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Governo, subjetividades e gestão de populações: balanço e perspectivas analíticas

Edson Miagusko (UFRRJ)


Fabiana A. A.Jardim (USP)
Mariana M. P. Côrtes (UFU)

Resumo: O presente artigo pretende apresentar um balanço do debate acadêmico sobre o governo das
populações das periferias no contexto nacional e internacional. Para o contexto nacional, o artigo retraça
como o tema foi tratado a partir de um recorte histórico: nos anos 1980, a promessa de integração
democrática das populações marginais por meio da mediação dos direitos sociais; nos anos 1990, o
“desmanche” neoliberal e o fim da “hipótese superadora”; nos anos 2000, a perspectiva de que a
“governamentalidade” neoliberal não opera simplesmente pelo enxugamento do Estado social ou pelo
vazio deixado pelo “desmanche”, mas, ao contrário, funciona por meio de uma multiplicação de regimes
de governos, que combinam intervenções governamentais e agências que surgem, de forma criativa, por
dentro das margens: o dispositivo do “mundo do crime”, o dispositivo do “pentecostalismo”, dentre
outros. Para o contexto internacional, apresenta-se uma discussão em torno de três eixos teórico-
conceituais: a teoria da marginalidade; o conceito de governamentalidade; a proposta de uma
antropologia do Estado. Assim, o artigo aponta os avanços teórico-metodológicos do debate
contemporâneo sobre as periferias ao mostrar como esse implode as fronteiras disciplinares ao propor
um diálogo criativo entre questões que hoje se articulam de forma tensa: políticas públicas setorizadas,
mercado de trabalho, religião, saúde, segurança pública, violência, crime, drogas, movimentos de luta
pela moradia urbana, entre outros.
Transversalidade
Palavras-chave: Estado; margens; governamentalidade; populações; periferias.

Abstract: In this article, we intend to present a provisory state of art on the academic debate about the
government of populations within peripheries, both in Brazil and internationally. For our national
context, we outline how this theme was approached through a historical perspective: during the 1980’s,
the promise of a democratic integration of these “marginal” populations through access to social rights;
in the 1990’s, the neoliberal “dismantlement” and the end of a “overcoming hypothesis”; during the
2000’s, we have that neoliberal governmentality does not operate simply by shrinking social State or
producing a vacuum after the dismantlement – on the contrary, it becomes clear that this new
governmentality operates through the multiplication of regimes of government, which combine State
interventions and new agencies that, creatively, emerge from within the margins: a dispositive we can
name “world of crime”, the “Pentecostalism” dispositive, among others. For the international context,
we present the debate through three theoretical and conceptual axes: the theories of marginality, the
concept of governmentality and an anthropology of the State. Therefore, the article emphasizes the
theoretical and methodological developments on contemporary debate about peripheries in the sense
that they implode disciplinary frontiers by proposing a creative interchange between questions that can
only be thought together problematically: sectorial public policies, labor market, religion, health, public
security, violence, crime, drugs, social movements for housing and others.

Key words: State; margins; governmentality; population; peripheries.

1
1. Introdução
O objetivo deste artigo é esboçar um balanço da produção acadêmica em torno de um
problema clássico para a sociologia: trata-se de examinar como têm operado teórica e
analiticamente os estudos que procuram pensar as configurações mais recentes da chamada
questão social (CASTEL, 1998), isto é, dos problemas – teóricos e práticos – colocados pela
existência de parcelas da população que não parecem se integrar às atividades e condutas
esperadas de um cidadão, normativamente definido pelo Estado e pelo senso comum.
No caso brasileiro, cuja formação inclui um processo de colonização violenta e um dos
mais duradouros sistemas de escravidão e em que as políticas sociais começaram a adquirir
consistência somente nos anos 1930, constituindo uma experiência de cidadania "regulada"
(SANTOS, 1979) fortemente vinculada ao trabalho urbano-industrial, não provoca espanto que
sejam numerosas as parcelas da população que escapam às normas de cidadania ou, dizendo de
outro modo, que sejam muitos aqueles a quem faltam as condições objetivas de plena adesão a
elas.
Pobres, populações marginais, favelados, excluídos, periféricos, de baixo...1 Várias são
as denominações já mobilizadas para circunscrever a condição desses sujeitos, cuja experiência
de cidadania “desvia” tão fortemente de certa cultura política do ocidente moderno que define
os contornos do exercício de direitos civis, políticos e sociais, deixando de fora um imenso
conjunto de práticas e experiências que, não obstante, se desenvolvem às margens do Estado –
mesmo quando produzidas por sua presença ou que tomem a prática estatal como referência.
Desde os movimentos iniciais para a produção deste balanço da produção em torno do
tema, nos foi possível localizar alguns momentos importantes para o avanço desse desafio
teórico-metodológico (assim como político) de tornar compreensíveis – e, portanto, visíveis –
as especificidades das experiências de trabalho, política e cidadania em países como o nosso,
compreendendo também a dinâmica societária capaz de, ao mesmo tempo, estruturar
desigualdades tão profundas e mantê-las relativamente estáveis ao longo do tempo. Tendo como
foco a produção da sociologia nacional, o artigo seguirá os passos destes diferentes momentos,
que ganham especificidade de acordo com os problemas aos quais as ciências sociais intentam
fazer frente; em seguida, faremos uma breve incursão sobre o debate internacional, preocupados
menos em apresentar um panorama exaustivo do que em sugerir nexos que nos ligam a um
contexto mais geral, do ponto de vista político e epistêmico; finalmente, encerramos estas

1
Para uma discussão sobre o tema, até o momento da crítica à noção de “exclusão”, ver Martins (2002). Para uma
discussão sobre a apropriação da noção de periferia numa subjetivação positiva, ver D’Andrea (2013).

2
reflexões apontando os avanços e desafios que, a nosso ver, se apresentam a este campo de
investigações.

2. Anos 1980 e a vertigem democrática


Esforços no sentido de compreender as relações sociais acima referidas podem ser
localizados nos anos 1970 e 1980, em trabalhos desenvolvidos a partir de uma perspectiva
marxista2 e também em investigações com forte caráter etnográfico3. Tratava-se, a um só
tempo, de compreender as subjetividades forjadas nessa experiência cotidiana de inseguranças
e desigualdades e, ainda, reconhecer em quais condições foi possível que essa experiência desse
corpo a novas personagens políticas (SADER, PAOLI; SADER; TELLES, 1983). Tratava-se,
portanto, de um projeto preocupado em contribuir para o processo de transição democrática
após o fim de mais de duas décadas de ditadura civil militar, bem como para a superação de
iniquidades sociais, apostando na constituição de novas relações políticas e sociais, menos
violentas e mais democráticas.
Num texto de 1982, Chico de Oliveira produzia um tensionamento nos debates
ocorridos à época, condensando num mesmo diagrama o Estado, o urbano e o trabalho. O ponto
de partida era a ausência de teorização sobre as relações entre Estado e urbano no Brasil. O
autor lançava um questionamento, apontando que a ausência de teorização sobre o urbano
continha seu lado frágil, mas que, paradoxalmente, em termos analíticos era bastante profícuo:
a ausência de uma teoria robusta fazia com que as reflexões pudessem se dar nas condições
concretas, sem utilizar a importação de teorizações acríticas. Deste modo, Oliveira propunha
um programa de pesquisa sobre as relações entre Estado e sociedade civil e sobre o
antagonismo entre os dois blocos para além da produção social da riqueza, ou seja, além do
antagonismo reduzido a como direcionar e utilizar o aparelho de Estado. Mais do que teórica,
naquele momento a preocupação do autor era política.
Do mesmo modo, a reflexão sobre os movimentos sociais continha essa leitura e aposta
e se articulava no interior de um diagrama cujas linhas de força se estruturavam em torno de
experiências comuns de moradia e trabalho, que organizavam um campo de conflitos políticos
com maior nitidez. Assim, a marca dos anos 1980, e parte dos 1990, no debate sobre periferias
é o boom na Sociologia e em áreas afins dos estudos sobre movimentos sociais (BRANT, 1980;
SINGER, 1980; JACOBI, 1987; PAOLI, 1987; KOWARICK, 1984).

