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Filosofia do Direito

Josemar Soares

2010
© 2010 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por
escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.

S 676f Soares, Josemar. / Filosofia do Direito. / Josemar Soares. — Curitiba :


IESDE Brasil S.A. , 2010.
308 p.

ISBN: XXX-XX-XXX-XXXX-X

1. Justiça. 2. Filosofia. 3. Ética. 4. Direito. I. Título.

CDD 340.1

Capa: IESDE Brasil S.A.


Imagem da capa: Domínio Público

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Josemar Soares
Doutor em Filosofia pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS), com pesquisas
na Alemanha, França e Itália. Mestre em Ciência
Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí (UNI-
VALI). Mestre em Educação pela Universidade
Federal de Santa Maria. Graduado em Filosofia
pelas Universidades Franciscanas.
É professor das disciplinas de Filosofia do Direito
e Ciência Política na graduação, Metodologia da
Pesquisa e Didática do Ensino Superior na pós-
-graduação.
É professor colaborador do Mestrado em Ciên-
cia Jurídica da UNIVALI. Coordena o Grupo de
Pesquisa e Extensão PAIDEIA, que já possui 10
anos de existência. Consultor empresarial pela
Vis Desenvolvimento de Liderança, prestando
serviços em instituições públicas e privadas.
sumário
sumári Introdução ao pensamento filosófico
Introdução | 13
A filosofia grega | 21
13

Origens da filosofia grega: os poetas Homero e Hesíodo | 28

Justiça e Direito 53
no teatro grego: tragédias e comédias
Introdução | 53
Ésquilo | 54
Sófocles | 56
Eurípedes | 62
Conclusões sobre a tragédia | 64
A comédia de Aristófanes | 65
75
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas
Introdução | 75
Escola Jônica | 76
Os pluralistas | 78
A Escola Atomística | 79
A Escola Pitagórica | 81
A Escola Eleata | 83
Heráclito de Éfeso | 85
Os sofistas | 88

A formação do homem 97
e da sociedade grega em Sócrates e Platão
mário

Introdução | 97
Sócrates e a importância do autoconhecimento | 97
A Justiça como paideia em Platão | 102
121
Justiça em Aristóteles
Introdução | 121
Justiça e Ética | 122
Justiça na polis: a Política | 129
Conclusões | 134
143
Helenismo e Idade Média
Introdução | 143
O pensamento filosófico no período helenístico | 143
Santo Agostinho | 148
Tomás de Aquino | 151
Duns Scott | 155
Guilherme de Ockham | 156

A fundação do pensamento 169


moderno: do racionalismo ao Iluminismo
Introdução | 169
Francis Bacon | 169
René Descartes | 171
Espinoza | 175
A filosofia iluminista | 177

A fundamentação do estado 189


moderno: os filósofos contratualistas
Introdução | 189
Thomas Hobbes | 189
John Locke | 194
Montesquieu | 200
Rousseau | 202
sumário
sumári Liberdade interna e externa em Kant
Introdução | 217
217

A crítica kantiana – juízos a priori e a posteriori, analíticos e sintéticos | 218


O pensamento político e jurídico de Kant | 221

235
Direito e Política na Dialética de Hegel
O sistema hegeliano | 235
As linhas fundamentais da Filosofia do Direito | 240
Considerações finais sobre a Filosofia do Direito e o sistema hegeliano | 249

O Direito e os dilemas da existência 257


humana: de Marx aos filósofos existencialistas
Introdução | 257
Karl Marx | 257
Sφren Kierkegaard | 260
Friedrich Nietzsche | 262
Edmund Husserl | 265
Martin Heidegger | 269
281
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito
Max Scheler | 281
Carl Schmitt | 283
Hans Kelsen | 285
John Rawls | 287
mário

Habermas | 290
Miguel Reale | 292

307
Anotações
Apresentação
Que o mundo como conhecemos hoje é resul-

Filosofia do Direito
tado de uma intensa evolução histórica, isso é
algo que não se pode negar, mas o que pouco
se sabe é o quanto o pensamento filosófico con-
tribuiu para essa evolução.
Os grandes fatos que marcaram a história e as
principais decisões que alteraram os rumos da
humanidade sempre tiveram como fundamen-
to um determinado modo de compreender o
mundo e de agir tendo em vista esse entendi-
mento. Ora, a busca incessante pela compre-
ensão do mundo e o anseio por encontrar a
verdade das coisas é justamente o objetivo da
Filosofia. Foram essas grandes mentes da his-
tória que pensaram, idealizaram e discutiram
aquilo que se tornaria realidade após anos, dé-
cadas, ou até mesmo séculos da publicação de
suas propostas.
Esse gradativo processo não pode ser ignorado
na atualidade, em especial no mundo do bu-
siness, onde o conhecimento das bases pelas
quais está construída a sociedade e o Direito,
entendido como o sistema lógico-racional de
determinação de conduta daquela sociedade,
revela-se essencial quando tratamos do desen-
volvimento de uma organização e de sua res-
ponsabilidade social.
Portanto, o conhecimento dos principais enten-
dimentos da ideia de Justiça, da ordenação da
conduta humana, seja no seu aspecto individu-
al (Ética), seja coletivo (Direito, Política) são de
suma importância, porque além de direcionar a
relação de uma organização com a sociedade,
beneficiam ao próprio businessman na cons-
trução de sua vida pessoal e de sua carreira
profissional.
Tendo em vista a importância desse tema e a ca-
rência de obras nesse sentido, a proposta deste
curso é apresentar de maneira simplificada, sem
perder a profundidade do conteúdo trabalhado,

Filosofia do Direito
as principais concepções de Justiça, tanto em
seu aspecto particular quanto geral, bem como
a disciplina do agir humano, demonstrando a
importância do conhecimento das ideias desses
pensadores para o líder de hoje, percorrendo
desde os primeiros filósofos na Grécia até os
pensadores contemporâneos.
Trata-se de uma obra que interessa não somen-
te às lideranças organizacionais, mas também
àqueles que buscam uma compreensão mais
profunda sobre a posição do homem na socie-
dade e sobre o papel das organizações da socie-
dade civil e do Estado na criação de uma socie-
dade livre, justa e igualitária.
Introdução ao pensamento
filosófico

Introdução
A Filosofia do Direito é uma parte da Filosofia. Assim, para se entender
adequadamente o movimento dos pensadores que articularam conceitos
e ideias referentes à categoria Justiça, é importante antes esboçar algumas
considerações preliminares acerca da Filosofia, para depois ser possível
entrar com mais segurança no terreno da Filosofia do Direito.

Algumas questões são importantes: o que é Filosofia? A Filosofia é uma


ciência? Qual a sua função? Qual o método que utiliza para analisar seus con-
teúdos? Como a Filosofia pode contribuir com o Direito? Essas são questões
que tentaremos responder neste primeiro capítulo.

O leitor verá no decorrer dos capítulos que os autores possuem visões


muitas vezes até opostas em relação à mesma matéria, o que poderia ser
uma desvantagem à Filosofia, sob a argumentação de que nem ela é exata
e nem ela é capaz de ter unanimidade naquilo que se propõe a responder.
Contudo, isso não vem a ser muito importante, como demonstraremos mais
adiante.

Primeiramente, para se entender adequadamente o que seria a Filosofia,


é preciso vê-la em sua totalidade de movimento, ou seja, em todo o seu per-
curso, e não se atendo a este ou aquele filósofo. Talvez a melhor maneira de
entender esse conceito é voltando justamente ao momento de sua criação,
no tempo dos filósofos pré-socráticos na Grécia Antiga, pois, como se verá,
a tônica que gerou a Filosofia será a mesma que atravessará os séculos, qual
seja: a Filosofia como admiração ao saber.

O primeiro pensador a empregar o termo filosofia foi Pitágoras, que


juntou as palavras philos (amor) e sophia (saber), ou seja, o amor ao saber, à
sabedoria. “O termo é deveras expressivo. Os primeiros filósofos gregos não
concordaram em ser chamados sábios, por terem consciência do muito que
ignoravam. Preferiam ser conhecidos como amigos da sabedoria, ou seja, 1
REALE, Miguel. Filosofia
do Direito. 20. ed. São
filósofos”1. Paulo: Saraiva, 2002. p. 5.
Introdução ao pensamento filosófico

O historiador Diôgenes Laêrtios nos lembra ainda que para os gregos a


sabedoria era considerada algo supremo, que somente os deuses eram ca-
pazes de possuir. Os homens nunca conseguiriam alcançar o completo en-
tendimento do mundo, das coisas, do Universo, da vida, dos deuses ou de si
2
LAÊRTIOS, Diôgenes.
mesmos.2 Contudo, isso não era desmotivador, pois a exigência de aprender,
Vidas e Doutrinas dos
Filósofos Ilustres. 2. ed. aliada à humildade de reconhecer que pouco se sabe, era a força que impul-
Tradução de: KURY, Mário
da Gama. Brasília: Editora sionava aqueles pensadores ao desconhecido, a tentar chegar cada vez mais
da UNB, 1987. p. 15.
próximo da sabedoria. Por certo, Pitágoras foi um dos maiores filósofos, pois
essa noção de humildade e necessidade de conhecer nasceu da sua incrível
estupefação diante das maravilhas que a natureza punha diante de si. Não
por acaso essa estupefação o conduziu a pesquisar a Matemática, a Ética, a
Teologia, a Astronomia, a Música, e tantas outras matérias do conhecimento.
O completo entendimento de todo esse universo que nos rodeia é possível
somente aos deuses, de forma que buscarmos avançar cada vez mais nesse
anseio é também trilhar um caminho divino.
3
ARISTÓTELES. Metafí- Na Metafísica3, Aristóteles afirma que a Filosofia era a admiração pelo
sica. Ensaio introdutório,
texto grego com tradução saber, e por isso mesmo aqueles que amavam os mitos eram filósofos, porque
e comentários de Gio-
vanni Reale. Tradução de
Marcelo Perine. São Paulo:
nutriam nos mitos essa admiração pelo saber. Os mitos não eram, para os
Loyola, 2002. v.2.
gregos, apenas um conjunto de crenças, aspectos culturais e religiosos de
um povo, eram manifestações do íntimo humano na tentativa de explicar os
fenômenos naturais, sociais, o cosmos, os deuses. Portanto, os mitos também
exprimiam a admiração ao saber, e por isso é imprescindível que partamos
deles para depois explorarmos a história do pensamento filosófico.

Nossa pesquisa pretende apresentar a concepção de Justiça na história da


Filosofia, de forma que o princípio originário da Filosofia não se torna aqui tão
fundamental. Partiremos do fato de que, mesmo já tendo sido despertado o
pensamento acerca da verdade e a busca pela explicação da estruturação do
Universo e da vida em geral anteriormente em outros povos, é somente com
4
Algumas reflexões os gregos que ela recebe seus maiores contornos racionais, isto é, um estudo
sobre a importância da
filosofia grega como perí- que diga como, de onde, e por que as coisas são como são. E essa forma de
odo único na história do
pensamento podem ser pensar é criação própria dos gregos.4 Nas culturas anteriores aos gregos,5 o
encontradas na obra de
Hirschberger: HIRSCHBER- pensamento e a verdade não eram refletidos e construídos pelo indivíduo
GER, Johannes. História
da Filosofia na Antigui-
dade. 2. ed. Tradução de
comum, membro da comunidade, mas por sentenças irrefutáveis proferidas
CORREIA, Alexandre. São
Paulo: Herder, 1969.
pelos grandes sacerdotes religiosos. Os gregos, por outro lado, trouxeram o
5
Entre elas citamos os egíp- estudo da verdade para a dimensão humana, para dentro da vida humana, e,
cios, indianos e os povos da
antiga Mesopotâmia. como se verá, ainda mais além, para dentro da vida política.

14
Introdução ao pensamento filosófico

A filosofia grega, em sua forma racional e sistemática mais bem acabada,


surge juntamente com as cidades-Estado. O filósofo surge junto com o polí-
tico. As culturas anteriores possuíam a figura do político e suas organizações
político-jurídicas, mas não eram analisadas sistematicamente e racional-
mente tal como faziam os gregos. A Política como ciência, que concebia as
formas de organização social, de governo, do problema da validade e da im-
posição das leis, de quem e como deve governar, tudo isso é criação grega.
Os gregos se atreveram a trazer o conceito de Justiça para o âmbito público,
social, do cidadão da polis.

Contudo, a passagem do pensamento religioso para o filosófico se dá


também na passagem do mito à Filosofia. Antes da Filosofia, eram os mitos que
traziam os grandes ensinamentos morais e de conhecimento, de forma que
entender essa mudança é entender o nascimento da racionalidade filosófica.

A passagem do mito à Filosofia


Precisar o limiar transitório entre o pensamento mítico e o pensamento
filosófico é uma tarefa difícil. De fato, conforme atesta Aristóteles no primei-
ro livro da Metafísica, os mitos gregos já eram um modo de se identificar o
mundo racionalmente.

Sobre essa questão, conforme destaca Muñoz:


[...] a fronteira entre o pensamento mítico e o pensamento racional nunca foi inteiramente
clara. Muitos procuraram indicar que as explicações dos primeiros “cientistas” eram o
prosseguimento, se não em termos de conteúdo, ao menos de forma, das explicações
oferecidas pelos mitos. As aspas são necessárias, pois suas investigações diferem daquelas
produzidas pela comunidade científica de nossos dias por um aspecto crucial: não havia
uma pesquisa experimental sistemática e, em muitos casos, sequer rudimentar. Se as
fronteiras entre o pensamento racional e o pensamento mítico que o precedeu não
são nítidas, havendo inúmeros pontos de continuidade entre ambos, isso não significa,
porém, que não haja ruptura entre eles. O pensamento racional, aplicado para oferecer
explicações sobre o funcionamento da comunidade política e do cosmo, é algo totalmente
novo, ainda que sob alguns aspectos avance as características do pensamento mitológico
que o precedeu. A originalidade desse novo pensamento [...] é algo fundamentalmente
grego, inexistente até então.6 6
MUÑOZ, Alberto Alonso.
O nascimento da filoso-
fia. In: MACEDO JÚNIOR,
Entre os fatores que favoreceram os gregos a serem os protagonistas Ronaldo Porto (Coord.).
Curso de Filosofia Polí-
dessa importante passagem destaca-se que estes não possuíam um siste- tica: do nascimento da
Filosofia a Kant. São Paulo:
ma religioso absolutamente definido, baseado em um livro de revelações Atlas, 2008. p. 57.

ou com dogmas essenciais que somente eram dominados pela classe sa-
cerdotal. Os principais escritos que fundamentavam sua religião eram os de
Homero e Hesíodo, donde extraíram seus modelos de vida, matéria de refle-

15
Introdução ao pensamento filosófico

xão e estímulo à fantasia. Além disso, os sacerdotes gregos possuíam uma


atuação muito mais limitada se comparados com os do Oriente.

Ademais, conforme assevera Reale, existem características que diferen-


ciam os poemas homéricos daqueles que estão nas origens dos vários povos;
nessas obras já se manifestam algumas das características do espírito grego
que criaram a Filosofia. Primeiramente, os poemas gregos não se fixam na
descrição do monstruoso e do disforme, ao contrário, se estruturam segundo
o sentido da harmonia, eurritmia e proporção, do limite e da medida, uma
constante da filosofia grega que erigirá a medida e o limite até mesmo em
princípios metafisicamente determinantes. A arte da motivação também é
uma constante; não se relata somente uma cadeia de fatos, mas busca-se
em nível fantástico-poético as suas razões, busca-se determinar pelo mito
a relação entre causa e efeito. Terceira característica é o retrato da realidade
em sua totalidade de forma mítica. A posição do homem no universo estava
presente no mito e será assunto marcante do pensamento filosófico, dessa
7
REALE, Giovanni. Histó- vez sob bases puramente racionais.7
ria da Filosofia Antiga:
das origens a Sócrates.
Tradução de: PERINE, Mar- O contexto de liberdade em que os gregos viviam é também um dos ele-
celo. São Paulo: Loyola,
1993. v.1. p. 19-20. mentos que influenciaram a passagem do mito à Filosofia. Não havendo uma
estrutura formal religiosa que limitasse a participação do cidadão, bem como
a própria concepção do homem como essencialmente cidadão, são fatores
que favoreceram a gênese do pensamento baseado na razão. Além disso,
as condições socioeconômicas também foram importantes, tanto que a Fi-
losofia nasce antes nas colônias, primeiramente na Ásia e depois na Magna
Grécia, sul da Itália, para depois atingirem a península do Peloponeso.

Considerado todo esse contexto favorável, a passagem do mito à Filoso-


fia, operada por Tales de Mileto, é marcada pela substituição da crença nas
explicações dos relatos míticos pela compreensão racional do homem e do
mundo que o rodeia. Os mitos já eram explicações do homem e do mundo
baseadas em um profundo saber, contudo suas explicações das causas que
geravam todos os efeitos no mundo baseavam-se na crença em um modelo
que representava aquela situação.

A Filosofia, avançando nessa estrada já aberta, apresentou de modo


nítido desde seu nascimento as seguintes características: quanto ao con-
teúdo, busca explicar a totalidade das coisas, toda a realidade; quanto ao
método, busca-se uma explicação puramente racional da totalidade, o que

16
Introdução ao pensamento filosófico

vale para a Filosofia é o argumento da razão, a motivação lógica, o logos; por


fim, o escopo da Filosofia, seu caráter é puramente teórico, ou seja, contem-
plativo, visa simplesmente à busca da verdade por si mesma, por isso é livre,
não está vinculada a qualquer utilização pragmática, apesar de que de suas
conclusões influencia-se todo o mundo prático.8 8
REALE, Miguel. História
da Filosofia Antiga: das
origens a Sócrates. p. 29.
Buscar as explicações de modo racional não significa que a Filosofia disso-
cie-se por completo do divino, posto que, através dela, possibilita-se alcançar
a dimensão do divino racionalmente. Conforme Aristóteles, pode-se chamar
a filosofia de “divina”, pois além de levar o homem a conhecer Deus, possui as
mesmas características que deve possuir a própria ciência que Deus possui,
a desinteressada, livre, total contemplação da verdade.9 9
ARISTÓTELES. Metafísi-
ca. p.13.

Constata-se, portanto, que a busca da explicação do mundo através do


logos é o que há de revolucionário com o nascimento da Filosofia, e quem
pela primeira vez buscou conhecer a realidade desse modo, sendo, portanto,
o primeiro filósofo, foi Tales de Mileto, o qual concluiu que a água é o ele-
mento essencial de todas as coisas da natureza.

Após essa exposição acerca do surgimento da Filosofia, é importante


agora apresentá-la de forma geral em suas principais disciplinas, que depois
se aprofundam e fundamentam as grandes discussões sobre a verdade, o
conhecimento, a Justiça, entre outras categorias fundamentais. Esse estudo
introdutório é essencial para se compreender os pensamentos elaborados
pelos filósofos que serão trazidos durante o restante do livro.

As principais disciplinas da Filosofia


A Filosofia pode ser dividida em três grandes disciplinas, partindo destas
todas as demais áreas do conhecimento filosófico e, por conseguinte,
também todo o conhecimento científico, dada sua vinculação genealógica
com a Filosofia. Estas três grandes áreas são a Ontologia, a Teoria do Conhe-
cimento e a Ética.
10
Palavra composta pelas
raízes gregas ontos, geniti-
A Ontologia , estudo do ser, pode ser entendida como o estudo que busca
10
vo do particípio presente
do verbo ser, e logos, ciên-
conhecer o ser e seus modos. É a disciplina da Filosofia que busca identificar cia, estudo.

as essências dos seres e seus acidentes, aquilo que especifica qualquer coisa,
individuando-a ante as demais, bem como os acidentes, os elementos que
qualificam essa substância individuada. Trata-se da mais abstrata, porém mais

17
Introdução ao pensamento filosófico

profunda das áreas da Filosofia, pois estuda os elementos que constituem toda
a realidade, estando além dela. Por tal motivo, a Ontologia ocupa-se também
do estudo das causas dos fenômenos, até encontrar um princípio primeiro, de
onde partem todos os demais, sendo chamada, assim, de Filosofia Perene.

11 Outra grande área de estudo da Filosofia é a Teoria do Conhecimento11,


Termo comumente
usado na língua portu-
guesa, francesa (théorie
também chamada de Epistemologia12 e de Gnoseologia13, que se ocupa do
de la connaissance) e na
língua alemã (Erkenntnis-
modo de conhecimento do homem e de como esse conhecimento poderá
theorie). Os pensadores
ingleses utilizam comu-
ou não ser considerado verdadeiro, científico (episteme), caracterizando-se
mente o termo Episte-
mologia (Epistemology),
nessa segunda situação meramente como uma opinião (doxa). Busca-se en-
enquanto os italianos e
alguns franceses preferem contrar a evidência que ateste a veracidade de um conhecimento, pressu-
a designação Gnoseologia
(gnoseologia no italiano e posto essencial para se fazer Filosofia ou ciência.
gnoséologie no francês).
(ABBAGNANO, Nicola.
Dicionário de Filosofia. Além da compreensão de que o homem existe (Ontologia) e conhece
4. ed. Tradução de: BOSI,
Alfredo. Revisão da tradu- (Teoria do Conhecimento), a Filosofia também compreende a Ética14, a qual
ção e tradução dos novos
textos de: BENEDETTI, enfrenta o problema de qual comportamento se deve adotar. A Ética é a
Ivone Castilho. São Paulo:
Martins Fontes, 2003.) doutrina da Filosofia que, centrada no próprio homem enquanto indivíduo e
12
Do grego episteme
conhecimento, ciência) e
enquanto sociedade, e sua conduta, pressupondo a orientação da conduta
logos. Esse termo é mais
utilizado pelos filósofos
humana a um padrão ideal, tem em vista simplesmente o agir ideal ou o al-
ingleses.
cance de uma finalidade maior.
13
Do grego gnosis (conhe-
cimento) e logos. Termo
mais usado na língua A Filosofia Prática, ramo onde encontra-se a Ética, compreende ainda a
italiana.
14
Filosofia Política, parte da Filosofia que orienta e organiza a vida do homem
Do grego ethos, cos-
tume. em sociedade, e a Filosofia do Direito, que toma para si a investigação sobre
15
“O Direito é realidade a Justiça, a legitimidade das normas jurídicas e a relação entre o Direito e os
universal. Onde quer que
exista o homem, aí existe
o Direito como expressão
indivíduos e instituições.
de vida e de convivência.
É exatamente por ser o
Direito fenômeno univer-
sal que é ele suscetível
de indagação filosófica. A
Filosofia não pode cuidar
A Filosofia do Direito
senão daquilo que tenha
sentido de universali-
dade. Essa a razão pela
Sendo o Direito uma realidade social, presente em qualquer sociedade e
qual se faz Filosofia da
Vida, Filosofia do Direito,
cultura, não pode a Filosofia prescindir de analisar esse importante fenôme-
Filosofia da História ou
Filosofia da Arte. Falar
no.15 A Filosofia do Direito não é disciplina jurídica, mas a aplicação da Filo-
em Vida humana é falar
também em Direito, daí sofia ao campo jurídico. Miguel Reale delimita muito bem a diferença entre a
se evidenciando os títulos
existenciais de uma Filo- pesquisa jurídica e a pesquisa filosófica do Direito:
sofia Jurídica. Na Filosofia
do Direito deve refletir-se,
pois, a mesma necessi- Enquanto que o jurista constrói a sua ciência partindo de certos pressupostos, que são
dade de especulação do fornecidos pela lei e pelos códigos, o filósofo do Direito converte em problema o que
problema jurídico em suas para o jurista vale como resposta ou ponto assente e imperativo. Quando o advogado
raízes, independentemen-
te de preocupações ime- invoca o texto apropriado da lei, fica relativamente tranquilo, porque a lei constitui ponto
diatas de ordem prática.” de partida seguro para o seu trabalho profissional; da mesma forma, quando um juiz
(REALE, Miguel. Filosofia
do Direito. p. 10)
prolata a sua sentença e a apoia cuidadosamente em textos legais, tem a certeza de estar

18
Introdução ao pensamento filosófico

cumprindo sua missão de ciência e de humanidade, porquanto assenta a sua convicção


em pontos ou em cânones que devem ser reconhecidos como obrigatórios. O filósofo do
Direito, ao contrário, converte tais pontos de partida em problemas, perguntando: Por
que o juiz deve apoiar-se na lei? Quais as razões lógicas e morais que levam o juiz a não
se revoltar contra a lei, e a não criar solução sua para o caso que está apreciando, uma vez
convencido da inutilidade, da inadequação ou da injustiça da lei vigente? Por que obriga
16
a lei? Como obriga? Quais os limites lógicos da obrigatoriedade legal?16 REALE, Miguel. Filoso-
fia do Direito. p. 10.

A Filosofia do Direito, portanto, tem a missão de examinar criticamente


o Direito, analisar as temáticas jurídicas não do ponto de vista legal ou ju-
risprudencial, mas do universal, do próprio conhecimento. A Filosofia Jurí-
dica busca encontrar a verdade no Direito, aqueles princípios primeiros que
depois dão fundamento a todas as construções jurídicas. Pode-se dizer que
o filósofo vê o Direito de cima, de uma certa distância, ou seja, ele não está
envolvido no fenômeno jurídico, não dentro do problema, é antes um atento
observador externo, que racionalmente e cautelosamente percebe as incoe-
rências e formula os fundamentos que são capazes de contribuir com a evo-
lução da estruturação do Direito.

O Direito examina e formula suas leis, suas normas jurídicas. Mas a Filoso-
fia examina esse exercício, a Filosofia busca o conceito de Direito, contextu-
alizando sua função ao movimento social e cultural da humanidade. A Filo-
sofia tem prerrogativa para afirmar se uma lei é justa ou injusta, porque sua
crítica não parte de um dado posto, mas do universal, ela entende o Direito
como um enorme processo histórico, que se adéqua de modo diferente a
cada espaço e tempo. O direito positivo, o direito natural, o ordenamento
jurídico, a necessidade, função, surgimento e conceito do Direito, tudo isso é
temática da Filosofia do Direito.

Ademais, a ciência que dá fundamento ao Direito, a Ética, é disciplina es-


sencial ao pensamento filosófico. O agir humano sempre foi objeto de dis-
cussão da Filosofia. Como deve agir o homem? Quais os critérios que deter-
minam um agir correto? Há leis que regulam a existência? Qual a finalidade
da ação humana?

Desde Sócrates não há mais como separar o Direito da Ética. A Ética está
acima das normas e leis jurídicas, ela é o exame das ações humanas. A Ética
tem prerrogativa para analisar o Direito, porque a Ética estuda a natureza
humana, e tenta formular princípios para que o indivíduo se desenvolva e
se realize tendo em vista essa natureza humana. Com efeito, o Direito deve
prestar atenção à Ética, pois ambos trabalham com o agir humano e todas as
consequências que advêm disso para a sociedade.

19
Introdução ao pensamento filosófico

Filosofia e business
Se a Filosofia pode examinar criticamente e universalmente o Direito,
dando contribuições diferenciadas através da Filosofia do Direito, é certo
que ela pode realizar o mesmo em outros campos da vida humana, e aqui
incluímos o mundo do business. Os filósofos, quando buscam entender a na-
tureza humana, dando princípios para a sua realização existencial, em geral
não se esquecem de um importante aspecto: o econômico. Da poesia ho-
mérica aos contemporâneos, os pensadores colocam a questão econômica
como essencial para o indivíduo conduzir bem a sua vida. Nesse sentido,
este livro pretende trazer implicações ao business de cada pensador, ou seja,
quais ideias formuladas pelos filósofos podem contribuir com a atividade do
empresário e do empreendedor no aspecto tanto da Ética quanto da funda-
mentação do Direito, que tenha relação com as questões que envolvem o
mundo dos negócios.

No decorrer dos capítulos o leitor acompanhará que, por exemplo, nossas


concepções de atitude no trabalho foram objeto de discussão por filósofos
como Hegel e Marx, e mesmo de Hesíodo, um poeta que se tornou célebre
quase 3 000 anos atrás. Além disso, as questões econômicas sempre foram te-
máticas entendidas como essenciais para a manutenção do bem-estar social.

Por fim, destaca-se que a Filosofia trabalha a reorientação da racionalidade,


de forma que entendimentos adequados permitem desenvolver intuições e
raciocínios que conduzem melhor a vida cotidiana. O business também é ra-
cionalidade. E a Filosofia, desde seus primeiros pensadores gregos, foi criada
para, acima de tudo, ajudar o homem a pensar e agir melhor. Daí a valiosa
contribuição filosófica: “A Filosofia reflete no mais alto grau essa paixão pela
verdade, o amor pela verdade que se quer conhecida sempre com maior per-
17
REALE, Miguel. Filoso-
fia do Direito. p. 5. feição, tendo-se em mira os pressupostos últimos daquilo que se sabe”17.

A Filosofia como admiração ao saber


A Filosofia nasce da perplexidade. Portanto, são justamente os grandes
questionamentos que suscitam o progresso filosófico, a íntima necessidade
de penetrar cada vez mais a essência do problema.
A Filosofia, por ser a expressão mais alta da amizade pela sabedoria, tende a não se
contentar com uma resposta, enquanto esta não atinja a essência, a razão última de um
dado “campo” de problemas. Há certa verdade, portanto, quando se diz que a Filosofia é a
18
REALE, Miguel. Filoso- ciência das causas primeiras ou das razões últimas: trata-se, porém, mais de uma inclinação
fia do Direito. p. 6. ou orientação perene para a verdade última, do que a posse da verdade plena.18
20
Introdução ao pensamento filosófico

Essa paixão pela verdade se torna uma incansável busca por encontrar as
causa primeiras de todas as coisas, aquelas causas que respondem os gran-
des questionamentos e ainda geram todos os outros questionamentos.

A necessidade de responder com maior perfeição é aquilo que gera o


caminho histórico percorrido pela Filosofia. A história nos coloca novas in-
terrogações, seja por determinados eventos, por mudanças culturais, por
avanços das ciências, por mudanças de concepções das próprias pessoas,
todo esse universo influencia o exercício do pensar filosófico, exigindo do
filósofo novas respostas, novas indagações. Podemos nos arriscar a dizer
que enquanto o homem não conhecer com plenitude a verdade última das
coisas, a Filosofia prosseguirá sua marcha histórica.
A história da Filosofia tem o grande valor de mostrar que esta não pode se estiolar em um
sistema cerrado, onde tudo já esteja pensado, muitas vezes antecipadamente resolvido.
Quando um filósofo chega ao ponto de não ter mais dúvidas, passa a ser a história acabada
das suas ideias, o que não quer dizer que não gere a Filosofia nos espíritos uma serenidade
fecunda, apesar da incessante pesquisa19.20 19
REALE, Miguel. Filoso-
fia do Direito. 20. ed. São
E este é o grande mérito da história da Filosofia: apresentar o panorama Paulo: Saraiva, 2002. p. 8-9.
20
geral da estupefação diante do saber, da necessidade existencial, talvez até As palavras de Miguel
Reale foram também pro-
metafísica, de o homem conhecer, chegar mais próximo da verdade última feridas com base na leitura
de Karl Jaspers, que foi um
importante pensador exis-
das coisas, inclusive aquilo que é idêntico, útil e funcional. tencialista que se dedicou
a várias áreas do conheci-
mento. Na Filosofia escre-
Acompanhando o percurso histórico, o que nos ocupa aproximadamen- veu também uma impor-
tante obra de introdução
te 28 séculos de esforço intelectual em busca da verdade e do que é justo, ao pensamento filosófico:
JASPERS, Karl. Introdução
adequado, de direito, nos ajudará ainda a pensar melhor quais são as nossas ao Pensamento Filosófi-
co. Tradução de: HEGEN-
grandes questões contemporâneas, a que nível chegamos nas problemáti- BERG, Leônidas; MOTA,
Octanny Silveira da. São
cas metafísicas, e, já que esta obra é voltada ao Direito: como é o Direito Paulo: Cultrix, 1993.

atual? E como ele deve ser no futuro?

Talvez nenhuma frase seja tão ilustrativa para essa condição humana
como aquela empregada por Aristóteles para abrir a obra que, para ele,
era dedicada ao conhecimento do saber supremo: a Metafísica. “Todos os
homens, por natureza, tendem ao saber”21. 21
ARISTÓTELES. Metafí-
sica. p. 3.

A filosofia grega
A admiração pelo saber tornou-se maior, sobretudo, com os gregos an-
tigos, que viviam um período de profunda busca pelo saber. Da Teologia à
Política, passando pelas várias artes e ciências, tudo era objeto de grandes
investigações e reflexões. Fervilhava o espírito crítico, reflexivo e investiga-

21
Introdução ao pensamento filosófico

dor da natureza no espírito grego. Esse momento, talvez único na história


humana, surge juntamente com a figura do homem político. O fato de tanto
a Filosofia como a Política terem nascido no mesmo período e no mesmo
lugar merece algumas reflexões, pois ajuda a demonstrar que, no fundo, os
gregos viviam uma época de liberdade de pensamento.

Filosofia e Política na Grécia Antiga


Para se compreender o percurso histórico da Filosofia do Direito, acom-
panhando a construção de conceitos como Direito, Justiça, Liberdade, Cida-
dania, Ética, Igualdade, é importante partir desde o momento que lançou as
bases para a formação da racionalidade ocidental: o mundo grego. Pois foi
na Grécia que surgiram os primeiros filósofos do Ocidente, que influenciam
inclusive os pensadores contemporâneos.

Os primeiros filósofos foram os chamados pré-socráticos, que se tornaram


célebres por realizarem grandiosas argumentações sobre a ordem e o prin-
cípio das coisas, pela tentativa de explicar a natureza, a existência humana,
e mesmo questões divinas e transcendentais. É com os pré-socráticos que a
Ontologia se origina. Esses filósofos serão estudados no Capítulo III do nosso
trabalho.

Antes, é importante compreender os movimentos que influenciaram e


contribuíram enormemente para a criação do pensamento filosófico. Pois os
pré-socráticos não poderiam conceber seus grandes conceitos sem a influ-
ência dos poetas, em especial Homero e Hesíodo. Depois haveriam outros
poetas que também seriam importantes, como Tirteu, Arquíloco, Alceu, Safo
22
Para maiores informa- e inclusive o grande Sólon, que também foi célebre político ateniense.22
ções sobre esses outros
poetas, interessante obser-
var o capítulo dedicado a Para se compreender a origem da filosofia grega, é preciso, além de re-
eles na Paideia, de Jaeger,
e também a obra de Do- correr aos poetas, buscar também entender o processo cultural e político
naldo Schüler, Literatura
Grega (SCHÜLER, Donaldo. enfrentado pelos gregos, que apresentaremos brevemente neste capítulo,
Literatura Grega. Porto
Alegre: Mercado Aberto, juntamente com a exposição dos poetas. Não há como separar, a filosofia
1985.).
grega, em sua forma racional e sistemática mais bem acabada, surge jun-
tamente com as cidades-Estado. O filósofo surge junto com o político. As
culturas anteriores possuíam a figura do político e suas organizações polí-
tico-jurídicas, mas não eram analisadas sistematicamente e racionalmente
tal como faziam os gregos. A Política como ciência, que concebia as formas
de organização social, de governo, do problema da validade e da imposição
das leis, de quem e como deve governar, tudo isso é criação grega. Não há

22
Introdução ao pensamento filosófico

entre os hebreus, entre os egípcios, entre os chineses ou entre os indianos


um estudo tão sistemático da Política como aquele realizado por Aristóteles,
nem uma preocupação da união indissolúvel entre política e educação como
faz Platão na República. Os gregos se atreveram a trazer o conceito de Justiça
para o âmbito público, social, do cidadão da polis, situação essa impensável
no mundo anterior, que remetia a uma divindade transcendente toda a pro-
blemática da Verdade e da Justiça, de forma que o homem, como adorador
dos deuses, existia para praticá-la e aperfeiçoá-la no mundo terreno, sem
contudo ter poder para contestá-la ou mesmo modificá-la. No mesmo pe-
ríodo e no mesmo lugar nasceram a Filosofia e a Ciência Política. Vejamos
agora como se dá esse processo e a que tal ponto o político contribui com o
surgimento do pensamento filosófico.

A Justiça como questão filosófica


Com a explosão do comércio marítimo e a expansão dos domínios gregos,
a vida pública tornou-se cada vez mais importante com as discussões polí-
ticas e jurídicas ocupando grandes centros de debate da polis. O novo cená-
rio ampliou os horizontes dos gregos, sendo propício para o surgimento de
novas ideias e discussões sobre questões éticas, jurídicas e políticas. Embora
a esfera religiosa jamais tenha deixado de influenciar a sociedade grega, vi-
via-se um momento em que o homem cada vez mais ousava a contrair para
si diversos assuntos.

Entre essas ideias ousadas está a alta estima dada tanto pelos poetas
como depois também pelos filósofos acerca dos conceitos de Direito e Jus-
tiça, e a atribuição da importância dessas categorias para a organização da
comunidade. A grande novidade trazida pelos gregos está no fato de conce-
ber a comunidade como uma organização essencialmente humana, tendo
suas concepções e determinações político-jurídicas como materialização da
vontade de seus próprios cidadãos.

Ainda que nos séculos seguintes a administração do Direito permanecesse


nas mãos dos nobres, que controlavam leis não escritas e aplicadas a toda a
população, a nova concepção humanista de Direito permitiu aos cidadãos em
geral contestarem esse abuso político por parte dos magistrados. A oposição
entre nobres e cidadãos livres acabou gerando o movimento de positivação
dos direitos, em que as leis passaram de não escritas a escritas, de forma que
poderia valer igualmente para todos. “Direito escrito era direito igual para

23
Introdução ao pensamento filosófico

23
JAEGER, Werner Wi- todos, grandes e pequenos”23. Nesse processo, os grandes porta-vozes da vio-
lhelm. Paideia: a Forma-
ção do Homem Grego. lência causada pelos magistrados foram justamente os poetas, em particular
p. 134.
Hesíodo. A luta pela diké seria então a luta pela aplicação do Direito, o que
envolveria inclusive a luta de classes. “Hoje, como outrora, podem continuar a
ser os nobres, e não os homens do povo, os juízes. Mas estão submetidos no
24
JAEGER, Werner Wi- futuro, nas suas decisões, às normas estabelecidas na diké”24. Contudo, inclu-
lhelm. Paideia: a Formação
do Homem Grego, p. 134. sive antes de Hesíodo, a vontade de conceber a Justiça como uma fonte indis-
pensável para a organização social já se via nos poemas homéricos.

Homero representa ainda o início desse longo processo que é a passa-


gem do Direito de sua condição essencialmente divina para uma construção
humana. Em Homero, o Direito é designado com o termo themis, um “compên-
dio da grandeza cavaleiresca dos primitivos reis e nobres senhores. Etimologi-
25
JAEGER, Werner Wi- camente significa ‘lei’”25. A themis era concedida por Zeus aos reis nos tempos
lhelm. Paideia: a Formação
do Homem Grego, p. 134. homéricos.26 Tão antigo quanto o conceito de themis é também o de diké.
26
Exemplo é esta cita-
ção da própria Ilíada: “Os
O conceito de diké não é etimologicamente claro. Vem da linguagem processual e é tão
reis, alunos de Zeus, reu- velho quanto themis. Dizia-se das partes contenciosas que “dão e recebem diké”. Assim se
nidos à volta do Atrida compendiava numa só palavra a decisão e o cumprimento da pena. O culpado “dá diké”, o
[...]” (HOMERO. Ilíada. 5.
ed. Tradução de: NUNES, que equivale originariamente a uma indenização, ou compensação. O lesado, cujo direito
Carlos Alberto. Rio de é reconduzido pelo julgamento, “recebe diké”. O juiz “reparte diké”. Assim, o significado
Janeiro: Ediouro, 1996.
Canto II, verso 445, p. 67.).
fundamental de diké equivale aproximadamente a dar a cada um o que lhe é devido.
Os reis, alunos de Zeus, Significa ao mesmo tempo, concretamente, o processo, a decisão e a pena.27
seriam os nobres chefes
guerreiros gregos, reu-
nidos à volta do Atrida Nesse sentido, enquanto a themis está relacionada à autoridade da lei, à
Agamemnon.

27
sua validade e aplicabilidade a todos os cidadãos, a diké se refere à sua pró-
JAEGER, Werner Wi-
lhelm. Paideia: a Forma- pria aplicação. Na themis observa-se muito mais um princípio primeiro da
ção do Homem Grego, p.
134-135. fundamentação jurídica, da qual se provém a legitimidade para imposição
da lei, enquanto que na diké se vê o próprio movimento de realização do
Direito, e por isso abrange na mesma palavra as ideias de processo, sentença
e pena. Ademais, a aproximação da diké a uma ideia de equidade, em que o
Direito se reparte de forma justa a todos os cidadãos, tornou-se o fundamen-
to principal para as lutas de todos em nome de seus direitos. Como cada um
possui parte nessa ideia de Justiça, possuem também o direito de lutar por
seu direito. Dessa forma, a diké representa também o direito de cada cidadão
a lutar contra a hybris, que por sua vez equivale à ação contrária ao Direito.
Significa que há deveres para cada um e que cada um pode exigir, e, por isso, significa
o próprio princípio que garante essa exigência e no qual se poderá apoiar quem for
prejudicado pela hybris – palavra cujo significado original corresponde à ação contrária
ao Direito. Enquanto themis refere-se principalmente à autoridade do Direito, à sua
legalidade e à sua validade, diké significa o cumprimento da Justiça. Assim se compreende
28
que a palavra diké se tenha convertido necessariamente em grito de combate de uma
JAEGER, Werner Wi-
lhelm. Paideia: a Forma-
época em que se batia pela consecução do Direito a uma classe que até então o recebera
ção do Homem Grego, apenas como themis, quer dizer, como lei autoritária. O apelo à diké tornou-se de dia para
p. 135. dia mais frequente, mais apaixonado e mais premente.28

24
Introdução ao pensamento filosófico

Na diké o cidadão encontrava o fundamento para poder reclamar a Justi-


ça, o que significa enfrentar o próprio Direito estabelecido naquele momen-
to. O Direito dessa forma já não era algo consolidado como uma manifes-
tação divina, que não podia ser contestado pelo cidadão comum, mas um
movimento, em que a luta pelo Direito29 era também parte desse processo. 29
Percebe-se já entre
os gregos o fundamento
Como síntese, o Direito entre os gregos tornou-se um processo de formação, principal para a luta pelo
Direito como condição
o homem desenvolvia-se ao mesmo tempo em que desenvolvia a ideia de para a existência do pró-
prio Direito, antecipando
Direito. em muitos séculos a con-
cepção do Direito como
luta de Jhering.
A igualdade é o conteúdo principal da diké, o objetivo de se dar a cada
um o que é seu, uma prerrogativa de fazer todos os cidadãos livres iguais
perante o Direito. A partir daí a igualdade ocuparia sempre lugar central nas
discussões jurídicas e políticas, chegando a influenciar os grandes filósofos
Platão e Aristóteles: “A exigência de um Direito igualitário constitui a mais
alta meta para os tempos antigos”30. 30
JAEGER, Werner Wi-
lhelm. Paideia: a Formação
do Homem Grego, p. 136.
Nessa nova concepção de Direito, os nobres tiveram que também se sub-
meter a igualdade de todos. Essa igualdade, contudo, não poderia ser resu-
mida numa igualdade de todos perante a lei, mas sim da própria acepção de
Direito. O Direito assemelha-se a uma medida para decidir as questões entre
o “‘meu’ e o ‘teu’”31, de tal forma que se possa fixar o Direito, atribuindo a cada 31
JAEGER, Werner Wi-
um o que é seu. Essa mudança, visando uma igualdade jurídica e política, lhelm. Paideia: a Forma-
ção do Homem Grego,
operou-se ao mesmo tempo em que se delimitava, na esfera econômica, a p. 136.

fixação de medidas e pesos para o intercâmbio de mercadorias. Assim como


a economia fixava a medida e o peso, o Direito fixava as normas. Logo, trata-
-se de um movimento amplo no qual o que se apresenta é a própria forma-
32
ção do povo grego, um desenvolvimento cultural sem o qual seria impen- JAEGER, Werner Wi-
lhelm. Paideia: a Forma-
ção do Homem Grego,
sável o surgimento, por exemplo, da democracia, que para ser instituída de- p. 136.

pende do princípio de que todos são iguais perante a lei. “Procurava-se uma 33
Ésquilo narra em
Prometeu Acorrentado a
‘medida’ justa para a atribuição do Direito e foi na exigência de igualdade, história do furto do fogo
dos deuses por Prometeu,
implícita no conceito de diké, que se encontrou essa medida”32. que entregou aos mortais,
assim como na Ode a De-
méter vemos o relato do
A delimitação de medidas foi essencial para a construção do Direito, rapto de Perséfone por
Hades, e inclusive a con-
não somente no sentido positivo, da produção e aplicação de normas, mas clusão do Direito como
uma medida justa, em que
também na própria esfera moral, na delimitação e fixação de condutas que a vítima permaneceria
metade do ano na Terra e
a outra metade no mundo
não poderiam ser praticadas. Desde os tempos primitivos encontram-se na dos mortos, gerando as
quatro estações. Percebe-
literatura e na mitologia menções a delitos, como o assassínio, o adultério, o -se como as noções de
medida e delimitação já
furto e o rapto.33 Essa delimitação de condutas, de limites às ações humanas, estavam desde sempre
presentes na mentalidade
inclusive anteriores à fixação de normas, provém de um conceito ligado à grega.

ideia de diké, o termo díkayosine, que não possui uma tradução moderna

25
Introdução ao pensamento filosófico

equivalente. A dikayosine representa a medida abstrata, mas amplamente


efetiva, que constituía o conteúdo essencial das primeiras leis escritas.
O novo termo proveio da progressiva intensificação do sentimento da Justiça e da sua
expressão num determinado tipo de homem, numa certa arete. Originariamente, as aretai
eram tipos de excelência que se possuíam ou não. Nos tempos em que a arete de um
homem equivalia à sua coragem, colocava-se no centro esse elemento ético, e todas as
outras excelências que um homem possuísse se subordinavam a ele, e deviam pôr ao seu
serviço. A nova dikayosine era mais objetiva. Tornou-se a arete por excelência, desde o
instante em que se julgou ter na lei escrita o critério infalível do justo e injusto. Pela fixação
escrita do nomos, isto é, do direito consuetudinário válido para todas as situações, ganhou
conteúdo palpável. Consistia na obediência às leis do Estado, como mais tarde a “virtude
34
JAEGER, Werner Wi- cristã” consistiria na obediência às ordens do divino.34
lhelm. Paideia: a Forma-
ção do Homem Grego, p.
137-138. A dikayosine, nesse sentido, era a expressão positiva e mesmo ética de um
ideal de homem, de um elevado tipo de homem dotado de certas virtudes,
tal como o guerreiro antigo deveria guiar-se pela coragem. As leis do Estado
não seriam obedecidas simplesmente por sua autoridade coercitiva, mas
por serem a expressão desse sentimento de Justiça, dessa fixação do justo e
do injusto ao qual o homem grego se submetia. As leis escritas refletiam os
costumes, que por sua vez representavam esse critério criado num processo
histórico e espiritual da Justiça como uma virtude. Nessa perspectiva, o Di-
reito era resultado da Justiça, da medida e do critério que delimita o justo e
o injusto, e seguir o Direito significaria viver conforme esse ideal virtuoso de
homem. Delineia-se aqui o essencial papel que cumpre o ideal de formação
de homem na cultura grega, em que mesmo o Direito deveria ser utilizado
para a formação do homem, do cidadão, do membro da polis. Com a Justi-
ça sendo inserida como virtude central da polis, abandonou-se a concepção
anterior da valentia como arete máxima, advinda da sociedade espartana,
voltada principalmente às guerras, mas abriu a necessidade de cultivar um
novo tipo de homem, aquele relacionado essencialmente às atividades pú-
blicas, sejam elas jurídicas, políticas, artísticas ou intelectuais em geral. Não
era mais a guerra o centro das disposições de vontade do homem grego, mas
a cultura e a organização social. “O conceito de Justiça, tida como a forma de
arete que engloba e satisfaz todas as exigências do perfeito cidadão, supera
35
JAEGER, Werner Wi- naturalmente todas as formas anteriores”35.
lhelm. Paideia: a Forma-
ção do Homem Grego,
p. 139. A Justiça como virtude cardeal, que resume todas as demais, tal como afir-
mariam posteriormente Platão e Aristóteles, apresenta essa nova forma de
pensar criada pelo homem grego, derivada do crescimento tanto econômico
como cultural da polis. E esse desenvolvimento está ligado principalmente
ao surgimento do Estado constitucional, isto é, do período antigo da forma-
ção do homem grego em que as cidades passaram a ser reguladas por leis

26
Introdução ao pensamento filosófico

escritas, por uma constituição. A constituição garantia o princípio da igual-


dade a todos os cidadãos e simbolizava o ideal de homem daquele povo;
ela era regulada e aplicada conforme a arete que se desenvolvia, sua medida
de Justiça estava na dikayosine. Desse processo advém todo o valor de o
homem grego sentir-se parte de seu Estado; seu sentimento pátrio estava
em viver conforme aquelas virtudes preceituadas por ele e inseridas no espí-
rito da constituição. Também por esse motivo o Estado deveria promover a
educação a todos os jovens, um ensino público, porque somente assim teria
a certeza de que a juventude seria formada dentro do seu ideal de homem,
conforme as virtudes que determinavam o conteúdo de sua constituição. O
ensino público não existia simplesmente por ser uma obrigação estatal, mas
por essa necessidade pedagógica.36 É por essa razão que Platão e Aristóteles 36
JAEGER, Werner Wi-
lhelm. Paideia: a Forma-
afirmam que cada Estado, pela lei, expressa e interioriza nos seus cidadãos ção do Homem Grego,
p. 141.
o seu ideal de homem. Para os gregos, como se vê, a legislação possuía por
conteúdo sua mais elevada condição. Sua existência não estava apenas na
regulamentação da sociedade, mas essencialmente na educação, no cultivo
de seu tipo ideal de homem.
A herança de normas jurídicas e morais do povo grego encontrou na lei a sua forma mais
universal e permanente. Platão culminou a sua obra, de Filosofia Pedagógica com a sua
conversão em legislador, na última e maior das suas obras; e Aristóteles conclui a Ética
com o apelo a um legislador que lhe realize o ideal. A lei é também uma introdução à
Filosofia, na medida em que, entre os Gregos, a sua criação era obra de uma personalidade
superior. Com razão, o legislador era considerado educador de seu povo, e é característico
do pensamento grego que ele seja frequentemente colocado ao lado do poeta, e as
determinações da lei junto das máximas da sabedoria poética. Ambas as atividades são
37
estreitamente afins.37 JAEGER, Werner Wi-
lhelm. Paideia: a Forma-
ção do Homem Grego,
Ética e Direito entrelaçam-se a tal maneira que quase passam a entender- p. 143.

-se como sinônimos. Pela Ética, o Estado tinha a garantia à educação de seu
Direito, de suas leis; e pelas leis, pelo Direito, o Estado garantia também a
formação do seu ideal de homem, cultivado naquelas virtudes que sua Ética
consagrou. Nessa comunidade ética, o cidadão vivia conforme a vida políti-
ca, cívica, em que o cidadão existia no Estado e participava do bem comum,
dos interesses gerais da polis. Essa existência pública e política imprimia no
espírito do cidadão um dever ético de realizar e viver também para a evolu-
ção do Estado, da comunidade. Como o Estado lhe concedia inúmeros direi-
tos, oriundos da antiga diké e o seu princípio da igualdade, entre eles a edu-
cação pública, era seu dever contribuir com o crescimento do Estado. Dessa
necessidade resultou o crescimento intelectual, profissional e espiritual do
homem grego. Em sentido prático, isso inclui a grande transformação na so-
ciedade grega, a passagem da antiga sociedade rural dos tempos hesiódicos

27
Introdução ao pensamento filosófico

à uma polis urbana, voltada essencialmente aos interesses citadinos. A habi-


litação profissional não era apenas dever por ser o trabalho uma atividade
que desenvolve a si próprio, mas também para contribuir com a polis. Se o ci-
dadão recebia a educação, sentia-se no dever de tornar-se cada vez mais um
melhor profissional. O Estado é a essência do cidadão grego para onde diri-
gem todas as suas atividades espirituais. Para esse modelo de homem, fazer
parte do Estado era sentimento de felicidade, de viver conforme o ethos.
É um cosmos legal segundo esse velho modelo helênico – onde o Estado seria o próprio
espírito e a cultura espiritual visaria o Estado como seu fim último – o que Platão esboça
nas Leis. Ali ele define como oposta ao saber especializado dos homens de ofícios,
negociantes, merceeiros, armadores, a essência de toda a verdadeira educação ou paideia,
a qual é educação na arete que enche o homem do desejo e da ânsia de se tornar um
38
JAEGER, Werner Wi- cidadão perfeito, e o ensina a mandar e obedecer, sobre o fundamento da Justiça.38
lhelm. Paideia: a Forma-
ção do Homem Grego, p.
146-147. A educação política, ou ainda a techné política, não pode ser ensinada
como se faz com o ensino das profissões especializadas em uma atividade,
porque nesses casos exige-se sobretudo a parte técnica, enquanto que na
arte política não basta o caráter técnico, os saberes teóricos e práticos, mas a
educação do ethos, da arete. Não se pode medir o cidadão pelo seu conheci-
mento, mas pelo seu caráter, pelo cultivo que fez das virtudes e da educação
político-humanista concedida pelo Estado.

Apresentado esse relato histórico, passaremos agora a tratar das caracte-


rísticas essenciais de nossos estudos nas poesias de Homero e Hesíodo.
39
A discussão sobre se
Homero de fato escre-
veu ambas as epopeias
já alcança mais de um
século. Entre os eruditos
Origens da filosofia grega:
surgem as mais diversas
opiniões, desde aqueles
que afirmam que Homero
os poetas Homero e Hesíodo
sequer existiu, e que as
epopeias seriam compi-
lações de autores poste-
riores de versos passados
oralmente de geração a
geração; outros afirmam
Homero
que ele existiu sim ,mas
que apenas escreveu ou Homero é certamente o maior nome da literatura grega. As duas epo-
compilou uma das poe-
sias, já que ambas contém
construções e estilos
peias que a sua autoria são creditadas, Ilíada e Odisseia39, repercutirão na
literários diferentes; por
fim, existem aqueles sim
formação do espírito grego como nenhum outro autor tão longe alcançou. A
acreditam na real autoria
de ambas as epopeias ao
Ilíada imortalizou-se como, possivelmente, a mais impressionante guerra já
poeta Homero. Para este
trabalho, tais questões
retratada literariamente. A força com que o autor apresenta os emocionan-
não chegam a ser de vital
importância, pois o essen- tes combates, as inesperadas e precisas intervenções divinas, os dramas dos
cial aqui é captar a influ-
ência dessas epopeias no heróis envolvidos, as grandes questões que movimentam ambos os exérci-
espírito grego, como au-
xiliaram nas construções tos combatentes (gregos e troianos), tudo isso torna a Ilíada obra de caráter
dos conceitos de Ética,
Justiça, Direito etc. único na literatura universal.

28
Introdução ao pensamento filosófico

A Ilíada apresenta a narração da célebre Guerra de Troia40. Páris, príncipe 40


Aqui também os estu-
diosos se dividem. Seria
troiano, raptou Helena, esposa de Menelau, famoso monarca grego, levan- a Guerra de Troia apenas
uma construção literária,
do-a para suas terras. Decidido a recuperar sua esposa, Menelau pede auxí- uma epopeia elaborada
para enaltecer o povo
lio ao seu irmão Agamemnon. Em pouco tempo, a raiva que se apossou de grego? Ou poderia de fato
ter acontecido? Algumas
descobertas arqueológi-
Menelau tomou conta de todo o povo grego, e os grandes chefes e guerrei- cas desde o século passa-
do alimentam a discussão,
ros de todos os reinos foram convocados a participarem da guerra contra os abrindo a possibilidade
de as famosas muralhas
troianos. Entre esses ilustres guerreiros estavam, além de Menelau e Agame- de Troia se localizarem no
que hoje é território turco.
mnon, o enorme e forte Ajax, o sábio e velho Nestor, o astuto e protegido
dos deuses Ulisses e o célebre personagem principal da obra, Aquiles, filho
da deusa Tétis.

A Ilíada inicia-se já no nono ano de combates, no famoso episódio da dis-


cussão entre Agamemnon e Aquiles, que resultou na retirada do segundo do
campo de batalha. São 24 cantos, que terminam com os funerais de Heitor, o
troiano que matou Pátroclo, melhor amigo de Aquiles, e morto por este por
vingança. A violência final de Aquiles é a explosão de sua ira, tema central de
toda a obra. Aquiles estava fora das batalhas, foi apenas quando seu amigo
morreu que violentamente retornou aos campos e vingou Pátroclo.

Já a Odisseia narra as aventuras enfrentadas por Ulisses em seu retorno


após a Guerra de Troia. Ulisses comete um grande erro, devido à soberba,
ao declarar não necessitar da ajuda dos deuses, o que irritou profundamen-
te Posêidon, o deus dos mares. Diante disso, o deus decide causar o maior
número possível de problemas ao herói, atrasando seu retorno em 10 anos.
Entre as aventuras enfrentadas por Ulisses e sua tripulação estão a ilha do
Ciclope, gigante de um olho só, a ilha de Circe, a feiticeira que transforma
a todos em animais, as belíssimas sereias, que com seus cantos irresistíveis
atraem todos os marinheiros à morte, o célebre estreito dos monstros de
Posêidon, Cila e Caribdes, entre outros problemas naturais. Ao término da
saga, Ulisses ainda precisa enfrentar os pretendentes de sua esposa, Penélo-
pe, que tentavam usurpar sua mulher e o reino.

Acima expomos o resumo geral das obras. Agora apresentaremos algu-


mas análises de como esses versos influenciam na Filosofia e no Direito.

Para Schüler, a Ilíada é produzida numa época em que o homem ainda


não havia tomado completamente consciência de si mesmo, de forma que
mais lhe impressiona as façanhas de heróis e deuses, no campo externo, que
os dilemas psicológicos que aterrorizam a dimensão interna do indivíduo.

29
Introdução ao pensamento filosófico

Para esse autor, seria um período histórico em que o homem ainda se mara-
41
Sintaticamente o vilhava com o mundo que o rodeia, entusiasmava-se por participar dele.41
objeto (ira, o herói, Ílion)
precede o sujeito. A aten-
ção, tanto a do poeta Isso não significa que contornos psicológicos e pessoais não estejam pre-
como a do ouvinte, está
presa no objeto. O objeto sentes na obra. Por exemplo, a epopeia inicia e termina com a ira de Aqui-
mantém o sujeito oculto.
Vive-se num período em les, a emoção que lhe impulsiona e dá a tônica dos relatos. A arrogância de
que o homem ainda não
tomou inteira consciência Agamemnon nos primeiros cantos desperta preocupação e resistência em
de si mesmo. Entusiasma-
-se pelo grande espetácu-
lo do mundo. Fascinam-no
seus próprios aliados, ao verem como ele enfrentou e permitiu facilmente
as obras dos deuses e dos
heróis. Sente prazer em
que o valente Aquiles se retirasse do combate. Até mesmo os deuses, como
nomear o mundo rico que
se desdobra diante de seus
já é frequente nas lendas gregas, não escapam de questões psicológicas, opi-
olhos. E não se apercebe
de si. Não lhe ocorrem suas
niões e preferências que por vezes os aproximam dos humanos. Logo no início,
dúvidas, dores ou conflitos
pessoais. Não olha para Apolo, o deus Sol, lança epidemia aos gregos, devido à rejeição de Agamemnon
dentro de si mesmo. O
mundo o absorve intei- em devolver sua escrava Criseida, filha de Criseis, sacerdote de Apolo.42 Depois,
ro. Na cultura em que o
homem só tem olhos e ou- vendo Aquiles, seu filho, sendo humilhado perante os gregos, Tétis implora a
vidos para o mundo e para
o outro, nasce a epopeia Zeus que dê a vitória aos troianos, até que se arrependam e peçam perdão a
com as estupendas faça-
nhas dos heróis e deuses. Aquiles.43 Também por várias vezes Atena é enviada ao campo de batalha, ora
(SCHÜLER, Donaldo. A
Construção da Ilíada: aconselhando um ou outro guerreiro. Logo no canto II, inclusive, vemos Zeus
uma análise de sua elabo-
ração. 2. ed. Porto Alegre: tendo dificuldades para dormir diante das reflexões que lhe vinham à mente,
LP&M, 2004. p. 13.)
provocadas pelo inesperado pedido de Tétis.
42
“O coração indignado,
se atira dos cumes do
Olimpo; atravessado nos Contudo, é somente na Odisseia que se verão sinais mais evidentes dos
ombros leva o arco e o
carcás bem lavrado. A cada dilemas humanos, vestígios de aspectos psicológicos que circundam aquela
passo que dá, cheio de ira,
ressoam-lhe as flechas nos obra; na Ilíada, não obstante, ainda se presencia tão somente o fascínio do
ombros largos” (HOMERO.
Ilíada. 5. ed. Tradução de: homem pela descoberta de si mesmo e do mundo. Na Ilíada não se pensa
NUNES, Carlos Alberto. Rio
de Janeiro: Ediouro, 1996. em limites para a ação heroica, mas na vontade e no ato de conquistar por
Canto I, versos 44-46, p.
44.). inteiro esse mundo. É nesse cenário que surge a figura do herói, a clássica
43
“Se já algum dia, Zeus imagem da poesia homérica. Num primeiro momento, como o próprio Schü-
pai, te fui grata entre os
deuses eternos, seja por ler observou, é importante notar que no proêmio, o objeto principal da nar-
meio de ações ou pala-
vras, atende-me agora: ração da Ilíada, a causa primeira da história heroica, é a ira de Aquiles, e so-
honra concede a meu
filho, fadado a tão curta
existência, a quem o
mente secundariamente aparece como causa a vontade de Zeus. O homem
Atrida Agamemnom, rei
poderoso, de ultraje ino-
ainda não havia olhado para dentro de si completamente, de forma que seus
minável cobriu: de seu
prêmio, ora, ufano, se
limites não estavam completamente estruturados. Não tão dependente de
goza. Compensação lhe
concede, por isso, Zeus
Zeus, o homem aparecia a si mesmo como ilimitado, e nisso consistia a faça-
sábio e potente; presta aos
Troianos o máximo apoio, nha heroica. O significado de colocar a causa principal do ciclo da Ilíada na
até quando os Acaios
distingui-lo retornem e de ira humana, e não na vontade divina, revela que o destino, ainda que existen-
honras condignas o cer-
quem”. (HOMERO. Ilíada, te na cultura helênica, não absorvia completamente o homem, de forma que
Canto II, versos 503-510,
p. 54.) suas ações e resultados eram responsabilidades suas.

Também situa-se aqui o episódio do Canto II, em que Zeus envia um sonho
a Agamemnon, na forma do confiável Nestor, no qual este aconselha o herói

30
Introdução ao pensamento filosófico

a invadir imediatamente Troia, pois aí teria a vitória. Porém, Agamemnon,


após uma breve exaltação, deu-se conta da falsidade da mensagem, que na
verdade tratar-se-ia de uma armadilha. Zeus preferia Aquiles a Agamemnon,
e o chefe dos gregos era consciente disso. Os deuses sim interferem, mas os 44
Na mitologia grega
humanos são livres para aceitar ou mudar seus destinos. eram as três Parcas, di-
vindades do mundo dos
mortos, governado por
Na exaltação do herói encontramos ainda outra característica marcante Hades, que fiavam o des-
tino dos homens, e a qual-
da poesia homérica, em especial a Ilíada: a presença do destino. Contudo, a quer momento poderiam
extinguir a vida de qual-
ideia homérica de destino não se confunde com um ciclo fechado, em que a quer mortal, bastando
que para isso cortassem
vida do indivíduo está previamente estabelecida. Para Homero, o destino, as determinado fio.
45
A preocupação com
moiras44, se assemelha a uma ordem superior em que não somente os huma- o destino e com a ordem
imanente do Universo
nos, mas inclusive os deuses submetem-se. E é por isso que tanto na Ilíada inspiraria vários fenôme-
nos sociais e religiosos no
como na Odisseia, nem os deuses podem criar o destino por suas próprias mundo grego, como as fa-
mosas sentenças do Orá-
vontades, mas agir e criar caminhos. Na ideia de destino dos gregos está culo de Delfos, a religião
dos Mistérios de Elêusis e
aberta a responsabilidade do indivíduo, da livre-escolha, o homem pode a seita órfica. Era comum
a compreensão de que
criar uma nova via dentro do cenário predeterminado pelo destino, não é, havia uma ordem natu-
ral, na qual nem homens
portanto, um roteiro inflexível. Esse destino possui relação com a ordem das nem deuses poderiam
escapar. O espírito grego
coisas, e aqueles que adentram seus mistérios são de fato os homens mais aspirava a compreender
essa realidade. Relembre-
corajosos, heroicos e sábios.45 mos, também, que tanto
Platão como Aristóteles
situavam a máxima felici-
dade na contemplação da
Nesse sentido, os poemas homéricos não estão situados tanto no conhe- realidade, no pleno enten-
dimento do mundo.
cimento do homem a si mesmo, mas no desvelar de seu espírito impetuoso e 46
JAEGER, Werner Wi-
heroico. A Homero não interessa tanto os dilemas que afetam a vida humana, lhelm. Paideia: a Forma-
ção do Homem Grego,
embora reconheça que existam, mas a necessidade de estender o domínio do p. 68.

homem nesse mundo que serve de palco e cenário para conquistas. E é por 47
Posteriormente, na
República, Platão direcio-
isso que a figura que se glorifica é a do herói, que não pode temer o destino, nará diversas críticas a
esse consenso de Homero
nem enfrentar a ordem natural das coisas, mas adentrá-la, e ali criar a história. como absoluto educador
da Grécia. O argumen-
Homero cria um mundo limitado, mas que permite atitudes ilimitadas nesse to platônico baseia-se,
essencialmente, na dis-
círculo, ainda que o homem não possa tudo fazer, pode dentro do seu possí- sociação entre Estética e
Ética na poesia homérica.
vel atitudes heroicas. Homero “[...] louva e exalta o que no mundo é digno de Para Platão, a arte jamais
poderia perder de vista
elogio e de louvor. Assim como os heróis de Homero reclamam, já em vida, a seu objetivo pedagógico
ligado à Ética, e as diver-
devida honra e estão dispostos a conceder a cada um a estima que tem direi- sas passagens tanto da
Ilíada como da Odisseia
retratando heróis em seus
to, assim todo o autêntico feito heroico é sedento de honra”46. Como se vê, momentos de comidas,
bebidas e sexo não seriam
Homero enaltece e louva a atitude heroica, porque esta é digna de honra, de louváveis eticamente
falando. Platão argumen-
forma que o herói passa a constituir o ideal de homem para o grego em geral. ta colando trechos dos
poemas. Para maiores
As palavras de Homero ecoaram por toda a história helênica, transformando-o aprofundamentos na crí-
tica platônica à estética
num educador de toda a Grécia. E a educação homérica47 baseava-se justa- homérica, ver: RODRIGO,
Lidia Maria. Platão contra
mente na educação do herói, de sua honra e coragem, da sua nobreza de es- as pretensões educativas
da poesia homérica. Re-
pírito ao deixar-se guiar pelas virtudes e atitudes de louvor, que somente o vista Educação e Socie-
dade, v. 27, n. 95, maio/
homem ativo e criador é capaz de realizar, ao contrário do herói passivo, que ago. 2006.

31
Introdução ao pensamento filosófico

somente deixa viver, conforme foi citado anteriormente. Jaeger, ao comentar a


proposta pedagógica de Homero, assinala que “[...] os mitos e as lendas heroi-
cas constituem um tesouro inesgotável de exemplos e modelos da nação, que
48
JAEGER, Werner Wi-
lhelm. Paideia: a Forma-
neles bebe o seu pensamento, ideais e normas para a vida”48.
ção do Homem Grego,
p. 68.
Esse ideal de herói se tornaria, posteriormente, uma espécie de lei para o
cidadão grego, pois a poesia e o mito, antes mesmo da lei, foram as primei-
ras manifestações da educação. Antes mesmo de o membro da polis obe-
decer o Direito, ele já havia se habituado a cultivar-se no ideal de homem
difundido pela poesia homérica, que tem na ira de Aquiles sua mais alta
representação.
A Ilíada celebra a glória da maior aristeia da guerra de Troia, o triunfo de Aquiles sobre o
poderoso Heitor, em que a tragédia da grandeza heroica votada à morte se mistura com
a submissão do homem ao destino e às necessidades da sua própria ação. É o triunfo do
49
JAEGER, Werner Wi- herói, não a sua ruína, que pertence à autêntica aristeia.49
lhelm. Paideia: a Forma-
ção do Homem Grego,
p. 75. E é nessa ação ousada e deliberada, de colocar a própria vida em risco
para elevar-se à glória heroica, em que consiste toda a força educadora da
Ilíada. Os gregos não viam em Aquiles um herói comum, realizador de gran-
des feitos mas que perece no ato de tentar mais uma ação, mas o mais nobre
dos heróis, aquele que é capaz de antecipadamente saber que o maior dos
feitos exige também o maior dos sacrifícios. E é essa moral, centrada essen-
cialmente na figura heroica, no Aquiles da Ilíada homérica, que consolida-
rá historicamente o ideal de homem da cultura grega. A moral grega não
estava preocupada com o cidadão comum, desejante tão somente de uma
50
Contudo, há uma pas-
sagem importante na vida prazerosa e tranquila, como teria sido a vida de Aquiles, mas a do herói,
Odisseia, de um diálogo
entre Ulisses e a psykhé e mais do que o herói, aquele herói que é capaz de entregar a própria vida
de Aquiles no mundo
dos mortos. Nesse trecho, pelo ato heroico. Pátroclo não morreu devido à luta, mas à ociosidade de
constante no Canto XI, a
sombra de Aquiles decla- Aquiles; é na luta e na realização que se situa a ação heroica.
ra, quase num alento de
saudade, que as honras e
lembranças dos grandes
feitos só possuem valida-
O heroísmo e o destino do herói ligado à morte50 revelam ainda outro
de entre os vivos, e tudo
não passaria de sombras
traço marcante de Homero, que influenciaria o pensamento grego em geral:
entre os mortos. Por esse
pensamento, qualquer
a ideia de uma lei superior e universal. Há um ritmo uniforme, permanente,
vida, ainda que miserável,
poderia ser entendida
em que todo o movimento se realiza por ação própria, e nisso entram as
como superior à morte.
Seria preferível uma vida ações de homens e deuses, heróis e não heróis, trata-se de uma lei maior
longa e sem glórias a um
reinado no mundo dos que governa a vida em geral, e que se situa no limiar da Moral e da Ética.
mortos. Tal interpretação
modificaria a visão de um Homero preenche seus poemas com temas morais e naturalistas, descreve
Aquiles resoluto por uma
vida trágica. (ASSUNÇÃO, não somente as lutas, mas também a natureza, o cenário dos episódios, e
Teodoro Rennó. Ulisses
e Aquiles repensando a a passagem dos tempos, demonstrando que além das façanhas humanas
morte – Odisseia, XI, 478-
491 v. Revista Kriterion, existe um limite imposto por uma lei universal. E dentro desse limite situa-se
44, n. 107, jun./2003.)
a Ética, como ciência que estuda a conduta humana.
32
Introdução ao pensamento filosófico

Para Homero, como para os gregos em geral, as últimas fronteiras da Ética não são
convenções do mero dever, mas leis do ser. É na penetração do mundo por esse amplo
sentido da realidade, em relação ao qual todo “realismo” aparece como irreal, que se
baseia a força ilimitada da epopeia homérica.51 51
JAEGER, Werner Wi-
lhelm. Paideia: a Forma-
ção do Homem Grego,
Há uma ligação do humano com o divino que permeia os poemas homé- p. 78.

ricos, tanto nas inúmeras interferências dos deuses na Guerra de Troia como
nas inspirações provocadas por Atena na viagem de Ulisses. Homero não
está preocupado em invadir o mundo interior de suas personagens, explo-
rando suas emoções, mas as ações, os movimentos do mundo exterior que
constituem a realização heroica. Cada ação, mesmo a cólera de Aquiles, tem
dois lados: um humano, a motivação psicológica da personagem, e outro
divino, que em geral se baseiam em vontades dos deuses ou na causa pri-
meira de tudo, a vontade de Zeus, o deus supremo. Há, portanto, uma ordem
estável, que na Ilíada chega inclusive a ser descrita na forma de concílios
entre os deuses, que, ainda que em alguns momentos se revele conflituo-
sa entre as próprias figuras divinas, demonstra como além do protagonista
existe sempre uma outra ordem a julgar e decidir o futuro.

Também a Odisseia é repleta delas. Toda a saga de Ulisses é permea-


da tanto pelo dilema psicológico, a sua soberba contra os deuses, como
também pela vontade divina, de Posêidon, em prejudicar o herói. Contu-
do, nesse limiar do humano com o divino existe uma ordem que supera
inclusive tal ligação. Por exemplo, mesmo Posêidon desejando aniquilar
Ulisses por sua soberba, assim não pode fazê-lo, pois o destino do herói já
estava traçado, já estava determinado que ele deveria retornar à sua terra
natal. Nesse contexto, Posêidon poderia apenas causar-lhe mais problemas
e atrasar sua viagem.

Tal situação poderia parecer ao leitor contraditória, pois para quê Posêi-
don provocaria tantos problemas se Ulisses estava destinado a triunfar?
Porém, foi somente quando alcançou o limite de seu sofrimento existencial
é que Ulisses compreendeu que era sua soberba quem lhe provocava tantos
problemas. Ao realizar a passagem de humildade tornou-se novo homem,
mais preparado para os novos desafios. Há uma justiça superior em Homero,
que liga o humano ao divino, e inclusive apresenta consequências além dessa
dimensão. Tal Justiça surge ainda em sua mais profunda acepção, aquela em
que a Ética se preocupa com a formação do homem.

É nesse sentido espiritual, que inclusive antecipa muitas ideias da filosofia


grega em geral, que se encontra a ideia de Justiça em Homero. A justiça ho-
mérica está estabelecida num patamar elevado em que se liga o humano ao
33
Introdução ao pensamento filosófico

divino, nos limites éticos da ação humana que, embora motivada a expandir-
-se ao infinito e à arete do herói, chega sempre a um momento que a ordem
natural e superior das coisas, a lei universal, põe um fim. A ação Ética não
pode ser separada do movimento natural do Universo, da fluidez do mundo
exterior. O homem grego cultuado por Homero é aquele que dentro desse
cenário aparentemente limitado é capaz de, através das virtudes do herói,
realizar e construir uma vida sublime. A Justiça está nesse agir ético, é uma
concepção de Justiça que se define a partir de um ideal de homem formado
pelo cultivo das virtudes do herói, tendo a coragem como cerne. Nesse sen-
52 tido, a Justiça é uma virtude interna, e sua prática não é uma obediência às
Na mitologia grega, as
Musas eram as nove filhas
da união de Zeus com
leis, mas o ato de se guiar pelas virtudes éticas do herói e do ideal de homem
Mnemósina, que personi-
fica a Memória. Nasceram
grego, do homem nobre.
logo após a grande vitó-
ria dos deuses olímpicos
contra os titãs, para justa-

Hesíodo
mente cantar as enormes
façanhas dos vencedores.
“As musas são apenas as
cantoras divinas, cujos
coros e hinos alegram
o coração dos Imortais,
Depois de Homero houve outro grande poeta que influenciaria bastante
já que sua função era
presidir ao pensamento
a formação do ideal grego de homem justo e ético: Hesíodo. Contudo, havia
sob todas as suas formas:
sabedoria, eloquencia,
diferenças marcantes entre os dois. Hesíodo vivia em um tempo que não
persuasão, história, mate-
mática, astronomia. Para era tão dourado quanto o de Homero. Se em Homero era essencial cantar
Hesíodo, são as Musas
que acompanham os reis as façanhas dos heróis, em Hesíodo era mais importante cantar mensa-
e ditam-lhes as palavras
de persuasão, capazes gens que ajudassem o povo agricultor e trabalhador a levar uma vida mais
de serenar as querelas e
restabelecer a paz entre digna. Em Hesíodo se vê o segundo grande educador, agora não dos heróis
os homens. Do mesmo
modo, acrescenta o poeta e nobres, mas do povo e dos cidadãos comuns. O ideal de heroísmo trazido
de Ascra, é suficiente que
um cantor, um servidor por Homero persiste, mas agora não revelado apenas as lutas e guerras gran-
das Musas celebre as faça-
nhas dos homens do pas- diosas, mas também no árduo trabalho cotidiano.
sado ou os deuses felizes,
para que se esqueçam as
inquietações e ninguém
mais se lembre de seus so-
De Hesíodo nos chegaram duas poesias: a Teogonia e Os Trabalhos e os Dias.
frimentos. [...] Embora em
Hesíodo já apareçam as
A primeira narra em forma de mitos a origem genealógica dos deuses, desde
nove Musas, seus nomes
e funções variam muito, os deuses primordiais, que participaram da criação do Universo segundo a
até que, na época clássi-
ca, seu número, nomes visão religiosa da Grécia Antiga, e depois as gerações seguintes de deuses, até
e atributos se fixaram:
Calíope, preside à poesia os deuses olímpicos, como Zeus, Posêidon, Hades, Hera, Atena, entre outros.
épica; Clio, à história;
Érato, à lírica coral; Euter- Também apresenta a lenda que dá origem aos humanos: o roubo do fogo sa-
pe, à música; Melpômene,
à tragédia; Polímnia, à grado por Prometeu e a criação de Pandora, a primeira mulher.
retórica; Tália, à comédia;
Terpsícore, à dança; Urânia,
à astronomia”. Etimologi- Já Os Trabalhos e os Dias possui conotação bastante diversa. Aqui, é o pró-
camente, Música significa
“o que concerne às Musas”
e Museu é o “templo das
prio poeta, falando em primeira pessoa, com o dom da palavra e da verdade
Musas”, ou o local onde
alguém se adestra nas
inspirados pelas Musas52, que procura dizer algumas verdades ao seu irmão
artes. (BRANDÃO, Junito.
Dicionário Mítico-Etimo-
Perses, com quem o poeta discute alguns bens a serem distribuídos em su-
lógico. 2. ed. Petrópolis:
Vozes, 1997. v. II. p. 150-
cessão. Hesíodo procura demonstrar ao seu irmão como Zeus deseja a Justi-
151.)

34
Introdução ao pensamento filosófico

ça e pune os injustos, de como a Justiça está pautada na medida, e a hýbris


(excesso) é aquilo que os deuses não aceitam. O poeta também fala a seu
irmão do valor do trabalho, que representa a vitória pessoal dentro de um
caminho honesto. Tudo isso traz o poeta através de relatos míticos: as duas
lutas, Prometeu e Pandora, e o mito das cinco raças.

É, portanto, em Os Trabalhos e os Dias que concentraremos os nossos es-


tudos, sobretudo na importância que o poeta dedicou às categorias justiça
e trabalho, e como elas se entrelaçam numa conotação pedagógica para seu 53
JAEGER, Werner Wi-
lhelm. Paideia: a Forma-
povo. ção do Homem Grego,
p. 85.
54
Em Hesíodo revela-se a segunda fonte de cultura: o valor do trabalho. O título de Os JAEGER, Werner Wi-
lhelm. Paideia: a Forma-
Trabalhos e os Dias dado pela posterioridade ao poema rústico didático de Hesíodo, ção do Homem Grego,
exprime isso perfeita, mente. O heroísmo não se manifesta só nas lutas em campo aberto, p. 87.
entre os cavaleiros nobres e seus adversários. Também a luta silenciosa e tenaz dos 55
Um rápido resumo das
trabalhadores com a terra dura e com os elementos tem o seu heroísmo e exige disciplina, cinco raças é importante
qualidades de valor eterno para a formação do Homem. Não foi em vão que a Grécia também para compreen-
foi o berço de uma humanidade que põe acima de tudo o apreço pelo trabalho. A vida der a diferença de “eras”
que Hesíodo via na sua,
despreocupada da classe senhorial em Homero não deve induzir-nos em erro: a Grécia em comparação àquela
exige dos seus habitantes uma vida de trabalho.53 narrada por Homero. A
primeira raça é a de ouro,
nela os homens viviam
Hesíodo centra seus esforços na formação do cidadão comum, o cida- com os deuses, e por isso
não conheciam miséria
dão de seu tempo, ligado a uma época ainda agrária da história helênica. A nem dor. A segunda raça
é a de prata, bastante
região grega não possui um solo rico, os benefícios que se podem tirar dele inferior à primeira, pois
aqui os homens vivem
somente surgem se arrancados mediante o trabalho árduo, uma verdadeira 100 anos como crianças
junto às mães, e logo
quando alcançam a ado-
luta do homem com a natureza. Hesíodo narra a “idade do ferro”, um período lescência morrem porque
não conseguem conter
distante dos tempos dourados, e que em sua passagem cronológica teve a louca hýbris dentro de
si, o excesso provocado
como resultado a “subversão do direito, da moral e da felicidade humana nos pelas paixões arrebatado-
ras. A terceira raça é a de
duros tempos atuais”54. A passagem da história das cinco idades do mundo, bronze, dedicada às prá-
ticas de guerra e à violên-
que Hesíodo narra em Os Trabalhos e os Dias, revela esse sentimento pessi- cia; trabalham o bronze
na confecção de armas,
mista que tem na idade do ferro seu ápice.55 Existiram cinco raças de huma- e vivem e morrem lutan-
do; a quarta raça é a dos
nos: a raça de ouro, a raça de prata, a raça de bronze, a raça dos heróis e a raça heróis, dos semideuses,
que perecem como heróis
de ferro. Cada raça possui uma vida mais breve e mais sofrida, mais abalada mas depois suas almas
habitam tranquilas a Ilha
pelas misérias do mundo do que a raça anterior. dos Bem-Aventurados;
aqui se situam os heróis
da Ilíada, por exemplo, e
Ainda assim, esses camponeses a quem Hesíodo se dirigia de modo por isso a poesia homérica
situa-se nessa era; por fim,
a quinta raça é a do ferro,
algum devem ser confundidos com sujeitos incultos. Na Grécia hesiódica, aquela em que vive Hesío-
do, quando os homens
em particular a Beócia, região onde vivia o poeta, ainda não existiam as gran- são obrigados a trabalhar
durante toda a vida para
des metrópoles. As cidades eram ainda bastante rurais, o que não impediu não morrerem de fome
e miséria. (LAFER, Mary
que a população já cultivasse o espírito político, ético e jurídico. Na região da de Camargo Neves. Co-
mentários. In: HESÍODO.
Beócia os cidadãos reuniam-se em grande número nas cidades para discu- Os Trabalhos e os Dias.
Tradução de: LAFER, Mary
tir as questões políticas, e impedir a opressão das classes mais elevadas da de Camargo Neves. São
Paulo: Iluminuras, 1996.
sociedade. Exemplo disso está no poema de Hesíodo, em que o autor critica p. 79-80.)

35
Introdução ao pensamento filosófico

severamente o seu irmão Perses, que entregava a vida à preguiça, à inveja e


56
Vejamos um trecho
às reclamações.56
de Hesíodo: “trabalha, ó
Perses, divina progênie,
para que a fome te de- Em outra passagem, não menos incisiva, o poeta denuncia os corruptos
teste e te queira a bem
coroada e veneranda De- juízes de seu tempo, utilizando-se de uma fábula, a do gavião e do rouxinol.
méter, enchendo-te de
alimentos o celeiro; pois a Essa fábula abre a seção de seu texto intitulada “A Justiça”:
fome é sempre do ocioso
companheira; deuses e
homens se irritam com Agora uma fábula falo aos reis mesmo que isso saibam. Assim disse o gavião ao rouxinol
quem ocioso vive”. (HESÍ- de colorido colo no muito alto das nuvens levando-o cravado nas garras; ele miserável
ODO. Os Trabalhos e os
Dias, p. 45.) varado todo por recurvadas garras gemia enquanto o outro prepotente ia lhe dizendo:
“Desafortunado, o que gritas? Tem a ti um bem mais forte; tu irás por onde eu te levar,
mesmo sendo bom cantor; alimento, se quiser, de ti farei ou até te soltarei. Insensato quem
57
HESÍODO. Os Traba- com mais fortes queira medir-se, de vitória é privado e sofre, além de penas, vexame.57
lhos e os Dias, p. 39-40.

É uma crítica feroz de Hesíodo, que tornando-se porta-voz de seu tempo


denuncia a opressão que vivia grande parte da população diante daqueles
que mantinham os poderes políticos e econômicos. A denúncia é pontual,
direta aos corruptos. Tal crítica não pode ser resumida a uma classe da comuni-
dade, mas a todos aqueles indivíduos que detêm mais poder e representação,
sejam posições sociais, jurídicas, econômicas, políticas, e por essa vantagem se
aproveitam e brincam com as vidas dos demais indivíduos tal como o gavião
brinca com o rouxinol. Outra mensagem importante nessa citação é que Hesí-
58
“Em Hesíodo introduz- odo aconselha a não medir-se com aqueles considerados mais fortes, pois se
-se pela primeira vez o
ideal que serve como assim como o rouxinol nada pode fazer com o gavião, um homem comum só
ponto de cristalização a
todos esses elementos tem a perder se decidir enfrentar alguém de maior poder e influência social.
e adquire uma elabora-
ção poética em forma de Hesíodo reprova o caminho dos conflitos e das intrigas, e aconselha a todos a
epopeia: a ideia do Di-
reito. A propósito da luta
pelos próprios Direitos,
percorrerem o caminho do trabalho, que é mais digno, honesto, e os frutos são
contra as usurpações do
seu irmão e a venalidade
merecidos, pois são conquistados pelo próprio esforço e mérito, e não exige a
dos nobres, expande-se
no mais pessoal dos seus
necessidade de se medir com indivíduos mais poderosos.
poemas, “Os Erga”, uma fé
apaixonada pelo Direito.
A grande novidade dessa O leitor percebe então como a Ética de Hesíodo distancia-se da ética
obra está em o poeta
falar na primeira pessoa. homérica por tentar situá-la num plano mais terreno, material, diferente
Abandona a tradicional
objetividade da epopeia da grandiosidade da Ilíada e da Odisseia, que buscam um ideal elevado de
e torna-se porta-voz de
uma doutrina que maldiz homem, talvez difícil de ser alcançado. O ideal de Hesíodo relaciona-se dire-
a injustiça e bendiz o di-
reito. É o enlace imediato tamente à situação histórica de seu povo, tem efeitos práticos imediatos, é a
do poema com a disputa
jurídica sustentada contra luta cotidiana contra o solo, contra a natureza, contra a opressão, é a luta dos
o seu irmão Perses, que
justifica essa ousada ino-
vação. Fala com Perses
cidadãos comuns pela aplicação do Direito. Nesse sentido, Hesíodo diferen-
e dirige a ele admoesta-
ções. Procura convencê-lo
cia-se ainda mais de Homero, sua poesia abandona a objetividade da epo-
de mil maneiras de que
Zeus ampara a justiça,
peia e encarna o ideal de seu povo, passando a defender o Direito e atacar a
ainda que os juízes da
Terra a espezinhem, e de
injustiça em primeira pessoa.58
que os bens mal adqui-
ridos nunca prosperam”.
(JAEGER, Werner Wilhelm. Tal como o poeta da Ilíada e da Odisseia, Hesíodo também concebe o
Paideia: a Formação do
Homem Grego, p. 91.) Direito e a Justiça como bens divinos, relacionados a Zeus, e as injustiças

36
Introdução ao pensamento filosófico

terrenas como meros fatos existenciais humanos. Hesíodo se põe como in-
terlocutor das Musas, e não o autor propriamente dito, de forma que em
várias partes de seu poema acompanha-se prodigiosas preces a Zeus e ar-
gumentos tentando convencer Perses da condição divina da justiça, por ser
esta obra do senhor do Olimpo.

O fato de se pôr ainda em primeira pessoa revela esse caráter apelativo, de


compreender os Os Trabalhos e os Dias não somente como poema didático,
mas também como clamores de todo um povo por Justiça. A veemência com
que Hesíodo maldiz a injustiça e as condutas de Perses corroboram essa ideia.
Àqueles que a forasteiros e nativos dão sentenças retas, em nada se apartando do que é
justo, para eles a cidade cresce e nela floresce o povo; sobre esta terra está a paz nutriz de
jovens e a eles não destina penosa guerra o longevidente Zeus: nem a homens equânimes
a fome acompanha nem a desgraça: em festins desfrutam dos campos cultivados; a terra
lhes traz muito alimento; nos montes, o carvalho no topo traz bálanos e em seu meio,
abelhas; [...] Àqueles que se ocupam do mau excesso, de obras más, a eles a Justiça destina
o Cronida, Zeus longevidente. Amiúde pega a cidade toda por um único homem mau que
se extravia e que maquina desatinos. Para eles do céu envia o Cronida grande pesar: fome
e peste juntas, e assim consomem-se os povos [...].59 59
HESÍODO. Os Traba-
lhos e os Dias, p. 39-41.

Um governante corrupto, portanto, atrai sozinho toda a desgraça para


o seu povo, pois pratica atos injustos que são odiados por Zeus. Hesíodo
pontua aqui a responsabilidade maior dos líderes, que por representarem in-
teresses de toda uma população não devem pensar somente em si mesmos,
mas na coletividade, pois o fracasso dele é também fracasso de muitas outras
pessoas. Hesíodo lamenta ter nascido em um momento histórico em que
vigora unicamente o direito do mais forte, e não a justiça em seu sentido
pleno e divino.

Essa passagem também pode ser transportada para a esfera jurídica da


contemporaneidade, como crítica aos juízes que não exercem suas profis-
sões com a devida ética que deles se espera. Em muitos casos impera o di-
reito do mais forte, dos juízes que, comandando o Direito, fazem da Justiça
um instrumento para alcançar seus interesses e satisfações. O gavião não
está preocupado com a vida e destino do rouxinol, assim como muitos juízes
não se interessam pela vida das partes as quais chegam até ele querendo
resolver um conflito. Essa atitude autoritária reduz o Direito a um simples ins-
trumento, longe de sua antiga acepção divina e nobre que tanto sustentou
Homero ao enaltecer as virtudes do herói. Salienta-se, porém, que o objetivo
de Hesíodo é pedagógico, é demonstrar a fraqueza do Direito de seu tempo,
ensinando aos indivíduos comuns como interagir no processo judicial, e ten-
tando romper com o autoritarismo dos juízes e senhores do poder.

37
Introdução ao pensamento filosófico

Ainda na temática Justiça, Hesíodo trabalha a questão do Direito na ideia


de um processo. Nesse sentido, a luta divina dos heróis em Homero converte-
-se na luta pelo Direito em Hesíodo, representada na forma do processo.
Porém, a luta divina em Hesíodo é diferente daquela em Homero, no que con-
cerne à participação dos deuses nos grandes eventos. Pois se na Ilíada e na
Odisseia os deuses faziam intervenções no decorrer da história, favorecendo
esse ou aquele personagem, Hesíodo se limita a rogar a Zeus para que se faça
a justiça, pois sua condição humana, pertencente à raça de ferro, não lhe ga-
rante acesso a esse nível de conhecimento, o das ações e intenções divinas. Os
heróis podiam recorrer e pedir auxílio aos deuses, os homens da raça de ferro
não, por se situarem numa posição inferior, se comparada às raças anteriores.

Entretanto, a ação judicial também pode ser compreendida como um con-


flito divino. Ainda que de fato um processo não receba dos deuses a mesma
atenção que merece uma epopeia, a ação judicial envolve a aplicação humana
da Justiça, ou seja, a aplicação daquilo que deseja Zeus para os humanos. A
poesia desenvolve-se na história de um processo resultante de uma herança,
em que Perses, após subornar o juiz, consegue contrair para si mais da metade
dos bens a que tinha direito. Hesíodo desfere severas críticas a Perses, devido
à sua cobiça, assinalando ainda que o único caminho aceitável para a obten-
ção de riquezas é pelo trabalho. “O trabalho é, de fato, uma necessidade dura
para o Homem, mas uma necessidade. E quem por meio dele provê sua mo-
desta subsistência recebe bênçãos maiores do que aquele que cobiça injusta-
60
JAEGER, Werner Wi-
lhelm. Paideia: a Forma-
mente os bens alheios”60. O trabalho não constitui por si só uma benção, mas
ção do Homem Grego,
p. 93.
seus resultados consentem realização e paz. Ainda que árduos e cansativos, é
somente pelo trabalho que o homem pode conquistar seus bens sem ferir a
justiça divina implementada por Zeus. Esse caráter aparentemente contraditó-
rio, de sofrimento de um lado e tranquilidade de outro, revela-se em Hesíodo
61
O Prometeu Acorren- também de forma religiosa e mítica, através do mito de Prometeu61. Para Hesí-
tado, de Ésquilo, depois
receberia algumas modi- odo, o sofrimento advindo do labor não pode ser algo natural ao homem, pois
ficações em relação a essa
primeira versão do mito a dor e o sofrimento não condizem com a natureza divina, nem com a ordem
que narra o roubo do fogo
dos deuses e sua entre-
das coisas. Sendo assim, o trabalho e o sofrimento só podem ter surgido em
ga aos mortais. Quando
focarmos nos tragedió- algum dado momento da história da humanidade.
grafos, realçaremos essas
mudanças no mito.
Hesíodo aplica a forma “causal” de pensar, própria da Teogonia, à história de Prometeu,
nos Erga, e aos problemas éticos e sociais do trabalho. O trabalho e os sofrimentos devem
ter aparecido algum dia no mundo. Não podem ter feito parte, desde a origem, da ordem
divina e perfeita das coisas. Hesíodo assinala-lhes que encara do ponto de vista moral.
62
JAEGER, Werner Wi- Como castigo, Zeus criou a primeira mulher, a astuta Pandora, mãe de todo o gênero
lhelm. Paideia: a Forma- humano. Da caixa de Pandora saíram os demônios da doença, da velhice, e outros males
ção do Homem Grego,
p. 95. mil que hoje povoam a Terra e mar.62

Como se percebe, o sofrimento provocado pelo trabalho advém desse


fato anterior cometido, que possui também relação com o mundo jurídico

38
Introdução ao pensamento filosófico

– o roubo do fogo sagrado cometido por Prometeu. É devido a esse espírito


religioso que o trabalho recebe a conotação de ser exaltado; para o homem
comum trabalhar não significa somente o árduo esforço de se livrar de uma
vida preguiçosa e desviante, mas também vivenciar a humildade dos mor-
tais perante os deuses do Olimpo. Aqui clareia-se ainda mais o ideal peda-
gógico da poesia hesiódica. O primeiro mito narrado nos Erga, a narração
das cinco idades do mundo, com suas cinco raças, demonstra o processo de
degeneração do homem através dos tempos, passando de uma raça feliz e
sem a necessidade de recorrer ao trabalho até a raça de ferro, a humanidade
do período em que vive Hesíodo. Esse mito depois é seguido pelo mito de
Prometeu, que narra o início do trabalho e do sofrimento do homem.

Como síntese, então, Hesíodo vê o trabalho como uma condição sofrida


e árdua aos humanos, mas que é a única via aberta pelos deuses à rique-
za justa. Aquele que enriquece pelo próprio esforço é agraciado por Zeus,
aquele que procura enriquecer com base na injustiça é desgraçado pelo
senhor dos deuses. Concluindo essa análise, cita-se o final da obra:
Não faças maus ganhos, maus ganhos granjeiam desgraça.
Ama a quem te ama e frequenta quem te frequenta;
Dá a quem te dá e a quem não te dá, não dês.
Ao que dá se dá e ao que não dá, não se dá.
Doar é bom, roubar é mau e doador de morte;
Pois o homem que dá de bom grado, mesmo doando muito,
Alegra-se com o que tem e em seu ânimo se compraz.
Confiando na impudência, quem para si próprio furta,
Mesmo sendo pouco, deste se enrijece o coração,
Pois se um pouco sobre um pouco puseres
E repetidamente o fizeres logo grande ficará.
Quem acrescenta ao que já tem ardente fome afastará;
O armazenado em caso desassossego ao homem não traz;
Melhor é o de casa, o de fora danoso é.
Bom é pegar do que se tem; para o ânimo é provação
Precisar do que não há; convido-te a nisto pensar!
[...]
Facilmente imensa fortuna forneceria Zeus a muitos:
Quanto maior for o cuidado de muitos, maior o ganho.
Se nas entranhas riqueza desejar teu ânimo,
63
Assim faze: trabalho sobre trabalho trabalha.63 HESÍODO. Os Traba-
lhos e os Dias, p. 49-51,

39
Introdução ao pensamento filosófico

Implicações de Homero e Hesíodo


para o mundo do business
Nos poemas homéricos pode-se encontrar diversos exemplos de pers-
pectivas de conhecimentos, habilidades e atitudes que possam implicar con-
tribuições para o mundo empresarial. Os personagens da Ilíada e da Odisseia
são ricas fontes para análises nesse sentido. Já foi comentado como Homero
louva o heroísmo de seus personagens, como enaltece a coragem e as ações
grandiosas, a capacidade de realizar grandes empreendimentos. Agamem-
non, por exemplo, na Ilíada incorpora a figura do verdadeiro líder, aquele
que é capaz de unir os vários lados de uma equipe, que é capaz de aprovei-
tar ideias dos companheiros e estimulá-los a darem o melhor de si mesmos.
Quando os gregos encontravam-se divididos entre a vontade de lutar de
Ulisses e a retirada de Aquiles, acometeu-se o temor a todos os guerreiros de
que não poderiam vencer os troianos sem a ajuda de Aquiles. Agamemnon é
a racionalidade que não se deixa abater pelos maus momentos, é ele quem
reúne os guerreiros e encoraja-os a seguirem lutando. Todo líder empresarial
deve ter essa postura de Agamemnon, pois as crises e os momentos difíceis
para a empresa vez ou outra aparecerão, e caberá ao líder não se permitir
abater e enfraquecer a coragem dos demais colaboradores. O empresário,
ainda, deve estar atento às intrigas dentro da organização, perceber quando
um grande diretor não está querendo render aquilo que tem potencial para
oferecer, como é o caso de Aquiles, e perceber como tudo isso pode influen-
ciar nos desempenhos gerais da empresa. O empresário deve saber estimu-
lar a todos os seus colaboradores e permanecer sempre desperto, para ante-
cipar ou resolver possíveis intrigas que dividam o grande grupo.

