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PROVA 2

LUCIANO
Colecção Autores Gregos e Latinos a trajectória de uma vida [I]
Série Textos
Amadurecido pelas viagens e pela ex­pe­
riência da vida, materialmente afortunado,
OBRA PUBLICADA
COM A COORDENAÇÃO Luciano de Samósata Luciano cedo se farta da actividade judiciá­
ria, da retórica e da sofística, para se entregar
CIENTÍFICA
a uma actividade literária que, não sendo
nova, ele, no entanto, reforma de maneira
• radical: trata-se do diálogo filosófico, mas

Luciano
agora entendido e elaborado segundo prin­
cípios originais. De facto, Luciano aligeira
substancialmente o majestoso diálogo filosó­
fico que vinha dos tempos de Platão e acres­

[I] centa-lhe um aspecto dramático, orientado


no sentido da sátira - o que significa reunir
no «novo género» dois géneros diferentes
e até muito diversos: o diálogo filosófico e
a comédia. Realmente, foram sobretudo as

Luciano [I]
obras em forma de diálogo que deram fama
a Luciano. É nelas que melhor se expande
a sua crítica panfletária e corrosiva, que atin­
ge, literalmente, tudo e todos: os deuses e os
heróis, a religião e as religiões, a filosofia e as
suas variadíssimas seitas, a moral convencional,
a sociedade e os seus pilares mais destaca­
dos, os homens e as suas vaidades, as suas su­

Luciano de
Samósata
Tradução do grego, introdução e notas perstições irracionais e o aproveitamento que
Custódio Magueijo delas fazem os espertos... enfim, podemos
dizer que em Luciano conflui o que de mais
violento havia na comédia. Um certo epicu­
rismo prático e um cinismo teórico afinam e
refinam o processo.
IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
COIMBRA UNIVERSITY PRESS

Lombada: 14 mm
a trajectória de uma vida

Amadurecido pelas viagens e pela ex­pe­


riência da vida, materialmente afortunado,
Luciano cedo se farta da actividade judiciá­
ria, da retórica e da sofística, para se entregar
a uma actividade literária que, não sendo
nova, ele, no entanto, reforma de maneira
radical: trata-se do diálogo filosófico, mas
agora entendido e elaborado segundo prin­
cípios originais. De facto, Luciano aligeira
substancialmente o majestoso diálogo filosó­
fico que vinha dos tempos de Platão e acres­
centa-lhe um aspecto dramático, orientado
no sentido da sátira - o que significa reunir
no «novo género» dois géneros diferentes
e até muito diversos: o diálogo filosófico e
a comédia. Realmente, foram sobretudo as
obras em forma de diálogo que deram fama
a Luciano. É nelas que melhor se expande
a sua crítica panfletária e corrosiva, que atin­
ge, literalmente, tudo e todos: os deuses e os
heróis, a religião e as religiões, a filosofia e as
suas variadíssimas seitas, a moral convencional,
a sociedade e os seus pilares mais destaca­
dos, os homens e as suas vaidades, as suas su­
perstições irracionais e o aproveitamento que
delas fazem os espertos... enfim, podemos
dizer que em Luciano conflui o que de mais
violento havia na comédia. Um certo epicu­
rismo prático e um cinismo teórico afinam e
refinam o processo.
(Página deixada propositadamente em branco)
(Página deixada propositadamente em branco)
Luciano de Samósata

Luciano

[I]

Tradução do grego, introdução e notas de


Custódio Magueijo
Todos os volumes desta série são sujeitos a arbitr agem científica independente.