2
Ver, por exemplo Cardoso (1971); Oliveira (2003[1973]); Foracchi (1978); Paoli (1978).
3
Ver, por exemplo, Zaluar (1982); Kowarick (1975; 1978); Perlman (1981[1977]); Durham (1973). Para um
balanço do debate no campo da antropologia, ver Frugoli (2005).

3
Naquele momento, a categoria explicativa fundava-se na visão da democracia inscrita
nos costumes de um povo, saindo do registro das instituições políticas como medida
democrática e passando para o plano de uma “cultura política”, (DAGNINO, 1994 e 2002)
associando democracia e sociabilidade (TOCQUEVILLE, 1977). Desse modo, não apenas a
história dos movimentos sociais era reinterpretada e vista sob novos ângulos, como os conceitos
seriam redefinidos, de acordo com o novo contexto político.
Tal mudança fazia-se necessária, uma vez que as categorias analíticas utilizadas
anteriormente ressaltavam mais a incompletude da experiência política dos movimentos sociais
do que o modo como esses sujeitos constituíam efetivamente suas experiências e práticas, numa
sociedade marcada pela forte presença do Estado, que subsumia as manifestações do que
entendemos como sociedade civil. A produção acadêmica estava inscrita, deste modo, num
contexto em que as lutas pela redemocratização do país tinham papel destacado e a
influenciavam. A extensa produção sobre movimentos sociais na década de 1980, em contraste
com a década seguinte, também estava relacionada às apostas da construção democrática no
Brasil. O país passava pela transição e abertura e a produção acadêmica refletia as apostas à
publicização dos conflitos desencadeado por estes novos agentes. Experiências
A própria percepção dos agentes se confundia com estas apostas. Não mais figuravam
esses sujeitos pela sua insuficiência, como na chave anterior, mas a partir de suas próprias
experiências (PAOLI, SADER, TELLES, 1983). Aqui haveria uma primeira tentativa de
figuração desses sujeitos, das periferias e dos trabalhadores, não como falta, mas como presença
efetiva na vida do país, em duplo sentido. Em primeiro lugar, fugindo aos dualismos anteriores
da teoria da marginalidade, que a Crítica da Razão Dualista (OLIVEIRA, 2003a) já havia
procurado enfrentar. O segundo, a partir da história e do aparecimento público desses sujeitos
(ARENDT, 1999).
No caso dos trabalhadores, apareciam estudos que buscavam compreender sua ação a
partir de seu estatuto político e não em chave puramente econômica, que os definia como
motores do conflito. Nessa interpretação, as greves operárias do início dos anos 1980, na região
do chamado ABC Paulista4, seriam compreendidas não somente como reação à intensa
exploração permitida pelo regime autoritário, mas como o "resgate da dignidade" perdida no
trabalho e nos sucessivos autoritarismos do chão de fábrica (ABRAMO, 1999). Se, em termos
econômicos, a década de 1980 foi vista como uma "década perdida", do ponto de vista desses

4
Trata-se de um conjunto de cidades localizadas na Região Metropolitana de São Paulo, sendo composto pelos
municípios de Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano e, ainda, Diadema.

4
sujeitos, os anos 1980 coincidiram com a articulação das principais organizações sindicais e
populares que organizariam o campo de conflitos a partir de baixo nas décadas seguintes.
Essa aposta política, que se entrelaçava com a produção acadêmica, tem seu ápice na
Constituição de 1988. Denominada Constituição Cidadã, sua construção está na confluência da
profusão de conflitos que envolveram esses sujeitos que entravam em cena e de uma inédita
participação popular, que também vai ter seu ocaso no momento mesmo que a década de 1990
se inicia.
Avassalada pela grave crise econômica e social que teve lugar no país, atingida pelos
processos de mundialização do capital, limitada pela reestruturação do trabalho e destituição
dos direitos sociais, os anos 1990 coincidem com o universo posterior à promulgação da Carta
Constitucional. Experimentaríamos, então, um “deslizamento semântico” (ARANTES, 1998)
onde a gramática de direitos dos anos 1980 encontraria as transformações dos 1990 e o que
aparecia com sinais invertidos se aproximaria discursivamente numa “confluência perversa”
entre a desresponsabilização do Estado e o “protagonismo da sociedade civil” (DAGNINO,
2002).

3. Anos 1990 e o desmanche neoliberal


Os anos 1990, assim, seriam testemunhas das dificuldades envolvidas na promoção de
desenvolvimento e universalização de direitos sociais no contexto de crise do pacto em torno
da ideia de Bem-Estar social e de progressivo consenso em relação à necessidade de
responsabilidade fiscal. Outros são os temas que emergem para o pensamento, agora ligados ao
reconhecimento dos efeitos que a perda do horizonte de integração pela via do emprego e da
expansão de direitos poderia ter para o enfrentamento da questão social. Entre a crítica às várias
faces do desmanche – como os processos de reforma do Estado que abriram caminho para
terceirizações e privatizações, mesmo quando via organizações não-governamentais; a
formulação do dilema universalização vs. focalização; a despolitização da questão social
presente nos discursos da nova gestão pública – e a efervescência de experimentos na direção
do aprofundamento democrático na esfera local – como os Orçamentos Participativos –
registrava-se o embate feroz e veloz entre práticas, objetivos e racionalidades, muitas vezes
ainda animado pelas energias políticas daquelas parcelas da população que, na luta contra a
ditadura civil-militar, cruzara as fronteiras políticas e se tornara visível na cena pública,
passando a disputar sentidos e decisões. Do ponto de vista teórico, é nesse período que
localizamos uma espécie de limite final da hipótese integradora, isto é, o reconhecimento do

5
esgotamento das possibilidades de sustentar um modelo de integração de caráter modernizante,
baseado no espraiamento do trabalho urbano-industrial e da relação de assalariamento formal.
Como afirma Babha (2000), não devemos estar condenados a contar uma história apenas
de um único ponto de vista: a alteração de contexto nos obriga a reelaborar e reapropriar-nos
dessa história. Assim, a história dos movimentos sociais, contada no contexto dos anos 1980, a
partir do fio condutor da ampliação da participação popular nos mecanismos de gestão das
políticas públicas do Estado, da pedagogia e da inserção popular em canais políticos antes
proibidos ao povo, talvez nos exija, a partir do contexto da década seguinte, elaborar outra
forma de contá-la. Se as categorias que estruturavam o mundo se esvaziam de sentidos, significa
não apenas que outro mundo se articula, mas que a história do mundo anterior, de suas apostas,
também deve ser refeita. Deste modo, é também necessário refazer as questões sem as apostas
que estavam no passado. Além disso, é necessário fugir de uma certa leitura anacrônica que
procura enxergar no passado apostas, dilemas e questões que estariam em outro tempo.
Oliveira (1998) afirma que a construção da democracia e da cidadania no Brasil se
assemelha a um "trabalho de Sísifo". Os sucessivos esforços dos dominados em alcançarem
patamares mínimos de cidadania e democracia equivaleriam ao trabalho de Sísifo, pois seriam
destruídos constantemente pelos dominantes. Nesse sentido, a história do Brasil poderia ser
compreendida como uma "permanente exceção" (OLIVEIRA, 2003a): a experiência
democrática seria uma exceção na história da República, no sentido dos dominantes buscarem
repor constantemente os códigos violentos de sociabilidade privada, contra os esforços dos
dominados em publicizar o conflito5. A imagem mitológica de Sísifo descreveria o sentido dos
esforços dos "de baixo”, condenados ao eterno recomeço quando se trata de colocar o conflito
político em outro patamar (FERNANDES, 2006).
Esse "ódio à democracia" (RANCIERE, 2005) dos dominantes encontrou, porém,
sucessivas formas de resistência dos dominados. O período que vai de 1964 até 1990 pode ser
considerado como uma época de forte invenção política. A ditadura militar eleva a média da
expansão capitalista dos cinquenta anos anteriores, mas não torna possível a hegemonia. O
crescimento deslocou as forças que operavam nos marcos de um desenvolvimento capitalista
dirigido por forças internas, a burguesia nacional, subsidiada pelas forças subordinadas,
sobretudo o proletariado urbano que se ocupava na indústria. Celso Furtado caracterizaria este
tempo como um período de internalização das decisões, não apenas pelo crescimento

5
Em sentido semelhante, Santos (1979) falará em “cidadania de recesso” para sublinhar que a expansão de direitos
sociais entre nós foi concomitante a períodos ditatoriais, à prova, portanto, das demandas populares (ainda que,
muitas vezes, tenha sido o impasse redistributivo provocado por elas a dar ensejo à ruptura democrática).

