam suas fontes de lucro. O polo
calçadista de Franca, em São Paulo, certamente um dia foi um núcleo de
sapateiros igual ao que havia em Campina Grande antes da implantação da
BESA, mas lá não chegou nenhuma fábrica de sapato barato, em vez disso
investiram no desenvolvimento dos sapateiros, artesãos que hoje representam
um dos melhores itens de exportação do Brasil.
Artesanato está ligado historicamente à indústria manufatureira o Norte
da Europa nos conta esta história eloqüentemente. Mas ele tem que evoluir
como artesanato, desenvolver-se como produto feito com a mão, que passará
a ser industrial se suas características permitirem. Concorrerá com a indústria
como o pão e o vinho francês, e sempre ganhará.

AFINAL, O QUE É ARTESANATO ? (2)


Raul Córdula

Seria desnecessária uma definição de artesanato se o processo de


desenvolvimento social e econômico não tivesse esbarrado nas teses neo-
librerais dominantes há duas décadas no nosso universo político. Teses que

24
parecem desconhecer, e por isto parecem menosprezar, a importância da
cultura na construção do País.
Na verdade a atitude de desprezo para com a cultura é perversamente
estratégica, existe para afastar a possibilidade de uma identidade social que
poderia ser um fator complicador dos negócios globalizados que exigem
produtos equalizados, dentro das normas técnicas de um tipo de mercado que
se caracteriza por "zero expressão", arquitetado para não exigir nenhum
esforço intelectual diante do ato de consumir, e orientado no sentido do baixo
preço para facilitar sua massificação.
Esta estratégia introduz conceitos que modificam a natureza do
artesanato impondo a idéia de que, do ponto de vista do produto, o uso é mais
importante que a beleza, muito mais importante que a tradição cultural e
muitíssimo mais importante que o seu envolvimento sócio-econômico. Isso
significa que um recipiente de plástico será, em tese, melhor do que um de
cerâmica, pois é mais barato e substitui grande parte das funções do outro e,
ainda mais, sua fabricação e distribuição no mercado atende aos acordos que
as classes dominantes mantêm em função dos seus compromissos políticos
voltados para a expansão do sistema financeiro mundial, como conhecemos
hoje, profundamente excludente do ponto de vista social e injusto no âmbito
das relações de trabalho.
Qualquer economista recém-formado de orientação neoliberal dirá que o
artesanato, por conta de seu meio de produção "pré-industrial", é uma atividade
economicamente inviável, e desaconselhará sua inclusão nos projetos de
desenvolvimento. Trancados nos seus gabinetes os burocratas do sistema são
incapazes de imaginar o significado da relação natural entre o homem e a terra,
jamais poderão supor que a vida reside também no ato de arar, plantar, colher
e fazer o pão, e que a felicidade reside, para muitos, no ato de apanhar o barro,
amassar, modelar, cozer, pintar, cozer de novo e utilizar o pote, a panela e o
prato que surgiram da argila como produto de sua mão, da dignidade do seu
trabalho e da pureza de sua alma.
Eis o que é o artesanato: o fruto do trabalho, realizado através das mãos
na confecção de objetos destinados ao conforto do homem, onde a máquina,
se for utilizada, será apenas ferramenta, nunca um fator determinante para a
existência do objeto.
Os mexicanos são mais radicais. No documento que define as funções
do Fundo de Fomento Para o Artesanato - FONART, que existiu no Governo
Echeverría, está expresso que "artesanatos são as obras materiais do artesão
que em sua origem é arte popular". Consideram ainda que o artesanato que se
cultiva sob uma influência artística comercial ou estranha à tradição mexicana
não é objeto de interesse do Fundo.
O conceito de "arte popular", no entanto, não vigora em todo o mundo.
Nas megalópoles como New York, São Paulo, São Francisco, Londres, Tóquio
e mesmo em cidades menores mas cosmopolitas, há o conceito de "artesanato
urbano", ou onde o artífice alia as técnicas tradicionais aos estilos da época.
Exemplo disso são os ornatos da arquitetura e os utensílios da casa, desde a
antigüidade clássica, passando pelo renascimento, até agora. Grandes
períodos do artesanato foram a arte nouveau e a art deco diante da grande
produção de ornamentos e utensílios portadores dos estilos correspondentes
de autoria de artistas/artesão como o vidreiro Galé e o joalheiro Lalic, por
exemplo. Neste período um fenomenal artista, arquiteto e artesão proporcionou