Mas o grande personagem da Ilíada é certamente Aquiles. O protagonista


inicia a história dividido em um grande dilema – não lutar e levar uma vida
medíocre como imortal por toda a eternidade, ou avançar à batalha e nela
morrer como herói. Após várias pressões de Agamemnon ele dirige-se a Troia
junto aos demais, mas a princípio não participa dos combates. É somente
quando o seu melhor amigo, Pátroclo, é morto em batalha por Heitor, que
Aquiles abandona a inércia e enfrenta os inimigos. Mais tarde morrerá, atin-
gido em seu ponto fraco, o calcanhar, contudo, sua morte sucede da forma
como esperava, como o maior herói da Ilíada. Aquiles é o ponto mais alto da
coragem heroica na Ilíada; embora todos os personagens sejam corajosos, é
ele quem a conduz a seu ponto mais sublime. A eleição de morrer por uma

40
Introdução ao pensamento filosófico

causa heroica é certamente uma atitude corajosa, mas também demonstra


intemperança, o vício de não medir as consequências de cada ação.

Como também foi comentado anteriormente, na Odisseia, Aquiles, já entre


os mortos, trava um memorável diálogo com Ulisses, no qual afirma estar arre-
pendido de ter morrido, pois as lembranças heroicas e as grandes façanhas só
possuem validade entre os vivos, não no mundo dos mortos, e que uma vida
miserável e longa vale mais que uma breve e heroica. Aquiles é paradoxal, um
personagem complexo, capaz de passar de um extremo a outro sem grandes
dificuldades. Da inércia completa à luta extrema, da imobilidade ao heroísmo,
e deste para o arrependimento desolador. Aquiles possui grandes virtudes que
podem ser aproveitadas pelo empresário, como sua elevada coragem, a audá-
cia de querer ser um gigante eterno, mas também possui pontos fracos que
precisam ser superados, em especial a sua intemperança, que lhe causa trans-
tornos a ponto de retirar-lhe a racionalidade na maior parte das vezes. Aquiles
não se guia pela razão, mas pelo impulso, pela emoção, e isso também foi sua
ruína. O empreendedor precisa basear-se na racionalidade medida, propor-
cional aos acontecimentos, deve entender cada momento, e decidir pela ação
que melhor cabe naquele problema. O empresário não pode ser inerte, se re-
cusando a lutar, mas também não pode se dedicar a um grande feito heroico,
se isso depois significa sua ruína ou uma tragédia para sua organização. Não,
o business exige racionalidade, medida, cálculo, saber pontuar o que é mais
exato para cada momento.

Do lado dos troianos encontramos a figura de Príamo, pai de Heitor, que


após ver o corpo de seu filho ser castigado durante 10 dias por Aquiles, desce
de sua fortaleza e aceita a humilhação de suplicar ao inimigo para que lhe
entregue o corpo de Heitor. Na cultura dos povos antigos, não ser sepultado
era considerado como uma maldição64, e este era o grande temor de Príamo. 64
Conforme se verá na
tragédia Antígona, de
Aquiles concedeu ao imploro de seu adversário, significando em seguida um Sófocles, em que a proi-
bição do sepultamento a
período de trégua entre os combatentes. Isso demonstra um grande mérito Polinices, através da lei de
Creonte, resultou em todo
na atitude de Príamo: a humildade. Homero nos revela aqui como mesmo o conflito da obra.

em uma das mais sangrentas batalhas é possível haver o respeito e as regras


entre os exércitos inimigos. Apresenta, ainda, como é necessário também
saber negociar e por vezes até se humilhar a outrem, quando isso for preciso
para se obter algo conveniente naquela situação. A humildade também é
um ponto característico de Ulisses, na Odisseia.

A Odisseia é a saga de Ulisses, a narração de seu retorno a Ítaca depois dos


perigos atravessados em Troia. Ulisses em várias passagens demonstra hu-

41
Introdução ao pensamento filosófico

mildade, pois ao reconhecer não ter muitas ideias sobre que decisões tomar
em determinadas situações, ouve seus companheiros. Ulisses não é o líder
rígido e autoritário, mas um líder que sabe usar o conhecimento dos demais.
O conhecimento, aliás, é ponto fundamental nessa história. Em várias oca-
siões, por falta de conhecimento, Ulisses tem sua viagem atrasada, causando
diversos problemas à tripulação, como ao não saber das dificuldades envol-
vendo o canal a qual protegiam os monstros Cila e Caribdes. Também sua
falta de conhecimento em relação às ilhas que se situavam entre Troia e Ítaca
lhe causaram estorvo, como ao parar no palácio de Circe. A falta de conhe-
cimento, aliada à falta de estratégia, são situações idênticas àquelas vividas
pelos empresários que possuem domínio técnico de algumas atividades, ou
não elaboram planejamentos consistentes a médio ou longo prazos. Não
basta vontade, coragem, atitude, é preciso ter inteligência também. Embora
Ulisses fosse homem bastante corajoso, lhe faltavam demasiados aspectos
técnicos, que se fossem diferentes certamente resultariam numa viagem de
volta muito mais rápida e tranquila.

Junto às atitudes e conhecimentos temos o terceiro termo do nosso con-


ceito de competências: a habilidade. Ulisses possuía vários saberes práticos,
quase intuitivos, que lhe possibilitavam tomar decisões urgentes de modo
funcional e exato. Um exemplo disso é a passagem pelo estreito guardado
pelas sereias. Ulisses sabia que todo homem a ouvir os lindos cantos das
sereias instantaneamente se permitem seduzir e se entregam a elas, aban-
donando a missão, e por vezes resultando na própria morte. Ainda assim, o
canto das sereias precisaria ser ouvido, sabia Ulisses, porque é nele que elas
entoariam também as palavras que descreveriam o caminho de volta para
casa. Ulisses armou um plano, ordenando que todos os homens tampassem
seus ouvidos, e somente ele pudesse ouvir. Para não se lançar junto a elas,
mandou também que lhe amarrassem com várias e pesadas cordas junto ao
mastro. Por fim, Ulisses ouviu os cantos e permaneceu no navio, conseguin-
do as informações que necessitava. Esse é um saber prático, que chega in-
tuitivamente na hora da necessidade. O empresário precisa ter esse tirocínio
intuitivo, que ao ver o problema prontamente descobre a melhor saída para
da dificuldade obter proveitos.

Por fim, outro ponto importante e que merece ser destacado em Homero
é seu respeito pelo direito positivo e pelos critérios convencionais. Ulisses
implementou instituições de direito positivo para sua ilha, de forma que ele
sabia que ao retornar poderia encontrar pretendentes para sua esposa Pené-
lope. Ulisses enfrentou esse problema com inteligência, utilizando primeiro
42
Introdução ao pensamento filosófico

de disfarces, para melhor conhecer seus inimigos. Também seu filho Telê-
maco precisou conhecer as regras para evitar que os pretendentes se apro-
ximassem de sua mãe. Igualmente o empresário é obrigado a conhecer as
regras da sociedade, tanto as convencionais como aquelas próprias do direi-
to positivo, ou então terão problemas em várias questões. Não conhecer as
regras da sociedade pode significar erros tanto de aspectos morais, como ir
contra os costumes daquele povo, até problemas mais graves, como alguns
de ordem tributária ou trabalhista. Diversos empresários sofrem sérios abalos
financeiros simplesmente por desconhecerem as nuances das leis trabalhis-
tas, que possuem inúmeros casos específicos, e em geral defendem a figura
do empregado contra o empregador.

Ulisses representa também uma ideia de justiça ligada ao herói. Ulisses


coloca a própria vida em risco constantemente, mas porque sabe que suas
vitórias sempre conduzirão a proveitos para si e para os demais.

Assim como o desconhecimento é um problema, a desatenção por pos-


suir considerável conhecimento ou domínio técnico de algo também pode
criar situações adversas. Como exemplos temos a tripulação de Ulisses, em
que uma relativa parcela dos guerreiros morrem naquilo que fazem melhor,
por não estarem concentrados o suficiente fracassam.

Também Hesíodo oferece uma série de análises que podem contribuir


com o mundo empresarial. Já foi dito nas análises ao longo do texto que o
trabalho, para Hesíodo, era também uma forma de realizar o contato entre
o homem e o mundo, que nos tempos hesiódicos significa dizer, “fazer com
que os indivíduos de seu tempo transformassem o solo em riqueza”. Não era
a época da fartura, mas do sofrimento, da pobreza. E Hesíodo tentou incutir-
-lhes essa nova mentalidade, esse novo estilo de vida – que é pelo traba-
lho que se transforma o mundo e a si mesmo. E essa transformação não é
somente na condição econômica, mas também existencial; o indivíduo, ao
trabalhar a natureza, trabalha também o seu interior. Nesse sentido, o tra-
balho recebe uma dimensão pedagógica. Essa perspectiva revela contornos
mais evidentes ainda nos dias atuais, em que as empresas, mais até do que as
famílias, realizam a função social de educar a pessoa. Por exemplo, é na orga-
nização que o colaborador participa de diversos cursos, desde atualizações
técnicas sobre as áreas em que trabalha até de temáticas envolvendo recur-
sos humanos ou de etiqueta profissional. Ou seja, no trabalho, o indivíduo
aprende a lidar com seus dilemas, desejos, vontades, virtudes e defeitos. A
paideia hoje se faz na empresa, com as organizações ensinando seus cola-

43
Introdução ao pensamento filosófico

boradores a viver melhor, a criarem hábitos mais refinados, novos estilos de


vida, e atitudes mais adequadas para o cotidiano.

E se o trabalho ajuda as pessoas a melhorarem de vida, certamente


também pode ajudar a sociedade como um todo, o mundo, a se desenvolver
mais. Retomando aquela ideia pedagógica de Hesíodo como o poeta de seu
povo e seu período histórico, deve-se considerar também a função social do
trabalho, aquela de tentar criar um mundo mais equânime. No Direito se fala
em igualdade formal, aquela igualdade proveniente da Constituição Fede-
ral, que afirma serem todos iguais perante a lei, e uma igualdade material,
que seria aquela igualdade existente na prática. Ou seja, ainda que sejamos
todos iguais perante a lei, concretamente falando isso nem sempre ocorre,
tendo em vista as enormes diferenças econômicas nas sociedades contem-
porâneas. A única forma de tentar reparar essa disparidade é pelo trabalho,
não pelo assistencialismo. É no trabalho que a pessoa transforma a si mesma
e ainda cresce financeiramente. Os empresários precisam cultivar também
essa preocupação, concebendo suas organizações como instrumentos de
desenvolvimento empresarial, político e social, auxiliando o comunidade a
dar um salto de vida.

Interessante também comparar alguns aspectos envolvendo Homero e


Hesíodo. Em Homero está mais forte o Direito ligado às questões urbanas,
como aquelas que surgem para Ulisses no retorno a Ítaca, enquanto que em
Hesíodo é mais evidente o direito rural, com a condição dos camponeses que
precisavam enfrentar problemas de corrupção e abuso de poder por parte
dos grandes proprietários de terra. Também Hesíodo se liga mais ao direito
natural, pois torna explícito a corrupção implícita que existe em vários atos
legais mas eticamente incorretos, praticados por proprietários. Tal situação,
como já dissemos, está simbolizada na parábola do gavião e do rouxinol.

Ampliando seus conhecimentos

Os deuses da religião pública


e sua relação com a Filosofia
(REALE, 1993)

Estudiosos afirmaram em várias ocasiões que entre religião e Filosofia exis-


tem laços estruturais (Hegel dirá até mesmo que a religião exprime pela via

44
Introdução ao pensamento filosófico

representativa a mesma verdade que a Filosofia exprime pela via conceitual):


e isso é verdade, seja quando a Filosofia subsume determinados conteúdos
da religião, seja, também, quando a Filosofia tenta contestar a religião (nesse
último caso, a função contestatária permanece sempre alimentada e, por-
tanto, condicionada, pelo termo contestado). Pois bem, se isso é verdade em
geral, o foi de modo paradigmático entre os gregos.

Mas quando se fala de religião grega é preciso operar uma nítida distinção
entre religião pública, que tem o seu mais belo modelo em Homero, e reli-
gião dos mistérios: entre a primeira e a segunda há uma divisão claríssima: em
mais de um aspecto, o espírito que anima a religião dos mistérios é negador
do espírito que anima a religião pública. Ora, o historiador da Filosofia que
se detenha no primeiro aspecto da religião dos gregos, veta a si mesmo a
compreensão de todo um importantíssimo filão da especulação, que vai dos
pré-socráticos a Platão e aos neoplatônicos, e falseia, portanto, fatalmente a
perspectiva de conjunto. E isso aconteceu justamente com Zeller e com o nu-
meroso grupo dos seus seguidores ( e, portanto, com o grosso da manualísti-
ca que por longo tempo reafirmou a interpretação de Zeller).

O estudioso alemão soube indicar bem exatamente os nexos entre religião


pública grega e filosofia grega (e sobre esse ponto nós reproduziremos as suas
preciosas observações, que continuam paradigmáticas), mas depois caiu numa
visão totalmente unilateral, desconhecendo a incidência dos mistérios, e em
particular do orfismo, com as absurdas consequências que apontaremos.

Mas, por enquanto, vejamos a natureza e a importância da religião pública


dos gregos e em que sentido e medida ela influiu sobre a Filosofia. Pode-se
dizer que, para o homem homérico e para o homem grego filho da tradição
homérica, tudo é divino, no sentido de que tudo o que acontece é obra dos
deuses. Todos os fenômenos naturais são promovidos por numes: os trovões e
os raios são lançados por Zeus do alto do Olimpo, as ondas do mar são levan-
tadas pelo tridente de Posêidon, o sol é carregado pelo áureo carro de Apolo,
e assim por diante. Mas também os fenômenos da vida interior do homem
grego individual assim como a sua vida social, os destinos da sua cidade e
das suas guerras são concebidos como essencialmente ligados aos deuses e
condicionados por eles.

Mas quem são esses deuses? São – como há tempo se reconhece acertada-
mente – forças naturais diluídas em formas humanas idealizadas, são aspectos

45
Introdução ao pensamento filosófico

dos homem sublimados, hipostasiados; são forças do homem cristalizadas em


belíssimas figuras. Em suma: os deuses da religião natural grega são homens
amplificados e idealizados; são, portanto, quantitativamente superiores a nós,
mas não qualitativamente diferentes. Por isso a religião pública grega é cer-
tamente uma forma de religião naturalista. É tão naturalista que, como jus-
1
tamente observou Walter Otto, “a santidade aí não pode encontrar lugar”1,
W. F. Otto. Die Götter
Griechenlands, Frankfurt uma vez que pela sua própria essência os deuses não querem, nem poderiam,
AM Main 1956; trad. Ital.
Florença 1941 (Milão elevar o homem acima de si mesmo. De fato, se a natureza dos deuses e dos
1968), p.9.
homens, como dissemos, é idêntica e se diferencia somente por grau, o homem
vê a si mesmo nos deuses, e, para elevar-se a eles, não deve de modo algum
entrar em conflito com ele mesmo, não deve em nenhum sentido morrer em
parte a si mesmo; deve simplesmente ser si mesmo.

Portanto, como bem diz Zeller, o que a divindade exige do homem “não é
de modo algum uma transformação interior da sua maneira de pensar, não
uma luta contra as suas tendências naturais e os seus impulsos; porque, ao
contrário, tudo isso, que para o homem é natural, é legítimo também para a
divindade; o homem mais divino é aquele que desenvolve do modo mais vi-
goroso as suas forças humanas; e o cumprimento do seu dever religioso con-
siste essencialmente nisso: que o homem fala, em honra da divindade, o que
2
Zeller-Mondolfo, I, 1, P. é conforme com a sua natureza”2.
105.

Assim como foi naturalista a religião dos gregos, também “[...] a sua mais
antiga Filosofia foi naturalista; e mesmo quando a Ética conquistou a preemi-
3
Zeller-Mondolfo, I, p. 106. nência [...], a sua divisa continuou sendo a conformidade com a natureza”3.

Isso é indubitavelmente verdadeiro e bem estabelecido, mas ilumina


apenas uma face da verdade.

Quanto Tales disser que “tudo está cheio de deuses”, mover-se-á, sem
dúvida, em análogo horizonte naturalista: os deuses de Tales serão deuses de-
rivados do princípio natural de todas as coisas (água). Mas quando Pitágoras
falar de transmigração das almas, Heráclito, de um destino ultraterreno das
almas, e Empédocles explicar a via da purificação, então o naturalismo será
profundamente lesionado, e tal lesão não será compreensível senão remeten-
do-se à religião dos mistérios, particularmente ao orfismo.

Mas antes de dizer isso, devemos ilustrar outra característica essencial da religião
grega, determinante para a possibilidade do nascimento da reflexão filosófica.

46
Introdução ao pensamento filosófico

Os gregos não possuíam livros tidos como sagrados ou fruto de divina re-
velação. Eles não tinham uma dogmática teológica fixa e imodificável. (Nessa
matéria, as fontes principais eram os poemas homéricos e a Teogonia de Hesí-
odo). Consequentemente, na Grécia não podia haver sequer uma casta sacer-
dotal que custodiasse os dogmas. (Os sacerdotes na Grécia tinham um poder
muito limitado e uma escassa relevância, uma vez que, além de não terem a
tarefa de custodiar e comunicar um dogma, não tinham nem mesmo a exclu-
sividade de oficiar os sacrifícios).

Ora, a falta de um dogma e de guardiões dele deixou a mais ampla liber-


dade à especulação filosófica, a qual não encontrou obstáculos de caráter
religioso semelhantes aos que se encontrariam entre os povos orientais, difi-
cilmente superáveis. Justamente por isso os estudiosos destacam essa fortu-
nosa circunstancia na qual se encontraram os gregos, única na antiguidade e
cujo alcance é de valor verdadeiramente inestimável.

Atividades de aplicação
1. Em Homero todos os personagens recebem contornos heroicos, no
sentido de que uma vida ativa, ainda que de riscos, é mais válida que a
vida passiva. Relacione essa questão às problemáticas atuais, refletin-
do sobre o papel do cidadão de hoje na sociedade.

2. Para Homero, ainda que os personagens sejam em geral heróis, ca-


pazes de realizações sobre-humanas, é notável a presença do destino
como limite divino às ações em batalha. Reflita sobre a existência em
geral: existe um limite no potencial de cada um dado por uma condi-
ção natural?

3. Hesíodo trabalha outro período da história grega, a qual caracteriza-


-se pela difícil luta diária dos trabalhadores com a terra dura. Analise o
papel pedagógico da poesia hesiódica.

4. Aborde a problemática jurídica em Hesíodo, principalmente no ponto


em que ele apresenta o juiz como um tirano que se diverte com a vida
das partes envolvidas no processo. Aproveite para refletir sobre o pa-
pel do juiz como educador e protagonista social.

47
Introdução ao pensamento filosófico

Gabarito
1. O cidadão atual tende a levar uma vida sem grandes participações
políticas e sociais, preferindo a passividade. Comparando com o herói
Aquiles, em geral as pessoas se recusariam a entrar na batalha quando
soubessem dos riscos. Essa passividade gera redução de criatividade,
e por consequência do desenvolvimento do potencial.

2. Não há um limite para realizações humanas, depende da vontade pos-


ta e do desenvolvimento do potencial de cada indivíduo. Contudo, a
natureza, ou os deuses, na visão homérica, deu potencial diferente a
cada um. O potencial heroico em Homero é justamente desenvolver e
realizar o máximo possível dentro desse limite imposto pelos deuses.
Nesse sentido, cada pessoa deve buscar realizar o máximo que pode
tirar de si mesma.

3. Hesíodo como mestre educador de seu povo se revela justamente


nessa decisão de tratar não dos heróis e das eras douradas distantes,
mas do aqui e agora, da realidade social e cultural de seu tempo. Todo
educador deve saber se reportar aos clássicos, aos grandes mestres da
cultura, mas ao mesmo tempo compreender a passagem que é neces-
sária para a realidade de seus alunos. Hesíodo não é menos importante
que Homero por ter trabalhado temáticas de menor grandiosidade.

4. Hesíodo apresenta o juiz como tirano, utilizando-se inclusive da pa-


rábola do gavião e do rouxinol, quando o primeiro brinca com a vida
do segundo. Percebe-se como a atividade judiciária sem preocupa-
ção com o social já existia na Grécia Antiga. O juiz é protagonista so-
cial, por carregar o poder das leis tem o dever de promover a justiça
sempre em função do desenvolvimento do humano. Na atualidade,
percebe-se cada vez mais a necessidade de se preparar eticamente os
juízes, para que se conscientizem da enorme missão que carregam. O
operador jurídico na Grécia era sobretudo um educador de seu povo,
e assim deveria sê-lo também hoje.

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50
Justiça e Direito no teatro grego:
tragédias e comédias

Introdução
A palavra teatro, analisada em sua origem etimológica significa “o lugar
onde deus escorre”, “como deus corre e se manifesta”, “como deus se faz
diante do povo”1. Disso já se pode inferir que as encenações teatrais pos- 1
Teatro (θεατρον) vem
da junção das expressões
suíam um espírito pedagógico aliado à religião, tratando-se do modo pelo gregas θεοζ (deus) e ρεω
(escorrer) (MENEGHETTI,
qual o divino do humano, aquela parte mais perfeita, ou seja, adequada à Antonio. Psicotea. Recan-
to Maestro: Ontopsicolo-
situação em que se encontra, a exata proporção do indivíduo com a vida, re- gica Editrice, 2006. p. 7.).

presentada nos grandes personagens da mitologia, se fazia presente, não so-


mente na dimensão da perfeição estética, como manifestação artística que
era, mas também como uma forma de levar os espectadores a uma profunda
reflexão sobre a conduta humana.

No contexto da formação grega, a tragédia representa a devolução à


poesia grega da capacidade de abarcar a unidade do ser humano. Justamen-
te por essa característica, a tragédia se iguala às epopeias como uma impor-
tante forma de pedagogia para a civilização helênica. A tragédia ática2 foi 2
Trata-se das tragédias
oriundas da tradição de
hegemônica durante um século inteiro, coincidente cronologicamente e es- Atenas, cidade localizada
na região da península
piritualmente com o crescimento, apogeu e decadência do poder de Atenas, do Peloponeso chamada
Ática.
principal cidade da região. Nessa mesma linha, a comédia viveu seu auge e
sua decadência junto à trajetória da civilização helênica.

Característica marcante das tragédias é o fato de utilizar-se da represen-


tação do mito como forma de expor e tratar os temas vividos atualmente na
polis, era esse o ponto de partida de seu ideal de formação humana. Confor-
me Aristóteles3, poucos temas do grande reino da epopeia atraíram a aten- 3
ARISTÓTELES. Arte Re-
tórica e Arte Poética. Tra-
ção dos poetas, especialmente os que retrataram a passagem da felicidade dução de Antonio Pinto
de Carvalho. 17.ed. Rio
ao infortúnio devido a um erro cometido pelo principal personagem. de Janeiro: Ediouro, 2005.
p. 258.

Assim, a tragédia é a forma de representação que pela primeira vez faz da


ideia do destino humano e do seu respectivo curso o princípio de toda sua
construção, com todas as inevitáveis ascensões e quebras. O gênero trágico
educa o homem justamente ao representar os tipos de vícios e erros que as
Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias

pessoas cometem, e a consequência de tais atitudes na vida do personagem


e daqueles que o circundam, demonstrando que para se fazer determinadas
passagens na vida, o sofrimento torna-se uma importante condição.

Por sua vez, as comédias não se utilizavam da mitologia para reproduzir


4
JAEGER, Werner Wilhelm.
sua mensagem, mas somente da realidade cotidiana. Os antigos a denomi-
Paideia: a formação do
homem grego. p. 416.
naram “espelho da vida”4, pelo modo como se retratava a natureza humana e
suas fraquezas, pois com sua representação exagerada e cômica da realida-
de também atuava como uma forma de educação do seu espectador.

Portanto, propomo-nos neste capítulo a analisar as principais obras da


tríade dos grandes tragediógrafos gregos, Ésquilo, Sófocles e Eurípedes, bem
como do comediógrafo Aristófanes.

Ésquilo
Ésquilo nasceu e cresceu no período dos governos tirânicos em Atenas. Viu
a queda destes e a ascensão do novo governo ateniense, instituído pela re-
forma de Sólon. Essa experiência do nascimento da democracia ateniense e a
vitória grega na Guerra Médica tiveram marcante influência no modo em que
o autor construía suas tragédias. Conforme Jaeger, essas vivências são sólidos
vínculos com que Ésquilo unia a sua fé no Direito, herdada de Sólon, às realida-
des da nova ordem. Por isso, o Estado é o espaço ideal nos seus escritos.5
5
JAEGER, Werner Wilhelm.
Paideia: a formação do Desse modo, o autor faz ressurgir o ideal do homem heroico, porém, con-
homem grego. p. 285.

6
textualizado com a realidade urbana de sua época. Trata-se do retrato do
JAEGER, Werner Wi-
lhelm. Paideia: a forma- homem que somente pode se realizar enquanto cidadão, exercendo suas
ção do homem grego. p.
291-292. atividades na polis. 6 Nesse escopo, ao apresentar as figuras dos cantos heroi-
7
LESKI, Albin. História
da Literatura Grega. Tra-
cos, não as retrata do modo como haviam se consagrado, mas sim utiliza-as
dução de Manuel Losa.
Lisboa: Fundação Calous-
como um fundo vazio, pelo qual expunha as ideias que deles se formavam.
te Gulbenkian, 1995. p.
133.
Como resultado, por exemplo, o Zeus de Prometeu Acorrentado representa
8
Trilogia composta pelas
a figura do moderno tirano, ou ainda Agamemnon, na tragédia de mesmo
peças Agamemnon, Coé-
foras e Eumênides (ÉSQUI-
nome, comporta-se de modo totalmente diverso do retratado por Homero.7
LO. Oréstia: Agamemnon,
Coéforas e Eumênides.
6.ed. Tradução de: KURY, Ésquilo utilizava-se de uma estrutura trilógica em suas tragédias, pois
Mário da Gama. Rio de Ja-
neiro: Jorge Zahar, 2003.). desse modo podia retratar um dos mais intrincados problemas refletidos em
9
sua produção – a transmissão das maldições familiares. Assim, o autor conse-
LESKY, Albin. A Tragé-
dia Grega. Tradução de guia retratar o destino de um mesmo herói em uma série de fases, como em
J. Guinsburg, Geraldo
Gerson de Souza e Alber- Prometeu Acorrentado, Libertado e Portador do Facho, ou de gerações, como
to Guzik. 3ed. São Paulo:
Perspectiva, 1996. p. 101. na Oréstia8.9
54
Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias

O problema do drama em Ésquilo não é o Homem, mas sim o destino. O


homem é o portador do destino, não os homens os verdadeiros atores, mas
sim as forças sobre-humanas.10 É precisamente na contínua intromissão dos 10
JAEGER, Werner Wi-
lhelm. Paideia: a forma-
deuses e do destino que a mão do poeta se revela. A divindade é sagrada e ção do homem grego. p.
301.
justa, sua ordem é eterna e inviolável, em contraposição, pela cegueira do 11
JAEGER, Werner Wi-
Homem, que persiste em errar, este incorre no castigo. “A ideia esquiliana de lhelm. Paideia: a forma-
ção do homem grego. p.
destino está totalmente compreendida na tensão entre a fé na justiça invio- 305.
12
lável, na ordem do mundo, e a emoção resultante da crueldade demoníaca Ate personificava
a ruína enviada pelos
e da perfídia de Ate”11. Devido a Ate12, o homem é levado ao desprezo da deuses (ROMILLY, Jacque-
line de. A Tragédia Grega.
ordem e ao sacrifício necessário para restaurá-la.13 p. 59.).

13
LESKY, Albin. A Tragé-
O ideal trágico em Ésquilo pode ser muito bem retratado através da análi- dia Grega. p. 103.
14
se da trilogia de Prometeu14, mais especificamente da única obra que nos foi Titã que na mitologia
grega roubou o fogo dos
deuses e o levou até os
legada completamente, Prometeu Acorrentado15. Essa é a tragédia do gênio; homens em um ato de
amor à humanidade da
enquanto nas demais obras o trágico vem de fora, em Prometeu a origem é qual ele próprio havia sido
o criador.
no próprio personagem, sua natureza e sua ação. Prometeu, assim, diz: “Eu 15
JAEGER, Werner Wi-
havia previsto tudo... Eu quis cometer o meu crime! Eu o quis, consciente- lhelm. Paideia: a forma-
ção do homem grego. p.
mente, não o nego!”16. 309.
16
ÉSQUILO. Prometeu
Ao contrário do prevaricador castigado pelo crime de roubar o fogo dos Acorrentado. Tradução
de J.B Mello e Souza.
deuses de Hesíodo, Ésquilo retratou nessa façanha de Prometeu o símbolo 19.ed. Rio de Janeiro:
Ediouro, 1998. p. 119.
sensível da cultura, do desenvolvimento humano. Celebra-se nessa peça o
herói pelos benefícios que trouxe à humanidade, ajudando-a no seu esforço
para progredir enquanto indivíduos e enquanto civilização. O fogo, nesse
sentido, significa a capacidade de conhecer, desvelar o mundo e utilizar-se
da própria razão para desenvolver-se.

Quando o coro de Prometeu diz que só pelo caminho da dor se chega ao


mais elevado conhecimento, atinge-se o fundamento do pensamento teo-
lógico de Ésquilo. Esse espírito encontra-se em todas as suas obras e essa
é a maior conclusão que se pode chegar acerca do autor. Conforme Lesky:
“Agindo, o homem cai em culpa, toda culpa encontra sua expiação no sofri-
mento, e o sofrimento leva o homem à compreensão e ao conhecimento.
Esse é o caminho do divino através do mundo, tal como Ésquilo o viu”.17 17
LESKY, Albin. A Tragé-
dia Grega. p. 119.

Assim, pode-se dizer que é pela força da dor que o coração do homem
experimenta a passagem ao triunfo divino. O homem trágico expande sua
harmonia oculta com o ser e ergue-se, por sua capacidade de sofrimento e
por sua força vital, a um grau superior de humanidade, ou seja, possibilita-se
a este, por intermédio desses instantes, a realização das passagens essen-
ciais ao seu desenvolvimento próprio.
55
Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias

Sófocles
Sófocles é considerado, tanto pelos antigos quanto pelos atuais pensado-
res, como o apogeu do drama grego devido ao rigor da sua forma artística
18
JAEGER, Werner Wi- e à sua luminosa objetividade.18 Característica marcante de suas tragédias
lhelm. Paideia: a forma-
ção do homem grego. p. é a representação das grandes questões que geram a crise do ser humano.
317.
As paixões mais violentas, os sentimentos mais ternos, a grandeza heroica
e altiva da autêntica humanidade, são profundamente semelhantes à atua-
lidade, motivo que justifica a constância de suas peças nos repertórios de
representações artísticas até a atualidade.

Com Sófocles, pela primeira vez as personagens evidenciam a existência


de uma matriz interna dentro da pessoa, de uma lei anterior que a governa,
dissociada da força representada pelo destino nas obras de Ésquilo. O trági-
co em Sófocles é a impossibilidade de o homem evitar a dor. Já não há mais
ênfase na concepção religiosa do mundo, a face do destino resume-se a este
aspecto: a dor do homem em sua existência.

Ao compor seus personagens, Sófocles trata das questões relativas à es-


sência e ao sentido do ser com a forma de seus próprios discursos e na figura
19
de seus personagens, não em uma concepção de mundo ou uma teodiceia,
JAEGER, Werner Wi-
lhelm. Paideia: a forma- como em Ésquilo.19 Analisando seus personagens, constata-se a existência
ção do homem grego. p.
325. de uma realidade superior, apesar de essa realidade não ser evidenciada na
obra, posto que os personagens preferem manter sua trajetória rumo à fa-
lência existencial.

Postos esses elementos, torna-se possível uma análise mais cuidadosa de


duas célebres obras do autor. Édipo Rei e Antígona, componentes da trilogia
tebana, junto da tragédia Édipo em Colono.

Édipo Rei
Édipo Rei é a primeira peça da trilogia sobre a tragédia na linhagem dos
20
Relativo à geração
oriunda de Lábdaco, geni-
Labdácidas20. Contextualizando a obra na mitologia grega, primeiramente
tor de Laio.
há de se considerar a maldição lançada sobre Laio, ponto de partida de toda
a intencionalidade que carrega as desgraças em sua família. Sua origem foi o
encantamento que Laio possuiu por Crísipo, filho do rei Pélops. Apaixonado,
raptou Crísipo, sendo por isso amaldiçoado por Pélops, que desejou que Laio
morresse sem deixar descendentes.

56
Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias

Posteriormente, Laio casou-se com Jocasta e tornou-se rei de Tebas. Em


consulta a um oráculo, descobre que, como castigo por sua paixão antina-
tural, se tivesse um filho, este o mataria. Jocasta engravida e Laio, temeroso
de seu futuro, ordena que tão logo o bebê nascesse, deveria ser assassinado.
Recém-nascido, o infante é deixado preso pelos pés em uma árvore, sendo
salvo por pastores e levado a Corinto, onde foi adotado pelo rei Pólibo.
Deu-se o nome de Édipo ao bebê, que quer dizer “pés inchados”, alusão aos
ferimentos decorrentes da tentativa de assassinato.21 21
MENEGHETTI, Antonio.
Psicotea. p. 25.

Certo dia, Édipo é insultado por um ébrio, que o chamou de filho adotivo.
Procurando, então, o oráculo de Apolo, é revelado ao jovem que ele mataria
seu pai e casar-se-ia com sua mãe. Para evitar o cumprimento da profecia,
abandona o lar e foge para o caminho oposto a Corinto, Tebas. No trajeto,
encontra-se com um carro distinto, no qual vinha um homem idoso seguido
por seus criados. O senil grita insolentemente para que Édipo deixe o cami-
nho livre, e ele, absolutamente irado, mata o senhor e seus servos, seguindo
seu rumo.

A cidade de Tebas estava temerosa, pois a Esfinge22 encontrava-se em 22


Monstro metade
homem, metade animal,
uma rocha no caminho para a cidade. Édipo resolve o enigma do monstro, que se encontrava sen-
tado em uma rocha no
que em seguida se mata. Ao libertar do mal que a afligia, Tebas o coroa rei e caminho para Tebas e
propunha enigmas aos
concede Jocasta como esposa.23 Esses fatos não são reproduzidos na peça, passantes que se dirigiam
até a cidade; aqueles que
que se inicia com Édipo já coroado governante de Tebas, contudo são de não conseguissem resol-
ver seus enigmas, eram
devorados. A Édipo foi
essencial importância para a compreensão do desvelar da peça. proposto o seguinte: “qual
é o animal que de manhã
tem quatro pés, ao meio-
Em suma, Édipo Rei reflete o modo pelo qual Édipo, por mais que se fizes- -dia tem dois, e ao entar-
decer três?”. O príncipe
se de desentendido do assunto, descobre que ao assassinar a distinta pessoa responde que é o homem,
pois “na infância se arras-
no caminho para Tebas, assim como ao assumir o trono, casando-se com a ta sobre pés e mãos, na
idade adulta anda e na
rainha Jocasta, nada mais fizera do que tornar aquelas predições que o fize- velhice recorre ao auxílio
de um bastão”.
ram mudar-se de Corinto uma realidade. 23
KURY, Mario da Gama
In: SÓFOCLES. A Trilogia
Tebana: Édipo Rei, Édipo
No início da peça, Tebas está sendo assolada por uma forte seca. Ordena- em Colono e Antígona.
Tradução de Mario da
da a consulta ao oráculo, tem-se a notícia de que para purificar a cidade seria Gama Kury. 11. ed. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar,
necessário desterrar ou sacar a vida do culpado da morte de Laio.24 Tomado 2004.

pela ânsia de descobrir quem é o assassino e recuperar a ordem da cidade, 24


SÓFOCLES. A Trilogia
Tebana: Édipo Rei, Édipo
Édipo ordenou que lhe trouxessem o sábio Tirésias para que revelasse a ver- em Colono e Antígona.
p. 23.
dade ao rei. Após muito pressionar o velho sábio, Édipo ouve que o assassino
é ele próprio, levando-o a repreender Tirésias por tais palavras, entendendo-
-se acusado injustamente.

57
Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias

Anunciado seu triste fim, Édipo ordena que retirem de sua presença o sábio,
porém, logo na saída, lhe é novamente lançada a dúvida sobre sua linhagem.
Édipo, transtornado, passa a acusar todos, até que, ao ouvir as palavras do pastor
que havia sido encarregado de matá-lo quando recém-nascido, a verdade torna-
-se tão clara que o rei não mais podia desviar seus olhos dela. Édipo começa a
sentir culpa pelo que fez e a fazer-se de vítima do destino. Jocasta, constatando
que Édipo havia descoberto toda a verdade que ela escondia, suicida-se, e Édipo,
ao saber que sua mãe e esposa sacou a própria vida, escolhe não mais enxergar,
25
SÓFOCLES. A Trilogia cegando-se.25 Ele decide então que deve ser expulso da cidade. Antígona, sua
Tebana: Édipo Rei, Édipo
em Colono e Antígona. filha, decide acompanhar seu pai, tornando-se guia dele.
p. 87.

A análise dessa obra se concentrará no seu aspecto existencial. Isso signi-


fica que ao analisar o que o texto revela, serão levados em conta principal-
mente os elementos que são de extrema importância para a vida atual, para
o ser que se manifesta aqui e agora, posto que, conforme já mencionamos, a
atualidade de suas tragédias é uma das principais marcas de Sófocles.

Característica marcante em toda a peça é a presença da culpa, que circun-


da as principais personagens. A ideia de maldição presente na obra, muito
mais do que o reflexo dos anseios divinos, expõe um projeto equivocado,
que tem sua causa primordial na situação de Laio, mas que é renovado por
cada personagem em um dado momento, produzindo, assim, todo seu efeito
devastador na vida desses.

Enquanto a culpa imperava em todas as personagens da obra, o espíri-


to de impunidade para consigo próprio era evidente, tendo como grande
marca a sentença “eu não sabia”. Tirésias, quando destaca que a realidade por
trás da situação poderia atingir o governante de Tebas, recebe ofensas à sua
integridade e à sua qualificação como sábio; essa é a manifestação da defesa
de Édipo à sua própria situação.

Tirésias é o verdadeiro exemplo do sábio na obra; apesar de possuir ciên-


cia de toda a situação que envolvia a cidade de Tebas, apenas elucida a exis-
tência do problema. Porém, ante a ignorância de Édipo e ciente do risco que
correria ao revelar a verdade, percebendo que Édipo estava a fugir de sua
responsabilidade, colocando a culpa nos outros e utilizando-se de sua auto-
ridade para reafirmar-se, o sábio se retira, deixando o governante permane-
cer em dúvida e preservando sua própria vida.
26
Definição formulada
por Aristóteles na Arte
Quando no final todas as revelações são feitas, a chamada peripécia26,
Poética. Édipo depara-se com o fatídico destino do qual buscara evadir-se – de fato

58
Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias

havia assassinado seu próprio pai e casado com sua mãe. Jocasta, persona-
gem que durante toda a peça estava ciente da realidade, ao perceber que
havia perdido o controle sobre a situação de domínio de seu filho e esposo,
acaba decidindo por sacar sua própria vida.

Édipo, ao final, demonstrando que apesar de todo o ocorrido não decidira


responsabilizar-se pela culpa que possuía, ao cegar-se nada mais faz do que
tentar voltar à ignorância da realidade. O ato de deixar de poder ver, nesse
sentido, simboliza a fuga da realidade, da dura verdade recém apresenta-
da ao governante. Ironicamente, após todos esses fatos, Édipo sai de Tebas
acompanhado de Antígona, deixa de ser filho de Jocasta para tornar-se filho,
dependente, de sua própria filha, demonstrando que o ciclo de infantilidade
é mantido na personagem.

Há de se considerar o quanto que Édipo representa uma boa parte de


todo ser humano. Aquela parte que, por mais que esteja diante de um grande
problema, ou de uma grande verdade, prefere ignorar tal situação, fazer-se
de inocente para não ter de enfrentar a realidade, por falta de coragem e
também por ser mais cômodo assegurar-se em uma figura materna que o
mantenha sob seu controle e regimento. Para ele, enfrentar a vida e buscar
dentro de si um critério para sua conduta é um desafio quase impossível.

Édipo Rei nos revela, portanto, que, diante de uma realidade superior e
anterior que é a intencionalidade ao erro, representada pela ideia de “mal-
dição”, infelizmente aquele que é capacitado a não se deixar influenciar por
esse ciclo destrutivo acaba decidindo mantê-lo, não tendo coragem de en-
frentar e superar tal situação, sofrendo as consequências dessa triste esco-
lha, deixando, assim, a grandeza da própria vida.

Antígona
Antígona ocorre cronologicamente após um evento que não é trabalha-
do por Sófocles: o episódio dos sete reis contra Tebas. Após Édipo abando-
nar Tebas, seus filhos, Etéocles e Polinice, passam a disputar o trono da polis.
Ambos haviam firmado o acordo de se revezar no poder. Porém, Etéocles
ao assumir o poder decide não mais o compartilhar com o irmão. Polinice
abandona então a cidade-Estado e mobiliza o exército de seis reis contra
sua terra natal. Ambos os irmãos morrem na batalha, um transpassando sua 27
Episódio relatado na
peça: ÉSQUILO. Os Sete
lança contra o outro. Ao final, Tebas sai vitoriosa, e Creonte, tio dos falecidos Contra Tebas. Tradução
de: SCHÜLER Donaldo.
guerreiros, assume o poder. 27 Porto Alegre: L&PM, 2007.

59
Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias

Logo após tomar posse do trono, Creonte profere o célebre édito que dá
princípio à tragédia: Etéocles, que morreu lutando pela cidade, deveria ser
sepultado com todos os ritos que tinha direito; Polinice, por outro lado, por
ter atacado a pátria, deveria permanecer insepulto, servindo de alimento às
aves e aos cães. Àqueles que descumprissem o comando do soberano de
28
SÓFOCLES. Antígona.
Tradução de Donaldo
Tebas ser-lhes-ia imposta a morte.28
Schuler. Porto Alegre:
L&PM, 2006. p. 20, 21.
Antígona, desconsiderando a ordem de seu tio, decide dar as devidas li-
bações e enterrar seu irmão, incitando sua irmã Ismênia a acompanhá-la, a
qual, temerosa da ameaça imposta aos descumpridores do decreto, não a
acompanha. Mesmo sem apoio, Antígona executa seu plano e enterra seu
irmão. Os guardas responsáveis por vigiar o corpo encontram-no enterrado,
informam a Creonte o ocorrido e o desenterram. Antígona, então, reitera sua
conduta, sendo surpreendida pelos guardiões e entregue a Creonte.

O governante de Tebas condena sua sobrinha a ser encerrada viva dentro


de uma caverna. Porém, o que ele não sabia era o preço que pagaria por tal
atitude. Contrariando a tudo e a todos para dar cumprimento ao seu decreto,
supostamente em nome da cidade e dos deuses, Creonte estava infringindo
na realidade os anseios das divindades. Tirésias, o velho sábio, surge então,
trazendo a triste revelação ao tirano que insistiu em manter sua atitude
equivocada.

Buscando evitar a fúria divina, Creonte vai dar o funeral devido a Polinice,
porém, já era tarde. Hémon, seu filho, pranteando sobre o cadáver da amada
e prometida esposa, que havia se enforcado com um pano de linho fino, sui-
cida-se com sua própria espada, morrendo ao lado de Antígona. Informada
da morte de seu filho, Eurídice, esposa de Creonte, também retira sua própria
vida. O tirano, desiludido com todas as desgraças que o vitimaram, termina a
29
SÓFOCLES. Antígona. peça a lamentar todos os eventos que ocorreram.29
p. 96, 97.

Muitas interpretações foram formuladas sobre essa obra. Nesse momen-


to nos propomos a seguir a linha de análise já adotada ao tratar sobre a obra
Édipo Rei, concentrando-se no aspecto existencial e na relação da peça com
a ideia de Justiça.

A interpretação mais comum da obra vê no conflito entre Antígona e


Creonte o embate entre o direito natural e o direito positivo, entre o direi-
30
ROSENFIELD, Kathrin. to dos deuses e a ordem da cidade.30 Nesse sentido, Antígona, ao guardar
Sófocles & Antígona. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, as antigas tradições, buscando enterrar seu irmão, estava resguardando o
2002.
mandamento anterior e superior às leis da cidade. Esse seria o Direito na-

60
Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias

tural, representado na peça como sendo o Direito dos deuses. Creonte, por
sua vez, estaria defendendo o direito positivo, ou seja, o Direito criado pelos
homens para reger suas próprias relações. Nessa interpretação, Creonte es-
taria buscando defender a cidade e sua honra ao proferir seu édito.

A defesa dessas teses é percebida em variados trechos da própria obra.


Antígona, quando apresentada a seu tio e inquirida por este a explicar o
porquê dela descumprir o decreto, diz que não foi Zeus quem o proclamou,
nem a Justiça que estabeleceu tal regulamento aos homens, e por não consi-
derar que as ordens de Creonte tivessem o poder de superar a ordem das leis
não escritas, sempre vivas e de origem desconhecida, é que Antígona teria
31
agido de tal modo.31 SÓFOCLES. Antígona.
p. 36.

Creonte, por sua vez, sempre que tratava sobre sua decisão, se referia a
ela como uma medida em favor da cidade e da sociedade tebana. Mencio-
nava sua decisão como um prêmio ao irmão que bravamente sacrificou-se
pela guarda de Tebas e um castigo a Polinice, considerado traidor e, por isso,
condenado ao eterno sofrimento.

A atrocidade da decisão de Creonte para os gregos era enorme, pois


tinha como plano de fundo a relação destes com o outro mundo. Conforme
Coulanges, para a religião grega a passagem da morte somente era dada
com o enterro e com as libações. A alma que não tivesse sepultura não teria
morada, seria errante.32 Portanto, ao condenar Polinice a permanecer sem 32
COULANGES, Fustel
de. A Cidade Antiga. 8.
um digno enterro e com seu corpo entregue à ação do tempo e das feras, ed. Tradução de Jonas
Camargo Leite e Eduardo
Creonte na realidade estava condenando a alma deste ao sofrimento eterno, Fonseca. Rio de Janeiro:
Ediouro, 1999.
impedindo-o de fazer sua passagem ao mundo dos mortos.

Além desse importante significado, a leitura de Antígona nos traz outra


questão. Baseando-se na relação que as personagens possuíam entre si e
toda a evolução trágica na família de Lábdaco, não se pode considerar que
esta obra concentrava-se tão somente nesse aspecto. Há de se relevar que,
conforme tratou Rosenfield33, Creonte desejava livrar-se da geração de Édipo, 33
ROSENFIELD, Kathrin H.
Antígona – de Sófocles a
pois com a morte de Etéocles e de Polinice, restavam somente Antígona e Is- Hölderlin: por uma filoso-
fia “trágica” da literatura.
mênia como portadoras da maldição dos labdácidas. Porto Alegre: L&PM, 2000.

Ademais, Antígona estava prometida a casar-se com seu filho Hémon e,


portanto, a assumir o poder de Tebas. Com a morte de seus irmãos ela era a
filha epicler, ou seja, todos os filhos oriundos dessa relação pertenceriam à
geração de Édipo. Pode-se dizer, portanto, que Creonte encontra no decreto
um modo perfeito de atingir Antígona. O édito do tirano não foi elaborado

61
Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias

principalmente para prevenir que qualquer cidadão enterrasse Polinice, se


direcionava a Antígona, pois ele já sabia que ela iria descumprir a ordem e
que, desse modo, ele possuiria legitimidade para poder sacar sua vida, puri-
ficando sua geração sem que lhe incorresse culpa alguma.

Nesse sentido, Rosenfield expõe que é estranha a veemência de Creonte,


normalmente tão pacato. Parece que o decreto do tirano foi, na realidade,
elaborado para incitar Antígona à transgressão fatal, protegendo seu filho de
34
ROSENFIELD, Kathrin um casamento “maldito”.34 Reforça-se esse argumento ao se considerar que
H. Antígona - de Sófo-
cles a Hölderlin: por uma a proibição do enterro de Polinice era um ato que já extrapolava a práxis em
filosofia “trágica” da litera-
tura. p. 45. relação aos criminosos de guerra – deixar os corpos destes fora dos muros da
cidade para que seus familiares, às escondidas, os recolhessem e os sepultas-
35
ROSENFIELD, Kathrin.
Sófocles & Antígona.
sem sem um túmulo glorioso.35

Antígona, por sua vez, através do seu sacrifício, seu martírio, mais do que
lutar pela Justiça, por um digno enterro a seu irmão, encontrava na afronta a
Creonte, mesmo com a perda de sua vida, um modo de atingir o poderio de
Creonte e derrubar o injusto decreto. Demonstra-se a importância de um de-
sígnio subjetivo para barrar um ato objetivo indevido, o ímpeto de Antígona
contra um decreto descabido.

Ao final, constata-se que esses personagens apenas deram continuida-


de ao destino maldito já anteriormente programado. Pensando estar agindo
livremente, apenas se entregaram ao destino e à desgraça, não agindo em
conformidade com aquilo que os conduziria ao melhor de si, acabaram
sendo apenas agentes do destino fatídico que já se demonstrava presente.
Assim como em Édipo Rei, os personagens de Antígona, por própria opção,
acabam dando continuidade à maldição familiar.

Eurípedes
Eurípedes é o último dos grandes tragediógrafos gregos; viveu no perío-
do em que Atenas já havia alcançado seu apogeu e começava a entrar em
declínio. Inclusive, é na tragédia de Eurípedes que se começa a denunciar
36
JAEGER, Werner Wi- a “crise do tempo”.36 O autor viveu no período posterior à sofística, motivo
lhelm. Paideia: a forma-
ção do homem grego. p.
386.
pelo qual nota-se a impregnação da ideia desses pensadores e de sua arte
retórica em suas peças. Além disso, é nessa época que ocorre a migração da
Filosofia da Jônia para Atenas, sendo que as ideias dos filósofos chamados
pré-socráticos oxigenavam o pensamento da metrópole crescente e também
influenciaram o autor.
62
Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias

Para Eurípedes a poesia conserva ainda o antigo papel de guia da condu-


ta humana. Porém, além disso, ela abre o caminho ao novo modo de pensar
que estava fervilhando naquela época. Desse modo, com o autor há a re-
tomada dos problemas dos dramas de Ésquilo, a relação do Homem com
o Divino, contudo, sob um ponto de vista totalmente diverso, baseado na
racionalidade do homem ateniense de sua época.

Eurípedes propõe o último passo de modernização das tragédias, o que


gerou em boa parte dos seus contemporâneos uma aversão oriunda de uma
temeridade revolucionária. Em suas obras, os novos conteúdos transforma-
ram, além do próprio mito, a linguagem utilizada e as formas tradicionais
da tragédia. “Cada cena manifesta claramente que as criações dele pressu-
põem uma atmosfera cultural e uma sociedade determinada, à qual o poeta
37
JAEGER, Werner Wi-
se dirige”.37 lhelm. Paideia: a forma-
ção do homem grego. p.
399.
Pode-se exemplificar as passagens dadas pelo pensador ao se trabalhar
38
com uma de suas tragédias: Medeia38. Essa é a tragédia da esposa que, ao EURÍPEDES. Medéia.
Tradução de Miroel Sil-
ser trocada por outra mulher, faz de tudo para vingar-se de seu ex-marido, o veira e Junia Silveira Gon-
çalves. São Paulo: Martin
herói Jasão, levando-o ao sofrimento. Sem se importar com o que fosse ne- Claret, 2007.

cessário para alcançar tal intento, Medeia meticulosamente planeja a morte


da futura esposa de Jasão, filha do rei de Corinto, assim como a morte daque-
le. Ao final, para garantir a completude de sua vingança, ela saca a vida de
seus próprios filhos, produzindo em seu ex-marido a almejada dor.

Nessa tragédia é possível encontrar a discussão sobre vários caracteres


acerca da vida em sociedade. Discute-se as relações sexuais e toda a proble-
mática da psicologia feminina. Por serem as mulheres de Atenas demasiado
39
“toscas e oprimidas demais ou cultas demais”39, o poeta escolheu a bárbara JAEGER, Werner Wi-
lhelm. Paideia: a forma-
Medeia para mostrar esse modelo feminino, livre das limitações da moral ção do homem grego. p.
399.
grega. Além disso, em Medeia discute-se a posição social do homem e da
mulher, sua relação entre si e o costume do casamento. Portanto, utilizando-
-se do mito como pano de fundo, Eurípedes demonstra os problemas da bur-
guesia ateniense.

Eurípedes retrata com profundidade o mundo subjetivo dos seus perso-


nagens, reflete a descoberta dessa realidade na época em que a civilização 40
LESKY, Albin. A Tragé-
helênica vivia em seu auge. Considerado esse universo, o homem em Eurípe- dia Grega.

des é forçado a reconhecer sua absoluta carência de liberdade.40 Encontra-se 41


EURÍPEDES. Hécuba.
864. In: ÉSQUILO; SÓ-
na tragédia Hécuba: “Nenhum mortal é livre: ou é escravo do dinheiro, ou do FOCLES; EURÍPEDES. Os
Persas, Electra, Hécuba.
seu destino, ou então é a massa que governa o Estado ou são as limitações 6.ed. Traduzido por Mário
da Gama Kury. Rio de Ja-
da lei que o impedem de viver segundo seu arbítrio”41. neiro: Jorge Zahar, 2008.

63
Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias

Para encontrar a solução para essa problemática, Eurípedes se aprofunda


no universo religioso, retornando às antigas experiências com o sacro em
uma época de extrema racionalidad e, encontrando na aliança entre o indivi-
dualismo e a religião, contra o Estado, a experiência libertadora da divindade
42
JAEGER, Werner Wi- na alma individual, livre das limitações de toda a Ética da lei.42 Conforme ve-
lhelm. Paideia: a forma-
ção do homem grego. p. remos, essa proposição de individualização como meio de se viver bem, feliz,
411.
acabará por ser a tônica dos filósofos do período conhecido como Helenísti-
co. O foco de Eurípedes, portanto, não é a cidade, mas a própria vida.

Conclusões sobre a tragédia


Pelo que foi estudado até agora, pode-se dizer que as tragédias, através
de suas representações dos conflitos, resultados insatisfatórios, quedas e
crises humanas, buscam evidenciar pelo trágico o caminho para o desenvol-
vimento humano.

Contextualizando com a realidade do empresário na atualidade, é impor-


tante destacar como essas obras expunham que essas relações conflituosas
pessoais, com o tempo, se não sanadas, geram um determinado estilo de
vida. Passam anos e o indivíduo segue o mesmo modelo, chegando, então,
à ideia de “normalidade”. As pessoas vão escondendo essas situações-pro-
blemas, fazendo de conta que não veem, tal como Édipo fez. Quando há
um grande problema não assumem, nem decidem mudar, simplesmente
fogem dele. Assim, deixam ao governo ou às organizações o papel de tomar
conta dessas dimensões, livrando-se da necessidade de se responsabilizar
pela vida. Mais uma vez, como Édipo, nunca tomam responsabilidade total,
sempre procurando um culpado para punir pela suposta falta. Porém, con-
forme ensinam as tragédias, uma hora a ignorância dessas questões existen-
ciais não basta. Quando o trágico se evidencia na vida, há que se resolver o
problema pelo Direito, sem oportunidades para o diálogo.

No Poder Judiciário, todas essas questões viram meras nuances, a “rea-


lidade” será declarada para o lado de quem conseguir prová-la, criando-se
sobre esse ideal um juízo sobre o critério de Justiça, não obrigatoriamente
reversível com o ideal de justo. Para não terem que esperar pela tragédia da
Justiça, pela longa, morosa e desgastante instrução e julgamento dos seus
feitos, atualmente os empresários recorrem aos Tribunais de Arbitragem.

Por fim, destaca-se a importância do sofrimento como condição para a


passagem existencial, tal como Ésquilo retratava. Para algumas pessoas, de-
64
Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias

terminadas passagens somente poderão ser alcançadas pela mais profunda


dor, posto que a estas torna-se necessário chegar a esse ponto para que o
indivíduo perceba o quão distante está da melhor atitude em relação à sua
vida. Essas questões o Direito não alcança, estas dependem da decisão da
pessoa, posto que o Direito se preza à regulação da conduta da pessoa em
relação aos demais somente nas situações de exteriorização dessa proble-
mática em que esse sistema poderá atuar.

A comédia de Aristófanes
Não é à toa que os gregos denominaram a comédia como “espelho da vida”,
nela se pensava na natureza humana, sempre igual, e nas suas fraquezas. A
comédia é justamente um espelho no qual se reflete de modo hilariante a
conduta dos homens, e nesse sentido nenhum outro gênero de arte ou de
literatura pode se comparar a ela. Conforme Jaeger: “A comédia visa as realida-
43
des do seu tempo mais do que qualquer outra arte”43. Desse modo, através da JAEGER, Werner Wi-
lhelm. Paideia: a forma-
efemeridade de suas representações, demonstram-se certos aspectos eternos ção do homem grego. p.
415.
do homem que escapam às demais formas de manifestação artística.

Os temas abordados pelas comédias abrangiam não somente as questões


políticas do modo como se entende hoje, relativas às deliberações públicas e ati-
vidades legislativas, mas todo aquele complexo que os gregos entendiam como
sendo de domínio público, todos os problemas que afetavam a comunidade.
Aristófanes não censurava só os indivíduos ou uma específica atividade política;
preocupava-se com a orientação da conduta do Estado e do povo.

A comédia, por seu modo de operar, converteu-se numa das grandes


forças educacionais de seu tempo. Aristófanes, por seu intermédio, não
lutava contra o Estado, mas sim em prol deste contra os detentores do poder.
A comédia não possuía nenhum plano político organizado, porém contribuía
para esmiuçar esse ambiente e impor limites ao poder dos governantes.

Vivenciando o conflito protagonizado pela nova educação em detrimento


do anterior modelo de formação humana, Aristófanes em duas obras satiriza
com os protagonistas destas mudanças no modo de pensar do povo ático.
Em Os Comilões o comediante ataca a sofística e o seu modo de ensino. Em
As Nuvens o autor dirige suas críticas à figura de Sócrates, representante em
Atenas de outra classe de novos pensadores, os filósofos. Ao criticar o novo
modelo de educação o autor não o faz por estar desejoso de um retorno à
antiga paideia, mas sim para mostrar que o novo modelo não é o ideal. Vendo
65
Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias

em perigo os valores aos quais deve toda a constituição de sua vida e sua for-
44
JAEGER, Werner Wi- mação elevada que o comediante ataca vigorosamente a nova educação.44
lhelm. Paideia: a forma-
ção do homem grego. p.
433. Por lutar por esse ideal Aristófanes tem Eurípedes como seu inimigo, dada
sua posição ante o florescimento do racionalismo. O autor projeta em Eurí-
pedes toda a corrupção moral que vivia seu tempo. Este, que era tido pelos
atenienses como uma figura divina, é utilizado para simbolizar a passagem
crítica dada pelo povo de Atenas que o colocava na atual situação.

45
ARISTÓFANES. Lisís- Na comédia Lisístrata45, na qual as mulheres de Atenas, Esparta, Corinto e
trata. Tradução de Millôr
Fernandes. São Paulo: Tebas, cansadas das tensões da guerra e de estarem longe de seus maridos
Abril, 1977.
que batalhavam entre si na Guerra do Peloponeso, sob a liderança da ate-
niense Lisístrata, se propõem a por um fim na guerra e alcançar a paz.

Para tanto, o grupo de mulheres se utiliza da sedução de seus maridos


e da abstinência sexual; todas as mulheres das polis envolvidas na guerra
firmam o pacto de vestirem as melhores e mais provocantes roupas, os me-
lhores perfumes e agirem da maneira mais sensual possível enquanto seus
maridos estivessem por perto. Sem, porém, se entregarem a eles.

Ao final, tomados pelo desejo por suas mulheres, sem mais poder se con-
centrar na batalha, os homens rendem-se à revolução das mulheres e juntos
firmam a paz, pondo fim, pelo menos na comédia, à guerra entre as cidades-
-Estado gregas.

Foi nessa passagem, em que se mostrou a íntima conexão da polis com o


destino espiritual e a responsabilidade do espírito criador ante a totalidade
do povo, que a comédia, com Aristófanes, atingiu o ponto culminante da sua
missão educacional.

Conforme destacado neste capítulo, a comédia possui um modo parti-


cular de retratar a realidade como ela é; através de suas ironias e sarcasmos,
revela-se o comportamento humano de um modo que nem mesmo as tragé-
dias ou epopeias conseguiram. E o principal é que se não fosse desse modo,
aquele que é ironizado resistiria demasiadamente em admitir a realidade do
que é retratado. Desse modo, a comédia se apresenta como um modo inteli-
gente de se relativizar alguns aspectos e comportamentos, colocando-os em
xeque, possibilitando ao indivíduo e à própria sociedade, por intermédio do
cômico, se repensar e se compor em direção à realização humana.

66
Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias

Ampliando seus conhecimentos

A comédia de Aristófanes
(JAEGER, 2003)

Nenhuma exposição da cultura do último terço do séc. V pode passar por


cima de um fenômeno para nós tão estranho quanto atraente: a comédia
ática. É certo que os antigos a denominaram “espelho da vida”; nela se pen-
sava na natureza humana, sempre igual, e nas suas fraquezas. Mas a comédia
é ao mesmo tempo a mais completa representação histórica do seu tempo.
Nesse sentido, nenhum gênero de arte ou de literatura se pode comparar a
ela. Se quisermos estudar as atividades e tarefas exteriores dos Atenienses,
não aprenderemos menos das pinturas e tarefas exteriores dos Atenienses,
não aprenderemos menos das pinturas dos vasos. Mas as maravilhosas repre-
sentações desse gênero, cujo colorido livro de ilustrações pode-se considerar
a epopeia da vida burguesa, não conseguem exprimir a vibração dos movi-
mentos espirituais que brotam das mais notáveis criações da antiga comédia
que se conservam até hoje. Um dos seus inapreciáveis valores consiste em nos
apresentar conjuntamente o Estado, as ideias filosóficas e as criações poéticas
na corrente viva desses movimentos. Assim deixam de aparecer como fenô-
menos isolados e sem relação mútua, para se integrarem na dinâmica da sua
influência, dentro das circunstâncias do tempo. É só no período que a comédia
dá a conhecer que nos encontramos em condições de presenciar a formação
da vida espiritual, considerada como um processo social. Em qualquer outro
momento, essa vida só nos aparece como um conjunto de obras completas e
acabadas. Aqui se manifesta claramente que o método arqueológico da his-
tória da cultura, que procura alcançar o seu objetivo através de um processo
de reconstrução, é uma empresa fundamentalmente estéril, mesmo quando
as tradições documentais são muito mais numerosas que na Antiguidade.
Só a poesia nos permite apreender a vida de uma época em toda a riqueza
das suas formas e tonalidades e na eternidade da sua essência humana. Daí
o paradoxo, por outro lado perfeitamente natural, de talvez nenhum período
histórico, nem sequer do passado mais próximo, poder ser apresentado e tão
intimamente compreendido como o da comédia ática.

Procuramos compreender aqui a sua força artística, que inspirou um


número incrível de personalidades das mais variadas tendências, não só

67
Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias

como fonte para chegar à intuição de um mundo desaparecido, mas ainda


como uma das mais originais e grandiosas manifestações do gênio poético
da Grécia. A comédia visa as realidades do seu tempo mais do que qualquer
outra arte. Por mais que isso a vincule a uma realidade temporal e histórica, é
importante não perder de vista que o seu propósito fundamental é apresen-
tar, além da efemeridade das suas representações, certos aspectos eternos do
Homem que escapam à elevação poética da epopeia e da tragédia. Já a filo-
sofia da arte que se desenvolveu no século seguinte considerou a polaridade
da comédia e da tragédia como manifestações complementares da mesma e
originária tendência humana à imitação. Para ela a tragédia, bem como toda
a poesia elevada que se desenvolve a partir da epopeia, está ligada à tendên-
cia das naturezas nobres a imitar os grandes homens e os feitos e destinos
proeminentes. A origem da comédia encontra-se no incoercível impulso das
naturezas mais comuns, poderíamos até dizer, na tendência popular, realista,
observadora e crítica, que escolhe com predileção imitar o que é mau, censu-
rável e indigno. A cena de Tersites na Ilíada, que expõe o repugnante e odioso
agitador à troça pública, é uma cena genuinamente popular, uma pequena
comédia entre as múltiplas tragédias que a epopeia homérica encerra. É na
farsa divina que a contra-vontade representa o par de enamorados Ares e
Afrodite, são os próprios deuses olímpicos que se tornam objeto das joviais
gargalhadas dos espectadores.

O fato de que até os altos deuses pudessem ser tema e objeto do riso cômico
prova que, no sentir dos Gregos, em todos os homens e em todos os seres de
forma humana reside, ao lado da força que leva ao pathos heroico e à grave dig-
nidade, a aptidão e a necessidade do riso. Alguns filósofos posteriores definiram
o Homem como o único animal capaz de rir – embora na maioria das vezes ele
seja definido como o animal que fala e pensa. Desse modo, colocam o riso no
mesmo plano da linguagem e do pensamento, como expressão da liberdade
espiritual. Se fizermos uma ligação entre o riso dos deuses homéricos e essa
ideia filosófica do Homem, não poderemos negar a alta origem da comédia,
apesar da menor dignidade desse gênero e dos seus motivos espirituais. A cul-
tura ática não pode manifestar a amplidão e profundeza da sua humanidade
com maior clareza do que por meio da diferenciação e da integração do trágico
e do cômico, operada no drama ático. Platão foi o primeiro a exprimi-lo, quando
no final do Banquete faz Sócrates dizer que o verdadeiro poeta deve ser ao
mesmo tempo trágico e cômico, em seguida exigência que o próprio Platão sa-
tisfaz ao escrever um ao outro Fédon e o Banquete. Tudo na cultura ática estava

68
Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias

disposto para a sua realização. Não só no teatro representava a tragédia frente


à comédia, mas também ensinava, pela boca de Platão, que a vida humana tem
de ser encarada ao mesmo tempo como tragédia e como comédia. Essa pleni-
tude humana é precisamente o sinal da sua perfeição clássica.

Atividades de aplicação
Leia este fragmento do artigo “O segredo dos poetas trágicos”, de Kathrin
Rosenfield, e responda às questões a seguir.

Em todos os discursos de Creonte existe um duplo raciocínio que o pai


procura comunicar discretamente ao seu filho e aos anciãos de Tebas. Um é
jurídico – o rei expõe as razões do decreto e da condenação de Antígona (ele
é obrigado a condená-la, pois ela é a “única” que ousou enfrentar o decreto, e
o novo rei não pode arriscar ser chamado de “mentiroso” (H 682-4). Contudo,
na própria argumentação de Creonte, há uma segunda lógica que corre por
baixo das proposições explícitas. Essa lógica destila, implicitamente, as razões
genealógicas que o obrigam a descartar os Labdácidas e Antígona. Para puri-
ficar Tebas da tara do incesto, Creonte precisa instaurar as condições mínimas
de uma sociabilidade propriamente humana, baseada no respeito das regras
de troca, que abrem o espaço da comunidade para além da família ou do
clã, proibindo trocas demasiadamente fechadas e endogâmicas. Esse duplo
raciocínio manifesta-se na ambiguidade de uma fórmula gnômica (sentença
do tipo provérbio), com a qual Creonte sublinha a necessidade de respeitar a
ordem da família (parentes no interior da casa, gene) e do Estado (ordem entre
casas para “fora”, famílias diversas).46 46
ROSENFIELD, Kathrin
Holzermayr. O segredo
dos poetas trágicos. In:
________ (Org.). Filosofia
& Literatura: o trágico.
1. O texto acima demonstra que, além de toda a questão jurídica envol- Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2001. p. 158.
vendo o decreto de Creonte, outro elemento dava razão à condena-
ção de Antígona à morte, decretada pelo próprio Creonte, tornando-
-se evidente a questão de que além de um problema jurídico, há um
“problema de fundo”. Considerando-se a realidade contemporânea e
os aspectos estudados sobre a tragédia, é possível dizer que, assim
como no texto, por trás dos problemas jurídicos há sempre um outro
conflito, que não se evidencia na questão jurídica?

69
Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias

2. Ainda em relação ao texto, Creonte, com a intenção de livrar Tebas da


maldição que assolava a família real e também proteger seu filho da
relação com Antígona, publica seu édito e a condena à morte. Porém,
apesar dessas intenções, as atitudes de Creonte acabam sendo o princí-
pio da tragédia em sua própria família. Baseando-se nos estudos deste
capítulo, responda qual foi o erro de Creonte que o levou à perdição?

3. A tragédia Antígona estimula seu leitor à reflexão sobre o conflito entre


as dimensões superiores, anteriores, divinas e as questões da realidade
e dos interesses terrenos, na relação entre o aqui e o agora. Transpondo
tais ideias à atualidade, qual o paralelo que pode ser feito?

4. Baseado nos estudos da concepção de tragédia em Ésquilo, ligada ao


desenvolvimento por intermédio do sofrimento, qual relação pode ser
feita com o desenvolvimento do indivíduo?

5. Conforme visto, as comédias possibilitam um diferenciado tipo de for-


mação aos seus espectadores; elas conseguem lidar com dimensões
que não eram alcançadas nem pelas epopeias, nem pelas tragédias.
Qual é o diferencial da formação pelas comédias? Com base nesse
conceito, que relação pode-se fazer com a vida contemporânea, nas
relações pessoais e profissionais?

Gabarito
1. Com base no que foi estudado, constata-se que as questões mal resolvi-
das no plano existencial-afetivo, se não enfrentadas pelo indivíduo, mas
tão somente suprimidas, se tornarão mais adiante um problema jurídico
que poderá atingi-lo, tanto na esfera individual quanto profissional.

2. Creonte, obstinado por resolver tal situação, se esquece de atentar


aos princípios de Justiça aos quais Antígona filia-se para defender sua
causa. Desse modo, por melhor que fosse sua intenção, seu ato foi um
atentado contra a vida, dando razão a todo seu sofrimento.

3. Pode-se relacionar a questão entre a individualidade, a subjetivida-


de de Antígona, que nesse sentido procura lutar em favor daqueles
princípios primeiros e que no homem contemporâneo se traduzem
em sua busca pela mais profunda realização enquanto pessoa, e, por

70
Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias

outro lado, a objetividade de Creonte, representando nesse aspecto


as questões da cidade e o controle da sociedade sobre o indivíduo. É
necessário saber administrar ambas as dimensões para tornar-se um
homem de sucesso.

4. Conforme Ésquilo lecionava por intermédio de suas tragédias, o sofrimen-


to é o sinal de que há algo de errado com o indivíduo, que necessita ser sa-
nado; além de ser o sinal, o sofrimento possibilita ao homem que decidir
enfrentá-lo compreender a causa desse sofrimento e resolver tal situação,
gerando crescimento existencial, desenvolvimento. Determinadas passa-
gens somente podem ser feitas passando-se pelo sofrimento.

5. A característica marcante das comédias é a possibilidade de se retratar


uma realidade da forma como ela é, mascarando-a com os exageros e
o satirismo que torna os eventos cômicos. Desse modo, torna-se pos-
sível retratar aos espectadores a realidade de um modo que não os
inspire instinto de autodefesa ou rejeição do argumento, sutilmente
a representação entra no indivíduo e pode levá-lo à reflexão sobre a
importância ou não do seu comportamento. Nesse sentido, as repre-
sentações cômicas são um ótimo recurso de formação humana, auxi-
liando-o a melhorar sua postura dentro das relações interpessoais, ou
no âmbito profissional.

Referências
ARISTÓFANES. Lisístrata. Tradução de: FERNANDES, Millôr. São Paulo: Abril,
1977.

ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. 17. ed. Tradução de: CARVALHO, An-
tonio Pinto de. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005. p. 258.

ÉSQUILO. Prometeu Acorrentado. 19. ed. Tradução de: MELLO E SOUZA, J.B. Rio
de Janeiro: Ediouro, 1998. p. 119.

EURÍPEDES. Medeia. Tradução de: SILVEIRA, Miroel; GONÇALVES, Junia Silveira.


São Paulo: Martin Claret, 2007.

______. Hécuba. 864. In: ÉSQUILO; SÓFOCLES; EURÍPEDES. Os Persas, Electra,


Hécuba. 6. ed. Tradução de: KURY, Mário da Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2008.

71
Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias

JAEGER, Werner Wilhelm. Paideia: a formação do homem grego. 5. ed. Tradução


de: PARREIRA, Artur M. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

LESKY, Albin. A Tragédia Grega. 3. ed. Tradução de: GUINSBURG, J.; SOUZA, Geral-
do Gerson de; GUZIK, Alberto. São Paulo: Perspectiva, 1996.

ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr. O segredo dos poetas trágicos. In: ______ (Org.).
Filosofia & Literatura: o trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 158.

72
Os primeiros filósofos
pré-socráticos e sofistas

Introdução
A história da Filosofia traz os pré-socráticos como os primeiros pensado-
res da filosofia ocidental. São assim chamados por serem, em sua maioria,
filósofos anteriores a Sócrates. Para além das várias escolas de pensamento
que existiram no período dos pré-socráticos, há uma ideia que reunia todos
e os diferenciava dos poetas e dos tragediógrafos e comediógrafos: a neces-
sidade de explicar o mundo a partir da relação entre causa e efeito, a busca
por princípios que expliquem por que as coisas são como são. Por isso a
physis (natureza) é fundamental para esses pensadores: não se trata mais de
explicar de forma mítica, mas de forma investigativa.

Os pré-socráticos não formavam um bloco único, uma mesma linha de


pensamento, mas várias segmentações que a história da Filosofia chamou de
escolas, como a Escola Jônica, a Eleática e a Pitagórica. Ainda assim, todas elas
continham o mesmo fundamento, um pensamento cosmológico e ligado à
natureza, com as concepções sendo baseadas no kósmos e na physis. Entre
os pré-socráticos quase não havia distinção entre Ontologia e existência, e as
questões políticas, éticas e jurídicas eram inclusas nesse centro, e não partes
externas, que merecessem análises particulares.

Essa concentração numa pesquisa cosmológica gerou histórias como


aquela narrada por Platão no Teeteto, em que uma escrava trácia ri do filóso-
fo Tales de Mileto porque este, distraído com as coisas do céu, se esquece das
coisas do mundo e cai num buraco. Essa imagem não pode ser vista como
verdadeira, porque vários pensadores pré-socráticos foram legisladores e
políticos em seus tempos. Anaximandro de Mileto interviu fortemente nos
meios sociais, e Parmênides de Eleia, inclusive, deu leis à sua cidade. Os pré-
-socráticos não eram alienados da polis, apenas situavam-na dentro de uma
ordem maior e preestabelecida, o cosmos.
[...] é importante verificar que o que é comum ao pensamento pré-socrático é a preocupação
com a vida humana mais concreta, inserida, no entanto, dentro de uma ordem cosmológica
(kósmos) maior que a própria ordem da cidade (polis), e isso vem revelado não somente pela
1
atuação concreta desses filósofos em assuntos políticos e legislativos, mas especialmente BITTAR, Eduardo C. B.
pela linguagem que utilizam, carregada que está de metáforas jurídicas, aforismos e Curso de Filosofia do Direi-
to. 7. ed. São Paulo: Atlas,
significações extraídas da vida política, da vida cívica, da vida em comum.1 1999. p. 74.
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas
2
“Princípio não é certa-
mente um termo de Tales
(que parece ter sido forjado
Os pré-socráticos utilizavam-se frequentemente do termo diké para expri-
por seu discípulo, Anaxi-
mandro), mas é sem dúvida mir seus significados de Justiça, palavra que vem do verbo deíknymi, que sig-
o termo que, melhor do
que qualquer outro, indica nifica pedir justiça ou ser acusado dela, refere-se à própria ação da Justiça.
o pensamento de que a
água é origem de tudo.
Pois bem, o princípio-água
não tem absolutamente

Escola Jônica
mais nada a ver com o
caos hesiodiano, nem com
qualquer princípio mítico.
É, como diz Aristóteles,
“aquilo de que derivam ori-
ginariamente e em que se Na Escola Jônica encontram-se os primeiros fragmentos acerca de um
dissolvem por último todos
os seres”, é “uma realidade conceito de Justiça na história da Filosofia. O iniciador dessa escola foi Tales
que permanece idêntica
na transformação das suas
afecções”, vale dizer, uma
de Mileto, que disse que a água é o princípio de todas as coisas. Essa tenta-
realidade “que continua
a existir intransformada”,
tiva de encontrar uma explicação além da simples observação sensível fun-
mesmo através do proces-
so gerador de tudo. Por- damenta a passagem do pensamento mítico para o pensamento racional.
tanto, é a) fonte ou origem
das coisas; b) foz ou termo Os pré-socráticos, assim como Homero e Hesíodo, pensam o mundo como
último das coisas, c) perma-
nente sustento (substância, uma ordem preconcebida. Embora os mitos já contivessem elementos de
diremos um termo poste-
rior) das coisas. Em suma,
o “princípio é aquilo do
racionalidade, e inclusive Hesíodo mencionasse o Oceano como origem das
qual as coisas vêm, aquilo
que são pelo que são,
coisas, é somente com Tales que isso se modifica de uma exposição mítica
aquilo no qual terminam.
Tal princípio foi denomina- para um esforço explicador, que tente encontrar na natureza um porquê de
do com propriedade por
esses primeiros filósofos ela ser o princípio2 primeiro de todas as coisas. Tales de Mileto fundamentou
(senão pelo próprio Tales)
de physis, palavra que não isso ao observar que todas as coisas continham água, e que a vida frutifica-se
significa ‘natureza’ no senti-
do moderno do termo, mas
realidade primeira, originá-
a partir do úmido. Como Tales de Mileto notabilizou-se também por seus co-
ria e fundamental; significa,
como foi bem assinalado, “o
nhecimentos em astronomia, geometria e meteorologia, entende-se que a
que é primário, fundamen-
tal e persistente, em opo- água aqui evocada é justamente a água em sentido material, como princípio
sição ao que é secundário,
derivado e transitório”. elementar da natureza.
(REALE, Giovanni. História
da Filosofia Antiga. Tra-
dução de: PERINE, Marcelo.
São Paulo: Loyola, 1993. p.
Contudo, é com o seguidor de Tales, Anaximandro de Mileto, que o termo
52-53. v. I.)
3
Justiça finalmente surge na Filosofia. Anaximandro identifica o princípio de
Sobre o significado de
ápeiron, para Anaximan- todas as coisas não na água, mas no indefinido, no ilimitado, aquilo que ele
dro, cita-se a explicação de
Reale: “Digamos logo que
ápeiron é só imperfeitamen-
chamou de ápeiron3. Em um de seus fragmentos encontra-se: “[...] Princípio
te traduzido por infinito e
i-limitado, porque contém
dos seres [...] ele disse que era o ilimitado [...]. Pois donde a geração é para os
algo mais que os dois
termos portugueses não seres, é para onde também a corrupção se gera segundo o necessário; pois,
translatam. Á-peiron signifi-
ca o que é privado de peras, concedem eles mesmos justiça e deferência uns aos outros pela injustiça,
isto é, de limites e deter-
minações não só externas, segundo a ordenação do tempo”4.
mas também internas. No
primeiro sentido, ápeiron
indica o infinito espacial,
infinito em grandeza, isto O ápeiron é essa lei permanente que governa o cosmos, na perspectiva
é, o infinito quantitativo; no
segundo, ao invés, o inde- em que os contrários se complementam formando uma ordem, uma regu-
finido quanto à qualidade,
portanto, o indetermina- laridade, uma certeza, e, por consequência, Justiça.5 O pensamento de Ana-
do qualitativo. O infinito
anaximandriano devia ter,
pelo menos implicitamen-
ximandro orienta-se no sentido de que há uma Justiça no cosmos que se
te, essas duas valências:
de fato, enquanto gera e
sustenta numa espécie de equilíbrio pendular, em que o excesso de um lado
abraça infinitos universos,
deve ser espacialmente exige ação contrária para restabelecer o equilíbrio original. Por isso o crime
infinito, e, enquanto não é
determinável como a água, não é uma ação que destrói a ordem, mas uma ação que apenas alarga seu
o ar etc., é qualitativamente
indeterminado”. (REALE,
Giovanni. História da Filo-
sofia Antiga. p. 52-53.) 76
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas

excesso. Para reconstruir o equilíbrio pendular é necessária a pena, o castigo, 4


Fragmento extraído da
Física de Simplício. Os
momento em que surge a diké. Pensadores (1996, p. 50).

5
O raciocínio de Anaximandro é particularmente provocante para os dias BITTAR, Eduardo C. B.
Curso de Filosofia do Direi-
atuais, pois em nossa sociedade tendemos a atacar e culpar partes do corpo to, p. 76.

social pelos fracassos gerais. O povo culpa os políticos pela inércia e impro-
bidade, que por sua vez culpam os empresários por muitas vezes não lem-
brarem do social, que também colocam a culpa nos legisladores que criam
normas muitas vezes absurdas. Os acadêmicos e cientistas teorizam e con-
denam a todos pelas atitudes erradas, e também são atacados por todos
por pensarem em demasia e pouco agirem. Em situação ainda mais dramá-
tica estão os marginalizados pela sociedade, que são sempre vistos como
vítimas ou criminosos. Isso tudo é trazido apenas a título de exemplo. Ora,
Anaximandro não retira nada desse equilíbrio pendular, todos os excessos já
fazem parte da ordem, de forma que não adianta culpar aquele movimento
contrário ou a ineficiência daquela parte, pois somos todos partes de um
mesmo corpo: a sociedade. Se a sociedade não está em estado de funciona-
lidade, não é porque aquela classe ou grupo provocou, mas porque também
nós não fizemos nossa parte, logo também somos responsáveis pelo fracas-
so. Logo se vê que Anaximandro pensa o Direito e a Justiça muito além dos
decretos legislativos e sentenças dos juízes; as leis e tribunais são partes do
movimento da Justiça, e não a diké por completa. A reflexão de Bittar vem
nesse sentido:
Não há separação, portanto, entre a ordem dos fenômenos causais-naturais e a ordem dos
fenômenos ético-sociais; tudo indica que há uma transposição efetiva da noção de culpa-
-responsabilidade das relações ético-jurídicas para a esfera das relações físico-naturais,
na medida em que o fragmento revela uma interconexão mais do que lógica, revela uma
implicação ético-jurídica ao nível do físico natural, a ponto de o kósmos vir-se a revelar a
base desse movimento, onde o mecanismo da causa-e-efeito funciona como instrumento
do equilíbrio geral das coisas entre si.6 6
BITTAR, Eduardo C. B.
Curso de Filosofia do Direi-
to, p. 77.
Depois de Anaximandro, a Escola Jônica continuaria com Anaxímenes de
Mileto, que identificaria como princípio de todas as coisas o ar. O avanço que
trouxe Anaxímenes foi no sentido de acrescentar ao estudo da arché a forma
de como se originam desse princípio primeiro todas as demais coisas, que
para esse filósofo se dava nos processos de rarefação e condensação. O ar,
quando esquenta, dilata-se e dá origem ao fogo, e quando esfria, se contrai
e dá origem à água e depois à terra. Importante ainda esclarecer que Ana-
xímenes concebe seu pensamento partindo não somente do aprendizado
com os predecessores da Escola Jônica, mas também com a prática empírica,
pois percebeu que inclusive o homem vive devido ao movimento de entrada

77
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas

e saída de ar, por exemplo. Além do mais, ao atribuir ao princípio uma condi-
ção determinada, às vezes visível e às vezes invisível, conseguiu inclusive se
distanciar de seu mestre Anaximandro.

Da água de Tales para o ápeiron de Anaximandro e por fim para o ar em Ana-


xímenes. A busca por um princípio originário, através de exames racionais, é a
grande contribuição da Escola Jônica. Os jônicos trouxeram a ideia de ordem
no mundo, em que todas as dimensões coexistem em equilíbrio pendular. A
necessidade de explicação talvez seja o argumento principal para demonstrar
a passagem que os filósofos jônicos fizeram em relação aos poetas.

Os pluralistas
Não podemos constituir os filósofos pluralistas como uma escola, pois não
houve um contato entre eles como de mestre e discípulo, tal como ocorria nas
demais escolas filosóficas do período. Os dois maiores nomes dessa linha de
pensamento, Anaxágoras de Clazómenas e Empédocles de Agrigento, possuí-
am em comum somente o fato de conceberem a causa de todas as coisas não
em um único princípio, como água, ar etc., mas numa pluralidade deles.

Empédocles foi o primeiro a identificar a água, a terra, o ar e o fogo como


os quatro elementos da natureza, e daí construiu seu pensamento. Esse filó-
sofo dizia que todas as coisas se formavam a partir da junção ou separação
desses elementos, ou seja, pela amizade ou pelo ódio, e que, portanto, tudo
continha esses quatro. Isso significa que a diferença entre todas as coisas se
daria justamente na diferença quantitativa entre os elementos. Para Empé-
docles, a própria ideia de elemento indica ser este um dado original, que não
pode ser modificado qualitativamente, como pensavam os jônicos.

A questão do amor e do ódio como é concebida por Empédocles pode


ser percebida também nas dimensões sociais, políticas, jurídicas, econômi-
cas etc. A família se gera pela união, e se corrompe pela separação; o mesmo
vale para a sociedade. Um contrato também se gera pela união, pela conver-
gência de interesses, e se corrompe pela ausência deles. Contudo, deve-se
ter o cuidado de não conceber o amor como polo positivo e o ódio como
um negativo, assim como corrupção aqui não necessariamente tem a ideia
de corrupção como quebra de princípios, valores etc. Sem a corrupção não
há quebra da imobilidade, não há movimento. A semente, para tornar-se
árvore completa, precisa negar sua condição inicial, ou seja, precisa haver
uma corrupção na sua forma de semente. Nesse exemplo, a corrupção gera
78
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas

algo positivo, uma árvore. Da mesma forma, uma sociedade em crise pre-
cisa corromper seu sistema atual e adotar novos métodos, ou persistirá no
erro. O essencial de se extrair de Empédocles é que a mudança das coisas
acontece quando os elementos tornam-se um todo unitário ou deixam de
ser esse todo. Nesse sentido, vemos que muitas associações não são reuni-
ões verdadeiras de elementos, mas apenas manutenção de uma imagem;
muitas vezes não existe ali uma união de interesses entre os sócios, pois há
divergência de objetivos, ideias, ambições, e nesse caso talvez a corrupção
seja uma tendência inevitável.

Já Anaxágoras coloca a pluralidade em princípios múltiplos que ele


chamou de homeomerias, os elementos básicos da natureza, que seriam se-
mentes nas quais estariam já inclusas materialmente todas as qualidades que
depois formariam todos os seres. Anaxágoras trabalha também a ideia de
Inteligência, ou Espírito, para alguns estudiosos, que seria a força que agiria
unindo ou separando as coisas e formando os seres. Para o filósofo, todas as
coisas participam de tudo, apenas a Inteligência é capaz de agir sem receber
algo dos outros seres, conforme se esclarece no fragmento de Anaxágoras:
E visto as porções do grande e do pequeno serem iguais em número, assim também todas
as coisas estariam contidas em tudo. Nem é possível haver nada de isolado, mas todas
as coisas têm uma parte no todo. Como o mínimo não pode existir, nada se pode dividir 7
ANÁXOGORAS. Frag-
nem formar por si, mas, tal como inicialmente, também agora tem de estar tudo junto. mento. In: KIRK, G. S.;
Em todas as coisas há um grande número de ingredientes, iguais em número nas coisas RAVEN, J. E.; SCHOFIELD,
maiores e nas mais pequenas, que estão a separar-se. Em todas as coisas há uma porção M. Os Filósofos Pré-So-
cráticos. 4. ed. Tradução
de tudo, exceto Espírito; e há algumas em que também existe Espírito.7 de Carlos Alberto Louro
Fonseca. Lisboa: Funda-
ção Calouste Gukbenkian,
Contudo, a Inteligência como apresenta Anaxágoras não pode ser con- 1994. p. 385.

fundida com alguma forma divina ou mesmo metafísica. Os comentadores 8


A verdade é que Anaxá-
goras não possui o con-
em geral preferem entender a Inteligência como uma forma material, ainda ceito do imaterial assim
como não possui o con-
que invisível.8 ceito do material enquan-
to tal. Como sabemos, por
tê-lo encontrado outras
vezes nos pensadores
precedentes, o horizonte

A Escola Atomística especulativo dos pré-


-socráticos ignora as duas
categorias de matéria e
espírito, e a introdução
A Escola Atomística inicia-se com Leucipo de Abdera e consegue seu dessas como cânones
hermenêuticos comporta
ápice com Demócrito de Abdera. Esses filosófos, assim como Anaxágoras e uma fatal inflexão do pen-
samento daqueles filóso-
Empédocles, também situavam o princípio de todas as coisas na pluralidade, fos. Justamente por isso
foi observado que com
em contraposição ao monismo dos jônicos. Na Escola Atomística os átomos Anaxágoras “o pensamen-
to do divino se afina, mas
são o princípio de toda a physis, a origem de todo o mundo material. não consegue separar-se
dos seus pressupostos na-
turalistas”. (REALE, Giovan-
ni. História da Filosofia
Mas devemos esclarecer ainda um ponto fundamental. Aos ouvidos modernos a palavra Antiga. p. 148-149.)
“átomo” evoca inevitavelmente os significados que o termo adquiriu na moderna ciência,
de Galileu à física contemporânea. Pois bem, é preciso despojar a palavra átomo desses

79
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas

significados, se quisermos descobrir o sentido ontológico originário segundo o qual


entenderam os filósofos de Abdera. O átomo dos abderianos traz em si o selo típico do
pensar helênico: é átomo-forma, é átomo que se diferencia dos outros átomos pela figura,
9
REALE, Giovanni. História ordem e posição, é átomo eideticamente pensado e representado.9
da Filosofia Antiga, p. 154.

Como se percebe, os átomos constituem uma estrutura intrínseca ao ser,


pela figura, ordem e posição. Com esse pensamento concilia-se a multiplici-
dade na unidade, isto é, um princípio, o átomo, mas existente numa multi-
plicidade, constitui o elemento que dá fundamento a todas as coisas. Nesse
sentido, consegue explicar a diversidade da existência ao mesmo tempo em
que não necessita recorrer a variados elementos. A Escola Atomística é consi-
derada, cronologicamente, um momento já de transição entre o pensamento
cosmológico e o pensamento socrático, pois Demócrito inclusive teria sido
contemporâneo de Sócrates. Por isso a filosofia de Demócrito é repleta de
fragmentos que elucidam também um teor ético, político e jurídico. Em geral
as sentenças de Demócrito defendem uma ética do dever, como se retrata na
frase seguinte: “Não por medo, mas por dever, evitai os erros”. Mais complexo
ainda é o fragmento em que Demócrito ressalta a necessidade de se realizar,
e sobretudo realizar obras lícitas e justas: “Quem de boa vontade se lança a
obras justas e lícitas, dia e noite está alegre, seguro e despreocupado; mas
quem não faz conta da Justiça e não realiza o que é preciso, entedia-se com
coisas tais, quando se lembra de alguma delas, sente medo e atormenta-se
a si mesmo”. As contribuições de Demócrito, portanto, alcançam inclusive o
campo da Filosofia Moral, da Ética, da Política e do Direito. Ademais, como se
percebe na última sentença, Demócrito possuía problemas inclusive com a
subjetividade da consciência do indivíduo, ressaltada nas expressões utiliza-
das, como “boa vontade” e “atormenta-se a si mesmo”. O problema da neces-
sidade de o indivíduo realizar e construir a própria vida sob pena de sofrer
tormento causado por si mesmo somente séculos depois receberia maior
atenção da Filosofia e, sobretudo, da Psicologia.

Os comentários esboçados acima demonstram como Demócrito era um


homem consciente de seu tempo, e que sua filosofia não era dirigida somen-
te às questões cosmológicas, mas também ao aspecto humano, e seu pensa-
mento muito bem poderia ser apresentado como uma forma de pedagogia.

Retomando a questão cosmológica, Demócrito entendia todas as coisas


como uma relação harmônica entre o átomo e o vazio. Nesse sentido, o
átomo deve ser entendido como o cheio, o completo e inteiro. Ou seja, há
uma ordem que envolve o preenchimento dos seres, e é justamente essa
relação que fundamenta suas sentenças éticas e jurídicas. Uma das mais cé-

80
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas

lebres frases de Demócrito é: “Ceder à lei, ao chefe e ao mais sábio é pôr-se


em seu lugar”. Tudo possui um lugar determinado, uma certa posição, e o
indivíduo deve ouvir aquele que é mais sábio que ele. Na sociedade contem-
porânea, a pedagogia atomística pode ser identificada em toda organização,
Estado ou qualquer espaço que se regulamente através de uma hierarquia
que defenda uma meritocracia, ou seja, um sistema formado por indivíduos,
por átomos. E cada átomo em seu lugar, sendo que os indivíduos mais pre-
parados ocupam lugares determinados, e os indivíduos que ainda estão em
formação devem ouvir os superiores.

A Escola Pitagórica
Os pitagóricos foram um célebre grupo de filósofos que se notabilizaram
por carregar as mesmas ideias, baseadas na concepção de que o número é
o princípio de todas as coisas. O grande iniciador dessa escola foi Pitágoras
de Samos, figura complexa que contribuiu enormemente com a Matemática,
criou uma seita religiosa, influenciou a construção da filosofia posterior, e
realizou ainda estudos em diversas áreas do conhecimento. Os pitagóricos
10
foram mentes que da Astronomia à Música, da Matemática à Cosmologia, REALE, Giovanni. His-
tória da Filosofia Antiga,
da Política ao Direito, tentaram entender o princípio que se situa além da p. 81.
11
Reale apresenta o
aparência e que dá fundamento a todas as coisas. método de observação
utilizado pelos pitagóri-
cos: “Em primeiro lugar,
Para entender melhor o número como princípio, observa-se a citação de os pitagóricos notaram
como a música (que cul-
Giovanni Reale: tivavam como meio de
purificação) era traduzível
por número e por deter-
Os números são todos agrupáveis em duas espécies, pares e ímpares (sendo que o um é minações numéricas; a
exceção, enquanto capaz de gerar tanto o par como o ímpar: acrescentando o um a um diversidade dos sons que
produzem os martelos
número par gera-se o ímpar, enquanto acrescentando-o a um ímpar gera-se o par, o que a bater sobre a bigorna
demonstra que ele traz em si a capacidade geradora tanto de pares como de ímpares e depende da diferença do
seu peso; a diversidade
por isso participa de ambas as naturezas). E porque, como sabemos, cada coisa é redutível dos sons de um instru-
a um número, cada uma é expressão de números pares ou ímpares.10 mento de cordas depen-
de da diferença do com-
primento de cordas; e, em
Para os pitagóricos o cosmos se constitui de uma dualidade: pluralidade geral, eles descobriram as
relações harmônicas de
dos existentes e unidade dos números. Ou seja, os números são a essência de oitava, quinta e de quarta
e as leis matemáticas que
todas as coisas, e os existentes, no qual se incluem tanto as coisas em geral as governam. E ao estu-
dar diferentes fenômenos
como o homem, são resultados de uma certa proporcionalidade numérica. do cosmo, também neste
âmbito, notaram a inci-
Através de raciocínios, observações e cálculos, os pitagóricos compreende- dência determinante do
número: são precisas leis
ram que em tudo existe uma proporcionalidade, uma espécie de razão que numéricas que determi-
nam o ano, as estações, os
dias etc.; são precisas leis
governa a existência em geral. Dessa forma, esses filósofos calcularam me- numéricas que regulam os
tempos de incubação do
didas no espaço, observaram planetas, analisaram a música, e entre outras feto, os ciclos de desen-
volvimento e os diferentes
experiências encontraram fundamento para sua filosofia.11 fenômenos da vida”.