6
econômico na forma de dominação burguesa, mas porque a tutela sobre o proletariado industrial
estruturava a produção de um consenso violento, que afirmava o espaço nacional como centro
dos conflitos e das decisões.
O termo desmanche apontava essas transformações que se tornavam mais visíveis nos
anos 1990, mas que talvez não tenham sido percebidas no decorrer dos anos 1980 por conta da
efervescência política do período de redemocratização do país, em especial quando olhamos
para a literatura paulista.
Em artigo no qual questiona a noção de informalidade, Machado da Silva (2006) aponta
um histórico diverso, que lê nos anos 1980 um processo já associado aos limites das
transformações no capitalismo pelas quais o mundo passava já desde os anos 1970 e que
apontava para um processo de fragmentação social. Machado da Silva critica as referências ao
debate internacional a este respeito, devido às limitações da noção de exclusão social, que
expressa tendências à polarização e à dualização6.
Quando se trata da capacidade explicativa da noção de informalidade, boa parte das
pesquisas prontamente concorda com sua insuficiência, devido à sua excessiva generalidade.
Embora essa concordância de opinião geralmente termine aí, há a questão sobre os impactos da
informalidade para as relações entre Estado e sociedade, bem como sobre o momento em que
a formalidade foi posta em xeque. Ao passo que alguns estão convencidos de que, no caso
brasileiro, o problema se relaciona com a virada dos anos 1990 e as políticas de
desregulamentação do trabalho e encolhimento das políticas universalizantes do estado, outros
sustentam que o fenômeno é anterior e remonta ao momento de crise do estado providência
durante os anos 1970.
Para Machado da Silva, todas as variáveis do capitalismo contemporâneo continuavam
a operar, o que torna pouco explicativo inserir as transformações da década de 1990 a partir de
uma leitura de caos ou desintegração. As relações sociais eram cada vez mais tópicas e
imprevisíveis e, na medida em que aprofundavam a heterogeneidade da experiência social,
dificultavam a formação de uma ação coletiva que tivesse afinidades entre os sujeitos, tornando
o conflito social disperso e descentrado. A isso, ele definiu como uma profunda "fragmentação
social". Chico de Oliveira acrescentaria a ideia da política como indeterminação (2007), em
que as linhas de força – as formas como o conflito se estruturava, seus atores centrais – capazes
de explicar o novo momento teriam “explodido”.

6
Podemos também incluir aqui as contribuições de Kowarick (2000).

7
Impulsionada ao longo dos anos 1990 pela persistência da gramática dos direitos sociais
como grade de análise e horizonte de integração e também pela expansão e consolidação dos
cursos de pós-graduação, a especialização acadêmica começava a ser posta em xeque pelas
transformações e pelas novas (e complexas) configurações que emergiam de modo mais
evidente, ainda que de difícil legibilidade, tanto mais a partir de categorias analíticas cada vez
mais deslocadas em relação à sociedade brasileira.
Por exemplo, Telles (2010), ao retomar as provocações de Oliveira (1983), vai apontar
que, apesar da agudização de vários dos problemas urbanos que já estavam ali contidos como
diagnóstico, o problema urbano não podia mais ser compreendido nos marcos analíticos
anteriores. Até aquele momento, a cidade como questão era definida a partir de um conjunto de
temas e problemas que se cruzavam e circulavam entre espaços acadêmicos e de debate político
articulados em torno de noções comuns e pares conceituais como produção e consumo, trabalho
e reprodução social, exploração e espoliação urbana, classes e conflito social, Estado e
contradições urbanas. Para Telles, tais polaridades se alteraram de modo a tornar inteligível o
debate, do ponto de vista analítico e político.
Dessa forma, a questão do estado e a produção de suas margens (DAS, POOLE,2004)
se colocaria sob novo viés. Não se tratava mais de tomá-las a partir da ação coletiva de sujeitos
que se organizaram no período da transição da ditadura civil militar para o período de
normalidade democrática; a própria democracia entrava num funcionamento pleno, mas não
coincidia com conquistas sociais que permitissem parte substantiva da população se ver
incorporada.

4. Anos 2000 e o desafio ao pensamento (e à ação)


O debate sobre a questão das periferias nas ciências sociais brasileiras conhece,
portanto, um ponto de inflexão a partir de meados dos anos 2000. Como vimos, o contexto da
transição democrática no Brasil, durante os anos 1980, havia sido marcado por importantes
movimentos sociais de luta por amplificação dos direitos e por melhoria das condições urbanas.
Contudo, a crença de que as promessas não realizadas da modernidade se fariam valer na
sociedade brasileira e de que a maioria da população alcançaria o universo de uma cidadania
ampliada não se realizou (TELLES, 2010): a hipótese da superação se esvaziou na década
seguinte. O fim da “hipótese superadora” e a difusão do fatalismo neoliberal mudaram a vida
dos sujeitos nas periferias das grandes cidades brasileiras.
Para o contexto específico da cidade de São Paulo, Gabriel Feltran (2008) mostrou, por
exemplo, como os quadros de referências que haviam mobilizado a vinda de migrantes desde

8
os anos 1960 para ocupar postos de trabalho na indústria da região metropolitana paulistana e
construir a casa própria nos bairros periféricos foram profundamente alterados a partir da
década de 1990. A crença na ascensão social da família, a garantia de emprego apoiada em
sindicatos atuantes, maiores oportunidades educacionais e os movimentos eclesiais de base da
Igreja Católica que aliaram fé cristã e luta por melhorias urbanas, fortemente presentes no
cenário dos anos 1980, saem de cena nos anos 1990, quando a paisagem das periferias passa a
ser formatada por uma nova configuração societária. Nesta nova configuração, o horizonte do
emprego fordista cede lugar ao desemprego, ao emprego flexível e aos subempregos; o mundo
do crime se afirma como opção possível para os jovens; a Teologia da Libertação entra em
declínio no mesmo passo em que proliferam igrejas pentecostais, prometendo a expulsão dos
demônios e a conquista da prosperidade. A nova paisagem das periferias das cidades brasileiras
era um sintoma de que assistíamos, de fato, a uma reconfiguração da questão social, pois no
esfacelamento do mundo do trabalho, na ascensão da criminalidade violenta e na disseminação
das igrejas neopentecostais que prometiam uma solução mágica para aflições prementes,
desenhava-se o esgotamento da aposta da superação das mazelas sociais a partir do horizonte
do universalismo da cidadania.
As análises da década de 1990 se concentravam no caráter destruidor do neoliberalismo
e na percepção generalizada e contundente de “terra arrasada” que ele havia produzido. Porém,
em meados dos anos 2000, começa a se delinear a suspeita de que por debaixo dessa “terra
arrasada”, um novo regime de governo das populações às margens estava se insinuando, e que
a inventividade desses novos poderes não seria devidamente traduzida por meio de uma análise
orientada pelo que se desmanchava.
Na apresentação ao livro “A era da indeterminação”, publicado em 2007, Cibele Rizek
e Maria Célia Paoli começam a traçar uma mudança de perspectiva:
A questão, portanto, inverteu-se: em vez de inquirirmos o que a palavra
“desmanche” exprime diretamente, acabamos por perguntar: qual mundo
se define através de sua operação, o que se constitui para além de suas
ruínas? (Rizek; Paoli, 2007, p. 9).