25
à humanidade um dos seus tesouros modernos: trata-se de Antonio Gaudí, que
além de criar e projetar, executou ornatos e mobiliários utilizando materiais
diversos, desde cacos de azulejos que usou como mosaicos, passando pela
cerâmica de revestimento, ladrilhos, entalhes em madeira, ferros forjar, vidros,
metais diversos, pedras e relevos em reboco. Gaudí aliou, com uma maestria
sem par, o artesanato e o material industrial, combinando-os com total
harmonia.
A utilização das técnicas artesanais por Gaudí, de certa forma,
determinou o "artesanato contemporâneo", consolidado pelo advento do
"estilo", isto é, a maneira de época. A Bau Haus, escola alemã que implantou
no mundo o conceito de design moderno, fechada pelo nazismo, mas depois
reabilitada, com outro conceito embora, como Escola de Ulm (Hokschülle Für
Gestautung) também foi responsável pelo "artesanato contemporâneo" pois
nem tudo que é desenhado dentro de uma estética atual pode ser destinado a
produção por meio industrial. O mobiliário, a poteria, a tecelagem e a joalharia,
por exemplo, são atividades constantes do artesanato contemporâneo
praticado maciçamente nos dias de hoje.
O Brasil tem seus representantes neste setor, como o design de móveis
e arquiteto Sérgio Rodrigues, autor da Poltrona Mole, o arquiteto "artesanal"
Zanini, os joalheiros Caio Mourão Márcio Mattar e Clementina Duarte, os
ceramistas Megume Yuasa, Francisco Brennand e Miguel dos Santos, o
"jardineiro" Burle Marx, a tapeceira Ceça Colaço, entre outros.
A mão do Homem, no entanto, é o fator determinante do artesanato
tradicional ou contemporâneo. É conhecida a comparação do Visconde de
Eccles sobre este fato: "A excelência do objeto artesanal está no fato de que a
mão do homem além do poder de fazer, também tem o poder curar.
Os objetos artesanais carregam a identidade e a tradição cultural de
seus autores, sejam tradicionais ou contemporâneos. A obra de arte aplicada
de Burle Marx (ele é autor do maior piso de mosaico português do mundo, o
calçadão do aterro de Copacabana) tem nítida expressão brasileira com a
influência ibérica do tema principal: as ondas da calçada de Copacabana que
são reprodução das existentes na beira do Rio Tejo, em Lisboa. A Poltrona
Mole de Sérgio Rodrigues, as Jóias de Clementina Duarte, as casas de Zanini
e as cerâmicas de Brennand exaltam a floresta, a flor, o tronco, a clareira deste
país Brasil.
A tradição reside tanto na expressão que os objetos transmitem como na
maneira pela qual são feitos. Uma determinada Boulangerie da Rue des Les
Gravilliers, em Paris, que ostenta um brasão do século 18, faz o mesmo pão de
nozes que alimentava à soldadesca de Napoleão, embora suas dependências
permaneçam as mesmas, uma área de não mais do que 50m2. Aquele pão de
nozes, assim como a maior parte da produção do vinho Francês, o papel de
aquarela D'arche que é feito da mesma maneira há 6 séculos, as rendas
belgas, irlandesas, iugoslavas portuguesas, brasileiras, a cerâmica não
industrial ainda praticada em todo o mundo, a cachaça de Brejo de Areia, na
Paraíba, ou de Minas Gerais, a carne de sol do Seridó, as charqueadas, a
culinária de Santo da Bahia, a doçaria brasileira, os queijos do sertão, os
mosaicos portugueses das cidades como Recife, Rio, Salvador, Manaus e
Belém, os ladrilhos hidráulicos, os objetos feitos de marchetaria, marcenaria,
carpintaria, funilaria, cantaria, tecelagem manual, tecelagem de redes de
dormir, trançados de palha, trançados de couro, papel marche, brinquedos