81
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas

Os pitagóricos utilizaram-se também da simbologia numérica para retratar


suas ideias, como quando diziam que o número 3 representava a igualdade,
pois era a soma dos dois componentes anteriores, ou que o número 4 seria a
essência do ser, pois tanto pelo somatório como pela multiplicação das díades
encontramos o mesmo algarismo. Por fim, o número 10 é a máxima perfeição,
já que contém a soma de todos os anteriores (1, 2, 3, e 4).

Com isso os pitagóricos demonstram que em tudo existe simetria, harmo-


nia, proporcionalidade. Não somente a estética grega receberá suas contribui-
ções, mas sobretudo o Renascimento. A ideia de Belo como proporcionalidade,
simetria perfeita, se refletirá nas mais geniais obras do período renascentista,
como Leonardo da Vinci, Rafael de Sanzio, Michelangelo, entre outros.

Cretella Junior também traz algumas das contribuições de Pitágoras para


o Direito, ao se referir que é nele que Aristóteles se fundamentará para cons-
truir sua classificação de Justiça em distributiva, corretiva e comutativa, e
observaria toda a complexa questão geométrica para fundamentar seu cri-
tério de Justiça, que Dante Alighieri formulará seu conceito de Direito como
proporção (proportio), e que Beccaria argumentará a necessidade de uma
proporcionalidade entre o delito e a pena.

Existe uma medida perfeita, uma medida que inserida em harmonia cons-
titui beleza estética e também Justiça, e essa é a grande contribuição pitagó-
rica. A inserção da proporcionalidade como fundamento de verdade, de cri-
tério e inclusive de estética, do Belo, retratando a harmonia simétrica como
aspecto divino, ressoará em todas as dimensões da vida humana. Trata-se
de um certo tipo de proporção, de medida perfeita que devemos cultivar a
todo momento, uma simetria na qual qualquer atividade, qualquer ofício se
realiza como se fosse uma obra de arte. A mesma harmonia matemática que
cria a beleza da arte é a que sustenta um exame justo do Direito. Há sempre
uma medida perfeita a ser agida, uma decisão ideal a ser tomada.

Na política, é impossível se pensar a problemática democrática sem a


questão numérica. O mundo contemporâneo perdeu a ideia de harmonia,
transformando tudo numa ditadura da maioria. Não se adquire o melhor
produto, não se cultua a arte mais bela e viva, mas aquele produto que a
maioria compra, aquela arte que a maioria consome, ainda que sem qual-
quer critério objetivo. No Direito, na moda, na ciência, na arte, no mercado,
em tudo vale a lógica democrática da violência do número, no qual não há
qualquer proporcionalidade. E sem proporcionalidade não há nem o Belo,
nem o verdadeiro, nem o justo.
82
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas

A Escola Eleata
Com o pensamento eleático, que se inicia com Xenófanes de Colofão, segue
e alcança sua maior importância com Parmênides de Eleia, e recebe ainda
contribuições posteriores do discípulo Zenão de Eleia, a Filosofia finalmente
elabora aquilo que podemos chamar de metafísica. Afirma-se que os eleatas,
em especial Parmênides, criaram a disciplina da Ontologia12. A revolução pro- 12
A palavra Ontologia é
formada pelos vocábulos
vocada pelo poema de Parmênides intitulado “Sobre a natureza”, primeiro tra- onto, que deriva do verbo
einai (ser), e logia, que
tado filosófico em versos e o qual restam alguns fragmentos, está justamente vem de logos, portanto, o
“estudo do ser”.
no fato de o autor ter declarado que toda compreensão sensível, todo exame
humano a partir da existência corpórea situa-se apenas na doxa, na opinião,
e ainda que estas possam conter traços de verdade, conseguem ver apenas
partes do Ser, jamais este em sua totalidade. O Ser em sua completude e per-
feição somente é encontrado pela via racional da aletheia, da verdade, que se
encontra apenas no puro pensamento, numa dimensão afastada da insegu-
rança e instabilidade das compreensões humanas. O caminho da verdade leva
o homem até a verdade do Ser. Em Parmênides encontramos pela primeira
vez a contraposição entre opinião e verdade, questão que será problematiza-
da metaforicamente por Platão em sua alegoria da caverna. O pensamento de
Parmênides advém de Xenófanes, que era contrário à tradição politeísta dos
gregos, que sempre cultuaram deuses antropomorfos, ou seja, que possuem
13
Sobre a importância de
não somente aparência humana, mas também virtudes e defeitos humanos. Parmênides para a história
da Filosofia, vejamos o
Para Xenófanes e Parmênides, o Ser é um deus único, é a própria verdade. que assinala Reale: “Nesse
princípio parmenidiano,
os intérpretes há muito
Por isso que Parmênides sustentava que o ser possui algumas proprie- indicaram a primeira gran-
diosa formulação do prin-
dades que o distingue das simples aparências e fenômenos. O Ser é eterno, cípio de não contradição,
isto é, aquele princípio
imutável, perfeito, incorruptível, pleno, único, uno e imóvel. A simbologia do que afirma a impossibili-
dade de os contraditórios
Ser é o círculo, por ele ser perfeito, uno, sem início nem fim; no círculo tudo coexistirem simultanea-
mente. No nosso caso, os
é unidade plena e perfeita. A Ontologia de Parmênides – representada na contraditórios são exata-
mente os dois supremos
contraditórios ‘Ser’ e
sua máxima: “o Ser é e o Não-Ser não é” – influenciará decisivamente a filo- ‘Não-Ser’: se há ser, diz o
Eleata, não pode haver o
sofia posterior, pois as metafísicas platônica e aristotélica somente podem Não-Ser. É esse o grande
princípio que receberá de
ser concebidas com a influência parmenidiana, bem como a filosofia cristã Aristóteles a sua mais cé-
lebre formulação e defesa,
medieval de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino apenas poderão cons- e que constituirá não só
o fundamento de toda a
truir seus sistemas a partir da ideia de um único Ser completo e perfeito e lógica antiga, mas de toda
a lógica do Ocidente. Ade-
demonstrado também rigorosamente e logicamente, portanto ontologica- mais, Parmênides aplicará
o princípio quase exclusi-
mente. E é praticamente impensável qualquer discussão filosófica posterior vamente na sua valência
ontológica, e só Aristó-
sem o conceito ontológico de ser, pois continuaremos nele, seja na esco- teles desenvolverá siste-
maticamente as valências
lógicas e gnosiológicas
lástica medieval, seja no idealismo alemão, seja nos existencialistas, como correspondentes”. (REALE,
Giovanni. História da Fi-
veremos em capítulos posteriores.13 losofia Antiga. p. 109.)

83
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas

Importante distinguir os conceitos de ser e Ser. O ser pode ser entendido


como ente, como uma categoria individual. O Ser é a totalidade racional, o
princípio de todo o cosmos. O Ser põe o ser, de forma que o ente deve viver
conforme seu princípio criador, que é ligado ao Ser. Parmênides era dotado
de uma profunda intuição teológica.

Acerca do conceito de ser para Parmênides, é certo que não se trata de


um ser despojado de matéria, pois alusões ao ser como esfera, por exem-
plo, confirmam a ideia que o ser de Parmênides também não se distinguiu
completamente da physis. Contudo, a grande inovação aqui é a convicção na
imobilidade e singularidade do ser como princípio do cosmo, e mais do que
isso, a afirmação de que ser e pensar são a mesma coisa. Ora, o pensar é ati-
vidade propriamente metafísica, logo, Parmênides, ainda que não claramen-
te, foi essencial para o início das investigações além da matéria na Filosofia.
Não há uma matéria específica que seja princípio das coisas, como seriam a
água, o fogo, ou mesmo o ápeiron ou as homeomerias, mas sim o próprio
14
“A diferença entre esse ser,14 esse dado inabalável e que constitui qualquer afirmação, pois tudo que
ser e o princípio dos jôni-
cos é evidente. Como o exprimimos e pensamos está no ser, do contrário assim não o faríamos. O
princípio dos jônicos, o ser
parmenidiano é ingênito
e incorruptível, mas não é
homem não pode exprimir o Não-Ser, pois este simplesmente não é, logo
‘princípio’ porque não há,
para Parmênides, ‘princi-
não faz qualquer realidade, e não há contato com a realidade humana. Essa
piado’. E não há, porque
o ser, ademais de ingênito
discussão conduziria a Ontologia ao ser metafísico defendido por Platão,
e incorruptível, é inalte-
rável e imóvel, enquanto
Aristóteles e os filósofos medievais.
o princípio dos jônicos
gerava todas as coisas
justamente alterando-se e
Perguntemo-nos agora, antes de percorrer as outras duas vias, o que é esse “ser”
movendo-se. E enfim não parmenidiano. É claro que não se trata de ser imaterial, como alguns pretenderam: o
há princípio, porque o ser caráter de esfera e expressões como “todo cheio de ser” e semelhantes, o dizem de modo
é absolutamente igual, in-
diferenciado e indiferenci- muito eloquente. Mas não é o caso de insistir em sua materialidade: estamos ainda aquém
ável, enquanto o princípio da descoberta de tais categorias. Todavia é claro que o ser parmenidiano é o ser do cosmo,
dos jônicos gerava as
coisas diferenciando-se e
imobilizado e em grande parte purificado, mas ainda claramente reconhecível: é, por
transformando-se. Assim paradoxal que isso possa soar, o ser do cosmo sem o cosmo.15
o ser parmenidiano per-
manece numa posição
ambígua: ele não é mais A categoria Justiça aparece em Parmênides obviamente ligada ao Ser.
princípio nem cosmo, e
no entanto não é ainda di- Existe uma Justiça a priori, que é perfeita. Não pode haver um relativismo na
ferente do ser do princípio
naturalista e do cosmo”.
(REALE, Giovanni. Histó-
questão da Justiça, pois todo relativismo está nas questões sensíveis da com-
ria da Filosofia Antiga.
p. 111.)
preensão humana, jamais na verdade perene do Ser. Logo, há uma medida
15
REALE, Giovanni. His-
de Justiça que se aplicada somente pode resultar em verdade. Bittar chega a
tória da Filosofia Antiga,
p. 111.
afirmar que a Justiça é uma exigência lógica no poema de Parmênides.

Sobre Parmênides, diversas reflexões são possíveis, mas nos ateremos a


algumas apenas. Percebe-se que ele é repleto de intuição filosófica e teoló-
gica, uma intuição que é capaz de afirmar, categoricamente, que toda em-
piria não passa de simples compreensão humana, parte da verdade apenas,
jamais a verdade em sua integridade. O fato de um pensador como Parmê-
84
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas

nides confiar na intuição contra a experiência empírica pode parecer ousado


a nossos dias, o que certamente deveria servir para reflexão. O quanto há
de verdade no que experimentamos, sabemos, vivenciamos? Que realidade
metafísica existe além daquele fenômeno? Para o jurista, qual a verdade que
se esconde atrás do argumento apresentado pela outra parte; em muitos
casos, para além de um raciocínio aparentemente lógico e consistente existe
apenas um dilema, que precisa ser resolvido. O mesmo vale para o empreen-
dedor, para o homem do business. Muitas vezes é essencial confiar na intui-
ção, pois apenas ela é capaz de conferir ao indivíduo informações que estão
além do que os cinco sentidos externos assinalam. Por fim, poder-se-ia tratar
da necessidade de um critério ontológico, de um critério natural e racional
que está ligado ao Ser, e não nas contingências históricas. A filosofia de Par-
mênides é exposta como intuição direta ao ser, tal como deveria ser todo o
processo de conhecimento.

Heráclito de Éfeso 16
Observa-se a inter-
pretação de Reale: “O
Por fim, nossa jornada pelos pré-socráticos termina em Heráclito de Éfeso. sentido é claro: o rio é
aparentemente sempre o
Embora em geral se insira Heráclito junto aos pensadores jônicos, por este mesmo, mas na realidade
é feito de águas sempre
novas, que se acrescen-
afirmar que o princípio de todas as coisas é o fogo, ou seja, um elemento tam e se dispersam; por
isso à mesma água do rio
material, esse filósofo não constitui uma continuação propriamente dita que não se pode descer duas
vezes, justamente porque,
virá desde Tales de Mileto, pois como se verá a seguir o fogo heracliteano quando se desce a segun-
da vez, já é outra a água
possui posição na Filosofia bastante diferente dos elementos materiais dos que se encontra; e porque
nós mesmo mudamos, no
jônicos. Muito melhor é entender Heráclito como um filósofo singular, que momento em que com-
pletamos a imersão no rio,
concebeu sua própria forma de pensar. tornamo-nos diferentes
do momento em que nos
movemos para mergulhar,
Heráclito é sempre lembrado pela célebre frase que diz que um homem como sempre diferentes
são as águas que nos
não pode banhar-se duas vezes no mesmo rio16, ou seja, em tudo há uma banham: assim Heráclito
pode dizer, do seu ponto
fluidez universal, que renova todo instante, de forma que não existe repeti- de vista, que entramos
e não entramos no rio.
ção, tudo é novidade. Hoje já não sou a mesma pessoa de ontem, pois renas- E pode também dizer
que somos e não somos,
porque, para ser o que
ço a cada instante. Tal doutrina contrapõe-se à unidade imóvel de Parmêni- somos em dado momen-
to, devemos não ser mais
des, sustentada nas propriedades do ser. Para Heráclito, o ser não pode ser aquilo que éramos no pre-
cedente momento, assim
eterno, somente o vir-a-ser. como, para continuar a
ser, deveremos logo não
ser mais aquilo que somos
[...] na medida em que um certo estado de vir-a-ser permanente define de modo definitivo nesse momento. E isso
a qualidade das coisas. E, não fossem essas coisas, sequer justiça haveriam de ter conhecido vale, segundo Heráclito,
para todas as coisas, sem
os homens, na medida em que desta unidade plural, é deste vir-a-ser onde a essência de exceção”. (REALE, Giovan-
tudo é estar o tempo todo em constante movimento, revela aos homens o que é cada ni. História da Filosofia
coisa, e nesta ordenação (onde os contrários se encontram em luta, e as coisas empíricas Antiga. p. 64.)

não encontram permanência), lhes faz conhecer justiça (“Nome de justiça não teriam 17
BITTAR, Eduardo C. B.
sabido, se não fossem estas (coisas)”).17 Curso de Filosofia do Direi-
to, p. 78.

85
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas

Para Heráclito convergem os diversos pensamentos. Nele encontramos


a unidade originária do ser de Parmênides, no momento em que ele admite
existir uma verdade além dos fenômenos transitórios, como também resol-
vida a pluralidade de Empédocles e os demais, no constante movimento das
aparências, além das questões materiais já trazidas pelos monistas jônicos.
E é nisso que Heráclito situa a importância e simbologia do fogo. O fogo é
fluidez, movimento eterno e constante.

Importante aclarar que Heráclito não defende o relativismo, já que diver-


sas vezes afirma a necessidade de se encontrar a unidade originária. O ponto
em que esse filósofo enfrenta os eleatas é na imobilidade do ser. Para Herácli-
to, aceitar a imobilidade seria aceitar que existem dias iguais, e seria forçado
a rejeitar a fluidez constante da vida.

Do mesmo modo que afasta o relativismo, Heráclito ataca as convenções


sociais quando afirma que para os deuses tudo é justo, embora os homens
tomem somente uma parte delas como justos e o restante como injusto. A
sociedade cria convenções, regras sociais que se tornam critérios. A metáfo-
ra heraclitiana para isso é forte; ele argumenta que a justiça está na luta, na
guerra. É a luta que exige movimento, realização, e por isso é Justiça. A luta
perturba o ciclo das coisas, a discórdia obriga mudanças, novidades. Com-
preender a guerra como Justiça, e não a paz, certamente não condiz com as
convenções e estereótipos geralmente aceitos, mesmo na Grécia Antiga.

Também encontra-se em Heráclito a harmonia já introduzida pelos pita-


góricos. Heráclito diz que nesse movimento eterno exige-se uma harmonia
dos contrários, utilizando o arco e a lira como símbolos. Esses instrumentos
somente funcionam com perfeição se sintonizados em máxima harmonia.
Da mesma forma o movimento fluído e eterno deve acontecer perpassan-
do os contrários, da guerra à paz, do justo ao injusto, da doença à saúde
etc. E aqui encontra-se sua ideia de justiça, que seria a harmonia entre os
contrários em eterno movimento. A Justiça nasce do movimento, da luta,
da criação, um ponto harmônico que surge de uma ordem maior. Por isso
que ele afirma que os homens devem defender a lei tal como fazem com as
muralhas. As leis, ainda que convenções, são necessárias porque sustentam a
ordem política, social e jurídica da polis, e disso advém sua importância.
O devir é, pois, um contínuo conflito dos contrários que se alternam, é uma perene luta de
um contra o outro, é uma guerra perpétua. Mas, dado que as coisas só têm realidade [...] no
perene devir, então, por consequência necessária, a guerra se revela como o fundamento da
realidade das coisas. [...] se as coisas só têm realidade enquanto devêm, e se o devir é dado
pelos opostos que se contrastam e, contrastando-se, pacificam-se em superior harmonia,

86
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas

então é claro que na síntese dos opostos está o princípio que explica toda a realidade, e
é evidente, por consequência, que exatamente nisso consiste Deus ou o Divino [...]. E isso
significa, justamente, que Deus é a harmonia dos contrários, a unidade dos opostos.18 18
REALE, Giovanni. His-
tória da Filosofia Antiga,
p. 65-67.
Por fim, o pensamento de Heráclito antecede Sócrates ao anunciar a im-
portância do autoconhecimento ao assinalar que todos os homens nasce-
ram com essa dádiva e que nela devem investir. Em Heráclito encontramos
já raízes antropológicas que serão reforçadas com os sofistas e finalmente
com Sócrates.

Os reflexos de Heráclito para a vida contemporânea são vários. Viver tudo


em fluidez, em eterno renovar-se, viver cada instante infinito como perene
novidade deveria ser a lógica existencial de todo indivíduo. É o movimento
constante, a vida de realizações e lutas que afastam o homem da angústia e
do sofrimento existencial. Também importante é aplicar à vida a compreen-
são de Heráclito da existência de duas dimensões de vida, uma em que vi-
vemos conforme as convenções e outra em que vivemos conforme a fluidez
do vir-a-ser. Temos que defender tanto as muralhas da cidade como nossa
fluidez existencial. O empresário deve tanto observar as normas jurídicas,
sociais e políticas, incrementar a sociedade, como também viver para si, fazer
de seu trabalho a sua obra de arte.

Com isso encerra-se a exposição da filosofia dos pré-socráticos. Ainda que


essas escolas e filósofos tenham divergências de ideias, todos mantêm uma
mesma linha fundamental, a de pensar o mundo e todas as coisas em um
viés cosmológico, buscando a ordem que estabelece o princípio e a causa de
cada ser. Nos próximos capítulos se verá como essas questões continuarão
a ser o cerne de toda a história da Filosofia e que impacto terão nas teorias
da Justiça de outros pensadores. Ainda que a categoria Justiça pareça não
ser o centro das discussões dos pré-socráticos, certamente foi amplamente
debatida por eles, tendo em vista que vários desses pensadores eram perso-
nalidades influentes nos meios políticos de seu tempo.

Contudo, o crescimento da vida social na polis ampliou ainda mais os de-


bates, fazendo com que cada vez mais as pessoas se sentissem capazes de
adentrar reflexões nesse viés. Essa mudança de paradigma resultou no pri-
meiro grande embate da história da Filosofia: o surgimento dos sofistas, fi-
lósofos que se atreveram a pôr em xeque toda a argumentação cósmica dos
pré-socráticos. Os sofistas arriscaram-se a declarar falsa toda ordem, toda
concepção a priori de Justiça, ser, cosmos etc. É o nascimento do relativismo
e da subjetividade na Filosofia.

87
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas

Os sofistas
Durante séculos o termo sophisté acompanhou o significado de sábio,
como palavra derivada da expressão sophos, a mesma que originou o termo
filósofo. Contudo, com o crescimento da polis, a sophisté passou de sábio
a uma utilização mais técnica e específica, a de professor. Por isso, quando
surgem os sofistas estes são considerados os professores, os indivíduos que
ensinam diversas técnicas e ofícios a todo aquele que pagar pelo serviço.
Os sofistas diziam-se dominar uma série de técnicas, da Medicina à Astro-
nomia, da arte política aos temas jurídicos, e principalmente a arte retórica.
O objetivo da sofística não era desvendar o cosmos como tentavam os pré-
-socráticos, mas ensinar aos homens as situações cotidianas e úteis da vida
em geral. Uma revolução importantíssima, uma vez que os sofistas retiram o
cosmos do centro das discussões filosóficas e ali inserem o homem. Por isso
a história da Filosofia geralmente aceita o nascimento dos sofistas como a
transição do período cosmológico para o período antropológico.

O fato de os sofistas venderem qualquer tipo de ensinamento a todo aquele


que pagasse por tais serviços implicaria em duas críticas ferozes iniciadas por
Sócrates e repetidas incansavelmente por Platão e Aristóteles. Primeiro o fato
de vender ensinamentos, conhecimento, o que contrariava todo o costume
corrente. E segundo porque ensinavam qualquer coisa, e diziam possuir co-
nhecimentos sobre qualquer coisa, o que segundo os opositores era uma fa-
lácia, pois muitas vezes ensinavam técnicas nas quais não possuíam grande
domínio. A questão é que para os sofistas esses argumentos não eram muito
importantes, uma vez que esses pensadores consideravam-se amorais, isto é,
despreocupados de qualquer moral ou regra convencionalmente aceita.

Para os sofistas, a lei e as organizações políticas não são naturais ao


homem, mas artifícios que este construiu para viver melhor. Os animais re-
ceberam garras e outras armas para se defenderem, e o homem os deuses
dotaram de inteligência, que facilita uma vida social e coletiva, ampliando
os ganhos a todos. Não obstante, isso significa que qualquer lei é antes lei
humana, ou seja, está exposta aos mais variados erros e defeitos. Logo, uma
lei nem sempre será obrigatoriamente boa ou eficaz. Com isso, os sofistas
proclamavam-se livres de qualquer convenção, e essa nova concepção hu-
manista resultaria ainda em outro ponto amplamente divergente: sendo a
sociedade criação humana, e esta inclusive pode conter defeitos, não é natu-
ral ao homem tudo viver para o bem comum. O natural seria então viver para
si mesmo, conforme seus próprios interesses.

88
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas

E essa última ideia fundamenta o fato de eles venderem ensinamentos e


técnicas. Ora, os sofistas eram professores e o que melhor sabiam fazer era
ensinar aos homens novas técnicas e conhecimentos, tornando-os pessoas
mais preparadas. Para os sofistas, todos os homens foram dotados de com-
petências, saberes, mas somente alguns os desenvolveram, pela prática e
estudo, que são justamente os políticos e todos aqueles que estão a frente
da sociedade. Logo, para os sofistas, ensinar os homens comuns era justa-
mente ensinar-lhes a desenvolver esse potencial que já possuíam. Nesse
sentido, contribuiram também com a democracia:
Respondendo a uma necessidade da democracia grega é que os sofistas tiveram seu
aparecimento; o preparo dos jovens, a dinamização dos auditórios, o fornecimento de
técnica aos pretendentes de funções públicas notáveis, o fornecimento de instrumentos
oratórios e retóricos para o cuidado das próprias causas e dos próprios negócios (“o
cuidado adequado de seus negócios pessoais, para poder administrar melhor sua própria
casa e família, e também dos negócios do Estado, para se tornar poder real na cidade,
quer como orador, quer como homem de ação: Protágoras), tudo isso favoreceu a eclosão
do movimento que se pulverizou por toda a Grécia. Por isso, são importantes os sofistas,
sobretudo, por terem relevado a técnica para a dominação do discurso assemblear e
pela rediscussão da dimensão do homem como ponto de partida para as especulações
humanas.19 19
BITTAR, Eduardo C. B.
Curso de Filosofia do Direi-
to, p. 93.
A utilização e ensino do discurso oratório e retórico foi bastante impor-
tante para o desenvolvimento da arte política e da prática judiciária, pois
vivia-se um momento em que os grandes debates eram resolvidos na argu-
mentação. A inserção da retórica como matéria relevante para a vida política
certamente alcança mesmo os dias atuais, na medida em que hoje a capaci-
dade de encadear logicamente o discurso e despertar paixões no ouvinte é a
base para o êxito em qualquer discussão. Para o mundo contemporâneo, em
que a comunicação é ferramenta fundamental para qualquer dimensão da
vida, retornar aos sofistas poderá trazer contribuições importantes, uma vez
que eles foram os primeiros a utilizarem dessa prática por dinheiro, sem o
pudor habitual. Os sofistas retiraram o caráter pejorativo do dinheiro tornan-
do-o inclusive emblema de crescimento e maior preparo. Contudo, mesmo
para o homem de hoje isso ainda não se tornou uma questão básica, pois
muitos permanecem vendo o dinheiro como uma condição não essencial, e
inclusive imoral, como se o acúmulo dele significasse práticas ilícitas ou pelo
menos não aceitas socialmente.

Os sofistas defendem o relativismo, afirmando que está no homem, e não


na natureza, a verdade de todas as coisas, conforme a célebre sentença de
um dos seus principais representantes, Protágoras de Abdera: “O homem é a
medida de todas coisas, das que são porque são, e das que não são porque
não são”. Importante aclarar o sentido dessa frase. Para os sofistas, em espe-
89
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas

cial Protágoras, toda lei e convenção exigida socialmente foram formuladas


por alguém, o que significa que estão sujeitas aos mais variados defeitos, e
que inclusive podem ser modificadas com o tempo. No fundo, a validade
daquela lei fundamenta-se apenas na vontade humana. E se levarmos em
consideração que em geral aceita-se como Justiça a obediência às leis, prin-
cipalmente num período histórico como o grego, em que o servir ao bem
comum era não somente um dever, mas uma razão de existir, esse raciocínio
pode causar revoluções importantes na história do pensamento jurídico.

Ademais, há outras inferências que se deduzem da interpretação dessa


sentença de Protágoras. A primeira é que ele traz o centro da Filosofia para a
dimensão humana, em contraposição ao pensamento cosmológico dos pré-
-socráticos em geral. Isto é, o fundamento da existência humana e da verdade
não está no cosmos, seja este o fogo, a água, os números, as homeomerias, os
átomos etc., mas no próprio homem. Nesse sentido é uma mudança radical
de foco. Uma segunda inferência resulta do exposto no parágrafo anterior.
Ora, se o homem é a medida, isso significa que é inútil buscar a verdade em
questões cosmológicas, divinas. Protágoras não era ateu, mas outros sofistas
posteriores a ele utilizarão essa frase como argumento contra a existência
de deuses. Por fim, uma terceira inferência e talvez a mais importante, ainda
que seja a mais alvo de discussão por parte dos estudiosos. Para uma parcela
de pesquisadores, em especial Gomperz, o homem-medida de Protágoras
não seria o homem individual, mas o homem como espécie, o homem em
geral. Ou seja, o critério não está no relativismo individual, na minha ou tua
opinião, mas naquilo que é favorável ou não ao ser do homem.

Podemos reforçar essa interpretação com uma passagem de um diálo-


go de Platão, o Protágoras, no qual articula-se um diálogo fictício entre este
sofista e Sócrates. Nessa obra, ao ser questionado se existiriam coisas boas,
absolutamente boas, más e absolutamente más, Protágoras afirmou que
sim, tomando como exemplo que há coisas, como alimentos, remédios, por
exemplo, que são boas ou nocivas ao homem, mas não o são para os outros
animais; há coisas que não são boas para nenhum animal, mas o são para as
plantas; e por fim há inclusive coisas que são boas para as raízes, mas não
para os brotos, na mesma planta. Como se vê nessa afirmação, Protágoras não
discute a posição do homem individual, mas do homem como espécie. Nesse
fundo utilitarista vislumbra-se um aspecto de sua filosofia em que ele aceita
a existência de coisas absolutamente boas e absolutamente más ao homem,
ou seja, que reforçam ou prejudicam o homem, seja qual indivíduo for.

90
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas

Com isso, a noção de justiça é relativizada, na medida em que seu conceito é igualado ao
conceito de lei; o que é justo senão o que está na lei? O que está na lei é o que está dito
pelo legislador, e é esse o começo, o meio e o fim de toda justiça. Nesse sentido, se a lei
é relativa, se se esvai com o tempo, se é modificada ou substituída por outra posterior,
então com ela se encaminha também a justiça. Em outras palavras, a mesma inconstância
da legalidade (o que é justo hoje poderá não ser amanhã). Nada do que se pode dizer
absoluto (imutável, perene, eterno, incontestável...) é aceito pela sofística. Está aberto 20
BITTAR, Eduardo C. B.
campo para o relativismo da Justiça.20 Curso de Filosofia do Direi-
to, p. 96.

Sem a sofística não haveria a crítica às regras convencionais, àquilo que


é considerado moralmente aceito pela sociedade. Também é importante
compreender que os sofistas não necessariamente são contrários a todo e
qualquer conceito, ou seja, que tudo seria simplesmente relativismo, o que
eles argumentavam é que a organização humana é fundada em princípios
convencionais e mutáveis. Tudo aquilo que entendemos como justo, correto,
na verdade advém de uma lei, moral, crença etc., que pode vir a ser modifica-
da em um momento qualquer. Compreender a lei e a moral como mutáveis,
condições não absolutas, expostas às mais variadas contingências, certa-
mente confere ao indivíduo um grau maior de liberdade para agir e pensar.

Ampliando seus conhecimentos

Teoria das cordas sonoras;


relação de intervalos; modo dórico.
O ponto de partida que permite afirmar que tudo o que
é qualitativo é quantitativo encontra-se na acústica.

A música, com efeito, é o melhor exemplo do que queriam dizer os pita-


góricos. A música, como tal, só existe em nossos nervos e em nosso cérebro;
fora de nós ou em si mesma (no sentido de Locke), compõe-se somente de
relações numéricas quanto ao ritmo, se se trata sua quantidade, e quanto à
tonalidade, se se trata de sua qualidade, conforme se considere o elemento
harmônico ou o elemento rítmico. No mesmo sentido, poder-se-ia exprimir o
ser do universo, do qual a música é, pelo menos em certo sentido, a imagem,
exclusivamente com o auxílio de números. E tal é, estritamente, o domínio da
química e das ciências naturais. Trata-se de encontrar fórmulas matemáticas
para as forças absolutamente impenetráveis. Nossa ciência é, nesse sentido,
pitagórica. Na Química, temos uma mistura de atomismo e de pitagorismo,
para a qual Ecphantus na Antiguidade passa por ter aberto o caminho.

91
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas

A contribuição original dos pitagóricos é, pois, uma invenção extremamen-


te importante: a significação do número e, portanto, a possibilidade de uma
investigação exata em física. Nos outros sistemas de física, tratava-se sempre
de elementos e de sua combinação. As qualidades nasciam por combinação
ou por dissociação; agora, enfim, afirma-se que as qualidades residem na di-
versidade das proporções. Mas esse pressentimento estava ainda longe da
aplicação exata. Contentou-se, provisoriamente, com analogias fantasiosas.

Simbolismo dos números pitagóricos: um é a razão, dois a opinião, quatro a


justiça, cinco o casamento, dez a perfeição etc.; um é o ponto, dois é a linha, três
a superfície, quatro o volume. Cosmogonia. O Universo e os planetas esféricos. A
harmonia das esferas.

Se se pergunta a que se pode vincular a filosofia pitagórica, encontra-


-se, inicialmente, o primeiro sistema de Parmênides, que fazia nascer todas
as coisas e uma dualidade; depois, o ápeiron de Anaximandro, delimitado e
movido pelo fogo de Heráclito. Mas esses são apenas, evidentemente, pro-
blemas secundários; na origem há a descoberta das analogias numéricas no
universo, ponto de vista inteiramente novo. Para defender essa ideia contra a
doutrina unitária dos eleatas, tiveram de erigir a noção de número, foi preciso
que também a Unidade tivesse vindo a ser; retomaram então a ideia heracli-
tiana do pólemos, o pai de todas as coisas, e da Harmonia que une as quali-
dades opostas; a essa força, Parmênides chamava Aphrodite. Simbolizava a
gênese de todas as coisas a partir da oitava. Decompuseram os dois elemen-
tos de que nasce o número em par e ímpar. Identificaram essas noções com
termos filosóficos já usuais. Chamar o ápeiron de par é sua grande inovação;
isso porque os ímpares, os gnómones, davam nascimento a uma série limitada
de números, os números quadrados. Remetem-se, assim, a Anaximandro, que
reaparece aqui pela última vez. Mas identificam esse limite com o fogo de
Heráclito, cuja tarefa é, agora, dissolver o indeterminado em tantas relações
numéricas determinadas; é essencialmente uma força calculadora. Se houves-
sem tomado emprestado de Heráclito a palavra logos, teriam entendido por
ela a proporção (aquilo que fixa as proporções, como o péras fixa o limite). Sua
ideia fundamental é esta: a matéria, que é representada inteiramente destituída
de qualidade, somente por relações numéricas adquire tal ou tal qualidade deter-
minada. Tal é a resposta dada ao problema de Anaximandro. O vir-a-ser é um
cálculo. Isso lembra a palavra de Leibniz, ao dizer que a música é execitium ari-

92
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas

thmeticae occultum nescientis se numerare animi. Os pitagóricos teriam podido


dizer o mesmo do universo, mas sem poder dizer quem faz o cálculo.

(NIETZSCHE, Friedrich. In: O Nascimento da Filosofia na Época da Tragédia. Os pré-


socráticos. p. 63-64.(Coleção Os Pensadores).)

Atividades de aplicação
A partir da leitura do texto do Ampliando seus conhecimentos, responda
aos exercícios a seguir.

1. Nietzsche comenta sobre a relação entre proporcionalidade e música


em Pitágoras. Faça um comentário sobre a importância da proporção
na arte e como isso pode contribuir com um apelo estético em qual-
quer atividade cotidiana.

2. Em várias partes comenta-se sobre o valor da Harmonia para os pré-


-socráticos, a partir das ideias de Pitágoras, Parmênides, Heráclito, en-
tre outros. Para você, o que viria a ser essa harmonia entre os opostos,
e como a união proporcional dos contrários pode contribuir com a
vida em geral?

3. Estabeleça uma relação entre Justiça e Matemática, tentando identi-


ficar pontos semelhantes entre uma medida proporcional e a medida
do justo.

4. Escolha um dos filósofos pré-socráticos e comente-o, trazendo para a


atualidade, assinalando como as ideias desse pensador podem ajudar
em sua prática diária.

Gabarito
1. A arte, tanto para gregos, romanos como os renascentistas, exige uma
proporcionalidade que, conforme os artistas clássicos, simbolizava
uma medida divina. É uma busca por exatidão, proporção e perfeição,
que se for aplicada a cada pequena coisa do cotidiano transforma cada
tarefa numa obra de arte.

93
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas

2. Os gregos eram adeptos da ideia de equilíbrio, proporcionalidade,


meio-termo. O excesso, tanto de um lado como de outro, conduz a ati-
tudes desequilibradas, e nisso a proporção natural se perde. Os opos-
tos não medidas extremas onde um é certo e outro errado, mas extre-
mos, que se forem proporcionais consentem algo mais harmônico.

3. A Justiça deve ser precisa, proporcional ao fato e às questões éticas.


A simples aplicação da lei não é proporcional, pois ignora as peculia-
ridades do fato. A medida proporcional é aquela que obtém o melhor
resultado possível, pois não se baseou em premissas anteriores nem
em excessos, mas numa proporção.

4. Por exemplo, Parmênides afirma que o Ser é e o Não-Ser não é. Isso


significa que em tudo já existe uma verdade anterior e que pode ser
colhida por evidência. O restante é aparência e opinião. A cada ins-
tante devemos tentar evidenciar o que está por detrás de cada efeito
provocado por alguém ou algo, para não pensarmos nas aparências,
mas na causa, no ser.

Referências
ANAXÁGORAS. Fragmento. In: KIRK, G. S.; RAVEN, J. E.; SCHOFIELD, M. Os Filóso-
fos Pré-Socráticos. 4. ed. Tradução de: FONSECA, Carlos Alberto Louro. Lisboa:
Fundação Calouste Gukbenkian, 1994. p. 385.

BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia do Direito. 7. ed. rev. e aument. São


Paulo: Atlas, 2009.

NIETZSCHE, Friedrich. In: O Nascimento da Filosofia na Época da Tragédia e


Pessimismo. 2. ed. Tradução, notas e posfácio de: GUINSBURG, J. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 1992.

REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. Tradução de: PERINE, Marcelo. São
Paulo: Loyola, 1993. p. 52-53. v. 1.

REALE, Miguel. Experiência e Cultura. 2. ed. Campinas: Bookseller, 2000.

94
A formação do homem
e da sociedade grega
em Sócrates e Platão

Introdução
Neste capítulo estudaremos os pensadores que operaram a mudança do
eixo da Filosofia das colônias para Atenas, grande metrópole da época. Mais
do que isso, analisaremos duas figuras essenciais na Filosofia Clássica. Só-
crates é a mente que protagoniza uma passagem tão importante no pensa-
mento filosófico que acaba dividindo essa forma de conhecimento entre os
pensadores anteriores e posteriores à sua vida. Platão, principal discípulo de
Sócrates, criou um importante sistema filosófico que refletia sobre as mais
complexas questões do mundo, tal como o fizeram os pré-socráticos, assim
como sobre a conduta humana, em seu aspecto individual e social como seu
mestre, apresentando uma importante concepção de Justiça.

Sócrates e a importância do autoconhecimento


Sócrates difere-se dos filósofos anteriores por não procurar explicar a
physis. Para ele a ciência do cosmo é inacessível ao homem, assim como con-
sidera que quem se dedica a essas pesquisas se esquece de si mesmo, daqui-
lo que mais importa: o homem e os problemas que o circundam.1 Essa visão 1
REALE, Giovanni. Histó-
ria da Filosofia Antiga. I:
o caracteriza como um filósofo do período antropológico, no qual a preocu- Das origens a Sócrates. 4.
ed. Tradução de Marcelo
pação maior é resolver as questões da existência humana, procurando-se o Perine. São Paulo: Loyola,
2002. 1v. p. 255.
modo adequado pelo qual o homem pode conhecer a realidade em que se
encontra e saber agir de maneira apropriada.2 2
Isso não significa dizer
que Sócrates não tenha
estudado as questões
Ao mesmo tempo, o pensamento de Sócrates difere daquele dos sofistas, relativas ao cosmos, mas
que para ele era mais im-
primeiros representantes da nova fase do pensamento antigo, pois conse- portante resolver a ques-
tão da vida do homem
gue tratar de maneira adequada a natureza (essência) do homem, algo que e do seu conhecimento
antes de se desvendar o
o extremo relativismo da citada corrente tornava impossível. universo.

A alma (psyche) para Sócrates “ ‘coincide com a nossa consciência pensan-


te e operante, com a nossa razão e com a sede da nossa atividade pensante e
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão

eticamente operante’. Em poucas palavras: para Sócrates a alma é o ‘eu cons-


3
REALE, Giovanni. Histó- ciente, é a personalidade intelectual e moral’ “.3
ria da Filosofia Antiga.
I: Das origens a Sócrates.
p. 259. Desse modo, tem-se um núcleo através do qual se emana a verdade e a
realidade que já é constituída anteriormente ao homem. Essa forma de se
entender a alma é completamente diversa daquela retratada pelos poetas e
pelos filósofos anteriores, e torna-se o guia para toda a filosofia do pensador
ateniense. Nesse sentido é que se tem a célebre frase de Cícero que diz que
4
Cf. ABBAGNANO, Nicola.
Sócrates “trouxe a Filosofia do céu para a terra”4.
História da Filosofia. Tra-
dução de António Borges
Coelho, Francisco de Conforme assinala Aristóteles, Sócrates ocupava-se de questões éticas, e
Sousa e Manuel Patrício.
Lisboa: Presença, 1999. não da natureza em sua totalidade; buscava o universal no âmbito da pró-
2.v. p. 75.
5
pria conduta ética.5 Essa passagem tem um significado profundo, posto que
ARISTÓTELES. Metafísi-
ca. Tradução de Marcelo há uma alteração no conceito de saber, o qual se aproxima muito mais das
Perine. São Paulo: Loyola,
2002. p. 35. 2v. questões da existência humana. O que era o conhecimento para os antigos
pensadores era para Sócrates uma concepção do mundo.

Sócrates encontrava-se sempre nos locais públicos, onde a maior parte


dos cidadãos atenienses passava seu dia, dialogando com eles, provocando-
-os ao conhecimento. Chamava sua ação pelos nomes de filosofia e filosofar.

Essa filosofia não é um simples processo teórico de pensamento e com-


preensão da realidade, mas principalmente de educação do homem. Sócra-
tes exige que o homem no lugar de somente se preocupar com os ganhos,
se preocupe também com a alma. Entende-se com essa concepção que os
ganhos não possuem sentido algum na situação de que toda essa bonança
não esteja em conformidade com o princípio interior daquele indivíduo. O
homem deve cuidar de sua alma, a partir dela que poderá colher todas as
demais coisas. Definindo mais concretamente esse cuidado da alma, Sócra-
tes manifesta como um cuidado através do conhecimento do valor e da ver-
6
PLATÃO. Apologia de dade, da phronesis e da aletheia.6
Sócrates. In: ______. Êuti-
fron, Apologia de Sócra-
tes, Críton. Tradução, in- Por mais que possa parecer até mesmo óbvio, dada a tradição de mais
trodução e notas de José
Trindade Santos. 4. ed. de dois mil anos de cristianização, essa exortação ao cuidado da alma segue
Lisboa: Casa da Moeda,
1993. p. 85 tendo um especial valor ao homem contemporâneo. Conforme dito, Sócra-
tes dá ao conceito de alma uma significação próxima ao conceito contempo-
râneo de “consciência”, aquela parte racional que conduz o homem, porém,
ao agir a conduta do homem não deve ser vazia, deve mirar um fim, o qual,
por sua vez, deve primeiro resguardar a própria inteligência, para depois
tratar do ganho material.

98
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão

Nesse sentido, há que se considerar que a cultura grega já dava muita im-
portância à saúde do corpo, ao valor da ginástica. Considerava-se o cuidado
do próprio corpo em uma dimensão de beleza, que refletia nas demais ques-
tões da vida. Contudo, Sócrates é inovador ao trazer mais do que a impor-
tância do cuidado com a saúde, também o cuidado com o mundo interior. A
alma para Sócrates é o que há de divino no homem7. 7
JAEGER, Werner. Wi-
lhelm. Paideia: a forma-
ção do homem grego.
Assim Sócrates define sua atividade no diálogo de Platão, Apologia de 4.ed. Tradução de Artur M.
Parreira. São Paulo: Mar-
Sócrates: tins Fontes, 2003. p. 528.

Nada mais faço do que andar pelas ruas a persuadir-vos, jovens ou velhos, a cuidardes
mais da alma que do corpo e das riquezas, de modo a que vos torneis homens excelentes.
E nada mais peço do que sustentar que a excelência não vem das riquezas, mas, pelo
contrário, da excelência vem as riquezas e todos os outros bens, tanto aos homens
particulares como ao estado.8 8
PLATÃO. Apologia de
Sócrates. In: ______. Apo-
logia de Sócrates. Críton.
Essa parte divina surge da consciência cultivada, que depois será o crité- p. 85, 86.

rio para identificar o que é adequado, justo. Pela consciência cultivada po-
demos ter o critério que já está na alma, mas que precisa nascer através de
um processo de desvelamento de si mesmo, de seus conceitos, preconcei-
tos, ideias e máximas. Conforme Jaeger: “Sócrates, tanto em Platão como nos
outros socráticos, sempre coloca na palavra ‘alma’ uma ênfase surpreenden-
te, uma paixão insinuante e como que um juramento. Antes dele, nenhum
sábio grego pronunciou assim essa palavra”9. 9
JAEGER, Werner. Wi-
lhelm. Paideia: a forma-
ção do homem grego. p.
Compreendida a importância da psyche para Sócrates, para se poder 528.

considerar a concepção socrática da Justiça precisa-se tratar de uma ideia


central em seu pensamento, o autoconhecimento. Tal como Reale considera:
“Ensinar os homens a conhecer e a cuidar de si mesmos é a tarefa suprema
da qual Sócrates considera ter sido investido por Deus”10. 10
REALE, Giovanni. His-
tória da Filosofia Antiga.
I: Das origens a Sócrates.
Para defender a importância dessa concepção, Sócrates adota a adver- p. 261. grifo do autor.

tência inscrita no oráculo de Delfos, a qual dizia ‘‘conhece-te a ti mesmo”11. 11


Gnoûte autos em grego,
ou nosce te ipsum em
Sendo a alma o “eu inteligente e moral do homem”12, é de suma importância latim. (BITTAR, Eduardo C.
B.; ALMEIDA, Guilherme
conhecê-la, cultivá-la, pois, mais do que salvaguardar a sanidade da pessoa, Assis de. Curso de Filoso-
fia do Direito. 7. ed. rev.
ela é a própria fonte de todo conhecimento que conduz o homem ao desen- e aumentada. São Paulo:
Atlas, 2009. p. 101.)
volvimento e à excelência. 12
REALE, Giovanni. O
Saber dos Antigos: tera-
O homem, tanto no aspecto moral quanto no intelectivo, é capaz e está pia para os tempos atuais.
2.ed. Tradução de Silvana
destinado pela sua natureza a alcançar a plenitude. As virtudes (aretai) física Cobucci Leite. São Paulo:
Loyola, 2002. p. 175.
e espiritual são exatamente essas excelências que o homem já possui. Porém,
precisa conhecê-las, despertá-las. Todo erro é fruto de ignorância, enquanto
que toda virtude é conhecimento.

99
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão

A atitude essencial ao autoconhecimento é o reconhecimento da própria


ignorância, essa é a origem da célebre frase de Sócrates “só sei que nada
13
PLATÃO. Apologia de sei”13. Sábio, portanto, é aquele que não se ilude crendo saber e reconhece a
Sócrates. In: ______. Êuti-
fron, Apologia de Sócra- própria ignorância, pois só quem sabe que não sabe procura saber, enquanto
tes, Críton. p. 72.
os que creem estar na posse de um certo saber não são capazes da investiga-
ção, não se preocupam consigo mesmos e permanecem irremediavelmente
14
ABBAGNANO, Nicola. afastados da verdade e da virtude.14
História da Filosofia.
p. 76.
O meio de promover nos outros o conhecimento da própria ignorância,
condição essencial para a pesquisa, é a ironia, o método de interrogação que
tem por objetivo revelar ao homem sua ignorância, “abandoná-lo à dúvida e
15
ABBAGNANO, Nicola.
à inquietação para o obrigar à pesquisa”15. Conforme explana Reale:
História da Filosofia.
p. 76.
Sob as diferentes máscaras que Sócrates assumia eram visíveis os traços da máscara
principal, a do não saber e da ignorância: pode-se mesmo dizer que, no fundo, as máscaras
policrômicas da ironia socrática não são mais que variantes dessa principal e, com um
16 multiforme jogo de dissoluções, sempre remetiam a ela.16
REALE, Giovanni. His-
tória da Filosofia Antiga.
I: Das origens a Sócrates.
p. 311.
Através desse recurso Sócrates demonstrava ao seu confrontante o
quanto que a “verdade” que este expunha era falha ou incompleta. Através
da sequência de questionamentos e da atitude de desconhecimento, Sócra-
tes conduzia o interlocutor à compreensão de que este se encontrava enga-
nado, todavia sem agredir diretamente àquela pessoa.

No mundo contemporâneo é essencial saber criticar alguém sem ser


agressivo. Especialmente no âmbito das organizações, qualquer questão
mínima torna-se motivo para uma ação judicial. Nesse sentido, o líder neces-
sita ter um tipo de maestria, de habilidade para mostrar ao subordinado que
este se encontra equivocado. A ironia socrática é um método que procura
alcançar esse escopo, levando o próprio defensor a compreender as falhas
de seu pensamento e reformulá-lo ao escopo original da organização.

Esse sistema de ensino adotado por Sócrates é chamado de maiêutica.


Não é o mestre que ensina ao aluno, mas o aluno que se depara com uma
realidade que já possuía dentro de si e que é exposta ao mundo, evidencia-
da. Por isso maiêutica, que pode ser traduzida como “parto de ideia”, fazendo
17
ABBAGNANO, Nicola.
uma analogia com a profissão exercida por sua mãe.17 Sócrates põe-se como
História da Filosofia.
p. 76.
parteiro, porém não é ele quem dá à luz ao conhecimento, quem o faz é
aquele que se propôs a aprender na dinâmica dialética com o mestre.

Nesse ponto, a paideia socrática diferencia-se daquela exercida pelos


sofistas, com os quais Sócrates por diversas vezes se confrontara, buscan-
do comprovar a estes, célebres mestres da Grécia, que eles não eram sábios
100
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão

como imaginavam. Platão reafirma esse conceito no prólogo do Protágoras,


onde diz:
[...] os sofistas são varejistas de alimentos da alma, mas não conhecem nem os alimentos
nem a alma e, portanto, não sabem se fazem bem ou não; enquanto Sócrates é claramente
representado como aquele que conhece esses alimentos e conhece a alma, e é apresentado
como “médico da alma”.18 18
PLATÃO apud REALE,
Giovanni. História da Fi-
losofia Antiga. I: Das ori-
Há que se sublinhar ao businessman a importância da atitude de conhe- gens a Sócrates. p. 262.

cer-se e cultivar a própria inteligência como o maior bem que o homem


possui, pois é através dela que este poderá manter sua trajetória de sucesso
e desenvolvimento, bem como a capacidade de se manter um juízo propor-
cional, justo, sobre os fatos que surgem na vida. Sem uma alma sã, não há
como se falar em sucesso. Ademais, nessa busca essencial se faz reconhecer,
humildemente, o quanto que se é desconhecedor da realidade, tanto exter-
na quanto interna. Somente com esse reconhecimento o indivíduo estará
apto a partir pela busca de conhecer-se realmente e com isso desenvolver-
-se, alcançando um padrão de excelência em tudo o que faz em sua vida.

O profissional da área jurídica ou do business possui a maiêutica como


um instrumento metodológico para ultrapassar o que está aí dado, perce-
bido, concebido. Um juiz procura verificar o que está por detrás daquele
comentário, a relação entre a legislação e o pedido; o businessman, o que
está dito, o que está manifesto, e o que ele tem como experiência, e tudo
aquilo pode virar preconceito e fantasia naquele momento. A radicalidade
da maiêutica serve como guia para os imediatismos e ortodoxias de pensa-
mento e de conduta. Conhecer os principais trilhos, os principais hábitos de
comportamento e de pensamento é indispensável para conseguir a atuali-
zação à novidade de si mesmo no aqui e agora das situações apresentadas,
através da identificação de desejos, objetivos e as necessidades substanciais
e circunstanciais.

Sócrates morreu aos 70 anos de idade, condenado pela própria cidade


de Atenas, palco de seus ensinamentos. O processo que respondeu possuía
como fundamentação duas acusações: a de não honrar aos deuses da cidade,
introduzindo novas e estranhas práticas religiosas, e também de corromper
a juventude. Julgado, condenaram-no por uma diferença de aproximados 60
votos de um corpo de 501 membros.19 19
COPLESTON, Frederick.
Historia de la Filosofía. 1:
Grecia y Roma. 4.ed. Tra-
Conforme nos foi legado por Platão, em suas obras A Apologia de Sócrates ducción de Juan Manuel
García de la Mora. Barce-
e Críton, Sócrates estava ciente de seu destino e o aceita, morre pela mesma lona: Ariel Filosofia, 1994.
1v. p. 125, 126.
motivação que o fizera viver e provocar os cidadãos atenienses, o apelo pelo

101
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão

conhecimento, pela Filosofia. Relata-se no Críton que Sócrates negou-se a acei-


20
PLATÃO. Críton. In:
tar o auxílio de seus discípulos para fugir do cárcere e escapar da morte20.
______. Apologia de Só-
crates. Críton.
Essa atitude de Sócrates, condenado a ingerir a cicuta, demonstra seu pro-
fundo respeito pela Justiça. Respeito que o levou a obedecer à lei, mesmo sendo
esta injusta, ou pelo menos aplicada de maneira equivocada e demasiadamente
extensiva naquela situação. Sócrates durante toda sua vida manifestara ser um
21
Tal como encontra-se mal menor ser vítima de uma injustiça do que praticá-la21, convicção que foi rea-
no Górgias: “Destes dois
males, praticar a injustiça firmada com sua posição diante de sua condenação. Desse modo, o julgamento
e ser vítima dela, afirma-
mos que o maior é praticar de Sócrates representa também uma forma de paideia que nos atenta para a
a injustiça, o menor sofrê-
-la”. (PLATÃO. Górgias. importância de se obedecer às leis do Estado, sejam elas boas ou más. Traba-
4. ed. Introdução, tradu-
ção do grego e notas de:
PULQUÉRIO) Manuel de
lhando-se, contudo, caso sejam estas más ou mal elaboradas, para que sejam
Oliveira. Lisboa: 70, 2000.
Também na República:)
devidamente corrigidas e que tenham sua efetiva aplicação garantida.

Complementando, Bitta destaca que o ato de descumprimento da sen-


tença imposta pela cidade representaria a Sócrates a derrogação de um prin-
cípio básico do governo das leis, a eficácia. Comprometida a eficácia, reinaria
a desordem social, posto que cada um cumpriria ou descumpriria as leis a
seu bel prazer. Portanto, ao indivíduo esclarecido caberia ao máximo a ela-
boração da crítica da legislação, contudo, esse juízo moral não seria suficien-
22
BITTAR, Eduardo C. B; te para se derrogar as leis positivas.22
ALMEIDA, Guilherme Assis
de. Curso de Filosofia do
Direito. p. 91, 92. Demonstra-se, assim, que a sua submissão à sentença condenatória não
somente representa a confirmação de seus ensinamentos, mas também a re-
vitalização dos valores que foram base para a construção da polis ateniense.
A atitude desprendida de Sócrates deu maior força ao princípio do respeito
às leis da cidade. A morte de Sócrates, por esses ideais, representa sua última
lição deixada à civilização, que se consubstancia no respeito à lei como ga-
rantia da segurança social.

A Justiça como paideia em Platão


Platão, o mais célebre dos discípulos de Sócrates, é o principal pensador
que deu continuidade à revolução iniciada por Sócrates no pensamento
humano. Junto de Aristóteles, representa o auge do pensamento humanista
grego. Não é à toa que em seu quadro A Escola de Atenas, Rafael Sanzio re-
presenta ambos com especial destaque ao centro, cada um carregando uma
de suas principais obras. Sócrates, junto do Timeu, aponta ao céu, símbolo
que identifica a concepção do mundo inteligível em sua teoria, ao passo que

102
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão

Aristóteles, apontando ao chão, carrega a Ética a Nicômaco, obra que será


estudada mais adiante.

Assim como seu mestre, Platão seguia a tradição de transmissão oral das
ideias e ensinamentos. Platão entendia que o conhecimento, devendo ser
passado oralmente, não poderia ser reproduzido pela escrita, e esta serviria
somente como modo de se lembrar dos ensinamentos obtidos. Conforme
Jaeger: “[...] o que caracterizava Platão era o fato de lhe interessar mais expor
a Filosofia e a sua essência através do movimento vivo da dialética do que
23
sob a forma de um sistema dogmático acabado”23. JAEGER, Werner Wi-
lhelm. Paideia: a forma-
ção do homem grego. p.
Por esse motivo, considera-se que as principais doutrinas do pensamento 583.

do filósofo nunca foram escritas, conforme reflete Reale acerca das chama-
das “doutrinas não escritas”24. Apesar disso, Platão deixou uma vasta produ- 24
Assinala Reale: “Por
conseguinte, tanto Platão
ção intelectual, a qual encontra-se conservada até a atualidade. com as afirmações explí-
citas feitas sobre os seus
escritos como os seus
Sócrates é o personagem principal da maioria dos seus diálogos, os quais discípulos que nos infor-
maram da existência e dos
são identificados pela temática trabalhada em quatro principais grupos: os principais conteúdos das
‘Doutrinas não escritas’
diálogos do período socrático, no qual a influência de seu mestre ainda era comprovam, de modo ir-
refutável, que os escritos
marcante, exemplificando-se com diálogos como a Apologia de Sócrates, o não são para Platão a ex-
pressão plena e a comuni-
Críton e o Protágoras; o período de transição, onde Platão começa a apresen- cação mais significativa
do seu pensamento e que,
tar suas próprias concepções em obras como o Górgias e o Menon; o período em consequência, mesmo
possuindo nós todos os
da maturidade de Platão, onde este já apresenta suas próprias ideias como o escritos de Platão, de
todos esses escritos não po-
demos extrair todo o seu
faz em O Banquete, Fédon, A República e no Fedro; e o quarto e último perío- pensamento, e a leitura e a
interpretação dos diálogos
do, o das obras da sua velhice, com os diálogos chamados lógicos, tais como devem ser levadas a cabo
numa nova ótica”. (REALE,
Teeteto, Parmênides, Sofista, Político, além do Timeu e As Leis.25 Giovanni. História da Fi-
losofia Antiga. II: Platão
e Aristóteles. Tradução
O pensador ateniense não se contenta em saber contemplar a essên- de: VAZ, Henrique Cláudio
de Lima; PERINE, Marcelo.
cia das coisas através da Filosofia, mas queria também criar o bem, dando São Paulo: Loyola, 1994. v.
2. p. 11.)
continuidade à proposta iniciada por Sócrates de formação da alma. Nesse 25
Cf. COPLESTON, Frede-
escopo, a obra escrita de Platão produz dois grandes sistemas educacionais, rick. Historia de la Filo-
sofía. 1: Grecia y Roma. p.
apresentados em A República e em As Leis. 151, 152.

É assim que Platão assume a herança de Sócrates e se encarrega da direção da luta crítica
com as grandes potências educadoras do seu tempo e com a tradição histórica do seu
povo; com a sofística e a retórica, o Estado e a legislação, a Matemática e a Astronomia,
a ginástica e a Medicina, a poesia e a música. Sócrates apontara a meta e estabelecera a
norma para o conhecimento do bem. Platão procura encontrar o caminho que conduz a
essa meta, ao colocar o problema da essência do saber.26 26
JAEGER, Werner Wi-
lhelm. Paideia: a forma-
ção do homem grego. p.
Em A República, principal obra que analisaremos neste momento, encon- 590.

tra-se presente de modo mais definido a concepção platônica de Ética, Jus-


tiça e da melhor forma de organização da cidade. A obra é composta por

103
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão

10 livros, onde mais do que concentrar-se somente nas questões morais e


políticas, o autor faz uma profunda reflexão sobre a Teoria do Conhecimen-
to e da educação, assim como sobre as questões que conduzem o homem
não somente a viver bem, mas também a encontrar sua parte divina, o que
possui de mais precioso dentro de si. Nos dizeres de Jaeger: “A formação da
27
JAEGER, Werner Wi- alma é a alavanca com a qual ele faz o seu Sócrates mover todo o Estado”.27
lhelm. Paideia: a forma-
ção do homem grego. p.
752. Logo no primeiro livro da obra, Platão reflete sobre o significado da Justi-
ça e sua contraposição à injustiça. Para tanto, cria um conflito entre Sócrates
e o sofista Trasímaco. Inicia-se a discussão com a concepção de Simônides: “é
justo restituir a cada um o que se lhe deve”. Porém, essa concepção é insufi-
ciente para definir-se Justiça, até porque o homem justo não retribuirá com
maldade ao homem mau. Há de se fazer uma análise mais profunda sobre
essa questão, considerando-se a pessoa a quem essa relação se dirige. O so-
fista, então, traz a concepção de que o justo é o que é mais conveniente ao
mais forte. Desse modo, cada Estado, na pessoa do seu governante, promul-
ga as leis que disporão sobre o que é ou deixa de ser justo para esse governo,
fixando-se conforme sua conveniência e castigando aos seus transgresso-
28
PLATÃO. A República. res28. Trasímaco considera que o interesse próprio do detentor do poder é
9. ed. Introdução, tradução
e notas de Maria Helena justo para com os súditos.
da Rocha Pereira. Listboa:
Fundação Calouste Gul-
benkian, 2001. p. 24. Sócrates ergue-se contra a concepção do sofista, afirmando que a arte
do governo não se destina somente a garantir a conveniência do mais forte.
Liderar, governar, acima de tudo é uma atitude de guiar aos seus subordina-
dos rumo ao que é vantajoso a esse grupo. É nesse ponto que se começa a
apresentar a concepção aristocrática de Platão, ou seja, que o melhor deve
ser o governante. Conforme Platão,

“[...] é desde já evidente que nenhuma arte nem governo proporciona o


que é útil a si mesmo, mas, como dissemos há pouco, proporciona e prescre-
ve o que é ao súbdito, pois tem por alvo a conveniência deste, que é o mais
29
PLATÃO. A República.
p. 37.
fraco, e não a do mais forte”29.

Portanto, considera-se que nenhuma arte, nem mesmo a de governar,


possui como finalidade o benefício único daquele que a exerce. A política
não visa o benefício do governante, mas sim dos governados, trazendo con-
sigo o desenvolvimento daquele que governa, para que siga em condições
de conduzir aos seus. Essa parte possui íntima relação com a concepção de
liderança. O líder, acima de tudo, faz do seu próprio egoísmo algo útil aos
demais, por isso é ele quem conduz aqueles que o acompanham, levando-os
104
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão

a um estágio de desenvolvimento nesse processo. Assim também deverá ser


o governante. Concluindo, “o maior dos castigos é ser governado por quem
é pior do que nós, se não quisermos governar nós mesmos”30. 30
PLATÃO. A República.
p. 38.

Platão considera que há uma virtude (areté) própria a tudo aquilo que
está encarregado de uma função. Sendo a Justiça uma virtude da alma, e
a injustiça um defeito, conclui que a alma justa e o homem justo viverão
bem, enquanto o injusto viverá mal. O homem virtuoso é feliz e venturoso, já
quem não possui virtude alguma é o contrário, “o justo é feliz, ao passo que
o injusto é desgraçado”31. 31
PLATÃO. A República.
p. 50.

Insatisfeitos com apenas a diferenciação entre justo e o injusto, Glauco e


Adimanto interpelam Sócrates para que esse lhes explane de modo mais claro
o que é a Justiça, questionam-no se a Justiça é um bem que se deva buscar
por si próprio ou apenas um meio que acarreta determinada utilidade.

Platão então escreve que a Justiça é um bem que deve ser buscado por si
mesmo, tem de ser inerente à alma humana, uma espécie de saúde espiritual
do homem. Para comprovar tal ideia, leva o Sócrates de sua obra a idealizar
uma cidade, que seria fundada desde o início, buscando através desta en-
contrar o que é o Justo e qual sua finalidade.

Destaca-se o fato de que o Estado, apesar de presente no título da obra,


não é o seu principal objeto de estudo, mas sim é utilizado como um meio
para um fim. Assim, Platão ao descrever a cidade ideal não busca tratar so-
mente das questões legislativas e da organização política da cidade, tal como
atualmente teríamos na constituição de um Estado ou até mesmo no contra-
to social de uma sociedade empresária. Trata-se sobre toda a organização
social, a divisão das classes e, principalmente, qual será a paideia, o modelo
de formação que norteará a fundação dessa cidade para, após refletir sobre
essas questões, encontrar a virtude nessa cidade e, a partir disso, definir o
que é a Justiça e sua relação com a alma. A finalidade da República é “pôr em
relevo a essência e a função da Justiça na alma do Homem”32. 32
JAEGER, Werner Wi-
lhelm. Paideia: a forma-
ção do homem grego. p.
A sociedade platônica seria baseada essencialmente em três classes. A 762.

primeira compreenderia os agricultores e artesãos, a segunda os guerreiros,


guardiões da cidade, e a terceira seria composta pelos filósofos. Parte-se do
pressuposto de que cada um deve exercer o que sabe fazer melhor, pois cada
homem não nasce semelhante aos outros, mas com diferenças naturais, apto
a fazer trabalhos diferentes. Os guardiões do Estado devem ser dotados,
antes de tudo, de uma índole apropriada. O guardião deve ser como um cão

105
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão

de boa raça, dotado ao mesmo tempo de mansidão e de ousadia, deve ser


33
Na filosofia platônica, forte e ágil no físico, irascível33, valente e amante do saber na alma, portanto,
irascibilidade é uma das
faculdades da alma, trata- necessitam de uma educação especial, o que é desnecessário na primeira
-se da capacidade de
indignar-se e lutar por classe, posto que as profissões usuais são fáceis de aprender.34
aquilo que a razão julga
justo. (ABBAGNANO,
Nicola. Dicionário de Fi- A formação dos guerreiros se daria através da ginástica e da música. Tra-
losofia. Tradução de: BOSI,
Alfredo. Revisão e tradu-
ção dos novos textos: BE-
ta-se, conforme diz Reale, da própria paideia helênica, porém, reformulada
NEDETTI, Ivone Castilho, .
São Paulo: Martins Fontes,
pelo pensador ateniense. “A poesia da qual se alimentará a alma dos jovens
2003. p. 425.)
no Estado perfeito deverá ser purificada de tudo o que é falso, sobretudo
34
REALE, Giovanni. His- no que diz respeito às narrações em torno aos Deuses”35. São propostas re-
tória da Filosofia Antiga.
II: Platão e Aristóteles. p.
246.
formas na música e na ginástica, tendo-se como foco sempre possibilitar a
35 formação do guerreiro na devida proporcionalidade. A música e a ginástica
REALE, Giovanni. His-
tória da Filosofia Antiga.
II: Platão e Aristóteles. p.
complementarmente exercem um papel de educação para a alma. A educa-
246. ção musical forma e robustece a parte racional da alma; a educação física,
36
REALE, Giovanni. His-
tória da Filosofia Antiga.
por meio do corpo, a parte irascível da alma. O produto da união de ambas é
II: Platão e Aristóteles. p.
246.
a harmonia perfeita.36
37
JAEGER, Werner Wi-
lhelm. Paideia: a forma-
Concluindo, considera Jaeger: “Platão entende que a primeira coisa a
ção do homem grego. p.
795. fazer é formar espiritualmente o Homem na sua plenitude, entregando-lhe
em seguida o cuidado de velar pessoalmente pelo seu corpo”37.

Ao terminar de constituir sua cidade, Platão conclui, no livro III, estar apto
a procurar pela Justiça dentro dela. Nesse ponto são apresentadas as quatro
principais virtudes que se encontrariam na cidade, as chamadas virtudes
cardeais: a sabedoria (sophia), a coragem (andreía), ou fortaleza de ânimo, a
temperança (sophrosyne) e a justiça (dikaiosine). Conforme Copleston, a sa-
bedoria é a virtude da parte racional da alma, a coragem é a relativa à parte
38 irascível ou veemente da alma, a temperança consiste na união das partes
“La sabiduría es la
virtud de la parte racional
del alma; el coraje, la de
veementes e apetitivas abaixo do governo da razão, o controle das paixões.38
la parte irascible o vehe-
mente; y la templanza
A justiça é somente determinada mais adiante, após a apreciação dessas três
consiste en la unión de
las partes vehemente y
virtudes. Contudo, Platão já conclui no diálogo que o Estado perfeito deverá
apetitiva bajo el gobier-
no de la razón. La justicia
necessariamente possuir as quatro virtudes.
es una virtud general,
que consiste en que cada
parte del alma cumpla su O Estado possui a sabedoria porque tem um bom conselho, “a ponde-
propia tarea con la debida
armonía”. (COPLESTON, ração, é evidente que é uma espécie de ciência. Efetivamente, não é pela
Frederick. Historia de
la Filosofía. 1: Grecia y ignorância, mas pela ciência, que se delibera bem”39. Assim, o Estado é sábio
Roma. p. 226.)
pela classe de seus governantes.40
39
PLATÃO. A República.
p. 176.
Além disso, a cidade é corajosa “numa de suas partes, pelo fato de aí ar-
40
REALE, Giovanni. His-
tória da Filosofia Antiga.
mazenar energia tal que preservará através de todas as vicissitudes a sua
II: Platão e Aristóteles. p.
248. opinião sobre as coisas a temer, que são tais e quais as que o legislador pro-

106
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão

clamar na educação”41. Trata-se da capacidade de conservar com constância 41


PLATÃO. A República.
p. 178.
a opinião reta em matéria de coisas perigosas ou não, sem deixar-se vencer
pelos prazeres ou pelas dores, ou pelos medos ou pelas paixões. É a virtude
sobretudo dos guerreiros.42 42
REALE, Giovanni. His-
tória da Filosofia Antiga.
II: Platão e Aristóteles. p.
A temperança, diz Platão, “é uma espécie de ordenação, e ainda o domí- 248.

nio de certos prazeres e desejos”43, ou seja, a capacidade de submeter a parte 43


PLATÃO. A República.
p. 181.
pior à parte melhor. O Estado temperante é aquele no qual os mais fracos
estão de acordo com os mais fortes e os inferiores em plena harmonia com
os superiores, de modo que as paixões destes estejam acima do bom juízo
dos melhor capacitados.44 44
REALE, Giovanni. His-
tória da Filosofia Antiga.
II: Platão e Aristóteles. p.
Nessas três virtudes, transpondo-as para a realidade empresarial, podemos 248.

identificar uma essencial importância para a boa condução do negócio. Sabe-


doria é uma disposição essencial, pois o líder, ou o corpo de líderes que conduz
a organização, necessita possuir um tipo de ponderação que possibilite defi-
nir os devidos rumos da instituição que coordena e aqueles que fazem parte
dela.

Além disso, a temperança é uma virtude importantíssima a toda a orga-


nização, desde os mais altos cargos até os mais básicos. O controle das pul-
sões do organismo, dos prazeres mais básicos é trivial para o desempenho
da atividade profissional vencedora. Quando se trata das dimensões afetivas,
torna-se mais importante ainda um tipo de formação para preparar o indiví-
duo a viver as situações com o outro, tanto de interesse, ligação, aproxima-
ção, quanto de repulsa. Grandes conflitos têm origem na falta de temperan-
ça, do despreparo de alguns líderes para medir as consequências e evitar os
excessos que determinadas ações provocam. Uma questão afetiva mal ad-
ministrada dentro de uma organização pode significar a diminuição ou até
mesmo a paralisação de todo um setor. Mais ainda, se tais questões surtem
efeito na atividade racional do líder, pode-se representar a perda para toda
a própria organização. Um profundo trabalho para se aprender a lidar com
essas questões é muito importante na atualidade.

Tem-se ainda a coragem, tão valorizada na cultura grega, elevada em seus


cantos heroicos e defendida pelos filósofos, a qual é de elementar impor-
tância à dinâmica empresarial. Tanto na perspectiva de se enfrentar o mer-
cado econômico, saber vencer a concorrência, fornecendo o melhor produ-
to ou serviço pelo preço mais acessível, quanto, na perspectiva individual,
existencial, é essencial a coragem de investir-se e aprofundar-se no próprio
conhecimento e na mudança de comportamento, o que significa inclusive
a necessidade de se ceifar alguns hábitos e relações que não proporcionam

107
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão

resultados adequados.

Além da necessidade do reconhecimento do quanto se é ignorante como


um pressuposto necessário ao autoconhecimento, do modo como propuse-
ra Sócrates, outra disposição essencial àquele que se propõe a aprofundar-
-se no conhecimento de si próprio indubitavelmente é a coragem. Coragem
para que o indivíduo proceda a investigação da própria realidade de maneira
responsável, mantendo-se sempre centrado no seu principal escopo. Não é
à toa que a coragem é a primeira virtude, sem ela não se pode falar em um
homem sábio, temperante, ou ainda justo.

Por último, reservamos a questão da justiça, a quarta das virtudes que se


encontram na cidade ideal. Justiça para Platão trata-se da guarda da posse do
que pertence a cada um e a execução do que lhe compete. Constitui a justiça
45
PLATÃO. A República. cada um desempenhar sua tarefa. 45 Isso significa que essa virtude é cada um
p. 187.
exercer aquela tarefa que foi preparado para executar da melhor maneira,
46
SOARES, Josemar Si- diferentemente dos demais, relativa à sua própria constituição natural.46 Em
dinei. Os Pressupostos
Filosóficos da Ideia uma situação como essa, em que todos cumprem sua função desse modo e
Justiça na História da
Filosofia: contribuições guardam aquilo que é seu, se estará diante da justiça platônica.
para o ensino jurídico.
2003. 150 f. Dissertação
(Mestrado em Ciência Destaca-se que essa ideia de exercer a sua tarefa é muito mais ligada à
Jurídica) – Curso de Pós-
Graduação em Ciência
Jurídica, Universidade do
perspectiva dos resultados do que dos gostos da pessoa. Pois, sem saber,
Vale do Itajaí - UNIVALI,
Itajaí, 2003. p.24
tal indivíduo pode possuir especiais habilidades em determinada área em
que nunca havia sido provocado a desenvolver-se. Com isso, reforça-se uma
vez mais a importância do autoconhecimento e da profunda formação, de
modo que auxiliem o indivíduo a encontrar seu devido lugar, onde exercerá
a tarefa que lhe incumbe, seja de gerenciamento, seja de execução ou qual-
quer outro tipo de serviço, da melhor maneira.

A questão da justiça não diz respeito somente à realidade externa do in-


divíduo, mas também ao próprio indivíduo, pois ao praticá-la estará valori-
zando sua melhor parte, de modo a alcançar um tipo de paz, de realização,
de felicidade no exercício dessa atividade.

Relativamente às mulheres da cidade, Platão cria no diálogo uma nova


indagação dos irmãos Glauco e Adimanto, sobre qual seria a situação destas
na cidade ideal. Sócrates, interpelado, responde que o Estado deve ter todas
as coisas em comum; nessa perspectiva, as mulheres, especialmente as da
classe guerreira, poderão ter o mesmo tipo de formação que os homens e
exercer as mesmas atividades que eles. Valoriza-se, desse modo, a imagem
feminina, tratando sobre a igualdade de oportunidades a ambos os sexos,

108
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão

respeitadas suas diferenças. Na situação de uma mulher ser muito superior


em determinado Estado, pode-se dizer, inclusive, que sem problema algum
esta poderia ser a governante indicada para essa sociedade.

Além disso, indagado sobre quem deve comandar a cidade, Sócrates


apresenta com clareza que essa função seria de competência do filósofo,
aqueles que possuiriam uma formação diferenciada para tanto. Mais do que
o estudo da ginástica e da música, o filósofo, utilizando-se de outros conhe-
cimentos, ainda é o melhor governante.47 47
JAEGER, Werner Wi-
lhelm. Paideia: a forma-
Enquanto não forem, ou os filósofos reis nas cidades, ou os que agora se chamam reis ção do homem grego. p.
853.
e soberanos Filósofos genuínos e capazes, e se dê esta coalescência do poder político
com a Filosofia, enquanto as numerosas naturezas que atualmente seguem um destes
caminhos com exclusão do outro não forem impedidas forçosamente de o fazer, não
haverá tréguas dos males, meu caro Gláucon, para as cidades, nem sequer, julgo eu, para
o gênero humano, nem antes disso será jamais possível e verá a luz do sol a cidade que
há pouco descrevemos.48 48
PLATÃO. A República.
p. 251.
Destaca-se que quando Platão fala em filósofo considera-se que este
possui como exemplo seu próprio mestre Sócrates. Prova disso é sua referên-
cia do Górgias, de que Sócrates teria sido o maior estadista de seu tempo.49 49
PLATÃO. Górgias. p.
205.

Finalizando este tópico, trataremos sobre a famosa passagem do mito da


caverna, encontrada no livro VII da obra em estudo. Nessa narrativa o filó-
sofo apresenta a situação de um grupo de homens que vivia numa caverna
subterrânea que se abre para a luz por uma comprida galeria. Estes se en-
contram lá aprisionados desde a infância e só lhes é permitido olhar para a
frente. Elucida-se a situação de que um dos prisioneiros é posto em liberda-
de, e, ao sair para a luz, surpreende-se com a realidade com que se depara.
Lembrando-se de sua morada anterior, da consciência das coisas que tinha
lá, considera-se feliz pela mudança e lamenta seus antigos irmãos de cativei-
ro. Na situação em que retornasse ao interior da caverna e pusesse a revelar
tal situação aos outros cativos, cairia no ridículo. Conclui-se a narrativa des-
tacando que se esse homem tentasse libertar um deles, ele próprio estaria
correndo o risco de ser morto pelos aprisionados.50 50
JAEGER, Werner Wi-
lhelm. Paideia: a forma-
ção do homem grego. p.
Nessa alegoria Platão representa sua Teoria do Conhecimento. A caverna 885, 886.

corresponde ao mundo visível, o sol é o fogo cuja luz se projeta dentro dela.
A ascensão para o alto e a contemplação do mundo superior é o símbolo do
caminho da alma em direção ao mundo das ideias.51 51
JAEGER, Werner Wi-
lhelm. Paideia: a forma-
ção do homem grego. p.
Para a interpretação desse relato deve-se considerar a relação entre o 885.

mundo das ideias, das formas, o mundo inteligível, com o mundo das som-
bras, o mundo sensível. Para Platão, existem essas duas realidades, vivemos
109
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão

no mundo sensível e tudo o que existe aqui é cópia do modelo anterior e


perfeito existente no mundo inteligível, no mundo das ideias. Se existimos
enquanto seres humanos deve haver um modelo de ser humano ideal na-
quela realidade, modelo que o indivíduo busca alcançar, rompendo as bar-
reiras impostas pelas imperfeições do mundo sensível.

No mito da caverna o indivíduo consegue libertar-se das amarras que o


prendiam ao mundo sensível, podendo apreender a realidade eterna e imu-
tável do mundo inteligível. Essa profunda passagem pode ser considerada
em dois aspectos, primeiramente no aspecto existencial, posto que, nessa
situação, o indivíduo realiza o seu ideal enquanto ser humano, aproximan-
do-se da ideia do Bem, somente encontrada no mundo inteligível. Por outro
lado, nessa passagem há também a abertura epistemológica, passa-se a
identificar a realidade pelo modo como ela é, de maneira exata, este é o co-
nhecimento, a episteme, não se condicionando às questões do mundo sensí-
vel, do mundo da opinião (doxa). Esta é a realização da paideia platônica no
mito, o conhecimento da ideia do Bem, medida das medidas, o qual se torna
aberto à realização na vida prática.

Demonstra-se assim que não se pode fazer ciência ou querer agir da ma-
neira adequada sem antes fazer essa passagem retratada na alegoria, o que
atesta a importância dessas concepções inclusive para o homem contempo-
râneo. Portanto, o governante, para que esteja capacitado a guiar seu povo
e seu Estado à plenitude, deve ter realizado essa passagem, de modo que
esteja apto a captar as essências, identificar o que realmente acontece na
vida, podendo assim agir do modo mais adequado e, desse modo, justo.

Do mesmo modo, o businessman também deve realizar essa passagem


para que possa tornar-se verdadeiramente um líder empreendedor. É neces-
sária a superação da realidade na qual o homem vive aprisionado desde a
infância, o universo de concepções acerca de si próprio e do mundo a sua
volta necessita ser posto em xeque para verificar se de fato é conhecimen-
to verdadeiro, episteme, ou se trata-se de mera opinião, doxa, não reversível
com a realidade.

O encontro com o mundo do modo como ele verdadeiramente é, não


como aparenta ser, abre a possibilidade da efetiva atuação nessa realidade e
sua construção de modo que a organização cresça e se desenvolva, gerando
lucro para ela própria, bem como o desenvolvimento dos liderados, funcio-
nários e colaboradores, e de toda a sociedade.

110
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão

Constata-se, portanto, que tal como Sócrates, Platão também se preocupa


com a formação da alma do homem, representando-a na formação do Estado
ideal. Para tanto a paideia é essencial, uma formação que prepare o homem
fisicamente e intelectualmente para que este, através desses elementos, possa
vir a conhecer-se e a partir disso conhecer a realidade em que se encontra,
agindo de modo adequado, sendo esta a realização da justiça platônica.

Ampliando seus conhecimentos

A alegoria da caverna – trecho retirado do livro


VII da obra A República, de Platão (2001)
– Depois disto – prossegui eu – imagina a nossa natureza, relativamente
à educação ou à sua falta, de acordo com sua experiência. Suponhamos uns
homens numa habitação subterrânea em forma de caverna, com uma entrada
aberta para a luz, que se estende a todo o comprimento dessa gruta. Estão lá
dentro desde a infância, algemados de pernas e pescoços, de tal maneira que
só lhes é dado permanecer no mesmo lugar e olhar em frente; são incapazes
de voltar a cabeça, por causa dos grilhões; serve-lhes de iluminação um fogo
que se queima ao longe, numa eminência, por detrás deles; entre a fogueira e
os prisioneiros há um caminho ascendente, ao longo do qual se construiu um
pequeno muro, no gênero dos tapumes que os homens dos “robertos” colo-
cam diante do público, para mostrarem as suas habilidades por cima deles.

– Estou a ver – disse ele.

– Visiona também ao longo desse muro, homens que transportam toda a


espécie de objetos, que o ultrapassam; estatuetas de homens e de animais,
de pedra e de madeira, de toda a espécie de lavor; como é natural, dos que o
transportam, uns falam, outros seguem calados.

– Estranho quadro e estranhos prisioneiros são esses de que tu falas – ob-


servou ele.

– Semelhantes a nós – continuei. Em primeiro lugar, pensas que, nessas


condições, eles tenham visto, de si mesmo e dos outros, algo mais do que as
sombras projetadas pelo fogo na parede oposta da caverna?

111
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão

– Como não – respondeu ele –, se são forçados a manter a cabeça imóvel


toda a vida?

– E os objetos transportados? Não se passa o mesmo com eles?

– Sem dúvida.

– Então, se eles fossem capazes de conversar uns com os outros, não te


parece que eles julgariam estar a nomear objetos reais, quando designavam
o que viam?

– É forçoso.

– E se a prisão tivesse também um eco na parede do fundo? Quando algum


dos transeuntes falasse, não te parece que eles não julgariam outra coisa,
senão que era a voz da sombra que passava?

– Por Zeus, que sim!

– De qualquer modo – afirmei – pessoas nessas condições não pensavam


que a realidade fosse senão a sombra dos objetos.

– É absolutamente forçoso – disse ele.

– Considera pois – continuei – o que aconteceria se eles fossem soltos das ca-
deias e curados da sua ignorância, a ver se, regressados à sua natureza, as coisas
se passavam desse modo. Logo que alguém soltasse um deles, e o forçasse a
endireitar-se de repente, a voltar o pescoço, a andar e a olhar para a luz, ao fazer
tudo isso, sentiria dor, e o deslumbramento impedi-lo-ia de fixar os objetos cujas
sombras via outrora. Que julgas tu que ele diria, se alguém lhe afirmasse que até
então ele só vira coisas vãs, ao passo que agora estava mais perto da realidade e
via de verdade, voltado para objetos mais reais? E se ainda, mostrando-lhe cada
um desses objetos que passavam, o forçassem com perguntas a dizer o que era?
Não te parece que ele se veria em dificuldades e suporia que os objetos vistos
outrora eram mais reais do que os que agora lhe mostravam?

– Muito mais – afirmou.

– Portanto, se alguém o forçasse a olhar para a própria luz, doer-lhe-iam os


olhos e voltar-se-ia, para buscar refúgio junto dos objetos para os quais podia
olhar, e julgaria ainda que estes eram na verdade mais nítidos do que os que
lhe mostravam?

112
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão

– Seriam assim – disse ele.

– E se o arrancassem dali à força e o fizessem subir o caminho rude e ín-


greme, e não o deixassem fugir antes de o arrastarem até à luz do Sol, não
seria natural que ele se doesse e agastasse, por ser assim arrastado, e, depois
de chegar à luz, com os olhos deslumbrados, nem sequer pudesse ver nada
daquilo que agora dizemos serem os verdadeiros objetos?

– Não poderia, de fato, pelo menos de repente.

– Precisava de se habituar, julgo eu, se quisesse ver o mundo superior. Em


primeiro lugar, olharia mais facilmente para as sombras, depois disso, para as
imagens dos homens e dos outros objetos, refletidas na água, e, por último,
para os outros objetos. A partir de então, seria capaz de contemplar o que há
no céu, e o próprio céu, durante a noite, olhando para a luz das estrelas e da
Lua, mais facilmente do que se fosse o Sol e o seu brilho de dia.

– Pois não!

– Finalmente, julgo eu, seria capaz de olhar para o Sol e de o contemplar,


não já a sua imagem na água ou em qualquer sítio, mas a ele mesmo, no seu
lugar.

– Necessariamente.

– Depois já compreenderia, acerca do Sol, que é ele que causa as estações


e os anos e que tudo dirige no mundo visível, e que é o responsável por tudo
aquilo de que eles viam um arremedo.

– É evidente que depois chegaria a essas conclusões.

– E então? Quando ele se lembrasse da sua primitiva habitação, e do saber


que lá possuía, dos seus companheiros de prisão desse tempo, não crês que
ele se regozijiria com a mudança e deploraria os outros?

– Com certeza.

– E as honras e elogios, se alguns tinham então entre si, ou prêmios para o


que distinguisse com mais agudeza os objetos que passavam, e se lembras-
se melhor quais em último, ou os que seguiam juntos, e àquele que dentre
eles fosse mais hábil em predizer o que ia acontecer – parece-te que ele teria
saudades ou inveja das honrarias e poder que havia entre eles, ou que experi-

113
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão

mentaria os mesmos sentimentos que em Homero, e seria seu intenso desejo


“servir junto de um homem pobre, como servo da gleba”, e antes sofrer tudo
do que regressar àquelas ilusões e viver daquele modo?

– Suponho que seria assim – respondeu – que ele sofreria tudo, de prefe-
rência a viver daquela maneira.

– Imagina ainda o seguinte – prossegui eu. Se um homem nessas condi-


ções descesse de novo para seu antigo posto, não teria os olhos cheios de
travas, ao regressar subtamente da luz do Sol?

– Com certeza.

– E se lhe fosse necessário julgar daquelas sombras em competição com os


que tinham estado sempre prisioneiros, no período em que ainda estava ofusca-
do, antes de adaptar a vista – e o tempo de se habituar não seria pouco – acaso
não causaria o riso, e não diriam dele que, por ter subido ao mundo superior, es-
tragara a vista, e que não valia a pena tentar a ascensão? E a quem tentasse soltá-
-los e conduzi-los até em cima, se pudessem agarrá-lo e matá-lo, não o matariam?

– Matariam, sem dúvida – confirmou ele.

– Meu caro Gláucon, esse quadro – prossegui eu – deve agora aplicar-se a


tudo quanto dissemos anteriormente, comparando o mundo visível através
dos olhos à caverna da prisão, e a luz da fogueira que lá existia à força do
Sol. Quanto à subida ao mundo superior e a visão do que lá se encontra, se a
tomares como a ascensão da alma ao mundo inteligível, não iludirás a minha
expectativa, já que é teu desejo conhecê-la. O Deus sabe se ela é verdadeira.
Pois, segundo entendo, no limite do cognoscível é que se avista, a custo, a
ideia do Bem; e, uma vez avistada, compreende-se que ela é senhora; e que,
no mundo inteligível, é ela a senhora da verdade e da inteligência, e que é
preciso vê-la para ser sensato na vida particular e pública.

– Concordo também, até onde sou capaz de seguir a tua imagem.

– Continuemos pois – disse eu –. Concorda ainda comigo, sem te admira-


res pelo fato de os que ascenderam àquele ponto não quererem tratar dos
assuntos dos homens, antes se esforçarem sempre por manter a sua alma nas
alturas. É natural que seja assim, de acordo com a imagem que delineamos.

– É natural – confirmou ele.

114
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão

– Ora pois! Entendes que será caso para admirar, se quem descer dessas coisas
divinas às humanas fizer gestos disparatados e parecer muito ridículo, porque está
ofuscado e ainda não se habituou suficientemente às trevas ambientes, e foi força-
do a contender, em tribunais ou noutros lugares, acerca das sombras, e a disputar
sobre o assunto, sobre o que supõe ser a própria Justiça quem jamais a viu?

– Não é nada de admirar.

– Mas quem fosse inteligente – redargui – lembrar-se-ia de que as pertur-


bações visuais são duplas, e por dupla causa, da passagem da luz à sombra,
e da sombra à luz. Se compreendesse que o mesmo se passa com a alma,
quando visse alguma perturbada e incapaz de ver, não riria sem razão, mas
reparava se ela não estaria antes ofuscada por falta de hábito, por vir de uma
vida mais luminosa, ou se, por vir de uma maior ignorância a uma luz mais
brilhante, não estaria deslumbrada por reflexos demasiadamente refulgentes;
à primeira, deveria felicitar pelas suas condições e pelo seu gênero de vida;
da segunda, ter compaixão e, se quisesse troçar dela, seria menos risível essa
zombaria do que se se aplicasse àquela que descia do mundo luminoso.

– Falas com exatidão – afirmou.

– Temos então – continuei eu – de pensar o seguinte sobre essa matéria,


se é verdade o que dissemos: a educação não é o que alguns apregoam que
ela é. Dizem eles que arranjam a introduzir ciência numa alma em que ela não
existe, como se introduzissem a vista em olhos cegos.

– Dizem, realmente.

– A presente discussão indica a existência dessa faculdade na alma e de


um órgão pelo qual aprende; como um olho que não fosse possível voltar
das trevas para a luz, senão juntamente com todo o corpo, do mesmo modo
esse órgão deve ser desviado, juntamente com a alma toda, das coisas que
se alteram, até ser capaz de suportar a contemplação do Ser e da parte mais
brilhante do Ser. A isso chamamos o bem. Ou não?

– Chamamos.

– A educação seria, por conseguinte, a arte desse desejo, a maneira mais


fácil e mais eficaz de fazer dar a volta a esse órgão, não a de o fazer obter a
visão, pois já a tem, mas, uma vez que ele não está na posição correta e não
olha para onde deve, dar-lhe os meios para isso.

115
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão

– Acho que sim.

– Por conseguinte, as outras qualidades chamadas da alma podem muito


bem aproximar-se das do corpo; com efeito, se não existiram previamente,
podem criar-se depois pelo hábito e pela prática. Mas a faculdade de pensar
é, ao que parece, de um caráter mais divino, do que tudo o mais; nunca perde
a força e, conforme a volta que lhe derem, pode tornar-se vantajosa e útil, ou
inútil e prejudicial. Ou ainda não te apercebeste como a deplorável alma dos
chamados perversos, mas que na verdade são espertos, tem um olhar pene-
trante e distingue claramente os objetos para os quais se volta, uma vez que
não tem uma vista fraca, mas é forçado a estar a serviço do mal, de maneira
que, quanto mais aguda for a sua visão, maior é o mal que pratica?

– Absolutamente.

(PLATÃO. A República. 9. ed. Introdução, tradução e notas de: PEREIRA, Maria Helena da
Rocha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. p. 317-323.)

Atividades de aplicação
1. Considerando o que foi estudado sobre as concepções da filosofia so-
crática e da sua valorização do conceito da alma humana, a busca por
conhecê-la e por torná-la realidade efetiva, discorra sobre a importân-
cia do autoconhecimento para o exercício da liderança funcional na
contemporaneidade.

2. Conforme foi visto, Sócrates propunha-se não a ensinar aos seus pares,
mas sim a incentivá-los a encontrar um conhecimento que o pensador
entendia já ser existente, porém ignorado. Desse modo, utilizava-se da
ironia como modo de levar o interlocutor a compreender seu estado de
ignorância e, caso optasse, se dispor a buscar conhecer qual é a episte-
me, a verdade relacionada àquele fato em discussão. Pergunta-se, qual
a importância desse recurso na vivência empresarial, especialmente em
relação à formação de um corpo de colaboradores que torne possível o
desenvolvimento de todo o grupo?

3. Platão em sua República propôs-se a, muito mais do que tratar sobre a


melhor forma de se organizar uma sociedade, discorrer sobre o modo
pelo qual o homem, vivendo em sociedade, poderia desenvolver-se e

116
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão

alcançar sua excelência. Transpondo tal concepção à atualidade, qual


a importância de um modelo de formação, especialmente de uma for-
mação humanista?

4. Entre as principais virtudes retratadas por Platão encontra-se a tempe-


rança, a qual refere-se à disposição de autocontrole dos impulsos e das
pulsões do indivíduo, o controle das paixões humanas. Qual a importân-
cia do cultivo dessa virtude dentro de uma organização empresarial?

5. Em A República, Platão expõe sua clássica concepção de Justiça, que


trata-se de “cada um fazer o que sabe fazer da melhor maneira”. Qual a
relação entre essa concepção de Justiça e a administração de pessoas
dentro de uma empresa?

Gabarito
1. Trata-se de questão essencial ao indivíduo que se propõe a ser um
protagonista responsável a busca por conhecer-se e, através desse
processo, tanto encontrar o local onde essa pessoa exercerá do me-
lhor modo para si e para os demais sua liderança, assim como saberá
identificar e evitar situações de vivência que são muito mais ligadas à
sua formação do que um problema dentro da organização. Tal como
os clássicos diziam, é essencial um processo de autoconhecimento e
de cuidado com a inteligência para tornar-se um líder vencedor.

2. A ironia, tal como já se falou sobre a comédia, é um modo de se retra-


tar a realidade como ela é à outra pessoa, sem que isso pareça agres-
sivo àquela pessoa, incentivando-a a refletir por si própria a validade
dessas suas concepções, evitando-se, assim, conflitos desnecessários
dentro da organização, assim como, sendo uma ótima ferramenta para
se formar os colaboradores.

3. É de essencial importância, posto que, conforme já refletido anterior-


mente, a maior parte dos problemas vividos pelo indivíduo, para não
se dizer todos, possui uma profunda relação com o universo psicológi-
co dele. Desse modo, faz-se necessário formar aqueles que virão a tra-
balhar junto do líder, tanto quanto o líder deve formar-se e capacitar-
-se para, de fato, tornar-se uma liderança que gere desenvolvimento
e resultados.

117
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão

4. Conforme tratou-se no texto, é essencial um tipo de controle e sabe-


doria no cultivo das relações no trabalho, especialmente na questão
afetiva, de modo que uma situação mal resolvida dentro desse âmbito
pode gerar profundos prejuízos à organização como um todo, sendo
necessário, ao mínimo, que todo o corpo de líderes seja formado a sa-
ber lidar com tais questões.

5. A concepção platônica de Justiça pressupõe justamente o exercício


profissional adequado tanto ao indivíduo, enquanto sua individuali-
dade, quanto em relação à empresa, de modo que cada vez mais des-
taca-se a necessidade de o líder saber ter o tipo de inteligência a iden-
tificar qual o tipo de estruturação de uma pessoa, ou de um grupo, um
setor, de modo que este será mais produtivo. Essa realização, mais do
que aumentar a produtividade, significará um espaço de maior sani-
dade, concentração, desenvolvimento àquele grupo, tratando-se de
uma atitude de justiça com o próprio trabalhador dentro da empresa.

Referências
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Borges; SOUSA, Francisco de; PATRÍCIO, Manuel. Lisboa: Presença, 1999. 2 v.

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reito. p. 91-92.

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ción de: MORA, Juan Manuel García de la. Barcelona: Ariel Filosofia, 1994. 1 v. p.
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4. ed. Tradução, introdução e notas de: SANTOS, José Trindade. Lisboa: Casa da
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118
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão

______. Górgias. 4. ed. Introdução, tradução do grego e notas de: PULQUÉRIO,


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______. A República. 9. ed. Introdução, tradução e notas de: PEREIRA, Maria Helena
da Rocha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

______. Apologia de Sócrates. In: ______. Apologia de Sócrates. Críton. p. 85 - 86.

______. Críton. In: ______. Apologia de Sócrates. Críton.

REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. I: Das origens a Sócrates. 4. ed.


Tradução de: PERINE, Marcelo. São Paulo: Loyola, 2002. 1 v.

REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. II: Platão e Aristóteles. p. 246.