Para tentar rastrear o que estava acontecendo a partir dos anos 2000, um novo
vocabulário, ainda tateante em seus usos, começava a ser empregado: “indeterminação”,
“estado de exceção”, “zonas de sombra”, “novas opacidades”, “indistinção entre administração,
gestão, técnica e política” (RIZEK; PAOLI, 2007, p. 10). Na busca por novas categorias
heurísticas capazes de dar conta das novas modalidades de governo dos indivíduos nas
periferias, a gramática dos direitos que havia orientando grande parte da produção das ciências

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sociais brasileira durante os anos 1970/1980 não parecia mais adequada, pois o horizonte de
igualdade não se encontrava mais na pauta. É na esteira dessa perplexidade que Vera Telles
(2010) se interroga se fazia sentido continuar falando em direitos, cidadania, espaço público e
democracia ou se seria necessário enfrentar o desafio de compreender uma nova racionalidade
governamental (ou, melhor seria dizer, múltiplas racionalidades governamentais), cuja lógica
não operava mais com a construção de uma ordem mais justa, mas com a gestão das
consequências da nova desordem.
Nesse contexto de deslocamento dramático da questão social, uma série de novos
estudos sobre as periferias das cidades brasileiras começam a ser produzidos a partir dos anos
2000, de cunho fortemente etnográfico, buscando investigar as complexas redes de relações
que se delineiam entre o que passou a ser cada vez mais compreendido, a partir da inspiração
do trabalho de Veena Das e Deborah Poole (2004), como a relação entre o Estado e suas
margens. Estamos longe da imagem de um Estado-demiurgo que pretende planificar a
sociedade para a fabricação de uma sociedade ordeira, transparente e pura. Com o colapso da
concepção universal de cidadania, começamos a assistir no Brasil à configuração de uma forma
de atuação do Estado que o faz funcionar como uma agência de produção perpétua de regimes
de governo, que operam de uma maneira seletiva, e não mais universalista. Como argumenta
Gabriel Feltran (2014), a derrocada do horizonte do universalismo da cidadania ensejou a
produção de uma espécie de governo seletivo que recorta a população segundo critérios de
vulnerabilidade e perigo, dirigindo a cada recorte populacional uma política setorizada,
destinada a gerir – mas nunca de fato resolver – uma urgência localizada. Quando a promessa
da integração dos cidadãos em um projeto de cidadania ampliada se desmancha e as estratégias
governamentais do Estado passam a se basear em uma “variação situacional de um repertório
de regimes de governo” que produzem “recortes populacionais tão mais precisos quanto
possível” (Feltran, 2014: 497), o campo para a criação de novas formas de governo se abre e
outras agências passam a assumir as tarefas de condução das condutas dos habitantes das
periferias, como o “mundo do crime” e as igrejas evangélicas. Assim, o desmantelamento do
universalismo levou à criação de uma espécie de multiplicação governamental nas periferias
cuja gestão passa a ser partilhada por distintos regimes normativos: o estatal, o criminoso e o
religioso.
O artigo de Feltran (2014) tenta condensar em uma análise macrossociológica as pistas
apontadas por vários estudos empíricos sobre as periferias, que, por meio de suas investigações
etnográficas, estão apresentando ao debate acadêmico as múltiplas, complexas e difíceis redes
de relações que se formam na relação entre o Estado e suas margens; e, além disso, as formas

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como as margens criam seus próprios modos de agenciamento das dores, sofrimentos e dramas
dos moradores das periferias.
Nos trabalhos empíricos, a relação entre o Estado e suas margens deixa de ser vista a
partir da dicotomia moderno/arcaico que dominou grande parte das ciências sociais brasileiras
(e também da América Latina), que viam no projeto desenvolvimentista a possibilidade de
superar o renitente atraso presente nas “margens” a partir da fabricação de um futuro civilizado
orquestrado por um Estado-demiurgo. O Estado e suas margens deixam de ser compreendidos,
portanto, a partir dos dualismos moderno versus arcaico, racional versus irracional, legal versus
ilegal, lícito versus ilícito. Nessa nova perspectiva, pode-se pensar, como diz Machado da Silva
(2015), em uma “coprodução entre estado e ‘margem’”, na qual “a normatividade
institucionalizada (a lei) seria apenas um marcador, não uma barreira, de modo que os
“ilegalismos” não são desvios, mas parte integrante da lei que, para existir, depende deles”
(MACHADO DA SILVA, 2015, p. 11). Desse modo, a zona de indeterminação constantemente
produzida entre o ilegal e o ilegal (TELLES, 2010, 2015; HIRATA, 2015); o lícito e o ilícito,
deixa de ser encarada como um erro que precisa ser corrigido quando finalmente a aposta
messiânica de construção de uma civilidade no Brasil se efetivar, e passa a ser vista, cada vez
mais, como o próprio modus operandi dos atuais regimes de governo.
Nessa relação complexa entre o Estado e suas margens, numa rede em que o legal só se
efetiva por meio da ilegalidade, e a ilegalidade, por sua vez, só se sustenta por meio da
legalidade, as margens deixam de ser concebidas como o lugar negativo da ausência e passam
a ser investigadas de outra perspectiva: seus habitantes não são inertes; há criatividade nas
bordas, tanto na maneira como os indivíduos reinventam as formas de gestão de vida e morte
que se abatem sobre eles, como na maneira como resistem a elas. Assim, na etnografia realizada
por Taniele Rui na “cracolândia”, por exemplo, observa-se como os indivíduos criam
estratégias de vida que podem ser descritas como uma forma de “resistência errante” dentro de
uma territorialidade urbana marcada pelo trânsito permanente entre o legal e o ilegal (Rui, 2014,
p. 102). As pesquisas de Patrícia Birman (2015) e Adriana Fernandes (2014) sobre as ocupações
de moradia no Rio de Janeiro parecem chegar em resultados semelhantes. As etnografias
apontam para uma capacidade extremamente inventiva dos sujeitos para lidar com a “corda-
bamba” que é viver sob o risco permanente do despejo das ocupações precariamente ocupadas
em estabelecimentos abandonados do centro do Rio. Para Fernandes, a precariedade não precisa
ser traduzida apenas “no registro da vitimização, da submissão ou da cordialidade” (2014, p.
7), mas é possível pensá-la
A indistincao e a forma de governo

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como uma positivação dos modos de circular, negociar, cuidar e constituir
redes que perpassam e embaralham os planos mais diversos: morais,
afetivos, econômicos; e também os sentidos do viver e do morrer – que
assinalamos como uma modalidade fundamental à viração” (2014: p. 9).