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populares, bruxas de pano, cestaria, peleteria, ourivesaria, engaste de pedras
preciosas, lapidação, forja, fundição, e tantos outros fazeres que quase não se
pode nomear, são manifestações do artesanato.
Não se pode confundir, no entanto, artesanato com arte. A arte como
conhecemos hoje tem a mesma origem do artesanato e, podemos dizer,
grande parcela de sua produção depende dele. Mas não significam mais a
mesma coisa. Sucede que, numa visão grego-clássica, arte e técnica vêm da
mesma raiz lingüística. A civilização Européia cuidou de dividir este conceito
pois as obras dos "artistas" ou pendiam para um ideal de perfeição, desprovido
de alma embora, ou para o êxtase estético, sem muito compromisso com a
maneira de fazer. Aparecem aí dois sentidos opostos de realização: pela
perfeição do trabalho, apolíneo (do deus Apolo, protetor do homem como ser
físico), ou pela qualidade do sentimento, dionisíaco (do deus Dioniso, ou Baco,
deus do vinho, mas também dos sentimentos e do êxtase). Esparta e Atenas
traduzem bem esta divisão de territórios, uma realizada através do ideal físico
do trabalho (apolíneo) e outra através do ideal filosófico (dionisíaco).
O artesão é aquele que sabe fazer, o artista aquele que cria. Um
depende do outro no momento em que a criação necessita de realização física,
a presença de uma obra de arte de pintura, por exemplo, somente é possível
se o artista utilizar o artesanato da pintura para dar à luz seus sentimentos. Em
todo artista que trabalha com as mãos existe um artesão. Nas comunidades de
artesãos como o Alto do Moura, em Caruaru geralmente existem "Mestres
Artesãos". É o caso de Vitalino, Zé Caboclo, Manoel Eudócio e Galdino.
Vitalino, Caboclo e Eudócio criaram modelos, "protótipos" de figuras ou grupos
que foram multiplicados pelos seus seguidores. O caso mais notável é mesmo
o de Vitalino que "desenhou" uma verdadeira sociologia do Agreste, desde o
boi isolado, simbólico, quase rupestre, até o rebanho, a caça, a retirada da
seca, as cenas de seca e de fartura, as cenas da vila do Alto do Moura, a vida
comum, o dia-a-dia, as atividades domésticas, as profissões, os casos trágicos
e humorísticos. Na verdade todos os artesãos do Moura acrescentam,
eventualmente, alguma cena a este painel sociológico que o Mestre Vitalino
iniciou. O caso de Galdino é diferente, ele é um artista que trabalha com a
cerâmica e que absorveu a maneira de trabalhar dos artesãos do Moura,
utilizando o material, a forma de trata-lo e queima-lo para expressar seu
universo fantástico de poeta, cantador e escultor.
É comum à atividade artesanal a repetição, a tranqüilidade, a paciência,
a harmonia e a paz, como acontece no Alto do Moura, em Tracunhaem, em
comunidades de louceiras em todo interior, nos grupos de bordadeiras,
rendeiras e tecelões.
O artesanato tradicional e popular é uma atividade pacífica, enquanto
que a arte não necessita de ser. O artesanato é socializante pois é possível, e
desejável, que ele se organize em grupos, associações ou cooperativas pois
sua vida econômica depende, em parte, de sua capacidade de organização
coletiva, da solidariedade, da boa divisão de trabalho e de lucro.
A convivência do artesanato com a agricultura é perfeito, pode-se dizer
que ele é uma atividade sazonal pois existe nas entressafras, atende aos
momentos de falta de colheita. Na pesca o artesanato da rede subsidia o
pescador da sua "arma de guerra" , mas a mulher do pescador também faz a
renda de praia (filé, labirinto, renda de bilro). Diz-se que "onde há rede há
renda", e quando o pescador não traz o peixe, a renda põe o peixe na mesa.