Título • Luciano [I]


Tradução do Grego, Introdução e Notas • Custódio Magueijo
Autor • Luciano de Samósata

Série Monografias

Coordenador Científico do plano de edição: Maria do Céu Filho


Comissão Edtorial
José Ribeiro Ferreira Francisco de Oliveira
Maria de Fátima Silva Nair Castro Soares

Diretor Técnico: Delfim Leão

Obr a realizada no âmbito das actividades da UI&D


Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos

Edição Impressão e Acabamento


Imprensa da Universidade de Coimbra www.artipol.net
URL: http://www.uc.pt/imprensa_uc
E-mail: imprensauc@ci.uc.pt ISBN
Vendas online: 978-989-26-0543-2
http://livrariadaimprensa.uc.pt
ISBN Digital
Coordenação editorial 978-989-26-0564-7
Imprensa da Universidade de Coimbra
Depósito Legal
Concepção gráfica 353356/12
Imprensa da Universidade de Coimbra
ª Edição: IUC • 2012
Infografia
Carlos Costa

© Dezembro .
Imprensa da Universidade de Coimbra
Classica Digitalia Vniversitatis Conimbrigensis (http://classicadigitalia.uc.pt)
Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra
Reservados todos os direitos. Nos termos legais fica expressamente proibida a reprodução total ou
parcial por qualquer meio, em papel ou em edição electrónica, sem autorização expressa dos titulares
dos direitos. É desde já excepcionada a utilização em circuitos académicos fechados para apoio a lec-
cionação ou extensão cultural por via de e-learning.
Luciano de Samósata

Luciano

[I]

Tradução do grego, introdução e notas de


Custódio Magueijo
(Página deixada propositadamente em branco)
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO GER AL ........................................................................... 13

O SONHO OU VIDA DE LUCIANO ......................................................... 22


Tradução ........................................................................................ 25

DIÁLOGOS DAS CORTESÃS ......................................................................35


Introdução ..................................................................................... 37
Tradução ........................................................................................41

1 GLÍCER A E TAIDE....................................................................... 43
2 MÍRTIO, PÂNFILO E DÓRIDE ...................................................45
3 FILINA E SUA MÃE........................................................................ 47
4 MELITA E BÁQUIDE ................................................................... 49
5 CLONÁRIO E LEENA ...................................................................53
6 CRÓBILA E [SUA FILHA] CORINA ...........................................55
7 MUSÁRIO E SUA MÃE ............................................................... 59
8 AMPÉLIDE E CRÍSIDE .................................................................61
9 DÓRCADE, PANÍQUIDE, FILÓSTR ATO E PÓLEMON .............. 63
10 QUELIDÓNIO E DRÓSIDE ...........................................................67
11 TRIFENA E CÁRMIDES .............................................................. 71
12 IOESSA, PÍTIAS E LÍSIAS ........................................................... 73
13 LEÔNTICO, QUÉNIDAS E HÍMNIDE ...................................... 77
14 DÓRION E MÍRTALE ...................................................................81
15 CÓCLIDE E PARTÉNIDE ............................................................ 85

DIÁLOGOS DOS DEUSES .....................................................................................87


Introdução ...........................................................................................89
Tradução ..............................................................................................93

1 PROMETEU E ZEUS ...............................................................................95


2 EROS E ZEUS .........................................................................................97
3 ZEUS E HERMES .................................................................................. ..99
4 ZEUS E GANIMEDES ............................................................................101
5 HERA E ZEUS................................................................................................................ 105
6 HERA E ZEUS .......................................................................................107
7 HEFESTO E APOLO ..............................................................................109
8 HEFESTO E ZEUS .................................................................................111
9 POSÍDON E HERMES ...........................................................................113

7
10 HERMES E HÉLIO ................................................................................115
11 AFRODITE E SELENE ............................................................................117
12 AFRODITE E EROS ...............................................................................119
13 ZEUS, ASCLÉPIO E HÉRACLES ..............................................................121
14 HERMES E APOLO ...............................................................................123
15 HERMES E APOLO ...............................................................................125
16 HERA E LATONA ..................................................................................127
17 HERMES E APOLO ...............................................................................129
18 HERA E ZEUS .......................................................................................131
19 AFRODITE E EROS ...............................................................................133
20 ZEUS, HERMES, HERA, ATENA, AFRODITE, PÁRIS
(Julgamento das Deusas)..........................................................................135
21 ARES E HERMES ...................................................................................143
22 PÃ E HERMES .......................................................................................145
23 APOLO E DIONISO ...............................................................................147
24 HERMES E MAIA ..................................................................................149
25 ZEUS E HÉLIO .....................................................................................151
26 APOLO E HERMES ...............................................................................153