Na perspectiva de Birman, essa “micropolítica da arte do contornamento” é uma


modalidade absolutamente criativa de fazer frente às “formas de gestão diferencial dos
ilegalismos” (2015, p. 169), que recortam os moradores de ocupação, segundo os signos duplos,
e intencionalmente ambíguos, de vulnerabilidade e perigo, como uma população flutuante, que
demanda uma intervenção urgente dos aparelhos estatais, o que não significa nunca uma
solução, sob o registro da negociação pública dos direitos sociais, do problema alarmante da
moradia urbana, mas sempre uma espécie de gestão – nunca definitiva – de uma miséria
cronicamente miserável.
A intervenção do Estado (seja por meio de administrações federais, estaduais e/ou
municipais) nas populações que habitam as margens, não é, contudo, a única démarche
governamental que hoje atua na modulação da conduta dos moradores dos bairros periféricos.
Como argumenta Feltran (2014), dois outros regimes normativos – duas outras formas de
governamentalidade, para usar os termos de Michel Foucault (2008a; 2008b)7 – atuam hoje nas
periferias: a religião e o crime. Não é apenas a ação estatal que governa, mas também outros governos

A expansão das igrejas evangélicas, principalmente as denominações pentecostais e


neopentecostais, nas periferias, chamou particularmente a atenção das ciências sociais
brasileiras na década de 1990. Em 1996, Prandi argumentava que o fortalecimento de
movimentos religiosos como o neopentecostalismo, que se voltavam para a remagificação do
religioso, a democratização do êxtase e a exacerbação do emocional, seriam sinais contundentes
do atraso brasileiro, próprio de um país que não levou o processo de secularização às suas
últimas consequências. Contudo, a partir dos anos 2000, foi ficando cada vez mais claro que o
pentecostalismo, e mais especificamente o neopentecostalismo, não poderiam ser descritos
simplesmente como um “pronto-socorro mágico” para os desesperados que haviam sofrido a
ameaça da descartabilidade do desmanche neoliberal da década de 1990. Longe de ser sintoma
do nosso persistente atraso ou representar uma mera remagificação do religioso, o
pentecostalismo criou uma modalidade específica – e extremamente racional – de
governamentalidade dos indivíduos habitantes das periferias, que impressiona por sua
capacidade inventiva de formular modos de condução da conduta capazes de responder ao

7
O conceito de “governamentalidade” e sua apropriação pelo debate sobre as margens será discutido no próximo
tópico.

12
sofrimento dos que estão na permanente “corda bamba” de “sobreviver na adversidade”
(HIRATA, 2010) das bordas. Nesses termos, o pentecostalismo pode ser pensado hoje como
um novo “regime normativo” (FELTRAN, 2014) de mediação dos conflitos entre os moradores
da periferia, ou nos termos de Carly Machado (2014), como um “dispositivo” para “lidar com
o sofrimento em contextos de pobreza e desigualdade” (2014, p. 161). Vários estudos apontam
para o modo de operação das igrejas evangélicas nas periferias (ALMEIDA, 2004, 2009;
MAFRA, 2011), enfocando, entre outras coisas, sua relação tensa com o “mundo do crime”
(MACHADO, 2014; TEIXEIRA, 2015; VITAL, 2015, CÔRTES, 2007, 2017).
Em uma articulação tensa com a atuação do Estado e a presença das igrejas pentecostais,
encontra-se a intervenção do “mundo do crime” no cotidiano dos moradores das periferias. Se
a exacerbação da criminalidade violenta torna-se objeto de interesse das ciências sociais
brasileiras desde a década de 1980 (ZALUAR, 1985), a partir dos anos 2000, os estudos
empíricos se voltam para fenômenos novos: o Primeiro Comando da Capital (PCC) em São
Paulo e a intervenção das Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs) nas favelas do Rio de
Janeiro. Em São Paulo, a radicalização da política de encarceramento em massa dos anos 1990
estimulou a criação do PCC dentro das próprias cadeias (BIONDI, 2010; DIAS, 2011), como
uma nova modalidade de governamentalidade dos indivíduos diretamente envolvidos nas
atividades criminosas. Ao propor formas de mediação dos conflitos interpessoais por meio dos
“debates” que avaliavam a conjuntura específica de cada ofensa ao código ético coletivamente
compartilhado do “mundo do crime”, o PCC produziu uma espécie de justiça emergente capaz
de romper com o ciclo interminável de vinganças privadas que levaram inúmeros jovens das
periferias à morte durante a década de 1990 (FELTRAN, 2010). O surgimento do PCC na
configuração societária das periferias de São Paulo trouxe como novidade a percepção pelas
ciências sociais brasileiras de que não era possível mais pensar a ascensão do mundo do crime
como subproduto da ausência do Estado. Ao contrário, mais uma vez, é nos pontos de fricção
entre o Estado e suas margens que se produz um novo modo de governo dos indivíduos, que
surpreende por sua capacidade de inventar uma mediação simbólica minimamente possível em
um mundo onde a violência física é sempre o contraponto da impotência da palavra. Em
contrapartida, no Rio de Janeiro, onde não surgiu nenhum tipo de modalidade análoga de
codificação moral do crime no âmbito das facções criminais nas favelas e periferias, os
trabalhos acadêmicos se voltaram para a análise do processo de forte militarização urbana na
cidade e a implementação do programa das UPPs nas comunidades (MACHADO, 2015;
LEITE, 2015; MIAGUSKO, 2016). Para Leite (2015), é possível observar hoje no Rio de
Janeiro “a produção de diferentes regimes territoriais” para gerir as “comunidades violentas”:

13
a lógica da guerra e a lógica do mercado. Enquanto a maioria das favelas continua submetida à
“metáfora da guerra”, nas favelas pacificadas, agencia-se uma nova modalidade de
administração: a expectativa de que o território “pacificado” poderá ser capturado para o
mercado ao se transformar em um espaço de negócios por meio do fomento do
empreendedorismo de seus moradores por agências estatais e empresas privadas, interessadas
no mais novo nicho de mercado urbano, a favela-mercadoria. A guerra e o mercado não são
estratégias entrevistas apenas para o contexto específico do Rio de Janeiro. Para São Paulo e
várias das grandes e médias cidades brasileiras, a guerra e o mercado, a “militarização” e
“monetarização”, para usar os termos de Feltran, são as duas tendências que se combinam em
uma estratégia única: “Crédito popular aos funcionais, repressão aos “desviantes”: há
simultaneamente negócios a expandir e uma zona de guerra, uma divisa social a monetarizar e
uma fronteira urbana a defender” (2015, p. 4).
Para fins desse balanço, o objetivo foi tentar apresentar costurar algumas das
perspectivas teórico-empíricas que vem sendo desenvolvidas nos últimas anos pelas ciências
sociais brasileiras, uma vez que seria impossível, dado à diversidade dos temas que se articulam
hoje em torno da questão geral das periferias - políticas públicas setorizadas, mercado de
trabalho, religião, saúde, segurança pública, violência, crime, drogas, movimentos de luta pela
moradia urbana, entre outros -, realizar um panorama exaustivo, fazendo justiça à variedade
dos achados empíricos e insights teóricos. No próximo tópico, veremos como o debate se
articula no contexto internacional.

5. Nas margens do Estado; o Estado e suas margens: percursos do debate


internacional
Nesta seção, procuramos esboçar três possíveis cursos no debate internacional que
desaguam na configuração mais recente deste campo de estudos, que entre nós parece ter
articulado uma tradição de questões e problemas da sociologia latino-americana a questões e
métodos da antropologia política – mais especificamente, uma antropologia do Estado. Assim,
desde já importa explicitar que o que orienta nosso recorte é menos o objetivo de realizar um
exaustivo estado da arte de tal discussão internacionalmente do que o de puxar alguns de seus
fios que mais claramente são mobilizados na constituição da trama analítica que busca pensar
a sociedade brasileira. Recorte interessado, portanto.
Um primeiro curso se desenha a partir da trajetória da noção de marginalidade no
pensamento social latino-americano, de início fortemente marcada por uma perspectiva
marxiana. Um segundo curso se desdobra a partir da noção de governamentalidade, neologismo