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ARTESANATO, EMPREGO E TRABALHO
Tratado no Brasil como atividade marginal, desde que as doutrinas que
privilegiam o mercado como única atividade humana respeitável são tidas
como vitoriosas, o artesanato resiste, aos trancos e barrancos, mas resiste. A
revista Exportar & GERÊNCIA, dedicada à pequena empresa exportadora, no
seu número de maio de 1999, anuncia que o mercado internacional está de
olho nosso artesanato. No artigo Espaço aberto para o artesanato estão
informações surpreendentes para quem não conhece as dimensões dessa
atividade: estima-se que o artesanato brasileiro movimenta três bilhões de
dólares, envolvendo oito milhões e quinhentas mil pessoas. Estes números
surpreenderão ainda mais a quem acredita que o artesanato significa apenas a
parafernália de bugigangas dos famigerados "mercados de artesanato" que
assolam, em nome do turismo, nossas cidades de norte a sul. É até possível
que neles se achem alguns produtos de boa qualidade, mas encontra-los
depende de sorte. O comerciante de artesanato destes mercados, os
intermediários dos artesãos com raríssimas e honrosas exceções, tem o
interesse único do lucro, para tanto as qualidades sutis do bom artesanato
tornam-se fator complicador diante da guerra do mercado.
No México chamam um determinado tipo de artesanato voltado para o
mercado turístico de artesanato de aeroporto. Nada mais indigno para o
artesão daquele país, altamente politizado e orgulhoso de suas origens
culturais, do que ser comparado com quem produz estes souvenirs para
turistas desavisados. Este tipo de produto, no México, vem da periferia da sua
enorme capital, fruto da exploração de comerciantes inescrupulosos,
proprietários de "fábricas de artesanato", que utilizam apenas a mão de obra do
artesão como se ele fosse um operário, não valorizando a autoria do produto e
recusando a liberdade inerente ao seu sistema de trabalho, fator que diferencia
a produção do artesão, como classe social, da produção do operário.
No Brasil temos visto dois tipos de política em nome do desenvolvimento
do artesanato: a disseminação de mercados turísticos de artesanato e a
tentativa de inserir o artesão no mercado formal de trabalho. Ambas as ações
são devastadoras, ambas tiram do artesão a autonomia e a força de sua
atividade, drenam sua economia e fazem o artesão desacreditar do seu futuro.
O México, no entanto, é um país que cultiva o artesanato do seu povo, rural e
urbano, com orgulho e dignidade, e a produção artesanal faz parte do
planejamento nacional.
Proletarizar o artesão é um erro social crasso, trata-se de inverter
qualquer possibilidade de desenvolvimento da atividade artesanal. Em nome de
uma pretensa segurança social - que a prática afirma que nunca existiu -
sugere-se que o artesão formalize sua relação de trabalho com o Estado,
solicita-se que ele torne-se um cidadão possuidor de uma carteira de trabalho,
que pague seus impostos para ter seus direitos civis, assim por diante... Muito
que bem, todo cidadão pode e deve estar ligado formalmente ao Estado, mas
isto não significa que ele tenha que sofrer as conseqüências deste vínculo. Não
significa, por exemplo, que ele aceite possuir a obrigação de contribuir sem ter
de onde tirar esta contribuição, de pagar impostos sem ter benefícios, de
apresentar o fruto do seu trabalho sem ter crédito para financiar os insumos
básicos de sua produção.