DIÁLOGOS DOS DEUSES MARINHOS ...............................................................155


Introdução..........................................................................................157
Tradução .............................................................................................159

1 DÓRIDE E GALATEIA ...........................................................................161


2 CICLOPE E POSÍDON............................................................................163
3 POSÍDON E ALFEU ...............................................................................165
4 MENELAU E PROTEU .............................................................................167
5 POSÍDON E OS GOLFINHOS ................................................................169
6 POSÍDON, [ANFITRITE] E AS NEREIDAS...............................................171
7 PÂNOPE E GALENE...............................................................................173
8 TRITÃO, [AMIMONE] E POSÍDON.........................................................175
9 ÍRIS E POSÍDON ....................................................................................177
10 XANTO E O MAR .................................................................................179
11 NOTO E ZÉFIRO ...................................................................................181
12 DÓRIDE E TÉTIS ..................................................................................183
13 ENIPEU E POSÍDON..............................................................................185
14 TRITÃO E AS NEREIDAS .......................................................................187
15 ZÉFIRO E NOTO ...................................................................................189

8
DIÁLOGOS DOS MORTOS ................................................................................191
Introdução .........................................................................................193
Tradução ............................................................................................197

1 DIÓGENES E PÓLUX.............................................................................199
2 CRESO, PLUTÃO, MENIPO, MIDAS E SARDANAPALO ............................203
3 MENIPO E TROFÓNIO ..........................................................................205
4 HERMES E CARONTE ............................................................................207
5 PLUTÃO E HERMES .............................................................................209
6 TÉRPSION E PLUTÃO ...........................................................................211
7 ZENOFANTO E CALIDÉMIDES .............................................................213
8 CNÉMON E DAMNIPO ........................................................................215
9 SÍMILO E POLÍSTRATO .........................................................................217
10 CARONTE E HERMES .........................................................................221
11 CRATES E DIÓGENES ..........................................................................227
12 ALEXANDRE E ANÍBAL .........................................................................229
13 DIÓGENES E ALEXANDRE ...................................................................233
14 FILIPE E ALEXANDRE ...........................................................................237
15 AQUILES E ANTÍLOCO .........................................................................241
16 DIÓGENES E HÉRACLES ......................................................................243
17 MENIPO E TÂNTALO ...........................................................................245
18 MENIPO E HERMES ............................................................................249
19 ÉACO E PROTESILAU ...........................................................................251
20 MENIPO E ÉACO .................................................................................253
21 MENIPO E CÉRBERO ...........................................................................257
22 CARONTE E MENIPO ..........................................................................259
23 PLUTÃO E PROTESILAU .......................................................................261
24 DIÓGENES E MAUSOLO .......................................................................263
25 NIREU, TERSITES E MENIPO ...............................................................265
26 MENIPO E QUÍRON .............................................................................267
27 ANTÍSTENES, CRATES E DIÓGENES ....................................................269
28 MENIPO E TIRÉSIAS ............................................................................273
29 ÁJAX E AGAMÉMNON ..........................................................................275
30 MINOS E SÓSTRATO ............................................................................277

O BIBLIÓMANO IGNORANTE ...........................................................................279


Introdução .........................................................................................283
Tradução ............................................................................................285

ALEXANDRE, O FALSO PROFETA .......................................................................305


Introdução .........................................................................................307
Tradução ............................................................................................311

PRONTUÁRIO MITOLÓGICO ..........................................................................343

9
Ficha Técnica
Autor: Luciano de Samósata
Título: Luciano (I):
– O Sonho, ou Vida de Luciano
– Diálogos das Cortesãs
– Diálogos dos Deuses
– Diálogos dos Deuses Marinhos
– Diálogos dos Mortos
– O Bibliómano Ignorante
– Alexandre, o Falso Profeta
Tradução, prefácio e notas: Custódio Magueijo
Edição utilizada: A. M. Harmon, Lucian, The Loeb Classical
Library: Greek authors, Harvard University Press, 1959-1961.
Luciano
[I]