14
proposto por Michel Foucault em seus cursos no Collège de France no final dos anos 1970; e
vale notar que este curso se bifurca, na medida em que a noção será utilizada tanto para pensar
e criticar as tecnologias de poder e governo introduzidas e modificadas pelo neoliberalismo, em
seus diferentes ciclos (análises que podemos reunir sob o título de “estudos de
governamentalidade”), quanto para possibilitar uma ruptura epistemológica capaz de conferir
visibilidade a outras culturas políticas que não aquelas forjadas na experiência do Ocidente
moderno (referimo-nos aqui às contribuições dos estudos subalternos e pós-coloniais).
Finalmente, o terceiro curso se aproxima, em alguma medida, do primeiro, uma vez que se
desenha a partir da crítica às mudanças vividas nos países que configuraram Estados Sociais a
partir dos anos 1970; mas optamos por distingui-lo para reconhecer que se tratam de abordagens
teórico-metodológicas um pouco distintas, que buscam estabelecer as condições para uma
contribuição específica da antropologia às teorias do Estado, invertendo a direção da análise e
pensando-o como efeito de suas diversas manifestações concretas e cotidianas. A seguir,
procuramos tratar de cada um destes cursos, abordando suas principais características, alguns
de seus autores e achados e destacando sua contribuição para o alargamento das maneiras de
analisar o funcionamento político de nossas sociedades.
À primeira impressão, pode parecer estranho remeter uma das trajetórias possíveis para
a formação deste campo de estudos ao pensamento latino-americano do pós II Guerra Mundial,
especialmente os estudos que procuravam ultrapassar as teorias da modernização na direção de
uma compreensão mais complexa e enraizada dos dilemas e das possibilidades para a América
Latina (NUN,1978; DELFINO, 2012). No entanto, as contribuições teóricas dos estudos sobre
a marginalidade, no quadro das teorias de modernização e de dependência, representaram uma
contribuição original para a interpretação das resilientes desigualdades nos países então
qualificados como subdesenvolvidos. No mesmo sentido, representaram um esforço de
compreensão de uma nova face da questão social no continente: mais do que a pobreza, a
concentração de pessoas, muitas vezes constituindo habitação por meio de invasões, e
configurando um problema político importante na medida em que suas ações evidenciavam
uma demanda de participação na riqueza e nas promessas da modernidade (QUIJANO, 1978,
p.18).
Há registros de que a noção de marginalidade consiste em apropriação original do
trabalho do sociólogo estadunidense Robert Park (OLIVEN, 2010; QUIJANO, 1978), que
inicialmente cunhara o termo homem marginal para dar conta da situação de transição
experimentada por imigrantes recém-chegados aos Estados Unidos; situação que se conectava
intimamente com a dinâmica socioespacial das cidades e, portanto, com a própria experiência

15
urbana (VALLADARES, 2010). Porém, na leitura daqueles que se preocupavam com a situação
do continente latino-americano, principalmente com a pobreza que se acumulava no entorno
das cidades desde os anos 1930 e, mais acentuadamente nos anos do pós II Guerra Mundial, a
noção de marginalidade vinha nomear aspectos da sociabilidade, condições de moradia e
vínculos com o mercado de trabalho que caracterizavam a vida cotidiana das populações
pobres. Menos que de uma transição individual, portanto, a noção procurava sublinhar o
desencontro entre as disposições subjetivas necessárias à vida urbana e ao trabalho industrial e
a cultura das populações pobres. Neste primeiro momento, nos anos 1950, estes estudos se
voltavam mais para aspectos socioculturais, o que de algum modo significava menos uma
ruptura com o diagnóstico das teorias de modernização sobre o peso do setor atrasado como
fator de estagnação econômica do que seu deslocamento: o “atraso” passava da estrutura
produtiva para a economia das disposições subjetivas, obstáculo a ser superado por meio de
investimentos em educação e esforços de modernização das estruturas sociais8.
Nos anos 60 e 70, com os sucessivos golpes de Estado e ditaduras militares que se
instalaram na região, coordenando um novo ciclo de crescimento econômico articulado ao
aprofundamento das desigualdades e da pobreza urbana, emerge um novo olhar para a questão.
A marginalidade, agora adjetivada de “social”, será então pensada a partir de uma perspectiva
histórico-estrutural: deslocava-se o problema para o nível mais geral das relações entre países
desiguais e seus efeitos sobre as possibilidades de integração de grandes contingentes
populacionais nos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, não somente no espaço
urbano, mas inclusive em áreas rurais, também afetadas pelos processos de transformação
(QUIJANO, 1978, p.22-3). Assim, procurava-se evidenciar como a gestão das populações em
idade ativa nos países centrais, no momento mesmo da aceleração das transformações urbano-
industriais, pode se beneficiar da possibilidade da imigração de grandes contingentes
populacionais que, caso tivessem permanecido em seus países de origem, teriam complicado
enormemente a tarefa de integração (OLIVEN, 2010).
A partir da ampliação da visibilidade da pobreza nas cidades, assim, buscam-se
explicações e saídas políticas para essa nova formulação da questão social, que já não operava
com a expectativa da integração pela via do acesso ao trabalho urbano-industrial e seus efeitos
de aculturação e distribuição da riqueza. As explicações, ao abstraírem das manifestações
particulares em cada contexto nacional, vão progressivamente demonstrando que não existia

8
Como afirma Oliven, ao apontar tal uso do termo, “[...] deve-se considerar se [ele] não é senão um outro
eufemismo para a pobreza, ou, pior, um rótulo que apresenta as classes subalternas como totalmente diferentes e
portanto responsáveis pela sua própria situação” (2010, p.44).

16
incompatibilidade entre os setores “atrasados” e modernos; antes, formas de acumulação
capitalista, de relações sociais e de estruturas subjetivas de uns e outros se combinavam, por
vezes recriando formas arcaicas para gerar excedentes e lucros para setores modernos
(MARTINS, 1998; 2003; OLIVEIRA, 2003), de modo que o subdesenvolvimento não era
sintoma de fracasso dos países periféricos, mas efeito necessário da divisão do trabalho
internacional.
Tal interpretação tem consequências importantes de ruptura com a concepção da história
como progresso unilinear ou como passagem a um tempo vazio e homogêneo, que seria o da
modernidade – especialmente seus valores e sua cultura política9. De fato, essa constituição de
um capitalismo a partir de formas produtivas, valores e práticas de diferentes tempos históricos
torna mais visível o fato de que a realidade social e o cotidiano são atravessados a todo o tempo
por uma heterogeneidade de tempos históricos, que atuam para conferir sentido ao presente e
cuja fricção pode abrir a possibilidade de outras apostas de liberação.
Já o segundo curso pode ser traçado com referência ao “efeito Foucault”, isto é, aos
desdobramentos da circulação da noção de governamentalidade, forjada por Michel Foucault
em seus cursos no Collège de France, especialmente naqueles dados no final da década de 1970
(FOUCAULT, 2008a; 2008b). Trata-se de ferramenta analítica, desenvolvida no trabalho
empreendido por Foucault para se desembaraçar das aporias a que sua noção de poder haviam
lhe levado. Havia nesse esforço uma dimensão estratégica, que se ligava à delimitação da vida
como um novo domínio para o exercício do poder, como aparece ao final do primeiro volume
de sua História da Sexualidade, A vontade de saber (FOUCAULT, 1999b) e na última aula do
curso de 1976, Em defesa da sociedade (FOUCAULT, 1999a). É no intuito de constituir uma
genealogia do dispositivo biopolítico, portanto, que Foucault enfrentará o desafio metodológico
de testar a grade de análise que ele desenvolvera para pensar a microfísica para a análise do
Estado. Desse modo, alterava-se de partida a maneira pela qual o Estado seria pensado – não
como instituição, não como instância de dominação, mas como configuração contingente da
articulação de diferentes regimes de governo presentes num dado momento histórico. Na
formulação provocativa de Foucault, o Estado não seria mais do que “um efeito móvel de um
regime de governamentalidades múltiplas” (FOUCAULT, 2008b, p.79)10.

9
Para uma caracterização (crítica) da cultura política ocidental, ver DONZELOT (1979).
10
O neologismo governamentalidade relacionava-se à emergência e concentração no Estado de uma miríade de
problemas de governo, definido de modo muito geral como “condução de condutas” (FOUCAULT, 2008a.
Especialmente aula do dia 8 de fevereiro de 1978).