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A formalização profissional é própria e exata para a atividade operária ou
para quem tem de depende de emprego. Os meios e os modos que uma
indústria possui para estabelecer um contrato de trabalho, seja ou não justo,
passam pela formalização da situação civil do operário. Aí devem estar
embutidos os direitos e os deveres de ambas as partes. Mas um artesão não é
um operário, ao contrário, seu regime de trabalho, geralmente doméstico e
familiar, é incompatível com os horários, metas de produção, especialização,
visão fragmentada do produto, e outras características do trabalho operário.
O artesão é dono do seu tempo, do seu espaço e dos resultados de
seus empreendimentos, incluindo os frutos do seu trabalho. Ele faz seu horário,
determina sua produção e seus meios para alcançar as metas que,
eventualmente, impõe a si mesmo. O artesão tem uma visão completa do seu
produto, não participa apenas de um detalhe ou uma parte do produto final,
como acontece com o operário, e sendo assim ele pode perfeitamente projetar
sua produção e seus lucros. A questão do artesão é a liberdade: ele pode até
mesmo utilizar dois tempos, um para uma atividade operária ou camponesa,
outro para o seu artesanato artesão.
O operário, no entanto, necessita de ser empregado para poder
trabalhar, o artesão se auto-emprega. O operariado existe em função de uma
classe patronal que enriquece com o trabalho cativo pois a riqueza do
empresariado industrial provém do trabalho que o operário enterra na fábrica,
que é transformado em capital para o patrão. O artesão, ao contrário, pode ser
um trabalhador livre, dono do seu trabalho e de seus frutos. O artesão
capitaliza o objeto que produz, transforma-os em estoque, capital mobilizado,
riqueza potencial.
Não é fundamental gerar emprego, mas gerar renda, fruto do trabalho
autônomo, livre, capaz de capitalizar aquele que trabalhou.
A atividade artesanal é socializante, isto é, ela comporta, e muito bem, o
trabalho em grupo. Pode tornar-se, portanto, formalmente associativa, o que se
constitui num fator desejável. Uma associação de artesãos com caráter
cooperativo pode perfeitamente substituir, e com inúmeras vantagens, a figura
do intermediário. Uma cooperativa artesanal, por exemplo, pode ser
responsável pela produção e pela comercialização do produto, envolvendo os
detalhes de marketing, embalagem, distribuição, representação, e outras
atividades inerentes ao mercado. O artesão isolado, por sua vez, dependerá
sempre de um intermediário para vender seu produto. Um exemplo típico das
conseqüências desse intermédio foi relatado pela pesquisadora e
colecionadora de brinquedos populares Macao Góes. Ela conta que uma
determinada artesã produtora de "bruxas de pano" no Sertão da Paraíba
fornece suas bonecas em sua casa por R$ 0,80 (oitenta centavos) cada
exemplar, no entanto elas são vendidas nas lojas da capital por R$ 10,00 (dez
Reais). Sua relação com o intermediário é de tal maneira dependente que este
não lhe dá mais dinheiro, troca toda sua produção por cestas básicas
fornecidas mensalmente.
Além das vantagens comerciais a organização cooperativa conta com
parcerias desejáveis entre si, há hoje uma rede mundial de cooperativas
artesanais que formam uma considerável força de resistência. Ajustes de
produto como peso e dimensões, detalhes técnicos como queima cerâmica,
correções de design, embalagem e transporte, assistência jurídica para
créditos e exportação, tudo isto pode ser tratado com mais facilidade se o

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artesão estiver organizado em um grupo que tenha como base o trabalho
solidário.

ARTESANATO E MERCADO
O mercado natural para o artesanato é o mercado interno.
Primeiramente a rua onde mora o artesão ou o grupo de artesãos, em seguida
o bairro, a cidade, o país. Depois, dependendo do tipo de produto, do design,
do material e outras características, o artesanato poderá ter características de
produto exportável.
O mercado do artesanato depende exclusivamente de promoção, de
elementos de comercialização exatamente iguais ao do marketing industrial. É
fundamental, porém, a projeção de uma política capaz de estabelecer a
concorrência entre produto artesanal e produto industrial: nisso pode residir a
diferença entre estes dois extremos e, quem sabe, a solução para um
verdadeiro caminho de desenvolvimento de uma produção nacional.
Temos informação sobre a China, em entrevista da senhora Lee Han,
Diretora de Artesanato do Ministério de Indústrias Ligeiras daquele país nos
anos 70, que indicava que o artesanato chinês estava a serviço de 800 milhões
de pessoas. Não desconhecemos as relações de consumo num país de 2
bilhões de habitantes, mas provavelmente a recente aceitação de indústrias
capitalistas não substituiu, e não substituirá pois não se trata deste enfoque, o
trabalho artesanal na China.
Vimos na cidade do México supermercados destinando, através de uma
lei municipal, 20% do seu espaço para o produto artesanal mexicano. Não para
o produto comprado pelo departamento de comercialização da empresa, isto
temos aqui em menor proporção, mas oferecido pelo FONART, um Fundo de
Fomento Para o Artesanato que existia naquele país nos anos 70.
Desde os tempos que a SUDENE mantinha a ARTENE, que contava
com uma equipe heróica que lutava por idéias como estas, não se vê em
Pernambuco ou em qualquer outro estado nordestino qualquer discussão sobre
a promoção do artesanato. Temos visto políticas assistencialistas, eleitoreiras,
paternalistas, shows para turistas, etc., mas não se fala em financiamento,
recursos técnicos, estudos de embalagens e transporte, análise de produtos,
controle de qualidade, autonomia de produção e comercialização, proteção
contra a exploração comercial, etc. Precisa-se de assistência sim, mas
assistência técnica, organizacional, contábil, desenvolvimentista.
Fato é que qualquer campanha de promoção do artesanato necessita
passar pelo orgulho que o povo tem pela sua cultura. A chamada "classe
média", tão espoliada em seus desejos de felicidade, é o mercado certo para o
produto artesanal que contenha, além das características da habilidade
manual, a alma do povo. Não é exatamente o que se oferece quando, em
nome da cultura, se promove nossa festivais de dança e música exógena,
carnavais fora de tempo, etc. O objetivo principal é o lucro, é a venda de
cerveja, não das belas máscaras carnavalescas feitas por Julião e sua família,
é a venda de "mortalhas e abadás", não das belas fantasias confeccionadas
pelas costureiras de Olinda, e assim se sucedem as inversões de valores sem
que haja, na verdade, qualquer agente governamental responsável por uma
política ou orientação pública com a finalidade de preservar, promover, manter
viva a tradição e a voz do povo.