O SONHO OU VIDA DE LUCIANO

DIÁLOGOS DAS CORTESÃS

DIÁLOGOS DOS DEUSES

DIÁLOGOS DOS DEUSES MARINHOS

DIÁLOGOS DOS MORTOS

O BIBLIÓMANO IGNOR ANTE

ALEXANDRE, O FALSO PROFETA


(Página deixada propositadamente em branco)
I NTRODUÇÃO GER AL 1

Luciano nasceu em Samósata, capital do antigo reino de


Comagena, situado a norte da Síria, na margem direita do
Eufrates. Os primeiros imperadores romanos conservaram-lhe
um certo grau de independência, mas acaba por ser incluído entre
as províncias do Império.
Quanto a datas de nascimento e morte, podemos aceitar 125-
190 d.C. Seguramente, a vida literária de Luciano desenvolve-se
na segunda metade do séc. II d.C., por um período de quarenta
anos, durante o qual escreveu cerca de oitenta obras2 .
No tocante a dados biográficos, temos de nos contentar com
as informações contidas nos seus escritos: pelo menos têm a
vantagem de serem de primeira mão. E se a nossa curiosidade
mais «superficial» gostaria de saber muitas outras coisas sobre
a sua vida, a verdade é que o essencial do homem está nítida e
magnificamente retratado na obra.
De entre as obras mais importantes do ponto de vista auto-
biográfico, salienta-se a intitulada O Sonho (ou Vida de Luciano).
Imediatamente se conclui tratar-se dum trabalho da meia-idade.
Após uma peregrinação de vários anos por terras da Grécia, da
Itália e da Gália, onde conseguira assinalável êxito e não menos
importante pecúlio, Luciano regressa (por volta de 162-163) à
sua cidade natal, que o havia visto partir pobre e quase anónimo,
e agora se orgulhava do prestígio que lhe era transmitido pelo
êxito dum filho seu. É então que Luciano, perante os seus conci-
dadãos, traça uma retrospectiva autobiográfica, de que damos
apenas um resumo.
Chegado ao termo da escolaridade elementar, adolescente de
quinze anos, o pai aconselha-se com os amigos e familiares sobre
o futuro do moço.

1
Esta «Introdução» é, na generalidade, reproduzida de outras que escrevi
a propósito de diversas obras de Luciano. Não se pode exigir que, para cada
uma das cerca de oitenta, tivesse de inventar uma biografia formalmente
diferente de Luciano. No entanto, a parte final, relativa aos Diálogos das
Cortesãs e a outras obras é redigida especialmente para esta edição.
2
Os críticos modernos tendem a negar a autoria de algumas delas (entre
dez e vinte), que seriam imitações de diversas épocas, mas que acabaram
por figurar entre as autênticas.

13
«A maioria opinou que a carreira das letras requeria muito
esforço, longo tempo e uma sorte brilhante. Ora, a nossa fortuna
era limitada, pelo que, a breve trecho, precisaríamos dalguma
ajuda. Se, pelo contrário, eu aprendesse um ofício, começaria
imediatamente a retirar daí um ordenado mínimo, que me
permitiria, naquela idade, deixar de ser um encargo familiar,
e até mesmo, algum tempo depois, dar satis fação a meu pai com
o dinheiro que traria para casa.» (§ 1)