17
Apesar dos cursos de 1978 e 1979 terem aparecido de forma completa apenas em 2004,
a aula sobre governamentalidade foi editada logo nos anos subsequentes ao menos em inglês,
italiano e português (GORDON; JARDIM, 2013). No mundo anglófono, as pistas apontadas
nessa aula foram ainda exploradas na publicação editada por Graham Burchell, Colin Gordon
e Peter Miller, que reapresentava a aula de 1978 em conjunto com diversos trabalhos produzidos
por pesquisadores que se associaram a Foucault, em especial nos seminários que desenvolvia
no Collège de France, concomitantes a seus cursos até os anos 1980. Desse modo, além de
apresentar as ideias de Michel Foucault, o livro registrava quão profícuos podiam ser os
caminhos abertos, que permitiam o reexame da história do Estado Social (R. Castel), dos
mecanismos de seguridade (D. Defert e F.Ewald) e da gestão dos pobres (J. Donzelot e G.
Procacci). Em outras palavras, a noção de governamentalidade permitia revisitar a história a
partir do presente, no intuito de reformular os termos dos impasses teóricos e políticos que se
desenhavam a partir do final dos anos 1970, com a eleição de governos neoliberais em
Inglaterra e França. Vale notar, então, que as apropriações do termo nesse contexto se
desdobravam principalmente em empreendimentos genealógicos, talvez mais precisamente
inscritos nas fronteiras entre a sociologia e a história.
Em outros contextos, e aqui tomaremos exemplos de um pesquisador indiano e outro
africano (ainda que ambos com uma trajetória de circulação internacional), as contribuições
foucaultianas seriam apropriadas em sentido um pouco diverso e, inclusive, comportando uma
dimensão crítica.
No caso de Partha Chaterjee, não somente a ideia de governo, mas também a de crítica11,
foram mobilizadas no intuito de desembaraçar o pensamento de categorias políticas modernas
que, ao serem “importadas” dos países onde haviam sido desenvolvidas, produziam efeitos de
desqualificação e paralisia. Quando ele reivindica uma modernidade particularizada, a “nossa
modernidade”, referindo-se à experiência indiana, ele propõe que abraçar a modernidade em
sua dimensão iluminista significa menos a adesão irrestrita a valores e práticas da cultura
política ocidental do que a assunção do compromisso com certo desejo de liberação, capaz de
constituir uma nova subjetividade (CHATERJEE, 2004).
Ainda mais interessante para os fins deste balanço é o deslocamento que Chaterjee
proporá em relação a uma série de narrativas políticas, com pretensão de universalidade e, no
entanto, ancoradas nas trajetórias históricas de países que integram a Europa (ela mesma uma
comunidade imaginada) e dos Estados Unidos da América. Quando incorporadas aos projetos

11
É interessante registrar que ambas – governo e crítica – conectam-se nas reflexões de Foucault (1991; 2000).

18
de modernização locais, tais narrativas produzem margens muito largas, propiciando a imensos
contingentes da população uma experiência política que se define menos por seu pertencimento
enquanto membros de uma comunidade do que pela condição de serem “governados”.
“Governado” seria a situação da maior parte da população global, experienciada por todos
aqueles que “não participaram de maneira direta na história da evolução institucional da
democracia capitalista moderna” (CHATERJEE, 2008, p.57). A evolução a que ele se refere é
aquela que constituiu uma série de pertencimentos abertos à filiação mediante uma
subjetivação: nação – cidadão – revolucionário – burocrata – trabalhador – intelectual. Já a
governamentalidade produziria outro sujeitos, menos livres para aderir ou não às práticas que
os circunscrevem; as figuras dos governados são adscrições fechadas, menos fáceis de definir
porque inumeráveis são os cortes possíveis no conjunto da população: étnicas – raciais – gênero
– orientação sexual – deficiências - doenças. E assim como Foucault anotara, entre as aulas dos
dias 21 de fevereiro e 7 de março de 1979, que a “política não é nada mais, nada menos que o
que nasce com a resistência à governamentalidade, a primeira sublevação, o primeiro
enfrentamento” (FOUCAULT, 2008b, p.535), Charterjee afirmará que a “democracia hoje,
insisto, não é o governo do, pelo e para o povo. Ao invés disso, ela deve ser vista como a política
dos governados” (2004, p.4).
Nesse sentido, Chaterjee leva adiante as implicações do pensamento foucaultiano,
propondo um descentramento da Europa12 para abrir caminho para o alargamento das categorias
do pensamento político, desfazendo-se de análises que tomam o histórico como normativo –
muitas vezes a partir de uma história saturada de esquecimentos.
O fenômeno novo de uma espécie de policentrismo da História devido a esta perda da
centralidade europeia também é analisado por Achille Mbembe (2014). Seu esforço de
pensamento é o de abrir passagem para uma ruptura do continente africano com as narrativas
europeias sobre o Negro e sobre África. Por meio de uma genealogia que muitas vezes lê a
contrapelo os textos daqueles que fundaram o pensamento político moderno, inscrevendo em
sua pretensão de universalidade a memória do passado colonial e a fala que se enunciava do
lugar do colonizador, Mbembe nos apresenta uma potente crítica do presente, especialmente
porque sua análise procura vincular dimensão simbólica e histórica (tanto do ponto de vista
estrutural quanto da transmissão da dor e do trauma associados à escravização e à diáspora
forçada), articulando uma contundente crítica não apenas dos dispositivos de poder que

12
Sobre a Revolução Iraniana como acontecimento que revela para Foucault este descentramento da Europa como
palco da História, ver Ewald (1999, p.86).

19
forjaram a modernidade e o Estado Social – incluindo Raça entre eles e lembrando que algumas
práticas, especialmente aquelas associadas à necropolítica, desenvolveram-se nas colônias,
sobre corpos negros, frente/contra os quais a Europa coagulou seu humanismo13 –, mas também
às subjetivações propostas pelo neoliberalismo (Mbembe, 2014). Quando fala em “devir negro
do mundo”, Mbembe está a um só tempo ampliando as margens da História e evidenciando, a
partir de sua genealogia do Negro, as articulações entre capitalismo, raça, biopolítica e
necropolítica. Amplia também, portanto, a compreensão do que de fato está em jogo nos
regimes de governamentalidade neoliberais e, por outro lado, reivindica as práticas de reação,
resistência e sobrevivência da população negra, em África ou em diáspora, como repertório
político na demanda por liberação.
O terceiro curso ao qual nos referimos é aquele que estrutura o campo mais recente de
uma antropologia do Estado. Embora conectado a algumas das linhagens de problemas já
referidos, tratamos deles com destaque não apenas porque se inscrevem num outro tempo -
enquanto os cursos anteriores se localizam em torno dos anos 1970 (com a exceção de
Mbembe), tais estudos se estabelecem a partir dos anos 1990 e, especialmente, nos primeiros
anos do século XXI – mas também porque têm na etnografia sua estratégia privilegiada (DAS;
POOLE, 2004; WACQUANT, 2012; HILGERS, 2010; FASSIN et. al., 2013). Diferenciam-se,
desse modo, do ponto de vista teórico e metodológico das duas perspectivas já abordadas.
Os trabalhos de Löic Wacquant, inspirados em sua apropriação da noção de campo
burocrático desenvolvida por Pierre Bourdieu, são aqueles que mais se preocupam em pensar
as mudanças envolvidas na passagem do Estado Providência a um Estado que progressivamente
se desembaraça das demandas da questão social, produzindo (ao invés de enfrentar) um novo
regime de “marginalidade avançada” (Wacquant, 2001). Ou seja, trata-se de um olhar centrado
sobre as experiências de países “centrais”, ainda que suas contribuições ultrapassem tais
fronteiras ao deslindar práticas e deslocamentos valorativos que alteram radicalmente as formas
de tratamento (e produção) da precariedade de parcelas da população. Poderíamos falar aqui
em uma vertente que constitui uma “antropologia do neoliberalismo”.
Já os trabalhos de Fassin (2011) e Fassin et.al. (2013) poderiam ser pensados como o
esforço de constituir uma outra teoria do Estado, não a partir de seus aspectos abstratos, mas,
ao contrário, de sua dimensão concreta e operativa, tal como posto em funcionamento no

13
Embora operando a partir de um lugar, de interesses e de perspectivas teóricas distintas, também é possível ler
o clássico de Tzvetan Todorov, A conquista da América, como uma genealogia da Europa moderna, que constitui
sua identidade frente/contra esses outros radicais, inventando uma nova ideia de homem (idêntica a si mesmo) que
não cessou de produzir hierarquizações, subordinações e privilégios (Todorov, 2010).