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A ARTENE teve uma função, apesar das dificuldades, excelente:
detectava os bolsões de produção de artesanato para usar a informação como
subsídio numa política de implantação de novas indústrias. O princípio dos
criadores da SUDENE era ser sensível à tradição e à vocação de cada lugar,
de cada povo. Mas não teve sucesso, as pressões políticas derrubaram esta
tarefa ao ponto daquele digno Departamento transformar-se numa mísera
lojinha de artesanato tão medíocre quanto qualquer uma da Casa da Cultura. É
famoso o caso (o investigamos através do Planesc, escritório de planejamento
que implantou o projeto, quando representávamos no Brasil o Conselho
Mundial de Artesanato) da fábrica de sandálias japonesa BESA, que produz
milhões de calçados/mês. Tudo bem, certamente deixa um belo imposto para a
Paraíba, e este caso não é único, haveremos de encontrar iguais em todo o
Nordeste assistido pela SUDENE. Mas onde está toda a produção de calçado
popular que se nucleava em Campina Grande através dos seus
artesãos/sapateiros? E por gravidade, a produção de couro, os dois curtumes e
parte do rebanho existente, desapareceram? Para onde foram os artesãos?
Vender picolé no Meninão (Estádio de Futebol que homenageia o Prefeito da
cidade)? Quantos eram eles? Mil, dois mil, dez mil? Provavelmente dez mil
pessoas, diretas ou indiretamente, perderam suas fontes de lucro. O polo
calçadista de Franca, em São Paulo, certamente um dia foi um núcleo de
sapateiros igual ao que havia em Campina Grande antes da implantação da
BESA, mas lá não chegou nenhuma fábrica de sapato barato, em vez disso
investiram no desenvolvimento dos sapateiros, artesãos que hoje representam
um dos melhores itens de exportação do Brasil.
Artesanato está ligado historicamente à indústria manufatureira o Norte
da Europa nos conta esta história eloqüentemente. Mas ele tem que evoluir
como artesanato, desenvolver-se como produto feito com a mão, que passará
a ser industrial se suas características permitirem. Concorrerá com a indústria
como o pão e o vinho francês, e sempre ganhará.

O ARTESANATO NA PARAÍBA
Raul Córdula

Sabe-se que o artesanato do Nordeste brasileiro é riquíssimo, mas


pouco se sabe sobre suas diferenças. Podemos dizer que acompanham a
geografia, com as inúmeras matérias primas que o artesão transforma em
objetos de rara beleza, com suas mãos armadas de talento. Destacamos, por
exemplo, o artesanato praieiro da pesca e da renda em todo o litoral, a palha
do Maranhão e do Piauí, o couro e o queijo do Agreste, os tecidos raros do
Ceará, de Alagoas e de Pernambuco, a cerâmica e o entalhe em madeira de
Pernambuco, a louça de Carrapicho (Sergipe), do Talhado (Paraíba) e de
Maragojipinho (Bahia), entre tantas ilhas de excelência expressiva advindas da
mão do homem do Nordeste.
A Paraíba é uma destas "ilhas" de maior atividade e expressão. O
artesanato aqui ainda é um dos meios mais importantes de produção de renda
em escala familiar. O universo artesanal paraibano abrange desde a confecção
de alimentos conservados naturalmente, como carne de sol e charque, queijo,
peixe seco, doces e bebidas, como licores, vinhos de frutas e cachaças, até
objetos do cotidiano como louças de barro, utensílios de funilaria, marcenaria,