119
Justiça em Aristóteles

Introdução
Seguindo o processo de análise da fundamentação do conceito de Justiça
na Grécia Clássica, chega-se ao momento de tratar sobre o maior expoente
do pensamento grego, representado pelo filósofo Aristóteles de Estagira1. 1
Aristóteles nasceu em
Estagira, na região da Ma-
cedônia, em 384/383 a.C.
Aristóteles distingue as ciências em três grandes ramos: as ciências teoréticas, Foi para Atenas aperfeiço-
ar sua formação, estudan-
que buscam o saber por si mesmo; as ciências práticas, que buscam o saber para do na Academia de Platão
por cerca de 20 anos. Após,
alcançar através dele a perfeição moral, e as ciências poiéticas ou produtivas, que fundou sua própria escola,
o Liceu. Com a morte de
buscam o saber em vista do fazer, da produção de determinados objetos.2 Alexandre Magno, retirou-
-se de Atenas, evitando
os movimentos contra os
macedônios que movi-
Aristóteles, contrariamente a Platão, seu mestre, trabalha ambas as ques- mentavam a cidade, indo
para a Calcídia. Morreu
tões separadamente, mesmo que em seu pensamento ambas ainda possu- em 322 a.C, poucos meses
após exilar-se. (REALE,
am uma íntima relação. Ao separá-las, o filósofo evidencia que sua proposta Giovanni. História da Fi-
losofia Antiga. Tradução
é tratar sobre as duas ciências, tendo em vista o todo, mas também conside- de: VAZ, Henrique Cláudio
de Lima; PERINE, Marcelo.
rando a metodologia adequada a cada parte nessa relação. São Paulo: Loyola, 1994. p.
316-317. 2 v.)
2
Tem-se, assim, a primeira lição acerca do pensamento aristotélico: não há REALE, Giovanni. Histó-
ria da Filosofia Antiga.
como se tratar das questões da sociedade, do direito, dos problemas das relações 2v. p. 335.

entre os indivíduos, sem antes se ter uma ideia da vida humana e qual é sua fina-
lidade. Necessita-se primeiro entender a vida humana e para onde ela natu-
ralmente tende, para depois falar na reunião dos seres humanos em organi-
zações sociais, assim como na criação do Estado como regulador das relações
humanas. Essa importante passagem deixada por Aristóteles, fruto do espírito
holístico do humanismo grego de sua época, acabou sendo perdida em meio
ao desenvolvimento científico, a partir do início da modernidade. Na tentativa
de superar a concepção aristotélica de ciência, a segmentação das áreas do co-
nhecimento atingiu tal ponto que, na atualidade, acaba-se por não visualizar o
liame existente entre a realidade do indivíduo enquanto pessoa e sua relação
com o corpo social. Chegou-se, assim, a extremos como a corrente da Socio-
logia, que entende que a sociedade é de tal modo tão preponderante sobre o
indivíduo, que este acaba sendo mero produto daquela. Segundo Aristóteles,
a sociedade, de fato, exerce grande influência sobre o indivíduo. Porém, ele
nunca perde a sua responsabilidade, a sua vontade que aceita tal situação e
submete-se ao poderio do meio em que se encontra.
Justiça em Aristóteles

Ao se investigar o pensamento aristotélico, estar-se-á tratando justamen-


te do pilar sobre o qual foi fundada toda a racionalidade ocidental. Os estu-
dos do filósofo culminaram com o nascimento ou a sistematização das mais
variadas áreas do conhecimento humano. No âmbito da Filosofia Política e
da Filosofia Jurídica, as concepções de Aristóteles são o suporte pelo qual se
constituiu toda a noção de Bem e de Justiça.

Para se compreender a posição da Justiça no pensamento aristotélico, há


de se considerar a ordem do mundo no seu sistema filosófico, retratada prin-
cipalmente em sua obra Metafísica. Entre as questões que o autor se dedica
a resolver, há que se considerar a concepção das quatro causas que regem
todos os fenômenos no mundo. Estas são a causa material, a causa formal,
a causa eficiente e a causa final. A causa material é a matéria e o substrato, a
parte que constitui o corpo; formal é sua substância e a essência, aquilo que
lhe é o princípio do movimento; a causa eficiente versa sobre o princípio
do movimento; por fim, a causa final representa o thelos, a finalidade para
aquele corpo e o seu bem. Assim, a causa final é a mais importante, pois é a
3
ARISTÓTELES. Metafísi- primeira a ser lançada e a última a ser alcançada. 3
ca. Tradução de Marcelo
Perine. São Paulo: Loyola,
2002.2v. p. 15. Todas as questões do pensamento aristotélico são vinculadas a essa con-
cepção, de modo que qualquer ação e qualquer conhecimento no mundo
devem ser buscados tendo como objetivo uma ideia de finalidade. Postos
esses elementos, pode-se partir para a análise das obras relativas à Ética e
à Política de Aristóteles, procurando-se nessa pesquisa identificar a funda-
mentação da ideia de Justiça neste pensador.

Justiça e Ética
Para tratar das questões da Ética, utilizar-se-á o mais célebre tratado escri-
to por Aristóteles sobre a matéria, Ética a Nicômaco (Etica Nicomachea), obra
que é um verdadeiro compêndio sobre toda a existência humana. Nos dez
livros da obra são analisadas as principais questões nas quais é necessário
4
ARISTÓTELES. Ética a atentar quando propõe-se a viver bem.4
Nicômacos. Tradução do
grego, introdução e notas
de Mário da Gama Kury. Sobre o pensamento de Aristóteles, não há como se falar na estrutura-
2ed. Brasília: UnB, 1992.
p. 23. ção de uma sociedade sem ter firmada uma profunda concepção do ideal
da vida humana. A ação humana deve ter necessariamente como objetivo
um fim maior, um fim que é buscado em todas as coisas. Assim, considera
5
o filósofo que se para cada ação há alguma finalidade que desejamos por si
ARISTÓTELES. Ética a
Nicômacos. p. 17. mesma, evidentemente tal finalidade deve ser o bem e o melhor dos bens.5
122
Justiça em Aristóteles

Essa espécie de bem é a felicidade, pois todos a buscam, mesmo que di-
virjam acerca da concepção de felicidade que buscam. A felicidade é comu-
mente classificada em três diversos modos, como a vida prazerosa, a vida
política, ou a vida contemplativa. Aos primeiros, a felicidade confunde-se
com uma vida agradável e com a honra, no reconhecimento da nobreza do
caráter, enquanto que o verdadeiro ideal de conduta é a vida contemplativa,
que é o modelo de vida baseado nas virtudes, no qual o homem pode con-
templar a verdade e nisso ter o prazer em si próprio, sendo, por tal motivo, a
vida mais feliz.6 6
ARISTÓTELES. Ética a Ni-
cômacos. p. 201-203

Alcançado esse entendimento, surge a necessidade de considerar o


modo de se alcançar essa finalidade, como tornar-se, de fato, feliz. Essa pas-
sagem somente é feita através das virtudes. Demonstra-se assim que a feli-
cidade aristotélica terminantemente não é relacionada a um estado no qual
se alcança e se permanece, mas é contínua, vive-se feliz enquanto age-se e
raciocina-se bem.

A felicidade necessita não somente das virtudes, mas também dos bens
exteriores, pois é impossível praticar ações nobres sem os devidos meios.
Portanto, ao se falar em Ética, trataremos não somente dessas disposições de
formação humana, mas também daqueles bens externos que devemos obter
para que possamos viver bem. Nesse sentido consideram-se questões como
a amizade, a riqueza e poder político na obra. Conclui-se, assim, que felizes
são aqueles que agem em conformidade com a virtude perfeita e estão sufi- 7
ARISTÓTELES. Ética a
cientemente providos de bens exteriores, entendendo-os como tudo o que Nicômaco. p. 30
8
REALE, Giovanni. Histó-
é externo a nós e que nos auxilia em nosso desenvolvimento.7 ria da Filosofia Antiga.
2v. p. 414.

As virtudes podem ser divididas em duas categorias: éticas e dianoéticas, 9


Acerca do hábito, diz
também chamadas de morais e intelectuais. As primeiras referem-se às ações, Aristóteles na Arte Retóri-
ca: “Os hábitos são igual-
mente agradáveis, porque
paixões e emoções, por isso chamadas de éticas.8 As virtudes intelectuais, o habitual é já como que
uma segunda natureza.
por outro lado, referem-se às disposições de espírito louváveis. Para se viver O hábito assemelha-se
de algum modo à natu-
bem não basta somente saber agir adequadamente, o caminho de evolução reza: ‘muitas vezes não
está longe de sempre’. A
humana pressupõe também o desenvolvimento intelectual. natureza tem por objeto
o que acontece sempre;
o hábito, o que acontece
As virtudes éticas são adquiridas através do hábito, através do seu reitera- muitas vezes”. (ARISTÓTE-
LES. Arte Retórica. 17ed.
do exercício deliberado. Não é à toa que Aristóteles chega a dizer que os há- Tradução de: CARVALHO,
Antônio Pinto de. Rio de
bitos são “uma segunda natureza”9, posto que são atalhos para nós. Porém, Janeiro: Ediouro, 2005.
p. 70.)
os hábitos podem ser tanto bons quanto ruins. Assim, deve-se saber cultivar 10
BITTAR, Eduardo C.B.
os bons hábitos e deixar de praticar aqueles que são ruins ou não funcio- Curso de Filosofia Aris-
totélica. Leitura e inter-
nais ao projeto ao qual o indivíduo se propõe. Conforme destaca Bittar, ética pretação do pensamen-
to aristotélico. Barueri:
(ethiké) já é um termo derivado exatamente de hábito (ethos).10 Manole, 2003. p. 1019.

123
Justiça em Aristóteles

Consoante ao exposto, na realidade atual é de extrema importância esse


11
ARISTÓTELES. Ética a tipo de cultivo da própria vida. Se a pessoa propõe-se a viver bem, construir
Nicômaco. p. 42.
uma boa carreira, ser reconhecida e ter a certeza de que tem posto o melhor
12
Para Aristóteles exis-
tem três tipos de alma. A de si naquilo que faz, e tem sido recompensada por isso, os bons hábitos são
alma vegetativa é a mais
comum das espécies, um ótimo atalho para que o indivíduo aprenda a como agir nas situações
trata-se da causa e o prin-
cípio do corpo vivente, é a que surgem diante de si.
alma geradora de um ser
semelhante àquele que a
possui; após tem-se a alma
sensitiva, suas faculdades
Porém, a simples previsão de que o critério para a conduta humana é a
são potências aptas para
captar o objeto sensível;
virtude não é suficiente para se clarificar o modo de agir virtuosamente. Para
a última é a alma racio-
nal, a qual capta a forma Aristóteles, o critério da conduta, a virtude, é o meio-termo, ou seja, é exa-
inteligível, possível de ser
conhecida e entendida, tamente a mediania entre o excesso e a falta do que é conveniente, tanto
somente possuída pelos
seres humanos. (ARISTÓ- nas ações quanto nas emoções.11 Desse modo, há que se considerar que se
TELES. De Anima. Prólo-
go, traducción y notas de: erra por muitos modos, porém age-se corretamente somente de um modo.
LLANOS, Alfredo. Buenos
Aires: Leviatan, 2003.) Como exemplo de virtudes, pode-se elencar a coragem, a temperança e a
13
Algumas traduções liberalidade.
tratam a sabedoria prática
como a virtude da pru-
dência. Giovanni Reale faz As virtudes intelectuais referem-se às disposições da alma (psyche)12. Essas
a distinção entre a sabe-
doria, no sentido de pru- virtudes, segundo Aristóteles, são adquiridas, em sua maioria, pelo estudo.
dência, e trata a sabedoria
filosófica como sapiência. O livro VI da Ética é dedicado inteiramente a tratar sobre essas formas de co-
(REALE, Giovanni. Histó-
ria da Filosofia Antiga. p.
417. 2v) .
nhecimento, as quais para o pensador são: a arte (techné); o conhecimento
14
científico (episteme); a sabedoria prática (phrónesis)13; a razão intuitiva (noûs);
BITTAR, Eduardo C. B.
Curso de Filosofia Aris- e a sabedoria filosófica (sophia).14 Próximo à sabedoria prática tem-se, ainda,
totélica. p. 1.065.
15 a sabedoria política e a sabedoria jurídica.15
ARISTÓTELES. Ética a
Nicômaco. p. 119,120.

16
Ademais, para Aristóteles a boa conduta pode ser identificada por inter-
Contudo isso não
isenta quem pratica tais médio da reta-razão, ou seja, a exatidão racional que torna capaz a identifica-
atos involuntários de sua
responsabilidade, dado ção e classificação do módulo ideal de se agir. Reforça-se, assim, a importân-
que a temperança é jus-
tamente a virtude que cia da formação intelectual do indivíduo para que este possa agir bem.
aquele que sabe controlar
suas paixões possui.

17
Dessa ideia de reta-razão, entramos em outra questão essencial para se
BITTAR, Eduardo C.B.
Curso de Filosofia Aris- entender o objeto da ética aristotélica, a questão da voluntariedade das
totélica. p. 1033.

18
ações humanas. A alma possui duas partes: uma parte racional e outra ir-
Conforme Philippe: “[...]
a virtude depende de nós, racional – esta última se refere às paixões humanas. Conforme dissemos, a
porque é fruto de ações
voluntárias, de escolhas virtude se relaciona com paixões e ações, porém somente àquelas voluntá-
que dependem de nós.
Mas o que é verdadeiro
da virtude, o é também
rias, àquelas relativas à alma racional. As involuntárias recebem perdão ou
do vício. Pois nos casos
em que depende de nós
às vezes inspiram compaixão.16 O ato racional, outrossim, é o ato deliberado
agir, também depende
de nós não agir”. (PHILI-
e, por conseguinte, constitui-se de uma opção consciente do sujeito tendo
PPE, Marie-Dominique.
Introdução à Filosofia de em vista um fim específico.17 Portanto, as virtudes, sendo disposições ideais
Aristóteles. Tradução de:
HIBON, Gabriel. São Paulo: da conduta humana, dependem da voluntariedade do indivíduo para serem
Paulus, 2002. p. 51.)
praticadas.18

124
Justiça em Aristóteles

Todos os seres humanos nascem já tendentes à felicidade, conforme dito, e


também ao conhecimento, conforme exposto na Metafísica19. Porém, dotado 19
“Todos os homens,
por natureza, tendem ao
dessa potência, dessa possibilidade, somente se a pessoa decidir agir de modo saber”. (ARISTÓTELES. Me-
tafísica. v. 2. p. 3.)
adequado é que poderá assim. Nisso tem-se, por conseguinte, a responsabili-
zação do indivíduo por como sua vida se encontra e por como deveria estar.

Através dessas considerações podemos partir para a análise de questões


mais específicas da Ética. A partir do livro III, Aristóteles passa a tratar das
virtudes em espécie, principiando pela coragem, que é a virtude daquele
que sabe agir quando é devido e não agir quando não é devido. E pela tem-
perança, que se refere ao controle deliberado das próprias paixões. O livro IV
trata especialmente da virtude da liberalidade, que é a capacidade do indi-
víduo saber ganhar, guardar e gastar dinheiro. A Ética, por se referir também
à capacidade de se adquirir bens que auxiliem na construção do indivíduo,
também considera a importância do dinheiro, critério de liberdade àquele
que pretende viver bem.

O livro V da obra é inteiramente dedicado a tratar da Justiça, virtude que é


considerada por Aristóteles como a mais importante. Ciente de que a Justiça
é uma virtude, e que as virtudes são os meios-termos, o filósofo propõe-se,
então, a identificar qual espécie de meio-termo é a Justiça.

Para iniciar essa discussão, Aristóteles fixa um conceito de homem justo,


contrapondo-o ao homem injusto. Nesse raciocínio, diz Aristóteles que o
homem justo é aquele que é conforme a lei e correto, ao passo que o homem
injusto é exatamente o contrário, ilegal e iníquo.20 20
ARISTÓTELES. Ética a
Nicômacos. p. 92.

Dessa concepção, Aristóteles passa a tratar da Justiça Legal, consideran-


do a importância das leis, posto que estas almejam a vantagem de todos,
tendo em vista as diferenças entre as classes que habitam na cidade. A lei
justa procura preservar a felicidade e os elementos que a compõem em uma
sociedade em relação a todos. Disso, conclui Aristóteles que a Justiça é, de
fato, a virtude completa, não é uma virtude absoluta, mas, por ser praticada
também em relação ao próximo, é superior às demais.21 21
ARISTÓTELES. Ética a
Nicômaco. p. 93.

Portanto, pode-se considerar a Justiça como a maior das virtudes justa-


mente pelo fato de que por intermédio dela pode-se beneficiar às pessoas que
vivem conosco. Assim, o pior dos homens é aquele que exerce sua deficiência
moral em relação a si mesmo e aos demais, ao passo que o melhor dos homens,
contrariamente, faz da sua virtude motivo não só de construção pessoal, mas
com seu desenvolvimento individual auxilia a todos que o circundam.

125
Justiça em Aristóteles

O indivíduo que escolhe conhecer-se, construir-se, desenvolver-se, tendo


como base a ação virtuosa, será aquele que estará apto a auxiliar os demais,
posto que sua vida é evidência do seu mérito, da capacidade que possui de
agir corretamente. Contrariamente, aquele que ainda não possui tal senso,
quando busca preocupar-se com os demais, sem haver se construído ade-
quadamente, corre o risco de, ao mesmo tempo em que não trabalha fa-
voravelmente ao seu desenvolvimento, prejudicar o outro por ainda estar
incapacitado para auxiliá-lo.

Considerada a supremacia da Justiça ante as demais virtudes, e que esta


é o ponto de equidade entre o excesso e a falta, Aristóteles divide-a em duas
categorias, das quais o meio-termo da Justiça operará de maneira diversa.
Uma se manifesta nas distribuições em geral, por exemplo, na distribuição
de funções ou de dinheiro, é a justiça distributiva. A outra desempenha uma
função corretiva, por isso é chamada de justiça corretiva. Esta se subdivide
na parte que trata das transações voluntárias, onde ambas as partes agem
voluntariamente, representadas especialmente pelas relações contratuais.
Já as transações involuntárias referem-se à superposição de uma vontade
sobre a outra, algumas dessas são clandestinas e outras violentas. Clandesti-
nas quando é agredido o patrimônio ou o direito de outrem, como quando
ocorre o furto, e violentas quando essa agressão atinge a própria integridade
22
ARISTÓTELES. Ética a
da pessoa, como nos casos de agressão, sequestro e homicídio.22
Nicômaco. p. 95.

A Justiça considera uma relação entre dois elementos ao mínimo, sendo o


justo o ponto equânime entre esses pontos, não obrigatoriamente a metade,
mas sim a devida proporcionalidade. Essa igualdade será observada de dois
modos diversos, relativamente àquelas espécies de Justiça acima elencadas.
O justo, na justiça distributiva, é uma proporção que possui como base o
mérito, segue uma proporção geométrica, sendo essa forma também chama-
23
ARISTÓTELES. Ética a
da de justiça geométrica.23 Marcantemente as questões de Direito Público
Nicômaco. p. 96.
devem ser praticadas tendo-se em vista essa modalidade de Justiça.24A outra
24
ROSS, Sir David. Aristo- espécie, a justiça corretiva, por sua vez, é a busca pela retomada da propor-
tle. p. 217.
ção que foi agredida. Essa Justiça refere-se à situação de desigualdade entre
as partes que deve ser reposta, pautando-se, assim, em uma proporção arit-
mética. Nesse sentido, agredida a lei, o juiz busca reaver a relação de desi-
gualdade ocorrida, com a retribuição pecuniária ou com a aplicação de uma
pena. Assim explica Aristóteles que o juiz restabelece a igualdade, como se
com uma linha dividida em dois segmentos iguais este subtraísse a parte
que faz com que o segmento maior exceda a metade, acrescentando-o ao
segmento maior. O igual é o meio-termo entre a linha maior e a menor, de
126
Justiça em Aristóteles

acordo com essa proporção aritmética. “Esta é a origem da palavra díkaion


(=justo); ela quer dizer dikha (=dividida ao meio), como se se devesse enten-
der esta última palavra no sentido de díkaion; e um dikastés (=juiz) é aquele
que divide ao meio (dikhastés)”.25 25
ARISTÓTELES. Ética a
Nicômaco. p. 98.

Conforme nota-se, essa última concepção de Justiça refere-se ao aspecto


judicial da ideia de Justiça. No momento em que a dimensão ética não basta,
que a conjugação entre os desígnios de ambos os indivíduos passa a ser des-
proporcional e ambas as partes não conseguem chegar a um consenso que
restabeleça a relação original, surge a necessidade de se levar essa questão
ao juiz, para que este possa exercer a jurisdição26, retornando a proporção 26
Do latim iurisdictio,
ou seja, dizer o direito,
originalmente havida entre as partes. dizer qual parte possui o
direito.

Elemento essencial para se procurar um órgão judicial é a necessidade, o


que se chama atualmente de pretensão resistida. Ou seja, somente quando
as partes não conseguem obter um consenso é que surge a necessidade
de se buscar um terceiro que possa retomar a igualdade. Destaca-se ainda
que, atualmente, ante a morosidade do Poder Judiciário para julgar as ques-
tões que lhes são apresentadas, tem-se recorrido a meios alternativos de se
buscar esse retorno à devida proporção, tais como os meios de mediação e
também os tribunais arbitrais.

Finalizando as questões da Justiça, destaca-se a concepção de equidade


para Aristóteles. O equitativo é uma correção da Justiça Legal. Quando a lei
vigente não prevê uma determinada situação, ou a trata de maneira muito
limitada, para que se possa realizar a Justiça torna-se necessário recorrer ao
princípio de equidade, corrigindo-se a falta presente na legislação, “dizendo
o que o próprio legislador diria se estivesse presente, e o que teria incluído
em sua lei se houvesse previsto o caso em questão”27. 27
ARISTÓTELES. Ética a
Nicômaco. p. 109.

Para o exercício de sua função, o juiz tem como uma de suas prerrogativas
a possibilidade de recorrer a juízos de equidade, quando a situação o pedir,
pela ausência de previsão legal ou pela limitação da lei. Na atualidade, no
Estado brasileiro, nenhum juiz pode furtar-se de julgar uma situação que lhe
é provocada, se tiverem cumpridos os pressupostos para a recepção do pro-
cesso. Nesse sentido, o artigo 4.º da Lei de Introdução ao Código Civil dispõe 28
BRASIL. Decreto-Lei nº.
que: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, 4.657, de 4 de setembro
de 1942. Lei de Introdu-
os costumes e os princípios gerais de direito”28. Demonstra-se, assim, que na ção ao Código Civil Bra-
sileiro. Disponível em: <
busca pela realização da Justiça, o ordenamento jurídico pátrio recepciona a http://www.planalto.gov.
br/CCIVIL/Decreto-Lei/
concepção aristotélica de equidade. Del4657.htm>. Acesso em
17 out 2009.

127
Justiça em Aristóteles

Ademais, em uma realidade como a atual, onde as concepções da so-


ciedade se alteram muito rapidamente, cada vez mais novas situações vêm
sendo apresentadas aos juízes e tribunais, de modo que é essencial ao jurista
uma profunda formação técnica e existencial para que possa operar um juízo
equânime, justo, cumprindo a sua finalidade na ordem social. Nesse sentido,
as atuais campanhas por maior celeridade nos órgãos judiciários, apesar de
serem importantes, carregam consigo um alto risco, o da perda do profundo
discernimento da realidade a que se busca aplicar o Direito, por abrir-se mão
da precisão da apuração dos fatos em favor da duração menor dos proces-
sos. É importante que se reorganize a lógica do Poder Judiciário, de modo
que se possa atender de maneira mais adequada aos anseios da sociedade
brasileira, porém, o modo mais adequado para operar essa passagem não é
somente através da simplificação dos ritos processuais. Não se pode perder
o valor da formação do jurista. Este, sendo uma liderança social, também
precisa de uma profunda formação ética para que possa auxiliar a sociedade
no seu desenvolvimento.

Por fim, há que se considerar também, relativamente às concepções de


Justiça, a importância da amizade na sua construção, posto que, conforme
manifesta o estagirita, “considera-se que a mais autêntica forma de justiça é
29
ARISTÓTELES. Ética a uma disposição amistosa”29.
Nicômaco. p. 154.

As questões relativas à amizade são tratadas nos livros VIII e IX da Etica


Nicomachea. O fato de Aristóteles dedicar dois livros da obra, dividida em
10, demonstra a importância das relações interpessoais para a construção
do indivíduo e para que este possa viver em felicidade. A amizade é divi-
dida em três espécies: uma pautada no prazer, outra no interesse e, ainda,
o modelo ideal de amizade. As duas primeiras formas são menos válidas,
apesar de possuírem sua própria utilidade. Porém, só a terceira forma de
amizade é autêntica, somente nela o homem ama ao outro por aquilo que
ele é e auxilia-o a desenvolver-se, a realizar suas potencialidades. Nessa si-
tuação, a amizade é ligada à virtude, sendo a verdadeira forma de amizade
o laço que o homem virtuoso estabelece com outro homem virtuoso por
30
REALE, Giovanni. His-
tória da Filosofia Antiga.
causa da própria virtude.30
2v. p. 424.
A amizade é essencial ao desenvolvimento do homem virtuoso e na ma-
nutenção deste no devido foco. E, conforme tratamos acima, se a Justiça é a
virtude porque pode ser praticada em relação ao indivíduo e ao próximo, a
amizade é a relação pela qual um indivíduo busca agir com justiça em rela-
ção ao outro justamente por buscar o melhor de seu amigo.

128
Justiça em Aristóteles

Essas são as principais considerações a serem feitas na relação entre a Ética


e a Justiça. Postas essas considerações, tratar-se-á da política aristotélica.

Justiça na polis: a Política


Compreendidos os aspectos da Ética, pode-se partir para a análise da fi-
nalidade da existência humana e da Justiça no âmbito da cidade. Essa ne-
cessidade encontra-se, inclusive, expressa na própria Ética a Nicômaco, no
final do seu livro X, onde o filósofo demonstra a importância do preparo exis-
tencial e do conhecimento para que se possa exercer de fato a liderança de
uma sociedade.31 O homem verdadeiramente político é aquele que estudou 31
ARISTÓTELES. Ética a
a virtude acima de todas as coisas, posto que ele deseja tornar os cidadãos Nicômacos. p. 209.

homens bons e obedientes às leis.

Destaca-se que o termo Política em Aristóteles refere-se a todas as ques-


tões relativas à vida em sociedade. Assim, para o estagirita a Política possui
um conceito mais amplo do que o atualmente consagrado. Sempre que
nos referirmos ao termo Política estaremos baseados nessa concepção
aristotélica.

Para analisar as questões relativas à organização do Estado, Aristóteles


organiza sua Política, composta por oito livros, de modo a tratar no primei-
ro livro acerca das questões da família, embrião da organização social. No
segundo capítulo, reflete sobre as doutrinas dos filósofos predecessores, as
constituições já existentes e as obras dos legisladores. Após essa reflexão,
parte-se para a explicitação de sua teoria política nos livros III, IV e VI. No livro
V trata-se da teoria das revoluções que alteram a ordem dos governos. O
livro VII faz uma relação entre a vida na cidade e o ideal de vida ética, assim
como trata de questões importantes a se considerar quando se constitui
uma cidade, e o livro VIII, por fim, trata da educação dos jovens e o seu pre-
paro para a vida política.

Aristóteles, contrariamente a Platão, constrói sua Política tendo como


base a realidade histórica e também toda a construção teórica feita acerca
da vida em sociedade. Assim, ao invés de idealizar um Estado perfeito, pro-
põe-se a classificar os modelos de governos existentes e determinar de que
forma estes poderiam ser bem organizados para que, seja qual o modelo
de governo adotado, este possibilite aos seus indivíduos alcançar o ideal de
felicidade. Os governos são analisados de modo que todos estes possam ser
exercidos em sua plenitude.
129
Justiça em Aristóteles

No início da Política, Aristóteles já declara que o homem é um animal po-


lítico, portanto, o ser humano já nasce sociável, tendente a essa forma de
convívio por ser muito mais fácil a este viver bem e realizar-se dentro de uma
estrutura social, onde cada um exerce sua determinada função e todos se
auxiliam para que se tenha o desenvolvimento almejado. O ser humano so-
mente não estaria nesta condição em duas possibilidades: somente se fosse
32
ARISTÓTELES. Política. uma besta, ou um ser sobre-humano, um deus. 32
Edição Bilíngue. Tradu-
ção de António Campelo
Amaral e Carlos de Carva- Primeiramente, Aristóteles reflete sobre a estrutura familiar, por ser esta já
lho Gomes. Lisboa: Vega,
1998. p. 55. uma forma de organização política. Acerca da família o filósofo discorre es-
pecialmente sobre quatro questões: as relações entre marido e mulher, pais
e filhos, senhor e servos, e, ainda, sobre a ciência econômica e a arte de obter
33
REALE, Giovanni. His-
tória da Filosofia Antiga.
riquezas.33
2v. p. 434.
O livro III da obra em questão é dedicado à definição do conceito de
cidade e de cidadão, assim como à análise da finalidade da vida em socieda-
de e das formas pelas quais as sociedades organizam seus governos. Nesse
escopo, inicia pela investigação do conceito de cidadão, o qual, consideran-
do que cada forma de governo terá sua própria definição e a limitação da ex-
tensão aos demais, verifica que, essencialmente, é aquele que pode exercer
as funções de juiz ou magistrado, entendendo-se por estes os funcionários
34
BITTAR, Eduardo C.B.
Curso de Filosofia Aris-
da administração da polis, tal como os agentes públicos na atualidade.34
totélica. p. 1.213.
Dado o conceito de cidadão, surge a questão: as virtudes do homem de
bem são as mesmas que as do bom cidadão? Na apreciação dessa questão
Aristóteles considera que, como a comunidade é o regime político, a virtu-
de do cidadão deve necessariamente ser relativa ao regime ao qual se está
submetido, inexistindo, portanto, uma única virtude do bom cidadão. Por
outro lado, o homem bom é chamado assim por agir em conformidade com
a Ética. Desse modo, torna-se claro que é possível ser um bom cidadão até
35
ARISTÓTELES. Política. mesmo sem possuir a virtude da qualidade do homem de bem.35 Esses con-
p. 197.
ceitos somente seriam os mesmos no Estado perfeito, onde as virtudes dos
cidadãos refletiriam os ditames da boa conduta humana.

Apesar disso, existem determinadas virtudes que são essenciais ao exercí-


cio da cidadania; especialmente no tocante ao comando, é essencial que se
possua a prudência ou sabedoria prática. Àqueles que são governados, além
da capacidade de reconhecer a autoridade dos homens livres, importa-se na
36
sabedoria ao aconselhar o seu senhor, sendo também esta parte da arte de
ARISTÓTELES. Política.
p. 201. saber bem servir a um líder.36

130
Justiça em Aristóteles

Assim, apesar da íntima relação entre a Ética e a Política, cada uma dessas
ciências disciplina o indivíduo de maneira diversa. Enquanto a Ética orienta
o indivíduo para que este saiba conduzir bem sua vida e, consequentemen-
te, vir a realizar-se, a Política busca preparar os cidadãos para que exerçam
devidamente suas funções dentro da estrutura do Estado. Apesar de ambas
as virtudes não serem as mesmas, não se está negando por intermédio dessa
afirmação a conduta Ética, mas sim consignando-se que não bastará sim-
plesmente a virtude para que o Estado possa estar organizado e venha a
gerir bem a vida de seus cidadãos.

Sobre esse tema, refletindo-se acerca da atualidade, há de se considerar


essa cisão. Considerando-se que a vida política não se restringe somente
ao Estado, mas também a qualquer estrutura organizacional, há de se ter
em vista essa duplicidade de valores quando o indivíduo conduzir sua pró-
pria vida. Necessita-se que ele saiba ser um bom cidadão, conheça as regras
que deve cumprir e saiba agir do modo como se espera. Porém, isso não
basta para que esse indivíduo venha a realizar seus desígnios mais profun-
dos, o que somente poderá ser alcançado na situação em que esse indivíduo
também se atente à sua conduta e ao seu desenvolvimento. Se este apenas
se preocupasse com a sua construção ética, em detrimento da estruturação
na organização em que se encontra, certamente acabaria dispensado de sua
função ou preterido sem seu espaço, por não trabalhar em favor da manu-
tenção ou do desenvolvimento dessa estrutura externa.

A finalidade do Estado, tal como a Ética, é a felicidade na vida. As pessoas


vivem em conjunto e criam instituições com esse intuito. Porém, a Ciência
Política é maior do que a Ética, apesar de o bem (agathos) do indivíduo e do
Estado serem da mesma natureza, o bem do Estado é mais importante, mais
belo, mais perfeito e mais divino, posto que ele possibilita a todo o conjunto
de individualidades o alcance de suas finalidades.

Logo em seguida Aristóteles passa a analisar as formas de governo,


também chamadas pelo filósofo de constituições, as quais são divididas em
três modelos ideais e três modelos corrompidos. Os governos ideais exer-
cem seu poder em favor da sociedade, os modelos corrompidos apenas ao
interesse dos governantes. Essa divisão tríplice considera, ainda, o número
de governantes. O governo de um só é chamado de monarquia, se opera
em favor da sociedade, e de tirania, se visa somente ao poderio do próprio
37
Daí seu nome: aristos
governante. O governo será aristocrático se um grupo de poucas pessoas, significa o melhor, en-
quanto cratos significa
composto somente pelos melhores, governa37. Sua degeneração é a oligar- poder.

131
Justiça em Aristóteles

quia, que é o governo dos mais ricos. Por fim, tem-se o regime ao qual se dá
o nome de regime constitucional, que é o governo de um grande número
de indivíduos e apresenta características atinentes à oligarquia e à democra-
cia, sendo um termo intermediário entre estas. Sua corrupção seria a própria
democracia, entendida como o governo dos pobres e tendo em vista seus
38
ARISTÓTELES. Política. próprios interesses.38
p. 38.

Na sua apreciação dessas formas de governo, Aristóteles não somente as


trata na perspectiva de formas ideais ou corrompidas, mas também analisan-
do o modo pelo qual cada forma de governo poderia ser exercida de manei-
ra mais próxima à excelência, classificando as subespécies de constituições
que eram formadas dentro de cada uma dessas categorias. Ademais, apesar
de demonstrar preferência pelo regime dos melhores, expõe que o governo
ideal deve ser relativo à própria cidade, de modo que os cidadãos mais des-
tacados possam dirigi-la. Se houver apenas um que é superior a todos, reco-
mendável seria constituir-se um governo monárquico, caso houvesse mais
de um homem valoroso, preferir-se-ia uma aristocracia ou um governo cons-
titucional. A forma de governo levará em conta, ainda, as questões relativas à
geografia, ao clima e à população em que se encontra. Aristóteles considera
ainda que a educação e os hábitos que tornam um homem virtuoso serão
geralmente os mesmos que fazem o político ou rei, razão pela qual reflete
sobre a educação na cidade no livro VIII.

Tratando sobre a quem se deveria dar a soberania, aos governantes ou


às leis, Aristóteles entende ser melhor que a lei governe. Os homens se cor-
39
ARISTÓTELES. Política. rompem e entregam-se às paixões, já as leis são “a razão liberta do desejo”39.
p. 259.
Desse modo, deve-se buscar formular as leis de modo que regulem as situa-
ções humanas, sem ter de se depender do ânimo do governante para tanto.

A justiça política é em parte natural e em parte legal, ou seja, parte relati-


va ao direito natural, parte ao direito positivo. Naturais são “[...] as coisas que
em todos os lugares têm a mesma força e não dependem de as aceitarmos
40
ARISTÓTELES. Ética a ou não”40, e legal é “[...] aquilo que a princípio pode ser determinado indife-
Nicômaco. p. 103.
rentemente de uma maneira ou de outra, mas depois de determinado já não
41
ARISTÓTELES. Ética a é indiferente”.41
Nicômaco. p. 103.

Dentro dessa estrutura, Aristóteles discrimina a existência de três partes


em todos os governos. Uma dessas partes relaciona-se com a deliberação
sobre assuntos que dizem respeito à comunidade. A segunda refere-se às
magistraturas. A terceira, ao exercício da Justiça. Apesar de serem divididas
essas três partes, na filosofia Aristotélica não há uma profunda ruptura entre
132
Justiça em Aristóteles

essas funções, o que somente será feito mais tarde, baseando-se nas ideias
do filósofo francês Montesquieu.

Feitas essas considerações, concluindo-se este ponto, há que se conside-


rar a relação entre Justiça e Igualdade. A Justiça é um meio-termo dentro da
cidade que considera os iguais como iguais e os desiguais como desiguais.
É desse modo que o princípio de justiça distributiva poderá ser realizado no
âmbito do Estado.

Não há como se buscar uma igualdade simples em uma estrutura gover-


namental; esse princípio fulmina completamente a responsabilidade do in-
divíduo para com sua vida e, além disso, acaba sendo injusto para uma das
partes. Por isso, para se querer tratar todos como iguais, deve-se trabalhar
primeiramente na extinção das desigualdades.

Por fim, ao refletir sobre o indivíduo, ou indivíduos que estão em um nível


muito superior àquele dos demais, tão preeminentes em virtude que nem a
virtude nem a capacidade política dos outros possa ser comparada às suas,
conclui Aristóteles:
[...] um tal indivíduo ou indivíduos não devem ser tratados como simples partes da cidade.
Tratá-los-emos injustamente se apenas os acharmos dignos de direitos iguais, sendo eles
tão desiguais em virtude e capacidade política. Um indivíduo assim torna-se como um
deus entre os homens. Por aqui se vê que a legislação se refere necessariamente àqueles
que são iguais em nascimento e capacidade, enquanto para os seres superiores não
existe lei; eles mesmos são a lei. Seria estultícia tentar legislar para eles: retaliariam com as
palavras usadas pelos leões da fábula de Antístenes, quando as lebres reinvidicariam, em
assembleia, a igualdade para todos.42 42
ARISTÓTELES. Política.
p. 241.

Desse modo, reforça-se a característica da lei e da justiça política como


disciplina do mínimo social. Por mais que através delas busque-se disci-
plinar a vida do indivíduo e de seus convivas, de modo que todos possam
desenvolver-se, não são elas que garantirão seu desenvolvimento. Caso o
indivíduo transpasse a necessidade de guiar-se pelas leis, por já possuir um
módulo de conduta correto, não mais se necessitaria exigir dele os rigores
desta, pois sua própria conduta já seria conforme o que a realidade pede.
Ou ainda, como manifesta mais a frente Aristóteles, a alternativa seria todos
obedecerem voluntariamente a tal homem ou a tal grupo, pois seriam os
mais adequados governantes.43 43
ARISTÓTELES. Política.
p. 245.

Porém, como isso não é possível e, por mais que o indivíduo desenvolva-se
e esteja acima da média, este ainda vive em meio à sociedade, e os demais co-
brarão dele o cumprimento dessas normas, reforça-se a questão das virtudes
do bom cidadão e do homem de bem. Necessário se faz calcular a conduta de

133
Justiça em Aristóteles

modo a se cumprir o que lhe é socialmente exigido, por mais que se esteja além
dessa relação, sem perder nesse processo o foco no próprio desenvolvimento.

Conclusões
Conforme foi visto neste capítulo, Aristóteles trabalha a questão da Justi-
ça dentro da Ética e da Política. Tanto a Ética quanto a Política visam conduzir
o indivíduo à realização de sua finalidade, a felicidade na vida, a qual é cons-
truída pelo desenvolvimento das virtudes, tanto morais quanto intelectuais,
através dos hábitos e do estudo. A Ética procura disciplinar o indivíduo para
que por si consiga alcançar tal finalidade. A Política, diversamente, busca que
todos aqueles que vivem dentro da cidade possam alcançar a felicidade.

Nesse sentido, para Aristóteles a Justiça é o meio-termo, a relação de pro-


porcionalidade do indivíduo para consigo próprio e para com os demais.
Esse meio-termo poderá ter como relação uma proporção geométrica,
quando tratar-se das distribuições, sendo uma proporção que tem como
base o mérito, chamada, portanto, de justiça distributiva ou justiça geomé-
trica; ou em uma proporção aritmética nas relações dos indivíduos entre si
em que um beneficie-se através do prejuízo do outro na justiça distributiva
ou justiça aritmética, onde busca-se retomada da proporção que foi agre-
dida. Essa Justiça refere-se à situação de desigualdade entre as partes que
deve ser reposta, pautando-se, assim, em uma proporção aritmética. Nesse
sentido, agredida a lei o juiz busca reaver a relação de desigualdade ocorrida,
com a retribuição pecuniária ou com a aplicação de uma pena.

Essas são as principais questões relativas à Justiça e à Filosofia Política que


podem ser feitas dentro do sistema filosófico de Aristóteles.

Ampliando seus conhecimentos

A teoria peripatética da Justiça


(BITTAR, 2003)

Por Teoria da Justiça se entende todo o conjunto das contribuições acerca


da temática da Justiça desenvolvidas no peripatos – de origem grega (peripa-
tos), o termo significa passeio arborizado, termo que veio a batizar a escola

134
Justiça em Aristóteles

aristotélica por se desenvolverem os estudos em caminhadas sob os arvore-


dos do Liceu –, ou seja, todo o legado que, por sistemático, se pode extrair
das reflexões filosóficas desenvolvidas sob a tutela de Aristóteles, o filósofo
macedônio. A legitimidade de se desenvolver a temática sobre a Justiça em
Aristóteles sob o título de uma teoria autônoma da Justiça é não só defen-
sável como também destaque lógico da própria teoria ética do filósofo de
Estagira. Sendo que toda teoria pressupõe uma análise lógica da realidade da
qual se pretende analítica, só se pode argumentar em prol dessa tese em se
sublinhando o caráter sistemático sob o qual se desenvolveu a teoria de Aris-
tóteles acerca da questão Justiça. Assim, ver-se-á estar o problema da Justiça
encadeado a um conjunto de premissas de caráter ético, sociológico e polí-
tico, formando-se um totum teórico de grande valor científico. Tal encadea-
mento sistemático da teoria aristotélica da Justiça se toma muito presente aos
olhos do estudioso que meticulosamente destaca a problemática sobretudo
do texto do livro V da Ethica Nicomachea, livro esse dedicado à penetração
dos problemas éticos de uma maneira geral. No entanto, a temática da Justi-
ça reaparece em outras passagens das obras aristotélicas, demonstrando-se,
por esse mesmo fato, a sua importância como decorrência de uma constante
preocupação em utilizar o problema da Justiça como pressuposto de análise
de outras questões de cunho social. Assim, podem-se extrair reflexões a esse
respeito dos livros Política e da Rethorica. Encontra-se, portanto, não só por cri-
tério textual, mas também por critério lógico, uma unidade convergente entre
os conceitos filosóficos que instauram a coerência do pensamento aristotélico
na relação de seus pressupostos com suas conclusões epistêmicas, o que nos
permite apresentar uma Teoria da Justiça concatenada, e em pura dialética,
como toda a galáxia de significância estabelecida nos peripatos como cons-
tituindo um totum indissociável dos demais conceitos filosóficos construídos
dentro do contexto da filosofia helênica do século IV a.C.

Discutir uma Teoria da Justiça em Aristóteles é muito menos criar um cons-


truto sistemático dentro do repertório intelectual de sua filosofia, e muito mais
desvelar uma principiologia científica elaborada em consonância com as demais
premissas de seu pensamento. Daí a relevância de não se considerar essa como
sendo uma esfera teórica apartada das demais conclusões de sua obra; desde a
Física até a Metafísica, fato é que todos os elementos contextuais de sua teoria
se intercomunicam, ora se interchocando, ora se autorreferindo, mas, de qual-
quer forma, transmitindo a ideia de homogeneidade de seu pensamento. Mas,
advirta-se, sua filosofia, no lugar da monolítica, construída a partir de uma ex-

135
Justiça em Aristóteles

periência singular e de uma única vez, é produto de evolver de suas próprias


concepções acerca da realidade, relevando-se os influxos axiológicos, filosófi-
cos e sociais que lançaram profundas marcas, trazendo contribuições, firmando
problemáticas e instaurando a dúvida na filosofia peripatética, e isso, além de
detectável, é explícito em determinadas passagens de sua obra.

Dialogar com Aristóteles é, antes de reviver seus postulados teoréticos,


trazer referências pontuais que possam representar elementos de colabora-
ção para uma reflexão contemporânea acerca da problemática, não só filo-
sófica, mas também pragmática, que se destaca do contexto da aplicação do
Direito como instrumento social. Operar interpretativamente a textualidade
aristotélica acerca da questão da Justiça, superadas as diferenças de tempo
(Antiguidade) e espaço (Grécia ática) – diferenças a que estão jungidas todas
as discussões que se aproximem e que procurem como fonte de referência
textos demarcados espaço-temporalmente –, não só consente, como valoriza
a participação do leitos enquanto intérprete da complexidade decorrente da
mensagem do autor. A dinamicidade do teorético é diretamente proporcional
à capacidade interpretativa e reavaliativa dos valores conceituais que se des-
tacam de um contexto histórico-social determinado. Toda teoria, mesmo que
circunstancializada, supera os elementos que a condicionam à morte dentro
das fronteiras espaço-temporais em que se produziu, deixando seus rastros e
contribuições intertemporais que se produziu, deixando seus rastros e contri-
buições intertemporais como sinais do exercício de uma faculdade que inva-
riavelmente é comum a todos os homens: a razão.

A Justiça e a Eticidade
O problema da Justiça é, dentro da filosofia aristotélica, como já se procurou
acentuar, uma questão acentuadamente de caráter ético. Tal premissa requer que
preliminarmente se proceda um exame do que se pode entender pelos termos
ético, Eticidade e natureza ética, apesar de já ter desenvolvido esse assunto nos
capítulos anteriores. Uma primeira referência nesse sentido deve necessaria-
mente sublinhar que a esfera da Eticidade não se aparta daquela racionalidade.
Não se aparta pelo fato de que, em Aristóteles, razão prática (noûs praktikós) e
razão teórica, ou teorética (noûs teoretikós), caminham conjuntamente na totali-
zação do ser racional, ou seja, atuam paralelamente para a realização integral da
natureza social do homem em sociedade. A vida social demanda respostas do
indivíduo que tocam as faculdades da utilidade, do prático (práxis), assim como

136
Justiça em Aristóteles

da razão pura, abstrata e teórica (theoría). Nesse sentido, ambas as razões, tanto
a razão prática quanto a razão teórica, representam, quando vistas em conjunto,
a completude das esferas noética e dianoética do ser racional. Se o ser humano
se distingue por ser-lhe inerente a racionalidade – o que envolve razão prática
e razão teórica –, seu télos não se confunde com o dos demais seres, e o que
o caracteriza é a faculdade de alcançar a beatitude da felicidade (eudamonía)
através da utilização de suas faculdades racionais.

Se diz ética toda questão que desborda na esfera do ethos, ou seja, de


acordo com a etimologia da palavra, esfera dos importes da habitualidade.
Isso se dá pelo fato de que a conquista ética não se faz sem a prática reitera-
da de ações deliberadas advindas do juízo da razão prática (noûs praktikós).
Sendo a razão prática a parte da racionalidade humana específica para o tra-
tamento das questões advindas da esfera da utilidade e da práxis da conduta
humana em sociedade, elegendo ações e deliberamento sobre o útil e sobre
o injusto nos limites das circunstâncias práticas em que inserem as individua-
lidades, releva-se o caráter ético da conduta social. Aqui se deve ater o leitor à
seguinte reflexão: entre a deliberação ética interna e a exteriorização de uma
conduta social ou antissocial, medeia o processo de eleição de meios para
execução de fins individuais ou sociais, problema este que toca diretamente à
razão prática resolver, bem como institucionalizar mediante o hábito (ethos),
que pode ser individual ou tornar-se coletivo no costume.

A elegibilidade de fins e de meios coadunados dá consistência ao proces-


so deliberativo de ação social, consentindo uma adequação entre o todo e as
partes. Aqui está presente a noção de phrónesis aristotélica, ou seja, a virtude
prudencial de eleição de fins e meios individuais compatíveis com aqueles
outros, eleitos pela comunidade da qual participa o indivíduo. Para que a célula
se adéque ao órgão, mister se faz que a parte atue em uníssono com o todo.
Portanto, a justiça ou injustiça de uma conduta se poderá medir perante um
critério social, qual seja, a adequação ou não da conduta do indivíduo aos lindes
sociais na qual se insere. A justiça ou injustiça da conduta, concebida a questão
enquanto imersa na questão maior da Eticidade do ser, é propriamente essa
prática humana, esse fazer individual que transborda da esfera privada para
lançar seus reflexos sobre a esfera pública, sobre o coletivo. A ação, participando
da esfera coletiva, em sendo um ato vivenciável por homens, também é um ato
sujeito ao juízo de reprovabilidade do coletivo, motivo pelo qual se pode falar
em adequação ou não da ação aos objetivos eleitos pelo social.

137
Justiça em Aristóteles

Nesse sentido, ações justas ou de Justiça correspondem a virtudes quando


implementam condições sociais para que possam ser qualificadas como tais.
A justiça de uma ação eleva esta à condição de virtude, ação louvável social-
mente, podendo-se a esta se denominar de dikaosyne. A Eticidade da conduta
lhe confere essa característica de ser ou não ser conforme os objetivos sociais,
o que faz desta uma virtude ou vício social. No entanto, a Justiça não é uma
virtude sui generis, pelo fato de que comporta uma cautelosa da aplicação
da ideia de meio-termo (mesotés). Se, com relação às demais virtudes, como
a prudência, a sabedoria, a moderação etc., a equivalência extremo – meio-
termo – extremo é válida incondicionalmente, e dentro da temática da Jus-
tiça esta não se pode tomar inadvertidamente como parâmetro. Isso se dá
pelo fato de que, se à justiça se opõe um único vício, esse vício é a injustiça.
Esta pode ocorrer por excesso ou por defeito. Aquele que pratica a injustiça
encontra-se no excesso, por ter interferido na esfera alheia, enquanto aquele
que sofre a injustiça encontra-se em defeito, visto ter sido o sujeito passivo da
relação. No lugar de ter-se dois vícios diversos opostos à medianeira virtude
da Justiça, como ocorre com todas as outras (ex.: covardia – coragem – pusi-
lanimidade), o mesmo vício, em excesso ou em defeito, se opõe ao conceito
central de Justiça.

Atividades de aplicação
1. Conforme visto neste capítulo, ao tratar sobre a Ética, especialmen-
te no pensamento aristotélico, se está tratando da ciência que busca
possibilitar ao homem que este viva bem. Considerando-se que na
atualidade fala-se muito em crise ética, crise dos valores, qual é a im-
portância da concepção de Ética apresentada por Aristóteles?

2. A ética aristotélica propõe-se a disciplinar a conduta humana através


do cultivo das virtudes, que se dividem em virtudes éticas (morais) e
virtudes dianoéticas (intelectuais). Acerca das virtudes éticas, discorra
sobre sua importância na atualidade.

3. Qual a importância da concepção de justiça corretiva voluntária para a


atualidade?

4. Consideradas as reflexões feitas por Aristóteles com relação às virtudes


do bom cidadão em contraposição ao homem de bem, discorra sobre
a importância dessa relação dúplice no mundo contemporâneo.
138
Justiça em Aristóteles

5. A partir do que foi estudado, pergunta-se: qual a relação existente en-


tre a ideia de Justiça e a Ética?

Gabarito
1. Apesar de se falar em crise ética, não se propõe solução alguma a essa
questão. Desse modo, a ética aristotélica apresenta-se como uma pro-
posta de boa conduta da vida. Pautando-se em um critério objetivo,
a virtude, o meio-termo, trata-se de um modo de se disciplinar a con-
duta humana em busca da realização humana, o que é essencial na
sociedade contemporânea.

2. As virtudes éticas são justamente as que disciplinam a ação humana.


Portanto, há que se considerar a sua importância na atualidade, con-
siderando-se a ausência de um critério de ação que discipline a boa
conduta, a proposta de condução da vida através das virtudes; culti-
vando bons hábitos é um bom modo de o indivíduo desenvolver-se e
saber agir adequadamente em sociedade.

3. A justiça corretiva relativa às transações voluntárias possui especial


ligação com as relações de Direito Civil, especialmente com os contra-
tos que os homens firmam entre si. Assim, reforça-se a importância da
liberdade de vontade nessas relações; quando a vontade de uma das
partes for preterida, ou quando a relação demonstrar-se demasiado
onerosa, há que se buscar reaver a relação de igualdade, tal como ela
existia quando da constituição da relação jurídica em questão, o que é
disciplinado por essa modalidade de Justiça.

4. No mundo atual segue sendo importante o cultivo dessas duas ques-


tões. É essencial que o homem que se propõe a ter um modelo de vida
diferenciado e, especialmente, profundamente realizado, passe por um
processo de desenvolvimento de suas virtudes. Porém, no mundo atual
não basta ser um homem de valor, é também necessário ser conhece-
dor das regras do jogo e saber cumpri-las; esse é o significado de ser
um bom cidadão. Quando atenta-se apenas à formação pessoal e se
esquece da sua relação com o Estado ou com a instituição civil em que
se trabalha, ou com seus grupos particulares, há a perda de espaço do
indivíduo, ou até sua própria exclusão. Por outro lado, a vida social não
basta para garantir ao indivíduo seu pleno desenvolvimento, sendo de
grande importância também o desenvolvimento das boas virtudes.
139
Justiça em Aristóteles

5. A Justiça, no pensamento Aristotélico, é uma virtude, portanto, um


modelo ideal de conduta pelo qual o homem pode alcançar, por con-
sequência de sua prática, a felicidade. Como se não bastasse, ela é a
maior das virtudes, posto que pode ser exercida tanto em relação a si
próprio quanto em relação aos demais. Portanto, a Justiça é um tipo
de excelência essencial para a boa conduta humana. Além disso, por
se relacionar com as demais pessoas, pode também vir a auxiliar os
outros no seu desenvolvimento, razão pela qual considera-se a amiza-
de, um ato de amizade, a forma mais autêntica de Justiça.

Referências
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______. Política. Edição Bilingue. Tradução de: AMARAL, António Campelo; GOMES,
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BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia Aristotélica. Leitura e interpretação do


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______. História da Filosofia Antiga. I: Das origens a Sócrates. 4. ed. Tradução de:
PERINE, Marcelo. São Paulo: Loyola, 2002. 1 v.

140
Helenismo e Idade Média

Introdução
Após tratar sobre a fundamentação da ideia de Justiça no pensamen-
to aristotélico, cumpre nesse momento refletir acerca das concepções de
Justiça em dois períodos particulares. Primeiramente, trataremos do pen-
samento filosófico na época helenística, a qual inicia-se com as conquistas
de Alexandre Magno. As concepções filosóficas desse período estendem-se
ao período de dominação romana, acompanhando-o na época do apogeu
desse império. Logo após, dada a cristianização do império e a fundamenta-
ção filosófica apologética dessas correntes, analisaremos a fundamentação
filosófica dada a esse pensamento religioso, a partir do qual surge uma visão
particular acerca dos conceitos de Direito e Justiça.

Desse modo, neste capítulo encerra-se a verificação dos conceitos de Jus-


tiça no mundo clássico, tratando-se, ainda, da ideia de Justiça durante todo
o medievo, preparando-nos para, em seguida, iniciar a análise do novo pen-
samento oriundo da modernidade.

O pensamento filosófico no período helenístico


Com a tomada da Grécia pelos macedônios e as expedições alexandri-
nas, há uma grande mudança no espírito do mundo grego. Politicamente, a
maior consequência das conquistas alexandrinas foi o desmoronamento da
importância da polis. O conceito de helênico torna-se helenístico, referindo-
-se a nova cultura oriunda da mixagem das concepções gregas com as dos
demais povos conquistados.

Com o poderio das monarquias helenísticas, o conceito de “cidadão”, em


seu sentido clássico, é alterado para a ideia de “súdito”. A vida nos Estados se
desenvolve independentemente do querer dos seus habitantes. Isso influen-
cia a Filosofia, deixando-se de se preocupar com a formação total do cidadão 1
REALE, Giovanni; ANTI-
para se preocupar com a boa vida do indivíduo.1 Os helenos não separavam SERI, Dario. História da
Filosofia: Antiguidade e
o homem da cidade, o indivíduo do cidadão. Com a helenização, opera-se a Idade Média. p. 229.

2
separação desses conceitos. As concepções morais a partir de então passam ABBAGNANO, Nicola.
História da Filosofia. Tra-
a considerar a perspectiva do indivíduo. Afastando-se do ideal dos aspectos dução de António Borges
Coelho.5 ed. Lisboa: Pre-
do governo da sociedade, conforme se verá a seguir.2 sença, 1999. 2v. p. 10
Helenismo e Idade Média

O epicurismo
O epicurismo é a primeira das grandes escolas filosóficas que se erguem
3
Epicuro nasceu em no período helenístico, fundada por Epicuro3. Suas principais ideias podem
Samos, em 341 a.C.
Fundou sua escola em
Atenas, provavelmente
ser resumidas nas seguintes proposições: a) pela inteligência do homem
entre 307/306 a.C, e esta
recebeu o nome de Jardim
pode-se conhecer a realidade perfeitamente; b) nas dimensões do real
(Képos) por dar suas aulas
não como uma palestra,
existe espaço para a felicidade do homem; c) a felicidade é a falta de dor e
símbolo da Grécia Clás-
sica, mas em um prédio
perturbação; d) para atingir essa felicidade e essa paz, o homem só precisa
com um jardim nos subúr-
bios de Atenas. Epicuro de si mesmo; e) não lhe servem absolutamente a cidade, as instituições, a
morreu em Atenas, em
271 ou 270 a.C. (ABBAG- nobreza, as riquezas, todas as coisas, nem mesmo os deuses. Nesse sentido,
NANO, Nicola. História da
Filosofia. p. 25.) o homem é perfeitamente “autárquico”4.5
4
Autárquico: da fusão
entre autos e cratos, ou Assim, há a concentração no homem, proporcionando-se a este, através
seja, relacionado à capaci-
dade do homem guiar-se da análise do mundo em que vive, libertar-se das paixões que o condicio-
por si próprio.
5
nam, vivendo em felicidade.
REALE, Giovanni; AN-
TISERI, Dario. História da
Filosofia: Antiguidade e
Idade Média. p. 239.
Epicuro divide a Filosofia em Lógica, Física e Ética. A primeira elaboraria
os cânones segundo os quais reconhecemos a verdade, a segunda se encar-
regaria de estudar a constituição do real, e a terceira, a finalidade do homem,
que, como foi dito, é a felicidade.

Epicuro afirma que a sensação “colhe o ser” de modo infalível, esta nunca
pode falhar, trata-se do critério de identificação da realidade. É objetiva e
6
Para os epicuristas, verdadeira, porque é produzida pela própria estrutura realidade6 e, acima
o mundo e também o
homem eram reduzidos de tudo, é a-racional, incapaz de retirar ou acrescentar em si mesma alguma
a um mero agrupamento
de átomos. coisa, sendo, por esse motivo, um critério objetivo.7 Além das sensações, as
7
REALE, Giovanni; AN- antecipações, também chamadas de “prolepses” ou “pré-noções”, represen-
TISERI, Dario. História da
Filosofia: Antiguidade e
tações mentais das coisas, memórias daquilo que já mostrou-se no exterior,
Idade Média. p. 240.
também são formas de conhecimento. Por último há a afecção, consideran-
do-se os sentimentos de prazer e dor também como critérios, constituindo-
8
CAROTENUTO, Mar- -se como bases para a distinção do bem e do mal.8
gherita. Histórico sobre
as teorias do conheci-
mento. Recanto Maestro:
Ontopsicologia Editrice,
A característica comum entre esses três critérios de conhecimento é a evi-
2009. p. 27. dência (enargeia), que é o fim necessário a se ter presente. O erro, se ocorre,
não está na sensação, mas na opinião (doxa) que é formulada a partir dos
9
CAROTENUTO, Marghe- dados da sensação.9
rita. Histórico sobre as
teorias do conhecimen-
to. p. 27. Para o epicurismo, o homem, para viver bem, deve buscar o prazer. “A feli-
cidade consiste apenas no prazer estável ou negativo, ‘no não sofrer e no não
10
ABBAGNANO, Nicola. agitar-se’ e é, portanto, definida como ataraxia (ausência de perturbação) e
História da Filosofia.
p. 31. aponia (ausência de dor)”.10 Assim, para Epicuro a vida política é em suma

144
Helenismo e Idade Média

não natural. Consequentemente, ela comporta continuamente dores e per-


turbações, o que compromete o prazer do homem. O filósofo do “jardim” de-
fendia a retirada do convívio social para “si mesmo”, propunha uma profunda
interiorização, em detrimento da realidade social.

Considerações acerca do Direito, da Lei e da Justiça não são profundamente


consideradas por tal corrente filosófica, somente vislumbrando-as na perspectiva
da utilidade do indivíduo na busca por sua felicidade, tal como destaca Reale.11 11
REALE, Giovanni; AN-
.
TISERI, Dario História da
Filosofia: Antiguidade e
Idade Média. p. 249.
O estoicismo
Outra importante escola filosófica nascida no séc. IV a.C é o estoicismo,
fundada por Zenão.12 Tal como o epicurismo, essa escola renegava a metafísi- 12
Zenão, por ser oriun-
do da Ilha de Chipre, não
ca e toda a forma de transcendência, tratando-se de uma forma materialista possuía direito a adquirir
um prédio em Atenas, de
de se conhecer a realidade. A Filosofia era concebida como a “arte de viver”. modo que ele ministrava
suas aulas num pórtico
(em grego stoá). Razão
Divide-se este período em três diversas fases. A primeira é oriunda da pela qual deu-se o nome
de “Estoá” ou “Pórtico” à
tríade ateniense, Zenão, Cleanto de Assos e Crísipo de Solis. A segunda refe- sua escola. (REALE, Gio-
vanni; ANTISERI, Dario.
re-se ao período entre o séc. II e I a.C, onde ocorreram infiltrações ecléticas na História da Filosofia: An-
tiguidade e Idade Média.
doutrina. A terceira é o período da Estoá romana, ou “Nova Estoá”. p. 252.)

Os estoicistas também aceitavam a tripartição acadêmica da Filosofia,


nos mesmos moldes dos epicuristas. Sua Teoria do Conhecimento também é
similar à epicurista. Porém, a sensação por si só não é o conhecimento. Para
tanto se faz necessário um “assentir”, um consentimento, uma aprovação do
logos que está em nossa alma.13 “O assentimento constitui o juízo, o qual se 13
CAROTENUTO, Mar-
gherita. Histórico sobre
define precisamente a sensação”.14 as teorias do conheci-
mento. p. 28.

Tal corrente partilha o conceito de que a liberdade do indivíduo consiste


em poder ser “causa de si”, dos próprios atos e movimentos, ser autodetermi-
14
ABBAGNANO, Nicola.
nado. Nesse sentido, a Ética para eles é a doutrina do uso da razão com o fim História da Filosofia. p.
14.
de estabelecer a correlação entre a natureza e o homem. O homem busca
viver bem por meio das virtudes, as quais não são o meio-termo, como de-
fendido por Aristóteles. Para eles é a partir dos deveres que o indivíduo age
bem. O dever em si não é o bem, porém quando há a escolha deliberada e
repetida pela prática do dever, há a realização do ato virtuoso. O sábio sabe
agir bem, é virtuoso; o estulto, faz tudo mal, de maneira viciosa.15 A virtude é 15
ABBAGNANO, Nicola.
História da Filosofia. p.
o único bem; os males e os seus contrários, que não são virtudes, devem ser 22.

indiferenciados (adiaphora). Bem é aquilo que conserva e incrementa o ser,


o logos, o mal, contrariamente, é o que danifica e o diminui.

145
Helenismo e Idade Média

As paixões para os estoicos são erros da razão, ou consequência deles, de


modo que devem ser evitados. Essa é a apatia estoica, o tolhimento, a ausên-
cia de toda paixão. A felicidade, portanto, é a apatia e impassibilidade.

Os estoicos consideravam a existência de uma lei que se inspira na razão


divina, que é a lei natural da comunidade humana. Uma lei superior à reco-
nhecida pelos diferentes povos da terra, perfeita, porém, maiores formula-
ções acerca dessa lei foram somente produto da terceira corrente estoica.

O ceticismo e o ecletismo
O ceticismo é a corrente filosófica divulgada por Pirro de Élida. A palavra
ceticismo vem de skepsis, que quer dizer observação, reflexão, indagação. O
objetivo do ceticismo é alcançar a felicidade como ataraxia. Para essa cor-
rente o alcance desse estado se opera através da indagação que põe em evi-
dência a inconsistência de qualquer posição teorético-prática, as considera
16
CAROTENUTO, Mar- igualmente falazes e se abstém de aceitar alguma.16
gherita. Histórico sobre
as teorias do conheci-
mento. p. 30. Para os céticos a felicidade é encontrada através da renúncia consciente
a pronunciar-se, renúncia devido a impossibilidade de se afirmar algo de po-
sitivo sobre a realidade, seguido da ataraxia, da ausência de turbamento, a
tranquilidade interior. O sábio, nesse escopo, suspende o assentimento das
17
CAROTENUTO, Mar- situações com as quais se confronta na realidade, realiza epoché.17
gherita. Histórico sobre
as teorias do conheci-
mento. p. 31. Outro movimento nascido nessa época, mais especificamente no século
18
Termo oriundo do II a.C, é o movimento denominado ecletismo18, que visava reunir e difundir
grego ek-léghein, esco-
lher e reunir, tomando o que consideravam melhor de cada uma das escolas. Sua principal marca é
de várias partes. (REALE,
Giovanni; ANTISERI, Dario. a introdução da concepção de probabilidade. Conforme a assertiva de Fílon
História da Filosofia: An-
tiguidade e Idade Média. de Larissa, há que se distinguir o verdadeiro do falso; todavia, não se tendo
p. 276.)
um critério que leve à verdade, à certeza, mas somente aparências que con-
duzem à probabilidade, não se chega à percepção certa da verdade objetiva,
19
REALE, Giovanni; AN-
.
mas tão somente à evidência do provável.19
TISERI, Dario História da
Filosofia: Antiguidade e
Idade Média. p. 277. Tal consideração, posteriormente reafirmada por Cícero, comprova o
estado em que se encontrava a Filosofia no período helenístico. Apesar da
divulgação de diversas escolas que propunham-se a guiar o indivíduo a viver
bem, em meio à realidade material, sem, contudo, considerar uma ordem
cósmica maior. Havendo, nesse sentido, a perda do conceito de ser, há o pro-
blema de onde se encontrar um critério que afirme toda a existência humana,
bem como a organização da sociedade e, por conseguinte, do Direito.

146
Helenismo e Idade Média

Por fim, analisar-se-á nesse momento a continuidade dessas formas de


pensamento na filosofia romana, onde se buscará o último suspiro dessa
forma de compreensão da realidade, que dará espaço à racionalidade cristã.

A filosofia romana
Conforme é sabido, Roma, ao conquistar a Grécia, acaba por assimilar sua
cultura. Ao fazê-lo, naturalmente, não deixaria de também adotar a forma
mais sublime de conhecimento da realidade herdada do mundo grego, a
Filosofia. Nesse sentido, tem-se uma profunda influência, especialmente da
filosofia estoica no mundo romano, a qual influenciou toda a teoria geral do
direito romano e de suas fontes.

Cícero representa o modo mais eficaz pelo qual se realizou a ponte entre
a filosofia grega e a cultura romana. Desse modo, sua importância não é
tanto teorética, mas sim por essa passagem que o filósofo e jurista realiza.
Cícero opera a fusão eclética das várias correntes do mundo grego que pôde
conhecer, repropondo-a em termos latinos.20 20
REALE, Giovanni; AN-
TISERI, Dario. História da
Filosofia: Antiguidade e
Além desse papel de divulgação das concepções teóricas helênicas, Cícero Idade Média. p. 281.

também opera uma profunda fundamentação da concepção de Direito, com


base no pensamento grego.

Cícero e os demais pensadores romanos, apesar da influência estoica,


muito ligados ao movimento ecletista, nas questões de Direito, passaram a
utilizar muito mais as obras deixadas por Aristóteles, considerando-se que
este foi o único que declaradamente analisou o Direito e suas fontes.21 21
VILLEY, Michel. A For-
mação do Pensamento
Jurídico Moderno. p. 71.
A fundamentação da ideia de Justiça para os romanos é marcantemen-
te aristotélica: jus suum cuique tribuere, Direito como dar a cada um a parte
que lhe é devida. Villey declara que o sucesso do direito romano, enquanto
organização lógica, é devido à fundamentação em Aristóteles. Pode-se con-
siderar que Roma aplica praticamente as concepções do estagirita. Quando
novas concepções filosóficas passaram a influenciar a sociedade romana, há
a queda do direito romano.22 22
VILLEY, Michel. A For-
mação do Pensamento
Jurídico Moderno. p.
73, 74.

O declínio da Filosofia Antiga


A influência de toda as correntes analisadas entrou em declínio após a
morte de Marco Aurélio, imperador romano e último grande filósofo estoico.

147
Helenismo e Idade Média

Nesse clima de crise, inexistindo uma concepção filosófica que orientasse o


indivíduo criteriosamente, há, com o passar do tempo, a adoção do cristia-
nismo como religião oficial do Império Romano. A partir desse momento,
tornando-se institucional a concepção religiosa, surgem movimentos filosó-
ficos que buscam dar suporte a essa nova forma de se encarar a realidade.

Desprovidos de um critério, as pessoas passam a depender de uma con-


cepção de fé, de religiosidade para buscar, orientar sua conduta e conduzir
bem sua vida. Seguindo essa linha, a Filosofia passa a estar atrelada à reli-
gião, e estará junto dessa durante todo o período que compreende a chama-
da filosofia medieval.
23
Villey, ao refletir sobre
a principal intenção de

Santo Agostinho
Agostinho em sua obra,
pondera tanto sobre a
importância do aspecto
histórico como a defesa
de Deus como única ver-
dade: “É difícil apreender O mundo romano foi também o cenário em que surgiu Santo Agostinho,
o objeto principal e ele
recebeu de seus leitores talvez o primeiro grande filósofo cristão, responsável por iniciar o processo
interpretações diversas.
Atualmente, é visto sobre- de absorção da Filosofia pela Teologia, que atravessaria toda a Idade Média.
tudo como uma filosofia,
ou melhor, uma teologia É difícil separar o pensamento de Agostinho das contingências históricas,
da história, porque a fi-
losofia da história é um uma vez que um de seus principais objetivos era justamente defender a fé
tema muito em voga:
Deus conduz a história,
dá-lhe um sentido, uma
cristã e supremacia de seu Deus23 diante das invasões bárbaras e do conflito
função providencial,
porque Deus é a causa
com outras religiões e doutrinas, o que não significa que Agostinho também
de tudo e toda a história
deveria ser compreendida
não havia estudado tais doutrinas24. Agostinho foi educado nas artes da gra-
do ponto de vista de Deus
e da salvação. Outros
mática e da retórica, e iniciado na Filosofia na leitura dos clássicos gregos e
encontraram nela conhe-
cimentos sobre a civili- romanos. Cícero influenciou seu pensamento, na perspectiva de que existe
zação pagã. Outros, uma
doutrina política”. (VILLEY, uma lei universal que governa inclusive a vida humana, mas nenhum outro
Michel. A Formação do
Pensamento Jurídico pensador lhe inspirou tanto como Platão. A obra máxima de Agostinho, A
Moderno. p. 82.)
Cidade de Deus, certamente nasce de um enorme trabalho de estudo da Re-
24
A biografia de Santo
Agostinho é importante
pública platônica. Agostinho também pretendia construir uma cidade per-
para entender a sua cons-
trução como intelectual e
feita, tal como o Estado ideal do filósofo grego, mas nesse momento uma
defensor das ideias cris-
tãs. Agostinho não nasceu cidade perfeita governada a partir das leis perfeitas de Deus.
cristão, mas converteu-se,
após estudar diversas re-
ligiões e doutrinas. Além Para Agostinho, “a única verdadeira Justiça e o único verdadeiro Direito
disso, o fato de ter se con-
vertido não significa que são divinos”25. Pode-se dizer que a grande inovação agostiniana é justa-
tenha renegado aquelas
ideias anteriores, pois mente o ato de reclamar para o campo teológico a verdade maior de toda
como é sabido, Platão
seguiu exercendo enorme discussão ética, política e jurídica. O pensamento teológico ocupa o centro
influência em suas obras.
dos argumentos, diferente do período grego, que era predominantemente
25
VILLEY, Michel. A for-
mação do pensamento
cosmológico. E a preponderância de Deus se articula inclusive nas questões
jurídico moderno, p. 80.
políticas e jurídicas.

148
Helenismo e Idade Média

Em A Cidade de Deus a relação entre o humano e o divino se revela já na


coexistência de duas cidades, a “cidade de Deus” e a “cidade dos homens”. Esta
última é aquela que surge em nossa vida terrena. Agostinho a analisa tendo
em vista a imagem do Império Romano, por contingência histórica, mas ela se
aplica a todos os períodos da existência humana. Na “cidade dos homens” os
“destinos parecem frágeis, provisórios, seus bens enganosos, sua justiça falsa;
26
sem dúvida ela não merece muito apego de nosso coração”26. Já a “cidade VILLEY, Michel. A for-
mação do pensamento
de Deus” deve ser a verdadeira pátria dos cristãos. A “cidade de Deus” não é jurídico moderno, p. 82.

uma contingência histórica, mas uma “realidade mística, é a comunidade dos


santos; mas ela se encarna historicamente nos grupos humanos cujos chefes
são Abel, Noé, Abraão e os reis justos de Israel, e, enfim, na Igreja cristã. Ela tem
justiça, suas leis próprias.”27 27
VILLEY, Michel. A for-
mação do pensamento
jurídico moderno, p. 83.
A relação com Platão torna-se mais evidente nessa questão. O paralelo
das duas cidades é muito semelhante à problemática platônica da Repúbli-
ca, quando o filósofo grego apresenta o mundo das ideias como aquele em
que a verdade se revela e todo o restante como apenas sombras. A “cidade
dos homens” não passa de sombra, falsidade, diante da verdade da “cidade
de Deus”

Contudo, Santo Agostinho não declara a invalidade das leis terrenas nem
da Justiça que impera na “cidade dos homens” conforme Villey:
Enquanto dure a história, enquanto realizemos nossa “peregrinação terrestre” e enquanto
o joio não tiver sido separado da boa semente, é da essência das duas cidades elas
coexistirem, estarem mescladas, imbricadas. E a própria cidade terrena tem, na história,
sua razão de ser; é obra, como todas as coisas, da providência divina e cumpre certa
função em nosso caminho para a salvação. Por isso o Estado, as leis, o direito de nossas
cidades humanas históricas – cujo valor é questionado e que é preciso confrontar com
os da cidade celeste – serão tratados por Santo Agostinho do ponto de vista de nossa
salvação.28 28
VILLEY, Michel. A for-
mação do pensamento
jurídico moderno, p. 83.
Embora de fato várias vezes Agostinho ataque as leis romanas, bem como
toda lei pagã, apresentando como elas contrariam as leis divinas, e ainda
assinalando a relevante possibilidade de uma lei humana ser contraditória
em relação às leis de Deus, não se pode dizer que ele permita a simples trans-
gressão à ordem jurídica histórica vigente. Agostinho possui formação clás-
sica greco-romana, suas leituras de Platão, Aristóteles e Cícero lhe permitem
vislumbrar a importância da obediência às leis vigentes, pois não é possível
tentar construir uma ordem social se antes não se estabelece a ordem inte-
rior no indivíduo.

149
Helenismo e Idade Média

Para Agostinho, cada atividade tende à uma paz, que não precisa ser
obrigatoriamente a paz perfeita, aquela ligada à justiça divina. O estabele-
cimento da segurança e da ordem social na cidade dos homens já é alguma
manifestação de paz, o que requer a obediência às leis profanas.

Porém, talvez mais razoável ainda seja outro argumento para se justificar
a obediência às leis injustas dos homens. Para Agostinho, tudo que acontece
na história do mundo é vontade divina, é obra de Deus, e nisso inclui-se os
reinados tirânicos e os períodos de guerras e fome. Em cada evento histórico
há uma ação divina, ainda que seus desígnios sejam misteriosos, de forma
que devemos obedecer às leis instituídas pelas contingências históricas, por
mais injustas que elas pareçam, já que ali também presencia-se a vontade de
Deus. Por isso os cristãos obedecem a César, porque “obedecer às leis de
29
VILLEY, Michel. A for-
mação do pensamento
César, o cristão sabe que também é curvar-se ante a lei eterna”29.
jurídico moderno, p. 92.
Não obstante, Agostinho prescreve aos cristãos a obediência às leis pro-
fanas apenas como obediência a essa máxima maior advinda de Deus, e não
a obediência às leis em si. Ou seja, Agostinho anuncia a fraqueza e a injusti-
ça que nelas imperam, de forma que os cristãos devem apenas usá-las, sem
nelas colocarem qualquer fruição, qualquer valor. O cristão não obedece às
leis humanas por valor, mas por dever. A obediência às leis positivas é apenas
parte de um processo que busca, no fim, a própria extinção das leis positivas,
para que se vislumbre apenas toda a perfeição das leis divinas. A essas leis
divinas Agostinho encontra suas fontes na justiça cristã, na Bíblia, e aqui ele
cria sua inovação na história da Filosofia, pois conforme afirma Villey, não
aparece nesse momento vestígios de influências platônicas e aristotélicas.

As leis divinas aparecem em três formas. A primeira e mais importante


é a lei natural, que nasce do fato de que Deus fez todos os homens à sua
imagem e semelhança, de forma que desde o Gênese o homem possui essa
condição intrínseca de conhecer o justo. Essa lei natural é representada pela
ordem natural imposta por Deus, e desde o pecado original o homem passou
a contrariá-la.

A segunda forma da lei é a lei mosaica, a lei de Moisés, a justiça da Torá,


por ser uma lei concebida por Deus e entregue aos humanos, o que revela
sua condição justa por toda a eternidade. Por fim, a terceira forma da lei é
a lei de Cristo, que posteriormente deverá ser a lei dos cristãos, e que está
anunciada nos Evangelhos. Nesse sentido, será por meio do Evangelho que
o cristão encontrará o autêntico Direito, ou seja, o direito agostiniano revela-
-se, inicialmente, pela fé, que na sua visão é o princípio do conhecimento.
150
Helenismo e Idade Média

Agostinho não reduz a importância da razão para entendimento da verda- 30


Tomás de Aquino
nasceu no castelo de
de, mas afirma ser a fé preponderante. Esse raciocínio se alastraria por toda Roccasecca, no ano de
1224, próximo a Nápoles.
a Idade Média, modificando a forma de se pensar o verdadeiro e o justo. A Começou sua formação
aos cinco anos, na abadia
justiça e a verdade já não estão no campo da racionalidade humana, como beneditina de Monte Cas-
sino. Lecionou em diversas
acontecia entre os gregos, mas na obediência a Deus e na fé. Somente Deus universidades europeias,
período no qual, enquanto
possui a verdade e a Justiça, e o homem somente participa quando Deus perigrinava pelas maiores
universidades europeias,
assim o concede, conferindo ao homem, por gratuidade, momentos de “ilu- escrevia suas principais
obras. Faleceu em 7 de
minação divina”. março de 1274, no mostei-
ro cirteciense de Fossano-
va, quando viajava rumo
a Lion. (COPLESTON, Fre-
derick. Historia de la Fi-
losofía: 2: de San Augustín

Tomás de Aquino a Escoto. 3. ed. Traducción


de: BORRÓN, Juan Carlos
García. Barcelona: Ariel,
1994. p. 298.)
Tomás de Aquino30 é considerado o maior filósofo da escolástica31, seu 31
Expressão designada
pensamento, ao contrário de Santo Agostinho, possui influência marcante para caracterizar a filosofia
cristã da Idade Média. O
das concepções de Aristóteles. Utilizando-se das concepções do estagirita, termo indicava nos primei-
ros séculos da Idade Média
ou como ele próprio chamava, do filósofo, Tomás realiza uma profunda fun- aquele que ensinava as
artes liberais, isto é, as que
damentação racional da fé cristã. Nesse sentido, para o pensador a Teologia constituíam o trívio (gra-
mática, lógica ou dialética,
não substitui a Filosofia. Para o pensamento tomista a Teologia dá acesso e retórica) e o quadrívio
(geometria, aritmética, as-
às verdades necessárias à salvação, essa é sua finalidade, enquanto que a tronomia e música). Mais
tarde passou a chamar-se
Filosofia investiga as coisas como objetos independentes de pesquisa, di- também ao professor ou
teólogo, dando, por con-
ferindo nisso seus métodos de análise.32 Nem o saber teológico suplanta o seguinte, nome ao mo-
vimento que caracteriza
todo o pensamento do
saber filosófico, nem a fé substitui a razão, posto que são dois modos de se medievo. (ABBAGNANO,
Nicola. História da Filo-
alcançar uma realidade que é uma, ambos procedem de uma mesma fonte sofia. 5. ed. Tradução de:
CARVALHO Armando Silva.
de verdade.33 Lisboa: Editorial Presença,
1999. 3 v., p. 9.)

Os homens são dotados de razão, essa é uma de suas características, assim, 32


BOEHNER, Philotheus;
deixar de utilizar essa força, mesmo que em nome de uma luz superior, seria GILSON, Etienne. História
da Filosofia Cristã: desde
deixar de lado uma exigência primordial e natural. Ademais, Tomás tinha a as origens até Nicolau de
Cusa. Tradução de Rai-
convicção de que, apesar da dependência de Deus no ser e no agir, o homem mundo Vier O. F. M. Rio
de Janeiro: Vozes, 1970.
e o mundo gozam de relativa autonomia, sobre a qual deve-se refletir com p. 450.
33
os instrumentos da razão pura, para que, a partir dessa, possa agir bem e, por COPLESTON, Frederick.
Historia de la Filosofía: 2:
de San Augustín a Escoto.
conseguinte, corresponder aos anseios do Divino que ordena o mundo.34 Traducción de Juan Carlos
García Borrón. 3ed. Barce-
lona: Ariel, 1994. p. 309.
Tomás, tal como Aristóteles, ordena sua concepção de ordem do mundo 34
BOEHNER, Philotheus;
através das concepções de metafísica. Nesse escopo, reflete sobre as ques- GILSON, Etienne. História
da Filosofia Cristã: desde
tões em sua obra O Ente e a Essência35, onde explicita tais conceitos, dando as origens até Nicolau de
Cusa. p. 452.
as premissas teoréticas que sustentam sua construção filosófico-teológica. 35
AQUINO, Sto. Tomás
Contrariamente a Aristóteles, Tomás de Aquino estrutura sua metafísica não de. O Ente e a Essên-
cia. Tradução de Luiz
somente a entender o ser e o ente que agem, importa a ele o próprio ato de João Baraúna. São Paulo:
Nova Cultural, 1996. Os
ser, possuído originalmente por Deus e de forma derivada ou por participa- Pensadores.

151
Helenismo e Idade Média

ção pelas criaturas. Por esse motivo, a metafísica tomista é compreendida


como metafísica do ser ou do actus essendi, essa é uma perspectiva com-
pletamente nova em relação à ontologia grega e é a marca do pensamento
36
tomista – buscar através da ordenação metafísica, da consideração da reali-
REALE, Giovanni; AN-
TISERI, Dario. História da dade divina, a orientação da conduta humana.36
Filosofia: Antiguidade e
Idade Média. p. 557.
Comentando a filosofia tomista, considera Reale:
Tal filosofia é otimista, porque descobre um sentido profundo no fundo daquilo que
existe; é uma filosofia do concreto, já que o ser é o ato graças ao qual as essências existem
de fato. Mas também é a filosofia do crente, porque só o crente pode propor as essências à
37
REALE, Giovanni; AN- discussão e captar o ato básico e positivo graças ao qual existe algo ao invés de nada.37
TISERI, Dario. História da
Filosofia: Antiguidade e
Idade Média. p. 558. Embasado na ordem metafísica do mundo, Tomás propõe cinco provas
ou caminhos através dos quais comprova-se a existência de Deus, nos quais
tudo se unifica e adquire luz e coerência. Deus é o primeiro na ordem on-
tológica do mundo, porém, não na ordem psicológica, onde o divino deve
38
COPLESTON, Frederick. ser alcançado por caminhos a posteriori, partindo dos efeitos e do mundo.38
Historia de la Filosofía: 2:
de San Augustín a Escoto. Esses argumentos são apresentados tanto em sua obra Summa contra Genti-
Traducción de Juan Carlos
García Borrón. 3ed. Barce- les quanto na Summa Theologica.
lona: Ariel, 1994. P. 365.

As cinco provas são as seguintes:

a) O argumento do primeiro motor – Trata-se do princípio da efetividade,


ou seja, da relação entre causa e efeito, das mutações neste mundo. Uma
coisa não pode ser levada em ato se não for efetuada por um ser que já é em
ato. Portanto, é impossível que, sob o mesmo aspecto e ao mesmo tempo,
um ente seja origem e sujeito de mutação, tudo que muda deve ser movido
por outros. Esse caminho da mudança chega ao primeiro motor. Esse imutá-
39
AQUINO, Sto. Tomás vel é o que todos chamam Deus39.
de. Súmula contra os
Gentios. Tradução de Luiz
João Baraúna. São Paulo:
Nova Cultural, 1996. Os
b) O caminho da primeira causa eficiente – Considerando que o mundo é
Pensadores, p. 130.
ligado à relação entre causas eficientes, não se pode chegar até o infinito.
Por isso, se não houver uma causa primeira entre as causas intermediárias,
estas não existirão, bem como não haverá causa última. Mas se fosse possível
ir ao infinito, não haveria causa primeira. Portanto, é necessário admitir uma
40
BOEHNER, Philotheus;
GILSON, Etienne. História
causa eficiente, à qual todos dão o nome de Deus.40
da Filosofia Cristã: desde
as origens até Nicolau de
Cusa. p. 454. c) O argumento do existente necessário – Admite-se a existência de um ente
41
BOEHNER, Philotheus;
que tenha em si mesmo a sua própria necessidade, não a recebendo de qual-
GILSON, Etienne. História
da Filosofia Cristã: desde
quer outro, mas que causa em outras coisas a sua necessidade. Este é Deus.41
as origens até Nicolau de
Cusa. p. 455.

152
Helenismo e Idade Média

d) O caminho dos graus de perfeição – O quarto elemento refere-se à gra-


dação que existe entre as coisas, considerando os entes mais e outros menos
bons, verdadeiros, nobres e semelhantes. Existe algo que é nobre, bom em
grau máximo, consequentemente, algo que, em grau máximo, é ser, já que o
que é máximo na verdade é máximo também no ser. Aquilo que é para todos
os entes a causa do seu ser, de sua bondade e de outra perfeição, é Deus.42 42
REALE, Giovanni; AN-
TISERI, Dario. História da
Filosofia: Antiguidade e
e) O caminho do finalismo – Dessa causa deriva o governo do mundo. Idade Média. p. 565.

Todas as coisas, tal como dissera Aristóteles, visam a uma finalidade. Con-
siderando a caracterização da existência e sua teleologia, considera-se um
Ordenador, dotado de conhecimento, o qual encontra-se em condições de
dar ser aos entes, Ele é quem opera a finalidade das coisas existentes.43 43
REALE, Giovanni; AN-
TISERI, Dario. História da
Filosofia: Antiguidade e
Postas essas considerações acerca da ordenação do mundo metafisica- Idade Média. p. 566.

mente é que decorrem as disposições acerca da conduta humana para o filó-


sofo. Destaca-se que Tomás de Aquino em momento algum trata do gênero
humano em sentido lato, sem considerá-lo especificamente, mas mantendo
sua relação com o plano divino. Nesse sentido, partindo dessa ordenação
do mundo é que o pensador refletirá sobre as questões acerca da conduta
humana.

Acerca das concepções de Justiça, Tomás de Aquino retoma as concep-


ções de Justiça particular e geral, distributiva e corretiva já apresentadas por
Aristóteles, estudadas no capítulo anterior. Além disso, acrescendo a visão
cristã medieval de mundo, concebe na ordem do mundo a existência de
quatro leis hierarquicamente estruturadas.

Definindo a Justiça, segundo a tradição peripatética, como uma virtude


que se adquire pelo hábito, para Tomás de Aquino este só pode ser especifi-
cado pelo seu objeto formal, que é o Direito. O verdadeiro objeto da Justiça,
portanto, só pode ser o Direito, sendo a própria coisa justa, ou seja, o estabe-
lecimento de uma igualdade entre as partes.44 44
BARROS, Alberto Ribei-
ro Gonçalves de. Direito
natural em Cícero e Tomás
O tomismo considera a existência de quatro leis que regem o universo. de Aquino. In: PISSARRA,
Maria Constança Peres;
Enquanto às virtudes incumbe a regulação da vida interna, as leis visam nor- FABBRINI, Ricardo Nasci-
mento (Coord.). Direito
tear a existência externa. Nesse sentido, pode-se considerar a atuação das e Filosofia: a noção de
Justiça na História da Fi-
leis eterna (lex aeterna), natural (lex naturalis), humana (lex humana), e acima losofia. São Paulo: Atlas,
2007. p. 53.
dessas três encontra-se a lei divina (lex divina).45 45
REALE, Giovanni; AN-
TISERI, Dario. História da
Filosofia: Antiguidade e
Idade Média. p. 566.

153
Helenismo e Idade Média

A lei eterna é própria de Deus, de sua racionalidade, apenas poucos


homens, os bem-aventurados, poderiam conhecê-la. Esta é o critério de
ordem para a lei natural e humana, ela rege o universo através da sabedo-
ria divina. A lei natural é ponto de referência para a vida dos homens e dos
animais, sendo que os humanos devem orientar-se por ela nas suas relações
familiares e sociais, inclusive em dispor de propriedade. As construções e ins-
titucionalizações das leis feitas pelos homens constituem as leis humanas,
que são disposições particulares, as quais são descobertas pela própria razão
humana. Por fim, a lei divina é a própria lei revelada por Deus, dirige todas
as coisas para o eu fim. É o plano da Providência conhecido unicamente de
46
VILLEY, Michel. A For-
mação do Pensamento
Deus e dos bem-aventurados.46
Jurídico Moderno. p.
141-142.
São Tomás não concebia a necessidade das leis positivas humanas por
causa do pecado, como outros escolásticos pensavam, mas como remédio
para os vícios do homem em estado de corrupção. Ela é necessária pela pró-
pria natureza do homem, sociável e naturalmente destinado à ordem políti-
ca. A origem dessa lei procederá da autoridade presente, por natureza, em
todo grupo político humano. Toda lei humana deriva da lei natural, seja por
via de conclusão (aplicação a circunstâncias históricas de um processo tirado
da natureza) ou de determinação (adição aos dados vagos da ciência do di-
reito natural, para servir aos fins da natureza). Assim, o Direito é ao mesmo
tempo fruto da razão e da vontade. Da razão por captar algo que natural-
47
VILLEY, Michel. A For- mente já é, e voluntária por ser produto de um poder legislativo.47
mação do Pensamento
Jurídico Moderno. p. 150-
152. Sobre a autoridade da lei humana, o pensador de Aquino segue a visão
aristotélica da raiz da lei humana ligada à lei natural, apesar de possuir au-
toridade condicional a uma específica situação de vivência de um povo em
48
BARROS, Alberto Ribei-
dado momento histórico. Cessada sua necessidade, há de se revogá-la.48
ro Gonçalves de. Direito
natural em Cícero e Tomás
de Aquino. In: PISSARRA, Feitas essas considerações acerca do pensamento tomista, há que se con-
Maria Constança Peres;
FABBRINI, Ricardo Nasci- siderar que sua principal contribuição para a Filosofia do Direito medieval é a
mento (Coord.). Direito
e Filosofia: a noção de cooperação para o renascimento das instituições antigas. Em Direito Público,
Justiça na História da Filo-
sofia. p. 55. a filosofia de são Tomás preparou o terreno para a reconquista da autonomia
do Estado perante a Igreja, restaurando uma teoria profana da soberania. O
poder dos reis não proviria de uma sagração ou da autorização da Igreja, mas
sim do direito natural. Em direito privado, segue as concepções aristotélicas,
assim como o legado da tradição romana, a favor do retorno ao dominium, à
49
VILLEY, Michel. A For- propriedade privada.49
mação do Pensamento
Jurídico Moderno. p.
165-167. Após o que foi tratado neste tópico, constata-se que a doutrina, ao passo que
ressuscitou o método e as fontes da Filosofia e do Direito antigo, incorporou-as
154
Helenismo e Idade Média

às concepções da Igreja Cristã. Mais do que fundamentar a fé nas concepções


mais profundas da racionalidade humana, Tomás é agente operador de uma es-
sencial passagem racional na Filosofia e no Direito, propondo-se a, através da
base religiosa, superar os modelos clássicos dos quais partiam como modelo.

Duns Scott
Duns Scott, que em seu tempo era chamado de Doctor Subtilis, devido à
profundidade de sua doutrina, resultado de longos estudos e trabalhos nos
dois principais centros de sua época, Oxford e Paris, exerceu grande influê-
ncia na construção do pensamento moderno, devido à sua defesa de não
somente a distinção, mas da separação entre Filosofia e Teologia. Duns Scott
era contrário à doutrina tomista, alegando que a Filosofia possui metodo-
logia própria, não assimilável pela Teologia; era contrário também a Santo
Agostinho, que havia proposto a absorção da Filosofia pela Teologia.
A Filosofia se ocupa do ente enquanto tal e de tudo o que é redutível a ele ou dele
dedutível. Já a Teologia, ao contrário, trata dos articula fidei ou objetos de fé. A Filosofia
segue o procedimento demonstrativo, a Teologia o procedimento persuasivo. A Filosofia
se detém na “lógica natural”, a Teologia move-se na “lógica do sobrenatural”. A Filosofia
se ocupa do geral ou universal, porque é obrigada a seguir “pro statu isto”, o itinerário
cognoscitivo da abstração, enquanto a Teologia aprofunda e sistematiza tudo o que
Deus se dignou nos revelar sobre a sua natureza pessoal e o nosso destino. A Filosofia
é essencialmente especulativa, porque visa a conhecer por conhecer, ao passo que a
Teologia é tendencialmente prática, porque nos põe a par de certas verdades para nos 50
REALE, Giovanni; AN-
induzir a agir mais corretamente.50 TISERI, Dario. História da
Filosofia: Antiguidade e
Idade Média, p. 598-599.
Para Duns Scott, a literatura pagã, e nisso inclui-se a filosofia grega, deve servir
somente de instrumento auxiliar à busca pela verdade, que se encontraria na Sa-
grada Escritura, pois a “fé governa a razão, que não passa de uma servidora”51. 51
VILLEY, Michel. A for-
mação do pensamento
jurídico moderno, p. 202.
O raciocínio de Duns Scott chegou ao ponto de criticar toda a tradição es-
colástica, ao afirmar que inferir a existência de uma ordem natural e que ela
seria obra de Deus seria um crime contra a própria figura de Deus, subordi-
nando-o a uma razão humana e intelectualista. Deus, como princípio criador
de todas as coisas, não necessitaria de uma ordem, porque isso seria já uma
limitação de seu poder. A razão não pode limitar Deus, porque inclusive a
razão é obra de Deus. Interessante notar que essa inversão pode ser aplicada
inclusive à moral cristã, pois o preceito “não matarás”, por exemplo, não seria
uma regra universal, já que Deus poderia ter escolhido outros preceitos.

Outra contribuição fundamental de Duns Scott à Filosofia é a sua crítica à


generalização do ser defendida por Aristóteles e São Tomás de Aquino. O Deus

155
Helenismo e Idade Média

da Sagrada Escritura não é um deus abstrato e impessoal como afirmam os fi-


lósofos, mas um Deus que dialoga com os fiéis, que envia seu filho, Cristo, para
salvar a humanidade, que compartilha momentos de angústia com os cristãos.
Deus ama a cada indivíduo em sua singularidade, e não como generalidade,
universalidade. A mesma linha de raciocínio o leva a defender a supremacia da
vontade por sobre a inteligência, ou seja, os atos não necessitam obedecer a
uma razão preestabelecida. Isso significa que o homem deve amar a Deus por
opção, por vontade, e não por exercício racional. Percebe-se como Duns Scott
sempre argumenta tendo em vista uma relação próxima e personalizada entre
Deus e o homem, na perspectiva de que cada homem é um ser único e irrepe-
tível, diferentemente da doutrina aristotélica-tomista, que pendia mais para o
lado da generalização, da universalização do ser.

A reviravolta provocada por Duns Scott certamente repercutiria no âmbito


da Filosofia do Direito. Se toda ordem existente acontece porque Deus quis,
e não por uma ordem natural, significa que os preceitos sagrados, bem como
as leis em geral, não devem ser obedecidas por seus aspectos naturais, mas
por terem sido criadas ou permitidas por Deus. Percebe-se como isso acar-
retaria em influências na formação do positivismo jurídico. Isso não significa
que deve-se inferir que Duns Scott rejeita a existência do direito natural, mas
que simplesmente não existem leis naturais que sejam válidas por si mesmas.
Já que por outro lado, essa “ordem do mundo” é criação de Deus, de forma
que poderíamos entendê-la como uma ordem que serviria posteriormente
de direito natural. Ou seja, serviria como direito natural na medida em que
representa vontade divina, e não por ser ordem em si mesma.