20
cotidiano. Aqui, a contribuição está na quebra do caráter monolítico e homogêneo do Estado,
quando pensado como instituição: evidenciam-se as racionalidades contraditórias presentes no
Estado e seus efeitos para as parcelas de cidadãos cujas dimensões da vida se encontram nas
intersecções de distintas práticas setoriais, obrigando os indivíduos a transitarem entre lógicas
diversas, nas quais seu status nunca é plenamente estável. Sugerimos que tais estudos
constituem a vertente de uma “antropologia da moral do Estado” que também se propõe a partir
do contexto europeu – em especial do contexto francês.
Finalmente, os trabalhos reunidos por Das e Poole (2004) se inscrevem num outro lugar
de enunciação e procuram recusar a perspectiva de que as mudanças introduzidas no Estado a
partir dos anos 1970 (e não apenas pelas reformas neoliberais) teriam resultado no
“enfraquecimento” ou na “retirada” do Estado de determinados espaços. Buscam, assim, sugerir
que o poder do Estado sempre se exerce a partir da distribuição diferencial de sua presença e
ausência/força e fraqueza, e nunca por meio de uma soberania onipresente. Sua legitimidade
estaria sempre em jogo em suas práticas, e uma das contribuições centrais dessa “antropologia
nas margens do Estado” consiste, assim, em conferir visibilidade às lógicas e valores que
permitem que esse jogo seja decidido em uma ou outra direção.
Considerando os cortes entre razão e paixões, entre impessoalidade e pessoalidade, entre
universalidade e particularidade como fronteiras em disputa, os autores e autoras apresentados
no volume editado por Das e Poole (2004) permitem compreender que o Estado produz margens
e funciona por meio delas; que joga com a ilegibilidade das regras e normas que ele mesmo
produz, de modo a fazer funcionar tais fronteiras; e, ainda, nesse esforços de refundação
contínua de sua legitimidade, produz vulnerabilidades e precariedades de certas vidas e é por
essa razão que afirmam – em sentido semelhante a Mbembe – que o Estado seria o lugar em
que “biopolítica e tanatopolítica são instituídas juntas” (DAS; POOLE, 2004, p.25).
Temos assim, do ponto de vista internacional, um conjunto de percursos possíveis
quando se trata de compreender a “questão social”, constituindo uma espécie de caleidoscópio
que permite ver um largo espectro de práticas de entendimento e tratamento de populações
marginais, desfiliadas ou desclassificadas ou, ainda, pensadas como aquém da política e da
cidadania. Em comum, as pesquisas aqui referidas buscaram escapar dos limites de certa cultura
política ocidental, seja porque ela se tornara uma armadilha para o desejo de emancipação (no
caso de países centrais), seja porque ela sempre constituíra uma armadilha na medida em que
só permitia pensar a si mesmo como ocupante de um lugar de subordinação, falha ou
incompletude com relação à modernidade como norma. Suas contribuições também recobrem

21
o campo epistemológico e de metodologias no campo da história, da sociologia e da ciência
política.

5. Considerações finais
O debate acadêmico hoje a respeito do governo dos indivíduos que vivem nas periferias
é extremamente profícuo e difícil de sintetizar em um texto que pretende fazer um balanço da
produção teórica sobre o tema. Os três eixos apontados acima – a teoria da marginalidade; o
conceito de governamentalidade; a proposta de uma antropologia do Estado – apontam os
percursos pelos quais a condição de margem vem sendo pensada, seja da perspectiva dos países
que ocupam posições subalternas diante da história autocentrada da modernidade; seja das
populações que habitam as margens das grandes e médias cidades, tanto dos chamados países
subdesenvolvidos ou em desenvolvimento quanto dos próprios países centrais, que estão sendo
obrigados cada vez mais a conviver cotidianamente com “o perigo à espreita” das margens de
suas próprias urbes. O processo de imposição do neoliberalismo no capitalismo central – que
recoloca a questão social em outros termos, uma vez que não se propõe mais a resolvê-la, mas
a geri-la indefinidamente, segundo um regime permanente da urgência –, se cruza, por um
caminho insuspeitado, com a crítica ao eurocentrismo empreendida pelas teorias pós-coloniais,
uma vez que a denúncia do engodo da noção universalista, democrática e abstrata de progresso
coincide com a constatação cínica a que o Ocidente chega quando ele próprio abandona
qualquer ardor civilizacional ou pretensão emancipatória do seu projeto, ao impor, sem culpa
nem pejo, a experiência neodarwinista de um “salve-se quem puder” neoliberal.
No Brasil, como vimos, o deslocamento da questão social, dialoga, segundo seu
contexto próprio, com a conjuntura internacional. Nos anos 80, tem-se a promessa de
construção democrática de mediação pública dos conflitos sociais por meio do diagrama dos
direitos. Nos anos 90, afirma-se a noção de “desmanche” neoliberal e constata-se a
indeterminação das categorias analíticas. E a partir dos anos 2000, insinua-se a perspectiva de
que a “governamentalidade” neoliberal não opera simplesmente pelo enxugamento do Estado
social ou pelo vazio deixado pelo “desmanche”, mas, ao contrário, funciona por meio de uma
multiplicação de regimes de governos, que combinam, de forma tensa, as intervenções
governamentais (que recortam, de forma seletiva, as populações vulneráveis) com as agências
que surgem, de forma criativa, por de dentro das margens: o dispositivo do “mundo do crime”,
o dispositivo do “pentecostalismo”, dentre outros. Na produção acadêmica sobre as periferias
nas ciências sociais brasileiras, observa-se hoje a interlocução de perspectivas teóricas e
abordagens empíricas que raramente se viam combinadas nas ciências sociais brasileiras.

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Afinal, tornou-se impossível investigar o “mundo do crime” sem considerar o proselitismo
aguerrido das igrejas pentecostais, do mesmo modo que não se pode falar dos movimentos de
luta por moradia urbana sem considerar as mudanças no mundo do trabalho, ou ainda, pensar
nos espaços-experiência como a “cracolândia” sem decifrar a complexa teia que se arma entre
intervenções governamentais, criminalidade violenta, comunidades terapêuticas, pregação
evangélica, mercado informal.
Assim, o debate sobre as periferias traz uma importante contribuição para a sociologia
brasileira ao implodir as fronteiras disciplinares que circunscrevem certos temas e propor um
diálogo aberto, criativo, inusitado entre questões que hoje se articulam de forma tensa: políticas
públicas setorizadas, mercado de trabalho, religião, saúde, segurança pública, violência, crime,
drogas, movimentos de luta pela moradia urbana, entre outros. Ao focar as relações, redes,
tramas, conflitos, tensões entre essa distintas dimensões da vida urbana, a produção heurística
sobre as periferias evita assim substancializações artificiais e análises autorreferentes, propondo
uma reflexão ascendente que parte das margens para compreender o Estado, do micro para
decifrar o macro, das bordas para investigar o centro.
Contudo, a mesma razão que possibilita a inovação do debate também leva à sua
fraqueza. A tentativa de articulação entre temas tão variados pode conduzir a uma fragmentação
da discussão, o que torna por vezes difícil conectar as investigações empíricas, de cunho
etnográfico, com análises teóricas macrossociológicas. Costurar empiria e teoria, micro e
macro, borda e centro, torna-se então o desafio central hoje enfrentado pela pesquisa sobre as
periferias nas ciências sociais brasileiras contemporâneas.

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