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atanato (artesanato do couro), tecelagem e tecidos raros, como rendas e
labirintos.
Ainda podemos nos referir ao artesanato que serve de manutenção ao
trabalho e à vida cotidiana, como a ferramentaria produzida em forja: martelos,
foices, facas e facões, estrovengas e arados, ou os feitos de cerâmica como
"formas" para água, panelas para cozinhar ou panelas furadas para irrigação
por gotejamento, manilhas sanitárias e manilhas de drenagem, vasos
sanitários, filtros de água, telhas e tijolos, ou ainda esquadrias e mobiliário de
madeira.
Se o artesanato no meio rural é, na maioria dos caos, uma atividade
sazonal (ele pode ser também atividade permanente, como é o caso da
produção de redes de dormir na cidade sertaneja de São Bento) no meio
urbano ele é sempre uma atividade permanente pois atende a um mercado de
classe média que compra o conforto e a beleza. O artesanato urbano, pródigo
na Paraíba, é aliado do design e das artes plásticas, fazendo parte de uma
produção sofisticada e reconhecidamente de boa qualidade, manifestando-se
em cerâmica, mobiliário, marcenaria, atanato, joalheria, luminárias e artigos de
moda.
Um destaque especial deve ser dado à produção de brinquedos
artesanais. Estes objetos não são produzidos por técnica, mas pela função.
São uma categoria de artesanato, uma das mais importantes por sua função
intrínseca de educação e lazer. Aqui se produz bonecas e "Bruxas" de pano,
carros de madeira e lata, "Mané Gostoso", "Borboleta", "Cavalo de Pau", e
tantos outros objetos que trazem em si a inocente função lúdica com a sua
fundamental conseqüência que é o crescimento humano.
Há ainda o artesanato ligado ao folclore: o artesanato de carnaval, como
máscaras e fantasias, as "Toldas" e os bonecos dos "Mamolengos", "Babaus"
ou "Joões Redondos", as "Barcas" ou "Naus Catarinetas", os ternos de
"Cambindas" e "Reisados", as ferramentas de "Candomblé", os objetos
circenses.
Não se pode esquecer o artesanato religioso, das ornamentações de
festas de Igreja, dos casamentos e de missas, como os belos trabalhos em
tecidos bordados ou pintados nos estandartes das procissões, os vestidos de
noivas, os bolos confeitados e os doces dos casamentos, os altares naves
enfeitados.
Há ainda uma outra categoria que localiza-se no limite entre artesanato
e indústria, possui ferramentas e máquinas para sua confecção mas não
dispensam uma grande parcela de mão de obra. Ou ainda fazem parte de um
saber ancestral que não cabe nas tecnologias da atualidade e não pode mais
se adaptar a elas sem perder suas principais e ricas características. Referimo-
nos às tecnologias patrimoniais, primeiramente às semi-industriais, como a
fabricação de vinhos de frutas (o vinho de caju da marca Celeste, por exemplo)
ou as cachaças da cidade de Areia, principalmente, e de toda região do Anel do
Brejo. A outra tecnologia é o saber do artesanato de restauração de
monumentos históricos, como o entalhe em madeira, o douramento e a
cantaria (entalhe em pedra) entre outras técnicas que são a base do trabalho
de restauração e conservação do nosso patrimônio histórico e artístico
construído em pedra e cal (porque existem outros tipos de patrimônios
históricos, artísticos e culturais como, por exemplo, o saber do artesão)

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O Governo da Paraíba, através da Subsecretaria de Cultura e da Secretaria do
Trabalho e Ação Social, dispensa especial atenção à riqueza cultural,
civilizadora e econômica que é seu artesanato. Por meio de ações planejadas
entre elas, com apoio de diversos organismos interessados na melhoria da
economia popular, veremos em pouco tempo diminuir as distâncias que
separam esta extraordinária produção de bens materiais e culturais do seu
verdadeiro mercado, que é a própria população paraibana.

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