O pensamento franciscano de Duns Scott exerceria influência maior em


outro franciscano famoso, Guilherme de Ockham, responsável pela forma-
ção do conceito de direito subjetivo. Scott e Ockham seriam responsáveis
pela transição do pensamento medieval ao pensamento moderno, por meio
da separação do pensamento filosófico do teológico, e por consequência,
liberando o pensamento científico.

Guilherme de Ockham
Guilherme de Ockham foi outro franciscano que prosseguiu no caminho
aberto por Duns Scott contra a filosofia tomista. A diferença é que Ockham
foi um profundo conhecedor de Aristóteles, em especial de sua dialética.

156
Helenismo e Idade Média

Ockham também critica os filósofos que colocam no universal, nas ge-


neralidades, a essência da coisa, como se além de cada indivíduo existisse
o “homem”, o ser do homem. O argumento de Ockham não se posiciona
somente no sentido de que deve haver uma singularidade divina em cada
indivíduo, a ecceidade de Duns Scott, mas do ponto de vista eminentemente 52
VILLEY, Michel. A for-
mação do pensamento
lógico, pois, para ele, as palavras, tais como as classificações, não passam de jurídico moderno, p. 229.

signos que tentam representar a coisa, de forma que o ser do homem é o 53


“A metafísica de
Ockham transporta para
próprio homem, e não o entendimento genérico da ideia de homem, pois o o mundo da linguagem
e do pensamento, para
“animal ou o homem – e tampouco a animalidade, a humanidade – não são o universo conceitual, o
que pertencia, para os to-
coisas, não são seres”52. Ockham inaugura o nominalismo na Filosofia, defen- mistas, ao mundo do ‘ser’:
os gêneros, as ‘formas
dendo que os nomes, os signos, não podem identificar a essência do ser.53 comuns’ e as relações.
Estes agora são apenas
conceitos, instrumentos,
O nominalismo desencadearia o corte entre Filosofia e fé; na primeira etapas no caminho do
conhecimento de uma
encontra-se o domínio da razão e da criação, enquanto que somente na fé realidade exclusivamen-
te singular, apenas um
encontra-se o acesso ao conhecimento de Deus. As questões dos signos, que começo de conhecimento
nebuloso dos indivíduos.
Universais e relações são
substituiriam os universais, são do âmbito da Filosofia, e não da fé. Isso in- apenas instrumentos de
pensamento. No real e na
fluenciaria inclusive o desenvolvimento das ciências modernas, uma vez que ‘natureza’ real não existe
nada acima dos indivídu-
já nem à Filosofia nem à ciência cabe analisar os “universais”, ou as “nature- os: não existem universais,
estruturas, direito natural”.
zas”, mas as coisas dispostas individualmente, como Deus as criou.54 (VILLEY, Michel. A Forma-
ção do Pensamento Jurí-
dico Moderno. p. 231.)
O nominalismo influenciaria também o âmbito jurídico. Com a negação 54
Tal doutrina se tornaria
dos “universais” e das “naturezas”, Ockham argumenta também a inexistência célebre por meio dos estu-
diosos como a “navalha de
de um direito natural. A Escolástica construiria suas ideias de Direito ancora- Ockham”, na qual o filósofo
defende o corte de qual-
das na observação da natureza, pois esta representaria a ordem divina e a quer imagem mediadora
entre o objeto e o sujeito,
vontade de Deus. Ockham, por outro lado, centraliza sua discussão na figura por serem meros artifícios
linguísticos, signos, e não
do indivíduo, e não na natureza. coisas em si. “De forma
análoga, Ockham elimina
do processo cognoscitivo
humano todas e quais-
O nominalismo [...] habitua a pensar todas as coisas a partir do indivíduo: o indivíduo quer ‘espécies’ ou ima-
(não mais a relação entre vários indivíduos) torna-se o centro de interesse da ciência do gens mediadoras entre o
Direito; o esforço da ciência jurídica tenderá doravante a descrever as qualidades jurídicas objeto conhecido e o su-
jeito conhecente. Além de
do indivíduo; a extensão de suas faculdades, de seus direitos individuais. E, quanto às não termos experiência
normas jurídicas, não podendo mais extraí-las da própria ordem que antes se acreditava alguma de tais imagens,
ler na Natureza, será preciso buscar origem exclusivamente nas vontades positivas dos estas se revelam como
desnecessárias para ex-
indivíduos: o positivismo jurídico é filho do nominalismo. Todas as características essenciais plicar satisfatoriamente o
do pensamento jurídico moderno já estão contidas em potência no nominalismo.55 ato da percepção sensível
do objeto, bem como o do
seu conhecimento inte-
Em Ockham encontram-se raízes do positivismo jurídico, que somente lectual”. (VIER, Raimundo.
Navalha de Ockham. In:
viria a se desenvolver séculos depois. Este filósofo é contrário a interpre- GARCIA, Antônio. Estudos
de Filosofia Medieval.
tações místicas e extensivas da Sagrada Escritura, alegando que a leitura 2. ed. Petrópolis: Vozes,
2000. p. 131.)

devese limitar ao texto. O mesmo sentido de hermenêutica deveria ser apli- 55


VILLEY, Michel. A for-
mação do pensamento
cado aos textos legais. Para Ockham, portanto, tanto o direito humano como jurídico moderno, p. 233.

o direito divino eram direitos positivos, pois inclusive os preceitos de Deus,


encontrados na Sagrada Escritura, somente poderiam ser interpretados à luz

157
Helenismo e Idade Média

do próprio texto. Tais preceitos morais, ainda, não deveriam ser obedecidos
por serem regras atemporais e eternas emitidas por Deus, mas leis tempo-
rais. Não deve o homem obedecer os Dez Mandamentos devido a um supos-
to conteúdo eterno, como se aqueles preceitos representassem uma espécie
de direito natural advinda de uma ordem natural, mas simplesmente por
serem ordens de Deus. Ou seja, obedece-se pelo dever de obedecer, e não
pelo conteúdo. Se quisesse, Deus poderia inclusive ordenar o ódio entre os
homens, pois não haveria limitação ao seu poder.

A decisão de seguir a filosofia franciscana centrada no indivíduo de Duns


Scott repercute ainda em Ockham na sua exposição acerca do jus, que ele toma
emprestado do direito romano e da potestas, o poder, que constituem o cerne
56
Villey apresenta uma
de sua definição de direito subjetivo, conforme explica Villey56. Ockham expli-
importante tese acerca da
existência de um conceito ca que toda lei é formulada a partir da vontade de um legislador, ou seja, toda
de direito subjetivo em
Ockham, séculos antes de lei surge de uma vontade individual, o que a determina como essencialmente
seu surgimento na ciên-
cia jurídica propriamente humana. Nesse sentido, cada indivíduo tem o potestas de poder argumentar
dita.
contrariamente essa lei. As leis humanas não são manifestações de uma ordem
natural, de forma que o indivíduo pode livremente exercer sua condição de li-
berdade contra as legislações em geral. O mesmo motivo o conduz a aceitar
até críticas a regras impostas por papas.
Toda a ordem social é outorga e distribuição de liberdades, estas essenciais à vida moral
cristã do indivíduo. E não há mais nada além disso. Os direitos subjetivos dos indivíduos
preencheram o vazio resultante da perda do direito natural. A ordem social aparece agora
constituída não por uma rede de proporções entre os objetos partilhados entre as pessoas,
mas por um sistema, por um lado, de poderes subordinados uns aos outros e, por outro, de
57
VILLEY, Michel. A For-
leis provenientes dos poderes. 57
mação do Pensamento
Jurídico Moderno. p.
287. Sem direito natural, as análises jurídicas se resumiriam aos textos legisla-
tivos, mas com a ascensão do direito subjetivo abre-se nova oportunidade
ao indivíduo de constestar injustiças e autoritarismos. O indivíduo conquista
a liberdade de poder questionar as ordens vigentes.

A ideia de um direito subjetivo em Ockham é importante para se compre-


ender a passagem à filosofia moderna. Aqui já não se tem o mundo centrado
em Deus, em que até a ordem jurídica emana da ordem divina, e ao homem
cabe apenas obedecê-la, mas uma ordem fundada conforme a vontade e
o poder humano, conforme o direito humano. Em Ockham, o indivíduo, e
aqui também os indivíduos comuns, aqueles pouco letrados de seu tempo,
recebem essa condição, é retomado como centro das discussões filosóficas
e jurídicas. As ordens estabelecidas podem ser abusivas, de forma que cada
indivíduo tem a possibilidade de contestá-las, exercendo sua liberdade de
utilizar-se do direito subjetivo. A transição de uma ordem fundada em Deus
158
Helenismo e Idade Média

para uma ordem fundada no homem finalmente representa a chegada ao


período moderno da Filosofia. Os avanços das descobertas científicas de
mentes como Copérnico, Galilei e Kepler, e as teorias racionalistas de Bacon
e Descartes são prosseguimentos dessa abertura iniciada por Duns Scott e
sedimentada por Ockham.

Os franciscanos Duns Scott e Guilherme de Ockham são ainda mais impor-


tantes para os dias atuais, pois qualquer regime democrático somente pode
se desenvolver e se solidificar se cada indivíduo cultivar essa capacidade de
liberdade de saber como e porque criticar a ordem jurídica vigente. Conce-
ber qualquer sistema como obrigatoriamente correto e infalível é sempre uma
ameaça à liberdade individual, abrindo perigo para a criação de regimes auto-
ritários. A limitação de reeleições e construção de um sistema eleitoral que se
baseia no sufrágio universal é também uma limitação ao poder estatal. Toda
ordem jurídica está exposta ao erro e à injustiça. Assim entende Agostinho,
Scott, Ockham e vários outros pensadores medievais. Ainda que a vontade
divina seja perfeita, as leis humanas são imperfeitas e factíveis de injustiça, de
forma que somente colocando no indivíduo o direito e o dever de contestá-la,
por meio do exercício da liberdade, torna-se possível impedir o autoritarismo
político e jurídico. Por fim, talvez ainda mais importante que isso seja o fato de
que mesmo num período em que o centro de tudo está na Teologia, é no indi-
víduo que se encerra, ou seja, a passagem ao período histórico seguinte se dá
justamente na descoberta do valor individual de cada homem na construção
de um mundo mais justo e funcional ao humano.

Ampliando seus conhecimentos

Questão 91
(AQUINO, 1997)

Artigo I
Se há alguma lei eterna

(cf. I II, q. 93, art. 1)

No concerne ao primeiro artigo, assim se procede. Parece não haver alguma


lei eterna.

159
Helenismo e Idade Média

1 – Com efeito, toda lei impõe-se a alguns. Ora, não houve desde toda eter-
nidade alguém a quem a lei pudesse impor-se, pois só a Deus coube ser desde
toda a eternidade. Portanto, nenhuma lei é eterna.

2 – Além disso, a promulgação pertence à razão da lei. Ora, à promulgação


não cabe ser desde a eternidade, por não haver desde a eternidade alguém
para quem fosse promulgada. Logo, nenhuma lei pode ser eterna.

3 – Além disso, a lei importa certa ordem para algum fim, pois só o último
é eterno. Logo, nenhuma lei é eterna.

Em sentido contrário, há o que diz Agostinho: “A Lei que se denomina razão


suprema não pode parecer não ser eterna e imutável a quem é capaz de a in-
teligir” (Sobre o Livre Arbítrio, I, cap. 6,48,15, C.Chr. 220).

Resposta: Deve dizer-se que, como se disse acima (q. 90, a. 1), nada é a
lei senão certo ditame da razão prática no príncipe, que governa alguma co-
munidade perfeita. Ora, é manifesto, suposto ser o mundo regido pela divina
providência, como se estabeleceu na primeira parte (q. 22, a. 1 e 2), que toda a
comunidade do universo é governada pela razão divina. Assim pois, a própria
razão do governo existente, em Deus, como príncipe do universo, compreen-
de a razão de lei. E porque a divina razão nada concebe a partir do tempo, mas
é dotada de conceito eterno, como diz o Livro dos Provérbios (8,23), segue-se
que tal lei deve dizer-se eterna.

1– No que concerne ao primeiro argumento, deve dizer-se que aquilo que


não é em si mesmo existe em Deus, enquanto nele é previamente conhecido
e preordenado, conforme a passagem de Romanos 4,17: “Aquele que chama
entes os não entes”. É assim que o eterno conceito da divina lei é dotado da
razão de lei eterna, na medida em que é por Deus ordenado para o governo
das coisas por Ele previamente conhecidas.

2 – No que concerne ao segundo argumento, deve dizer-se que a promul-


gação faz-se de forma oral ou escrita e de ambos os modos é a lei promulgada
por parte de Deus que a promulga, porque o Verbo divino é eterno e eterno é
o que se escreve no Livro da Vida. Mas da parte da criatura que ouve ou pes-
quisa não pode haver promulgação eterna.

3 – No que concerne ao terceiro argumento, deve dizer-se que a lei impor-


ta uma ordenação para o fim ativamente, enquanto por ela algo é ordenado
para certo fim, não porém passivamente, isto é, que a lei seja ordenada para o

160
Helenismo e Idade Média

fim, exceto por acidente no governante cujo fim é exterior a ele próprio e para
qual é necessário que sua própria lei seja ordenada. Mas o fim do governo
divino é o próprio Deus nem é outra a sua lei em relação a Ele próprio. Donde
não se ordenar a lei eterna para fim que lhe seja outro.

(IV Sent. D. 33. q. 1, a. 1)

Artigo II
Se há em nós alguma lei natural

(IV Sent. D 33. q. 1, a. 1)

No que concerne ao segundo artigo, procede-se do seguinte modo. Parece


não haver em nós alguma lei natural.

1 – É o homem suficientemente governado pela lei eterna. Diz, com efeito,


Agostinho (Sobre o Livre Arbítrio, I, cap. 6) que “ a lei eterna é aquela força da
qual é justo que todas as coisas sejam perfeitamente ordenadas”. Mas a natu-
reza não se excede no supérfluo tanto quanto não é deficiente no necessário.
Portanto, não há lei natural para o homem.

2 – Além, disso, o homem é ordenado em seus atos para o fim median-


te a lei, como acima se estabeleceu. (q. 90, a. 2). Ora, a ordenação dos atos
humanos para o fim não se faz pela natureza, como ocorre com as criaturas
irracionais, que agem em vista do fim apenas mediante o apetite natural. Mas
o homem age em vista do fim mediante a razão e a vontade. Portanto, não há
para o homem alguma lei natural.

3 – Além disso, quanto mais alguém é livre, tanto menos é sujeito à lei. Ora, o
homem é o mais livre de todos os animais por força do livre arbítrio que possui,
excedendo por ele todos os outros animais. Não sendo, pois, os restantes animais
sujeitos à lei natural, não é também o homem sujeito a qualquer lei natural.

Em sentido contrário, há o que nos diz a glosa sobre Romanos, 2,14: “Os
gentios, que não possuem a lei, fazem naturalmente o que contém a lei”.
Embora possam a lei escrita, possuem, todavia, a lei natural pela qual cada um
intelige o que é o bem e o mal e disto cônscio.

Resposta: Deve dizer-se que, como se disse acima (q. 90, a. 2, ad. 1), sendo
a lei regra e medida, pode estar em algo de dois modos: de um modo, no

161
Helenismo e Idade Média

que é regulante e mensurante, de outro modo no que é regulado e mensu-


rado, pois ao participar algo da regra ou medida, é nisso regulado e mensu-
rado. Donde, como tudo o que está sujeito à divina providência é regulado
e mensurado pela lei eterna, como é patente no que anteriormente se disse
(art. prec.), é manifesto que tudo participa de algum modo da lei eterna, na
medida em que, por impressão desta, é dotada de inclinação para os próprios
atos e fins. Todavia, entre as restantes, a criatura racional está submetida à
divina providência de modo mais excelente, na medida em que se faz ela pró-
pria participante da providência para si e para as outras. Donde ser também
nela participante a razão eterna, pela qual tem uma natural inclinação para o
seu devido fim e ato. E tal participação da lei eterna na criatura racional diz-se
lei natural. Donde, quando diz o Salmista: “Sacrificai um sacrifício de justiça”
(Salmo 4,6), como a responder a alguns que perguntam quais são as obras da
justiça, acrescente: “Muitos dizem: quem mostrará os bens?” E, ao responder a
essa questão, diz: “Foi assinalada sobre nós a luz da tua face”, é como se a luz
da razão natural, pela qual discernimos o que é o bom e o que é o mal, o que
pertence à lei natural, outra coisa não seja que a impressão da luz divina em
nós. Donde ser patente que a lei natural outra coisa não é senão a participa-
ção da lei eterna na criatura racional.

1 – No que concerne ao primeiro argumento, deve dizer-se que seria tal


razão procedente, se a lei natural fosse algo diverso da lei eterna; mas ela não
é senão certa participação desta como foi dito (corpo).

2 – No que concerne ao segundo argumento, deve dizer-se que toda opera-


ção da razão e da vontade deriva em nós do que é segundo a natureza, como
se estabeleceu acima (q. 10, a. 1), pois todo o raciocínio deriva dos princípios
naturalmente conhecidos, e todo o apetite que visa os meios tendentes ao fim
deriva do apetite natural do fim último. Eis porque é mister que o direciona-
mento primeiro de nossos atos em vista do fim se faça mediante a lei natural.

3 – No que se concerne ao terceiro argumento, deve dizer-se que também


os animais irracionais participam da razão eterna, como a criatura racional,
mas de um modo que lhes é próprio. Mas, como a criatura racional dela par-
ticipa intelectual e racionalmente, por essa razão a participação da lei eterna
na criatura racional chama-se em sentido próprio lei: pois é a lei algo da razão,
como se disse acima (q. 90, a. 1). Com efeito, na criatura irracional tal parti-
cipação não se faz mediante a razão, donde não pode dizer-se lei senão por
semelhança.

162
Helenismo e Idade Média

Artigo III
Se há alguma lei humana

No que concerne ao terceiro artigo, procede-se da seguinte maneira.


Parece não haver qualquer lei humana.

1 – Com efeito, a lei natural é uma participação da lei eterna, como se vem
de dizer (art. prec.). Ora, mediante a lei eterna tudo é elevado à ordem a mais
perfeita, como diz Agostinho no Livro I do Sobre o Livre Arbítrio (cap. 6, 51,
C.Chr. XXIX, 220). Portanto, a lei natural é suficiente para ordenar tudo o que é
humano. Portanto, não é necessário haver lei humana.

2 – Além disso, a lei possui a razão de medida, como se disse (q. 90, a. 1).
Ora razão humana não é medida das coisas, ocorrendo muito mais o contrá-
rio, como se diz na Metafísica (IX,1,1053 a31). Donde, nenhuma lei pode pro-
ceder da razão humana.

3 – Além disso, uma medida deve ser certíssima, como se diz na Metafísica
(IX,1,1053 a31). Ora, o ditame da razão humana quanto à gestão das coisas é
incerto, conforme o dito da Sabedoria (cap. 9, v. 14): “São hesitantes os pensa-
mentos dos mortais e incertas nossas providências”. Logo, nenhuma lei pode
proceder a razão humana.

Em sentido contrário há o que diz Agostinho no Sobre o Livre Arbítrio, (I,


6,15,48s, C.Ch. XXIX, 220; cp. 15, 31, 105, ib. 232): há duas leis, uma eterna e
outra temporal, a qual denomina humana.

Resposta: Deve dizer-se que, como se disse acima (q. 90, a. 1, ad. 2), a lei
é certo ditame da razão prática. Ora, verifica-se na razão prática um proces-
so semelhante ao que ocorre na especulativa: cada uma delas procede de
alguns princípios a que algumas conclusões, como se estabeleceu acima (ib.).
Segundo esta semelhança deve dizer-se que, como na razão especulado essa
semelhança deve dizer-se que, como na razão especulativa são produzidas as
conclusões das diversas ciências a partir dos princípios indemonstráveis, na-
turalmente dados, mas encontrados pelo trabalho da razão, da mesma forma,
a partir dos preceitos da lei natural, como a partir de certos princípios comuns
e indemonstráveis, é necessário que a razão humana passe à disposição de
algo mais particular. E essas disposições particulares descobertas pela razão
humana dizem-se leis humanas, observadas outras condições que pertencem

163
Helenismo e Idade Média

à razão da lei, como se disse acima (q. 90). Donde dizer Túlio em sua Retórica
(Invent. Reth., Livro 2, cap. 53, DD I,165) que “o início do Direito procede da na-
tureza, em seguida algo veio a ser costume em virtude da utilidade da razão;
posteriormente, as coisas produzidas pela natureza e aprovadas pelo costume
sancionou-as pelo medo das leis e a religião”.

1 – No que concerne ao primeiro argumento, deve dizer-se que a razão


humana não pode participar do pleno ditame da razão divina, mas o faz de
seu modo e imperfeitamente. Assim, do mesmo modo que a razão especula-
tiva, por natural participação da divina sabedoria, é-nos inerente o conheci-
mento de alguns princípios comuns, não porém o conhecimento próprio de
qualquer verdade, como está contida na divina sabedoria, da mesma forma,
no que cabe à razão prática, o homem participa naturalmente da lei eterna
segundo certos princípios comuns, não porém segundo as diretrizes particu-
lares do singular, as quais, entretanto, estão contidas na lei eterna. Eis porque
é necessário que ulteriormente a razão humana venha a sancionar certas leis
particulares.

2 – No que concerne ao segundo argumento, deve dizer-se que a razão


humana não é em si mesma regra das coisas; todavia princípios nela natural-
mente inclusos são certas regras gerais e medidas de todas as ações a serem
efetuadas pelo homem, ações das quais é a razão natural regra e medida,
ainda que não seja medida das obras da natureza.

3 – No que concerne ao terceiro argumento, deve dizer-se que a razão prá-


tica diz respeito àquilo sobre o que pode exercer-se a ação humana, isto é, o
singular e o contingente, não o necessário, como a razão especulativa. Dessa
forma, não podem as leis humanas possuir aquela infalibilidade que têm as
conclusões demonstrativas das ciências. Nem é mister que toda medida seja
de todo infalível e certa, mas segundo é possível em seu gênero.

ARTIGO IV
Se é necessária uma lei divina

No que concerne ao quarto artigo, assim se procede. Parece não ser neces-
sário haver alguma lei divina.

164
Helenismo e Idade Média

1 – Isso porque, como já se disse (art. 2), é a lei natural certa participação
da lei eterna em nós. Ora, a lei eterna é a própria lei divina, como se disse (art.
1). Portanto, não é necessário haver alguma lei divina além da lei natural e das
leis humanas dela derivadas.

2 – Além disso, diz o Eclesiástico(15,14): “Deus entregou o homem nas mãos


de seu próprio conselho”.

Atividades de aplicação
1. Os filósofos helenistas, na busca pela orientação da conduta humana
em direção à felicidade, propuseram variadas formas de como alcançar
tal concepção, identificando-a como o afastamento dos problemas ou
das preocupações (epicuristas), com a ausência de prazer (estoicistas),
ou com a renúncia à busca pelo conhecimento e a vivência em atara-
xia (ceticistas). Com base nessas concepções, identifique as relações
entre essas concepções de vida e o Direito.

2. Para Santo Agostinho nenhuma lei humana é justa e perfeita, pois a


verdade e a justiça pertencem somente a Deus. Ainda assim, há neces-
sidade de obedecer às leis humanas. Reflita sobre a importância desse
pensamento agostiniano para os dias atuais, tendo em vista a ideia
de dupla moral, ou seja, saber utilizar o sistema vigente para construir
algo maior.

3. Tomás de Aquino, refletindo sobre as questões do Direito, opera a divi-


são das leis existentes no universo entre as eternas, naturais, humanas
e divinas. Especialmente as considerações acerca da relação entre di-
reito natural e positivo são muito célebres na teoria tomista. Com base
nessas concepções, analise a relação da distinção entre ambas e sua
importância para o pensamento jurídico.

4. Duns Scott e Guilherme de Ockham desenvolvem a importância da


subjetividade dentro da ordem jurídica. O poder de liberdade do in-
divíduo, de inclusive poder contestar as ordens vigentes, é essencial
para qualquer regime democrático. Apresente reflexões acerca dessa
temática, tendo em vista o mundo contemporâneo.

165
Helenismo e Idade Média

Gabarito
1. Todas essas correntes concentravam-se muito mais no indivíduo e sua
conduta. Desse modo, afastam-se das preocupações com as relações
sociais e, por conseguinte, com o Direito. A felicidade é mais questão
de conduta pessoal do que um escopo social, tal como era para os
predecessores.

2. Imperfeitas ou não, são as leis humanas que organizam a sociedade.


Seja para construir uma carreira profissional, seja para melhorar a pró-
pria sociedade, antes é preciso entender o sistema vigente, e a partir
daí modificar. Não adianta ignorar a existência do sistema vigente, é
preciso entendê-lo, para depois inteligentemente modificá-lo.

3. A relação entre ambos os conceitos no pensamento tomista refere-se


à relação das leis humanas com a realidade natural que é anterior e
preexistente a esta. Dos princípios naturais é que os homens partem a
positivar as condutas no momento em que julgam necessário fazê-lo.

4. Se o indivíduo não possuir espaço para exercer sua subjetividade e


liberdade, pode se dar o perigo de criarmos um regime autoritário,
em que se obedecer as leis vigentes é um caráter obrigatório e sem
oportunidade de questionamento por parte dos indivíduos.

Referências
ABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia. Tradução de: COELHO, António
Borges; SOUZA, Francisco de; PATRÍCIO, Manuel. Lisboa: Presença, 1999. 2 v.

______. História da Filosofia. 5. ed. Tradução de: CARVALHO, Armando Silva.


Lisboa: Editorial Presença, 1999. 3.v.

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: Antiguidade e Idade


Média. 8. ed. São Paulo: Paulus, 2003.

166
A fundação do pensamento
moderno: do racionalismo
ao Iluminismo

Introdução
Neste capítulo trataremos sobre a revolução no pensamento ocorrida no
período compreendido pelo final da Idade Média e início da modernidade.
Essa passagem, que tem seus primórdios com o movimento renascentista
e seu retorno à cultura clássica greco-romana, ocorre com o movimento ra-
cionalista e sua estruturação das ciências através de um método certo, bus-
cando-se não mais compreender as causas dos fenômenos pelas próprias
causas, mas através dos fenômenos buscando se deparar com a realidade.
Por fim, apresentaremos o pensamento iluminista, o qual revolucionou a
Europa moderna, possuindo marcante influência no pensamento filosófico
do Direito.

Desse modo, apresentaremos neste capítulo as principais figuras que


protagonizaram esse movimento revolucionário no âmbito da ciência, que
são Francis Bacon, René Descartes e Baruch de Spinoza, bem como também
trataremos do pensamento iluminista.

Francis Bacon
A transição da racionalidade medieval para a racionalidade moderna, já
iniciada pelos franciscanos Duns Scott e Guilherme de Ockham, prossegue
no pensamento de Francis Bacon, filósofo, político e jurista do século XVII.

Bacon parte da separação entre ciência e Filosofia para refundar o pensa-


mento científico, partindo da divisão das ciências, suas classificações, até a
possibilidade de elaboração de uma enciclopédia das ciências. Para Bacon,
um único estudioso não poderia reunir todo o conhecimento científico, que
deveria ser feito em base ao recolhimento de materiais e experiências. A fi-
losofia de Bacon, portanto, seria fundamental para o desenvolvimento da
ciência empírica.
A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo

A subdivisão do saber inicia-se segundo as faculdades da alma: memória,


fantasia e razão, sendo a História a ciência da memória; a Poesia a ciência
da fantasia; e a Filosofia a ciência da razão. Observa-se que essa tendência
enciclopédica influenciará o Iluminismo, no movimento dos enciclopedistas.
De qualquer forma, embora conceda valor à história e à poesia, dedica maior
atenção à Filosofia, que segundo ele, se entendida profundamente, conduz à
Deus. Por isso para ele a Filosofia possui um tríplice objeto: a natureza, Deus,
1
ROVIGHI, Sofia Vanni. o homem.1
História da Filosofia Mo-
derna: da revolução cien-
tífica a Hegel. 2.ed. Tradu-
ção de Marcos Magno e
É nesse sentido que Bacon fala de teologia natural e teologia revelada,
Silvana Cabucci Leite. São
Paulo: Loyola, 2000. p. 20
sendo a primeira obra da Filosofia e a segunda, da religião. O que lhe interes-
sa é a teologia natural. O fundamento da Filosofia está na “filosofia primeira”,
que trata das condições transcendentes de todos os objetos, como unidade e
multiplicidade, igual e diferente etc. Contudo, depois de tentar aplicar essa
filosofia primeira às questões físicas, encontrará muitas dificuldades, motivos
que o levarão a focar-se nas questões empíricas. Um exemplo dessas dificul-
dades é a assertiva, baseada na filosofia primeira, de que o semelhante atrai
o semelhante. Bacon viu que o ferro não atrai o ferro. Dessa forma centrou
sua filosofia da natureza na investigação das causas e a produção dos efeitos,
numa parte especulativa e uma parte operativa. Dividiu ainda a investigação
das causas em física e metafísica. Não obstante, sua metafísica é bastante
distinta da metafísica aristotélica, pois embora Bacon admita a existência
de uma finalidade no mundo, não é possível aos humanos conhecê-la, de
forma que é mais importante entender o “como” que o “por quê” das coisas.
Para Bacon, seria impossível conhecer a essência das coisas. Nesse ponto,
percebe-se que mesmo criticando os pensadores predecessores, Bacon não
se separa completamente de uma metafísica, pois sua física medieval ainda
procura descobrir a essência das coisas, o que a torna bastante semelhante
2
ROVIGHI, Sofia Vanni. ao estudo metafísico2.
História da Filosofia Mo-
derna: da revolução cien-
tífica a Hegel, p. 21. A crítica baconiana aos antigos, e aqui ele insere tanto os gregos como os
medievais, se dá na concentração dos estudos numa natureza metafísica ou
numa natureza divina. Para Bacon, nenhum homem é capaz de obter todo
esse conhecimento, de forma que é mais necessário estudar a própria natu-
reza desse mundo, ou seja, suas coisas sensíveis.

Bacon pensou um novo método para se conduzir o raciocínio, baseado na


indução, que deveria partir das observações segundo a experiência, e disso
avançar gradualmente e sem interrupção até os axiomas mais gerais. Nesse
sentido, Bacon conceberia o método que contribuiria enormemente com as

170
A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo

ciências empíricas, pois defenderá a observação dos fenômenos, suas tabu-


lações, catalogações, análises e hipóteses. Os comentadores dividem-se em
relação à influência de Bacon para o nascimento da ciência moderna, alguns
o consideram o antecipador da ciência experimental, outros não concordam,
afirmando que suas concepções são muito diferentes daquelas dos cientistas
posteriores. É inegável, contudo, que seu pensamento baseado no método
indutivo participará da revolução científica, até porque, como assinala Villey,
o Novum Organum pode ser considerada a base para a lógica e a moral do
mundo moderno.

A mesma lógica Bacon aplicará ao campo jurídico. Bacon defende que o


direito deve se basear nos fatos, e não em interpretações, e estas devem se
limitar a interpretações restritivas, ou seja, do próprio texto legal. Não cabe 3
VILLEY, Michel. A for-
mação do pensamento
à doutrina criar concepções jurídicas novas. Nesse sentido, Bacon contribui jurídico moderno. Tra-
dução de Claudia Berliner.
com o desenvolvimento de uma Filosofia Jurídica positivista.3 São Paulo: Martins Fontes,
2005. p. 596.

4
Contribuição também importante dada por Bacon à Filosofia Política e Jurí- WHITE, Howard B. Fran-
cis Bacon [1561-1626]. In:
dica é que esta “deveria concentrar-se no que fazem os homens, e não no que STRAUSS, Leo; CROPSEY,
Joseph (Org.). Historia
deveriam fazer”4. Para Bacon, o fim do Direito não seria o justo, mas o útil. Em de la filosofia política.
Cidade do México: Fondo
outras palavras, não se aplica ao Direito conforme um conceito de Justiça de- de Cultura Ecónomica,
1996. p. 351.
rivado de alguma corrente filosófica, mas, conforme a própria sociedade, deve 5
Nascido em 31 de março
trazer benefícios ao aqui e agora. Em síntese, o diferencial baconiano se dá de 1598, em La Haye
Turena, filho de Joachim
no ousado enfrentamento aos clássicos. A coragem de rebater os argumentos Descartes, conselheiro do
parlamento da Bretanha,
metafísicos e confrontar a lógica clássica repercutiria entre os modernos na e de Jeanne Brochard. Em
1605 inicia seus estudos
no colégio jesuíta de La
reformulação do pensamento científico e filosófico, não mais tão preocupado Flèche, onde permanece
até 1613, dedicando-se
com causas finais e transcendentes, mas com a própria natureza sensível. ao estudo da Gramática (4
anos), Retórica (2 anos) e
Filosofia (3 anos). Estudou
na Universitè de Poitiers,
sendo nomeado em no-

René Descartes vembro de 1616 bacharel


e licenciado em Direito.
Posteriormente retira-se
da França, residindo na
O estudo do pensamento de René Descartes5 é de extrema importância Holanda e também em
Frankfurt, na Alemanha.
para a Filosofia do Direito, posto que, apesar de o autor não ter escrito obras Morre em Estocolmo, na
Suécia, em 11 de feverei-
específicas sobre filosofia política ou jurídica, com esse filósofo opera-se a ro de 1650. (COPLESTON,
Frederick. Historia de la
passagem da Filosofia e do Direito à modernidade, de modo que os autores Filosofía. 4: de Descartes
a Leibniz. Barcelona: Ariel,
posteriores ao pensador não se dissociarão de sua concepção de método 1999. 4 v. p. 66.)
6
como base para a construção do conhecimento humano. Descartes repre- REALE, Giovanni; ANTI-
SERI, Dario. História da
senta, de fato, a reestruturação do modo de raciocínio europeu, esforçan- Filosofia: do Humanismo
a Kant. p. 348.

do-se em construir um novo modelo, não se contentando com o que já se 7


Cf. REALE, Giovanni; AN-
encontrava existente.6 Por esse motivo, o filósofo Bertrand Russel chama TISERI, Dario. História da
Filosofia: do Humanismo
Descartes de o “fundador da filosofia moderna”7. a Kant. 6.ed. São Paulo:
Paulus, 2003. 2v. p. 348.

171
A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo

Para Descartes as concepções de método, física e metafísica estão estreita-


mente entrelaçadas e são solidariamente interfuncionais, o pensador parte
de uma realidade metafísica, que será apreciada através do método adequa-
do, para então poder alcançar a realidade física. Desse modo, trataremos
brevemente sobre essas três categorias, assim como, logo em seguida, as
concepções morais do autor, para então refletir sobre a influência da racio-
nalidade cartesiana no pensamento jurídico.

Quanto às concepções de metafísica, destaca-se que para o filósofo esta


era encarada de uma forma mecanicista. O fundamento do sistema metafí-
sico cartesiano é buscado na identidade entre matéria e espaço. Portanto, a
metafísica diz de que é feito e como é feito o mundo. Conforme diz Descartes
8
DESCARTES, René. no Regras para a Orientação do Espírito8, a metafísica ocupa-se de “apenas
Regras para a Orien-
tação do Espírito. São objetos dos quais nosso espírito parece ser capaz de adquirir cognição certa
Paulo: Martins Fontes,
1999. e indubitável”. A metafísica prescreve ao cientista o que ele deve buscar, que
9
REALE, Giovanni; ANTI- problemas são ou não relevantes e a que tipo de leis ele deve chegar.9
SERI, Dario. História da
Filosofia: do Humanismo
a Kant. p. 350-351. Por conseguinte, para alcançar tal objetivo faz-se necessário um método
10
DESCARTES, René. para buscar a verdade. Descartes trata acerca da importância do método
Discours de la Méthode.
Paris : Flammarion, 2000. na célebre obra Discurso do Método10, que introduzia três ensaios científicos
11
RENAULT, Laurence. do pensador, a “Dioptrique”, o “Metéores” e a “Géométrie”.11 Nas palavras de
Présentation. In: DESCAR-
TES, René. Discours de la Reale e Antiseri: “o Discurso do método tornou-se a ‘magna charta’ da nova
Méthode.

12
filosofia”12, pois essa nova proposta metodológica representa a superação
REALE, Giovanni; AN-
TISERI, Dario. História da do pensamento grego, especialmente da lógica e epistemologia aristotélica,
Filosofia: do Humanismo
a Kant. p. 353. substituindo-a pela primazia do método moderno.

Nessa obra Descartes propõe-se a utilizar-se do seu próprio exemplo para


apresentar um método que discipline a mente para identificar com corretu-
de a realidade. Conforme ele próprio diz: “Assim, meu propósito não é ensi-
nar aqui o método que cada um deveria seguir para bem conduzir sua razão,
13
“Ainsi, mon dessein n’est mas apenas mostrar de que maneira procurei conduzir a minha”.13
pas d’enseigner ici la métho-
de que chacun doit suivre
pour bien conduire sa raison, O objetivo é encontrar um método pelo qual o ser humano possa, de
mais seulement de faire voir
en quelle sorte j’ai tâché de fato, agir com a racionalidade disciplinada na identificação da realidade, um
conduire la mienne”. (DES-
CARTES, René. Discours de método que, compreendendo as vantagens da lógica, da geometria e da ál-
la Méthode. p. 32. [tradu-
ção livre].) gebra, fosse isento dos seus defeitos. Disso Descartes fixou quatro preceitos
essenciais: nunca aceitar algo como verdadeiro sem que o conhecesse como
tal; dividir cada uma das dificuldades que devesse examinar em tantas partes
quanto possível e necessário para resolvê-las; conduzir ordenadamente os

172
A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo

pensamentos, começando pelos objetos mais simples e fáceis de conhecer,


para chegar ao conhecimento dos mais compostos; fazer para cada caso
enumerações tão completas e revisões tão gerais que se tivesse a certeza de
nada ter omitido.14 14
DESCARTES, René.
Discours de la Méthode.
p. 49-50.
Na quarta parte da obra em questão, Descartes passa à apreciação do
método que encontrara, apresentando as bases filosóficas, marcantemente
metafísicas, para a afirmação da sua forma de conhecer a realidade. Logo
no início o filósofo apresenta a primeira evidência que fundava a existência
humana e sua capacidade de conhecer: “penso, logo existo”15. Essa assertiva 15
Em francês: “je pense,
donc je suis”, ou ainda em
é considerada o primeiro princípio da filosofia cartesiana; se ao homem é latim: cogito ergo sum.
(DESCARTES, René. Dis-
dada a capacidade de pensar, de conhecer, para que possa fazê-lo ele obri- cours de la Méthode.
p. 66.)
gatoriamente deve antes ser, tendo-se esta como a primeira base de verdade
que possibilite ao homem conhecer a realidade.16 16
“[…] je vois très claire-
ment que, pour penser, il
faut être […]”. (DESCAR-
O filósofo francês ambicionava construir uma Filosofia nova, que fizesse TES, René. Discours de la
Méthode. p. 68.)
“tábula rasa” da antiga e a substituísse; uma Filosofia completa, que resolve-
ria primeiro os problemas da existência de Deus, da imortalidade da alma e
da essência dos seres; em suma, um sistema total que se revestisse da forma
de uma “ciência universal”.17 17
VILLEY, Michel. A for-
mação do pensamento
jurídico moderno. p. 600.
Em relação ao Direito, o pensador acusa a Ciência Jurídica, baseada nas
lições dos escolásticos, a contentar-se somente com resultados prováveis, ou
seja, nadar no obscuro, no duvidoso, no discutível. Partindo-se de premissas
incertas para a Costrução dos seus silogismos, logicamente as consequên-
cias desse raciocínio seriam incertas. Descartes, contudo, ambicionava uma
18
maior exatidão, construir uma Filosofia precisa, certa como a Matemática.18 Michel. A formação
do pensamento jurídico
moderno. p. 601.
No pensamento cartesiano a ciência progredirá por inferências, providas
de uma evidência interna para a mente humana, por via da dedução. O único
meio de se chegar seguramente à verdade é apegar-se à ordem, que pro-
cede sem falhas dos primeiros conhecimentos inatos a suas consequências
lógicas, sem jamais pular um elo do raciocínio, precavendo-se contra a “pre-
cipitação”. Sua crítica à ordem metódica das filosofias antigas ou medievais
é pelo fato destas não realizarem progressos, mas ficarem girando em torno
de si mesmas em controvérsias estéreis.19 19
VILLEY, Michel. A for-
mação do pensamento
jurídico moderno. p. 603.
Estabelecida a ordem sobre a base sólida de princípios inatos, como o
supracitado cogito ergo sum, por deduções sucessivas, partindo da prova da

173
A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo

20
VILLEY, Michel. A for- existência de Deus e da imortalidade da alma do homem, Descartes parte
mação do pensamento
jurídico moderno. p. 604. ao conhecimento da realidade. Constata-se que suas deduções partem de
21
DESCARTES, René. Mé-
ditations Métaphysiques. princípios considerados evidentes por si próprios; através da intuição são
Paris: Flammarion, 1992.
22
“[...] consistirá nas regras
postuladas hipóteses que buscam encontrar de baixo para cima o encadea-
que a mente forja ou que
o pensamento humano mento das causas e dos efeitos. Assim, a ciência aparecerá como um siste-
inclui; sua fonte estará
no pensamento humano ma perfeitamente axiomático, que demonstra as consequências a partir de
inclui; sua fonte estará no
pensamento; será preciso
extraí-lo, por uma série
princípios.20
de deduções, dos princí-
pios racionais que seriam
descobertos no fundo da Conforme Villey, grande parte do direito moderno adotará essa nova
consciência do homem,
adotando então o Direito
a forma de um sistema de-
perspectiva e essa é a maior influência do pensamento cartesiano sobre a
dutivo de regras. É a via do
racionalismo, que tantos ju- Filosofia Jurídica. Por mais que o autor não tenha se dedicado a tratar exaus-
ristas modernos, sobretudo
na Europa continental per- tivamente sobre essa parte da Filosofia, seu método de organização do ra-
correram”. (VILLEY, Michel.
A Formação do Pensa-
mento Jurídico Moderno.
ciocínio influenciou de modo marcante as concepções jurídicas posteriores,
p. 606.)
23
reforçando-se que Descartes, como pai da ciência moderna, também exerce
“[...] fazer dele um pro-
duto das paixões animais
do corpo, das forças dos
marcante influência na formação moderna da Filosofia do Direito.
indivíduos, e depois da
força dos grupos ou do
Estado; aplicar a ele os A concepção metafísica de Descartes, exposta especialmente nas Medita-
métodos das ciências da
natureza física; situá-lo do ções Metafísicas21, faz da alma e do corpo, do pensamento e da matéria, duas
lado dos fatos, regidos por
leis mecânicas, objetiva-
mente determinadas [...] É
espécies de seres separados. Esse dualismo representa o fim da filosofia clás-
a corrente do naturalismo,
como às vezes se diz (já que sica do direito natural, derrubada a noção aristotélico-tomista de natureza,
a expressão direito natural,
que também conviria, ficou há o fim, por conseguinte, da concepção jusnaturalista ligada a essa raciona-
com o partido oposto). O
fracasso dessa doutrina
consiste em imergir o Direi-
lidade. A metafísica cartesiana cinde a noção unitária em dois universos se-
to nos ‘fatos’ objetivos que
são o apanágio das ciências parados: de um lado o pensamento e de outro a matéria, de um lado a ideia
modernas da natureza. O
que tampouco bastaria”. e do outro os fatos. Assim, passam a existir duas saídas: a primeira é situar o
(VILLEY, Michel. A Forma-
ção do Pensamento Jurí-
dico Moderno. p. 607.)
Direito ao lado da alma, no pensamento.22 A outra via seria pensar o Direito
24
VILLEY, Michel. A for- sob a rubrica da matéria.23 Assim, pode-se concluir que além de excluir o
mação do pensamento
jurídico moderno. p. 607. antigo direito natural clássico, a metafísica cartesiana impõe ao pensamento
25
VILLEY, Michel. A for-
mação do pensamento
jurídico moderno suas duas novas direções: racionalismo e naturalismo.24
jurídico moderno. p. 608.
26
“O sistema da common Ressalta-se, por fim, que os ingleses não acolheram o cartesianismo, pre-
law é um sistema de Direi-
to elaborado na Inglaterra,
principalmente pela ação
ferindo a experiência às ideias inatas.25 Agindo assim construíram do experi-
dos Tribunais Reais de Jus-
tiça, depois da conquista mentalismo um Direito muito mais baseado nos costumes e no conjunto de
normanda. A família da
common law compreen- decisões já existentes para a formulação de suas decisões, tal como é o atual
de, além do direito inglês,
que está na sua origem, e
salvo certas exceções, os
Direito anglo-saxão nos sistemas britânico e americano, o chamado common
direitos de todos os países
de língua inglesa. Além dos law26, em contraposição ao sistema do Direito romano-germânico, também
países de língua inglesa, a
influência da common law chamado de civil law, que tem por marca a obediência aos enunciados nor-
foi considerável na maior
parte dos países, senão em
todos, que politicamente
mativos elaborados pelo Estado, possuindo marcantemente uma base racio-
estiveram ou estão associa-
dos à Inglaterra”. (DAVID,
nalista como princípio de toda a ordem do Direito.
René. Os Grandes Siste-
mas do Direito Contem-
porâneo. 3. ed Tradução
de: CARVALHO, Hermínio A.
. São Paulo: Martins Fontes,
1998. p. 279.)

174
A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo

Espinoza
Baruch de Espinoza iniciou seus escritos filosóficos publicando obras com co-
mentários ao pensamento de Descartes e da Escolástica medieval. Na sua obra
Cogitata metaphysica expõe tanto a metafísica geral (o ente e suas propriedades)
como a metafísica especial, que estuda Deus, por exemplo. Mas Espinoza discor-
da dos medievais em relação a Deus, afirmando que “em Deus não há intelecto e
vontade, segundo Espinoza; ora, a afirmação de que todo ente é verdadeiro sig-
nifica que todo ente corresponde a uma ideia divina, e a afirmação de que todo
27
ROVIGHI, Sofia Vanni.
ente é bom significa que ente é querido por Deus”27. Ora, algo querido implica História da filosofia mo-
derna: da revolução cien-
necessariamente que houve uma vontade posta. Além disso, para ele o ente não tífica a Hegel, p. 180.

pode ser bom, porque a propriedade de bom está ligada aos desejos e opiniões
humanas, e não ao conhecimento.

Para Espinoza, o bem é sempre relativo, bem e mal dependem da ação


humana somente. Não há, portanto, um bem objetivo. A polêmica se expan-
de para o campo das virtudes, porque segundo ele um bem sempre levaria
posteriormente a um mal; o prazer levaria à tristeza, por exemplo; a busca
por honras e riquezas é insaciável, e por isso causa dor. Logo, todos esses
bens terrenos não passariam de bens incertos. “Aliás, vendo-se melhor, pra-
zeres, riquezas e honras são mala certa, enquanto o absoluto é um bem certo,
já que a busca daqueles gera litígios, tristeza, temor, enquanto o amor por
28
uma realidade eterna e infinita sola laetitia pascit animum”28. Nesse sentido, ROVIGHI, Sofia Vanni.
História da filosofia mo-
apesar de questionar a validade dos bens terrenos, percebe-se que Espinoza derna: da revolução cien-
tífica a Hegel, p. 181.
credita a possibilidade de um bem absoluto, ainda que ponha em dúvida a
possibilidade de se alcançá-lo. A questão se resolve assim: existe essa reali-
dade superior, contudo em geral o homem apenas consegue imaginá-la, de
forma que tal ideia somente se tornará realidade quando o espírito da nossa
humanidade entrar em união com toda a natureza. Essa explicativa é impor-
tante, porque a obra jurídica de Espinoza, a Ética, começa justamente com
considerações acerca de Deus. O conhecimento deve ser emendado, para
que entre em harmonia com essa união com a natureza.

Também é importante esclarecer que Espinoza não defende a utiliza-


ção de algum método específico, tal como fizeram Bacon e Descartes. Isso
porque segundo ele qualquer metodologia, para ser utilizada, deveria antes
ser justificada por outro argumento, outra metodologia, e assim guiaria-se
até o infinito. É válido, portanto, para solucionar essa problemática, aceitar a

175
A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo

ideia de um Ente perfeito, anterior a qualquer outra coisa. Também por isso
a Ética inicia-se por Deus. Por fim, então, cabe falar da Ética espinoziana, a
Ética como ordem geométrica. Apesar do nome, não é, contudo, uma ordem
matemática, tal como a de Descartes, porque Espinoza preferiu o procedi-
mento sintético, diferente do procedimento analítico de Descartes. Dividida
em cinco partes, tratando de Deus, do espírito humano, das paixões, da força
das paixões, e da potência do intelecto. As paixões aprisionam o homem, o
intelecto o liberta.

Já foi dito que, para Espinoza, Deus é o Ente perfeito, portanto a única
substância. Nesse sentido, sendo Deus a causa primeira de todas as outras
coisas, não pode ele ser coagido a nada, pois toda ordem deriva de Deus.
Sendo assim, não existe uma finalidade na natureza, isto é, algum raciocínio
dedutivo que implique na natureza uma ordem buscando algum fim, porque
esse fim seria divino, e desse modo poderia ser de qualquer forma.

Também a felicidade humana existe nessa perspectiva divina, por meio


do conhecimento das virtudes. Espinoza “ensina-nos que nossa suprema
felicidade e bem-aventurança consiste no conhecimento de Deus, ao qual
nos encaminhamos com o exercício da virtude, de modo que a bem-aven-
turança não é um prêmio concedido por Deus a quem se submete a servi-lo,
29
ROVIGHI, Sofia Vanni. mas aquele serviço divino que é a virtude já é felicidade e suma liberdade”29.
História da filosofia
moderna: da revolução Percebe-se aqui uma contraposição à escolástica. Não há necessidade de se
científica a Hegel, p. 194.
submeter a Deus, mas apenas viver conforme as virtudes, isso já basta para
a felicidade humana. É importante notar mais uma vez que Espinoza não se
preocupa com finalidades e vontades.

Contudo, empecilho para essa aproximação a Deus é a questão das pai-


xões. “Ora, as paixões são realidades como as outras, determinadas pelas
eternas e imutáveis leis da natureza, portanto não devem ser desprezadas
ou deploradas, mas descritas e estudadas como se se tratassem de linhas,
30
ROVIGHI, Sofia Vanni. planos e sólidos, ou seja, de entidades geométricas”30. A paixão seria uma
História da filosofia
moderna: da revolução potência do corpo que aumenta ou reduz a capacidade de ação do homem.
científica a Hegel, p. 195.
As paixões indicam também uma tendência, porque a tendência é aquilo
que existe no homem com perseverança do próprio ser. Quando a tendência
fundamental relaciona-se ao próprio espírito humano, à sua essência, é von-
tade, e quando provém tanto do corpo como do espírito, é impulso, desejo.
31
As paixões são sempre advindas do corpo. “O impulso é, portanto, uma con-
ROVIGHI, Sofia Vanni.
História da filosofia mo- sequência da natureza do sujeito, não da bondade do objeto, e por isso bom
derna: da revolução cien-
tífica a Hegel, p. 196. é aquilo que satisfaz o impulso, não o impulso que tende ao bem”31.

176
A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo

Contudo, as paixões são também um caminho para a liberdade, uma vez


que elas obrigam a aplicação de força contrária, em um raciocínio geométri-
co. Exemplo disso é o ódio; se alguém nos odeia, é resultado de alguma causa
nossa, não importando aqui qual seja ela; se retribuimos esse ódio com mais
ódio, a tendência é que esse ódio aumente, mas se retribuirmos com amor,
a outra parte somente poderá retribuir com amor. Além do raciocínio geo-
métrico, é importante notar novamente a relativização espinoziana de ideias
como ódio e amor, bem e mal. Ora, todas essas paixões são impulsos, causas
não livres que atingem o homem. Por isso Espinoza reforçará na parte da
Ética dedicada às virtudes que elas não podem ser suprimidas, porque são
realidades humanas. Conhecer as paixões, não suprimi-las e agir objetivando
as virtudes, é aquilo que o filósofo chamará de razão, a condição ética espe-
cial que conduz o homem ao conhecimento de Deus.

As coisas mundanas são porque são, e não porque devem ser, isto é, são
porque Deus assim as pôs. Nessa condição, é notório que a alegria produz
aumento de capacidade, por exemplo, e que a tristeza, ao contrário, reduz.
É aqui que o homem se dá conta de que a alegria é um bem natural da hu-
manidade, e que viver conforme ela produz uma condição mais divina. A
aproximação a Deus se dá pelo conhecimento, pelo gosto de viver e querer
viver conforme os valores espirituais, aqueles que nos conduzem acima das
paixões.

A racionalidade que une a matemática, ou a ciência, às questões éticas,


preocupadas, sobretudo, com valores morais, conduzirá o homem moderno 32
“As declarações de di-
reitos norte-americanas,
ao movimento iluminista. juntamente com a decla-
ração francesa de 1789, re-
presentaram a emancipa-
ção histórica do indivíduo
perante os grupos sociais

A filosofia iluminista aos quais ele sempre se


submeteu: a família, o clã,
o estamento, as organiza-
ções religiosas. É preciso
O Iluminismo foi o movimento nascido na modernidade da Europa, de pro- reconhecer que o terreno,
nesse campo, fora prepa-
funda importância para o Direito até a atualidade. Marca maior desse movimen- rado mais de dois séculos
antes, de um lado pela
to são os dois mais importantes eventos políticos da época, ambos sob inspira- reforma protestante, que
enfatizou a importância
ção dos filósofos iluministas. Tratam-se, respectivamente, da Independência dos decisiva da consciência
individual em matéria de
Estados Unidos da América, em 1776, e da Revolução Francesa, em 1789.32 moral e religião; de outro
lado pela cultura da per-
sonalidade de exceção,
do herói que forja sozinho
O movimento iluminista caracteriza-se pela libertação da mente humana o seu próprio destino e
os destinos do seu povo,
de sua servidão espiritual. Para tanto, propunha-se o uso crítico desprecon- como se viu sobretudo na
Itália renascentista”. (COM-
ceituoso da razão voltada para a libertação em relação aos dogmas meta- PARATO, Fábio Konder. A
Afirmação Histórica dos
físicos, aos preconceitos morais, às superstições religiosas, às relações de- Direitos Humanos. 4. ed.
São Paulo: Saraiva, 2005.
sumanas entre os homens, às tiranias políticas. O lema dessa corrente de p. 52.)

177
A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo

pensamento era: “tem a coragem de servir-te de tua própria inteligência”. Era


nesse espírito que buscava-se através da orientação racional a boa conduta
33
REALE, Giovanni; AN- individual e social.33
TISERI, Dario. História da
Filosofia: do Humanismo
a Kant. p. 665. Immanuel Kant, o qual terá seu pensamento analisado mais adiante, em sua
34
O termo alemão Au- “Resposta à pergunta: que é esclarecimento?” (Aufklärung34), diz o seguinte:
fklärung é o correlato
germânico do Iluminismo
francês; sua tradução mais Esclarecimento [Aufklärung] é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é
precisa é aquela apre- culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção
sentada no texto, como
esclarecimento.
de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não
se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de
si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio
35
KANT, Immanuel. Res- entendimento, tal é o lema do esclarecimento [Aufklärung].35
posta à pergunta: Que é
“Esclareciemnto”? (Au-
fklärung). In: ________.
Textos Seletos. Tradução
A filosofia iluminista foi hegemônica no séc. XVIII, influenciando toda
de Floriano de Souza Fer-
nandes. 3. ed. Petrópolis: a Europa, caracterizando-se como um movimento no qual a base está na
Vozes, 2005. p. 63, 64.
razão humana. A razão dos iluministas se explicita como defesa do conheci-
mento científico e da técnica enquanto instrumentos de transformação do
mundo e de melhoria progressiva das condições espirituais e materiais da
humanidade.

Os iluministas, através da fé na infinita possibilidade de progresso das


“luzes” da razão, acreditam na infinita possibilidade de progresso do homem,
ligando-o à sua capacidade de conhecer. Na possível eliminação de todos os
elementos irracionais que corrompem o homem e a sociedade, dessa elimi-
nação, por intermédio da afirmação da razão, nascerá para os homens um
36
ADORNO, F.; GREGORY, estado de felicidade e de bonança.36
T.; VERRA, V. Manuale
di storia della filosofia.
Roma-Bari: Laterza, 1998. Os ideais iluministas tomaram força dentro da emergente burguesia que
2v. p. 302.
ganhava espaço e poder com o desenvolvimento econômico europeu. A
partir da luta pela razão e o progresso, estes iniciam a luta pela liberdade de
publicação e de propaganda, criticando os institutos que protegiam a cultu-
ra da aristocracia europeia, em que os iluministas se sentiam estranhos e a
37
ADORNO, F.; GREGORY, qual buscavam derrubá-la.37
T.; VERRA, V. Manuale di
storia della filosofia. p.
303. Os filósofos iluministas, propagadores de uma religião e moralidade
laicas, estabelecem a razão como fundamento das normas jurídicas e das
concepções do Estado. Tal como se fala da religião natural e da moral natu-
ral, fala-se também do direito natural. Natural no sentido de racional, não
sobrenatural. O ideal jusnaturalista iluminista busca um Direito em con-
38
MONTESQUIEU. O Es-
formidade com a razão. Conforme assinala Montesquieu: “As leis, em seu
pírito das Leis. Tradução
de Renato Janine Ribeiro.
significado mais extenso, são as relações necessárias que derivam da natu-
São Paulo: Martins Fontes,
2000. p. 11.
reza das coisas”38. Embora livres das cadeias da religião, os homens devem

178
A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo

estar sujeitos ao domínio da Justiça, pois as leis do Direito são objetivas e 39


REALE, Giovanni; AN-
TISERI, Dario. História da
não modificáveis, à semelhança das leis da Matemática, conforme acentua Filosofia: do Humanismo
a Kant. p. 673.
Montesquieu nas Cartas Persas.39 40
“Na Revolução Fran-
cesa [...] todo o ímpeto
Com base nas ideias jusnaturalistas dos iluministas é que se elaborou a do movimento político
tendeu ao futuro e re-
doutrina dos direitos do homem e do cidadão que encontra seu maior res- presentou uma tentativa
de mudança radical das
plendor na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, ela- condições de vida em so-
ciedade. O que se quis foi
borada pela Assembleia Constituinte francesa, especificando os princípios apagar completamente
o passado e recomeçar
a história do marco zero
herdados do espírito da Revolução Francesa.40 Os direitos do homem e do ci- – reinício muito bem sim-
bolizado pela mudança de
dadão que a assembleia considerou naturais foram: a liberdade, a igualdade, calendário”. (COMPARATO,
Fábio Konder. A Afirma-
a propriedade, a segurança e a resistência à opressão. A lei é igual para todos ção Histórica dos Direi-
tos Humanos. p. 51.)
e estabelece limites precisos ao poder executivo, a fim de proteger a liberda-
41
A referida Carta possui
de pessoal, de opinião, de religião e de palavra. A lei é expressão da vontade marcante inspiração, ainda,
na Declaração dos Direitos
geral, feita como concurso dos cidadãos ou através dos representantes de da Virgínia, cuja Seção 1
diz: “Todos os homens são
todos os cidadãos. Destaca-se que nesse meio o Direito de Propriedade é por natureza igualmente
livres e independentes,
afirmado como “sagrado e inviolável”.41 tendo certos direito inatos,
dos quais, quando entram
em um estado de socieda-
Conforme conclui Reale: de, não podem, através de
nenhum pacto, privar ou
despojar sua posteridade,
Criticados pela direita e pela esquerda, os princípios fixados na doutrina dos direitos do ou seja, o gozo da vida e li-
berdade, com os meios de
homem e do cidadão se encontram na base do ordenamento constitucional dos Estados adquirir e possuir proprie-
democráticos de tipo ocidental. E, apesar de seus limites, tantas vezes denunciados, o dade e buscar a obtenção
iluminismo jurídico ainda está vivo, na teoria e na prática do estado de direito dos nossos da felicidade e segurança”;
“That all men are by nature
dias. No que se refere mais especificamente ao século XVIII, ele atuou muito fecundamente, equally free and indepen-
“removendo resíduos de doutrinas e de instituições efetivamente superadas e [...] dent, and have certain inhe-
rent rights, of which, when
estimulando a racionalização da legislação e a afirmação dos princípios jusnaturalistas de they enter into a state of
liberdade e tolerância” (G. Fassò).42 society, they cannot, by any
compact, deprive or divest
their posterity; namely, the
Por intermédio desses argumentos, demonstra-se o espírito revolucioná- enjoyment of life and liberty,
with the means of acquiring
rio oriundo do “Século das Luzes”, bem como seus reflexos na estruturação and possessing property,
and pursuing and obtai-
do pensamento moral e especialmente jurídico. De modo marcante, tal como ning happiness and safety”.
(UNITED STATES OF AMERI-
destacado na citação acima, os princípios jusnaturalistas dos pensadores ilu- CA. The Virginia Declara-
tion of Rights. Disponível
ministas influenciaram profundamente a constituição do direito contempo- em: <www.usconstitution.
net/vdeclar.html>. Acesso
râneo, sendo, portanto, de essencial importância o seu estudo. em: 9 fev. 2010. [tradução
livre.)

A herança iluminista não somente se faz presente na construção do Di-


reito, mas também pode ser vista na vida quotidiana e no mundo do busi- 42
REALE, Giovanni; AN-
TISERI, Dario. História da
ness. Primeiramente, esse espírito de servir-se da própria consciência, sair da Filosofia: do Humanismo
a Kant. p. 676.
menoridade do conhecimento em busca da condução da vida através da
razão, é essencial no competitivo mundo dos negócios da atualidade. A ca-
pacidade de saber deparar-se com os fenômenos e, racionalmente, ser capaz
de resolvê-los de modo criativo é uma premissa ao homem de sucesso na
contemporaneidade.

179
A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo

Além disso, o profundo respeito pelo ser humano dos iluministas traz
a responsabilidade do líder e de seus colaboradores no desenvolvimento
humano. Se a busca pela igualdade é um princípio, ao menos a igualdade de
direitos, esta não será alcançada somente através da valorização da liberda-
de humana; outros valores ideais, como a dignidade humana, a fraternidade,
e o respeito às diferenças entre as pessoas também devem ser potencializa-
dos para que a civilização humana como um todo se desenvolva.

Portanto, para que isso se torne possível, faz-se necessário que o líder da
contemporaneidade, seja qual for sua área de atuação, se responsabilize por
buscar, no exercício de sua liderança, tornar realidade esses valores, visto
que no mundo contemporâneo a busca pelo desenvolvimento econômico
sem o crescimento daqueles que com ele trabalham ou da sociedade não é
mais aceita pelas sociedades contemporâneas, sendo pressuposto essencial
a preocupação com o desenvolvimento social sustentável.

Ampliando seus conhecimentos

“Razão” e direito natural


(REALE; ANTISERI, 2003)

Contrário aos sistemas metafísicos e fautor de religiosidade e moralidade


racionais e laicais, o racionalismo iluminista estabelece a razão como funda-
mento das normas jurídicas e das concepções do Estado. E, assim como se fala
de religião natural e de moral natural, fala-se também de direito natural. E, aí,
natural significa racional e, melhor ainda, não sobrenatural. O espírito crítico
dos iluministas, que peneira toda ideia, opinião, crença proveniente do passa-
do, penetra por toda parte, ”encontrando-se também nas obras dos escritores
de Filosofia Política e Jurídica, empenhados em rever e transformar os princí-
pios da vida social e das formas em que ela se organiza. O ideal jusnaturalis-
ta de um Direito em conformidade com a razão precisa-se de modo sempre
mais radical no século XVIII, inspirando projetos de reformas. Tais reformas
muitas vezes são operacionalizadas pelos próprios soberanos, muitos dos
quais gostam de ser chamados ‘iluminados’, embora permanecendo absolu-
tistas, mas outras vezes também são propugnados e realizados contra eles.
Na França, o Iluminismo jurídico-político desembocaria na revolução, um de
cujos primeiros atos seria precisamente a declaração tipicamente jusnaturalis-
ta dos direitos do homem e do cidadão. Com efeito, é próprio do Iluminismo

180
A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo

orientar a pesquisa cognoscitiva para fins práticos, com o objetivo de tornar


melhor a condição do homem, ou seja, torná-la mais conforme à razão, que se
considerava o modo para torná-la mais feliz”. (G. Fassò)

“Em seu significado mais amplo, as leis são as relações necessárias que
derivam da natureza das coisas”, afirma Montesquieu em O Espírito das Leis.
E, embora livres das cadeias da religião, devemos estar sujeitos ao domínio
da Justiça, pois as leis do Direito são objetivas e não modificáveis, à seme-
lhança das leis da Matemática, continuava dizendo Montesquieu nas Cartas
Persas. Por seu turno, embora constatando a grande variedade de costumes e
vendo que “o que em uma região se considera virtude é precisamente o que
em outra se vê como vício”, Voltaire era de opinião que “existem certas leis na-
turais sobre as quais os homens de todas as partes do mundo devem estar de
acordo [...]. Assim como (Deus) deu às abelhas forte instinto, pelo qual traba-
lham em comum e procuram juntas o seu alimento, da mesma forma também
deu ao homem certos sentidos que nunca poderá renegar: são os vínculos
eternos e as primeiras leis da sociedade humana”. A fé na natureza imutável
do homem – feita de inclinações, instintos e necessidades sensuais – pode-se
encontrar também em Diderot, que reafirmou contra as teses de Helvetius,
segundo as quais os instintos morais nada mais seriam do que máscaras do
egoísmo. Para Diderot, existem vínculos naturais entre os homens, vínculos
que as morais religiosas procuram despedaçar.

Segundo Mário A. Cattaneo, filósofo do Direito, nosso contemporâneo, as


características gerais da doutrina iluminista são: 1) “atitude racionalista em
relação ao direito natural”; 2) “atitude voluntarista em relação ao direito posi-
tivo”. A racionalidade e a universalidade da lei, a tradução das regras eternas
e imutáveis do direito natural em leis positivas pelo legislador e a certeza do
Direito estariam entre as instâncias mais positivas da doutrina iluminista, que
sempre, na opinião de Cattaneo, se configura como luta pela elaboração e rea-
lização de valores jurídicos essenciais.

Trata-se de concepção que, em primeiro momento, move-se dentro dos li-


mites do despotismo iluminado, para depois sair desse quadro, com propostas
políticas, teóricas e práticas de natureza liberal, para desembocar finalmente
na revolução ou então em reformas inconstitucionais que subvertem a ordem
do ancien regime e que se mostram decisivas para a construção do moderno
estado de direito. Desse modo, a conclusão de Cattaneo é “a afirmação do
caráter essencialmente liberal e democrático da Filosofia Jurídica iluminista e,

181
A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo

na adesão a essa concepção, a indicação de uma tomada de posição em favor


da liberdade política e da democracia”.

O iluminismo jurídico, portanto, influiu sobre os “soberanos iluminados”,


sobretudo na Alemanha e na Áustria, bem como sobre aquela burguesia em
ascensão que, sobretudo na França, se rebelaria contra os soberanos. Con-
sequentemente, como destacou recentemente outro filósofo do direito, G.
Tarello, o iluminismo jurídico da área germânica é “a ideologia operativa dos
soberanos e funcionários, isto é, [...] a ideologia de quem detém o poder polí-
tico”, ao passo que o iluminismo jurídico, especialmente francês, mas também
italiano, seria constituído por “uma série de ideologias de contestação e opo-
sição, não compartilhadas em geral pelos soberanos, nem, durante muito
tempo, por seus funcionários”.

Tais ideologias, acrescenta Tarello, em si não eram revolucionárias, mas


tornam-se tais quando, sob a premência dos acontecimentos históricos, a bur-
guesia a transformou em “máquina ideológica complexa, capaz de destruir a
cultura e as instituições jurídico-políticas existentes”. A distinção entre ilumi-
nismo jurídico reformador e iluminismo político revolucionário sem dúvida
parece útil, pelo menos em primeira instância, “para descrever a formação e os
resultados que algumas doutrinas jurídicas apresentaram, respectivamente,
na França e na área alemã do século XVIII” (P. Comanducci).

Foi com base nas ideias jusnaturalistas dos iluministas que se elaborou a
doutrina dos direitos do homem e do cidadão, que encontra a sua realiza-
ção mais eloquente na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, na
qual, em 1789, a Assembleia Constituinte francesa quis especificar princípios
que seriam o documento programático da Revolução Francesa. Os direitos
do homem e do cidadão que a Assembleia Constituinte considerou naturais
foram: a liberdade, a igualdade, a propriedade, a segurança e a resistência à
opressão. A lei é igual para todos e estabelece limites precisos ao poder exe-
cutivo, a fim de proteger a liberdade pessoal, de opinião, de religião e de pala-
vra. A lei é expressão da vontade geral, feita com o concurso dos cidadãos ou
através dos representantes de todos os cidadãos. A propriedade é afirmada
como direito “sagrado e inviolável”.

De clara inspiração individualista, a Declaração francesa de 1789 se refere


à declaração norte-americana de 1776, isto é, a “declaração dos direitos feita
pelos representantes do bom povo da Virgínia, reunido em convenção plena

182
A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo

e livre”, cujo artigo 1.º diz que “todos os homens são por natureza igualmen-
te livres e independentes, tendo certos direitos inatos, dos quais não podem
privar ou despojar seus pósteros através de nenhum pacto, quando entram
em estado de sociedade, isto é, o gozo da vida e a posse da propriedade, a
persecução e a obtenção da felicidade e da segurança”. O artigo 2.º diz que
“todo o poder reside no povo e, por conseguinte, dele deriva”. O artigo 3.º: “ o
governo é ou deve ser instituído para o bem comum, a proteção e a segurança
do povo.” O artigo 4.º: “Nenhum homem ou grupo de homens tem o direito a
emolumentos ou privilégios particulares.” O artigo 5.º: “os poderes Legislativo
e Executivo do Estado devem ser separados e distintos do poder Judiciário.” E
assim por diante, com a enunciação daqueles que, em seguida, seriam consi-
derados os princípios do Estado liberal-democrático ou estado de direito.

Criticados pela direita e pela esquerda, os princípios fixados na doutrina


dos direitos do homem e do cidadão se encontram na base do ordenamento
constitucional dos Estados democráticos de tipo ocidental. E, apesar de seus
limites, tantas vezes denunciados, o iluminismo jurídico ainda está vivo, na
teoria e na prática do estado de direito dos nossos dias. No que se refere mais
especificamente ao século XVIII, ele atuou muito fecundamente, “removendo
resíduos de doutrinas e de instituições efetivamente superadas e [...] estimu-
lando a racionalização da legislação e a afirmação dos princípios jusnaturalis-
tas de liberdade e tolerância” (G. Fassò).

No que se refere à racionalização da legislação, basta pensar que, por exem-


plo, na França, “a unificação do sujeito de direito outra coisa não era [...] do que
a eliminação dos múltipos status jurídicos (nobre, eclesiástico, comerciante,
católico, protestante, judeu, homem, mulher, primogênito etc.) que tinham
relevância processual e substancial, correspondendo à estratificação social do
ancien regime” (P. Comanducci).

Se as ideias jusnaturalistas de “liberdade” e “igualdade” do “indivíduo” foram


vistas pelos intérpretes marxistas como a sistematização superestrutural de
um processo econômico estrutural, o filósofo de Direito Joel Solari escrevia
em 1911 que “a codificação resume os esforços seculares dos princípios, dos
jurisconsultos e dos filósofos para reduzir a legislação civil a uma unidade ma-
terial e formal [...]. A invocada uniformidade das leis civis implicava a abolição
da todas as desigualdades jurídicas derivadas do nascimento, da classe social,
da profissão, da riqueza ou do domicílio”.

183
A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo

E, se os princípios éticos e jurídicos são naturais, também são naturais os


princípios que economistas como François Quesnay (1694-1774), Mercier de
la Rivière, Du Pont de Nemours e outros resumiram no pensamento fisiocráti-
co, cujo núcleo essencial encontram-se na fórmula liberal: Laissez faire, laissez
passer. A propriedade privada e a livre concorrência são “naturais”’, ao passo
que é contrária à “ordem natural” qualquer intervenção estatal visando a blo-
quear ou obstaculizar tais leis naturais. E a função do Estado ou do soberano é
essencialmente negativa: remover os obstáculos que impedem o desenvolvi-
mento normal da “ordem natural”.

Atividades de aplicação
1. Francis Bacon defendeu uma Filosofia empírica, baseada na análise das
coisas sensíveis, em oposição a uma explicação metafísica. A procura
pela coisa posta repercutirá no Direito influenciando um direito posi-
tivista, preocupado sobretudo com os fatos. Com base nisso, comente
a relação entre empirismo científico e positivismo jurídico, lembrando
também que Bacon se preocupa mais com o útil do que com o justo,
ou seja, um Direito mais voltado à praticidade do aqui e agora do que
com concepções filosóficas.

2. Considerando a proposta de ordenação racional de René Descartes,


qual a sua importância para o pensamento jurídico na contempora-
neidade.

3. Espinoza afirma que as paixões são naturais ao homem, e que não


adianta suprimi-las, mas conhecê-las objetivamente. Relacione a pro-
blemática das paixões na visão de Espinoza aos dias atuais: o homem
hoje de fato tenta conhecer objetivamente as paixões? Como se vive a
paixão na atualidade: suprimindo-a, vivendo-a ou buscando conhecê-
-la objetivamente? E qual sua visão acerca desse tema, tão essencial
para qualquer ramo da vida?

4. Com base nas concepções iluministas, especialmente na ideia de con-


duta racional humana, reflita sobre suas influências na contempora-
neidade.

184
A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo

Gabarito
1. Influenciado pelo empirismo científico, o direito demasiadamente po-
sitivista corre o risco de esquecer aspectos filosóficos, sociais, psicoló-
gicos, entre outros, que existem por trás de um fato, e ignora que um
acontecimento não pode ser analisado em separado da totalidade.

2. O pensamento de René Descartes é especialmente essencial para a


compreensão da lógica jurídica, ou seja, pela organização do racio-
cínio humano, de modo que na apreciação da situação em questão
se esteja apto a emitir um juízo de certeza, diferenciando o certo do
errado, com base em premissas lógicas e em um raciocínio dedutivo.
A sentença judicial, por excelência, parte de um raciocínio dedutivo,
da Lei como premissa geral, aplicando-se à situação particular que é
aplicável.

3. Na atualidade não há uma análise séria sobre as paixões, em ambos os


extremos. Ou vive-a exageradamente, sem pensar nas consequências,
ou suprime-a da mesma forma.

4. Os filósofos iluministas influenciaram a racionalidade de onde se partiu


para a fundação do atual estado de direito, ou seja, do Estado gover-
nado pelas leis e que, partindo de princípios racionais, busca auxiliar
à boa condução do ser humano. Baseados em princípios essenciais e
em bens jurídicos a serem protegidos pelo Estado, os iluministas pro-
puseram um Estado que possui sua atuação possibilitada, ao mesmo
tempo que limitada pelas próprias leis.

Referências
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Laterza, 1998. 2 v.

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185
A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo

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(Org.). Historia de la Filosofía Política. Cidade do México: Fondo de Cultura Ecó-
nomica, 1996.

186
A fundamentação do estado
moderno: os filósofos
contratualistas

Introdução
Continuando a análise das escolas de pensamento que mais influencia-
ram a Filosofia do Direito na transição para o período moderno, trataremos
neste capítulo de um grupo de pensadores desse período que destacam-se
por serem os fundamentadores da nova concepção de sociedade, Estado e
de Direito que surgia.

Apesar das divergências entre suas concepções particulares, esses pen-


sadores têm em comum a ideia de que em algum tempo no passado os
homens, que se encontravam em um estado de naturalidade, no qual viviam
individualmente, perceberam que seria mais vantajoso compartilhar a com- 1
Thomas Hobbes nasceu
panhia dos outros homens, estipulando-se então um contrato onde as partes em Malmesbury, Ingla-
terra, em 1588. Aprendeu
envolvidas instituíam direitos e deveres entre si, bem como passavam a or- muito cedo o grego e o
latim. Seu amor às obras
ganizar politicamente sua convivência recíproca. Por essa razão esses pensa- clássicas o levou a pro-
duzir diversas traduções
dores foram chamados de contratualistas. de obras gregas e latinas.
Após ter concluído seus
estudos superiores em
Oxford, a partir de 1608
Portanto, neste capítulo estudaremos o pensamento dos principais re- tornou-se preceptor junto
à poderosa casa de Caven-
presentantes dessa corrente: Thomas Hobbes, John Locke, Montesquieu e dish, conde de Devonshi-
re. Foi também preceptor
Jean-Jacques Rousseau. de Carlos Stuart (futuro
rei Carlos II), no período
em que a corte estava
no exílio em Paris, após
a tomada do poder por

Thomas Hobbes Oliver Cromwell. Com a


retomada do poder da di-
nastia dos Stuart, obteve
uma pensão por parte de
Thomas Hobbes1 é o pensador que opera a passagem científica da mo- Carlos II, podendo dedi-
car-se aos seus estudos.
dernidade no âmbito da Filosofia Política e Jurídica, sendo também o filósofo Morreu aos 91 anos de
idade, em dezembro de
que inaugura o pensamento contratualista. Hobbes teve a oportunidade de 1679. (REALE, Giovanni;
ANTISERI, Dario. História
entrar em contato com as principais mentes que protagonizaram a revolu- da Filosofia: do huma-
nismo a Kant. 6. ed. São
ção científica e filosófica em seu tempo, sendo extremamente influenciado Paulo: Paulus, 2003. 2 v. p.
483-484.)

pelo pensamento de Francis Bacon, de René Descartes e também pela Física 2


REALE, Giovanni; ANTI-
SERI, Dario. História da
de Galileu Galilei2. Filosfia: do Humanismo a
Kant. p. 485.
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas

3
HOBBES, Thomas. Do Ci-
dadão. Tradução, apresen-
Nesse período a Inglaterra encontrava-se conturbada por um conflito
tação e notas de Renato
Janine Ribeiro. 3. ed. São
civil entre os representantes do anglicanismo, religião da monarquia, os pu-
Paulo: Martins Fontes,
2002. Clássicos. p. 29.
ritanos, compostos principalmente pela burguesia, e a minoria católica. Esse
4
HOBBES, Thomas. Levia-
contexto de instabilidade levou Hobbes a compor sua teoria da formação
tã ou Matéria Forma e
Poder de uma República
do Estado e do nascimento dos direitos humanos de uma diversa daquela
Eclesiástica e Civil. Orga-
nizado por Richard Tuck.
tratada pela Antiguidade Clássica, conforme veremos ao tratar sobre suas
Tradução de João Paulo
Monteiro e Maria Beatriz obras Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de uma República Eclesiástica e Civil e
Nizza da Silva. São Paulo:
Martins Fontes, 2003. Do Cidadão.
Clássicos Cambridge da
Filosofia Política. p. 109.
Hobbes considera os homens como naturalmente iguais. Embora existam
5
“O estado de guerra,
assim, é a identidade diferenças de força ou inteligência entre os seres humanos, estas não são su-
última do estado de natu-
reza. A guerra, de fato, não ficientes para garantir a supremacia de uns sobre outros. Até o mais fraco dos
é apenas o desencadear-
-se das armas, o comba- homens possui meios de matar o mais forte, o que atesta essa igualdade de
te efetivo, mas também
a conhecida disposição natureza.3 Portanto, a diferença entre um e outro não é fundamento suficien-
para tanto, ou a falta de
uma garantia certa do te para que um deles possa aspirar benefício em detrimento dos demais.
contrário. A falta de se-
gurança acarretada pelo
estado de natureza e o
fracasso de toda estraté-
Contudo, da igualdade quanto à capacidade deriva a igualdade quanto à
gia implementada pelos
indivíduos para alcançá-la
esperança de se atingir os próprios fins, e se dois homens desejam a mesma
não podem deixar de ser
registrados; as exigências coisa, sendo impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos.
da paz e da cooperação
surgem espontaneamen- No caminho para o seu fim, esforçam-se por destruir ou subjugar um ao
te nas mentes de muitos
homens à medida que a outro. Disso colhe-se que todos vivem com receio uns dos outros.
crueldade da sua condi-
ção se manifesta aos seus
olhos”. (PICCINI, Mario. Nesse raciocínio os homens não tiram prazer algum da companhia uns
Poder Comum e represen-
tação em Thomas Hobbes. dos outros, concluindo-se que: “durante o tempo em que os homens vivem
In: DUSO, Giuseppe (Org.).
O Poder: história da Fi- sem um poder comum capaz de mantê-los todos em temor respeitoso, eles
losofia Política moderna.
Tradução de: CIACCHI,
Andrea; SILVA, Líssia da
se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que
Cruz e; TOSI, Giuseppe.
Petrópolis, Vozes, 2005.
é de todos contra todos os homens”4. Por guerra não se entende somente a
p. 128.)
batalha ou o ato de lutar, mas o lapso temporal durante o qual a disposição
para tanto é suficientemente conhecida. Por isso, afirma-se que a humanida-
de encontra-se em guerra constante.5

Hobbes chama esse período de estado de natureza, no qual, apesar de


6
“Para ser imparcial,
ambos os ditos são certos
todos os homens serem iguais e livres, eles não dotam de meios para se pro-
– que o homem é um
deus para o homem, e
teger contra os outros indivíduos, vivendo em guerra ou na iminência desta.
que o homem é o lobo
do homem. O primeiro é
Nesse estado o homem é o lobo do próprio homem (homo homini lupus)6.
verdade, se compararmos
os cidadãos entre si; e o se-
gundo, se cotejarmos as ci- No estado de guerra, nada pode ser injusto, pois “Onde não há poder
dades”. (HOBBES, Thomas.
Do Cidadão. p. 3) comum não há lei, e onde não há lei não há injustiça”.7 Além disso, inexistem
7
HOBBES, Thomas. Le- a propriedade e o domínio das coisas, só pertence a cada homem aquilo que
viatã ou Matéria Forma
e Poder de uma Repú- ele é capaz de conseguir, apenas enquanto for capaz de conservar. Assim, o
blica Eclesiástica e Civil.
p. 111. medo da morte e o desejo das coisas necessárias a uma vida confortável, con-

190
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas

seguidas por meio do trabalho, levam o homem a tender para a paz, sendo
a busca por esta uma lei da natureza. Considera-se lei natural, pois a razão
sugere adequadas normas de paz, em torno das quais se pode chegar a um
acordo.8 Além dessa, outras 18 leis de natureza são apresentadas, estas são 8
ROVIGHI, Sofia Vanni.
História da Filosofia Mo-
naturais pois foram inscritas através da experiência humana, estreitamente derna: da revolução cien-
tífica a Hegel. Tradução de
ligadas à conservação e à defesa da vida. Marcos Bagno e Silvana
Cobucci Leite. São Paulo:
Loyola, 1999. p. 220.
Nesse contexto, conclui-se que o Direito de Natureza (Jus Naturale) é a
liberdade que cada homem possui de usar o seu próprio poder, da maneira
que quiser, para a preservação da sua própria natureza (sua vida) e de tudo
aquilo que o seu julgar e sua razão lhe indiquem como meios adequados
para o alcance desse fim.9 Por sua vez a liberdade é vista como a ausência de 9
HOBBES, Thomas. Le-
viatã ou Matéria Forma
impedimentos externos que tiram parte do poder que cada um tem de fazer e Poder de uma Repú-
blica Eclesiástica e Civil.
o que quiser. p. 112.

A Lei de Natureza (Lex Naturalis), por sua vez, é o preceito ou regra geral
estabelecido pela razão, mediante o qual se proíbe a um homem fazer tudo
o que possa destruir sua vida ou privá-lo dos meios necessários para preser-
var ou omitir aquilo que pense melhor contribuir para preservar. Essa lei na-
tural possui um caráter estritamente moral, não jurídico, dada a inexistência
de qualquer força que fixe, dê validade e coercibilidade a essas leis.10 10
VILLEY, Michel. A For-
mação do Pensamento
Jurídico Moderno. Tra-
Hobbes destaca que o medo de viver nesse contexto inseguro e desfa- dução de Claudia Berliner.
São Paulo: Martins Fontes,
vorável leva os homens a abandonarem o estado de natureza. Buscando a 2005. p. 740.

legitimação das leis naturais que impelem os homens à paz, os homens dis-
põem racionalmente pela criação de um ente superior a eles, produto da
manifestação voluntária de todos, entregando-se à onipotência do sobera- 11
No original o autor uti-
no, que se tornaria o detentor de todos os direitos. Por esse pacto institui-se liza o termo Commonweal-
th, que pode ser traduzido
a República11, dando fim ao estado de natureza, garantindo-se a segurança como “bem estar público,
bem geral, utilizado como
para as pessoas e para os bens e, portanto, alcançando-se a paz com o fim sinônimo de República ou
Estado.”
das guerras civis.12 12
“A segurança é o fim
pelo qual nos subme-
Esse contrato seria mais do que consentimento ou concórdia, tratar-se-ia temos uns aos outros,
e por isso, na falta dela,
de uma verdadeira unidade de todos, numa só e mesma pessoa, o Levia- supõe-se que ninguém se
tenha submetido a coisa
tã. Considera o filósofo que seria como se cada homem dissesse: “Autorizo alguma, nem haja renun-
ciado a seu direito sobre
todas as coisas, antes que
e transfiro o meu direito de me governar a mim mesmo a este homem, ou se tomem precauções
quanto à sua segurança”.
a esta assembleia de homens, com a condição de transferires para ele o teu (HOBBES, Thomas. Do Ci-
dadão. p. 103.)
direito, autorizando de uma maneira semelhante todas as suas ações”13.
13
HOBBES, Thomas. Le-
viatã ou Matéria Forma e
A transferência do direito de se governar significa uma transferência de Poder de uma República
Eclesiástica e Civil. p. 147.
forças e poderes (strenghts and powers), isso representa na realidade a renún- (grifo do autor).

191
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas

14
PICCINI, Mario. Poder cia desses indivíduos ao poder de resistência contra o soberano.14 Por con-
Comum e representação
em Thomas Hobbes. In: centrar desse modo os poderes de cada homem, Hobbes define esse Leviatã
DUSO, Giuseppe (Org.).
O Poder: história da Fi-
losofia Política Moderna.
como o “Deus mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus imortal, a nossa paz
p. 130. e defesa”.15 Graças à autoridade que lhe é dada por cada indivíduo, confere-
15
HOBBES, Thomas. Le- -se ao Leviatã o uso de tamanho poder e força que o terror por ele inspirado
viatã ou Matéria Forma
e Poder de uma Repúbli- subjuga as vontades de todos os homens a ele submetidos. Destaca-se que
ca Eclesiástica e Civil. p.
147. (grifo do autor). para a manutenção do sistema o príncipe pode tudo para com seus súditos,
ele encontra-se fora das limitações do pacto, razão pela qual contra ele não
16
VILLEY, Michel. A For- há injury, a agressão ao Direito.16
mação do Pensamento
Jurídico Moderno. p.
717. Considerada a formação da República, após a instituição do poder sobe-
rano os homens deverão autorizar todos os atos e decisões de seu represen-
tante, tal como se fossem seus próprios atos e decisões, requisito essencial
para viverem em paz um com os outros e protegidos dos demais homens,
impossibilitando-se aos súditos levantarem-se contra o poder do soberano,
o qual será ilimitado para assim garantir a finalidade de sua constituição, a
17
“De modo que parece paz entre os homens.17
bem claro ao meu en-
tendimento, tanto com
base na razão como nas
Escrituras, que o poder
Hobbes diferencia três espécies de governos. Quando o grupo é repre-
soberano, quer resida
num homem, como numa
sentado por somente um homem é uma monarquia; quando uma assem-
monarquia, quer numa
assembleia, como nas re- bleia atua em nome de todos os que se uniram ao pacto, trata-se de uma
públicas populares e aris-
tocráticas, é o maior que democracia; quando apenas parte participa da assembleia, se está diante da
possivelmente se imagi-
nam os homens capazes aristocracia. Apesar de Hobbes considerar a existência dessas três formas,
de criar. E, embora seja
possível imaginar muitas destaca-se que em suas obras o pensador declaradamente defende a supre-
más consequências de
um poder tão ilimitado, macia da monarquia ante as demais.
ainda assim as conse-
quências da falta dele,
isto é, a guerra perpétua Considerada a formação da República no pensamento hobbesiano, pas-
de todos os homens com
os seus semelhantes são
muito piores”. (HOBBES,
saremos à análise das concepções do pensador acerca do Direito, marcante-
Thomas. Leviatã ou Ma-
téria Forma e Poder de
mente contrárias ao pensamento aristotélico e tomista, os quais são comba-
uma República Eclesiás-
tica e Civil. p. 177.)
tidos até as últimas consequências.

Baseado nas influências de Bacon, Hobbes não busca mais as causas, mas
as potências do mundo, chegando por esse procedimento à hipótese do
estado de natureza. O homem não é mais considerado social “por natureza”,
o animal político, mas contrariamente é “naturalmente livre”. Assim fazendo,
Hobbes limita o Direito à lei moral, que é a lei natural para ele. O Direito não
é mais uma coisa distribuída ao sujeito pela organização política, mas um
atributo essencial, uma qualidade do sujeito. Esse é o significado de direito
subjetivo em Thomas Hobbes.

192
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas

Como no pensamento hobbesiano o Direito passa a existir somente


quando os homens firmam o pacto para instituição da República, altera-se
também a concepção das fontes do Direito. A lei passa a ser a fonte suprema
do Direito, posto que o direito natural não é a fonte do Direito em si, mas da
conduta moral dos indivíduos. Essa consideração evidencia a importância
do direito subjetivo para Hobbes, posto que o Estado é resultado deste.

Após a constituição do soberano, o direito subjetivo continuará atuante


na vida social como liberdade natural, que subsiste no corpo político e que
nele poderá de fato tornar-se realidade. Os cidadãos ao estabelecerem o pacto
social cedem seus direitos naturais, recebendo em troca direitos civis.18 18
VILLEY, Michel. A For-
mação do Pensamento Ju-
rídico Moderno. p. 706.
Hobbes acredita que os homens estão instintivamente dirigidos pela
vontade de bem-estar momentâneo, desconsiderando assim a existência de
uma causa final para a vida humana. Por esse motivo, atribui ao Direito a fina-
lidade de respeitar o prazer do indivíduo. O Direito, desse modo, é a vontade
do homem voltado para o prazer, e não mais uma fonte que dita regras de
conduta, o Direito (jus) é a liberdade que a lei nos permite, por esse caráter a
lei (lex) é a obrigação que nos priva da liberdade que nos foi dada pela natu-
reza.19 Conforme conclui Villey: “[…] é a vontade do homem que, para servir 19
“A lei civil é para todo
a seus apetites nas circunstâncias da vida mutável em que se encontra, sem súdito constituída por
aquelas regras que a re-
mais pretender a nada de imutável, cria ou ‘estabelece’ as regras de Direito pública lhe impõe, oral-
mente ou por escrito, ou
(positivismo jurídico)”.20 por outro sinal suficiente
da sua vontade, para usar
como critério de distinção
entre o bem e o mal, isto é,
Hobbes divide a Justiça em duas espécies, a comutativa e a distributiva, do que é contrário à regra”
(HOBBES, Thomas. Levia-
seguindo a primeira uma proporção aritmética e a segunda uma proporção tã ou Matéria Forma e
Poder de uma Repúbli-
geométrica. Todavia, para o filósofo inglês justiça comutativa é a Justiça do ca Eclesiástica e Civil.
p. 226. [grifo do autor]).
contratante, é o cumprimento dos pactos (pacta sunt servanda). Justiça dis- Reforça-se assim que a lei
não é mais produto de
tributiva, por sua vez, é a Justiça de um árbitro, o ato de definir o que é justo, um direito natural, mas
produto do Estado, tendo
sendo mais próprio chamá-la de equidade, a qual é considerada uma lei de em vista o regramento da
conduta de sua sociedade
natureza. e a garantia ao indivíduo
do exercício de sua liber-
dade. (HOBBES, Thomas.
Leviatã ou Matéria
Pelo exposto constata-se que Hobbes, ao considerar o estado de natureza Forma e Poder de uma
República Eclesiástica
do homem como o estado do homo homini lupus, procura demonstrar que we Civil. p. 246.)

a vontade dos indivíduos de garantir suas vidas e sua segurança os levou a 20


VILEY, Michel. A Forma-
ção do Pensamento Jurí-
fundar a República, extinguindo-se o estado de natureza. A República (Com- dico Moderno. p. 676.

monwealth) e o Direito assim estão fundados no interesse do homem em


viver bem, o que caracteriza consagração da instituição do direito subjetivo,
o direito relativo ao indivíduo e que se põe como uma faculdade, que pode

193
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas
21
John Locke nasceu em
Wrington, próximo a Bris- ou não ser utilizada por este, dependendo de sua conveniência. Assim, o Di-
tol, em 1632. Estudou na
Universidade de Oxford,
onde conseguiu o título
reito em Hobbes não tem como valor primordial a Justiça em sentido absolu-
de Master of Arts em 1658 e
onde ensinou, na qualidade to, mas o que é justo na questão dos interesses do próprio indivíduo.
de tutor, grego e retórica,
tornando-se censor da fi-
losofia moral. Estudou Me-
dicina, Anatomia, Fisiologia
e Física, além de Teologia.
Foi nomeado membro da
Royal Society de Londres.
John Locke
Acusado de traição, se
retira para Oxford refu-
giando-se com o Conde O filósofo inglês John Locke21, célebre por sua epistemologia empirista,
de Shaftesbury, contudo,
com o sucesso da Revolu-
ção Gloriosa e a tomada
dedica-se também a tratar sobre a organização das sociedades humanas e
do trono por Guilherme
de Orange, instituindo-se o nascimento do Estado, o que faz em sua obra Dois Tratados sobre o Gover-
o regime parlamentarista,
retorna a Londres, colhen- no. Nesse livro, suas concepções são apresentadas mais especificamente no
do as glórias do triunfo da
teoria que tanto defendera.
Morreu no castelo de Oates,
“Segundo tratado sobre o governo”, posto que o primeiro tratado dedica-se
em Essex, no ano de 1904.
(REALE, Giovanni; ANTISERI,
precipuamente a refutar as teses absolutistas de Robert Filmer, presentes na
Dario. História da Filoso-
fia: do humanismo a Kant. obra O Patriarca.
p. 502-505.)
22
GOLDWIN, Robert A.
John Locke [1632-1704].
John Locke também considera a existência de um estado de natureza an-
In: STRAUSS, Leo; CROPSEY,
Joseph (Comp.). Historia tecedente à vida em sociedade, partindo deste para explicar o princípio das
de la filosofía política.
México: Fondo de Cultura sociedades humanas e a consequente instituição do Estado. Locke, contudo,
Económica, 1996. p. 453.
23
não entende que esse estado natural é a verdadeira “guerra de todos contra
Quanto a essa última
obrigação destaca Locke:
“[...] e não pode, a não ser
todos”, mas sim uma perfeita liberdade dos indivíduos para regularem suas
que seja para fazer justiça
a um infrator, tirar ou preju- ações e disporem de posses e pessoas do modo como julgarem acertado,
dicar a vida ou o que favo-
rece a preservação da vida, sem pedir licença ou depender da vontade de qualquer outro homem, limi-
liberdade, saúde, integri-
dade ou bens de outrem”.
(LOCKE, John. Dois Trata-
tados somente pela lei da natureza.22 Os limites a essa ampla liberdade estão
dos sobre o Governo. Tra-
dução de: FISCHER, Julio.
consignados na obrigação de preservar-se, bem como de, o quanto possível
São Paulo: Martins Fontes,
2001. p. 384.) for, preservar o resto da humanidade23.
24
LOCKE, John. Dois Tra-
tados sobre o Governo.
Tradução de Julio Fischer.
Para que todos os homens sejam impedidos de agredir direito alheio, pre-
São Paulo: Martins Fontes,
2001. p. 387. (grifo do judicando uns aos outros e deixando-se de observar a lei de natureza, cada
autor).
25 um possui a responsabilidade da execução dessa lei, estando depositado em
Sintetizando esse
ponto, Locke utiliza-se da
seguinte conclusão de
suas mãos o direito de punir os transgressores dela em tal grau que baste
Hooker: “Dado que não
somos capazes de nos para impedir sua violação. Conforme Locke: “todo homem tem o direito de
prover por nós mesmos
de uma quantidade con- punir o transgressor e de ser o executor da lei de natureza”24. Nesse ínterim,
veniente das coisas ne-
cessárias para viver a vida
que nossa natureza deseja,
a decisão pela vida em sociedade ocorre devido a um motivo, a vantagem
uma vida adequada à dig-
nidade do homem, somos do convívio social, o qual supre as limitações do indivíduo que conduz por
naturalmente induzidos, a
fim de suprir esses defeitos si sua vida.25
e imperfeições que por-
tamos quando vivemos
isolados e somente por
nossos próprios meios, a Constata-se assim a diferença entre as concepções do estado de nature-
buscar a comunhão e a
associação com outros. za de Locke com as de Hobbes. Essa diferença torna-se explícita no capítu-
Foi por essa razão que os
homens começaram a
reunir-se em sociedades
lo 3 do “Segundo tratado”, onde o filósofo diferencia o estado de natureza
políticas”. (HOOKER apud
LOCKE, John. Dois Trata-
do estado de guerra. Este último é considerado como fruto da tentativa de
dos sobre o Governo. p.
394. [Grifo do autor].) alguém impor aos demais o poder absoluto, atitude que é entendida como
194
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas

uma declaração de intenções contra a vida do próximo que se tenta subju-


gar. Submeter-se a tal poderio significa tornar-se escravo, deixar de possuir
sua liberdade. A quem tentar submeter os demais abre-se a possibilidade de
inclusive matá-lo, pois mais vale proteger a liberdade do que manter-se vivo,
mas escravo de outrem.26 26
Diferindo os dois es-
tados, considera Locke:
“Quando homens vivem
Portanto, o que Hobbes entende por estado de natureza aproxima-se do juntos segundo a razão e
sem um superior comum
que Locke entende por estado de guerra, não sendo este o estado normal sobre a terra com auto-
ridade para julgar entre
da raça humana em suas origens, mas um desvio que deve ser coibido tanto eles, manifesta-se pro-
priamente o estado de
quanto for possível, razão pela qual é concedido aos homens o poder de natureza. Mas a força, ou
um propósito declarado
de força sobre a pessoa de
serem executores da lei de natureza, bem como, para evitar o risco do estado outrem, quando não haja
um superior comum sobre
de guerra, os homens instituem a sociedade civil. a Terra ao qual apelar em
busca de assistência, cons-
titui o estado de guerra”.
No pensamento de Locke um direito fundamental é o Direito de Pro- (LOCKE, John. Dois Trata-
dos sobre o Governo. p.
priedade. Embora a Terra e tudo que há nela sejam naturalmente comuns a 399. [Grifo do autor].)

todos os homens, o filósofo considera a existência de um modo pelo qual o


homem se apropria de parte das coisas dela provenientes, beneficiando-se
a si próprio. Para tanto, parte-se da consideração de que cada homem tem
uma própria propriedade em sua pessoa27, o que faz com que o trabalho do 27
Pois o domínio de si
próprio é requisito essen-
seu corpo e a obra de suas mãos sejam também propriamente seus. Destar- cial para se poder falar na
liberdade do homem.
te, qualquer coisa que for retirada do estado em que a natureza proveu e
deixou através do acréscimo do trabalho humano transforma-se de um bem
28
MORAES, Amaury
universal em uma propriedade particular.28 Concluindo: “O trabalho que tive Cesar. Liberalismo e Pro-
priedade no “Capítulo V”
em retirar essas coisas do estado comum em que estavam fixou minha pro- do Segundo Tratado sobre
o Governo de Locke. In:
priedade sobre elas”29. PISSARRA, Maria Constan-
ça Peres; FABBRINI, Ricar-
do Nascimento (Coord.).
Essa consideração é válida tanto relativamente aos bens imóveis, como na Direito e Filosofia: a
noção de Justiça na Histó-
coleta de frutas, na caça ou criação de animais, quanto relativamente à pró- ria da Filosofia. São Paulo:
Atlas, 2007. p. 82.
pria terra. A função da propriedade é garantir o usufruto dos bens que a vida 29
LOCKE, John. Dois Tra-
concede conforme sua conveniência ao indivíduo, sendo por esse motivo tados sobre o Governo.
p. 410. (grifo do autor).
um direito natural. Por essa característica, a expansão da propriedade é lícita,
tanto quanto for necessário ao proprietário, conquanto que não se prejudi-
que a outrem nessa expansão. Para Locke, o exagero nos limites de uso da
propriedade não se encontra na extensão das posses que o homem possui,
30
mas no perecimento inútil de qualquer parte delas.30 Isso significa que, no LOCKE, John. Dois Tra-
tados sobre o Governo.
pensamento do autor, não é reprovável a expansão da propriedade, o lucro, p. 426.

mas censura-se o excesso na aquisição de bens que chegue a um ponto em


que o ganho excedente acabe perecendo. Quem incorresse nessa situação
de desperdício encontrar-se-ia em franca violação à lei natural, devendo se
responsabilizar por tal ato.
195
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas

No pensamento de Locke, essa regra natural vigeria até a atualidade se os


homens não tivessem inventado o dinheiro, pois o acúmulo de bens pere-
cíveis em excesso traz o risco de se perder inutilmente grande parte desses
bens, tornando desvantajosa a ampliação da propriedade. Todavia, com a
instituição do dinheiro os homens obtiveram um instrumento durável que
poderia ser guardado sem se estragar. Tornou-se possível assim, pelo con-
sentimento dos homens, a troca do dinheiro, como bem não perecível, por
aqueles bens que são verdadeiramente úteis, mas perecíveis.

A invenção do dinheiro possibilitou ao homem continuar a expansão de


suas propriedades sem incorrer no perecimento inútil dos bens que possui.
O valor atribuído a esse dinheiro é fruto do consentimento entre os homens,
já o valor das coisas que podem ser adquiridas pelo dinheiro é dado pelo
trabalho daqueles que a produziram. Portanto, o trabalho humano, além de
assegurar a aquisição originária da propriedade no estado natural, também
é o elemento que qualifica esse bem, tornando-se possível conceder-lhe um
valor maior para sua obtenção. Locke conclui essa parte relacionando o di-
reito à propriedade com a conveniência no estado natural, assim dizendo: “O
direito e a conveniência andavam juntos, pois o homem tinha direito a tudo
em que pudesse empregar seu trabalho, e por isso não tinha a tentação de
31
LOCKE, John. Dois Tra- trabalhar para obter além do que pudesse usar”31.
tados sobre o Governo.
p. 429.
Para Locke, a lei natural somente pode ser conhecida por intermédio da
razão, de modo que os que ainda não atingiram o seu uso não podem se
considerar sob a égide de tal lei. Nesse sentido, o termo lei pode ser entendi-
do como a limitação quanto à direção de um agente livre e inteligente rumo
a seu interesse adequado, não prescrevendo além daquilo que é para o bem
geral de todos que a ela estão sujeitos. Se estes pudessem ser mais felizes sem
a lei, esta desapareceria por si mesma, sendo coisa inútil. O fim da lei não é
abolir ou restringir, mas conservar e ampliar a liberdade, a lei é o dispositivo
que auxilia o indivíduo para que este possa agir bem, possuindo, portanto,
uma função que pode ser chamada de pedagógica.

Contudo, apesar da plena liberdade que o homem goza no estado de


natureza, este possui uma tendência natural pela busca da vida em socie-
dade. Os primeiros indícios dessa tendência são encontrados na sociedade
conjugal, da qual nasce também a relação entre pais e filhos, partindo dessa
sociedade denominada família também a relação entre senhor e servidor.
Contudo, essas formas de grupamento estavam longe de constituir a forma
plena da vida social, chamada sociedade política ou civil. Esta última somente

196
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas

existirá se cada um de seus membros renunciar a seu poder natural, colocan-


do-o nas mãos do corpo político em todos os casos que não o impeçam de
apelar à proteção da lei por essa sociedade estabelecida. “Aqueles que estão
unidos em um corpo único e têm uma lei estabelecida comum e uma judica-
tura à qual apelar, com autoridade para decidir sobre as controvérsias entre
eles e punir os infratores, estão em sociedade civil uns com os outros”32. 32
LOCKE, John. Dois Tra-
tados sobre o Governo.
p. 458, 459.
Com a instituição da sociedade civil há a formação de um povo, “um corpo
político sob um único governo supremo, ou então quando qualquer um se
junta e se incorpora a qualquer governo já formado”33. O Estado seria o go- 33
LOCKE, John. Dois Tra-
tados sobre o Governo.
verno soberano que existiria para a regulação da vida de determinado povo p. 460.

que pactuou sua criação para cumprir essa finalidade.

A vida na sociedade civil pressupõe mecanismos de regulação social por


intermédio da lei, do exercício do poder político, bem como de órgãos que
possibilitem a discussão do conteúdo e da aplicabilidade dessas leis e ainda
autoridade para punir àqueles que romperem as normas desse grande pacto.
Nesse sentido, a monarquia absoluta é considerada incompatível com a so-
ciedade civil, não podendo ser de modo algum uma forma de governo civil.
34
LOCKE, John. Dois Tra-
Os motivos que levam o homem a instituir o governo civil são a mútua tados sobre o Governo.
p. 495.
conservação de suas vidas, liberdades e bens. O indivíduo possui toda a li- 35
Destaca-se que no
Direito brasileiro a pro-
berdade do mundo no estado natural, todavia, corre o risco de ser sobre- priedade, regulada pelo
Código Civil, é conside-
posto por outro indivíduo livre. Assim, unindo-se as pessoas em um corpo, rada adquirida, quando
referente a bens móveis,
estas conseguem garantir entre si a preservação dos seus bens mais valio- através da tradição, da
simples transferência
sos.34 Nisso há também uma alteração no tocante ao Direito de Propriedade, entre pessoas, enquanto
que a aquisição da pro-
posto que as leis passam a regulamentar o Direito de Propriedade e a posse priedade imóvel se dará
precipuamente através do
da terra através de suas legislações, ocorrendo inclusive a mudança no crité- registro do título de trans-
ferência de propriedade
rio pelo qual considera-se adquirida a propriedade, bem como os requisitos no Cartório de Registro
de Imóveis, conforme dis-
necessários para mantê-la.35 ciplinam os artigos. 1.267
e 1.245, respectivamente.
(BRASIL. Lei 10. 406, de
Se um estado natural carece de uma lei estabelecida, positivada, de juízes 10 de janeiro de 2002.
Institui o Código Civil.
Código Civil. Disponível
conhecidos e imparciais, com autoridade para solucionar as diferenças de em: <www.planalto.gov.
br/ccivil_03/LEIS/2002/
acordo com a lei, bem como de um poder para apoiar e sustentar a senten- L10406.htm>. Acesso em:
25 mar. 2010.)
ça desses juízes e dar a ela a devida execução, os indivíduos obtêm tudo 36
GOLDWIN, Robert A.
isso ao constituírem o Estado e, por intermédio deste, fundarem o Direito e John Locke [1632-1704].
In: STRAUSS, Leo; CROP-
órgãos que possuam a competência de criar, interpretar e aplicar esse Direi- SEY, Joseph (Comp.). His-
toria de la filosofía polí-
to sempre tendo em vista os fins da sociedade.36 tica. p. 461.

Nesse raciocínio, pode-se considerar a diferença entre a liberdade natu-


ral, própria do estado de natureza, e a liberdade no estado, aquela garan-

197
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas

37
LOCKE, John. Dois Tra- tida pela sociedade. A primeira consiste em “estar livre de qualquer poder
tados sobre o Governo.
p. 401. superior sobre a Terra e em não estar submetido à vontade ou à autoridade
38
LOCKE, John. Dois Tra- legislativa do homem, mas ter por regra apenas lei da natureza”37. Essa liber-
tados sobre o Governo.
p. 402. dade plena possui seus riscos, razão pela qual busca-se a vida social, onde a
39
Sobre essas três formas
de governo, considera
liberdade se traduz em:
Merlo: “A democracia pre-
cede geneticamente tanto
a aristocracia como a mo-
[...] não estar submetido a nenhum outro Poder Legislativo senão àquele estabelecido no
narquia, porque o pacto corpo político mediante consentimento, nem sob domínio de qualquer vontade ou sob a
é estabelecido entre os restrição de qualquer lei afora as que promulgar o Legislativo, segundo o encargo a este
próprios indivíduos, e não
entre os indivíduos e um confiado.38
soberano”. (MERLO, Mau-
rizio. Poder natural, pro-
priedade e poder político Para a atuação do Estado, Locke considera três principais formas de go-
em John Locke. In: DUSO,
Giuseppe (Org.). O Poder: verno: a democracia, movida por sufrágios, onde a comunidade possui todo
história da Filosofia Políti-
ca moderna. Tradução de:
CIACCHI, Andrea; SILVA
o poder e pode utilizá-lo para fazer periodicamente leis destinadas à própria
Líssia da Cruz e; TOSI, Giu-
seppe. Petrópolis, Vozes,
comunidade, executadas por funcionários por ela nomeados; a oligarquia,
2005. p. 166.)
onde o poder de legislar encontra-se sobre alguns homens escolhidos, seus
40
LOCKE, John. Dois Tra-
tados sobre o Governo. herdeiros e sucessores; e a monarquia, poder posto nas mãos de um único
p. 500.
41 homem.39 Esta última forma pode se estender aos herdeiros do soberano –
“Considero, portanto,
que o poder político é o
direito de editar leis com
monarquia hereditária – ou restrita ao rei apenas durante sua vida, voltando
pena de morte e, con-
sequentemente, todas
o poder à comunidade após sua morte – monarquia eletiva.40
as penas menores, com
vistas a regular e preser-
var a propriedade, e em- Em seguida, o autor considera ainda a existência de cinco espécies de
pregar a força do Estado
na execução de tais bens poder dentro do Estado. O primeiro e maior deles é o Poder Legislativo,
e na defesa da sociedade
política contra os danos dotado do poder político41. Apesar de ser o maior dos poderes do Estado,
externos, observando tão
somente o bem público”.
(LOCKE, John. Dois Tra-
este se encontra limitado por toda a sociedade civil, o que garante que sua
tados sobre o Governo.
p. 381.)
supremacia ante aos demais poderes não se torne motivo para se constituir
42
“Embora numa comu-
qualquer espécie de despotismo.42 Se o Poder Legislativo abusa do poder
nidade constituída, assen-
tada sobre suas próprias que lhe foi concedido, “o poder soberano retorna ao povo, que se torna au-
bases e agindo de acordo
com sua própria natureza, toridade legislativa, investida de todas as condições, de toda a legitimidade
ou seja, para a preserva-
ção da comunidade, não e de toda autoridade para decidir constituir novo governo e restabelecer a
possa haver mais de um
único poder supremo, que normalidade nas estruturas sociais”43.
é o Legislativo, o qual
todos os demais são e
devem ser subordinados,
sendo ele apenas um
Além do Legislativo, existem ainda os poderes Executivo, Federativo e de
poder fiduciário que entra
e ação para agir com vistas Prerrogativa, compostos na realidade pela mesma pessoa, apesar de exerce-
a certos fins, cabe ainda
ao povo o poder supremo rem funções diversas. Basicamente, o Poder Executivo responsabiliza-se pelo
para remover ou alterar o
Legislativo, quando julgar cumprimento das leis redigidas pelo Legislativo. O Poder Federativo regula a
que este age contraria-
mente à confiança neste relação entre o Estado que representa e os demais, referindo-se ao Chefe de
depositada”. (LOCKE, John.
Dois Tratados sobre o Estado na atualidade. O Poder de Prerrogativa não é nada mais do que a dis-
Governo. p. 518.)
43
BITTAR, Eduardo C. B.
cricionariedade concedida ao Executivo de, em situação que não haja tempo
Curso de Filosofia Polí-
tica. 3. ed. rev, aument.
e modif. pelo Autor. São
Paulo: Atlas, 2008. p. 189.

198
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas

para se aguardar a edição de uma lei, decidir com prudência tendo em vista
a boa condução da sociedade.44 44
Destaca-se que Locke
silencia acerca da existên-
cia de um Poder Judiciário.
Pelo que foi exposto neste capítulo, constata-se que no pensamento de Contudo, considerando-se
seu sistema de pensamen-
Locke, mais do que garantir a segurança do indivíduo, o pacto social reforça to e a temporariedade das
Câmaras Legislativas, con-
vocadas somente quando
ao máximo a liberdade já possuída pelo homem no estado de natureza. Ao precisem se manifestar,
enquanto que o Executivo
criar um ente que organize a vida social, desobriga o homem a cuidar da encontra-se em perma-
nente atividade, pode-se
execução da lei natural em relação aos demais, concentrando-se no seu pró- inferir que o Poder de
Julgar estaria dentre as
prio desenvolvimento enquanto indivíduo e no aprimoramento das relações atribuições do Poder
Executivo, instituindo os
juízes doutos e imparciais,
sociais que estabelece. tal como o autor se mani-
festou anteriormente.

Destaca-se no pensamento do autor a importância dada ao dinheiro


como um critério de liberdade do homem, posto que seu acúmulo possibili-
ta ao indivíduo adquirir todos os bens que necessita para viver bem. Dentro
dessa temática, uma importante lição deixada pelo filósofo, perfeitamente
aplicável ao mundo do business, é a importância da efetiva utilização da
propriedade.

O problema relativo à propriedade não é tão somente o acúmulo desta


nas mãos de alguns, mas a efetiva utilização desses bens por aquelas pes-
soas que os possuem. A posse de muitos bens não é algo essencialmente
condenável, o que é reprovável é o fato de o proprietário, seja um indivíduo,
seja uma organização, preocupar-se somente em adquirir bens, ou lucrar,
sem utilizar esse plus adquirido, posto que com essa conduta se incorre no
histórico problema existente em nossa sociedade com relação às questões
fundiárias, bem como, no âmbito empresarial, nos problemas das empresas
que apesar de obterem altos lucros, não tornam esses ganhos motivo de
crescimento aos seus funcionários e à sociedade em que se encontram.

Por esse motivo, constata-se que na contemporaneidade não se deve


coibir o crescimento dos líderes e empreendedores, agentes de inovação na
sociedade de hoje, mas deve-se garantir que o crescimento desses homens
e de suas instituições traga consigo o desenvolvimento dos demais que se
encontram a sua volta, posto que se assim não ocorrer, não há como se falar
em sustentabilidade na vida em sociedade, mas numa agressão à regra da
propriedade, conforme demonstrou Locke.

199
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas

Montesquieu
45
Charles-Louis de Se- O filósofo e cientista francês Montesquieu45 realiza em sua obra O Espírito
condat, barão de Mon-
tesquieu, nasceu em
1689, nas proximidades
das Leis uma profunda investigação acerca da constituição do Estado e do
de Bordeaux. Foi conse-
lheiro do Parlamento de
modo pelo qual este se estrutura para regular a si próprio e à sociedade que
Bordeaux e colaborador
da Academia de Ciências
o instituiu.
local. Elaborou estudos
sobre diversas áreas do
conhecimento. Suas prin- Montesquieu parte da consideração de que as leis são as relações neces-
cipais obras são O Espírito
das Leis e Cartas Persas. sárias derivadas da natureza das coisas. Assim sendo, todos os serem têm
Nesta última, satiriza toda
a organização social da suas leis. A divindade, o mundo material, as inteligências superiores aos
Europa de sua época. (RO-
VIGHI, Sofia Vanni. Histó- homens, os homens, os animais, todos possuem suas leis. Desse modo, o
ria da Filosofia Moderna:
da revolução científica a homem também é governado por leis invariáveis, contudo, como ser inteli-
Hegel. p. 349.)
gente, viola incessantemente essas leis e transforma aquelas que ele mesmo
46
MONTESQUIEU. O Es-
pírito das Leis. Tradução estabeleceu.46
de Cristina Murachco. São
Paulo: Martins Fontes,
2000. p. 11. O homem deve saber orientar-se a si mesmo, mas é um ser limitado, sujei-
to à ignorância e ao erro. Buscando ordenar a conduta humana, as religiões
buscaram chamá-lo através de suas leis, porém estas dependem da crença
para serem efetivas. Os filósofos, através da moral, buscaram disciplinar ra-
cionalmente a conduta humana, todavia, para tornar tal módulo de conduta
real, há que se haver a passagem voluntária do indivíduo. Por fim, os legisla-
dores fizeram o homem voltar aos seus deveres com as leis políticas e civis,
dotadas da coercibilidade necessária para obrigar o indivíduo a agir devida-
47
MONTESQUIEU. O Es- mente.47
pírito das Leis. p. 12-13.

Considerada essa busca pela ordenação da conduta humana, fazendo-o


retornar à ordem preexistente na natureza, propõe-se ao pensador identifi-
car o espírito das leis, entendendo-o como a consideração de todas as ques-
tões que devem ser levadas em conta quando, em um Estado, parte-se à
produção legislativa, de modo que possa assim devolver o indivíduo ao seu
48
LOWENTHAL, David.
Montesquieu [1689- apelo natural através da realização dentro do Estado.48
1755]. In: STRAUSS, Leo;
CROPSEY, Joseph (Comp.).
Historia de la filosofía Para alcançar sua proposta, inicialmente deve-se considerar as espécies
política. México: Fondo
de Cultura Económica, de governo existentes, posto que dependendo de qual modelo for adotado
1996. p. 489.
em um Estado, o modo de se elaborar e aplicar as leis, bem como a forma de
regular a sociedade, se alterará. São três as formas identificadas: a republi-
cana, composta pela democracia, governada por todos os cidadãos, e pela
aristocracia, governada somente por alguns cidadãos selecionados; o gover-
no monárquico, composto pelo governo de um só com base nas leis; e o
governo despótico, composto pelo governo de um só, tendo em vista seu
próprio interesse.
200
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas

Cada uma dessas formas possui seu próprio princípio, o valor pelo qual
se constrói determinado governo e de onde partem todas as atitudes desse
49
governo.49 Na República, o princípio do governo é o amor à república, o qual, Reforça-se esse caráter
nos capítulos da obra de-
na democracia reflete-se no amor à igualdade e na aristocracia no amor à vir- dicados à consideração de
que as leis sobre a educa-
tude. O princípio da monarquia é a honra, enquanto que no despotismo este ção, bem como as leis em
geral, devem se relacionar
princípio é o temor. A importância desses princípios é assinalada na conside- com o princípio de cada
forma de governo.

ração de que quando em um Estado há a perda desse princípio operar-se-á a


corrupção de cada forma de governo, o que precede sua queda.

Estabelecidas as três formas de governo, bem como os princípios rela-


tivos a cada uma dessas, a partir dos quais devem partir todos os atos de
determinado governo, com vistas a sua realização, Montesquieu considera
diversos pontos que devem ser regulamentados por lei para a boa regulação
de um Estado, até que, no livro XI, depara-se com a relação entre as leis e a
liberdade dos cidadãos.

Acerca da liberdade, o pensador a considera sob dois aspectos, tanto em


relação à constituição quanto relativamente ao cidadão, buscando desse
modo o valor da liberdade política e estabelecendo as condições efetivas
que possibilitarão que os indivíduos desfrutem a liberdade.50 50
REALE, Giovanni; AN-
TISERI, Dario. História da
Filosofia: do Humanismo
Relativamente à constituição, liberdade significa o poder de se fazer o a Kant. p.749.

que se deve querer e não ser forçado a fazer o que não se tem o direito de
querer. Por outro lado, em relação ao cidadão entende-se tal termo como o
exercício de sua vontade livre para agir bem, podendo-se chamá-la de liber-
dade filosófica. A primeira é a concepção de liberdade em seu sentido legal,
o indivíduo pode fazer tudo aquilo que não é proibido por lei. Já o segundo
conceito, mais profundo, envolve a capacidade do indivíduo discernir a rea-
lidade e agir do modo adequado, sendo, portanto, livre, trata-se muito mais
de uma questão de Ética do que de Direito.

Se as leis procuram assegurar o desenvolvimento das sociedades huma-


nas, coagindo os homens a voltarem a agir em conformidade com a ordem
do mundo, essas leis somente alcançarão seu objetivo se a liberdade for ga-
rantida aos seus cidadãos. Por esse motivo, considera-se em primeiro lugar a
liberdade relativa às leis, pois somente aqueles que se encontrarem melhor
preparados nas questões da vida estarão aptos a gozar da segunda forma de
liberdade, que se pauta no bom uso da razão.

Por outro lado, o próprio Estado não pode ser empecilho ao desenvol-
vimento do indivíduo, nem ser o primeiro a afrontar a liberdade dos seus
201
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas

cidadãos no exercício do seu poder. Tendo em vista essa premissa, Montes-


quieu, ao tratar sobre a Constituição da Inglaterra no capítulo VI do livro XI
do Espírito das Leis, constrói a célebre teoria da separação dos poderes como
51
LOWENTHAL, David. elemento essencial para a realização da liberdade política.51 Para o pensador
Montesquieu [1689-
1755]. In: STRAUSS, Leo; existem três tipos de poder: o poder de legislar, criar leis por um tempo ou
CROPSEY, Joseph (Comp.).
Historia de la filosofía
política. p. 495.
para sempre e corrigir ou anular as leis já elaboradas; outro de aplicar as leis
existentes na realidade fática, executando-as, e outro ainda de castigar os
52
MONTESQUIEU. O crimes e julgar as querelas entre os particulares.52 Essas funções não podem
Espírito das Leis. p. 168-
169. ser confiadas à mesma pessoa, pois o concurso de duas delas já concede
força o suficiente para o seu titular exercer o poder de modo arbitrário e pre-
judicial a toda a sociedade.

Portanto, em Montesquieu a gênese da separação dos poderes, assim


como a construção axiológica das formas de governo, tem um objetivo claro:
a garantia da liberdade dos seus cidadãos. Não basta em um Estado construir
um sistema que proteja os indivíduos nas suas relações entre si, se o próprio
Estado representar a maior e mais perigosa ameaça ao indivíduo.

Destaca-se disso que, sendo o Estado um ente ficto, que se faz presente
historicamente representado por pessoas que agem em nome dessa figura
maior, a limitação e o controle dos poderes do Estado são essenciais para
que seus agentes não se utilizem do poder que lhes é conferido para preju-
dicar a outrem, bem como para alcançar benefícios próprios, situações em
53
que estar-se-ia denunciando a corrupção do governo e a falência do Estado
Jean-Jacques Rousseau
nasceu em Genebra, em como figura reguladora de determinada sociedade civil.
28 de junho de 1712.
Deixou a cidade em 1728,
morando em Turim, na
atual Itália, e na França,
Apesar de Montesquieu não tratar expressamente do contrato social
primeiramente em Cham-
béry, mudando-se depois
em sua obra, ele parte das concepções contratualistas, especialmente das
para Paris, onde conhece
Diderot e, através deste,
formuladas por Locke, para formular sua obra, a qual é o pilar sobre o qual
os enciclopedistas. Au-
xiliou na elaboração da foram constituídos todos os grandes sistemas jurídicos da modernidade e da
Enciclopédia, contudo,
por divergências com o contemporaneidade.
grupo, afasta-se destes
em 1758, quando retira-
-se para o Montmorency,
onde publicou sua obra
Du contract social, em
1762. Rousseau morreu
em Ermenonville, em 2
Rousseau
de julho de 1778. (REALE,
Giovanni; ANTISERI, Dario. Rousseau53 é uma das mais influentes mentes do séc. XVIII. Seu pensa-
História da Filosofia:
do humanismo a Kant. p. mento marcou o auge do iluminismo francês, bem como o princípio do
751.)

54
movimento romantista. Suas ideias acerca da constituição do Estado e do
ROUSSEAU, Jean-Jac-
ques. O Contrato Social. Direito são apresentadas em sua obra Do Contrato Social54, na qual o filósofo
Tradução de Antonio de
Pádua Danesi. São Paulo:
Martins Fontes, 1999
parte da seguinte premissa: “O homem nasceu livre e por toda parte ele está

202
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas

agrilhoado”55. Romper as cadeias que o aprisionam e possibilitar ao homem 55


ROUSSEAU, Jean-Jac-
ques. O Contrato Social.
viver em liberdade é a sua proposta nessa obra. A ordem social é considera- p. 9.

da um direito sagrado que prescinde a todos os demais, para Rousseau esse


direito não possui origem na natureza como pensaram outros contratualis-
tas, mas sim nos pactos que os próprios homens fazem entre si.

Rousseau considera que apenas ser o mais forte não é o suficiente para
ser o dono de alguma coisa, se não se transformar essa força em Direito e a
obediência na figura de um dever, não existem garantias da manutenção do
poder sobre essa coisa. Ceder à força é um ato de necessidade, não de von-
tade, trata-se de um ato de prudência, quando é necessário fazê-lo. Contudo,
a atitude de o homem renunciar a sua liberdade constitui-se na renúncia de
sua própria qualidade de homem, aos direitos de toda humanidade e inclu-
sive a seus deveres.56 56
ROUSSEAU, Jean-Jac-
ques. O Contrato Social.
p. 12.
O contrato social para Rousseau não é um ato pelo qual se garantirá a
proteção dos indivíduos que encontram-se em constante estado de guerra
entre si tal como propusera Hobbes. Para o filósofo de Genebra, o homem é
naturalmente bondoso; nos primórdios os homens viviam em um período
paradisíaco, que teve fim com o princípio da vida em sociedade, quando o
grupo social corrompeu o homem bom. Para voltar ao status quo ante, ao
estado de natureza onde todos viviam bem, a solução seria a fixação de um
pacto social legítimo, em conformidade com a razão, pelo qual se garanti-
ria o direito de todos de maneira igualitária, cessando as desigualdades da
união anteriormente firmada.57 57
BITTAR, Eduardo C. B.
Curso de Filosofia Políti-
ca. p. 204.
Considerando que os homens não podem criar novas forças, senão so-
mente unir e dirigir as que existem, não possuem outro remédio para se
conservar do que somar suas forças. Porém, como é possível garantir que os
homens, ao somarem suas forças e liberdades, principais instrumentos de
conservação do homem, não acabarão saindo prejudicados? Esse é justa-
mente o problema do contrato social. A única forma dessa cessão de direitos
prosperar é através da alienação total de cada um, com todos seus direitos, a
toda a comunidade, dando-se cada um, por inteiro, para todos. Sendo igual
para todos, não haverá interesse em fazê-la onerosa aos outros. Conforme
Rousseau: “Dando-se cada um a todos, não se dá a ninguém; e como não há
um associado sobre o qual se adquira um direito distinto ao que este cede
sobre si mesmo, se ganha o equivalente de tudo o que se parte e maior força 59
ROUSSEAU, Jean-Jac-
ques. O Contrato Social.
para conservar-se da que se tem”.58 Assim, o contrato social trata-se da união p. 14.

203
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas

de todos, entregando a todos seus poderes e suas liberdades, para que esse
todo possa organizar-se e buscar organizar a vida de toda essa coletivida-
de, instituindo-se o Estado. Destaca-se que para o pensador, em razão desse
pacto, todo Estado regido por leis, qualquer que seja a forma de sua admi-
59
ROUSSEAU, Jean-Jac- nistração, é uma República.59
ques. O Contrato Social.
p. 48.
O ato de associação que ocorre encerra um empenho recíproco do público
com os particulares; cada indivíduo, ao contratar consigo mesmo, acha-se em-
penhado de dois modos diversos: como membro do soberano com os parti-
culares e como membro do Estado com o soberano. Nessa natureza dúplice se
dá, pois o soberano do Estado no pensamento de Rousseau, o qual personifica-
-se na união do próprio povo. Essa é uma importante passagem operada pelo
filósofo; Rousseau transfere o conceito de soberania, classicamente vinculado
60
“Mas, para isso, é pre- às teses absolutistas como poder dos reis, ao Povo.60Assim, ao mesmo tempo,
ciso entender que a so-
berania, que faz a lei, não o indivíduo relaciona-se como cidadão com o soberano enquanto também é
é externa aos indivíduos:
ela é composta pelos pró- o próprio soberano. Ao mesmo tempo, o indivíduo enquanto indivíduo cons-
prios indivíduos e, nesse
sentido, contrariamente titui-se como cidadão, enquanto coletividade apresenta-se como o próprio
ao que Bossuet objetava
a Jurieu, esse povo de soberano que se relaciona com os demais cidadãos.
indivíduos racionais co-
manda a si mesmo. Se, na
concepção absolutista, o
povo é governado porque
A formalização de um poder soberano único constituído por todos os
há um soberano, na con-
cepção rousseauniana o
cidadãos opera-se com um fim específico: o bem de todos. E para que o so-
povo é governado porque
ele mesmo é o soberano”.
berano aja sempre tendo em vista o bem de todos, deve pautar-se na vonta-
(JAUME, Lucien. Rousseau
e a questão da soberania. de geral (volonté générale), contraposta à vontade particular das partes que
In: DUSO, Giuseppe (Org.).
O Poder: história da Fi- compuseram o contrato social.
losofia Política moderna.
Tradução de: CIACCHI,
Andrea; SILVA, Líssia da Por vontade geral entende-se aquela vontade que cada indivíduo possui
Cruz e; TOSI, Giuseppe.
Petrópolis: Vozes, 2005. dentro de si e que conduz ao bem comum, é uma disposição ao melhor da
p. 185.)
coletividade e, portanto, ao melhor de si mesmo. Esta pode ser contrária à
vontade particular, que trata do próprio interesse do indivíduo singularmen-
te. A vontade geral é importante porque será muito mais vantajoso que um
indivíduo perca a realização do seu interesse do que, através do seu exercí-
cio, prejudique aos interesses de toda a sociedade.

A vontade geral não pode, todavia, ser confundida com a vontade de


todos, entendendo-se esta última categoria como a soma dos interesses
particulares de cada um. A volonté générale constitui-se na vontade que im-
pulsiona todo o grupo social avante, não somente facções ou determinados
indivíduos. Essa forma de vontade permite inclusive que qualquer um que se
recuse a obedecê-la seja forçado pelos demais à obediência, posto que isso
não significa outra coisa senão obrigar o indivíduo a ser livre, pois a condição

204
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas

com a qual se dá cada cidadão à pátria lhe assegura toda a independência


pessoal. Trata-se da incursão do coletivo no individual na busca pela devida
ordenação à boa conduta desse que não soube reconhecer qual a melhor
atitude a ser tomada naquela ocasião.61 61
ROUSSEAU, Jean-Jac-
ques. O Contrato Social.
p. 25.
Sintetizando, a vontade geral difere da vontade particular de cada indi-
víduo da sociedade, bem como da vontade de todos, entendendo-se esta
como a soma das vontades particulares de cada um dos componentes do
todo soberano, sendo o fundamento de onde partirão todas as atitudes
deste último visando alcançar o bem comum.

Com o contrato há o nascimento do Estado Civil, o qual substitui na con-


duta do homem o instinto pela justiça e confere às suas ações a moralidade
que antes faltava. Nessa passagem o dever assume o lugar do impulso físico,
o Direito passa a regular os apetites e as vontades humanas, sujeitando-os aos
ditames da volonté générale. Somente desse modo possibilita-se ao homem o
retorno à vida ideal que possuía quando encontrava-se no estado natural.

Por mais que no Estado o homem seja privado de muitas das vantagens
concedidas pela natureza, ele ganha outras de igual importância, elevando sua
62
alma a tal ponto que transforme o indivíduo de fato em um homem.62 Nesse ROUSSEAU, Jean-Jac-
ques. O Contrato Social.
momento, Rousseau divide três espécies de liberdade existentes: a liberdade p. 26.

natural, relacionada a um direito sem limites a tudo o que tenta e pode atingir,
movida pelo espírito do homem; a liberdade civil, recebida pelo Estado Civil
em conjunto da propriedade, é o exercício da liberdade limitado pela vonta-
de geral. Todavia, acima dessas ergue-se a liberdade moral, que faz o homem
verdadeiramente ser senhor de si, a qual diz respeito à experiência própria de 63
ROUSSEAU, Jean-Jac-
cada homem, havendo nesse instante, portanto, a superação da dependência ques. O Contrato Social.
p. 30.
da coletividade.

Em suma, sendo desiguais em força ou talento, o pacto social torna os


homens iguais por convenção e direito, garantindo assim, com base nos di-
tames da vontade geral, que os melhores ou os piores dos homens possam
viver bem em determinado grupo social.63

Tal como foi dito, a finalidade da vontade geral é o bem comum, e so-
mente essa é que pode dirigir a força do Estado em direção a essa finali-
dade. O exercício da vontade geral constitui-se em um verdadeiro exercício
de soberania. Nesse sentido, a vontade geral é inalienável, bem como não
pode ser representada, pois o soberano, sendo um ser coletivo, só pode ser

205
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas

representado por si mesmo. Transmite-se o poder, mas não a vontade ao


64
“Prodigiosa (mas in- governante.64 Além disso, a vontade geral não pode errar, pois esta trata-se
dispensável) exceção do
pensamento rousseaunia- do perfeito juízo da coletividade em busca do seu bem geral; caso haja o
no ao seu princípio mais
querido, a igualdade de erro, este ocorrerá no momento em que se particularizar a vontade geral,
todos os membros do
corpo social: haverá um tornando-a vontade de todos, mas não a vontade do grupo em uníssono na
homem, ou um grupo,
o princípio, que poderá
ordenar sem contrapar-
busca do seu benefício.
tida [...] Sem dúvida, em
Rousseau, o príncipe só
pode ordenar aquilo que Constituído o pacto social, torna-se necessário instituir em seguida o sis-
a lei havia anteriormente
prescrito: mesmo não tema de leis, o qual dará movimento e vontade ao Estado recém constituído.
tendo contrapartida ‘a
jusante’, a lei permanece Rousseau considera que o objeto das leis é sempre geral, pois a lei considera
boa, pelo menos ‘a mon-
tante’, enquanto expres- os súditos coletivamente e as ações como abstratas, nunca de um homem
são da vontade geral”.
(JAUME, Lucien. Rousseau
e a questão da soberania.
como indivíduo, nem uma ação particular. A lei pode perfeitamente esta-
In: DUSO, Giuseppe (Org.).
O Poder: história da Fi-
tuir que haverão privilégios, porém não pode concedê-los, nem nomeá-los
losofia Política moderna.
p. 189.)
a ninguém.

Se o soberano é toda a coletividade, outra questão a ser considerada é


sobre quem será o legislador do Estado. Tendo em vista os objetivos de sua
obra, Rousseau considera que o legislador deve ser um homem profunda-
mente preparado, capacitado para, por intermédio do texto legal que pro-
duzir, reproduzir os anseios da sociedade, baseado nos ditames da vontade
geral. Para isso, além de todo preparo intelectual, deverá também conhe-
cer profundamente o povo para o qual se dirigirá a legislação em questão.
Contudo, não poderá ser ele próprio quem as executará, evitando-se, assim,
abusos e a concentração de poder.

Pelo exposto constata-se que Rousseau é o pensador que formaliza a pas-


sagem da visão da soberania, antes vista como poder emanado pelo monar-
ca, segundo a fundamentação do absolutismo monárquico, entregando-a
ao próprio povo, constituído pela massa de sujeitos que possuem direitos e
deveres no Estado formado pelo pacto social. Esse ato de Rousseau foi ado-
tado pela maioria dos Estados que vieram a constituir-se posteriormente ao
pensador, tendo-se como exemplo o próprio Estado brasileiro, que no Pará-
grafo único do artigo 1.º da Constituição da República Federativa do Brasil,
de 1988, declara: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de
65
BRASIL. Constituição
(1988). Constituição da
representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”65.
República Federativa
do Brasil de 1988. Dispo-
nível em: < http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/
Constituicao/Constitui-
çao.htm>. Acesso em 29
mar 2010.

206
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas

Ampliando seus conhecimentos

Contratualismo
Doutrina que reconhece como origem ou fundamento do Estado (ou, em
geral, da comunidade civil) uma convenção ou estipulação (contrato) entre
seus membros. Essa doutrina é bastante antiga, e, muito provavelmente, os
seus primeiros defensores foram os sofistas. Aristóteles atribui a Licofron (dis-
cípulo de Górgias) a doutrina de que a lei é pura convenção (syntheke) e ga-
rantia dos direitos mútuos, ao que Aristóteles opõe que, nesse caso, ela não
seria capaz de tornar bons e justos os cidadãos. Essa doutrina foi retomada
por Epicuro, para quem o Estado e a lei são resultado de um contrato que tem
como único objetivo facilitar as relações entre os homens. Tudo o que, na con-
venção da lei, mostra ser vantajoso para as necessidades criadas pelas relações
recíprocas é justo por sua natureza, mesmo que não seja sempre o mesmo. No
caso de se fazer uma lei que demonstre não corresponder às necessidades das
relações recíprocas, então essa lei não é justa. Carnéades emitiu concepção
semelhante no famoso discurso sobre a Justiça que proferiu em Roma. Por
que razão teriam sido constituídos tantos e diferentes direitos segundo cada
povo, senão pelo fato de que cada nação sanciona para si o que julga vanta-
joso para si?

Eclipsado na Idade Média pela doutrina da origem divina do Estado e, em


geral, pela comunidade civil, o contratualismo ressurge na Idade Moderna e,
com o jusnaturalismo, transforma-se em poderoso instrumento de luta pela
reivindicação dos direitos humanos. As Vindiciae contra tyranos, publicadas
pelos calvinistas em 1579, em Genebra, retomam a doutrina do contrato para
reivindicar o direito do povo a rebelar-se contra o rei sempre que ele descu-
rar dos compromissos do contrato original. No mesmo espírito, João Altúsio
generalizou a doutrina do contrato, utilizando-a para explicar todas as formas
de associação humana. O contrato não é só contrato de governo que rege as
relações entre o governante e seu povo, mas é também contrato social no
sentido mais amplo, como acordo tácito que fundamenta toda comunidade
(consociatio) e que leva os indivíduos a conviver, isto é, a participar dos bens,
dos serviços e das leis vigentes na comunidade. Hobbes e Espinoza puseram

207
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas

a doutrina do contrato a serviço da defesa do poder absoluto. Assim Hobbes


enunciava a fórmula básica do contrato: “Transmito meu direito de governar-
-me a este homem ou a esta assembleia, contanto que tu cedas o teu direi-
to da mesma maneira”. Essa, diz Hobbes, é “a origem do grande Leviatã ou,
com mais respeito, do Deus mortal a quem, depois de Deus imortal, devemos
nossa paz e defesa, pois por essa autoridade conferida pelos indivíduos que
o compõem, o Estado tem tanta força e poder que pode disciplinar à vontade
todos para a conquista da paz interna e para a ajuda mútua contra inimigos
externos. Por sua vez, Espinoza julga que o direito do Estado constituído pelo
consenso comum só é limitado por sua força, que é o poder da multidão.

Mais frequentemente, porém, o contratualismo é empregado para de-


monstrar a tese de que o poder político é necessariamente limitado. Nesse
sentido foi entendido por Grócio, Pufendorf e especialmente por Locke, que
usou para defender a revolução liberal inglesa de 1688. Dizia Pufendorf: “Se
considerarmos uma multidão de indivíduos que gozam de liberdade e de
igualdade natural, e querem proceder à instituição de um Estado, é preciso
antes de mais nada que esses futuros cidadãos façam um pacto no qual mani-
festem a vontade de unir-se em associação perpétua e de prover, com delibe-
ração e ordens comuns, sua própria salvação e segurança. Esse pacto pode ser
simples ou condicionado: tem-se o primeiro quando alguém se obriga a par-
ticipar da associação, seja qual for a forma de governo aprovada pela maioria;
o segundo, quando se acrescenta a condição de que a forma de governo será
aprovada por ele mesmo”. Por sua vez, Locke fala do contrato como acordo
entre os homens para unirem-se numa sociedade política; por isso, define-o
como o pacto que existe e deve necessariamente existir entre indivíduos que
se associam ou fundam um Estado. Criticado por Hume, o Contratualismo en-
controu em Rousseau uma interpretação que, substancialmente, equivaleu
a sua negação. De fato o contratualismo pressupõe que os indivíduos como
tais tenham “direitos naturais” a que renunciam, para adquirir outros, com o
contrato social. Rousseau considera que os indivíduos como tais são absoluta-
mente desprovidos de direitos e que só os têm como cidadãos de um Estado.
Os homens, diz Rousseau, tornam-se iguais por convenção e direito legal; por
isso, o direito de cada indivíduo ao seu estado particular está sempre subordi-
nado ao direito supremo da comunidade. Para Rousseau, o contrato originário
afigurava-se mais como um meio de legitimar o vínculo social do que como
realidade; a mesma coisa foi nitidamente afirmada por Kant: “O ato pelo qual o
próprio povo se constitui em Estado, ou melhor, a simples ideia desse ato, que

208
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas

por si só permite conceber segundo sua legitimidade, é o contrato originário


segundo o qual todos (ommes et singuli) no povo renunciam a liberdade ex-
terna para retomá-la imediatamente como membros de um corpo comum”.

Um dos elementos essenciais da estrutura da doutrina contratualista é o


estado de natureza, que seria justamente aquela condição da qual o homem
teria saído, ao associar-se, mediante um pacto, com os outros homens. É difícil
dizer em que consiste, para os contratualistas, esse estado de natureza, em
virtude do escasso interesse por eles mostrado (excetuado Rousseau) quanto
ao conhecimento das reais condições do homem em suas origens; tal situa-
ção é apresentada quase sempre apenas como hipótese lógica negativa sobre
como seria o homem fora do contexto social e político, para poder assentar as
premissas do fundamento racional do poder.

Daí, por um lado, a hesitação dos diversos contratualistas em definir a que


estádio da evolução da humanidade corresponde o estado de natureza, dado
que ele é definido apenas negativamente (define-se o que falta ao estado de
natureza em relação ao estado de civilização), e, por outro, a contraditória ava-
liação dessa situação humana, que para Hobbes e Espinoza é de guerra, para
outros (Pufendorf, Locke) é de paz, se bem que precária, e, para Rousseau, de
felicidade.

Contudo, para situar convenientemente a problemática diversamente


aprofundada pelos contratualistas, é mister inserir suas observações no debate
mais amplo do problema antropológico das origens do homem. Sempre
houve, desde a época grega até os nossos dias, diversidade de opiniões entre
os pensadores, quando se tratava de ponderar o caráter positivo ou negativo
do abandono da antiga condição natural: para uns, ele representa uma queda,
um afastamento da perfeição original; para outros, um progresso, a vitória do
Homo faber ou do Homo sapiens sobre o homem animal.

Em ambas as interpretações, a família monogâmica, a propriedade priva-


da e a repressão do Estado aparecem contextualmente, isto é, não há aí dis-
tinção entre poder social (família e propriedade) e poder político. Nisso não
há nenhum desvio dos motivos patentes nos nostálgicos da idade de ouro,
a idade, segundo eles, da comunidade de bens e de mulheres; só que, nesse
caso, tais motivos são revividos olhando para o futuro, e os conceitos de re-
volução e de libertação pareciam satisfazer a uma função análoga àquela que
teve o contrato em épocas precedentes.

209
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas

Os contratualistas, ao contrário, querendo legitimar o Estado de socieda-


de (a civilisation) ou modificá-lo com base nos princípios racionais em que o
poder não assenta no consenso, opõem-se necessariamente a essa corrente
de pensamento e veem no contrato a única forma de progresso; o próprio
Rousseau, inimigo das letras e das artes, foi obrigado a reconhecer no pacto
social um fato deontologicamente necessário a partir do momento em que
“tal estado primitivo já não pode subsistir e o gênero humano pereceria, se
não modificasse as condições da sua existência” (Du contrat social, I, 6); é que,
após ter surgido a linguagem, a família e a propriedade privada, só é possível
o estado de guerra ou o despotismo, expressão última da desigualdade, que
iguala, contudo, os súditos sob a vontade do Senhor.

Todos os contratualistas veem assim no contrato um instrumento de eman-


cipação do homem, emancipação política apenas, que deixa inalterada e até
garante a estrutura social, baseada precisamente na família e na propriedade
privada, mantendo uma clara distinção entre o poder político e o poder social,
entre o governo e a sociedade civil.

As posturas contratualistas fornecem elementos mais profundos acerca da


compreensão das exigências de Justiça. De pronto, percebe-se que a opção
teórica pelo contratualismo é justificada com base na suposta facilidade que
essa postura tem ao explicar e solver questões de Justiça com base na ideia de
que a sociedade em que vivemos seja por nós mesmos construída e que, por
essa mesma razão, seja de responsabilidade exclusiva dos indivíduos – partí-
cipes dessa atividade constitutiva – a estruturação dos princípios que deverão
ser aplicados na organização dessa mesma sociedade.

O mérito diferenciado do contratualismo finca-se, pois, na possibilidade


dessa teoria fornecer um processo mental que fabrique um resultado final
supostamente objetivo que, uma vez bem executado, indicará o modelo po-
lítico correto a ser adotado por qualquer sociedade que deseja resolver ade-
quadamente seus problemas de Justiça.

Dito de outro modo, a necessidade de adoção de um ponto inicial contra-


tualista justifica-se pela sua disponibilização de uma espécie procedimento
no qual não se vislumbram, a partir da sua estruturação básica, vantagens
individuais prévias e que, por consequência, permitirão a extração de princí-
pios que protegerão e legitimarão os interesses de todos os partícipes desse
procedimento. Tal ponto de partida procedimental melhor ilustra o modo

210
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas

como compreendemos a configuração básica da sociedade e justificamos aos


demais cidadãos respostas a problemas de Justiça, razão pela qual não se po-
deria, razoavelmente, abdicar de tal ponto de partida. Seria, pois, segundo a
autora, apenas por meio da ideia de um contrato que poderíamos atribuir le-
gitimidade democrática às respostas específicas fornecidas por meio da refle-
xão filosófica que se desenvolve, o que em si já poderia ser vislumbrado como
um sério problema no que diz respeito ao conceito de legitimidade política
sendo adotado e no que diz respeito à própria compreensão dos objetivos
centrais a serem almejados pela Filosofia Política.

Hoje, dificilmente a ideia fundamental do contratualismo, na forma ela-


borada pelos escritores do séc. XVIII, pode ser considerada um instrumento
válido para compreender o fundamento do Estado e, em geral, da comunida-
de civil. Contudo, entre os séculos XVI e XVII, a ideia contratualista teve notável
força libertadora em relação aos costumes e tradições políticas. Hoje, com o
uso que as ciências e a Filosofia fazem de conceitos como convenção, acordo,
compromisso, a noção de contrato talvez pudesse ser retomada para análise
da estrutura das comunidades humanas, com base na noção da reciprocidade
de compromissos e do nosso caráter condicional dos acordos dos quais se
originam direitos e deveres.

Atividades de aplicação
1. Thomas Hobbes propõe que um dos principais motivos para se viver
em sociedade é a garantia da segurança, dada a guerra de todos con-
tra todos existente no estado de natureza. Acerca desse argumento,
considerando o Estado contemporâneo, qual a importância da tutela
do Estado para a proteção da segurança do indivíduo?

2. Para John Locke, ao contrário de Hobbes, os indivíduos não vivem


em uma guerra entre si, contudo, o convívio em sociedade lhe é mais
vantajoso, e a partir deste, e da fundação do Estado, torna-se possível
proteger os bens jurídicos mais importantes, a vida, a liberdade e a
propriedade. Tal espécie de proteção também é objeto de proteção
pelos Estados contemporâneos?

3. Quais as implicações da diferenciação entre liberdade política e liber-


dade filosófica, tal como o fez Montesquieu na realidade?

211
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas

4. Característica essencial no Estado construído pelo Contrato Social de


Rousseau é a concepção de volonté générale, da vontade geral que
conduz esse mesmo Estado. Conceitue vontade geral, com base no
pensamento do filósofo, bem como considere sua relação com a atua-
lidade.

Gabarito
1. O Estado, até a atualidade, no mínimo no plano das leis existentes,
toma para si o direito de garantir a segurança dos indivíduos que vi-
vem dentro dele, bem como de punir os transgressores dos ordena-
mentos sociais. Surge, pois, a problemática de como o Estado tornará
efetiva a garantia da segurança de seu povo.

2. Sim, inclusive o próprio Estado brasileiro, nos primeiros artigos da


Constituição, faz constar a importância da proteção à vida, à liberdade
e à igualdade, bem como à propriedade, mesmo que essa seja passí-
vel, na atualidade, de limitações.

3. O Estado propõe-se a garantir a liberdade do indivíduo, impondo li-


mites ao seu agir, na busca da regulação do convívio social. Contudo,
o indivíduo somente poderá ser considerado livre quando possuir a
capacidade de discernimento para se identificar da maneira mais ade-
quada qual é a atitude cabível no momento.

4. Vontade geral pode ser entendida como a vontade de todo o corpo


social tendo em vista o bem de todos; trata-se da escolha que bene-
ficiará toda a sociedade, sendo, portanto, a mais adequada a ser se-
guida. Na atualidade, consagrado o sistema de eleições democráticas,
constata-se que, ao invés de se estimular um exercício de vontade
geral através dos sufrágios, tem-se ocorrido na realidade o triunfo da
vontade de todos, ou seja, da soma das vontades particulares de cada
um, visando a interesses de grupos, mas não de toda a sociedade.

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212
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214
Liberdade interna
e externa em Kant

Introdução
Immanuel Kant nasceu em 1724, em Königsberg, Prússia (hoje Alema-
nha), cidade em que habitou por toda a sua vida. A primeira fase de sua
vida, que vai da graduação em Königsberg à sua estreia como professor na
mesma universidade, é marcada pelos estudos sobre metafísica da natureza,
sustentadas no racionalismo moderno, sobretudo em Descartes e Leibniz,
e na revolução científica iniciada por Nicolau Copérnico. É nesse período
que alcança sucesso com suas primeiras teses, como “A verdadeira avaliação
das forças vivas” (1747), e a dissertação “De mundi sensibilis atque intelligibilis
forma et principiis” (Dissertação sobre a forma e os princípios do mundo sen-
sível e do mundo inteligível) (1770). Depois, o filósofo atravessa um período
de 10 anos sem novas publicações, provavelmente devido às suas leituras
de Hume, que provocariam-no a modificar o método de raciocínio em suas
obras, adotando a postura crítica. O filósofo David Hume foi fundamental
para despertar Kant de seu sono dogmático, pois a crítica do pensador es-
cocês ao sistema metafísico obrigou o alemão a refundar suas concepções.
Hume teria demonstrado, a partir do empirismo, a desnecessidade de causas
metafísicas para explicar os fenômenos, o que inquietou demasiadamente
Kant, de formação baseada na leitura dos filósofos clássicos, e, portanto, sus-
tentado em princípios metafísicos. Ao ler Hume, Kant passara a duvidar da
capacidade do homem de conhecer além do sensível, e isso o motivou a
seguir em novos estudos e reflexões, que resultariam em sua fase crítica.

Do racionalismo moderno será influenciado pelas ideias inatas de Descar-


tes, que em Kant repercutirá nos postulados a priori da razão pura. Pela razão
pura o homem é capaz de conhecer sem a necessidade de algo empírico, de
um conhecimento advindo do externo.

Da revolução científica receberá a noção empiria, isto é, para o filósofo,


com as revoluções científicas modernas, a Física e a Matemática se torna-
ram solos seguros para o conhecimento, ao contrário do que ainda ocorria
na metafísica. Quando o homem conhece, não o faz somente passivamente,
Liberdade interna e externa em Kant

mas também construtivamente, pois conhece algo que ele mesmo pôs aos
dados fornecidos pela faculdade da sensibilidade.

Também contribuiu com Kant a leitura do ceticista e empirista britânico


David Hume, que será o impulso que levará o filósofo prussiano ao ápice
de seu pensamento, a fase crítica. A afirmação de Hume de que aquilo que
entendemos como fenômeno de causa e efeito no fundo não passaria de
uma sensação ou imaginação nossa, provocou em Kant as dúvidas que o
conduziram a reformular e conceber uma nova sistemática filosófica. Ou
Kant refutaria também a metafísica, e com isso também as ideias a priori,
ou teria que elaborar uma nova argumentação a favor da metafísica. O re-
sultado dessas investigações intelectuais serão suas grandes obras: Crítica
da Razão Pura (1781), Crítica da Razão Prática (1788), Crítica da Faculdade do
Juízo (1790), Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785) e a Metafísica
dos Costumes (1797). A moral e o Direito, como veremos, é também resultado
desse esforço. Outra influência forte de Hume em Kant percebe-se em seu
viés ceticista, isto é, a postura de duvidar e necessitar comprovar cada argu-
mento como realmente sendo capaz de ser demonstrado, o que se faz tanto
pela empiria como pelo raciocínio.

Por fim, o Iluminismo francês exercerá grande influência em Kant na perspec-


tiva da necessidade de autonomia, de pensar e agir por si mesmo, de formular
leis e obedecê-las mediante a própria vontade. Como se verá mais adiante, a au-
tonomia e a liberdade são conceitos essenciais para a filosofia crítica kantiana.

A crítica kantiana – juízos a priori


e a posteriori, analíticos e sintéticos
Kant inicia a fase que a história da Filosofia consagrou como idealismo
alemão, que se trata de um avanço nas análises relacionadas à metafísica,
à busca pelas ideias transcendentais, das grandes investigações acerca de
conceitos como espaço, tempo, alma, Deus. Contudo, esse retorno somente
foi possível porque antes o pensador alemão teve que recorrer à utilização
de seu criticismo para fundamentar a metafísica. Por sua vez, a crítica kantia-
na é a fase em que o filósofo passou a estudar os limites do conhecimento
humano, esforço que levaria a refletir tanto acerca dos raciocínios como da
utilização da empiria. Nessa fase Kant passa a buscar os fundamentos últi-
mos para as grandes questões da existência, tais como o conhecimento, a
moral, a estética e a Justiça.
218
Liberdade interna e externa em Kant

O idealismo kantiano trabalha na concepção de que o conhecer é dar


forma a uma matéria dada, no sentido de que a matéria é inerente ao próprio
objeto, e forma é a participação do sujeito nesse processo de conhecer. Para
o conhecimento ser válido, a forma que o sujeito atribui ao objeto deverá ser
encontrada em todos os objetos e por todos os sujeitos.1 1
MACEDO JÚNIOR, Ronal-
do Porto. Kant e a crítica
da razão: moral e direito.
Nisso alcançamos a primeira distinção fundamental: conhecimentos a In: MACEDO JÚNIOR,
Ronaldo Porto. Curso
priori e a posteriori. Os primeiros são aqueles que estão conforme às formas de Filosofia Política: do
Nascimento da Filosofia
dadas pela mente do sujeito; já os a posteriori relacionam-se à empiria, ao a Kant. São Paulo: Atlas,
2008. p. 433.
conhecimento sensível. O problema é que o sensível é contingente, ou seja,
podemos saber que algo é desse modo, mas não que ele não possa ser de
outro modo. Dessa forma, é necessário que a razão revele seus conhecimen-
tos a priori, porque somente estes abarcam os universais, e estão livres do
contingencial. Um exemplo que afirma essa necessidade são os conceitos de
espaço e tempo, pois é impensável um objeto sensível sem essas condições,
de forma que mesmo os objetos sensíveis possuem antes algo a priori.

O raciocínio kantiano prossegue, distinguindo agora os juízos analíticos


dos sintéticos.
O juízo analítico é o que se limita a explanar um conceito, analisar-lhe o conteúdo, sem
fazer apelo a qualquer elemento novo. O predicado, nesse caso, é extraído do sujeito por
simples análise. [...] O juízo sintético, ao contrário, é um juízo cujo predicado acrescenta
algo sobre o conceito do sujeito. [...] Todo juízo de experiência é sintético, pois ele nos
ensina a acrescentar atributos aos nossos conceitos. Todos os juízos analíticos, pelo
contrário, são a priori, visto que independem da experiência.2 2
MACEDO JÚNIOR, Ronal-
do Porto. Kant e a crítica
da razão: moral e direito
Em linhas gerais, então, poderíamos diferenciar os juízos analíticos como In: MACEDO JÚNIOR, Ro-
naldo Porto. Curso de Fi-
aqueles que se limitam a analisar o objeto, sem nada acrescentá-lo, o máximo losofia Política: do Nasci-
mento da Filosofia a Kant.
que faço é decompor o conceito e trabalhar as ideias que já estão pensadas p. 434-435.

nele. Já os juízos sintéticos baseiam-se na experiência, tal como no próprio


exemplo trazido por Kant, da afirmação “todos os corpos são pesados”, nesse
caso estaríamos acrescentando algo do sujeito ao objeto, pois não há como
se afirmar isso a não ser pela via da experiência. Essa distinção também re-
sulta que os juízos analíticos são a priori, porque não dependem da experiên-
cia, enquanto os sintéticos são a posteriori. Os juízos analíticos alcançam o
universal, mas os juízos sintéticos permitem a ampliação do conhecimento,
pela inclusão de dados novos. Vejamos como o filósofo auxilia na distinção
utilizando-se ainda de exemplos:
Juízos da experiência como tais são todos sintéticos. Com efeito, seria absurdo fundar um
juízo analítico sobre a experiência, pois para formar o juízo de modo algum preciso sair
do meu conceito nem, portanto, de testemunho algum da experiência. Que um corpo
seja extenso, é uma proposição certa a priori e não um juízo de experiência. Pois antes

219
Liberdade interna e externa em Kant

de recorrer à experiência já possuo no conceito todas as condições para o meu juízo,


conceito do qual posso extrair o predicado segundo o princípio de contradição e com isso
tornar-se ao mesmo tempo consciente da necessidade do juízo, coisa que a experiência
nunca me ensinaria. Do contrário, embora já não inclua no conceito de um corpo em
geral o predicado peso, esse conceito designa um objeto da experiência mediante
uma das partes da mesma experiência como pertencentes ao primeiro conceito. Posso
conhecer antes analiticamente o conceito de corpo pelas características da extensão, da
3
KANT, Immanuel. Crítica impenetrabilidade, da forma etc., todas pensadas nesse conceito.3
da Razão Pura. Tradu-
ção de Valerio Rohden e
Udo Baldur Moosburger.
São Paulo: Nova Cultural,
Contudo, o pensamento kantiano encontrou ainda um terceiro tipo de
1996. p. 58-59.
juízo, que combina os dois anteriores nos juízos sintéticos a priori. É um juízo
universal como o analítico e que amplia conhecimentos, como os sintéticos.
Esse juízo Kant aprendeu com a revolução científica copernicana, e extraiu
da Física e da Matemática. Kant dá o exemplo da Geometria, na qual os juízos
sintéticos a priori permitem afirmar que a linha reta é a mais curta entre dois
pontos. Esse juízo é sintético a priori, porque o conceito de linha não está
necessariamente ligado às ideias de curta ou longa, logo, saber que ela é a
mais curta entre dois pontos é mérito da experiência. Vejamos como Kant
sustenta que também a Física, a ciência da natureza, fundamenta-se muitas
vezes em juízos sintéticos a priori.
A ciência da natureza (physica) contém em si juízos sintéticos a priori como princípios. A
título de exemplo, quero mencionar apenas algumas proposições tais como a seguinte:
em todas as mudanças do mundo corpóreo a quantidade da matéria permanece imutável,
ou, em toda a comunicação de movimento ação e reação têm que ser sempre iguais entre
si. Em ambas é clara não apenas a necessidade, por conseguinte a sua origem a priori, mas
também o fato de serem proposições sintéticas. Pois no conceito de matéria penso não
a permanência, mas somente sua presença no espaço pelo preenchimento do mesmo.
Portanto, vou efetivamente além do conceito de matéria para pensar acrescido a priori ao
mesmo algo que não pensara nele. A proposição não é portanto analítica, mas sintética e
não obstante pensada a priori, e assim nas restantes proposições da parte pura da ciência
4
KANT, Immanuel. Crítica da natureza.4
da Razão Pura. p. 61-62.

Depois de comprovar a utilização dos juízos sintéticos a priori nas ciências


naturais, restava, para Kant, saber se o mesmo raciocínio poderia ser aplica-
do à metafísica. Para Kant, o conhecer tende ao absoluto, às ideias que são
causas e substâncias de todas as coisas, como Deus, alma, mundo. O pro-
blema é que o homem pode somente pensá-las, jamais conhecê-las apro-
priadamente, porque este necessita também do sensível. Por isso os objetos
são fenômenos e noumenos, sendo o primeiro as coisas tais como as conhe-
cemos, e o segundo as coisas em si, que independem do nosso conhecer.
Dessa forma, o homem pode pensar Deus e o mundo como um todo, mas
não conhecê-los, porque isso implica também a necessidade de experiência.
Os juízos sintéticos a priori podem ser entendidos como intuições, intuições
que ligam conceitos, ampliando o conhecimento, mas partem de ambas as
necessidades, os juízos analíticos e os sintéticos. Conclui-se que Kant não

220
Liberdade interna e externa em Kant

aceita a possibilidade de juízos sintéticos a priori na metafísica, mas aceita


que a metafísica é uma tendência, uma necessidade humana.5 5
Sobre a necessidade
natural da metafísica para
o homem, citemos o pró-
Em seguida, ver-se-á a metafísica kantiana sendo aplicada à moral e ao prio Kant: “Não obstante,
essa espécie de conhe-
Direito na Metafísica dos Costumes, com a formulação de leis a priori para a cimento também pode
ser considerada dada em
orientação do espírito. certo sentido, e embora
não como ciência, a Meta-
física é contudo real como
disposição natural (me-
taphysica naturalis). Com

O pensamento político e jurídico de Kant


efeito, sem ser movida
pela mera vaidade da eru-
dição, mas impelida pela
sua própria necessidade,
Kant, tal como seus predecessores já estudados no capítulo anterior, de- a razão humana progride
irresistivelmente até per-
guntas que não podem ser
dicado aos filósofos contratualistas, também entende o início da sociedade respondidas por nenhum
uso da razão na experiên-
civil por meio da realização de um contrato civil. Contudo, o filósofo prus- cia nem por princípios daí
tomados emprestados, e
siano opera uma passagem fundamental que o distancia dos anteriores: a assim alguma metafísica
sempre existiu e conti-
postulação metafísica como condição primordial para a construção do Di- nuará a existir realmente
em todos os homens, tão
reito, e mesmo o direito positivo. É na sua obra Metafísica dos Costumes que logo a razão se estenda
neles até a especulação.“
buscamos suas maiores contribuições para a Filosofia do Direito. (KANT, Immanuel. Crítica
da Razão Pura. p. 63.)

A Metafísica dos Costumes dá prosseguimento às discussões já iniciadas


pela Fundamentação da Metafísica dos Costumes e pela Crítica da Razão Prá-
tica. Para Kant, metafísica é a sistemática, é o conhecimento filosófico deri-
vado da razão pura, e que pode ser encadeado sistematicamente. Uma das
possibilidades de tais encadeamentos se verifica no uso da razão prática,
que verifica a metafísica dos costumes. Essa delimitação foi operada por
Kant na Crítica da Razão Pura, quando afirma que a metafísica se divide nos
usos especulativo e prático da razão pura, de forma que surgem a metafísica
da natureza e a metafísica dos costumes, respectivamente. Nesta parte do
trabalho, o essencial será apresentar algumas questões dessa segunda me-
tafísica que
contém os princípios que determinam a priori e tornam necessários o fazer e o deixar de
fazer. Ora, a moralidade é a única conformidade das ações a leis que podem ser derivadas,
de um modo completamente a priori, de princípios. Em decorrência disso, a metafísica dos
costumes é propriamente a moral pura, a qual não se funda sobre qualquer Antropologia
(quaisquer condições empíricas).6 6
KANT. Immanuel. Crítica
da Razão Pura. p. 497.

A moral kantiana é pura, isto é, concebe-se tão somente sobre princípios


a priori, derivados da razão pura. É da racionalidade que emana a moral, e
não de aspectos empíricos ou históricos. Uma moral empírica, por estar ex-
posta a variações, jamais encontraria fundamentos em princípios a priori.
Por isso Kant articula a moral, e depois também o Direito, em fundamentos
metafísicos. Também nessa citação encontramos uma ideia que se tornará

221
Liberdade interna e externa em Kant

basilar na metafísica dos costumes: o fazer e o deixar de fazer. Essa dicotomia


identifica a liberdade de agir sem ser impedido por outros, o que corrobora a
concepção kantiana de Direito como liberdade. Ao coagir outros a deixarem
de fazer algo, o Direito também privilegia a minha liberdade de agir, evitan-
do impedimentos alheios. Prosseguindo na análise dos termos metafísica e
costumes, observa-se o significado do segundo.

Costume, por sua vez, deriva do termo alemão Sitten, que corresponde
ao vocábulo latino mores, e ao grego ethos, todos significando costume. O
uso grego, como já explicado no primeiro capítulo deste livro, reúne em sua
acepção tanto Ética como moral, demonstrando que para aquele povo não
havia essa distinção que é própria do mundo moderno. Portanto, costumes,
em geral, retratam a necessidade de se sistematizar o agir humano, estabele-
cendo regras para suas condutas.

Retomando a divisão entre metafísica da natureza e metafísica dos cos-


tumes, há aqui uma diferenciação fundamental. A metafísica dos costumes
rege-se pela razão prática, e tem em vista ações práticas, enquanto que a
metafísica da natureza rege-se pela razão pura, e tem em vista questões teó-
ricas, o conhecimento em si. A metafísica dos costumes permite a existência
dos imperativos, que impõem uma obrigação de agir de determinado modo,
um dever, uma ação que busca determinado fim. Por outro lado, a metafísica
da natureza não se baseia no dever-ser (Sollen), mas no ser, não se preocupa
com o que as coisas devem ser, ou como devem agir, mas como elas são, no
que é. A metafísica dos costumes direciona-se ao agir, enquanto a metafísica
da natureza ao ser.

Antes de se adentrar aos imperativos categóricos, é importante ressaltar


que a metafísica dos costumes possui como fim a liberdade, que para Kant viria
7
Tradução livre: “Qual- justamente na formulação de leis universais e racionais.7 Interessa acrescentar,
quer ação é conforme ao
direito quando por meio ainda, que a Metafísica dos Costumes divide-se em duas partes, que buscam
dessa, ou segundo a sua
máxima, a liberdade do delimitar os “Princípios metafísicos da doutrina do Direito” e os “Princípios me-
arbítrio de todos pode co-
existir com a liberdade de
todos os outros segundo
tafísicos da doutrina da virtude”. A primeira parte é mais voltada aos juristas,
uma lei universal.” (KANT,
Immanuel. La Metafisica
pois analisa os aspectos formais do livre-arbítrio a serem cerceados pelas leis
dei Costumi. Tradução de:
VIDARI, Giovanni. Roma-
da liberdade nas relações externas; já a segunda trata mais especificamente da
-Bari: Laterza, 2004. p. 35.)
Ética, que possui princípios metafísicos próprios, além de conter a finalidade
da razão prática. Resulta disso que na legislação jurídica a obrigatoriedade em
relação à lei é uma coerção externa, enquanto que na Ética a coerção é interna,
pois está ligada a princípios metafísicos que o indivíduo sabe que deve seguir,
e não necessariamente em normas positivadas em códigos.

222
Liberdade interna e externa em Kant

Por fim, a distinção entre doutrina do Direito e doutrina da virtude, ou 8


LOPARIC, Zeljko. As duas
metafísicas de Kant. In:
entre Direito e Ética, na Metafísica dos Costumes, segue a mesma lógica da OLIVEIRA, Nythamar Fer-
nandes; SOUSA, Draiton
divisão da metafísica da natureza, que possui uma parte transcendental, que Gonzaga de (Orgs.). Justi-
ça e Política: homenagem
trata das leis que abarcam os objetos em geral, sem se determinar a esse ou a Ottfried Höffe. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2003. p.
aquele, e de uma outra parte, que investiga a natureza particular desse ou 309-311. O autor ainda ex-
plica que a prima acepção
daquele objeto. A primeira possui postulados metafísicos, enquanto que a da metafísica da natureza
se relaciona com a ontolo-
segunda se situa no plano empírico.8 gia geral, enquanto que a
segunda já está no âmbito
da Fisiologia.

A metafísica da natureza procura demonstrar que existem pressupostos a 9


Com tais princípios
a priori, Zeljko afirma
priori que devem ser seguidos pela pesquisa científica empírica. De forma aná- que Kant busca resolver
também de forma a priori
loga, a metafísica dos costumes possui como objetivo demonstrar como o agir todos os problemas que
envolvem o uso externo
humano possui regras a priori que são inclusive anteriores às leis jurídicas.9 da nossa liberdade. Tal si-
tuação não teria como fim
apenas as relações entre
Entretanto, embora haja essa aproximação, em outro aspecto as duas os homens, mas entre os
próprios Estados. “O fim
metafísicas se distanciam. A metafísica da natureza está no plano do ser, último visado por esse tipo
de legislação é a realização
da paz perpétua entre
enquanto que a metafísica dos costumes situa-se no plano do dever-ser estados nacionais, gover-
nados, internamente, por
(Sollen). Essa diferenciação torna-se mais evidente com a exposição sobre os constituições maximamen-
te conforme às exigências
imperativos categóricos, delimitados por Kant na obra Fundamentação da do direito natural e, ex-
ternamente, pelas regras,
Metafísica dos Costumes. também racionais, de uma
confederação mundial –
um estado das coisas hu-
manas que é, ao mesmo
tempo, o elemento central

Os imperativos categóricos do fim último da história


do gênero humano”. (LO-
PARIC, Zeljko. As duas me-
na metafísica dos costumes tafísicas de Kant. In: OLIVEI-
RA, Nythamar Fernandes;
SOUSA, Draiton Gonzaga
de (Orgs.). Justiça e Políti-
Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant afirma que ali busca os ca: homenagem a Ottfried
Höffe. p. 314-315.)
princípios supremos da moralidade, que se fundamentam essencialmente na 10
KANT, Immanuel. Fun-
ideia de boa vontade, o único bem no mundo que é bom em si mesmo, livre damentação da Metafísi-
ca dos Costumes e outros
de qualquer contingência. “Nem neste mundo nem fora dele, nada é possível Escritos. Tradução de Leo-
poldo Holzbach. São Paulo:
pensar que possa ser considerado como bom sem limitação, a não ser uma só Martin Claret, 2006. p 21.

coisa: uma boa vontade”.10 E a boa vontade seria justamente o agir pelo dever, 11
“A boa vontade não é
boa pelo que promove ou
não o agir conforme o dever, mas tão somente pelo dever.11 A distinção é im- realiza, pela aptidão para al-
cançar qualquer finalidade
portante aqui: quando agimos conforme o dever sempre temos uma finali- proposta, mas tão somente
pelo querer, isto é, em si
dade em vista, ou seja, qualquer ação boa, quando praticada por interesses, mesma. E considerada em
si mesma, deve ser ava-
desvirtua-se do dever. Mesmo a caridade, quando tem interesse, seja ele qual liada em grau muito mais
elevado do que tudo o que
for, reputação, vaidade, carência, entre outras possibilidades, cria uma finalida- por meio dela puder ser
alcançado em proveito de
de na ação, retirando dela toda a pureza. Isso é agir conforme o dever. O agir qualquer inclinação ou, se
quiser, da soma de todas as
pelo dever é o agir simplesmente pela razão, sem qualquer interesse ou fina- inclinações”. (KANT, Imma-
nuel. Fundamentação da
Metafísica dos Costumes
lidade nela; eu faço isso porque a razão me impera, e não por qualquer outra e outros Escritos. p. 22.)

coisa.12 É um agir prático. Coloco-me acima das simples opiniões e preferências 12


KANT, Immanuel.
Fundamentação da Me-
contingenciais para agir pela razão. Nisso consiste a pureza da intenção, o agir tafísica dos Costumes e
outros Escritos. p. 25-26.

223
Liberdade interna e externa em Kant

prescindido de qualquer finalidade. Por isso o dever seria a necessidade de se


cumprir uma ação por respeito à lei.

Disso decorre também que deve-se obedecer a lei não por seu conteú-
do, mas simplesmente pelo dever de obedecer. A moral kantiana, portanto,
assenta-se no modo de como as ações devem ser e não naquilo que as coisas
são. Por isso também extrai sua moral da metafísica de ideias a priori capta-
das somente pela razão, e não pela experiência.

Como se vê, a base da razão prática kantiana é a vontade, porque somen-


te ela pode condicionar uma ação a uma lei. Todas as coisas são regidas por
leis, quando observamos as leis físicas e químicas, por exemplo. A vontade,
portanto, está relacionada diretamente à questão das regras que a condi-
cionam a agir de determinado modo. Sendo a vontade uma razão prática, é
13
“Cada coisa na natureza na razão que deverá encontrar suas regras,13 que para Kant são justamente
atua segundo certas leis.
Só um ser racional possui os imperativos, que servem de leis, ou princípios racionais, a todo agir que
a capacidade de agir se-
gundo a representação tem em vista um agir universal. Kant distingue dois tipos de imperativos: o
das leis, isto é, por prin-
cípios, ou, só ele possui hipotético e o categórico.
uma vontade. Como para
derivar as ações das leis se
exige a razão, a vontade
outra coisa não é senão a
Os imperativos hipotéticos são aqueles que buscam algum fim determi-
razão prática. Se a razão
determina infalivelmente
nado, como alcançar um certo resultado, ou mesmo alcançar bens maiores,
a vontade, então as ações
de tal ser, que são conhe- como a felicidade. Dessa forma, os imperativos hipotéticos estão sempre
cidas como objetivamente
necessárias, são também condicionados, estão sempre ligados a um determinado fim.
subjetivamente necessá-
rias, ou seja, a vontade é a
faculdade de não escolher Bastante diferentes são os imperativos categóricos, que afirmam que al-
nada mais que a razão, in-
dependentemente da in- gumas ações são necessárias em si mesmas, livres de qualquer condiciona-
clinação: conhece-a como
praticamente necessária, mento. Não se persegue qualquer fim nos imperativos categóricos, mas por
quer dizer, como algo
bom”. (KANT, Immanuel.
Fundamentação da Me-
si mesmo. Os imperativos categóricos não nos apresentam um fim exterior,
tafísica dos Costumes e
outros Escritos. p. 43).
um resultado, mas somente o agir pelo dever-ser, que é exatamente o agir
conforme uma lei geral.

Importante notar aqui que os imperativos hipotéticos são juízos analíti-


cos, porque decompõem o fim em vários meios. Ou seja, eu quero deter-
minado resultado, determinado fim, mas para isso preciso fazer tais coisas,
praticar tais atos, realizar tais ações.

Por outro lado, os imperativos categóricos não estão ligados a qualquer


fim, por isso não permitem a decomposição em partes menores, e também
por isso devem ser entendidos como juízos sintéticos a priori. Quando temos
um imperativo categórico, é possível de imediato conhecer o seu conteúdo,
porque ele é livre, por ter o fim em si mesmo. Essa imediatez funciona como
a intuição dos juízos sintéticos a priori já discutidos na Crítica da Razão Pura.
224
Liberdade interna e externa em Kant
14
O conteúdo dos imperativos categóricos é a universalidade e a necessida- KANT, Immanuel.
Fundamentação da Me-
tafísica dos Costumes e
de de se obedecer as leis em geral, a tal ponto que ele pode ser formulado outros Escritos. p. 51.
15
como o “age só segundo máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que KANT, Immanuel.
Fundamentação da Me-
tafísica dos Costumes e
ela se torne lei universal”14. Uma formulação semelhante do mesmo enuncia- outros Escritos. p. 52.

do resultará no princípio da autonomia da vontade: “age como se a máxima da


16
tua ação se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza”15. O princípio da autono-
mia da vontade se revestirá
Em outras palavras, está lançado o princípio de que o homem é o único que de enorme importância no
ordenamento jurídico bra-
sileiro atual, representando
pode agir conforme as suas leis, no qual se fundamenta o princípio da autono- papel fundamental tanto
na Constituição Federal de
mia da vontade16, que é aquele em que devemos obedecer somente as leis que 1988 como sendo um dos
pilares da teoria geral dos
formulamos.17 Aqui torna-se bastante evidente a influência iluminista em Kant, direitos contratuais, que
afirma que somente posso
aderir a um contrato se a
na necessidade de se orientar conforme as próprias leis, é a ideia de autonomia, minha vontade assim o
querer. No primeiro caso,
de esclarecimento, que em alemão é Aufklärung, e que traduz o Iluminismo dos quando falamos da Cons-
tituição, pode ser aplicada
franceses. a qualquer lei, a partir da
ideia de um princípio de-
mocrático. Pela autonomia
da vontade, nós sabemos
Delineada a distinção entre imperativos hipotéticos e categóricos, e com- que devemos obedecer às
leis porque nós as coloca-
preendida a fundamental importância dos imperativos categóricos para a fi- mos lá, já que somente pre-
cisamos obedecer o que a
losofia kantiana, vejamos como ele se dá na discussão da moral e do Direito. nossa razão assim o pensa.
Num regime democrático,
entende-se que as leis são
postas pelo povo, pelas
regras que esse sistema
condiciona, de forma que

Ética e Direito as leis democráticas seriam


sempre leis postas pelos in-
divíduos, logo necessárias
de serem obedecidas sim-
Na Metafísica dos Costumes, Kant conceitua e delimita as áreas abrangidas plesmente por dever-ser.
Tal princípio, ainda, é uma
das bases de todo o direi-
pelo Direito e pela Ética, identificando dessa forma que o homem obedece a to privado, tendo como
exemplo o direito contratu-
duas leis, uma lei interna e uma lei externa. A lei interna é a moral, ou a Ética, al, no qual é mais evidente
sua função. (NORONHA,
e a lei externa é o Direito. Kant utiliza a construção paralela desses dois con- Fernando. O Direito dos
Contratos e seus Princí-
pios Fundamentais. São
ceitos para fundamentar a liberdade humana. Paulo: Saraiva, 1994; KRETZ,
Andrietta. Autonomia da
Vontade e Eficácia Hori-
A lei interna identifica liberdade porque está ligada aos postulados racio- zontal dos Direitos Fun-
damentais. Florianópolis:
Momento Atual, 2005.)
nais da metafísica dos costumes. Para Kant, como já se afirmou, todo homem 17
A leitura de um peque-
já é dotado de uma vontade boa, ou seja, de uma inclinação a praticar boas no texto de Kant, intitulado
“Resposta a pergunta: o que
ações. A moral interna do indivíduo se articula através dos imperativos cate- é Esclarecimento?”, é essen-
cial não somente para com-
preender o sistema filosó-
góricos. Importante notar que liberdade, para Kant, não está ligada essencial- fico kantiano mas também
o próprio período histórico
mente a uma ausência de coação exterior, mas à condição de agir conforme vivido pelo autor. Nesse
texto, Kant enfatiza a neces-
a lei interna da minha razão. Partindo da inclinação humana às boas ações, sidade de o indivíduo passar
a pensar e agir por si mesmo,
livre de qualquer paternalis-
Kant constrói um sistema que permite a formulação de leis universais, que mo. O texto também apre-
senta a enorme influência
seriam aquelas leis que qualquer humano, devido à sua capacidade racional, das ideias iluministas no
pensamento kantiano. O
é capaz de entender como uma obrigação a ser seguida. Não se obedece termo Esclarecimento refere-
se à expressão Aufklärung,
essa lei por capricho ou desejo, ou por opinião subjetiva, mas por um dever termo alemão que identifica
o Iluminismo. (KANT. Imma-
nuel. Resposta à Pergunta: O
interno, postulado pela razão. que é Esclarecimento? (Au-
fklärung). In: KANT, Imma-
nuel. Fundamentação da
Já a lei externa, por sua vez, fundamenta a legalidade, por ser a faculdade Metafísica dos Costumes
e outros Escritos. Tradução
de Leopoldo Holzbach. São
Paulo: Martin Claret, 2003. p.
225 115-122.)
Liberdade interna e externa em Kant

do agir no mundo externo. A lei externa traz consigo também a liberdade


externa, pois fundamenta a ausência de obstáculos dos outros para com
as minhas ações. Sendo todos os homens livres tanto interna como exter-
namente, não posso ter impedimentos provindos de outrem para com as
minhas ações. Dessa ideia de lei como condição para a liberdade surge o
conceito kantiano de Direito, que seria a “restrição da liberdade de cada in-
18
KANT, Immanuel. Me- divíduo para que se harmonize para com todos os outros”.18 Direito é algo
tafísica dos Costumes.
p. 78. conhecido pela razão a priori por todos e por cada um.

A moralidade está intimamente ligada aos imperativos categóricos, que


são seu fundamento essencial, aquilo que delimita que a ação não deve per-
seguir qualquer fim, mas somente o dever-ser (Sollen). Agora, onde delimi-
taríamos a distinção entre moral e Direito? Ou melhor, que elementos com-
põem o Direito separando-o da moral?

Para Kant, são três os elementos que compõem o Direito. Primeiro, o Di-
reito baseia-se nas relações externas, nas relações de uma pessoa com outra,
de forma que ambas influenciam-se reciprocamente. Segundo, o Direito não
se relaciona ao desejo do outro, que condicionaria a necessidade à relação,
mas apenas ao arbítrio. E, por fim, como terceiro elemento, essa relação re-
cíproca entre os arbítrios deve ocorrer de tal forma que a ação de um não
interfira na liberdade do outro, segundo uma lei universal.

Retomemos os três elementos, apontando como eles diferenciam o Direi-


to da moral. O primeiro afirma a necessidade de haver mais de uma pessoa,
e isso basear-se em relações externas. A moral não implica a necessidade de
mais de uma pessoa, pois ela pode perseguir um fim que não a envolva com
mais ninguém. Já o Direito se dá na sociedade, na sociabilidade, logo implica
mais indivíduos. Não obstante, no Direito as relações não são exclusivamen-
te externas, porque o próprio dever-ser (Sollen) de obedecer a um contrato
externo fundamenta-se numa lei interna. Portanto, a moral é somente inter-
na, enquanto o Direito é externo mas também interno.

O segundo elemento diz que o Direito vincula arbítrios, e não desejos. O


arbítrio está ligado à vontade, e se relaciona ao agir conforme a lei, enquanto
o desejo em muitos casos está vinculado a questões emocionais, subjetivas,
que passam longe do Direito.

Por fim, o terceiro elemento identifica que a minha ação não pode nunca
interferir na liberdade do outro. É o conflito entre coerção e arbítrio. Porém,

226
Liberdade interna e externa em Kant

como os indivíduos obedecem a leis universais, que eles mesmo formularam


segundo princípios universais, não são eles coagidos a obedecer, mas sim
a exercer sua liberdade, sua autonomia. Na moral minha ação não é limita-
da pelo outro, porque a exerço segundo a minha razão de agir. No Direito,
mesmo a minha ação é limitada pela liberdade do outro. Certamente, tal
como já demonstrado no conceito kantiano de Direito, essa restrição está
inserida na liberdade e autonomia da vontade, pois o Direito, mais do que
coagir alguém a fazer ou deixar de fazer algo, impede o outro de interferir na
minha liberdade.

Após apresentar e explicitar os três elementos que compõem o concei-


to kantiano de Direito, entende-se a noção formalista kantiana de Direito. É
uma noção formalista porque pressupõe que as leis, quando emanadas de
uma razão conforme princípios universais, pode harmonizar os arbítrios dos
indivíduos, impedindo que a ação de um prejudique a liberdade do outro. É
daqui que emana o seu imperativo categórico da Justiça, também apresen-
tado como Princípio Universal do Direito: “Uma ação é conforme o Direito
quando por meio desta, ou segundo a sua máxima, a liberdade do arbítrio
de cada um coexistir com a liberdade de todos segundo uma lei universal”19. 19
KANT, Immannuel. La
Metafisica dei Costumi.
Percebe-se como o formalismo kantiano sustenta-se num direito positivista. Tradução de Giovanni
Vidari. Bari: Laterza, 2004.
O Direito seria um complexo de leis e regras positivas, formuladas a partir p. 35. (Tradução livre).

de imperativos categóricos, dos princípios puros do Direito, de forma que


podem harmonizar os arbítrios dos indivíduos, impedindo que qualquer um
deles possa coagir o outro a infringir a própria liberdade. Esse sistema kan-
tiano pretende envolver tanto a esfera do universal, das relações em geral,
como do individual. Ou seja, ao mesmo tempo que pretende desenvolver
a sociabilidade na sociedade, procura impedir a coação coletiva sobre o
indivíduo, pois cada um formulou as leis conforme a razão prática, da qual
emanam princípios universais.

Chegada a essa noção de sociabilidade, passemos ao momento de estu-


dar a concepção kantiana para Estado, que é o ente maior que controla todo
esse complexo de normas positivadas.

O Estado
Assim como para os predecessores, Kant entende o Estado como um contra-
to, um pacto entre os indivíduos. O Estado é o ente público que não é um patri-
mônio de ninguém, mas de todos, por isso tem em vista as questões universais.

227
Liberdade interna e externa em Kant

O Estado não se formula em Kant segundo dados históricos, antropoló-


20
KANT, Immanuel. La gicos, ou algum raciocínio teológico, mas como uma necessidade racional.20
Metafisica dei Costumi,
p. 143. São os juízos sintéticos a priori que fundamentam o Estado. Sem o Estado,
seria impensável a vida civil, pois o homem estaria ainda envolvido no estado
de natureza, de forma que ainda que contenha ele a boa vontade, inevitavel-
mente em algum momento resultaria numa guerra entre todos, ou seja, uma
ameaça permanente àquela já trazida por Hobbes, embora Kant em momen-
to algum entenda o homem como o lobo do homem.

Somente no Estado a igualdade, a estabilidade e a paz entre os homens é


possível. Nesse sentido, o surgimento do Estado é uma formulação racional
humana, e não uma busca por interesses. Pelos princípios puros do Direito,
cada homem entende que possui alguns direitos que derivam da própria
razão, e que a razão prática postula na forma dos imperativos categóricos.
Contudo, esses direitos precisam ser efetivados, e apenas numa sociedade
civil eles podem alcançar tais status. Sem o Estado é impensável uma prote-
ção legal, jurídica desses direitos. Com efeito, o Estado deriva dos postulados
racionais iniciados por juízos sintéticos a priori, e não por desenvolvimento
histórico ou necessidade. Para Kant, é dever do homem chegar ao Estado
pela razão prática.

A Justiça para Kant


A Justiça em Kant contempla outros conceitos, como liberdade, autono-
mia, paz, todos já trabalhados aqui. O homem possui uma liberdade interna
fundada na moral e em juízos a priori, e possui o direito de não ser coagido
a agir contra ela, o qual fundamenta-se na liberdade externa. Nesse sentido,
a Justiça é a fruição dessa liberdade externa, garantindo a liberdade interna,
autonomia, igualdade, paz, entre os homens. Na Justiça, não há ofensa à li-
berdade externa do outro, todos interagem em harmonia. Conforme Kant: “É
justa toda a ação que por si, ou por sua máxima, não constitui um obstáculo
à conformidade da liberdade do arbítrio de todos com a liberdade e cada
21
KANT, Immanuel. Dou- um segundo leis universais”21. Em outras palavras, a Justiça ocorre quando
trina do Direito. p. 46.
cada um pode exercer tanto a liberdade externa como a liberdade interna,
segundo as leis universais.

Por fim, Kant traz também o conceito para injustiça, que seria: “[...] comete
uma injustiça contra mim aquele que me perturba nesse estado porque o
impedimento (a oposição) que me suscita não pode subsistir com a liberda-

228
Liberdade interna e externa em Kant

de de todos, segundo leis gerais”. Dessa forma, a Justiça aconteceria com a


retirada desses impedimentos contra a liberdade do outro. A ordem jurídica
de Kant é uma ordem que se baseia na proteção à liberdade, tanto interna
como externa, e é nela que deve ser concebido o dever-ser (Sollen). Sendo
assim, retirar a oposição à liberdade é proteger e exercer a liberdade.

É importante trazer que a filosofia kantiana exerce influência no direito


contemporâneo, pois vários sistemas jurídicos da atualidade possuem por
base a ideia de dever-ser do filósofo alemão. Na Metafísica dos Costumes,
Kant divide o sistema jurídico em direito privado e direito público, sendo que
o primeiro contempla ainda direitos como os pessoais e os reais, e o segundo
trazendo o direito estatal, o direito das gentes e o direito cosmopolita.

A filosofia kantiana possibilita inúmeras reflexões que podem contribuir


enormemente com as questões contemporâneas. Uma delas é a distinção
entre as liberdades interna e externa. Tanto o Estado como as demais insti-
tuições devem funcionar de forma que as leis e as ações dos órgãos públicos
não prejudiquem a liberdade individual de cada cidadão, ao mesmo tempo
em que se mantêm a ordem externa. Nesse sentido, Kant segue a tradição
iluminista de reclamar para o indivíduo o direito à liberdade não apenas ex-
terna, mas também interna.

Ampliando seus conhecimentos

A paz perpétua: projeto de direito para os povos


(BITTAR, 2008)

O projeto racional de Kant, de deduzir no imperativo categórico toda a


moral e todo o Direito, cria tentáculos tão fortes que transcende as fronteiras
do Estado. O imperativo categórico possui por conteúdo uma definição que
já indica tratar-se de lei universal a que comanda o comportamento humano
(“Age como se a máxima de tua ação deverá tornar-se, por tua vontade, lei
universal da natureza”), de modo que, de fato, tenham-se regras constituídas
para a totalidade dos povos indiferentemente.

A garantia de igualdade é a preservação da pluralidade. Nessa ideia de tota-


lidade universal está contida a noção de igualdade, comungada pela comuni-
dade racional que habita o planeta, o que influencia a teoria kantiana a ponto

229
Liberdade interna e externa em Kant

de seus debates estenderem-se para além das pretensões do mero direito civil.
Está-se diante da necessidade de estudo de um Direito que não é meramente
nacional, que não é meramente internacional, mas que é verdadeiramente cos-
mopolita, e que confere cidadania aos homens de todas as nações.

Esse estudo, portanto, não é um estudo que visa tratar de filantropia entre
os homens de nações diferentes, mas algo solidamente constituído e consa-
grado no plano dos direitos.

“Fala-se aqui, como nos artigos anteriores, não de filantropia, mas de ser
tratado com hostilidade em virtude da sua vinda ao território de outro”.

A constituição de um espaço, para o qual se possa preservar a existência de


uma categoria própria de direitos e deveres, é necessária para a delimitação
do relacionamento entre os povos. Assim como cada Estado define os direitos
e deveres de seus cidadãos, a constituição de um direito das gentes passaria
pela necessária delimitação de direitos dos nacionais e dos estrangeiros.
No tocante ao direito das gentes – só se pode falar do direito das gentes sob o
pressuposto de alguma situação jurídica (isto é, uma condição externa sob a qual
se possa atribuir realmente ao homem de direito); porque, enquanto direito público,
implica a publicação de uma vontade geral que determine a cada qual o que é seu, e
esse status juridicus deve promanar de algum contrato que não tem sequer de fundar-
-se em leis coactivas (como aquele de que provém um Estado), mas pode ser em todo
o caso o contrato de uma associação constantemente livre, como o caso acima citado
da federação de vários Estados.

Isso parece constituir uma necessidade natural, ou, ainda, uma decorrência
natural de todo o processo civilizatório da razão. Não se poderiam esperar
outros reflexos do evolver racional. E nisso há grande operosidade da natureza,
imperiosa e autossuficiente na condução de seus processos evolutivos, citada
por Kant como a grande artífice do processo de aproximação dos homens
entre si. É a astúcia da natureza que faz com que do ódio surja o amor, assim
como da guerra surja a paz.
O que subministra essa garantia é nada menos que a grande artista, a natureza
(natura daedala rerum), de cujo curso mecânico transparece com evidência uma
finalidade: através da discórdia dos homens, fazer surgir a harmonia, mesmo contra
sua vontade.

Nada diferente se poderia esperar da própria natureza racional humana.


O imperativo está sendo aplicado! Ele deve ser cumprido na prática, pelos
homens como indivíduos, e pelos Estados entre si e perante cidadãos estran-
geiros. A efetividade do direito dos povos é um mister impostergável pela hu-

230
Liberdade interna e externa em Kant

manidade, visto tratar-se de defesa da paz, que é a garantia da sobrevivência


da própria humanidade. Nesse sentido, os acordos de paz (armistícios), falsos
modos de se postergarem contendas sem solução ou de tradição consagrada,
não oferecem solução. Aliás, ao pactuar-se pela imperatividade das regras de
direito das gentes, fica defeso a qualquer Estado instituir políticas de ofensiva
a outro Estado. Estes apenas adiam soluções.
Se existe um dever e ao mesmo tempo uma esperança fundada de tornar efectivo o
estado de um direito público, ainda que apenas numa aproximação que progride até
o infinito, então a paz perpétua, que sem segue aos até agora falsamente chamados
tratados de paz (na realidade, armistícios), não é uma ideia vazia, mas uma tarefa que,
pouco a pouco resolvida, se aproxima constantemente do seu fim (porque é de se
esperar que os tempos em que se produzem iguais progressos se tornem cada vez
mais curtos).

Na teoria kantiana, é mister, portanto, a criação de uma federação de Es-


tados, em que se preservem as condições de exercício da soberania, discipli-
nando-se ao mesmo tempo as condições com as quais se predispõem a acei-
tar direitos no plano internacional. A ideia de humanidade deve desembocar
necessariamente no recíproco atrelamento dos Estados entre si, objetivando
a efetivação dos meios, das garantias, dos direitos que conduzam à paz per-
pétua. Como escreve Hannah Arendt a esse respeito: “A real teoria de Kant
em questões políticas era a teoria do progresso perpétuo e a de uma união
federal das nações, a fim de conferir à ideia da humanidade uma realidade
política”.

Atividades de aplicação
1. A partir da postura crítica de Kant para com a metafísica, ele revisa a me-
tafísica clássica, concebendo a impossibilidade de se alcançar as causas
das causas, e ideias como Deus, alma. Analise a questão comparando
com a visão dos filósofos medievais, já discutidos no capítulo 6.

2. Demonstre algumas implicações da ideia de agir pelo dever de obe-


decer a leis universais sem ter interesses em vista, relacionando com
situações da vida em geral.

3. O Direito é baseado na liberdade, e não na coação, segundo Kant. Ela-


bore um exercício crítico sobre essa questão, analisando se no Brasil
atual o Direito é instrumento de liberdade ou de coação.

231
Liberdade interna e externa em Kant

4. Conforme o princípio da autonomia da vontade, eu somente obedeço


a leis formuladas por mim mesmo, conforme princípios universais, os
imperativos categóricos. Interprete esse princípio relacionando com
sua utilização no Direito atual, comparando se as legislações de hoje
de fato trazem a vontade do indivíduo ou não. Lembre-se que o in-
divíduo imaginado por Kant é um indivíduo autônomo, plenamente
consciente das leis que obedece.

Gabarito
1. Os medievais, em especial Agostinho e Tomás de Aquino, concebiam a
metafísica como essência do Direito, uma vez que elas emanavam da
vontade divina. Esses filósofos faziam o universal decorrer do pensa-
mento teológico, enquanto que Kant postula o universal e a metafísica
em questões do conhecimento, nas ideias inatas a partir da razão pura
humana.

2. Os exercícios de caridade, por exemplo, embora sejam muito válidos


e eficazes na promoção de políticas públicas, em geral trazem como
finalidade maior por seus líderes não o dever de ajudar em si, mas um
interesse em ser recompensado com fama e agradecimentos. No fim,
é um anseio egoísta, na visão de Kant.

3. Depende do caso e da opinião de cada um. Existem momentos em


que o Direito é exercício de coação, forçando o indivíduo a participar
de um determinado sistema, e em outros ele produz liberdade. Em ge-
ral, por ele estar vinculado à democracia, se torna violência do núme-
ro, pois a maioria impõe as regras àqueles que pensam diferente, de
forma que nisso o princípio da autonomia da vontade não se efetiva.

4. No mundo contemporâneo, o indivíduo cada vez mais é inconsciente


de suas ações. Isso gera uma apatia perante as leis que torna-se qua-
se impossível afirmar que as legislações são postuladas por vontades
suas, e mais complicado ainda afirmar que isso decorre de leis univer-
sais. É necessário um processo de educação política e jurídica.

232
Liberdade interna e externa em Kant

Referências
BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia Política. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008.
(Rev., aument. e modif. pelo autor).

KANT, Immanuel. Doutrina do Direito. Tradução de: BINI, Edson. São Paulo: Ícone,
1993.

_____. Crítica da Razão Pura. Tradução de: ROHDEN, Valerio; MOOSBURGER, Udo
Baldur. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

_____. La Metafisica dei Costumi. Tradução de: VIDARI, Giovanni. Roma-Bari: La-
terza, 2004.

_____. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e outros Escritos. Tradu-


ção de: HOLZBACH, Leopoldo. São Paulo: Martin Claret, 2006.

LOPARIC, Zeljko. As duas metafísicas de Kant. In: OLIVEIRA, Nythamar Fernandes;


SOUSA, Draiton Gonzaga de (Orgs.). Justiça e Política: homenagem a Ottfried
Höffe. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.

MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Kant e a crítica da razão: moral e Direito. In:
_____. Curso de Filosofia Política: do nascimento da Filosofia a Kant. São Paulo:
Atlas, 2008.

233
Direito e Política
na Dialética de Hegel

O sistema hegeliano
O idealismo alemão, que se inicia com Kant, tem em Hegel sua face mais
desenvolvida, pois em seu sistema filosófico de fato a Ideia (Idee) ocupa
lugar central em todas as dialéticas, conforme anuncia logo no início da
última seção da sua Ciência da Lógica, obra em que apresenta o desenvolvi-
mento lógico e ontológico de sua filosofia: “a Ideia é o conceito adequado,
o verdadeiro objetivo, ou seja, o verdadeiro como tal. Se algo tem verda-
1
de, tem por meio sua Ideia, ou seja, algo tem verdade apenas enquanto é HEGEL, G. W. F. Ciencia
de la Logica. Tradução de
Augusta e Rodolfo Mon-
Ideia”.1 Para Hegel, a Ideia não é apenas uma concepção teleológica, mas dolfo. Buenos Aires: Solar,
1968. p. 471.
aquilo que dá validade ao conhecimento racional. A Ideia está em toda a
sua filosofia, de forma que inclusive as questões éticas, políticas e jurídicas,
objeto da sua obra Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito, tem como
objetivo a realização da Ideia de Liberdade, aquilo que ele denomina como
Eticidade (Sittlichkeit).

O sistema hegeliano está apresentado na sua Enciclopédia das Ciências


Filosóficas, obra em que cataloga todos os estudos anteriores num compên-
dio que serve para apresentar sistematicamente seu pensamento. A Enciclo-
pédia é dividida em três volumes: a Ciência da Lógica, a Filosofia da Natureza
e a Filosofia do Espírito. A Filosofia do Espírito, por sua vez, está dividida em
três seções: o “Espírito subjetivo”, o “espírito objetivo”, o “Espírito absoluto”. O
espírito deve manifestar no mundo a Ideia, ou seja, deve efetivar na prática
aquilo que já é no conceito. “O Espírito subjetivo” apresenta três momentos: a
Antropologia, a Fenomenologia e a Psicologia. O “Espírito objetivo” traz o Di-
reito Político Interno, o Direito Político Externo e a História Universal. Por fim,
o ”Espírito absoluto” se manifesta através da Arte, da Religião e da Filosofia.

Como o objetivo deste livro está situado no campo da Filosofia do Direito,


as análises serão relativas ao “Espírito objetivo”, em particular do Direito Polí-
tico Interno, que se divide ainda em Direito Abstrato, Moralidade e Eticidade.
Contudo, antes de entrarmos especificamente na Filosofia do Direito, é ne-
cessário resgatar entendimentos de obras anteriores, uma vez que o Direito
Direito e Política na Dialética de Hegel

é temática fundamental do discurso hegeliano desde suas obras da juven-


tude. Em especial, retornaremos à Fenomenologa do Espírito, obra em que
Hegel apresenta a formação do indivíduo, desde seu estágio mais inculto
até o saber absoluto. Essa leitura é importante, porque acompanhar alguns
momentos pelos quais atravessa a consciência na Fenomenologia auxilia a
compreender o papel do indivíduo na Filosofia do Direito.

A Fenomenologia do Espírito
A Fenomenologia do Espírito é considerada a primeira grande obra hege-
liana, escrita após seus vários trabalhos de juventude. Trata-se de uma obra
enigmática, pois trabalha inúmeras temáticas simultaneamente, o que a
torna uma leitura ainda mais complexa. A proposta da obra é apresentada
logo no prefácio: “A tarefa de conduzir o indivíduo, desde seu estado inculto
até o saber, devia ser entendida em seu sentido universal, e tinha de consi-
derar o indivíduo universal, o espírito consciente-de-si em sua manifesta-
2
“Die Aufgabe, das Indi- ção cultural”.2 E logo a seguir complementa a sentença explicando o porquê
viduum von seinem unge-
bildeten Standpunkte aus
zum Wissen zu fuhren, war
do indivíduo universal: “O individuo particular é o espírito incompleto, uma
in ihrem allgemeinen Sinn
zu fassen und das allgeme-
figura concreta: uma só determinidade predomina em todo o seu ser-aí, en-
nine Individuum, der Sel-
bstbewußte Geist, in seiner
quanto outras determinidades só ocorrem com seus traços rasurados”.3 Ou
Bildung zu betrachten” (FE,
Prefácio, HW 3, p. 31-32.)
seja, Hegel pretende conduzir o indivíduo desde seu estágio mais primitivo,
aquele do estado inculto, até o saber absoluto. Não se trata de formar apenas
3
“Das besondere Indivi-
duum ist der unvollstän-
o indivíduo singular, e sim o universal, porque o objetivo é formar a huma-
dige Geist, eine konkrete
Gestalt, in deren ganzem
nidade em geral. Isso se torna mais claro quando observamos a estrutura
Dasein eine Bestimmtheit
herrschend ist und worin da Fenomenologia, que é dividida em duas partes: a primeira, que trata da
die anderen nur in verwis-
chten Zugen vorhanden “Ciência da experiência da consciência”, ou seja, trabalha o indivíduo singular
sind” (FE, Prefácio, HW 3,
p. 31-32.) em suas várias dimensões (intelectuais, existenciais, morais, religiosas, jurí-
dicas, entre outras); e uma segunda, intitulada de “Espírito”, que representa
a passagem do indivíduo singular ao indivíduo universal, da consciência de
si singular à consciência de si universal. No “Espírito” não se trabalha este ou
aquele indivíduo, mas a universalidade representada na figura da comunida-
de e manifestada por meio dos costumes e da história. Neste trabalho, nos
dedicaremos a analisar algumas passagens das experiências da consciên-
cia, pois o indivíduo universal poderá ser trabalhado também na Filosofia do
Direito.

Hegel denomina experiência da consciência cada momento enfren-


tado pela consciência em seu processo de formação. Esse processo passa
pela consciência, estágio imediato na qual a consciência é apenas teórica,

236
Direito e Política na Dialética de Hegel

e busca analisar o mundo externo, busca construir métodos e instrumentos


que possam ajudá-la na tarefa de entender o mundo. Para isso passa pelas
experiências da certeza sensível, da percepção e do entendimento. Na certe-
za sensível ela confirma a existência de um objeto, afirma que “isto é”, ou “isto
existe”; na percepção atribui qualidades a esse objeto, “é verde”, “é salgado”;
e no entendimento busca conceituar o objeto, tenta entendê-lo por meio de
leis universais. Porém, mesmo esta última passagem não completa o seu ob-
jetivo, pois a consciência teórica cai na incerteza quanto à sua possibilidade
de conhecer o objeto. Tal incerteza conduz a consciência para o momento
seguinte: a consciência de si.

É importante fazer algumas considerações sobre essa questão de supera-


ção dos momentos, por ser algo que se presenciará em toda a filosofia hegelia-
na, e não apenas na Fenomenologia. Para Hegel, tudo está em constante atuali-
zação, nada é acabado, pois, como afirmam Lefebvre e Macherey, a filosofia de
Hegel é também a filosofia do “ainda não”.4 Essa constante atualização é identi- 4
LEFEBVRE, Jean-Pierre;
ficada pela expressão alemã aufheben, que pode ser traduzida por suspender, MACHEREY, Pierre. Hegel
e a sociedade. São Paulo:
Discurso Editorial, 1999.
no sentido de que é tanto conservar como atualizar. Isto é, não é um simples
processo de negação, em que um momento supera o anterior, aniquilando-o.
Não, o significado de aufheben identifica que em Hegel cada momento é supe-
rado pelo seguinte, mas seu conteúdo permanece consigo nesse movimento
dialético. Ou seja, nada é perdido, tudo está em constante fluxo.

A filosofia hegeliana compõe um trabalho sistemático no qual cada obra


ocupa sua real posição conforme o movimento dialético. É a totalidade do
sistema que permite captar seu pensamento. Nesse sentido, a Fenomenolo-
5
gia ocupa um espaço essencial, pois serve como introdução5 às outras gran- A discussão de que se
a Fenomenologia seria a
des obras, sem esse processo inicial de formação espiritual do indivíduo não introdução ao sistema ou
já a primeira parte do sis-
haveria como se pensar em desenvolvê-lo politicamente, por exemplo. Tal tema, esta última funda-
mentada na exposição sis-
processo de formação cultural encontra na consciência de si um momento temática da Enciclopédia,
na qual a Fenomenologia
fundamental, pois representa a descoberta da subjetividade e do autoco- surge dentro do “Espírito
subjetivo”, foi objeto de
nhecimento, questões essenciais para o movimento dialético, que sucede vários comentadores. Im-
portante observar a obra:
LABARRIÈRE, Pierre-Jean.
mediante a negação dos momentos anteriores. Structures et Mouve-
ment Dialectique dans
la Phénoménologie de
Na consciência de si pela primeira vez o indivíduo é sujeito e objeto ao L’Esprit de Hegel. Paris:
Aubier-Montaigne, 1968.
mesmo tempo. Isso porque agora ele não estuda o objeto externo, mas a
si mesmo. Esse momento é definido por Hegel como da “verdade e certeza
de si mesmo”. Antes a verdade era somente em si, para um outro, e não para
si mesma. A consciência de si deve mergulhar em si mesma e conhecer sua
existência, para depois voltar-se ao mundo externo. Não obstante, esse mer-

237
Direito e Política na Dialética de Hegel

gulhar em si mesma não é uma experiência teórica, intelectual, mas prática,


que se dá na existência, na ação, se dá no plano da vida.
[...] o ponto de partida da dedução é a oposição entre o saber de si e o saber de um Outro.
A consciência era saber de um Outro, saber do mundo sensível em geral; ao contrário, a
6
HYPPOLITE, Jean.
consciência de si é saber de si; exprime-se pela identidade do Eu=Eu – Ich bin Ich.6
Gênese e estrutura da
Fenomenologia do Espí-
rito de Hegel, p. 170. A consciência de si precisa sair de si mesma e ir ao mundo, ao Outro. Ao
mesmo tempo em que procura conhecer o mundo a consciência busca sua
independência. O desejo é a manifestação que impulsiona a consciência de
si a sair de si e a percorrer as várias dialéticas na busca desse autoconhe-
cimento e independência. Tais dialéticas são a do reconhecimento, da luta
entre senhor e servo, do trabalho, e da liberdade da consciência de si, que
atravessa as figuras do estoicismo, do cepticismo e da consciência infeliz.

A consciência de si buscará de vários modos satisfazer seus desejos no


mundo. Tais desejos são múltiplos, e ascendem conforme a satisfação dos an-
teriores. Os primeiros desejos são essencialmente relacionados ao ciclo bio-
lógico, como a alimentação, por exemplo. Ora, percebe-se como pelo desejo
a consciência de si não somente busca conhecer o mundo, mas sobretudo
agir nele. Porém, este desejo não está ligado essencialmente ao objeto exter-
no, mas à própria consciência de si. Isto porque mesmo com a consciência de
si satisfazendo seus desejos biológicos, tais desejos continuarão surgindo,
indefinidamente. No fundo, é um anseio da própria consciência de si em co-
nhecer e agir no mundo para que assim possa experimentar a si mesma.

Esgotados os objetos puramente biológicos, a consciência de si direcio-


nará seus desejos a um outro ser vivo como ela: uma outra consciência de
si. É a dialética do reconhecimento, a qual ambas as consciências buscarão
sair de si e ir em direção ao outro, no desejo de serem reconhecidas. É o
7
HYPPOLITE, Jean. desejo recíproco de reconhecimento, ou seja, a consciência precisa sair de si
Gênese da Fenomenolo-
gia do Espírito de Hegel, e tornar-se o outro, numa questão de alteridade, porque “somente sou cons-
p. 180.
8
ciência de si quando me faço reconhecer por outra consciência de si, e se
“Hiemit ist schon der
Begriff des Geistes für uns reconheço a outra”.7 Cada consciência nega a si mesma para tornar-se um
vorhanden. Was für das
Bewußtsein weiter wird,
ist die Erfahrung, was der
outro, sendo esse o fundamento do Para Nós.
Geist ist, diese absolute
Substanz, welche in der Para nós, portanto, já está presente o conceito de espírito. Para a consciência, o que vem-
vollkommenen Freiheit
und Selbständigkeit ihres -a-ser mais adiante é a experiência do que é o espírito: essa substância absoluta que na
Gegensatzes, nämlich perfeita liberdade e independência de sua oposição – a saber, das diversas consciências-
verschiedener für sich
seiender Selbstbewußtsein,
-de-si para si essentes – é a unidade das mesmas: Eu, que é Nós, Nós que é Eu.8
die Einheit derselben ist;
Ich, das Wir, und Wir, das
Ich ist”. (FE. A Verdade da Contudo, por ter que negar a si mesma a consciência perdeu a si mesma
Certeza de si Mesmo, HW
3. p. 145.) na exteriorização. Ou seja, o processo de alteridade é incompleto, pois ambos

238
Direito e Política na Dialética de Hegel

perdem a si mesmos para poderem ser reconhecidos. Surge dessa situação o


desejo de aniquilar o outro, dominá-lo.

A dialética do reconhecimento conduz ao enfrentamento, à dialética da


luta pela independência das consciências de si desejantes. Como o reconhe-
cimento anterior não foi completo, cada consciência buscará na luta o reco-
nhecimento do outro e sua liberdade, porque como exteriorizando perdeu-
-se no outro, é necessário lutar e impor a morte a este para que se torne livre.
A consciência de si, portanto, precisa arriscar a própria existência numa luta
de vida ou morte com a outra consciência de si. Em outras palavras, a cons-
ciência de si precisa demonstrar que a liberdade é seu bem mais importante.
Nisso, caiu a consciência que não conseguiu colocar a vida em risco, não con-
seguiu ariscar a si mesma pela liberdade. Essa consciência tornou-se escrava
da outra consciência, que por sua vez é senhor. ”O indivíduo que não arriscou
a vida pode bem ser reconhecido como pessoa, mas não alcançou a verdade
desse reconhecimento como uma consciência-de-si independente”.9 9
“Das Individuum, welches
das Leben nicht gewagt
hat, kann wohl als Person
A consciência tornou-se escrava porque não conseguiu superar o ciclo anerkannt werden; aber
es hat die Wahrheit dieses
biológico, ligado ainda à vida natural. A liberdade não está na vida natural, Anerkantseins als eines sel-
bständigen Selbstbewußt-
mas na construção de uma segunda natureza. Uma consciência que sente seins nicht erreicht”. (FE. A
Luta por Independência
medo diante da própria existência não pode ser considerada consciência de e Dependência, HW 3.
p. 149.)
si. Para ser consciência de si, o indivíduo precisa ser dono de sua própria
existência, num trabalho de autonomia existencial. A liberdade, antes de ser
política, é algo interior ao indivíduo, se dá no plano da consciência. O plano
que segue é o do trabalho, o qual a consciência serva deverá produzir para
servir o senhor.

Pelo trabalho se estabelece uma nova relação. O servo produz median-


te seu próprio labor algo que um outro irá usufruir. O servo precisa servir,
porque devido ao medo reconheceu a outra consciência como senhor. Mas
o senhor não a reconhece como consciência de si livre. Trata-se de um reco-
nhecimento unilateral, reconheço mas não sou reconhecido. Por outro lado,
o senhor vive também a angústia: como não reconheceu o servo, e este é o
único que o reconhece, sua condição é de ser reconhecido unicamente por
uma figura que nem ele mesmo a reconhece. Aqui a dialética entre senhor e
escravo revela novas significações. O senhor foi corajoso, por isso tornou-se
livre exteriormente, mas interiormente não conquistou o próprio reconheci-
mento. O senhor está estagnado em seu próprio desenvolvimento.

Por outro lado o servo trabalha. E em seu trabalho o servo transforma o

239
Direito e Política na Dialética de Hegel

mundo conforme sua própria vontade. Paradoxalmente, é no trabalho servil


que o homem modela o mundo conforme a sua inteligência. O trabalho é
10
“A Fenomenologia do atividade espiritual10, pois pelo trabalho o homem permanece em movimen-
Espírito apresenta clara-
mente como a verdade
do trabalho material, real,
to e apropria-se do mundo onde vive, transforma-o, retirando-o de sua ime-
do escravo, isto é, da opo-
sição deste ao trabalho
diaticidade natural para um local que reflete sua vontade. Ao transformar a
intelectual do pensamen-
to, ilustrado e enaltecido
natureza, o homem se liberta do ciclo biológico.
especialmente pelo es-
toicismo. Mas o trabalho
intelectual, gozo de seu
Mas, como a dominação mostrava ser em sua essência o inverso do que pretendia ser,
domínio de si, ultrapassa e assim também a escravidão, ao realizar-se cabalmente, vai tornar-se, de fato, o contrário
nega concretamente seus do que é imediatamente; entrará em si como consciência recalcada sobre si mesma e se
dois momentos unilate-
rais, antagônicos: o gozo
converterá em verdadeira independência.11
propriamente dito e o tra-
balho propriamente dito”.
(BOURGEOIS, Bernard. Os A última parte da seção da consciência de si é denominada por Hegel
Atos do Espírito. Tradu-
ção de: NEVES, Paulo. São como “liberdade da consciência de si”, e representa a dialética por qual passa
Leopoldo: Editora UNISI-
NOS, 2004. p. 87.) a consciência de si serva, agora livre no plano existencial, obtido por meio do
11
“[...] Aber wie die Herrs- trabalho. Essa dialética passa pelos momentos do estoicismo, do cepticismo
chaft zeigte, daß ihr Wesen
das verkehrte dessen ist, e da consciência infeliz, e conclui na passagem da consciência de si à razão,
was sie sein will, so wird
auch wohl die Knechts- que é o último momento da “Fenomenologia como ciência da experiência
chaft vielmehr in ihrer
Vollbringung zum Gegen- da consciência”. A razão representa a reconciliação entre a consciência e a
teile dessen warden, was sie
unmittelbar ist; sie wird als consciência de si; na razão tanto a consciência teórica como a consciência
in sich zurückgedrängtes
Bewußtsein in sich gehen,
und zur wahren Selbstandi-
prática encontram-se conciliadas.
gkeit sich umkehren”. (FE, A
Luta por Independência
e Dependência, HW 3.
O objetivo era apresentar o desenvolvimento da consciência de si para
p. 152.)
demonstrar como isso depois repercutirá na Filosofia do Direito. Como se
percebe após as dialéticas apresentadas, que trouxeram inúmeras questões
como vida, liberdade, natureza, independência, reconhecimento, desejo, tra-
balho, medo, é necessário compreender que essas questões, antes de serem
temáticas jurídicas, são temáticas da existência em geral, e que repercutem
no Direito.

As linhas fundamentais
da Filosofia do Direito
Como já mencionado no início do trabalho, a Filosofia do Direito ocupa
um estágio intermediário no desenvolvimento do espírito. é o espírito ob-
jetivo, que sucede a mediação do espírito subjetivo e antecede o espírito
absoluto. Ademais, entre as divisões já comentadas na Filosofia do Direito
(Direito Político Interno, Direito Político Externo e História Universal), nos ate-
remos ao estudo da primeira, que contempla o Direito Abstrato, a Moralida-
de e a Eticidade. Como se verá, ainda, a passagem entre esses três momentos

240
Direito e Política na Dialética de Hegel

representa também o desenvolvimento do indivíduo por meio da vontade


livre12. No Direito Abstrato o indivíduo é pessoa; na Moralidade é sujeito; na 12
“A vontade é livre em-
si-e-para-si, pois, não é
Eticidade é membro de uma comunidade. mera possibilidade, dispo-
sição, potência (potentia),
mas é o realmente-infinito
O Direito Abstrato representa a universalidade imediata do espírito ob- (infinitum actu), porque
a existência do conceito,
jetivo, mas ao mesmo tempo um reino puramente formal, restrito somente isto é, o seu objeto ex-
terior, é a interioridade
ao plano jurídico, das relações contratuais entre os indivíduos. O Direito Abs- mesma”. (FD. Introdução,
HW 7, §22. p. 74.)
trato funda-se na propriedade, no meu direito de ter uma propriedade e no
dever do outro em respeitar minha propriedade, e o contrário também é re-
ciprocamente verdadeiro. No Direito eu estabeleço relações com os outros,
onde reconheço e sou reconhecido por outros como pessoa, sendo o termo
aqui utilizado em sua acepção jurídica. Primeiro eu, por um ato racional de
vontade, tomo a coisa externa para mim e a transformo em minha posse.
Com a possessão da coisa eu posso transformá-la, moldá-la conforme minha
vontade. Aqui a dialética é semelhante àquela do trabalho do servo diante
do senhor. Na posse da coisa eu a trabalho e a transformo, logo transformo a
natureza conforme a vontade humana.

Depois de estabelecer a posse eu posso aliená-la a outros: é o contrato.


O contrato rege-se pela reciprocidade de direitos e deveres. Estabelece-se
uma lei entre as partes, com obrigações recíprocas que devem ser cumpri-
das. O problema é que o contrato situa-se tão somente no plano formal
do Direito, ainda não efetivo. O término da dialética do Direito Abstrato
é a injustiça, momento em que Hegel estende sua crítica não apenas aos
contratos privados entre particulares, mas também a todos os filósofos
modernos que basearam suas concepções jurídicas e políticas no contrato
social. A crítica hegeliana é esta: como pode o Direito impedir que uma
das partes quebre, por livre vontade, o contrato? Ou seja, o contrato é algo
apenas abstrato, não é ainda o Direito em sua realização. O ilícito penal
segue a mesma lógica, a lei por si só não pode impedir o crime, nada pode
evitar que um indivíduo decida ir contra o ordenamento jurídico vigente.
Em outras palavras, o problema do não direito, ou da injustiça, não está
no plano jurídico, mas moral, pois é do indivíduo que parte a vontade de
negar o Direito. O Direito Abstrato é direito coercitivo, porque o in-justo
praticado contra o mesmo é uma violência contra o ser-aí da minha liber-
dade numa Coisa exterior [...]”.13 13
“Das abstrakte Recht ist
Zwangsrecht, weil das Un-
recht gegen dasselbe eine
A Moralidade é o segundo momento da Filosofia do Direito. Aqui as ques- Gewalt gegen das Dasein
meiner Freiheit in einer
tões não são jurídicas, mas morais, estão no plano da subjetividade individual. äußerlichen Sache ist [...]”
(FD. A Injustiça, § 94, HW
A Moralidade discute questões como a intenção e a responsabilidade, o bem- 7. p. 180.)

241
Direito e Política na Dialética de Hegel

-estar e a certeza moral, o bem e o mal. Na Moralidade cada indivíduo é sujei-


to, porque exprime ao máximo sua subjetividade. Na Moralidade cada sujeito
possui sua própria concepção de bem.
O ponto de vista moral é o da vontade quando deixa de ser infinita em si para sê-lo para si.
É esse retorno da vontade de si, bem como a sua identidade, que existe para si em face da
existência em si imediata e das determinações específicas que nesse nível se desenvolvem,
14
“Der moralische Stan- que definem a pessoa como sujeito.14
dpunkt ist der Standpunkt
des Willens, insofern er
nicht bloß an sich, sondern
fur sich unendlich ist (vorh.
A Moralidade representa o mundo interior e intelectual de cada sujeito, o
§). Diese Reflexion des
Willens in sich und seine
mundo em que ele vive conforme suas convicções, que não necessariamen-
fur sich seiende Identität
gegen das Ansichsein und
te estão conforme os sistemas jurídicos vigentes. Cada sujeito age partindo
die Unmittelbarkeit und die
darin sich entwickelnden de suas convicções morais, que se baseiam na sua ideia de bem. O problema
Bestimmtheiten bestimmt
die Person zum Subjekte”. da Moralidade é que tudo está apenas no plano subjetivo. Para Hegel, toda
(FD. A Moralidade, § 105,
HW 7. p. 203.) ação tem em vista um bem, porque ninguém pode agir visando um mal;
ainda que algo seja entendido como mal, naquele momento, na concepção
do sujeito, era um bem. Nesse sentido abre-se um completo relativismo, pois
aquilo que eu penso como bem pode ser justamente o contrário daquilo que
o outro pensa como bem. Nisso surge a tensão entre o bem e o mal. A passa-
gem da Moralidade à Eticidade se dá na elevação do pensamento subjetivo
ao objetivo, do moral ao ético.

Na Eticidade o indivíduo não é apenas pessoa ou sujeito, mas membro de


uma comunidade. A Eticidade supera a formalidade vazia do Direito Abstra-
to e a intencionalidade subjetiva da Moralidade para fundar o reino da liber-
dade realizada. A Eticidade é resultado do movimento da vontade livre do
indivíduo, que por seu trabalho de efetivação do conceito no mundo dado,
transforma-o conforme o seu pensamento.

A Eticidade ocupa a maior parte da Filosofia do Direito. Para entendê-la,


comecemos pelo seu conceito, enunciado no parágrafo 142:
A Eticidade é a realização da Ideia de Liberdade enquanto Bem Vivo, que tem o seu saber
e o seu querer na consciência de si, e que se torna realidade efetiva mediante o agir da
autoconsciência. Essa ação tem o seu fundamento em si e para si e sua finalidade motora
no ser ético. A Eticidade é onde a Ideia de Liberdade se torna presente no mundo e
15
HEGEL, G. W. F. Grun- natureza da autoconsciência.15
dlinien der Philosophie
des Rechts oder Natur-
recht und Staatswis- A interpretação desse parágrafo permite uma ampla compreensão da-
senschaft im Grundrisse,
§ 143, p. 293. quilo que viria a ser o mundo ético de Hegel. A Eticidade é a realização da
Ideia de Liberdade porque são os indivíduos quem a efetivam historicamen-
te mediante sua vontade livre. Retornando ao início do capítulo, a Ideia é a
forma essencial de algo, a Ideia está fora do mundo, mas deve ser efetivada
conceitualmente no mundo. Por isso a Eticidade representa a realização da

242
Direito e Política na Dialética de Hegel

Ideia de Liberdade, porque é a forma de como a essência da liberdade passa


a ser presente no mundo. Esse movimento é enquanto bem vivo porque
contrapõe-se ao bem abstrato da Moralidade, na qual o bem era apenas uma
convicção subjetiva de cada indivíduo. Na Eticidade, como se verá, esse bem
é vivo, porque surge do movimento produtivo e refletido do indivíduo cons-
ciente de si, logo é uma ideia de bem resultante de um ato de vontade livre.
A vida, na Ciência da Lógica, representa justamente a forma de como a Ideia
em sua forma absoluta presencia-se no mundo, na natureza.

A eticidade é também resultado do agir efetivo da autoconsciência.16 Isso 16


“Nessa consciência de
si efetiva, a substância
porque é o indivíduo quem a põe no mundo dado mediante a exteriorização é si mesma, e o próprio
objeto do saber. Para o
da vontade livre. Sendo assim, é um produto consciente, querido, portanto, sujeito, a substância ética,
suas leis e suas potências,
autoconsciente. constituem em si mesmo
a existência mais elevada
da autonomia, como uma
A eticidade tem a sua finalidade motora no ser ético, mediante um agir unidade absoluta e infinita
acima do ser da natureza”.
em si e para si. Em outras palavras, a Eticidade representa um movimento (FD. A Eticidade, § 146,
HW 7. p. 294-5.)
não singular, mas universal, ou seja, não de um indivíduo em particular, mas
da comunidade, do povo como espírito. Por isso há o ser ético, o ser que de-
termina o que é ético e o que não é, porque este ser é livre, já que foi posto
pela vontade dos próprios indivíduos.

A Eticidade se torna presente no mundo e natureza da autoconsciência


devido a este ser ético. Como o ser ético é vontade livre, ele não é externo
aos indivíduos, mas internos a eles, já que eles o criaram. Também o ser ético
se presencia no mundo, porque faz realidade jurídica, política, social, eco-
nômica etc. O ser ético deriva dos costumes, que por sua vez fundamentam
leis. A síntese do parágrafo é esta: na Eticidade abre-se a possibilidade de
criar leis, mas leis que possibilitam a liberdade do indivíduo, porque são leis
resultantes da vontade livre dos próprios indivíduos. Na Eticidade eu não sou
coagido a seguir leis, porque eu as criei.
Como estas determinações substanciais são elas para o indivíduo, o qual se diferencia delas
como o subjetivo e em si indeterminado ou o determinado particularmente. “Indivíduo” e,
portanto, coloca-se em relação elas como algo substancial, obrigações são uma vontade.
17
Obrigações vinculam a vontade.17 “Als diese substantiel-
len Bestimmungen sind
sie fur das Individuum,
Com efeito, a Eticidade não é uma coação, ou um suprimir do livre-arbítrio, welches sich von ihnen
als das Subjektive und in
mas realização da Ideia de Liberdade. As leis não podem ser opressoras, porque sich Unbestimmte oder als
[das] besonders Bestimmte
como são postas pela vontade racional do indivíduo, este tem não apenas o unterscheidet, hiermit im
Verhältnisse zu ihnen als
direito, mas o dever de negar as leis injustas, ou as leis que não refletem sua zu seinem Substantiellen
steht, – Pflichten, fur seinen
Willen bindend”. (FD. A
vontade livre em si e para si. O essencial não é o conteúdo da lei, mas o proces- Eticidade, § 148, HW 7. p.
296-7.)
so de pôr a lei. Logo, para o indivíduo viver conforme as instituições e as leis é
um dever ético, já que assim estará vivendo conforme os costumes.

243
Direito e Política na Dialética de Hegel

O reino ético desenvolve-se em três momentos. Primeiramente é univer-


salidade imediata, na família; depois alarga-se a singularidade na sociedade
civil; por fim é o retorno à universalidade, mas num movimento efetivo, é
o Estado representado pela Constituição. A lógica imanente que percorre a
Filosofia do Direito deve reconciliar o universal com o singular, harmonizar e
inserir a vontade livre individual na vontade universal da comunidade.

As instituições ocupam momentos importantes da Filosofia do Direito.


Hegel trabalha a formação do indivíduo, porém, este deve se inserir no de-
senvolvimento social, político, jurídico e econômico de sua nação, o que
torna necessário a formação das próprias instituições. A família forma o in-
divíduo, a sociedade civil trabalha sua singularidade, e o Estado cumpre a
função de realizar a liberdade enquanto protege o bem público. O homem
está em constante processo de reconhecimento com os outros, por isso o de-
senvolvimento coletivo é tão essencial quanto o individual. É nesse contexto
que visualiza-se a importância das instituições para a filosofia hegeliana.

A família
A família é universalidade natural, imediata, pois o indivíduo nasce na fa-
mília, e não por um ato de vontade. A família se forma pelo reconhecimento
recíproco entre duas pessoas que se unem numa só: o matrimônio, que é
uma relação ética.

Embora mantenha-se na universalidade, a família é também singularida-


de, porque vista externamente, todos os indivíduos tornam-se um só: o ser
familiar. Nessa posição está baseada a relação entre famílias, cada uma sendo
uma singularidade que representa a universalidade dos indivíduos.

Essa relação entre famílias é o segundo momento dessa seção da Eticida-


de: é o patrimônio. O responsável pelo patrimônio é o pai, pois é ele quem
trabalha e acumula riquezas na comunidade e traz os benefícios ao ser fami-
liar. O patrimônio é importante, pois por ele a família conquista reconheci-
mento na comunidade.

O terceiro momento da família, e que também é sua dissolução, é a educa-


ção dos filhos, a qual representa o fim último do ser familiar. A família precisa
formar seus filhos não para ela, mas para a sociedade civil e o Estado, os outros
dois momentos da Eticidade. É interessante notar que esse movimento de for-
mação ética, pela educação, em que o filho sai da família e torna-se para si,

244
Direito e Política na Dialética de Hegel

indo em direção à comunidade, é ao mesmo tempo fim e começo da institui-


ção da família, pois nesse movimento o filho construirá também a sua família.
Como “pessoas”, as famílias guardam entre si uma relação de igualdade. Entretanto, essa
igualdade externa como “pessoa” não é a expressão de uma igualdade interna onde, em
princípio, dever-se-ia encontrar a concretização dos princípios universais da liberdade. [...]
refere-se à desigualdade das mulheres em relação aos homens, formulação que descarta
completamente o direito das mulheres. A segunda concerne à punição que é considerada
18
como um meio para “despertar as crianças para o universal”.18 ROSENFIELD, Denis.
Política e Liberdade em
Hegel. p. 147-8.
Esta passagem hegeliana é essencial: a família não possui fim em si
mesma, mas no mundo externo; sua função não é educar para si, mas para
a sociedade civil e o Estado. Na família se educa os filhos com o conteúdo
ético, forma o indivíduo para que no futuro ele possa estar harmonizado
com os costumes e os deveres éticos da comunidade.

O segundo momento da Eticidade é a sociedade civil, nela o indivíduo


não é visto como membro de uma família, mas tão somente como singular.

A sociedade civil
A sociedade civil, introduzida por Hegel com o termo burgerliche Gesells-
chaft, pode ser traduzida também por sociedade civil-burguesa. Essa infor-
mação é importante para a contextualização da sociedade civil como fenô-
meno histórico ligado ao mundo moderno, à ascensão do cidadão burguês.
Os gregos não conheciam a sociedade civil porque não conseguiam ver o
indivíduo como capaz de ser apenas singular, sem estar necessariamente en-
volvido na universalidade do Estado. A explosão econômica do mundo mo-
derno, com suas necessidades de grandes navegações e comércios distan-
tes, bem como o impulso da tecnologia e da industrialização, são as causas
que conduzem à criação da sociedade civil. É essencialmente burguesa,
porque antes dos burgueses não havia a possibilidade de o indivíduo viver
no Estado sem ser para o Estado. Não por outro motivo Hegel analisa nessa
seção vários pensadores da ciência chamada por ele de Economia Política,
como Ricardo e Smith.

Logo percebe-se como a sociedade civil possui um fim eminentemente


egoísta, resultado do aumento da liberdade econômica. Aqui o indivíduo
não é membro do Estado nem da família, mas apenas um singular que alarga
ao extremo sua singularidade, colocando em todas as suas ações apenas a
si mesmo como fim, e nunca o bem comum. É a negação da universalidade
imediata familiar.

245
Direito e Política na Dialética de Hegel

Contudo, mesmo sendo somente para si, esses indivíduos precisam se


relacionar com outros, pois precisam negociar, adquirir produtos, serviços
etc. Ou seja, estabelece-se um sistema de interdependendência recíproca
que Hegel chama de sistema das necessidades. Por necessidades entende-
-se desde as primordiais, biológicas, como a alimentação, até as mais refina-
das, como prazeres estéticos e a própria riqueza econômica. Resulta dessa
situação que ainda que cada indivíduo busque satisfazer apenas as suas ne-
cessidades, não há como fazê-lo sem recorrer ao universal.
Enquanto cidadãos desse Estado, [do entendimento] os indivíduos são pessoas privadas,
que têm por fim o seu interesse próprio. Como esse fim é mediado pelo universal que,
assim, lhes aparece como meio, ele só pode ser alcançado por eles na medida em que
determinam de modo universal o seu saber, querer e fazer, e se façam um elo da cadeia
dessa conexão. O interesse da Ideia, aqui, que não reside na consciência desses membros
da sociedade civil enquanto tal, é o processo de elevar, pela necessidade natural assim
como pelo arbítrio das carências, a singularidade e a naturalidade desses à liberdade
formal e à universalidade do saber e do querer, de formar pelo cultivo à subjetividade na
19
“Die Individuen sind sua particularidade.19
als Burger dieses Staates
Privatpersonen, welche
ihr eigenes Interesse zu
ihren Zwecke haben. Da
Outro paradigma que traz a sociedade civil é a questão da riqueza uni-
dieser durch das Allgemei-
ne vermittelt ist, das ihnen
versal. Quando o indivíduo produz, ainda que tenha como fim somente a si
somit als Mittel erscheint,
so kann er von ihnen nur mesmo, é obrigado a se relacionar com outros, logo, mais indivíduos ganham
erreicht werden, insofern
sie selbst ihr Wissen, Wollen nessas relações. Com isso, a própria riqueza universal é incrementada pelo
und Tun auf allgemeine
Weise bestimmen, und sich trabalho individual. Essa reflexão hegeliana é fundamental, pois ele demons-
zu einem Gliede der Kette
dieses Zusammenhangs tra como mesmo no pleno egoísmo o trabalho é capaz de gerar riqueza e
machen. Das Interesse der
Idee hierin, das nicht im benefícios à universalidade. E não somente isso, mas também que ao incen-
Bewußtsein dieser Mitglie-
der der burgerlichen Ge- tivar a livre iniciativa privada, o trabalho do singular estará contribuindo com
sellschaft als socher liegt,
ist der Prozeß, die Einzelheit a riqueza universal.
und Naturlichkeit derselben
durch die Naturnotwendi-
gkeit ebenso als durch die
Willkur der Bedurfnisse,
O trabalho é essencial para a sociedade civil. Como o princípio norteador
zur formellen Freiheit und
formellen Allgemein|heit
da sociedade civil é a liberdade econômica, cada indivíduo é livre para exer-
des Wissen und Wollens
zu erheben, die Subjektivi-
cer a profissão que entender mais adequada. O trabalho aqui ganha contor-
tät in ihrer Besonderheit zu
bilden”. (FD. A Sociedade nos similares ao seu significado na dialética entre senhor e servo na Fenome-
Civil, § 187, HW 7. p. 343.)
nologia do Espírito. O trabalho cria, transforma o mundo. Quando o indivíduo
se apropria do dado natural e molda-o à sua vontade, está tornando o objeto
sua propriedade. Como na sociedade civil há uma forte interdependência
entre indivíduos, cada singular acaba se especializando num ofício, resultan-
do na divisão dos trabalhos.

O trabalho é livre e deve perseguir fins econômicos. Esse alargamento aos


extremos da singularidade inevitavelmente causará desigualdades sociais,
pois o trabalho singular não consegue privilegiar a todos. A sociedade civil
não está baseada em equilíbrio, mas nos excessos, o que certamente provo-
ca grandes riquezas de um lado e pobrezas do outro.
246
Direito e Política na Dialética de Hegel

Contudo, ainda que os indivíduos sejam reduzidos à pobreza, Hegel não


defende que o Estado ou outras instituições tomem conta de por um tempo.
Ajudar excessivamente o indivíduo é subestimá-lo, ignorar que ele possui
inteligência e possibilidade de por si mesmo sair daquela situação. A solu-
ção de Hegel está nas corporações. As corporações seriam instituições cria-
das por cada classe de trabalhadores, ou seja, cada profissão organiza uma
corporação para defender seus direitos e interesses no Estado. Para o indi-
víduo integrar uma corporação ele deve possuir oficialmente um trabalho.
Os companheiros de corporação podem e devem ajudar financeiramente
aqueles reduzidos a pobreza, pois como são todos trabalhadores da mesma
profissão, sabem que aquele indivíduo está apenas temporariamente em má
situação econômica. Nisso anula-se o assistencialismo e privilegia-se com
ajudas econômicas somente aqueles que de fato exercem profissão, ou seja,
contribuem. Para Hegel, o indivíduo que não possui profissão não ajuda a
sociedade nem o Estado, logo também não pode ser ajudado.

Por fim, uma nação não pode viver com excessivas desigualdades sociais,
porque isso resultaria em algum momento em problemas a toda a coletivi-
dade. Com isso cumpre-se a passagem da sociedade civil ao Estado, o ente
que reconcilia o singular com o universal.

O Estado
Embora seja o último a momento da Eticidade, isso não significa que o
Estado seja o último a ser posto, nem historicamente nem logicamente. O
Estado já existe como Ideia desde o Direito Abstrato, o que se tem aqui é
apenas sua efetivação no mundo. O Estado não é criado juridicamente, não
é um ato de vontade dos cidadãos que estabelecem um contrato social, pois
isso seria aceitar que o Estado é uma associação atomística, em que cada
20
indivíduo decide participar do Estado por vontade, e também por vontade “Der Staat ist die Wirkli-
chkeit der sittlichen Idee,
poderia decidir sair dele. O Estado é o fim absoluto do mundo ético, é para - der sittliche Geist, als der
offenbare, sich selbst deu-
ele que convergem todos os momentos, o que significa que sua ideia é que tliche, substantielle inso-
fern er es weiß, vollfuhrt. An
movimenta todas essas passagens. der Sitte hat er seine unmit-
telbare, und an dem Selbst-
bewußtsein des einzelnen,
dem Wissen und Tätigkeit
O Estado é a realidade efetiva da ideia ética, – o espírito ético enquanto vontade desselben, seine vermittelte
substancial, manifesta, clara a si, que se pensa e se sabe, e realiza plenamente o que ele Existenz, sowie dieses durch
sabe e na medida em que o sabe. No costume o Estado tem ela a sua existência imediata die Gesinnung in ihm, als
seinem Wesen, Zweck und
e na autoconsciência do singular, no saber e na atividade do mesmo, a sua existência Produkte seiner Tätigkeit,
mediada, assim como essa autoconsciência do singular, através da [sua] disposição de seine substantielle Freiheit
hat”. (FD. O Estado, § 257,
ânimo, tem no Estado, como sua essência, fim e produto da sua atividade, a sua liberdade HW 7, p. 398.)
substancial.20

247
Direito e Política na Dialética de Hegel

Se o Estado já está presente desde os movimentos iniciais da Filosofia do Di-


reito, isso significa que ele é a realidade efetiva da ideia ética, ou seja, a realização
no mundo daquilo já se é em essência fora do mundo. É realidade efetiva porque
é mediatizada, é elaborada racionalmente pela vontade dos indivíduos, e não
como na família, na qual o indivíduo nasce fazendo parte dela.

Essa realidade efetiva também demonstra que o Estado é essência fim e


produto da atividade do indivíduo, que encontra nele sua liberdade substan-
cial, pois é uma instituição que reflete seus costumes.

Para se captar a essência do Estado hegeliano não se pode pensá-lo


como algo separado do indivíduo, mas interno a ele. No Estado o indivíduo
se encontra e realiza a sua liberdade. Não há como o indivíduo ser oprimido
pelo Estado, porque ele quer estar nele. Se o Estado torna-se despótico, ou é
porque seus indivíduos também o são, ou porque não estão agindo confor-
me o conceito, isto é, liberando o agir ético e negando a condição atual do
Estado para torná-lo mais adequado à sua vontade.

A substância do Estado é a lei, que se expõe como ethos, como costumes


vigentes. Contudo, ressalta-se que Hegel não é favorável a um Direito basea-
do nos costumes, isto é, que resista a positivar suas leis em códigos, porque
dessa forma poderia torna-se demasiadamente abstrata a aplicação da lei.
Sem a lei posta em algum lugar, com regras fixadas, a decisão do juiz poderia
ser arbitrária. A positivação, portanto, é uma defesa aos direitos dos indiví-
duos contra arbitrariedades do magistrado. A publicidade das leis é garantia
fundamental dos indivíduos.

Por fim, chega-se à Constituição do Estado, que em Hegel exprime a igual-


dade e a liberdade dos indivíduos. A Constituição é expressão da Justiça,
porque representa os ideais, a noção de liberdade que aquele povo possui.

Isso significa que a Constituição sempre será justa, porque se ela não re-
flete a vontade dos indivíduos, ela deve ser modificada por eles.

E a Constituição também representa liberdade, pois numa nação regida


sob um governo constitucional significa que não há nenhum indivíduo que
seja superior à lei. A lei é resultado de um movimento universal da vontade
livre; sendo ela a expressão máxima, significa que todos ali são livres.

Por fim, é importante salientar que a Eticidade não elimina o Direito Abs-
trato e a Moralidade, pois esses dois momentos precedentes permanecem
presentes no movimento dialético de Hegel. A Eticidade contém o mundo

248
Direito e Política na Dialética de Hegel

jurídico do Direito Abstrato e também a subjetividade da Moralidade. O Di-


reito Abstrato garante a liberdade na lei em aspectos universais, e a subjeti-
vidade da Moralidade permite a avaliação constante das leis, verificando se
elas estão conforme a vontade livre dos indivíduos.

Considerações finais sobre a Filosofia


do Direito e o sistema hegeliano
A filosofia hegeliana oportuniza importantes temáticas para discussões
contemporâneas. O projeto hegeliano em sua Filosofia do Direito buscar
conscientizar o indivíduo de sua autonomia e de seu papel irrenunciável de
transformar sua própria sociedade e seu próprio mundo. Isso é delineado
nas passagens dos vários momentos do indivíduo e da vontade livre: Direito
Abstrato, Moralidade, Eticidade, e os seus momentos internos.

O Direito não pode ser separado da Moralidade, e ambos não podem se


escusar de buscar uma Eticidade. É na totalidade que a comunidade é capaz
de se organizar para a promoção do autodesenvolvimento. O Direito isolado
do resto é abstrato, é coercitivo, é uma abstração do pensamento que cria
regras limitadas a serem impostas aos indivíduos. O limite do Direito Abstra-
to pode ser visualizado na figura do injusto. O crime, no Direito, é uma agres-
são ao Direito, mas essa agressão já está incluída no sistema jurídico. Quando
alguém pratica um crime, está consciente de que receberá uma pena, logo
ele tem direito a essa pena. A pena inclusive possui regras quanto à sua apli-
cação. Em outras palavras, o crime e a pena estão inseridos no sistema jurídi-
co. Hegel demonstra que o Direito por si só, a norma restrita, não pode evitar
a injustiça na sociedade, pois a norma no máximo consegue proporcionar a
sanção ao criminoso.

Já a Moralidade, se absolutizada, também proporciona reflexões exagera-


das, a ponto de permitir a máxima subjetividade de cada sujeito. Com tanta
subjetividade perdem-se os conceitos de bem, mal, certo, errado, justo, in-
justo, as máximas categorias éticas. E é no limite da moralidade subjetiva
que se percebe a importância fundamental de uma comunidade regida por
leis éticas.

É essencial que a comunidade seja ética. Isto é, que entenda o Direito


como forma de liberdade, que seja dinâmico e transformador, que entenda
os momentos históricos e locais, que se adapte a cada região e povo para

249
Direito e Política na Dialética de Hegel

servir-lhes da melhor maneira possível. O Direito nunca está acabado. O Di-


reito precisa ser positivo, pois senão cairia no autoritarismo daqueles que
detêm o poder. E o Direito precisa permitir o exame subjetivo dos indivídu-
os, para evitar da mesma forma o autoritarismo. A concepção de Direito de
Hegel é bastante elevada, só capaz de ser captada por povos já considera-
velmente conscientes de si. Entender que todos, numa sociedade, são res-
ponsáveis pelos fracassos e sucessos, e que normas são relativas, bem como
as opiniões morais, e o que deve prevalecer é a lei passageira dos costumes,
que se importa mais com resultados que com ideologias, certamente exige
um alto grau de autoconscientização. O Estado é espaço de liberdade, pois
sem ele não há lei.

O cidadão de hoje torna-se cada vez mais apático, não se envolve nas
grandes questões políticas, sociais, econômicas, jurídicas, não entende o
que se passa consigo mesmo nem com o seu povo. Esse cidadão não é livre,
não é consciente de si, e portanto nem seu direito nem sua sociedade são
livres. Em 1821 Hegel já alertara que o Direito por si só não é capaz de au-
xiliar a sociedade, antes é necessário preparar o povo. O indivíduo deve se
formar e tomar consciência de si. Criminalidade, corrupção, apatia política,
desigualdades sociais, são todos problemas que escondem outros maiores:
os indivíduos não se reconhecem nas leis, nem entendem seu papel como
operadores históricos e sociais. O indivíduo contemporâneo perde cada vez
mais o poder de dizer não e mudar as instituições, aprimorá-las.

A leitura das obras hegelianas oferece grande contribuição a uma forma-


ção mais qualificada do indivíduo, tendo em vista as várias dimensões da
vida, como a existencial, a social, a política, a econômica e a jurídica. Essa
formação é realizada por momentos, passando pelo entendimento dos de-
sejos, do saber reconhecer o outro e lutar pelo próprio reconhecimento, pela
necessidade de aprender a trabalhar. O trabalho transforma a si mesmo e
ao mundo, pois enquanto o homem domina tecnicamente o ofício e com
isso adquire uma fonte de renda, também entra em contato com o mundo,
modificando-o à sua maneira. Essas dimensões existenciais presenciam-se
também no mundo coletivo da sociedade.

O Direito passa pelo reconhecimento do outro através do contrato e pelo


trabalho na posse. Eu adquiro a posse com o meu trabalho, com o meu esfor-
ço. A moralidade busca afirmar a subjetividade de cada indivíduo, tal como
a consciência de si tenta afirmar sua independência diante das demais cons-
ciências de si. Por fim, a Eticidade é a harmonia do universal com o singular,

250
Direito e Política na Dialética de Hegel

harmonia que garante tanto o desenvolvimento individual do cidadão como


o desenvolvimento coletivo da sociedade.

Quando entende-se a Eticidade como continuação de um processo que


se inicia na própria Fenomenologia, percebe-se que o mundo ético é cons-
trução harmônica do indivíduo e da universalidade, um processo em que a
consciência torna-se cada vez mais consciente de si, e com isso transforma o
mundo, o que significa trabalhar aspectos naturais, sociais, políticos, cultu-
rais, jurídicos, econômicos etc. O homem torna-se consciente de si e com isso
passa a viver uma segunda natureza, que se manifesta na cultura de cada
povo. A formação do indivíduo, então, é um processo histórico, que se dá na
prática, nas várias dimensões da vida.

Ampliando seus conhecimentos

Política e liberdade em Hegel


(ROSENFIELD, 1983)

Hegel viu, na sua época, o surgimento de um Estado em processo de tor-


nar-se a imagem (Bild) e a efetividade (Wirklichkeit) da razão. Um Estado que
é, por assim dizer, o elemento natural no qual se desenvolvem as atividades
artísticas, religiosas e filosóficas. A presença do conceito a si perpassa todos os
domínios do real e se põe como palavra verdadeira graças a uma filosofia que
se efetuou na imediação do mundo como mundo livre. As diferentes figuras e
esferas do real determinam-se reciprocamente e, dessa circularidade, nasce a
ideia da liberdade como realidade viva e côo atualização efetiva do conceito.
O cidadão cria as condições necessárias a uma nova mediação do seu próprio
fundamento. Pode-se dizer que a formulação de Hegel no tocante à mútua de-
terminação do Estado e da atividade substancial dos cidadãos não está bem
fundamentada considerando-se as circunstâncias históricas que presidiram
tal pensamento do mundo político. Em todo caso, não se pode dizer que a
concepção hegeliana visa a uma maior dominação do Estado sobre a vida dos
indivíduos. A história nem sempre escolheu esse caminho do cidadão cons-
ciente de suas próprias determinações, tendo, inclusive, em várias ocasiões,
tomado o caminho contrário. Não é, contudo, menos verdadeiro que Hegel
pensou, por meio da instabilidade do seu tempo, uma liberdade já efetiva que
anunciava um novo movimento de figuração. Pensou também nas determi-

251
Direito e Política na Dialética de Hegel

nações que poderiam tornar contingente a realização desse movimento de


figuração da liberdade.

Nessa perspectiva, é interessante fazer uma breve comparação com Platão


e Aristóteles, que estão em estreita correspondência com o que Hegel deno-
mina bela unidade da cidade grega e cujos pensamentos aparecem quando
essa unidade já não mais existe. A corrupção dos costumes já tinha tomado
conta da vida da polis, anunciando o fim de uma época. Eles puderam pensar
a bela harmonia da cidade como fim último do agir humano, pois haviam se
distanciado de uma situação histórica que não correspondia mais ao conceito
dessa individualidade ética. Suas tentativas de restabelecer a harmonia per-
dida estavam destinadas ao fracasso, porque desconheceram a verdade que
nascia, a liberdade subjetiva. A cidade recusou-se a integrar em si o que, no
entanto, tinha nascido nela. A particularidade desenvolveu-se em oposição à
unidade ética: de modo subjetivo, ela concretizou-se na religião cristã e, obje-
tivamente, no mundo romano.

Hegel aborda o presente de outra maneira: diante da oposição entre o


princípio da liberdade subjetiva e o da substancialidade ética, parte em busca
do movimento que dá a essa oposição sua razão de ser. É essa lógica do po-
lítico que lhe permitiu pensar o que estava morrendo – e que não voltaria
mais – e considerar ainda que aquilo que morre gera sua própria mediação,
originando uma nova figura que vive do seu processo de diferenciação. Hegel
tentou pensar o dado segundo duas ordens de significação que se fundem
em uma única: o abismamento é ao mesmo tempo um ir ao fundamento. O
conceito reencontra-se e aparece a si na sua própria reflexividade. O que se
pode denominar de patrimônio da Ideia, a memória que ela tem de si como
produto de seu movimento de figuração, é o que permite à consciência que
os povos têm de si apreender o processo de aprofundamento de uma época
em si, ou melhor, criar uma nova época.

Não se pode atribuir a Hegel o caminho realmente trilhado pela história.


Ele poderia responder que fomos advertidos da presença de uma contingên-
cia que exige enfrentamentos de modo consciente a imprevisibilidade dos
acontecimentos. Pensou – e contribuiu para criar – o surgimento de um novo
conceito do indivíduo concretizado no Estado como vontade substancial.
Afastando-se de seu conceito, padecendo a história em vez de transformá-

252
Direito e Política na Dialética de Hegel

-la segundo a verdade de seu próprio fundamento, o Estado não somente


deixou de resolver os problemas colocados pela história como não realizou
o seu movimento de volta a si, mantendo-se numa reflexão exterior. Hegel
interroga-se ainda – e nos interroga – sobre o que aconteceu com a efetuação
da liberdade. Os violentos acontecimentos que marcaram os séculos XIX e XX
recolocaram, com maior intensidade, a problemática enfrentada pelo filóso-
fo: como organizar livremente as relações entre o indivíduo e a comunidade
em um único movimento de mediação? Pensar o indivíduo como membro
de uma comunidade livre, eis uma das questões com a qual nos debatemos
ainda hoje. A Filosofia do Direito é uma obra cuja importância aumenta se con-
siderada a partir de um movimento de figuração pelo qual a Ideia chegou a
se pensar como produto de um processo histórico. Ela apresenta o pensar de
uma lógica do político que é, como toda reflexão, prospectiva e voltada para
o futuro graças ao movimento lógico por ela produzido. O desafio lançado por
Hegel é o de pensar a contingência necessária da sua própria filosofia.

Atividades de aplicação
1. A Fenomenologia tem como objetivo conduzir o indivíduo desde o
saber inculto até o saber absoluto, o filosófico, devendo para isso o
mesmo superar vários momentos, experiências da consciência, como
a dialética do reconhecimento e a dialética entre senhor e servo. Esses
movimentos são impulsionados pelo desejo. Explique como você en-
tendeu ser o desejo para Hegel.

2. A Filosofia do Direito, em Hegel, ocupa um estágio intermediário entre


o espírito subjetivo e o espírito absoluto. Interprete o que isso signifi-
ca, pensando o Direito em relação ao mundo.

3. Na Eticidade o indivíduo se vê nas leis, nos costumes, por isso para ele
é um dever ético obedecer a Constituição. Relacione isso à contempo-
raneidade: os indivíduos hoje se veem na Constituição?

4. O Estado é o fim absoluto do mundo. Interprete a sentença hegeliana,


que para alguns significa sua defesa ao totalitarismo estatal contra o
indivíduo.

253
Direito e Política na Dialética de Hegel

Gabarito
1. O desejo é uma impulsão interna que movimenta a consciência a sair
de si mesma e ir buscar realizar suas necessidades. O desejo é algo
natural ao indivíduo, por isso não se satisfaz com o consumo desse
alimento ou dessa situação específica.

2. Para Hegel o Direito não é o fim absoluto do ser, da lógica imanen-


te que movimenta a existência. O Estado é apenas o fim absoluto do
mundo, mas para isso percorre os momentos dialéticos conforme con-
ceitos fenomenológicos e lógicos, pois o Direito não é autônomo, mas
dependente de outros conteúdos.

3. Não, pois o desrespeito à lei, o ato de negar o Direito é apenas falta de


reconhecimento do indivíduo para com as instituições e leis. O indiví-
duo de hoje não vê o seu Direito como algo ético.

4. Não procede essa interpretação, porque o Estado é apenas o fim abso-


luto do mundo porque contém a vontade posta do indivíduo. A Ideia
do Estado já estava em todos os momentos anteriores. Sendo assim, o
indivíduo é livre no Estado, porque é livre para obedecer somente as
leis criadas por ele mesmo.

Referências
BOURGEOIS, Bernard. Os Atos do Espírito. Tradução de: NEVES, Paulo. São Leo-
poldo: Editora UNISINOS, 2004.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Ciencia de la Logica. Tradução de: MONDOLFO,


Augusta; MONDOLFO, Rodolfo. Buenos Aires: Solar, 1968.

LABARRIÈRE, Pierre-Jean. Structures et Mouvement Dialectique dans la Phé-


noménologie de L’Esprit de Hegel. Paris: Aubier-Montaigne, 1968.

LEFEBVRE, Jean-Pierre; MACHEREY, Pierre. Hegel e a Sociedade. São Paulo: Dis-


curso Editorial, 1999.

ROSENFIELD, Denis. Política e Liberdade em Hegel. São Paulo: Brasiliense,


1983.

254
O Direito e os dilemas da
existência humana: de Marx
aos filósofos existencialistas

Introdução
Neste momento trataremos de duas correntes de pensamento diversas,
mas de grande importância para a constituição da racionalidade contem-
porânea e para a construção dos últimos sistemas filosóficos jurídicos. Essas
correntes são o marxismo e a corrente filosófica existencialista que, ao in-
dagar o problema da existência humana e dos objetivos das ciências repre-
senta uma importante influência na busca pela retomada de um Direito que
esteja em conformidade aos anseios do indivíduo.

Karl Marx
O filósofo alemão Karl Marx é identificado como pensador do materialis-
mo dialético, ou materialismo histórico. O materialismo dialético é um dos
momentos de maior repercussão na história da Filosofia, pois implica o en-
tendimento do mundo e da sociedade como processo de constante trans-
formação. O mundo hoje é diferente daquele de ontem e também do de
amanhã, e quem executa a transformação é a própria sociedade. O mundo
está ligado à história, e por isso a Filosofia pode transformar a realidade e
não apenas estudá-la.

Essa mudança é fundamental, pois não surtiria efeitos somente na área


intelectual, nos debates acadêmicos e filosóficos sobre as concepções de
Justiça, ser, liberdade, entre outras categorias, com isso a filosofia de Marx
influenciaria decisivamente os eventos da história mundial que se desenro-
lariam nos séculos seguintes. Como se verá, não há como se falar em Revo-
lução Russa, Revolução Mexicana, nas duas Grandes Guerras e mesmo na
Guerra Fria, sem se fazer menções a Karl Marx.

Antes de se adentrar na teoria de Marx, é importante assinalar que suas


concepções filosóficas nascem não somente da reflexão intelectual, mas de
suas observações a fatos históricos e o que eles representam para o período
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas

em que vivia, tais como a ascensão burguesa ao poder, sobretudo com a


Revolução Francesa, ou a explosão capitalista e sua relação com as qualida-
1
“Tendo vivido um mo- des de vida no trabalho reduzidas com a Revolução Industrial.1
mento conturbado da
história europeia, conhe-
cendo de perto os efeitos
funestos deixados pela
Marx diferencia-se dos demais, sobretudo, pela necessidade de não so-
introdução do modo de
produção industrial na
mente estudar e analisar a realidade, mas principalmente em modificá-la.
economia (desde a Revo-
lução Industrial), e tendo O pensamento de Marx é impregnado de ativismo político e de indignação
analisado com percuciente
ótica a ascensão da classe para com a Filosofia.
burguesa no domínio dos
meios de produção agrí-
cola e industrial (desde o [...] indignação e insatisfação com o papel que vinha exercendo até o momento (“Os
Renascimento), estando filósofos não fizeram mais que interpretar o mundo de forma diferente; trata-se porém de
consciente do enriqueci-
mento das nações, sobre
modificá-lo”). A estagnação e o diletantismo acadêmico ou teórico não eram mais
livrar-se dos cânones im- suficientes, pois o mundo conclamava decisões, e, de preferência, incisivas e radicais, com
ponentes da filosofia es- vista na modificação do status quo vivido pela sociedade. O profundo conhecimento da
peculativa e racional (ao
estilo de Hegel) e cons- história e do funcionamento da sociedade no plano econômico permitia a Marx estar
truir um sistema de ideias plenamente consciente de como funcionava sua mecânica e de como sua estrutura se
que fosse o motor de
mudanças sociais. Nesse
reproduzia no processo de exploração de classes; quanto a esse aspecto, a Filosofia nada
sistema, estava prevista havia feito até então.2
uma natural aversão, até
mesmo física, a tudo que
fosse de origem burgue- Para Marx, a Filosofia não deveria justificar juridicamente e ideologicamen-
sa, como demonstração
de seu irrefreável repúdio te as estruturas sociais, incluindo aqui a desigualdade social entre classes, a
à exploração econômica
burguesa”. (BITTAR, E. C. B. opressão burguesa ao proletariado. A teoria não poderia justificar a prática,
Curso de Filosofia Políti-
ca. p. 228.) mas modificá-la. Essa Filosofia como práxis influenciou decisivamente o século
2
BITTAR, E. C. B. Curso de XX, por meio de usos tanto adequados como inadequados de sua obra. As leis
Filosofia Política, p. 229.
3 trabalhistas, que reduzem a jornada diária de trabalho, e estabelecem direitos
Uma das principais crí-
ticas de Marx a Hegel é
que o idealismo teria se
sociais básicos como o 13.º e o salário mínimo, são todas consequências da filo-
importado tão somente
com as ideias puras, e que
sofia de Marx; por outro lado, as ditaduras de Stalin e Mao Tse Tung, por exem-
inclusive na interpretação
de uma filosofia da histó-
plo, ainda mais opressoras que a antiga violência capitalista contra as classes
ria se limitaria a descrevê-
la nessa perspectiva. Para
mais baixas da sociedade, também resultaram da leitura de suas obras.
Marx, ler não era sufi-
ciente, mas era essencial
compreender os interes- A obra de Marx é extensa, de forma que aqui serão apresentados apenas
ses reais e políticos que
movem a história. (MARX, alguns pontos de suas concepções filosóficas, políticas e jurídicas.
Karl; ENGELS, Friedrich.
A Ideologia Alemã. 2.
ed.Tradução de: COSTA,
Luis Claudio de Castro e.
São Paulo: Martins Fontes,
1998.). Além disso, para A filosofia de Marx
entender a crítica de Marx
a Hegel, é essencial a lei-
tura de sua Crítica da Filo- A dialética hegeliana ainda se baseava na esfera da Ideia, do pensamento, e
sofia do Direito de Hegel.
MARX, Karl. Crítica da Filo- para Marx, o seu aspecto absoluto como regra de funcionamento, inclusive da
sofia do Direito de Hegel.
Tradução de: ENDERLE, história, somente justificaria a crescente opressão capitalista e burguesa.3 Para
Rubens e DEUS Leonardo
de. São Paulo: Boitempo, Marx, “o aqui e agora são importantes nessa proposta de tornar a Filosofia algo
2005).
4
BITTAR, E. C. B. Curso de
capaz de intervir no ser histórico das coisas e, até mesmo, estacar o antigo regime
Filosofia Política, p. 229.
de continuação dos modos sociais de exploração do homem pelo homem”4. A
Filosofia deveria entender a realidade social, mas também buscar modificá-la,
pois somente assim seria possível não alimentar o antigo sistema.

258
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas

Quando Marx analisou a realidade social de seu período histórico, perce- 5


“O capital não inventou o
mais-trabalho. Onde quer que
beu que o capital reproduzia-se cada vez mais, mas por outro lado as con- parte da sociedade possua
o monopólio dos meios de
dições de trabalho da classe operária tornavam-se mais injustas. Analisando produção, o trabalhador, livre
ou não, tem de adicionar ao
essa situação, Marx entendeu que a classe operária era basicamente mão de tempo de trabalho necessário
à sua autoconservação um
tempo de trabalho exceden-
obra barata para o enriquecimento da classe burguesa.5 Ademais, esse pa- te destinado a produzir os
meios de subsistência para
norama social tendia a fortificar-se, a menos que houvesse alguma ação con- o proprietário dos meios de
produção, seja esse proprietá-
trária que impedisse o seu desenvolvimento. O materialismo histórico via na rio aristocrata ateniense, teo-
crata etrusco, civis romanus,
revolução contra o sistema a única possibilidade de reverter a situação.6 barão normando, escravo-
crata americano, boiardo da
Valáquia, landlord moderno
Tal situação se torna ainda mais evidente quando Marx insere seu conceito ou capitalista. É claro, entre-
tanto, que se numa formação
socio econômica predomina
de mais-valia. Há sempre um cálculo do investimento no trabalho do operário não o valor de troca, mas o
valor de uso do produto, o
e daquilo que este executa. A renda obtida com seu esforço é repartida entre mais-trabalho é limitado por
um círculo mais estreito ou
capitalista e operário, sendo para este último na forma de salário. Mas a produ- mais amplo de necessidades,
ao passo que não se origina
ção verdadeira é em geral maior do que o calculado, e esse dinheiro excedente nenhuma necessidade ilimi-
tada por mais-trabalho do
retorna em enriquecimento do capitalista. Esse diferencial é fator determinan- próprio caráter da produção.
O sobretrabalho mostra-se
te para o aumento das desigualdades sociais, pois tende a ampliar cada vez tenebrosamente na Antigui-
dade, por conseguinte, onde
mais, com os capitalistas mais ricos e os operários mais pobres. se trata de ganhar o valor de
troca em sua figura autônoma
de dinheiro, na produção de
ouro e prata. Trabalho força-
É essa revolução que Marx defende no Manifesto do Partido Comunista. do até a morte é aqui a forma
oficial de sobretrabalho”.
Nessa obra, o autor não somente analisa e justifica teoricamente a necessi- MARX, Karl. O Capital. 3.
ed. Tradução de: BARBOSA
dade da revolução do proletariado, mas dá também os passos seguintes, as Regis e KOTHE Flávio R. .
São Paulo: Nova Cultural,
indicações das ações que deveriam ser tomadas após a classe do proletariado 1988.v. I, tomo 1, p. 181.)

tomar o poder dos burgueses e passar a centralizar os recursos nas mãos do 6


A filosofia de Marx se
direciona em seu conjunto
Estado, que seria então controlado pelos proletários. Entre as medidas que a uma revolução histórica.
Esse pressuposto o torna
seriam adotadas pelos comunistas estariam a expropriação da propriedade distinto dos outros pensado-
res, pois Marx talvez seja o
latifundiária e emprego da renda da terra em proveito do Estado, a abolição único que tem no amanhã
o ponto crítico de seu pen-
do direito de herança, a centralização nas mãos do Estado de todos os meios samento: “O momento
crítico no trabalho de Marx
de transportes, educação pública e gratuita de todas as crianças, combina- remete pois a uma oposição
entre a natureza, ou o ponto
ção do trabalho agrícola com o industrial, entre outras. de vista ‘metafísico’, e a
história (Gramsci falará de
‘historicismo absoluto’). E
a filosofia de Marx, acabada
Percebe-se que todos os pontos conduzem a uma centralização do poder ou não, convoca a si mesma
para a tarefa de pensar a ma-
nas mãos do Estado, que por sua vez seria controlado pela sociedade civil. terialidade do tempo. Mas
essa questão, como também
Essa revolução, o ato violento de modificar a estrutura social vigente, seria a vimos, é indissociável de
uma demonstração cons-
única forma de impedir as tendências históricas. O indivíduo sempre havia tantemente reformulada: o
capitalismo, a ‘sociedade
sido oprimido pelas classes dominantes, primeiro com a escravidão, depois civil-burguesa’ trazem em
si mesmos a necessidade
com o servilismo, depois com o colonialismo, e agora com práticas de opres- do comunismo. Eles estão,
como diria Leibniz, ‘grávi-
dos do futuro’. E esse futuro
são ao proletariado. Marx reconhece méritos na revolução dos burgueses é amanhã. O tempo, como
tudo indica, é apenas o outro
contra a monarquia absolutista, mas também percebe que em seu período nome do progresso, a menos
que seja a condição de pos-
histórico a supremacia do poder apenas havia sido transferida da monarquia sibilidade formal deste”.
(BALIBAR, Étienne. A Fi-
à classe burguesa. A revolução social, para Marx, se daria então na: losofia de Marx. Tradução
de: MAGALHÃES Lucy.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1995.)
259
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas

[...] ruptura das estruturas de poder, para a instauração provisória do governo proletário
e o desmonte paulatino e sucessivo do Estado, com vista na constituição do comunismo
como forma unitária, de iniciativa da sociedade civil, imposta de cima para baixo pela
superestrutura estatal (com seus aparatos de força, coação, leis, políticas, burocracia...), de
7
BITTAR, E. C. B. Curso de condução dos negócios de interesse coletivo.7
Filosofia Política, p. 234.

Decorre desse raciocínio que, para Marx, também o Direito é somente um


instrumento de dominação social, de opressão das classes dominantes contra
o proletariado. O Direito não estaria ligado à realização da justiça ou da liber-
dade, mas da continuação da opressão à classe operária. Por isso também
o sistema jurídico deveria ser subvertido na revolução, e adequando-se às
novas exigências sociais, de privilegiar o proletário. Marx via a sociedade de
sua época como um sistema que visava apenas uma direção: o crescente
enriquecimento dos burgueses com o fortalecimento do capitalismo e cada
vez maior desvalorização do proletariado. Nessa linha, não somente o siste-
ma jurídico, mas também a moral convencional, e inclusive a religião, seriam
instrumentos de dominação social. Não obstante, convém lembrar que Marx
é de cunho prático, ou seja, visa resolver situações sociais e econômicas do
aqui e agora, de forma que suas análises do Direito, da religião e da moral
se dão no campo institucional, e de sua influência no sistema vigente, e não
necessariamente conceitualmente. Em outras palavras, o conceito de Direito,
de religião, de moral, entre outras categorias, não seriam tão importantes
quanto as suas manifestações práticas na sociedade.
8
Søren Aabye Kierkega- Trazendo para a atualidade, a questão levantada por Marx diante do au-
ard nasceu em 5 de maio
de 1813, em Copenhage. mento das desigualdades sociais torna-se ainda mais relevante. O Direito
Recebeu uma educação
extremamente religiosa de
seu pai. Em 1830 entrou
em muitos casos segue sendo instrumento de dominação, para ampliar as
na Universidade de Co-
penhague, onde estudou desigualdades, seja em plano interno, dentro dos países, seja no plano in-
Teologia. Na Universidade
interessou-se mais pelos ternacional. A postura de Marx deve ser sempre lembrada e refletida para
estudos de Filosofia, Lite-
ratura e História. A figura
severa de seu pai, que acre-
os nossos dias. Será que as leis refletem benefícios à coletividade ou apenas
ditava viver sob maldição
divina, refletiu na formação reforçam o melhor para uma minoria? Não somente no que concerne às leis
de seu filho e seu relaciona-
mento com Regina Olsen, trabalhistas, mas a todo o ordenamento jurídico e ao próprio sistema que
com quem noivou, desis-
tindo, porém, de casar-se,
apesar de manter vivos
rege a vida das pessoas. É necessária essa postura crítica permanente para
seus sentimentos por ela,
que marcaram sua vida e que a justiça seja perseguida, uma postura que identifique em cada ato do
seu pensamento. Mudou-
-se para Berlim para estu- Estado, em cada lei, se ela beneficia a sociedade ou apenas partes dela.
dar, onde pôde estudar
com Schlelling. Ao retornar
à Dinamarca, combate à
Igreja oficial danesa, a qual

S0ren Kierkegaard
em sua opinião somente
conservava de cristã o
nome. Kiêrkegaard fale-
ceu em 4 de novembro de
1855. (COPLESTON, Frederi-
ck. Historia de la Filosofía:
7: de Fichte a Nietzsche. 4.
O filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard8 é considerado um dos pre-
ed. Traducción de: DOMÉ-
NECH, Ana. Barcelona: Ariel, cursores, ou até mesmo o primeiro dos filósofos da corrente existencialista.
1999. p. 263-266.)

260
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas

Seu pensamento centra-se na valorização da individualidade, a qual, para


o pensador, somente será efetivada através do vínculo com o divino. Para
Kierkegaard a existência é uma categoria que se refere ao indivíduo livre,
portanto, existir significa realizar-se a si mesmo por meio da livre escolha
entre as alternativas que surgem na existência e por um próprio compro-
misso, significa ser cada vez mais indivíduo e cada vez menos um simples
membro de um grupo.9 Unir-se ou fundir-se um mesmo no universal, seja 9
“Na espécie animal, vale
sempre o princípio: o indi-
o Estado ou o pensamento universal, equivale a rejeitar a responsabilidade víduo é inferior ao gênero.
Já no gênero humano pre-
pessoa e a autêntica existência.10 valece a característica, pre-
cisamente porque cada in-
divíduo é criado à imagem
de Deus, de que o indiví-
Em sua obra Ou Isto, ou Aquilo Kierkegaard esclarece sua atitude frente à duo é mais elevado do que
o gênero”. (KIERKEGAARD
vida, na qual manifesta que a existência do indivíduo é caracterizada pela apud REALE, Giovanni; AN-
TISERI, Dario. História da
Filosofia: do Romantismo
escolha.11 O autor identifica três estados da existência humana, pois o existir até nossos dias. 3. ed. São
Paulo: Paulus, 1991. 3.v.
não é um ato unitário ou uma disposição genérica, mas sim a articulação p. 238.)
10
de uma escala de possibilidades e estados, a vida é um processo dialético12, COPLESTON, Frederick.
Historia de la Filosofía:
onde a transição entre as etapas não ocorre pelo pensamento, mas mediante 7: de Fichte a Nietzsche.
p. 263.
um ato de vontade, por um salto, um ato de mudança da própria existência, 11
REALE, Giovanni; AN-
TISERI, Dario. História da
e não por uma síntese conceitual.13 Filosofia: do Romantismo
até nossos dias. p. 239.

Os três estágios referidos são, respectivamente, o estético, o ético e o re- 12


Nota-se aqui a influên-
cia do pensamento do
ligioso. No estado estético o homem vive sempre na figura do momento, na filósofo alemão Hegel em
Kierkegaard. O pensador
busca pelo prazer sensível. O homem está próximo ao desespero nesse estado. dinamarquês dedicou-se
ao estudo das ideias de
Quanto mais consciente estiver de encontrar-se nesse estado, mais próximo Hegel, criticando o afas-
tamento do indivíduo na
fica ao momento de decidir, ou seguir vivendo no “sótão do próprio edifício”, busca pelo sentido univer-
sal na filosofia hegeliana.
ou efetuar a transição ao nível superior. A figura que representa esse estágio Constata-se que essa crí-
tica relaciona-se à própria
é o Don Giovanni, personagem de uma das mais famosas óperas de Mozart. filosofia kierkegaardiana e
sua proposta de desenvol-
vimento do indivíduo na
No próximo estágio o homem aceita determinados princípios e obrigações existência.

morais, se submete aos ditados da razão universal, definindo a forma e a con- 13


COPLESTON, Frederick.
Historia de la Filosofía:
sistência de sua vida. Esse estágio é representado por Sócrates, e o exemplo 7: de Fichte a Nietzsche.
p. 267.
dessa passagem formulado pelo pensador envolve a renúncia do homem à
satisfação dos impulsos sexuais, sabendo que são atrações passageiras, prefe-
rindo contrair matrimônio, aceitando as obrigações atinentes a essa relação.14 14
ADORNO, F.; GREGORY,
T.; VERRA, V. Manuale
di storia della filosofia.
Contudo, a serenidade encontrada no estado ético se vê bruscamente di- Gius. Laterza & Figli Spa:
Roma-Bari, 1996. p. 132.
minuída quando se alcança o estágio religioso, simbolizado por Abraão e sua
opção por sacrificar seu próprio filho, Isaac, a Deus. Estabelecendo a relação
do homem com Deus, o Absoluto pessoal e transcendente, o homem torna-
-se o que realmente é: um indivíduo perante Deus. É pela fé que o homem
faz a mais profunda passagem de sua existência, através dela esse homem
pode considerar-se de fato existente, livre.

261
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas

Concluindo tal ponto, somente pode se considerar existente aquele que


conseguiu afirmar-se como indivíduo, não somente como gênero. Este tor-
na-se um verdadeiro ator da vida, não mero espectador. Assim, constata-se
15
COPLESTON, Frederick. que, para Kierkegaard, o termo existência é neutro e pode ser aplicado aos
Historia de la Filosofía: 7:
de Fichte a Nietzsche. p. três estados da dialética.15
263. p. 273.
16
Nasceu em Röcken,
Alemanha, em 15 de ou-
Outro assunto tratado pelo filósofo dinamarquês é o conceito de angústia,
tubro de 1844. Estudou
Filologia Clássica na Uni- tema de seu livro O Conceito de Angústia, no qual Kierkegaard a define como
versidade de Bonn (1864)
e de Leipzig (1865). Dessa uma “simpatia antipática e uma antipatia simpática”. A angústia refere-se àquilo
época ocorre a aproxima-
ção com o Schopenhauer que é indefinido e desconhecido, reflete ao mesmo tempo as expectativas e
e Wagner, duas grandes
influências do seu pen- temores referentes a tal ponto, aplicando essa ideia ao pecado. Essa angústia
samento na juventude.
Tornou-se professor de Fi- pode ser condição primordial para que o indivíduo faça a passagem existencial,
lologia Clássica na Univer-
sidade da Basileia. Sua má tirando-o de sua conduta habitual, por mais que esta lhe agrade. Esse tipo de
saúde, junto a uma insa-
tisfação que se refletia em angústia possibilita ao homem alcançar a liberdade, pois a angústia é superada
desgosto e suas dúvidas
profissionais o levaram
a renunciar sua cátedra
pelo salto, pela passagem a um dos níveis anteriormente elencados.
na Basileia, passando a
viver em diversos lugares
da Suíça e Itália, viajando
Finalizando este tópico, constata-se que para Kierkegaard é o próprio in-
ocasionalmente à Ale-
manha. Suas principais divíduo que se encontrará através das escolhas que reforcem sua subjeti-
obras são O Nascimento
da Tragédia, Gaia Ciência, vidade. Através destas, o homem encontra e relaciona-se com Deus, sendo
Assim Falou Zaratustra, Ge-
nealogia da Moral, Além do este o ápice da existência humana, possível, contudo, somente àqueles que
Bem e do Mal, O Anticristo
e Ecce Homo. Ao final de deixam de ser simplesmente parte do grupo.
1889 passaram a surgir
evidentes sinais de loucu-
ra. Em janeiro de 1889 foi
internado em uma clínica
na Basileia. Nunca mais
se recuperou totalmente,
passando a viver com sua
Friedrich Nietzsche
mãe e, após a morte dela,
com sua irmã em Weimar.
Nietzsche morreu em 25
Friedrich Wilhelm Nietzsche16 é um dos mais influentes pensadores do
de agosto de 1900. (SA-
FRANSKI, Rudiger. Nietzs-
séc. XX, sendo uma das principais bases sobre as quais se fundou a filosofia
che: biografia de uma tra-
gédia. Tradução de: LUFT,
existencialista. Sua filosofia é uma proposta de inversão das ideias filosóficas
Lya. São Paulo: Geração
Editorial, 2001.)
e dos valores morais tradicionais. Por tal motivo foram dadas as mais variadas
interpretações ao seu pensamento, das mais liberais às mais conservadoras.

Enquanto jovem, duas personalidades marcaram profundamente o pen-


samento de Nietzsche, o filósofo Schopenhauer e o compositor Richard
Wagner. Sob a influência de ambos publica em 1872 sua primeira obra, O
17
NIETZSCHE, Wilhelm Nascimento da Tragédia17. Nessa época Nietzsche entendia a vida como “cruel
Friedrich. O Nascimento
da Tragédia ou Helenis- e cega irracionalidade, dor e destruição”18. Só a arte poderia oferecer ao in-
mo e Pessimismo. Tra-
dução, notas e posfácio divíduo a força e a capacidade de enfrentar a dor da vida, dizendo sim a ela.
de J. Guinsburg. 2.ed. São
Paulo: Companhia das Nietzsche via em Wagner o espírito do retorno à Grécia, mas não a Grécia pós-
Letras, 1992.
-socrática, a qual é por ele criticada, mas sim à Grécia do período dos filósofos
18
REALE, Giovanni; AN-
TISERI, Dario. História da pré-socráticos e dos primeiros tragediógrafos. Nesse momento da civilização
Filosofia: do Romantismo
até nossos dias. p. 426. grega Nietzsche identifica o espírito de Dionísio. A divindade grega Dionísio

262
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas

representa a imagem da força instintiva e da saúde, símbolo de uma humani-


dade em plena harmonia com a natureza. O desenvolvimento da arte grega
estava ligado a esse espírito, o dionisíaco, e também ao apolíneo, de Apolo,
outra divindade relacionada com as artes, mas consubstanciada na tentativa
de expressar o sentido das coisas na medida e na moderação.19 19
REALE, Giovanni; AN-
TISERI, Dario. História da
Filosofia: do Romantismo
Essa compreensão representa de maneira preliminar o modo pelo qual até nossos dias. p. 428.

Nietzsche representaria o homem de sua época e sua profunda crítica à


moral de seu tempo. O dionisíaco é o seu próprio pensamento. As culturas
sublimam as energias dionisíacas: “O dionisíaco jaz diante da civilização e de-
baixo dela é a dimensão a um tempo sedutora e ameaçadora do inaudito”20. 20
SAFRANSKI, Rudiger.
Nietzsche: biografia de
uma tragédia. p. 58.
O afastamento de Schopenhauer e de Wagner marcam o princípio do
segundo período do pensamento filosófico de Nietzsche, quando ele ataca
aos metafísicos indiretamente, buscando demonstrar que os aspectos da ex-
periência e os conhecimentos humanos que, supunha-se, necessitavam de
explicações metafísicas, ou justificar uma superestrutura metafísica, pode-
riam ser explicados em linhas materialistas. Nessa fase, Nietzsche inicia sua
campanha contra a moralidade de autorrenúncia. Em Gaia Ciência o autor
expõe a ideia do cristianismo como hostil à vida, bem como já expõe a ideia
da morte de Deus.

Em Além do Bem e do Mal, Nietzsche diz ter descoberto dois tipos primá-
rios de moral, “a dos chefes e a dos escravos”, mescladas em todas as civiliza-
ções superiores, elementos de ambas podem se encontrar inclusive em um
mesmo homem. A moral dos chefes é a moral aristocrática, “bom” e “mal”
são equivalentes de “nobre” e “plebeu”. Já na moral dos escravos a norma é o
que for benéfico à sociedade do débil e impotente. Valorizam-se qualidades
como simpatia, bondade e humildade, os indivíduos fortes e independentes
são considerados perigosos. As valorações morais dessa segunda concepção
são expressões das necessidades do “rebanho”.21 21
COPLESTON, Frederick.
Historia de la Filosofía: 7:
de Fichte a Nietzsche. p.
Em A Genealogia da Moral, utiliza o conceito de ressentimento, na relação 263. p. 316.

em que o homem superior cria seus próprios valores partindo da abundân-


cia de sua vida e energia, ao passo que o submisso e impotente teme ao forte
e poderoso e tenta contê-lo e dominá-lo afirmando como absolutos os va-
lores do rebanho. Essa rebelião se principia com o ressentimento, passando
a ser criador, originário do nascimento dos valores. Na história há o confli-
to dessas duas atitudes morais. Enquanto o homem superior pode coexistir
com ambas, mantendo seus próprios valores, o rebanho, incapaz de qual-
quer coisa superior e disposto a manter seus valores para si mesmo, tenta

263
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas

impor universalmente seus valores. Nessa linha desenvolve-se a crítica niet-


zscheniana ao cristianismo. “Nietzsche não nega todo valor da moral cristã.
Admite, por exemplo, que há contribuído ao refinamento do homem. Mas vê
nela, ao mesmo tempo, uma expressão do ressentimento característico do
22
“Nietzsche no niega
todo valor a la moral Cris-
instinto do rebanho, ou moral dos escravos”22. A esse mesmo ressentimento
tiana. Admite, por ejem-
plo, que ha contribuido al são atribuídos os movimentos democráticos e socialistas que Nietzsche os
refinamiento del hombre.
Pero ve en ella, al mismo interpreta como consequências do cristianismo.
tiempo, una expresión del
resentimiento característi-
co del instinto del rebaño, Nietzsche não nega a moral, mas propõe sua reestruturação, de modo
o moral de los esclavos”.
(COPLESTON, Frederick. que o homem superior possa seguramente viver mais além do bem e do mal,
Historia de la Filosofía:
7: de Fichte a Nietzsche. p. sem a moral do ressentimento, podendo assim transcender-se a si mesmo
263. p. 316.)

23
até o além-do-homem23. A crítica de Nietzsche não se dirige à figura de Cristo,
No original, Ubermens-
ch. A tradução desse con- mas à construção histórica da religião cristã, a qual diz ele depreciar o corpo,
ceito gera discussões no
meio acadêmico, sendo o impulso, o instinto, a paixão, o desenvolvimento da mente livre e sem
que boa parte recomenda
a tradução como além-do- travas, os valores estéticos.24
homem, conforme adotou
Rubens Rodrigues Torres
Filho em sua tradução
para a coleção Os Pen-
Em Gaia Ciência, Nietzsche destaca que o acontecimento mais importan-
sadores da editora Nova
Cultural, ao contrário da
te da época atual é que Deus está morto, e foi morto pela humanidade. A fé
corriqueira tradução “su-
per-homem” (LUFT apud no deus cristão se fez impossível de manter e já começa a dissipar as primei-
SAFRANSKI, Rudiger. Niet-
zsche: biografia de uma ras nuvens sobre a Europa. Nietzsche até chega a aceitar que a religião em
tragédia. p. 98.)
algumas fases expressou a vontade de viver, ou melhor, de poder, mas sua
24
COPLESTON, Frederick.
Historia de la Filosofía: 7: atitude geral é que a fé em Deus, especialmente da religião cristã, é hostil à
de Fichte a Nietzsche. p.
263. p. 316-317. vida e que quando expressa a vontade de poder, tal vontade é aquela dos
25
COPLESTON, Frederick. tipos inferiores de homem.25
Historia de la Filosofía: 7:
de Fichte a Nietzsche. p.
263. p. 317. O filósofo destaca que os europeus foram educados à aceitação dos va-
lores morais cristãos associados à fé cristã, em certo sentido dependentes
dela. Se os europeus perdessem sua fé nesses valores, perderiam sua fé em
todos os valores. O desprezo de todos os valores, que brota do sentimento
de carência do objetivo do mundo é um dos principais elementos do niilis-
26
Do latim nihil, nada. mo26. Assim, pode-se dizer que a moralidade opera-se como um antídoto
(Gegenmittel) contra o niilismo teórico e prático exercendo o papel de segu-
rar o homem, pois, sem sua segurança, resta o nada e o homem não possui
27
COPLESTON, Frederick.
Historia de la Filosofía: 7: sentido para existir. Nesse sentido, a moral cristã exerce um valor por segurar
de Fichte a Nietzsche. p.
263. p. 319. os homens inferiores contra isso. Para Nietzsche, o advento do niilismo é ine-
28
Em um tempo infinito vitável. Por mais que haja seu risco premente, esse movimento possibilitará
existem ciclos periódicos
em que tudo o que su- o caminho até um novo horizonte, até uma transformação dos valores, até o
cedeu se repete de novo.
Essa concepção é posta nascimento de um tipo superior de homem.27
nos lábios do sábio persa
Zaratustra, protagonis-
ta do seu mais famoso Importante para a construção desse tipo de homem é o amor fati, amar o
trabalho, Assim Falou
Zaratustra. necessário, aceitar esse mundo e amá-lo, aceitar o eterno retorno28 da vida. Para
264
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas
29
REALE, Giovanni; AN-
se refundar a vida, ciente do mundo em que se encontra, deve-se criar um novo TISERI, Dario. História da
Filosofia: do Romantismo
sentido da terra, esse é o além-do-homem. Não é a humanidade, senão o além- até nossos dias. p. 429.

-do-homem, pois a meta a ser alcançada, a superação do próprio homem. 30


Edmund Husserl, nasci-
do em 1859, depois de ter
terminado seu doutorado
Por fim, destaca-se a crítica de Nietzsche ao Estado, feita logo na primeira em Matemática, assis-
tiu às aulas de Brentano
parte de Assim Falou Zaratustra, entendendo-o como “o mais frio de todos os em Viena (1884-1886) e
baixo a sua influência se
frios monstros”, o novo ídolo erigido a si mesmo como objeto de adoração e consagrou à Filosofia. Foi
professor de Filosofia em
tenta reduzi-lo todo a um estado comum de mediocridade. O Estado impede os Göttingen e mais tarde
em Freiburg-im-Breisgrau,
indivíduos excepcionais de se desenvolverem, reforçando os valores da inferio- onde teve por discípulo o
filósofo Martin Heidegger.
ridade. O Estado, diz ele, é frio até no mentir, ao dizer que ele, o Estado, é o povo, Com o advento do nazis-
mo, sendo judeu, foi afas-
bem como propor-se a ser como um deus na terra. Somente onde o Estado deixa tado do ensino, apresen-
tando em raras ocasiões
de existir, ao menos para o indivíduo, começa o homem não inútil.29 de fazer sentir em público
sua voz como em duas
conferências em Viena e
Pelo que foi visto, constata-se que o pensamento de Nietzsche possui re- Praga em 1935. Morreu
em Freiburg em 27 de
lações com o desenvolvimento de lideranças, pois àqueles que se propõem abril de 1938. (ADORNO,
F.; GREGORY, T.; VERRA, V.
a conduzir outros indivíduos a um determinado escopo que gere resultados Manuale di Storia della
Filosofia. p. 294-295.)
a todos eles é primordial primeiramente um tipo de atitude própria que se
31
diferencie da atitude dos demais. Isso não significa que esse homem é uma REALE, Giovanni; AN-
TISERI, Dario. História da
espécie superior aos seus coordenados, mas que ele deve ter um modo de Filosofia: do Romantismo
até nossos dias. p. 554.
agir e pensar diferente dos demais integrantes do grupo. Cada um tem sua 32
Termo empregado
importância na consumação do escopo, mas ao líder cabe a inteligência de pela primeira vez por
Saint-Simon, para desig-
saber coordená-los, de saber potencializar a capacidade de cada um e para nar o método exato das
ciências e sua extensão
isso ele deve se diferenciar destes. para a Filosofia. Foi ado-
tado por Auguste Comte
para sua filosofia e, graças
É nessa linha que também se encontra a crítica de Nietzsche ao Estado, a ele, passou a designar a
corrente filosófica que re-
este ente busca tutelar o interesse de todos, regulando a sociedade com presenta a romantização
da ciência, sua devoção
base na média, naquilo que é benéfico à maioria dos indivíduos, contudo ao como único guia da vida
individual e social do
homem que coordena outras pessoas isso não basta, entra-se na necessidade homem, único conheci-
mento, moral e religião
de que esse homem por si próprio se desenvolva e se prepare adequada- possível. Suas principais
teses são: a ciência é o
mente para que então possa vir a conduzir outras pessoas, esse é o principal único conhecimento pos-
sível e o seu método é o
significado de se fazer o Estado deixar de existir ao indivíduo. único válido; o método
da ciência é puramente
descritivo; o método da
ciência deve ser estendi-
do a todos os campos de

Edmund Husserl
indagação da atividade
humana.(ABBAGNANO,
Nicola. Dicionário de Fi-
losofia. São Paulo: Martins
33
Fontes, 2005. p.
ADORNO, F; 776-777.)
GREGORY,
Edmund Husserl30 é o fundador do movimento fenomenológico, uma pro- T.; VERRA, V. Manuale di
storia della filosofia. p.
posta de refundação do critério científico através do retorno às próprias coisas 295.

“indo além da verbosidade dos filósofos e de seus sistemas construídos no


ar”31. Trata-se de uma verdadeira crítica às concepções positivistas32 da ciên-
cia e uma busca por dar à Filosofia o caráter rigoroso de uma ciência.33 Nesse
escopo, precisa-se partir de dados indubitáveis para, com base neles, operar a

265
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas

construção filosófica. Procuram-se, em suma, evidências estáveis para colocar


como fundamento da Filosofia: “sem evidência não há Filosofia”.

O estudo fenomenológico é realizado através da descrição dos “fenôme-


nos” que se anunciam e se apresentam à ciência depois que se faz a epo-
34
Termo grego que sig- ché34, isto é, depois que são postas entre parênteses as nossas persuasões
nifica literalmete “colocar
em parênteses”. (ADORNO, filosóficas. É preciso suspender o juízo sobre tudo o que não é convincente,
F.; GREGORY, T.; VERRA, V.
Manuale di Storia della nem incontroverso, até se conseguir encontrar aqueles “dados” que resistam
Filosofia. p. 296.)
às reiteradas suspensões da epoché. A partir da epoché os fenomenólogos
buscam descrever os modos típicos de como as coisas e os fatos se apresen-
35
Do grego eidos,
tam à consciência, as essências eidéticas35. Portanto, a Fenomenologia não é
essência.
ciência dos fatos, mas das essências.

Enquanto a Psicologia é ciência de dados, de fatos, de realidade inserida


em um contexto espaço-temporal, a Fenomenologia é ciência das essências
e de fenômenos depurados daqueles que o contexto espaço-temporal e dos
quais englobamentos no mundo em geral. Nisso há, ainda, a crítica ao psi-
cologismo, concepção que resumia qualquer processo racional-científico ao
processo psicológico, limitando as demais ciências a esta. Concluindo, pode-
-se dizer que a Fenomenologia propõe-se a ser ciência fundamentada esta-
velmente, voltada à análise e à descrição das essências.

A consciência humana é “intencional”, é sempre consciência de alguma


coisa que se apresenta de modo típico: a análise desses modos é a função do
fenomenólogo. Para conhecer a essência do objeto de estudo o fenomenólogo
usa da intuição eidética, diferente de um dado de fato. Um fato é o que aconte-
ce aqui e agora, é algo contingente, podendo ser ou não ser, mas quando um
fato nos é apresentado à consciência, juntamente com o fato capta-se uma
essência (o som, a cor etc.), o quid desse fato. As essências são os modos típicos
do aparecer dos fenômenos. Seu conhecimento não é mediato, obtido através
36
REALE, Giovanni; AN-
da abstração ou comparação de vários fatos, capta-se o aspecto pelo qual os
TISERI, Dario. História da
Filosofia: do Romantismo
fatos são semelhantes. O conhecimento das essências é a intuição.36
até nossos dias. p. 560.
Toda intuição que apresenta originariamente alguma coisa é, por direito, fonte de
conhecimento; tudo aquilo que se apresenta a nós originariamente na intuição (que, por
assim dizer, se nos oferece em carne e osso) deve ser assumido assim como se apresenta,
37
HUSSERL apud REALE, mas também apenas nos limites em que se apresenta.37
Giovanni; ANTISERI, Dario.
História da Filosofia: do
Romantismo até nossos Seguindo o desenvolvimento da novidade representada pela Fenomeno-
dias. p. 562.
logia, há que se discutir o argumento da crise das ciências europeias e o re-
torno ao “mundo-da-vida” (Lebenswelt). Considera Husserl que o positivismo
reduziu a ideia de ciência a uma mera ciência dos fatos, e as meras ciências

266
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas

dos fatos criam meros homens de fato. As interrogações especificamente hu-


manas foram banidas do reino da ciência, que se transformou e se limitou,
perdendo o seu significado de guia para a humanidade. Isso gerou a dicoto-
mia entre o conhecimento objetivo e subjetivo do homem, concretizado no
século passado, com o aprofundamento das ciências naturais, humanas e
sociais, que, pelo conhecimento da objetividade, aumentam também incóg-
nitas em relação à essência humana, já que prevaleceu um estudo cientifica-
mente unilateral dessa natureza.

A crise das ciências não é sua crise de cientificidade, mas sim a crise de
seu significado para a existência humana. Husserl critica a pretensão da ciên-
cia positivista e naturalista de serem a única verdade válida e a ideia ligada
a ela de que o mundo descrito pelas ciências seria a verdadeira realidade.
Essa concepção exclui aqueles problemas que são os mais candentes para o
homem, que, em nossos tempos, atormentado, sente-se à mercê do destino, 38
“Se trata do reino de
sofre com os problemas do sentido e do não sentido da existência humana uma subjetividade com-
pletamente circunscrita
em seu conjunto. Nessa crise categorial, substitui-se as categorias científicas em si mesma, que é no
seu modo, que atua em
pelo concreto, o pré-categorial, o mundo-da-vida38. O mundo da vida é o qualquer experiência, em
qualquer pensamento,
âmbito das originárias “formações do sentido” humanas, é o conjunto de su- e que por isso é em toda
parte inevitavelmente
perações realizadas antes do nascimento da ciência, âmbito e conjunto que presente e que, todavia,
não tem sido mais consi-
as ciências adotam delas. Isso significa que o mundo, para Husserl, é um ser derada”; “Si trata del regno
di una soggettività com-
pletamente circoscrita in
já dado, mas que não existiria para o ser humano se ele não o vivificasse na se stessa, essente nel suo
modo, che funge in qual-
sua subjetividade. Por isso, a superação da atitude natural consiste precisa- siasi esperienza, in quali-
sasi pensiero, in qualsiasi
mente nisto: o ser humano deixa de acreditar no mundo exterior como algo vita, e che quindi è ovun-
que inevitabilmente pre-
dado e passa a indagar como as validades são dadas à subjetividade. sente e che tuttavia non è
mai stata considerata, non
è mai stata afferrata né
A coisa percebida não é só ela mesma, real e propriamente, porque a sub- compressa”. (HUSSERL. La
Crisi delle Scienze Euro-
jetividade lhe acrescenta algo mais, que é anexado ao objeto. Experienciar pee e la Fenomenologia
Trascedentale: per un
implica perceber, e este, um projetar. Por isso o mundo não é dado “como sapere umanistico. Tradu-
zione di: FILIPPINI, Enrico.
haver”, mas sim através de uma operação subjetiva da consciência que per- Milano: Net, 2002. p. 141,
142. [tradução livre].)
cebe. Daí porque tudo no mundo é subjetivo-relativo, visto que se relativiza
39
segundo o sentido que é elaborado ou dado pela subjetividade.39 HUSSERL, Edmund. La
crisi delle scienze euro-
pee e la fenomenologia
transcedentale. p. 172.
A simples experiência, ou a experiência direta das coisas, não é uma ex-
periência da objetividade, mas sim uma experiência subjetivo-relativa do
mundo-da-vida. O mundo objetivo não é experienciável, pois o experienciá-
vel é somente o elemento subjetivo. É o ser humano traduzido pelo eu ou
conscientizado. O método que viabiliza a transformação de atitude frente ao
mundo (passando de ingênuo a reflexivo) é o método da “epoché fenomeno-
lógica”, o qual consiste em uma suspensão do conceito em análise, libertan-

267
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas

do o filósofo dos vínculos mais fortes e universais com aquela coisa, e, por
isso, mais ocultos. Encontrando-se sobre o objeto estudado, portanto livre,
o fenomenólogo pode, ao ver o mundo como Fenomenologia, identificar a
40
HUSSERL, Edmund. La essência daquilo que estuda.40
crisi delle scienze euro-
pee e la fenomenologia
transcedentale. p. 179,
180.

Justiça como intersubjetividade


Assim como a questão inicial de Husserl é a de como o mundo se dá para
a consciência, na última epoché pergunta-se sobre o enigma da existência
de outrem. Trata-se de ultrapassar os limites da individualidade para atingir
o universo da intersubjetividade, passo fundamental para que a Fenomeno-
logia adquira um caráter objetivo.

Porém, o homem necessita primeiro superar as diversas epochés, os di-


versos estados da subjetividade. Aquilo que a minha consciência subjetiva
pensa é Fenomenologia, não é verdade, são espelhos que refletem partes
do meu existir, mas eu sei que sou muito mais. Por isso, a minha consciência
é um complexo que me dá direções, mas não é meu real. Somente quando
os homens se propuserem ao percurso das reduções fenomenológicas, a au-
tenticidade dada pela intencionalidade de natureza se manifestará no existir
do ser em particular e comunitário, um movimento com determinado dire-
cionamento já definido que direciona o indivíduo ao agir em conformidade
à natureza, ao ser que se faz realidade no ser aqui e agora.

A redução transcendental revela que o outro se constitui em “mim” a partir


do seu reflexo em “mim”. O ser adquire a significação de um outro organismo
que se encontra também no mundo e é sujeito do mesmo mundo, análo-
41
HUSSERL, Edmund.
Meditações cartesianas: go ao “mundo do outro.”41 Cada alma existe em comunidade com as outras,
introdução à fenomeno-
logia. Tradução de Frank enquanto está ligada intencionalmente a elas, enquanto está numa cone-
de Oliveira. São Paulo:
Madras, 2001. p. xão puramente intencional, íntima e essencialmente fechada: a conexão da
42
HUSSERL, Edmund. La intersubjetividade.42 Ultrapassando-se os limites da individualidade, “o ser é
crisi delle scienze euro-
pee e la fenomenologia apreendido como organismo corporal, cuja alma, porém, não é acessível ao
transcedentale. p. 258-
259. Eu do outro de forma direta.”43; “Cada vida, com a sua intencionalidade, pe-
43
HUSSERL, Edmund. netra, intencionalmente, na vida dos outros, e todos [...] estão entrelaçados
Meditações cartesianas:
introdução à fenomenolo- na comunidade da vida.”44
gia. p. 158.

44
HUSSERL, Edmund. Husserl define que a comunhão se dá na comunidade intersubjetiva:
Meditações cartesianas:
introdução à fenomenolo-
gia. p. 151. Não se pode pensar em subjetividade sem que esta implique na intersubjetividade, pois
a percepção do eu implica ao mesmo tempo na percepção do alter ego, do outro. Na
elucidação da minha experiência se constitui a elucidação da experiência do outro. Eu,

268
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas

sujeito, percebo o mundo, mas os outros sujeitos o percebem tal como eu. Isso significa
que possuo em mim a experiência do mundo e dos outros, não como uma obra da minha
atividade sintética, de certa maneira privativa, mas como de um mundo estranho, a mim,
45
intersubjetivo, existente para cada um, acessível a cada um.45 HUSSERL, Edmund. La
crisi delle scienze euro-
pee e la fenomenologia
Husserl assim evidencia o entendimento de que a vida humana é uma transcedentale. p.56.

intersubjetividade, pressuposto esse que diz respeito a toda e qualquer con-


cepção de Justiça contemporânea, levando em consideração a definição
desta como “referente a outrem”.

Ao elaborarmos o processo reflexivo da redução fenomenológica, nos


deparamos com o outro. Nesse momento surge a questão da orientação da
relação estabelecida entre eu e esse outro, o que é feito através da Ética e
do Direito. Dentro dessa realidade a Justiça se encontra no modo como se
consegue adequadamente operar essa interação intersubjetiva, o homem
pode agir justamente pois, através do método fenomenológico, tornou-se
capacitado a identificar a essência do fenômeno que surge diante de si.

Além disso, mais especificamente na produção e aplicação do Direito, encon-


tra-se aqui a necessidade de que os sujeitos que assumem a responsabilidade
de criar, analisar, interpretar e aplicar o Direito nos fenômenos jurídicos pesqui-
sem a sua própria intencionalidade de consciência, pois acima de seus próprios
interesses e de seu modo de agir e pensar encontra-se o interesse público, ou ao
mínimo de outrem, que envolve a atividade por eles desenvolvida.

É necessário que esses sujeitos passem pelas epochés fenomenológicas


para que estejam habilitados a operar o Direito de uma maneira mais ade-
quada à sociedade que é organizada por esse sistema de leis.

Husserl nos leva assim a refletir sobre a necessidade de a Ciência consi-


derar a dimensão metafísica da consciência, a intencionalidade, construída
no mundo-da-vida, através do método exposto, pois assim teremos conhe-
cimentos humanos em essência e consequentemente justos.

Martin Heidegger
Martin Heidegger é provavelmente o mais famoso dos filósofos existen-
cialistas. Sua extensa obra é resultado da leitura de toda a história da Filo-
sofia, o que resultou numa profunda familiaridade com o pensamento de
mentes como Heráclito, Platão, Aristóteles, Kant e Hegel. Todo esse estudo
motivou-se a responder uma indagação fundamental, a questão metafísica
e do ser. É disso que resulta a sua filosofia do dasein, ou do ser-aí.
269
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas

Primeiramente foi filósofo cristão, baseando-se na lógica eterna e imu-


tável de Husserl e nas concepções medievais de metafísica. Deus era o fun-
damento e questão primordial de todas as suas discussões. Contudo, após
1918, com os recentes acontecimentos históricos, em especial os eventos
da Primeira Guerra Mundial, suas convicções quanto a verdades imutáveis
e atemporais foram abaladas. Além disso, os seus estudos dos pensadores
contemporâneos conduziram-no a novas indagações, que resultariam na
elaboração da mais célebre de suas obras: Ser e Tempo (Sein und Zeit). Nessa
obra, Heidegger salienta que não haveria como se entender o ser fora da his-
toricidade. Nesse sentido, a filosofia heideggeriana se aproximaria de uma
ontologia existencial.
Primeiro laboriosamente mas depois com o crescendo de uma conquista triunfante,
ele pouco a pouco faz emergir da treva do dasein, como agora chama a vida humana,
os dispositivos apresentados em Ser e Tempo como existenciais (Existenzialien): ser-em,
sentimento de situação (Befindlichkeit), compreender, decair (Verfallen), preocupação.
Ele encontra a fórmula do dasein, que se importa com o seu próprio poder-ser
46
SAFRANSKI, Rudiger. (Seinkönnen).46
Heidegger: um mestre da
Alemanha entre o bem e o
mal. Tradução de Lya Luft. Heidegger traz a Ontologia para a existência humana em geral. Expres-
São Paulo: Geração Edito-
rial, 2000. p. 186-187. sões como decair (Verfallen) realçam esse caráter amplamente existencial da
obra, que encontra na morte um dos temas fundamentais. Junto à morte
envolvem-se muitas outras questões humanas, como a angústia e o sofri-
mento. O dasein de Heidegger é um ser que surge da filosofia de Nietzsche,
de sua ideia da morte de Deus, e se desenvolve conforme a necessidade de
uma coragem para a angústia. Em outras palavras, os dilemas existenciais hu-
manos, o sentido da vida, são trabalhados de forma ontológica. Importante
então abrir a questão do ser em Heidegger:
Caso a questão do ser deva ser colocada explicitamente e desdobrada em toda a
transparência de si mesma, sua elaboração exige, de acordo com as explicitações feitas
até aqui, a explicação da maneira de visualizar o ser, de compreender e apreender
conceitualmente o sentido, a preparação da possibilidade de uma escolha correta do
ente exemplar, a elaboração do modo genuíno de acesso a esse ente. Ora visualizar,
compreender, escolher, aceder são atitudes constitutivas do questionamento e, ao
mesmo tempo, modos de ser de um determinado ente, daquele ente que nós mesmos,
os que questionam, sempre somos. Elaborar a questão do ser significa, portanto, tornar
transparente um ente – o que questiona – em seu ser. Como modo de ser de um ente, o
questionamento dessa questão se acha essencialmente determinado pelo que nela se
47
HEIDEGGER, Martin. questiona – pelo ser.47
Ser e Tempo. 15. ed. Tra-
dução de Marica Sá Ca-
valcante Schuback. Petró- Heidegger liga a Ontologia à existência em geral. Para o filósofo alemão, o
polis: Vozes, 2005. Tomo
I, p. 33. ser existe apenas na perspectiva da consciência humana, e por isso é sempre
ser-aí, é sempre ser no mundo. O ser não pode ser compreendido em sua
profunda acepção pelo homem, mas permanece sendo uma indagação

270
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas

48
eterna e angustiante para a humanidade. Essa necessidade revela que, se Para Heidegger, a tra-
dição filosófica sempre
por um lado é inaplicável o entendimento do ser, por outro é preciso captar ocupou-se apenas da
questão ontológica, sem
o sentido do ser. perceber que todo ser é
ser de um ente, decorren-
do disso que é necessário
Heidegger também separa o domínio do ente, o existente, do domínio do estudar também o ser em
sua existência. Somente a
presença do ser pode ex-
ser. O primeiro é o domínio ôntico, no qual encontramos a índole que está plicá-lo em suas vastas di-
mensões. “Em consequên-
em todos os entes e que deriva do ser, que por sua vez é a raiz fundamental cia, a presença possui um
primado múltiplo frente
de todas as coisas, a qual não se identifica com uma presença empírica, mas a todos os outros entes:
o primeiro é um primado
sim um dado que antecede e possibilita todas as presenças.48 ôntico: a presença é um
ente determinado em
seu ser pela existência. O
Para Heidegger, a tradição filosófica sempre separou a essência da exis- segundo é um primado
ontológico: com base
tência, conferindo ao ser o caráter universal e perene, que não necessita da em sua determinação da
existência, a presença é
temporalidade, enquanto a existência se dá no aspecto empírico. Mas Hei- em si mesma ‘ontológica’.
Pertence à presença, de
degger assinala que essa distinção deve ser repensada, caso se deseje captar maneira originária, e en-
quanto constitutivo da
a ideia de ser: “se o ser é realmente raiz fundamental e a fonte de todas as compreensão da existên-
cia, uma compreensão do
coisas, importa absolutamente para o filósofo enraizar esse ser na esfera da ser de todos os entes que
não possuem o modo de
ser da presença. A presen-
temporalidade. [...] Em outros termos, o ser ‘não é isto ou aquilo’, ele tem que ça tem, por conseguinte,
um terceiro primado que
ser; é o homem, o ente, que continuamente o faz ser”49. Dessa constatação é a condição ôntico-onto-
lógica da possibilidade de
surge sua expressão dasein. todas as ontologias. Desse
modo, a presença se
mostra como o ente que,
O dasein de Heidegger é a presença do ente humano ao ser, bem como ontologicamente, deve
ser o primeiro interrogado,
alude ainda ao campo de manifestação do mesmo, ao mundo, onde o ser antes de qualquer outro”.
(HEIDEGGER, Martin. Ser e
pode se desenvolver. Tempo. Tomo I, p. 40.)

49
A característica desse dasein é a facticidade: continuamente projetado adiante ou projeto, HUISMAN, Denis. His-
tória do Existencialismo.
ele tem que ser e toma todo seu sentido em relação ao futuro. Mas ao mesmo tempo, Tradução de Maria Leonor
o homem não tem a escolha de não ser. Ele é imediatamente surgimento num mundo Loureiro. Bauru: EDUSC,
2001. p. 101-102.
que sempre lhe préexiste, o qual ele tem que operar e que deve analisar sem Deus. [...] O
homem, esse existente humano, é irremediavelmente projetado adiante de si mesmo; ele
se transcende (ultrapassa-se) no tempo e no espaço para realizar esse projeto que é ele
mesmo, pois ele tem que ser o que ainda não é, e não mais o que é. A facticidade do dasein
reside, portanto, no fato de que o homem é a ‘antecipação de si’”50. 50
HUISMAN, Denis. His-
tória do Existencialismo.
p. 104.
Portanto, além da busca pela noção de ser, é preciso dar sentido ao ser.
Dessa forma, se entende o ser como o ente humano nesse mundo, é neces-
sário buscar dar sentido à vida do homem, tornando a vida mais autêntica
contra as várias mentiras que circundam a vida em sociedade, que em geral
se identificam com a fixação em um objeto ou momento específico da vida. É
nesse mundo de convenções que pergunta-se: qual o sentido da existência?
Alguns podem colocá-la na família, outros no trabalho, outros na religião,
e assim por diante. Mas cada momento desses, embora importantes, são
apenas momentos, não esgotam a existência por inteiro. Para dar sentido
ao ser é preciso entender aquilo que preenche a existência, trazendo mais

271
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas

tranquilidade e bem-estar ao indivíduo. O questionamento de Heidegger é


bastante profundo, pois implica na importância de que não basta entender
o mundo, conceituá-lo, classificá-lo, mas também não basta trabalhá-lo, mo-
dificá-lo, se todas essas ações não estão entrelaçadas a uma busca de sentido
da existência, a uma tentativa verdadeira de o indivíduo justificar seu aqui
e agora. Heidegger nos remete a refletir sempre em nossas ações: será que
isso que estudo ou faço amplia a minha existência ou é apenas a fixação em
determinado momento? Qual o sentido de cada ação minha?

Também como uma dessas condições que interrompem o desenvolvimen-


to do ser é a ideia de morte que se propaga entre as pessoas, aquela que trata
a morte como algo banal e universal. Para Heidegger a morte é a consciên-
cia do insuperável, da finitude do dasein, o fim do dasein nesse mundo. A
morte como um dado insuperável acarreta ao indivíduo uma maior tomada
de responsabilidade para com a sua vida.
A responsabilização do indivíduo frente a sua própria morte (como não sendo adiada ou
remetida ao “fim da vida”) é, portanto, a tomada de consciência profundamente existencial
de que ele não deve a significação de sua existência a nada senão a seus próprios atos, e
sobretudo não deve à utilidade e à “atividade” quotidiana. O ser autêntico é então aquele
que reconhece sua morte como sua única especificidade, visto que ninguém pode substituí-
51
HUISMAN, Denis. His- -lo em sua própria morte; assim, ela é a única coisa que lhe pertence propriamente.51
tória do Existencialismo.
p. 104.
Heidegger exige do indivíduo uma profunda tomada de responsabiliza-
ção por sua própria vida. Como se vê, a morte não é uma atração à decadên-
cia, mas o dado concreto e insuperável que conecta logicamente sua filoso-
fia, a filosofia do dasein. A morte pôe fim à existência humana, retira o dasein
do mundo, ao mesmo tempo em que retira do indivíduo todas as demais
limitações. A morte é o dado que liberta o homem, pois sendo algo insu-
perável, exige do indivíduo que durante sua vida faça-a da melhor maneira
possível, desenvolvendo o seu ser.

As reflexões de Heidegger também contribuem numa aplicação ao Direi-


to e ao business. O Direito trabalha convenções sociais, as normas jurídicas
são convenções postas pelo Estado, sociedade etc. Será que essas normas
ajudam as pessoas a dar mais sentido à existência? As normas são pautadas
na coletividade, mas a existência tem sentido único. Nessa contraposição,
cada indivíduo tem o dever de dar sentido à sua existência, sabendo que as
convenções são sempre momentos importantes, mas não completos. A lei é
um instrumento de organização social, por isso é importante a pessoa reali-
zar aquilo que lhe dá sentido sem colidir com os interesses sociais e coletivos
refletidos nas leis.

272
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas

O business também se reflete no sentido ao ser. O desenvolvimento profis-


sional e econômico é essencial para a existência, pois sem esse momento outros
tornam-se mais difíceis. No mundo profissional, é importante que a pessoa
busque atividades que reforcem o sentido de sua existência, e não se fixe em
determinada atividade. Cada pessoa pode evoluir sempre, ampliando as várias
possibilidades de atividades, funções e carreiras. O empreendedor é aquele que
realiza sua carreira sabendo que esta é parte de seu sentido da existência.

Ampliando seus conhecimentos

O que é existencialismo?
(HUISMAN, 2001, p. 8-11; 177-178)

Pode-se dizer que o termo genérico designa de modo abrangente uma


Filosofia não sistemática, uma corrente de pensamento que privilegia o con-
creto, o singular, o “vivido” em relação ao nacional, aos conceitos, às gene-
ralidades vagas. É claro, deve-se também opor o “essencialismo” tradicional,
tal como é definido pelo tomismo, pelo espinosismo ou pelo hegelianismo
ao “existencialismo” do século XX. O essencialismo insistia sobre a prioridade
do conceito, sobre a anterioridade da natureza de um ser(antes de saber se
Deus existe, trata-se de definir sua essência, de saber o que é sua “natureza”),
enquanto o existencialismo vai impor a prioridade da existência sobre a es-
sência: “fazer e, ao fazer, fazer-se e não ser nada senão o que se faz”.1 1
Jean-Paul Sartre, “Á
propos de l’existencialisme:
mise au point”, in Acyion n°
17,29 dezembro de 1944,
Existencialismo e filosofia da existência p.11.

Em outras palavras, o existencialismo não é em nenhum caso uma “doutri-


na” , um “sistema”, um “corpo” de teses muito claras, todas bem etiquetadas de
antemão. É muito mais uma “atitude filosófica” adotada por certos pensadores
num momento histórico particular, que visavam a realidade concreta mais do
que uma verdade teorética. Jean Beaufret, em Qu’est-ce que l’ Existentialisme?
(1945), diz: “Repudiando esse desvio abstrato, o existencialismo, ao contrário,
não espera a luz senão de uma prova direta”.2 2
De l’existentialisme à
Heidegger, Paris, Vrin,
1989, p.142
Notemos que o uso de termos como “existencial” {em francês existential,
do alemão existential} – (Heidegger), “existencial” {em francês existentiel} –
(Kierkegaard) ou “filosofia da existência” (Jaspers) são preferíveis ao emprego
da palavra “existencialismo”.

273
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas

A evolução do existencialismo
Poder-se-ia dizer que o existencialismo tem origem em Kierkegaard(seria sua
pré-história), que sua proto-história começa com grandes pensadores alemães
que, de Husserl e Nietzsche a Jaspers e Heidegger, encarnaram, e até mesmo
ilustraram, as “riquíssimas horas” do movimento, simultaneamente com Gabriel
Marcel na França, pois é em 1927 que saem ao mesmo tempo o Sein und Zeit (Ser
e Tempo) de Heidegger e o Jornal Métaphisique de Gabriel Marcel.

O vocábulo será usado pela primeira vez nos anos 30, primeiro num texto
italiano e depois sob a pena de Gabriel Marcel e de Karl Jaspers. Mas passa
mais ou menos despercebido na época.

Outros afirmam que ressurgiu um pouco mais tarde, em 1943, data da pu-
blicação de L’Être etle Néant, de Sartre, de novo sob a assinatura de Gabriel
Marcel. Nada pode sustentar tal hipótese. Não se encontra nenhum sinal do
emprego da palavra nessa data. Não: é em 28 de outubro de 1945 que Jean-
-Paul Sartre institui a certidão de nascimento e o atestado de batismo da pala-
vra existencialismo, ao fazer sua célebre conferência: “O existencialismo é um
humanismo”.

Notemos que fora também em outubro de 1945 que ele publicara o pri-
meiro fascículo da revista Les Temps Modernes com “a equipe” que se trans-
formará progressamente em “escola” compreendendo Albert Camus, Maurice
Merleau-Ponty, Simone de Beauvoir, Raymond Aron e alguns autores menos
célebres. Ela se desagregará na sequência: mas o existencialismo invade, nos
anos 1945 a 1960, a vida política (criação a partir de 1947 do partido político
de Sartre e David Rousset: a R.D.R.), a vida literária, o teatro, o cinema, e, evi-
dentemente, a Filosofia.

No entanto, os violentos ataques contra as posições tomadas por Sartre


multiplicaram-se tão fortemente que a moda vai mudar brutalmente nos anos
1960, sob a influência dos quatro “mosqueteiros” defensores do estruturalis-
mo: o marxista Althusser, o psicanalista Lacan, o etnólogo Lévi-strauss e, so-
bretudo, o filósofo Michel Foucault. Esse “declínio” do movimento não impedi-
rá Sartre de voltar a ser estrela em maio de 68 e continuar, até 1980, a susentar
triunfalmente posições políticas militantes avançadas. Poder-se-ia dizer que
seu desaparecimento em 1980 marcou o fim de um movimento que ele criara,
mesmo que Les Temps Modernes, Simone de Beauvoir e vários discípulos lhe
tenham sobrevivido durante alguns anos.

274
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas

Conclusão
Nascido em meados do século XIX na Dinamarca, com Kierkegaard, o exis-
tencialismo derramou-se sobre a Alemanha de 1890 a 1940, com Nietzsche,
Husserl, Jaspers e Heidegger, antes de se instalar na França de 1930 a 1960 e,
em menor escala, de 1960 a 1990. Definitivamente, o movimento tem mais
de um século de existência, e seu dirigente, Jean-Paul Sartre, dominou a cena
filosófica europeia durante perto de 50 anos. La Nausée permanece um dos
Best-sellers dos livros de bolso: rivaliza com La Peste de Camus, La Condition
Humaine de Malraux e Vol de nuit de Saint-Exupéry. No plano da história das
ideias, o existencialismo é portanto um grande movimento intelectual, com
lugar ao lado do marxismo, do estruturalismo e da psicanálise.

Quanto a prognosticar o que restará dessa corrente dentro de um século ou


dois, é sempre delicado identificar com toda a certeza o que será levado pelos
ventos da moda e essas “massas de granito” que nenhuma erosão fará desaparecer.
Há, na corrente existencialista, um “retorno ao concreto”, uma análise do sentimen-
to da angústia, um cuidado com a existência autêntica, um apelo à responsabili-
dade, um sentido da liberdade e do engajamento, uma recusa de toda a hipocrisia
e toda a “má-fé” que deveriam resistir como “pedras duras” ao fluxo e refluxo das
vogas ondeantes do pensamento contemporâneo. “Tudo passa” declara Heráclito.
Certo. Mas a corrente existencialista terá deixado na margem sólidas aluviões que
não se deixarão dispensar pelas águas turbilhonantes da história.

“Racine passará como café”, profetizava Madame de Sévigné. A despeito


dos espíritos rabugentos, cujas preocupações político-sentimentais de hora
levam a melhor sobre o julgamento objetivo do leitor distanciado, pensamos
que as figuras de Heidegger, de Jaspers, de Sartre e de Gabriel Marcel passa-
rão, como Racine, a posteridade, mesmo que, para alguns, não se trate senão
de uma série de imposturas e mistificações – a exemplo de Geordes Politzer,
que considerava o bergsonismo uma “exibição filosófica”.3 3
Georges Politzer, La Fin
d’une parade philoso-
phique, Le bergsonisme,
Os grandes pensadores existencialistas deveriam sobreviver à louca aventu- Paris, Rieder, 1929. A
obra foi publicada sob o
pseudônimo de François
ra dos dias subsequentes à Libertação (1944-1950). Pois as “consequências que Arouet (Voltaire).

contam” acabam sempre por se impor, numa espécie de consagração que as


coloca em seu merecido lugar – nesse caso, no centro do primeiro círculo do pan-
teão filosófico universal, muito perto de Platão, de Descartes, de Kant e de Hegel.

275
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas

Atividades de aplicação
1. A partir da visão de Marx sobre a sociedade, comente algumas rela-
ções da sua leitura com a realidade atual. Analise a supremacia do
poder estatal, o papel do indivíduo como ativista político, as classes
sociais etc.

2. O pensamento filosófico de Søren Kierkegaard opera-se no sentido de


valorizar a importância do existir humano, como uma questão muito
mais importante, inclusive, que o desenvolvimento das próprias ciên-
cias naturais. Nesse escopo, o filósofo destaca a importância da an-
gústia e da decisão como momentos elementares para que se opere
a passagem existencial em sentido qualitativo. Considerado o mundo
atual, qual a importância dessas concepções? Que reflexos possuem
no mundo do business?

3. Nietzsche em suas obras Além do Bem e do Mal e Gaia Ciência retrata


a existência de duas formas de moral na sociedade, uma pertencente
aos indivíduos superiores e outra aos demais; a primeira, aristocrática,
a outra, baseada no ressentimento. Além disso, em Assim Falou Zara-
tustra, expõe a importância do além-do-homem como a meta a ser al-
cançada na existência humana. Com base nesse suporte, pode-se afir-
mar que essas duas morais coexistem na sociedade contemporânea?
Qual a importância da superação do homem ordinário nesse sentido?

4. Husserl trata sobre a importância do movimento da epoché, de se co-


locar o conhecimento entre parênteses para que seja possível a análise
fidedigna do fenômeno. Acerca dessa concepção, qual a importância
de se suspender esses conhecimentos para a realidade pessoal e pro-
fissional atual?

5. O grande mérito de Heidegger é trazer a Ontologia para a existência


em geral, criando a filosofia do dasein, o ser-aí. Reflita sobre a relação
entre a Ontologia, o puro ser metafísico, e o caminho humano em sua
existência mundana e temporal.

276
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas

Gabarito
1. Embora a sociedade tenha se modificado bastante durante as últimas
décadas, o Estado, o Direito, bem como demais instituições seguem
sendo instrumentos de poder nas mãos de alguns indivíduos. Requer-
-se uma tomada de consciência mais efetiva dos cidadãos na luta por
seus direitos, o que não significa revolução violenta, tal como ocorreu
no século XX.

2. Hodiernamente, muito mais do que em períodos anteriores, a adequa-


bilidade do indivíduo com o meio, sem perder a sua subjetividade, tor-
na-se cada vez mais importante. Pode-se considerar a angústia, nesse
contexto, como um alerta do momento em que faz-se necessária uma
passagem de desenvolvimento. Contudo, sem a capacidade de deci-
são, de mudança, não bastará a angústia para que a pessoa opere as
passagens que a sua vida pede, bem como que o mundo dos negócios
também requer.

3. Há de se considerar que essa estrutura permanece na atualidade e que,


cada vez mais, o processo de globalização prorrompe a unificação cul-
tural em torno de um modelo de pessoa sob domínio. Nesse sentido, o
desenvolvimento de lideranças, com um tipo de moral superior, torna-
-se essencial, não somente para que todos caiam nessa estrutura, mas
também para que o ideal de um tipo superior de homem que possa
guiar a sociedade ao seu desenvolvimento se torne possível.

4. A orientação fenomenológica, além de buscar orientar o proceder da


ciência, é também um modo de se orientar a vida humana. Portanto,
faz-se importante diante das várias situações de vivência pelas quais o
indivíduo se confronta colocar-se entre parênteses os fatos pelos quais
surgem na existência e a busca pela identificação da essência daquele
fenômeno, para que, então, a apreciação seja verdadeira e o indivíduo
aja em conformidade com o que o momento pede.

5. O homem é um ente situado no domínio ôntico, ou seja, pressupõe


o ser puro ontológico como fundamento. O ser possui um projeto de
desenvolvimento em sua existência. Desenvolver a liberdade durante
a vida é justamente dar mais ser à própria existência.

277
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas

Referências
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_____. Nietzsche: biografia de uma tragédia. Tradução de: LUFT, Lya. São Paulo:
Geração Editorial, 2001.

278
Correntes contemporâneas
da Filosofia do Direito

Concluindo este livro, neste capítulo serão apresentadas as contribui-


ções da filosofia contemporânea ao Direito e às discussões das concepções
de Justiça. Tratar-se-á das concepções de Max Scheler, Carl Schmitt, Hans
Kelsen, John Rawls, Jurgen Habermas e, por fim, do filósofo e jurista brasilei-
ro Miguel Reale. Desse modo, serão aqui introduzidas as mais importantes
reflexões acerca do tema no pensamento atual, as quais seguem como prin-
cipal objeto de reflexão contemporaneamente.

Max Scheler
Em Visão Filosófica do Mundo é possível captar a forma de como Scheler
pensa e filosofa acerca das grandes questões da vida humana. Para Scheler,
o saber possui três níveis: um primeiro ainda ligado aos objetos, em que é
marcante o saber empírico das ciências positivas. Nesse nível o grande obje-
tivo é entender as leis que regem o mundo, porque entendendo essas leis 1
“Também a ‘pessoa’ es-
podemos captar seu funcionamento, prevendo-as e dominando-as. Um se- piritual do homem não
é uma coisa substancial
gundo nível é o saber filosófico, que se relaciona àquilo que Aristóteles cha- nem um ser com a forma
de um objeto. O homem
mava de filosofia primeira, portanto o entendimento ontológico do homem pode unir-se com essa
sua pessoa somente de
e do mundo. Por fim, um terceiro nível é a metafísica da salvação, momento uma forma ativa. Pois essa
pessoa é uma estrutura
em que o homem se liga ao cosmos e a Deus.1 monarquicamente orde-
nada de atos espirituais
que representa todas as
vezes uma autoconcen-
Esse entendimento é importante para se compreender como a filosofia tração única e individual
desse espírito infinito, um
de Scheler insere-se numa visão ampla que envolve a Antropologia, a Cos- e sempre mesmo, em que
está enraizada a estrutura
mologia e a Teologia, ou seja, o homem, o mundo e Deus. A ética de Scheler, essencial do mundo ob-
jetivo. Por analogia, en-
representada em sua cosmologia dos valores, também situa-se nessa linha tretanto, o homem, como
ser dotado de instinto e
de pensamento. vida, está também enrai-
zado no impulso divino
da ‘natureza’, em Deus.
Max Scheler foi grande adversário da ética kantiana, que teria formula- Nós experienciamos essa
unidade de raiz de todos
do apenas uma ética do ressentimento, em que se obedece a lei por dever os homens, mesmo de
tudo que é vivo, no im-
apenas, mas que nada justificaria tal formulação. A arbitrariedade de obrigar pulso divino dos grandes
movimentos de simpatia,
a obediência causa ressentimento e bloqueia o prazer e a alegria da vida. Por de amor, e em todas as
formas de sentir-se numa
só unidade com o cosmos.
tal motivo, Scheler muda o conceito fundamental da ética do dever para o Esse é o caminho ‘dioni-
síaco’ a Deus”. (SCHELER,
valor. A Ética trabalha com bens, mas os bens são bens justamente pelos va- Max. Visão Filosófica do
Mundo. p. 17.)
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito

lores. O valor seria a essência em sentido husserliano, ou seja, a qualidade por


qual a coisa é boa. Exemplos: a pintura é um bem, mas a sua beleza é valor;
assim como a relação entre lei e Justiça. Nesse sentido, Scheler busca articu-
lar uma ética dos valores, mas com os valores em seu sentido material.

Para Scheler, o valor não é algo construído intelectualmente, mas perce-


bido no cosmos dos valores que circundam a todos. “E os valores não são
2
REALE, Giovanni; ANTI- objeto de atividade teórica, senão de intuição emocional”2. O homem possui
SERI, Dario. História da
Filosofia Antiga: do Ro- uma intuição sentimental que é capaz de ver a essência dos valores, o qual
mantismo até os nossos
dias. 3.v. p. 568. constituiria uma lógica pura, a única capaz de compreender os valores como
essência. Esses valores podem inclusive ser organizados conforme uma su-
cessão hierárquica: valores sensoriais (alegria-tristeza, prazer-dor); valores da
civilização (útil-danoso); valores vitais (nobre-vulgar); valores culturais ou es-
pirituais, o qual dividem-se em valores estéticos (belo-feio); ético-jurídicos
(justo-injusto); especulativos (verdadeiro-falso); e por fim os valores religio-
sos (sagrado-profano). Desse quadro Scheler é capaz de analisar antropolo-
gicamente o homem, extraindo daqui inclusive o seu conceito de pessoa, o
qual seria:
Para Scheler, a pessoa não é sujeito que considera a natureza pragmaticamente apenas
como objeto a dominar: quase franciscanamente, a pessoa sabe se colocar na atitude
extática de abertura para as coisas. Ademais, a pessoa está originariamente em relação
com o eu-do-outro. E essa relação vai das formas mais baixas da sociabilidade ao ponto
culminante, representado pela relação de amor. A forma mais baixa de sociabilidade, que
nasce do contrato social; a ela, segue-se a comunidade vital ou nação; depois, temos a
comunidade jurídico-cultural (Estado, escola, círculo) e, por fim, a comunidade de amor, a
3
REALE, Giovanni; ANTI- Igreja.3
SERI, Dario. História da
Filosofia Antiga: do Ro-
mantismo até os nossos Scheler não somente apresentou os valores, mas também articulou crité-
dias. 3.v. p. 568.
rios para se estabelecer os graus de alturas entre eles, que seriam: os valores
são mais fortes quanto mais duradouros são; quanto menos divisíveis forem;
quando são fundamentos de outros valores; também por quanto mais pro-
funda é a satisfação provocada em nós; e pelo grau de relatividade.

Essa concepção de valores seria a sua Ética, pois como os valores não são
essências criadas teoricamente pelo homem, mas intuídas emocionalmente
de um cosmos de valores, o qual brotaria do íntimo da relação do homem
com o próximo, com a natureza, e com Deus, deveria ser o núcleo das rela-
ções em sociedade, inclusive das questões envolvendo a Justiça. Para Scheler,
a Justiça deve refletir sobre essa hierarquia de valores, bem como pelos cri-
térios dos graus, pois os problemas jurídicos são consequências dessas de-
ficiências sociais envolvendo os valores. Portanto, o relativismo de valores é
perigoso para a aplicação do Direito.

282
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito

No contexto da contemporaneidade o pensamento de Max Scheler adqui-


re ainda maior importância, devido à sua intuição da cosmologia dos valores
emanada na relação com o próximo. No mundo atual é consenso de que a
solidariedade é indispensável, pois é ela, como valor de essência intersubje-
tiva, que permite a melhor interação entre as pessoas. Na empresa, a ligação
com o outro deve se dar em todos os níveis, seja entre funcionários, entre
funcionários e chefes, entre todos e os clientes. O saber trabalhar em equipe
não é apenas habilidade técnica, mas acima de tudo entender o outro, co-
nhecer seu valor como pessoa única. Todos possuem seu valor, e esse en-
tendimento deve permear tanto a vida econômica como a vida familiar e a
própria vida em sociedade. O empreendedor que intui o valor do outro, e
sabe se relacionar de modo profundo com todos que o acompanham cer-
tamente obterá maiores resultados, pois sua equipe trabalhará como uma
sociedade de pessoas conscientes de seus valores. Na relação profissional, o
valor como conteúdo impulsiona a pessoa a oferecer mais pela organização
do que normalmente o faria.

Carl Schmitt
O conturbado século XX, cenário de duas Guerras Mundiais e outros inú-
meros conflitos bélicos em todo o mundo, que colocaram em xeque as gran-
des ideologias que perduraram na história da humanidade, resultou em um
complexo espaço de debates acerca das questões jurídicas, sociais, políticas,
econômicas. O período entre o final da Primeira Guerra e o início da Segunda
Guerra recebeu preocupação, sobretudo, acerca da condição humana. Um
dos autores que trabalhou essas indagações foi Carl Schmitt.

O objetivo principal da obra de Carl Schmitt é encontrar uma fundamen-


tação para o poder. Bittar assinala que Schmitt faz uma analogia da Teologia
com a Política, ao dizer que o milagre está para a Teologia assim como a exce-
ção está para a Política. Nesse sentido, para Schmitt o poder não se funda-
mentava em bases jurídicas, mas políticas. O âmago do poder coercitivo não
estaria na lei, mas na decisão, da qual emana toda a soberania.
De fato, soberania consiste na competência imprevisível, que é a ordem emanada com
superioridade do político sobre o jurídico, o que de certa forma determina o próprio
conteúdo do Direito que se quer ver positivado em um Estado. Antes da lei está a
decisão.4 4
BITTAR, E. C. B. Curso de
Filosofia Política, p. 238.

Não há como haver um ordenamento jurídico sem antes haver uma de-
cisão que o formule. A ordem não pode emanar de si mesma, mas de uma
283
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito

outra vontade. A necessidade de a ordem vir de uma decisão, portanto, jus-


tificaria a superioridade da Política sobre o jurídico.

Esses entendimentos ele formulou, sobretudo, após os estudos das obras


de Hobbes e Bodin, que justificam a supremacia e soberania do Estado, res-
pectivamente. Percebe-se como Schmitt não está tão preocupado em discutir
se existe uma Justiça e qual seria ela, num ordenamento jurídico, mas de onde
emana essa necessidade de se obedecer ao ordenamento. Para Schmitt, toda
lei, não importando seu conteúdo, exige obediência, uma vez que “desde
quando irrompeu da modernidade, toda legitimidade se converteu em
5
BITTAR, E. C. B. Curso de legalidade”5. Para Schmitt, portanto, a decisão define toda a Justiça e o conteú-
Filosofia Política, p. 238.
do do Direito.
Uma vez que a reflexão de Schmitt lhe autoriza a confinar todo o poder no episódio de
produção da decisão política, que consiste no desdobramento de ação de uma instituição,
e não de uma vontade, o que dá o tom e define a natureza do sistema jurídico que se tem,
a exceção passa a se tornar a regra do funcionamento do sistema jurídico, e é aí que reside
6
BITTAR, E. C. B. Curso de o decisionismo institucionalista de Schmitt.6
Filosofia Política, p. 239.

A formulação de Schmitt baseava-se muito na leitura do artigo 48 da


Constituição de Weimar, que possibilitava ao presidente, no caso de crise
no Estado, obrigar os indivíduos a praticarem determinados atos, por via da
força armada. Seria uma opção pela guarda da Constituição do Presidente
do Reich. Essa leitura permite a interpretação de que ali está contido o funda-
mento da soberania decisiva, pois se nos momentos de maior crise é permiti-
do ao presidente tornar-se um ditador comissivo, toda a construção jurídica
e política de um Estado de exceção seria justificada.

Desse modo, Schmitt critica Kelsen, afirmando que a lei não se justifica por
si mesma, nem o Direito possui fim em si mesmo. O jurídico não emana de si
mesmo, mas da ordem política, que “lhe antecede, lógica e cronologicamente”7
7
BITTAR, E. C. B. Curso de . Schmitt também demonstra a limitação das formulações kelsenianas argu-
Filosofia Política, p. 239.
mentando que muitos casos os quais o Direito precisa se manifestar não estão
prescritos em leis e códigos, mas que ainda assim precisam de uma resolução,
que vem por meio da decisão política ou institucional. “[...] o Direito é fruto das
instituições existentes e vigorantes, e não o contrário. A ordem concreta exis-
tente nas condições históricas de um povo é o que determina a formação do
8
BITTAR, E. C. B. Curso de Direito, e não o contrário”8.
Filosofia Política, p. 240.

A ideia de Política, para Schmitt, contudo, se baseia no objetivo de identi-


ficar amigos e inimigos tanto dentro como fora do Estado. Busca-se uma ho-
mogeneidade, uma unidade social, para que se anulem as hostilidades que

284
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito

podem ameaçar o funcionamento do sistema. Percebe-se como as ideias de


Schmitt refletem de modo marcante o seu período histórico, pois ressaltam a
crise social e política vivida pela Alemanha após a derrota na Primeira Guerra
Mundial. Todos os vieses políticos deveriam convergir à unidade, o que não
se torna harmonioso com os ideais democráticos muito reclamados em seu
tempo, pois este exige o pluralismo político, por exemplo.

Hans Kelsen
Tal como Carl Schmitt, Hans Kelsen também não se preocupou com a
questão de se a lei seria justa ou injusta. Para esse jusfilósofo alemão, são
distintas a justiça, a validade e a eficácia do Direito. Kelsen é responsável pelo
positivismo jurídico, mas não um positivismo em sentido ideológico, mas
apenas naquele em que o autor busca estudar o Direito como uma ciência
jurídica, autônoma em relação às demais ciências.
Kelsen [...] afirma que o que constitui o Direito é a sua validade jurídica. E acrescenta que
a norma jurídica, diferentemente de outras normas, se qualifica por sua coatividade, mas
não sustenta de modo algum que o Direito válido seja também o justo. Para Kelsen, o
problema da Justiça é problema ético, enquanto o problema jurídico é o problema da
validade das normas, se a autoridade de que emana esta ou aquela norma tinha ou não o
poder legítimo para fazê-lo; 2) se a norma não foi anulada; 3) se é ou não compatível com
as outras normas do sistema jurídico.9 9
REALE, Giovanni; ANTI-
SERI, Dario. História da
Filosofia: do Romantismo
Para Kelsen, distinguem-se os “juízos de fato” (ou descrição científica) dos até os nossos dias. 3.v. p.
909-910.
”juízos de valor”. Dessa forma, a ciência jurídica, ainda que estude normas
que implicam necessariamente valores, não pode compreender tais valores,
mas apenas as normas que estão ligadas a eles. Portanto, “se o conhecimen-
to não pode criar os valores, então a função do estudioso do Direito não é a
10
de fundamentar um ideal de Justiça”10. É necessário, para isso, delimitar o REALE, Giovanni; AN-
TISERI, Dario. História da
Direito, separá-lo da ética, que é a ciência que deve discutir a questão da Filosofia: do Romantismo
até os nossos dias. 3.v. p.
Justiça. Importante assinalar que Kelsen não elimina a Justiça do Direito, mas 909-910.

apenas entende que a Justiça não é objeto de estudo da ciência jurídica, a


qual deve se limitar ao Direito e às normas jurídicas. Kelsen não está preocu-
pado em discutir a política jurídica, mas apenas a ciência jurídica.

Percebe-se como a visão kelseniana parte da distinção kantiana entre ser


e dever-ser. A norma jurídica, para Kelsen, não se formularia a partir do prin-
cípio da causalidade, mas da imputação. Ou seja, enquanto nos fenômenos
naturais há um nexo de causalidade, ou seja, uma explicação do porquê de
um acontecimento, nas normas jurídicas existe um acontecimento ilícito que
é seguido por outro acontecimento: a sanção.
285
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito

Entretanto, precisamente, o nexo entre o ilícito e a sanção não é nexo causal entre
fenômenos naturais, que o pensamento simplesmente constata, mas muito mais uma
imputação ou atribuição – realizada pela vontade de alguém – em consequência a um
fato que, em si mesmo, não é sua causa, mas sim condição – e que o é por uma vontade o
11
REALE, Giovanni; AN- colocou como tal.11
TISERI, Dario. História da
Filosofia: do Romantismo
até os nossos dias. 3.v. p.
909-911.
Disso decorre que a norma jurídica atribui uma consequência a uma
condição, ou seja, uma sanção a um fato ilícito. Importante esclarecer que
esses ilícitos não são ilícitos em si mesmos, mas porque uma norma jurídica
assim o prescreve. Acontecimentos reprováveis não prescritos por normas
jurídicas entram no campo da moral, e não da ciência jurídica. No campo do
Direito, para uma ação ser considerada ilítica requer-se que ela seja seguida
por uma sanção. Dessa constatação decorrem duas novas situações: uma é
que cada indivíduo deve observar para não infringir a norma jurídica; outra é
quando alguém infringe a norma jurídica, outro indivíduo deve aplicar nele
uma sanção. Esse outro indivíduo é o juiz.

Não obstante, para que esse juiz seja obrigado a aplicar a sanção, exige-
-se do ordenamento jurídico uma norma anterior, que é aquela que sanciona
caso o juiz não aplique as outras sanções a quem é devido. O problema é
que nessa lógica chegaríamos à necessidade de haver sempre uma norma
anterior, que sancione quem não aplicasse as posteriores.

Contudo, não se pode retroceder ao infinito. Logo, deve haver uma norma
que dê validade a todas as outras normas jurídicas, a qual se situa na base de
todo o ordenamento jurídico. Essa primeira norma Kelsen chamou de “norma
fundamental”. Essa primeira norma não é posta, mas pressuposta. Como cada
norma procede conforme determinação de uma norma anterior, sempre aca-
baríamos retrocedendo à Constituição, a qual por sua vez decorre de Consti-
tuição anterior etc. Esse processo retornaria na história, até que se encontrasse
uma primeira vontade da qual emanaram as demais normas. Essa vontade
pode ser tanto uma medida despóstica como uma decisão por assembleia. É
esse sistema hierarquizado de normas da qual depende a validade do Direito.

A norma fundamental pode muito bem ser referida como a “fonte do Di-
reito”, pois é ela que dá validade a todo o ordenamento jurídico, antes dela
não há norma. A necessidade de uma norma depende de outra norma para
existir, culminando numa hierarquia em forma de pirâmide, está conforme
também ao seu princípio de que a ciência jurídica deve ser separada das
demais ciências. Por isso a norma fundamental deve ser uma norma, algo
que proponha autonomia ao Direito. Esse caráter confere soberania ao orde-
namento jurídico.

286
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito

A soberania é exatamente a manifestação dessa supremacia da ordem jurídica positiva de


determinado Estado-nacional. Quando este se afirma, trazendo consigo e personificando
uma ordem jurídica, em verdade, cria a incontrastabilidade de suas regras, o que define
sua condição de ente soberano, nacional e internacionalmente, na medida em que conta
12
com o seu reconhecimento seja interna, seja internacionalmente.12 BITTAR, E. C. B. Curso
de Filosofia Política. p.
248-249.
Nesse sentido, a soberania nacional implica também que existe uma
ordem jurídica internacional, pois um Estado, para ser soberano, necessita
ser reconhecido pelos demais. Para que um Estado tenha pleno poder de
autonomia para legislar, julgar e executar leis em seu território é necessário
que essa soberania seja reconhecida por outros Estados.

Esse tópico é importante, pois é aqui que Kelsen se diferencia de Carl Sch-
mitt. Como a soberania provém de um respeito ao ordenamento jurídico de
outro Estado, isso significa que a perspectiva positivista-normativista implica
ela mesma em soberania interna e externa, e não um poder político. É o sis-
tema jurídico que implica na Política em reconhecer a validade das normas, e
não a decisão de algum indivíduo ou instituição, pois essas decisões já são de-
corrências do sistema normativo. Kelsen afirma mais uma vez a necessidade
de uma teoria pura do Direito, desprovida de análises axiológicas.

Ainda assim, o pensamento kelseniano pode muito bem ser afirmado


como uma Filosofia do Direito, de caráter positivista-normativista. A ideia de
uma ciência jurídica autônoma, com objeto próprio, decorre antes de refle-
xões filosóficas que permitem tal construção, que nesse caso foram realiza-
das por Kelsen. Hans Kelsen não discute conteúdo de leis, mas sua validade,
a construção de um ordenamento jurídico. É marcante a influência de Kelsen
no direito contemporâneo, pois suas reflexões conduzem a dinâmica da
maioria dos ordenamentos jurídicos atuais.

John Rawls
John Rawls foi um contratualista do século XX que formulou uma Teoria
da Justiça, que colocava a Justiça como equidade, como um dos pilares da
construção de uma sociedade democrática para cidadãos que fossem livres
e iguais. John Rawls não somente buscou caracterizar o que é a Justiça, ou
qual a sua finalidade, mas também procurou explicar todas as etapas que
envolvem a formulação de uma concepção de Justiça, para que esta poste-
riormente pudesse nortear toda construção das estruturas componentes de
uma sociedade. Portanto, sua teoria procura explicar desde as questões mais
primordiais, como momento que precede a própria criação de uma estrutura

287
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito

básica, estrutura esta caracterizada como possuidora de todos os elementos


essenciais a uma sociedade, passando pela formulação de uma concepção
de Justiça que vise a equidade, caracterizando também as situações em que
se torna possível a existência da desobediência civil, como um meio às vezes
necessário para que se possa obter a restituição de determinado direito
violado.

Partindo da ideia de que Rawls procura desenvolver um critério para a


escolha da concepção de Justiça que seja equânime, o primeiro ponto é as-
segurar para que todas as partes envolvidas nessa escolha não possuam
nenhum tipo de parcialidade que possa vir a beneficiá-las. É nesse ponto que
entra uma das ideias basilares dentro da teoria de Rawls, a ideia da “Posição
Original”. A posição original é um estado em que as partes se encontram e
possuem um total desconhecimento das características da outra parte, bem
como de si mesmas. Em outras palavras, não sabem que doutrina religiosa
ou política, que anseios, objetivos, que condição social a outra possui, além
de desconhecer também as próprias características. Dessa forma, diminui-se
a possibilidade da prática de uma injustiça no momento da escolha da con-
13
RAWLS, John. Justicia cepção de Justiça adequada àquela sociedade13.
como equidad: mate-
riales para una teoria de
la justicia. Traducción Poderiam ser escolhidos diferentes critérios para se identificar os princí-
de Miguel Angel Ridilla.
Madrid: Tecnos. 1986. pios norteadores, como por exemplo, um conjunto de hábitos ou costumes,
uma lei natural, ou através de valores morais, porém, para Rawls somente
estando na posição original que se pode ter uma aproximação da imparcia-
lidade necessária para a escolha dos princípios norteadores, já que nela as
partes usam o que o autor chama como “véu da ignorância”, que é justamen-
te essa incapacidade de conhecer as características próprias e alheias. É im-
portante destacar que o termo “ignorância” não significa “desconhecimento”,
ou que as partes estão incapazes de formular raciocínios coerentes, mas sim
que estão impossibilitadas de perceber qualquer particularidade que possa
14
RAWLS, John. Uma afetar a decisão14.
teoria da justiça. Tradu-
ção de Almiro Pisetta e
Lenira M. R. Esteves. São
Paulo: Martins Fontes,
Encontrando-se na posição original, parte-se para a observação das dou-
1997.
trinas e filosofias existentes a fim de se encontrar aquela mais adequada para
a construção da sociedade, utilizando-se do que o autor intitula como “equi-
líbrio reflexivo”. Por equilíbrio reflexivo o autor entende a ação de procurar
“refletir” as ideias, ou seja, não tomar nada como verdadeiro ou absoluto,
buscando compreender qual o verdadeiro significado de determinado ar-

288
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito

gumento e de que maneira isto “reflete” na sociedade. As ideias de posição


original e de equilíbrio reflexivo se complementam, ou seja, não é possível
fazer a reflexão dos argumentos se o indivíduo não está na posição original,
da mesma forma que para que possa se situar na posição original é preciso
verificar e analisar os argumentos através do equilíbrio reflexivo.

Tendo então constatado os passos iniciais para a construção de uma so-


ciedade justa para cidadãos livres e iguais, observando que até mesmo na
formulação de uma estrutura básica para dar o mínimo de subsistência, é
necessário se encontrar na posição original e no equilíbrio reflexivo, passa-se
para uma nova etapa: a determinação do consenso sobreposto.

O consenso sobreposto é entendido como a habilidade de se encontrar


um consenso entre as várias doutrinas filosóficas, políticas e sociais, para que
as mesmas possam coexistir em harmonia dentro de uma sociedade. E esse
consenso é formulado de tal maneira que não seria vantajoso a nenhuma
das partes contrariá-lo, ou seja, a melhor opção seria sempre estar de acordo
com esse consenso que foi sobreposto aos outros.

Portanto, a posição original e o equilíbrio reflexivo são conceitos que


surgem para tornar justa e imparcial a escolha dos princípios norteadores
que irão delinear toda a construção da sociedade. A estrutura básica inicial,
as instituições, a economia, a política, os direitos e deveres dos cidadãos,
tudo isso será formado com base nos princípios norteadores que foram
evidenciados através da posição original e equilíbrio reflexivo. Com isso, o
autor pretende criar uma teoria da Justiça que eleva o nível de abstração do
conceito tradicional de contrato social. Em vez de um pacto social, tem-se
uma situação inicial que possui certas restrições destinadas a fomentar um
acordo sobre os princípios de Justiça. Esses princípios então servirão de guia
para que as pessoas busquem a cooperação social.

Rawls, assim como outros autores, também traz a ideia da desobediência


civil, em que os cidadãos, ao constatarem que determinada injustiça está
sendo praticada, ou que percebem que certa lei fere os princípios funda-
mentais, recorrem ao uso de meios muitas vezes ilegais, desobedecendo à
lei, para que a Justiça seja restaurada. Segundo Rawls, a desobediência civil
é um ato não violento que tem como objetivo provocar mudanças nas polí-
ticas do governo, sempre que os princípios de cooperação social entre os
cidadãos não esteja sendo respeitado15. 15
RAWLS, John. Uma
teoria da justiça.

289
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito

Habermas
16
Nascido em 18 de junho Jurgen Habermas16, considerado um dos maiores expoentes do pensamento
de 1929 em Dusseldorf.
Estudou Filosofia, História, filosófico na contemporaneidade, direciona seu pensamento à reflexão da me-
Psicologia, Economia e
Literatura alemã nas uni- todologia hermenêutica das ciências humanas, o espírito das ciências (Geis-
versidades de Göttingen,
Zurique e Bonn entre 1949 teswissenschaften). O pensador alemão procura justificar a primazia de uma ciên-
e 1954. Doutorou-se em
Bonn no ano de 1954 com cia social crítica contra a hegemonia metodológica na discussão sobre as
a tese O Aboluto na História
– um estudo sobre Filosofia
das Idades do Mundo de
ciências.17 Para sustentar essa base metodológica, o pensador preocupa-se em
Schelling. É considerado
um dos pensadores da se-
criar um fundamento ético, considerando-o essencial para que as mencionadas
gunda geração da Escola
de Frankfurt, tendo por
ciências sejam invocadas como auxiliares à administração racional humana.
influências os pensado-
res da primeira geração
como Adorno, Horkheimer Sua principal obra é a Teoria da Ação Comunicativa, onde defende a cons-
e Marcuse. (HABERMAS,
Jurgen. Sociologia. Tradu- trução da sociedade através de consensos obtidos através do discurso. Enten-
ção de: FREITAG, Barbara;
ROUANET, Sérgio Paulo. de que com a diminuição do poder das autoridades religiosas e tradicionais no
São Paulo: Ática, 1993. p.
9-10. presente século, estar-se-ia entrando em um perfeito ambiente para o desen-
volvimento desse espaço de discussões isento de coerções e de entidades que
17
INGRAM, David. Ha-
bermas e a Dialética
personalizassem a interpretação vigente dos fenômenos. O pensador conside-
da Razão. Tradução de
Sérgio Bath. 2.ed. Brasília:
ra que há agir comunicativo quando: “os planos de ações dos atores implica-
UnB, 1987. p. 21.
dos não se coordenam através de um cálculo egocêntrico de resultados, senão
18
HABERMAS, Jurgen. mediante atos de entendimento”18, quando as partes envolvidas no discurso
Teoría de la acción co-
municativa, II: crítica de estão abertas a através do discurso firmarem um entendimento.
la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. 2v.
p. 367.
Nesse sentido, uma teoria social voltada aos potenciais de reflexão e crí-
tica imersos nas interações linguísticas deve assumir a tarefa de uma comu-
nicação isenta de coerções em diversos âmbitos da vida social, bem como
analisar a natureza de seus principais entraves. Fala-se assim na colonização
do mundo-da-vida, o próprio solo da ação comunicativa, pelo sistema, en-
tendendo-se essa categoria, a Lebenswelt, no sentido husserliano do termo.
Essa invasão é protagonizada pela monetarização e burocratização da vida
social, onde as relações interpessoais passam a ser coordenadas não pelo en-
tendimento recíproco dos participantes, mas por meios padronizantes e lin-
guisticamente empobrecidos do dinheiro e do controle burocrático; vários
são os resultados dessa força atuante como a perda de sentido cultural e a ‘‘a
nomia social’, a perda da validade das normas sociais.

A racionalidade comunicativa é a utilização comunicativa do saber imbuí-


do de alguma proposição em ato de fala. Disso decorre que somente pode-
-se atribuir o termo “racional” a todo ato de fala criticável, pois somente se
for possível criticar a coisa pode-se considerar que tal conexão se apresenta
implicada conceitualmente.

290
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito

O pensamento de Habermas direciona-se à fundamentação de uma ética


deontológica, uma ética dos deveres, com base no pensamento de Imma-
nuel Kant. É para lograr êxito nesse intento que sua teoria é alicerçada na
importância da linguagem, considerada pragmática e universal, dando-se a
apreensão de um objeto através dela. Opera-se essa vinculação principal-
mente a partir da chamada virada linguística em que ele acrescenta à lingua-
gem, além da dimensão sintática e semântica um terceiro aspecto, a dimen-
são pragmática desta, com isso torna-se possível, através de uma Filosofia da
Linguagem, acessar as questões morais.

Se a linguagem é essencial na formulação do pensamento humano,


também o será quando se considerar o momento em que o indivíduo usa
de sua razão para buscar encontrar a melhor conduta para si, ou seja, a Ética.
Habermas propõe que tanto a correção de normas morais quanto a verdade
de proposições descritivas se estabelecem no discurso, não estando vincu-
lada, portanto, a um princípio universal. A validade das proposições só pode
passar pela prova discursivamente. Após isso opera-se o princípio de univer-
salização, que é a regra do discurso, envolvendo as ideias de aceitação geral
e não coativa daquele argumento, o princípio de universalização é conside-
rado a regra do discurso.
19
Além da Ética, o Direito também deve ser encarado sob a perspectiva da MOREIRA, Luiz. Funda-
mentação do Direito em
Habermas. Belo Horizon-
razão comunicativa. Conforme Luiz Moreira, esse é o modo como o Direito se te: Mandamentos; Fortli-
vros, 1999. p. 155.
institucionaliza, através de um procedimento emanado da relação de com-
20
plementaridade entre direitos humanos e soberania popular dos cidadãos; „[...] eine Rechtsordnung
kann nur legitim sein, wenn
esse procedimento permite ao Direito estabelecer-se como normativo.19 sie Moralischen Grundsät-
zen nicht widerspricht“.
(HABERMAS, Jurgen.
Faktizität und Geltung.
O Direito possui uma neutralidade deontológica, não havendo, portanto, Beitrage zur Diskursthe-
orie des Rechts und des
a subordinação do direito positivo ao direito natural. Através dessa neutrali- demokratischen Rechtss-
taats. 3.Aufl. Frankfurt am
dade que Habermas constrói o sistema jurídico, estabilizando a autonomia Main: Suhrkamp, 1993. p.
137. [tradução livre.])
privada e pública através do procedimento administrativo. Na busca por um
critério de validade ao ordenamento jurídico, Habermas encontra-o na mo- 21
“À luz da teorias do
discurso normas morais
ralidade, esta garantirá a validade das normas jurídicas positivas. Conforme válidas (gultig) são ‘corre-
tas’ (richtig) no sentido de
o autor, “uma ordem jurídica somente pode ser legítima se ela não contrariar justas (gerecht). Normas
jurídicas válidas estão
princípios morais”20. Contudo, isso não significa uma subordinação das afinadas com normas
morais” (HABERMAS,
normas jurídicas às morais, ambas coexistem numa correlação complemen- Jurgen. Direito Democra-
cia: entre facticidade e va-
tar recíproca.21 lidade. Tradução de Flávio
Beno Siebeneichler. Rio de
Janeiro: Tempo brasileiro,
1997. 1v. p. 196.)
A normatividade de um ordenamento jurídico somente ocorrerá com a
incorporação neste da razão comunicativa; esta passa a substituir a razão
prática no plano da fundamentação do Direito.
291
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito

Quanto à manutenção do ordenamento jurídico, esta é operada através


dos cidadãos, que são os produtores das leis. Somente quando o Direito
emanar da vontade do povo ele terá sido legítimo e tanto mais legítimo será
quanto mais preservar o espaço de liberdade privada. Quando as partes en-
volvidas não tiverem sua autonomia e liberdade preservadas as prescrições
22
MOREIRA, Luiz. Funda- do Direito não poderão ser consideradas válidas.22
mentação do Direito em
Habermas. p. 164.
Além disso, a produção discursiva da vontade democrática dos cidadãos
exige um processo de institucionalização, após institucionalizados, devem
ser afastados aqueles procedimentos injustos, posto que a manutenção
desse postulado no sistema não caracterizaria o Direito, mas sim o arbítrio, a
violência. Assim, conclui-se que não basta o ato legislativo para se gerar uma
norma jurídica, esta deve ser reconhecida, pois é a vontade discursiva dos
cidadãos que dá validade às leis.

Conforme Habermas, nessa relação há a complementaridade entre Direi-


to e Moral, posto que o Direito, sendo reconhecido por todos, diminui o peso
da responsabilidade do indivíduo para a formação do juízo moral próprio.
Nesse sentido:
Sob o ponto de vista da complementaridade entre Direito e Moral, o processo de legislação
parlamentar, a prática de decisão judicial institucionalizada, bem como o tratamento
profissional de uma dogmática jurídica, que sistematiza decisões e concretiza regras,
significam um alívio para o indivíduo, que não precisa carregar o peso cognitivo da
23
HABERMAS, Jurgen. formação do juízo moral próprio.23
Direito e Democracia:
entre facticidade e valida-
de. p. 151. Desse modo, o Direito auxilia o indivíduo na sua conduta, retira o fardo
do homem de por si só descobrir como agir bem, posto que o próprio orde-
namento já apresenta orientações sobre a conduta prática. Por outro lado,
isso é possível pelo reconhecimento daquele ordenamento pelo indivíduo,
por ser expressão de sua vontade aliada à dos demais cidadãos. Essas são as
principais considerações acerca do pensamento de Habermas e sua relação
com o Direito.

Miguel Reale
O jurista e filósofo brasileiro Miguel Reale é considerado um dos grandes
nomes do pensamento jurídico contemporâneo; com sua teoria tridimen-
sional do Direito o pensador marca a superação do positivismo jurídico na
esfera nacional. Sua produção científica e filosófica repercutiu no Brasil, na
América Latina e na Europa.

292
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito

Miguel Reale foi fortemente influenciado pelas concepções filosóficas de


Edmund Husserl buscando, através do método fenomenológico, superar o
problema da crise das ciências no âmbito do Direito. A partir dessa influência
busca lançar as bases da teoria do conhecimento em termos de uma Ontog-
24
noseologia, como o fez em Experiência e Cultura24 e a partir desses elementos REALE, Miguel. Expe-
riência e Cultura. 2.ed.
parte à busca da concepção de Direito que seja conforme ao mundo-da-vi- Campinas:
2000.
Bookseller,

da, na acepção husserliana.25 25


MIGUEL Reale na UnB.
Brasília: UnB, 1981. Cole-
ção Itinerários. p. 163.
O espírito de inovação do pensador, baseado na Fenomenologia, na
busca pela superação das influências do pensamento kantiano no Direito
pode ser colhido no seguinte fragmento:
A razão no Direito não é, pois a razão formalizada e estática de Kant, mas é uma“razão axiológica
e existencial”que se desdobra através do processo histórico. É uma razão que, de certa maneira,
reproduz, sob certo ângulo, aquilo que Hegel chamava o universal concreto – expressão essa
que levou a tantas interpretações equívocas. Mas o logos do Direito, que se põe na norma
jurídica, consoante tenho procurado explicar em estudos mais recentes, está em constante
vinculação com o substrato da vida comum, com a vida corrente, com o embasamento do viver
espontâneo E. Husserl denomina Lebenswelt (mundo-da-vida). É este que alimenta o conteúdo
interpretável da “regula juris” no decorrer da sua duração histórica.26 26
MIGUEL Reale na
UnB. p. 76.

Em Fundamentos do Direito27 o autor apresenta um panorama por todas 27


REALE, Miguel. Funda-
mentos do Direito. 3.ed.
as concepções de Direito desenvolvidas durante a evolução da história do fac simile da 2.ed. rev. São
Paulo: Revista dos Tribu-
pensamento moderno e contemporâneo, partindo da concepção de Direito nais, 1998.

como pura categoria racional até a aproximação à sua teoria destacando


quais os pontos onde cada teoria falhava ao buscar identificar o conceito de
Direito. Logo ao final o filósofo traz sua concepção do Direito, a partir da re-
lação entre ser e dever ser, o sein und sollen do pensamento de Hans Kelsen.
Conforme Reale, Kelsen reduz o dever ser à normatividade puramente lógica,
Miguel Reale, contrariamente, propõe ligar o dever ser à ideia de fim, ou valor,
através da Filosofia do Direito. O ser, nesse caso, estaria ligado à ideia de su-
cessão de ordem causal, relações estabelecidas segundo a lei de causalidade
28
(relação entre causa e efeito).28 REALE, Miguel. Fun-
damentos do Direito.
p. 300.
Os fenômenos do mundo físico pertencem à esfera do Sein, onde por mais que
uma coisa material possa ser empregada para certo fim, esta não pode possuir
consciência desse fim, não podendo ser reduzido a ela o problema do valor. O
mundo do ser, por conseguinte, é o mundo governado por um sistema de relações
constantes que constituem as leis e implicam a aceitação de um postulado deter-
minista como condição do seu conhecimento. O dever ser, contrariamente, expri-
me sempre um imperativo, uma norma que pode ou não ser seguida, mas que, se
seguida, realiza um valor, se desobedecida, nega um valor. Para que ocorra a liga-
ção entre ambos os conceitos, Reale acrescenta uma terceira categoria, a cultura.29

293
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito

29
REALE, Miguel. Fun- O Direito somente pode ser compreendido como a síntese entre ser e dever
damentos do Direito. p.
301, 302. ser, motivo pelo qual a conclusão dessa obra é que o Direito é uma rea-
lidade bidimensional, com um substrato sociológico e uma forma técnico
jurídica: “Não é, pois, puro fato, nem pura norma, mas é o fato social na forma
que lhe dá uma norma racionalmente promulgada por uma autoridade com-
30
REALE, Miguel. Fun- petente segundo uma ordem de valores”30.
damentos do Direito. p.
302.
Reale assevera que não se pode resolver o problema do fundamento da
obrigatoriedade das normas jurídicas fazendo-as descer de uma norma pri-
mária hipotética posta pelo jurista, como propôs Hans Kelsen, nem conside-
rar o Direito como um dado espontâneo da realidade social, sem a interfe-
rência construtiva e ordenadora da razão. Ademais, não basta um ato
legislativo perfeito para considerar-se como plenamente válido um coman-
do normativo, para tanto há que se considerar não somente sua validade
formal (ter sido devidamente aprovado por um órgão legislativo competen-
te, exatamente do modo como a Lei preceitua), mas também a eficácia da
norma e a validade ética. Vislumbra-se assim a manifestação do Direito como
integração entre fato-valor-norma, correspondendo à validade social (eficá-
31
REALE, Miguel. Fun-
damentos do Direito. p. cia), à validade ética (fundamento) e à validade técnico-jurídica (vigência).31
315.

Deste modo manifesta-se o filósofo:


Realizar o Direito é, pelo dito, realizar a sociedade como comunidade concreta, a qual não
se reduz a um conglomerado fortuito de indivíduos, mas é uma ordem de cooperação e
de coexistência, uma comunhão de fins, com os quais é mister que se conciliem fins
irrenunciáveis do homem como pessoa, ou seja, como ente que tem consciência de ser o
autor de suas ações, de valer como centro axiológico autônomo, o que só será possível
32
REALE, Miguel. Filoso- com igual reconhecimento da personalidade alheia.32
fia do Direito. 20.ed. São
Paulo: Saraiva, 2002.p.
706. Pode-se compreender a teoria tridimensional do Direito de Reale sob os
seguintes prismas: primeiramente, fato, valor e norma, que estão sempre pre-
sentes e correlacionados em qualquer expressão da vida jurídica, ou seja,
trata-se de um estudo uno, e não cabe ao filósofo estudar os valores e ao
sociólogo os fatos, restando ao jurista somente a norma, conforme propu-
nham algumas correntes; além disso, a correlação entre os três elementos é
de natureza funcional e dialética, da interação entre fato e valor há como
33
REALE, Miguel. Teoria resultado o momento normativo.33
Tridimensional do Direi-
to. 5.ed. rev. e reestr. São
Paulo: Saraiva, 1994. p. 57. A partir da concepção tridimensional do Direito é possível resolver ques-
tões como a de por que uma mesma norma de Direito, sem que tenha sofri-
do qualquer alteração adquire significados diversos com o passar dos anos,

294
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito

por obra da doutrina34 e da jurisprudência35. O sentido estimativo autêntico 34


Chamam-se de doutrina
as obras escritas por pensa-
da norma é dado pela estimativa dos fatos, nas circunstâncias em que o in- dores do Direito interpre-
tando a área do Direito por
térprete se encontra.36 ele estudada, bem como
ordenação vigente sobre
essa mesma área.
Encontrado o fundamento do Direito, Miguel Reale também considera 35
Nesse sentido, o corpo
as questões relativas à ideia de Justiça, reafirmando as concepções anterio- de decisões reiteradas
tomadas pelos tribunais
res, especialmente a noção de Justiça Distributiva e Corretiva elaboradas por sobre determinada ma-
téria, apresentando em
Aristóteles, bem como referindo-se a uma outra categoria de Justiça,a Justi- muitos casos interpreta-
ção inovadora acerca do
preceito legal.
ça Geral, quando diz:
36
REALE, Miguel. Filoso-
fia do Direito. p. 583.
Há milênios que a humanidade procura se achegar à mais alta expressão da Justiça,
que não é a que se realiza só com o dar a cada um o que é seu, ou com o tratamento
dos cidadãos na proporção de seus méritos, mas também com a constituição de uma
ordem social na qual cada homem saiba se dedicar ao bem comum sem exigir retribuição
proporcional à sua obra.37 37
REALE, Miguel. Fun-
damentos do Direito.
p. 311.
Manifesta que essa última forma de Justiça já havia sido antecipada pelos
pitagóricos e estudada por Aristóteles, São Tomás e os mestres que os su-
cederam. A Justiça geral representaria a superação e complementação da
Justiça comutativa e distributiva, revelando o mais alto grau de atualização
das virtudes da pessoa.38 38
REALE, Miguel. Fun-
damentos do Direito.
p. 311.
O bem comum é entendido como objeto mais alto da virtude Justiça, re-
presentado por uma ordem proporcional de bens em sociedade. Assim, o
Direito não tem a finalidade exclusiva de realizar a coexistência das liberda-
des individuais, mas também alcançar a “coexistência e a harmonia do bem
de cada um com o bem de todos”39. 39
REALE, Miguel. Fun-
damentos do Direito.
p. 311.
Com base nas considerações sobre a Justiça em Miguel Reale, pode-se
concluir que o Direito in concreto, somente poderá se realizar enquanto Di-
reito justo, se estiver em contato com a realidade da sociedade que regula,
e com os fins que a esta foram propostos. Valor, fato e norma possuem uma
força pedagógica, geram o aprimoramento da vida em sociedade. Sua intera-
ção possibilita o desenvolvimento de uma sociedade em direção a uma con-
dição axiológica superior. Para que essa proposta se torne realidade, aqueles
que produzem o Direito e o aplicam, o legislador, o jurista, os agentes públi-
cos e a própria sociedade devem se responsabilizar, assumir o compromisso
de buscar a perfeita integração entre esses três termos. Esse é o espírito da
Teoria Tridimensional do Direito.

295
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito

Ampliando seus conhecimentos

Vigência, eficácia e fundamento


(REALE, 2005, p. 14-22)

[...]

5. A necessária complementaridade das pesquisas do filósofo, do sociólogo e


do jurista revela-se, de maneira bem marcante, quando se estuda o problema da
validade do direito, questão que, no dizer colorido de Max Ernst Mayer, esvoaça,
como um pássaro assustado, por todos os quadrantes do pensamento jurídico.

Para empregarmos uma expressão popular, densa de significado, a primei-


ra impressão que nos dá a lei é de algo feito “para valer”, isto é, de uma ordem
ou comando emanado de uma autoridade superior. Basta, porém, imaginar
uma pessoa na situação concreta de destinatário do chamado “comando
legal” para perceber-se quão complexo é o problema da validade do Direi-
to. Há, em primeiro lugar, uma pergunta quanto à obrigatoriedade de uma
norma jurídica para todos, em geral, e para determinada pessoa em particular,
o que se desdobra em uma série de outras perguntas sobre a competência do
órgão que elaborou o modelo jurídico, a sua estrutura e o seu alcance. Além
desse plano de caráter formal, surge um outro grupo de questões, quanto à
conversão efetiva da regra de Direito em momento de vida social, isto é, no
tocante às condições do real cumprimento dos preceitos por parte dos conso-
ciados; e, finalmente, há uma terceira ordem de dificuldades, que consiste na
indagação dos títulos éticos dos imperativos jurídicos, na Justiça ou injustiça
do comportamento exigido, ou seja, de sua legitimidade.

Eis aí, numa percepção sumária e elementar, os três fios com que é tecido o
discurso da validade do Direito, em termos de vigência ou de obrigatoriedade
formal dos preceitos jurídicos; de eficácia ou da efetiva correspondência social
ao seu conteúdo; e de fundamento, ou dos valores capazes de legitimá-los
numa sociedade de homens livres.

Enunciada desse modo a questão, parecem transparentes os nexos que


ligam entre si os três problemas numa estrutura tridimensional, mas, por um
completo de motivos, uns de natureza histórica, outros dependentes das incli-
nações intelectuais dos investigadores, nem sempre prevalece a compreensão
unitária dos fatores que compõem a realidade jurídica: não raro orientam-se

296
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito

os espíritos no sentido do primado ou da exclusividade de uma das perspecti-


vas acima discriminadas, surgindo, assim, soluções unilaterais ou setorizadas1. 1
Sobre as que denomino
“concepções unilaterais
do Direito”, v. minha Filo-
Impõe-se reconhecer que houve plausíveis razões históricas para que, no sofia do Direito, cit., Caps.
XXXI-XXXIII.
século passado, por exemplo, predominasse a imagem do Direito com base
na certeza objetiva da lei. É que as estruturas jurídicas do estado de direito,
modelado sob o influxo do individualismo liberal dominante na cultura bur-
guesa, cujos valores se impunham como expressão natural de toda uma época
histórica, correspondiam, consoante crença generalizada, às necessidades e
tendências da sociedade oitocentista. Os estatutos constitucionais vigentes
nos países de maior densidade cultural, tanto na Europa como na América,
bem como os códigos e os sistemas jurídicos privados, fundados nos princí-
pios da liberdade política e da autonomia da vontade, pareciam ser a imagem
fiel da realidade social a que se destinavam, muito embora nela já estivessem
fermentado os motivos que iriam determinar, na presente centúria, o ciclo de
crises de estrutura em que ainda se debatem tanto o Direito como o Estado.

Dominando entre os juristas a convicção de uma correspondência essen-


cial entre a realidade socioeconômica e os modelos jurídicos consagrado nas
leis, era natural que o problema da validade fosse posto em termos de valida-
de formal ou de vigência, desdobrando-se no estudo dos requisitos da obri-
gatoriedade dos preceitos, desde os reclamados para a constituição regular
dos legiferantes, até o processo requerido para a formulação de dispositivos
que, graças à certeza objetiva de seus enunciados, representassem uma ga-
rantia aos direitos fundamentais dos cidadãos. Nem se pode dizer que fosse
ilusória a correspondência entre a lei e as relações sociais então disciplinadas.
O culto à lei, com o ciumento apego à independência das funções legislativas
e ao princípio da separação dos poderes; a redução do ato interpretativo à
mera explicitação do significado imanente ao ato legislativo; a subordinação
do juiz à suposta intenção do legislador; a atenção dedicada ao rigor formal
dos textos, aliando-se a prudência do jurista à arte dos filólogos, tudo revelava
o status de uma sociedade convicta da eficácia e da Justiça de suas opções
normativas. No Brasil, então, como alhures, chegou a vingar um verdadeiro
parnasianismo jurídico, que resplende na excelência verbal da Constituição
de 1891, e se projeta século XX adentro, até às polêmicas travadas sobre o
Código Civil de 1916, quando maior repercussão tiveram as disputas dos gra-
máticos do que as divergências dos jurisconsultos.

297
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito

Como se vê, a subordinação do Direito ao ângulo da vigência não nascia


de um propósito abstrato, como às vezes se declara, incorrendo-se no anacro-
nismo de julgar-se o passado segundo a escala de valores do nosso tempo,
mas estava em consonância com o espírito e os standards estimativos da so-
ciedade da época. Se não fora assim, os mestres da Escola de Exegese e da
“Analytical School”, assim como da Pandetística germânica, não teriam podido
elaborar, com tanta penetração e rigor de análise, as categorias e os institu-
tos jurídicos que consolidaram a Ciência Jurídica moderna, emancipando-a
do Direito Romano, sem romper as raízes que prendem a cultura ocidental
ao Corpus Iuris, como um filho que põe família própria, mantendo-se fiel as
suas origens. A hoje tão criticada Jurisprudência dos Conceitos deixou-nos
um legado do mais alto alcance, que é o sentido normativo e sistemático do
Direito, compreendido como lucidus ordo.

O erro foi considerar-se imutável e intangível um sistema jurídico-politico


que, como se sabe, estava prestes a ser superado, sob o impacto de profun-
das inovações operadas na ciência e na tecnologia, dando lugar a conhecidos
conflitos sociais e ideológicos. Antes mesmo, porém, que ocorresse a ruptura
das vigas mestras do Estado de Direito de tipo individualista, para a laboriosa
modelagem de um novo Estado de Direito fundado na justiça social, houve
clara percepção, por parte dos juristas, de filósofos e de sociólogos, da neces-
sidade de abandonar soluções estereotipadas, incompatíveis com uma socie-
dade que parecia disposta a correr o risco, ainda não superado, de comprome-
ter a liberdade individual em prol dos valores da igualdade.

É claro que, nessa procura de novos caminhos, visado a atingir o direito


concreto, ao qual já me referi em páginas anteriores, o problema da efetivi-
dade ou da eficácia assumiu posição de primeiro plano, passando os juristas
a se preocupar com soluções forjadas, ao calor da experiência social, ainda
que com o sacrifício dos valores da certeza e da segurança. Foi essa, aliás, a
trajetória dramática percorrida por Jhering, que, após haver erguido a Juris-
prudência Conceitual a cumes jamais atingidos, proclamou, corajosamente,
a precariedade de seus esquematismos, abrindo caminhos nervosos para a
2
LARENZ, Methoden-
lehre der rechtswissens- Jurisprudência dos Interesses2.
chaft. Berlim: 1960. Cap.
III, §2. (Na tradução cas-
telhana de Enrique Gim- Mas a trilha da eficácia não seria reta e sem tropeços, mas antes perturbada
bernat Ordeig, Barcelona,
1966, p. 59 e segs.) pela tentação dos desvios e dos descaminhos, que fizeram e ainda fazem es-
quecer aquela via mais segura que, partindo da já citada Jurisprudência dos In-
teresses, tende para a solução mais compreensiva da jurisprudência dos valores.

298
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito

6. Digo que houve a tentação dos descaminhos por duas razões funda-
mentais. Em primeiro lugar, houve juristas que, desenganados das soluções
de ordem intelectiva, recorreram às vias da intuição emocional, esperando
captar, num ato de identificação afetiva, os jus vivens, descendo até às fontes
primordiais da juridicidade. Em alguns autores, a predileção pelo Direito es-
pontâneo, ainda não ordenado em fórmulas intelectuais, significou o aban-
dono do patrimônio, mais que bimilenar, de objetividade e de prudência que
é o apanágio do Direito, como a mais antiga e madura das ciências sociais3. Tal 3
Sobre as várias formas
de intuicionismo jurídico,
sedução pelo Direito em estado nascente, na imediatidade incerta dos dese- v. Miguel Reale, Funda-
mentos do Direito, 2. ed.
jos e dos impulsos, significava como que uma forma de simbolismo jurídico, São Paulo, 1972, p. 23 e
seguintes.
contraposto ao parnasianismo de alguns corifeus da Escola de Exegese, o que
não deve surpreender, pois a história das ideias jurídicas, como expressão de
uma das dimensões essenciais da vida humana, obedece ao ritmo da história
da arte e da literatura, tendo havido juristas românticos e realistas, simbolistas
e neoclássicos4. 4
Como exemplos de pes-
quisas sob esse ângulo,
v. Julien Bonecase, Hu-
Em linha paralela, outra encruzilhada se abriu àqueles que, deslumbrados manisme, Classicisme, Ro-
mantisme dans La Vie Du
Droit, Paris, 1920, e Science
com os progressos das ciências naturais, conceberam o plano de chegar à efe- du Droit et Romantisme,
Paris, 1928; Louis Bourgés,
tividade do Direito através do método indutivo, nos moldes do que ocorria na Le Romantisme Juridique,
Paris, 1922.
esfera das investigações físicas e biológicas. No fundo, a questão se resumia no
programa já enunciado por Augusto Comte ao vaticinar a substituição da “me-
tafísica dos fazedores de leis” pela “ciência positiva dos descobridores de leis”.

Foi essa a direção seguida por todas as formas de sociologismo jurídico,


isto é, pelos naturalistas e realistas do Direito, que cuidaram e ainda cuidam
ser possível e imprescindível formar juristas-sociólogos, destinados à análise
do fenômeno jurídico segundo seus nexos de causalidade ou de funcionalida- 5
Sobre o “Sociologismo
de, numa “pura descrição dos dados jurídicos”, ad instar do que ocorre na So- jurídico”, cf. minha Filo-
sofia do Direito, cit., Cap.
ciologia. A essa luz, Direito só pode ser o Direito em sua eficácia social, do qual XXXI, onde focalizo espe-
cialmente a posição de
as regras jurídicas seriam signos, como sínteses explicativas de uma classe de Léon Duguit, cujas ideias
já continham implícito o
superamento do empiris-
resultados cientificamente previsíveis5. mo sociológico no sentido
da tridimensionalidade.

Nem faltaram, é claro, soluções intermédias justapondo, paradoxalmen- 6


Em última análise, todo
naturalismo jurídico culmi-
te, o intuicionismo emocional às pesquisas científico-positivas, assim como na na apologia do poder.
O exemplo soviético é
também não escassearam teorias que, após reduzirem todo o Direito aos típico, com a redução dos
direitos às decisões do
fatos sociais, inadvertidamente se apegaram ao fato do poder, fazendo, desse Estado, como expressão
dos interesse da “classe
modo, ressurgir, embora sob a forma de um pretenso decisionismo de base operária dominante”, fican-
do transferido para futuro
incerto o desaparecimento
científica, a “criação” do Direito que se pretendera superar.6 do Estado, profetizado por
Marx.

299
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito

O mais grave é que, nessa conjuntura, filósofos do Direito houve e há que


assumem uma atitude de abdicação ou renúncia, contentando-se com a Teoria
da Justiça, isto é, com o estudo do fundamento do Direito, transferindo para o
jurista e o sociólogo, respectivamente, a pesquisa da vigência e da eficácia.

7. Pois bem, é nesse amplo contexto histórico que se situam as diversas


formas de tridimensionalismo jurídico, infensos a interpretações setorizadas
ou unilaterais da experiência jurídica, a soluções, em suma, que impliquem a
desarticulação de uma estrutura, fora da qual os conceitos de vigência, eficácia
7
Sobre a noção de es-
trutura e correlação de e fundamento resultariam mutilados7.
seus elementos, v. O Di-
reito como Experiência, cit.,
Ensaio VII, Lições prelimi- Até mesmo Hans Kelsen, com o seu propósito de preservar a Ciência do
nares de Direito, cit., Cap.
XV, e Estudos de Filosofia Direito das indébitas intromissões de sociólogos, psicólogos, biólogos, eco-
e Ciência do Direito, cit., p.
26 e seguintes. nomistas etc., abriu caminho para uma nova compreensão integral do Direito,
não só por ser o seu normativismo bem distinto do “legalismo” da Escola da
Exegese, mas também em virtude de haver uma tridimensionalidade implíci-
8
Quanto a esse ponto, v.
infra, Cap.II, §5, p. 38.
ta na colocação da Teoria Pura do Direito8.

O certo é que se nota, sobretudo a partir do segundo após-guerra, uma


generalizada aspiração no sentido da compreensão global e unitária dos
problemas jurídicos, abandonadas as predileções reducionistas que levam a
pseudototalizações.

No tocante ao assunto ora examinado, esse desejo de integração de pers-


pectivas torna-se cada vez mais acentuado, dele compartilhando jusfilósofos,
como Norberto Bobbio, que, como veremos, aceita a tridimensionalidade
apenas com objetivos metodológicos de discriminação de campos de pesqui-
sa. Declara o citado representante do neopositivismo jurídico ter, em geral,
desconfiança das teorias reducionistas. No caso particular do problema da va-
lidade do Direito, considera que os três critérios possíveis de validez, o mate-
rial, o formal, e o empírico (expressões que, em última análise, correspondem
ao que neste livro denomino, respectivamente, fundamento, vigência e eficá-
cia, que me parecem mais adequadas ao assunto) muitas vezes se integram
ou são adoperados conjuntamente, apesar de se manterem sempre distin-
tos e poderem ser aplicados ora um, ora outro, segundo diversas situações.
Bobbio adverte, com razão, que o problema da validade não consiste em
9
Bobbio, em resenha
à obra de Ruggero Me-
preferir, entre vários critérios propostos, precisando os casos e as vicissitudes
neghelli, Il Problema
dell’Effettivitá nella Teoria
de seu emprego, total ou parcial, cumulativo ou alternativo, concorrente ou
della Validitá Giuridica,
Pádua, 1964, na Rivista di
prevalecente, igual ou privilegiado9.
Diritto Civile, 1966, n.º 6, p.
588 e seguintes.

300
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito

Pode dizer-se que essa maneira de focalizar a matéria da validez prende-se,


como veremos no capítulo seguinte, a uma concepção tridimensional genéri-
ca, que nos brinda uma parte apenas da verdade. A meu ver, vigência, eficácia
e fundamento são qualidades inerentes a todas as formas de experiência jurí-
dica, muito embora prevaleça mais esta ou aquela, segundo as circunstâncias,
sem que se possa partir o nexo que as vincula ao todo, como é próprio da
estrutura do Direito.

É, efetivamente, no concernente ao problema da validez que se opera o


“divortium aquarum” das correntes tridimensionais, que, assim como podem
dar aos conceitos de fundamento, eficácia e vigência uma acepção de cunho
epistemológico-operacional, à maneira de Bobbio, podem contrapô-los uns
aos outros numa insuperável antinomia, consoante resulta da doutrina pio-
neira de Radbruch, ou discriminá-los segundo irredutíveis perspectivas, à
maneira de Garcia Máynez, mas podem também – e é via que se me afigura
aconselhável – correlacioná-los segundo uma compreensão dialética de com-
10
plementaridade10. Sobre a posição de Ra-
dbruch e Garcia Máynez,
v. a bibliografia indicada
Tudo isso está a demonstrar como a pesquisa filosófica, penetrando no no capítulo seguinte, nas
notas 1 e 30. Penetrantes
âmago da validez formal, anima e fecunda, dando-lhe um novo sentido de são as observações de
Hans Welzel no opúsculo
integralidade e concreção, a Ciência Dogmática do Direito, colaborando com An den gernzen dês Rechts
– Die Frage nach der Re-
chtsgeltung, Colônia.
os juristas positivos em sua difícil e árdua tarefa de determinar e sistematizar (REALE, Miguel. Teoria
Tridimensional do Direi-
as categorias jurídicas por um mundo em mudança. to. 5. ed. rev. e reestrutur.
São Paulo: Saraiva, 2005.
p. 14-22.)

Atividades de aplicação
1. Comente algumas diferenças e semelhanças entre os pensamentos de
Carl Schmitt e Hans Kelsen, partindo do pressuposto que um privilegia
o político e outro o jurídico.

2. Reflita sobre a importância das questões trazidas por Max Scheler para
a atualidade.

3. O autor traz a ideia de que, para que haja um acordo justo, é necessá-
rio que as partes se valham do “ véu da ignorância”, situação na qual as
partes possuem desconhecimento sobre as características individuais,
tanto próprias como da outra parte. Levando esse conceito para a prá-
tica, é de fato viável a possibilidade de se formular acordos utilizando
o “véu da ignorância” do autor? Escolha uma situação (acordo entre
301
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito

países, transações financeiras entre empresas etc.) e demonstre se se-


ria possível ou impossível, justificando sua resposta.

4. A filosofia de Jurgen Habermas é muito influenciada pela Filosofia da


Linguagem, centrando na concepção de ação comunicativa a maioria
de seus postulados, até mesmo em relação ao Direito. Acerca disso,
qual a importância da comunicação no mundo contemporâneo? Que
relação pode ser feita entre ela e o Direito no mundo do business?

5. Miguel Reale com sua concepção tridimensionalista do Direito conclui


que ideais como o de uma justiça geral, bem como a realização do Direi-
to em uma sociedade, somente serão possíveis com a interação entre a
produção normativa, os valores, os ideais para essa sociedade e a cultu-
ra em que se encontra. No plano da empresa, de que modo poder-se-ia
considerar essa concepção da organização de uma sociedade?

Gabarito
1. Carl Schmitt diz que o poder é fundamentado na Política, e não no Di-
reito, porque é sempre uma decisão política que origina as normas. Já
Kelsen afirma que a ciência jurídica não deve se interessar pelas ques-
tões políticas e outras, mas limitando-se apenas às normas jurídicas.
Contudo, o conceito de norma fundamental o aproxima de Schmitt,
na medida em que aceita que a primeira das manifestações é sempre
uma decisão.

2. Cada vez mais a sociedade se preocupa apenas com normas, sem se


ater aos valores, que na verdade são a essência de qualquer bem. É
necessário revisar que valores a sociedade vem privilegiando, e ver se
isso combina com a hierarquia de Scheler.

3. Pode-se argumentar que é impossível se utilizar da posição original,


tendo em vista que para que isso ocorresse teríamos que ter a garantia
de que a outra parte também seria imparcial, e caso isso não ocorresse
estaríamos em grande desvantagem em uma transação de negócios,
por exemplo. Também, poder-se-ia argumentar que hoje, com a globa-
lização e com os inúmeros meios de comunicação, é praticamente im-
possível buscar se encontrar em um estado de ignorância em relação
a outra parte por mais que se queira, sempre se acaba por saber algo

302
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito

sem querer, e então fica difícil apagar essa informação. Os argumentos


a favor são mais difíceis, porém é possível argumentar, por exemplo,
que as partes forçosamente se encontrem nessa posição para ter mais
garantia de um acordo justo, mas então caímos novamente no proble-
ma da confiabilidade.

4. Essa concepção pode ser encarada de dois modos, primeiramente a


importância da comunicação e da consciência das normas para o con-
trole de validade das leis, de modo que o businessman poderá levantar-
-se contra normas que o prejudiquem a si e ao seu negócio, podendo
buscar nos órgãos legislativos e judiciários a correção de uma lei ilegal
ou injusta. Em outro senso, dada o resguardo do princípio da autono-
mia da vontade, faz-se essencial a manifestação de vontade através da
comunicação para a consecução da atividade empresária conforme o
sistema jurídico e recebendo a proteção por este garantida.

5. Tal como na busca por uma organização social, uma empresa para al-
cançar sucesso, realização de modo estável no mercado, prescinde de
um sistema de regulação de todos os que nela trabalham, ligados a
uma finalidade específica ligada ao desenvolvimento do negócio, mas
sem deixar de considerar o modo como a empresa se encontra na atua-
lidade, bem como os hábitos que nela estão instaurados.

Referências
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(Rev., aument. e modif. pelo autor).

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303
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito

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304
Anotações

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