Restava escolher um ofício. Discutidas as várias opiniões,


foi decidido entregar o rapaz aos cuidados dum tio materno,
pre sente na reunião, que era um excelente escultor. Além deste
fac tor de ordem familiar, pesou ainda o facto de o moço, nos
seus tempos livres, gostar de se entreter a modelar, em cera,
bois, cavalos e figuras humanas, «tudo muito bem parecido, na
opinião de meu pai». Por essa actividade «plástica» (é palavra
sua), que não raro o desviava dos seus deveres escolares, «che-
gava mesmo a apanhar pancada dos professores, mas isso agora
transformava-se em elogio à minha vocação». (§ 2)
Chegado o grande dia, é com certa emoção que o jovem
se dirige à oficina do tio. De resto, via no ofício de escultor
uma espécie de brincadeira de certo modo agradável, e até
uma forma de se distinguir perante os amigos, quando estes
o vis sem esculpir figuras de deuses e estatuetas. Todavia, e
contra riamente às suas esperanças, o começo foi desastroso.
O tio põe-lhe na mão um escopro e manda-o desbastar uma
placa de mármore, a fim de adiantar trabalho («O começar é
meio caminho andado»). Uma pancada um pouco mais forte,
e eis que se quebra a placa... donde uma monumental sova de
correia, que só a fuga consegue interromper. Corre para casa em
tal estado, que a mãe não pode deixar de censurar asperamente
a brutalidade do irmão. Entretanto, aproxima-se a noite, e o
moço, ainda choroso, dolorido e revoltado, foi deitar-se. As
emoções do dia tiveram como resultado um sonho — donde
o título da obra. (§§ 3-4)
Até aqui, Luciano fornece-nos dados objectivos, que nos
permitem formar uma ideia suficientemente precisa sobre si
próprio e sobre a situação e ambiente familiares. Quanto ao
sonho, se nada nos permite duvidar da sua ocorrência, a ver-
dade é que se trata, antes de mais, duma elaboração retórica,
elemento tantas vezes utilizado na literatura, mas nem por

14
isso menos significativo do ponto de vista autobiográfico. De
facto, Luciano serve-se deste processo para revelar aos seus
ouvintes não tanto o que se terá passado nessa remota noite da
sua adolescência, mas principalmente a volta que a vida dera,
a partir duma situação que, em princípio, teria uma sequência
bem diferente.
Assim, e com uma nitidez — segundo afirma — «em nada
diferente da realidade», aparecem duas mulheres, que, energica-
mente e até com grande violência, disputam a posse do moço,
que passa duma para a outra, volta à primeira... enfim, «pouco
faltou para que me despedaçassem».
Uma delas era a Escultura (Hermoglyphikê), «com o (típico)
aspecto de operário, viril, de cabeleira sórdida, mãos cheias de
calos, manto subido e coberto de pó, como o meu tio quando
estava a polir as pedras». A outra era a Cultura (Paideia), «de
fisionomia extremamente agradável, atitude mui nobre e manto
traçado a preceito». (§§ 5-6)
Seguem-se os veementes discursos proferidos por cada uma
das personagens, que fazem lembrar o agôn (luta, disputa,
certame) das Nuvens de Aristófanes, travado entre a Tese Justa
e a Tese Injusta.

A fala da Escultura, mais curta (§§ 7-8), contém, no entanto,


elementos biográficos (explícitos ou implícitos) de certa impor-
tância. Começa por se referir à tradição profissional da família
do jovem, cujo avô materno e dois tios, também maternos, eram
escultores de mérito. A seguir, enumera as vantagens da profissão:
comida farta, ombros fortes e, sobretudo, uma vida particular
ao abrigo de invejas e intrigas, em vez de (como, de resto, veio a
acontecer − daí também o valor biográfico da informação) viagens
por países longínquos, afastado da pátria e dos amigos. Aliás,
a História está cheia de exemplos de grandes escultores (Fídias,
Míron, Praxíteles), cujo nome é imortal e que são reverenciados
juntamente com as estátuas dos deuses por eles criadas.
O discurso da Cultura (§§ 9-13) possui todos os ingre-
dientes necessários à vitória (além das informações biográficas
que recolhemos das suas «profecias»... de facto já realizadas).
Vejamos alguns passos.
«Meu filho: eu sou a Cultura, entidade que já te é familiar
e conhecida, muito embora ainda não me tenhas experimentado
plenamente.

15
Quanto aos grandes benefícios que te proporcionará o ofício de
escultor, já esta aqui os enumerou: não passarás dum operário que
mata o corpo com trabalho e nele depõe toda a esperança da sua
vida, votado ao anonimato e ganhando um salário magro e vil, de
baixo nível intelectual, socialmente isolado, incapaz de defender
os amigos ou de impor respeito aos inimigos, de fazer inveja aos
teus concidadãos. Apenas isto: um operário, um dentre a turba,
prostrado aos pés dos poderosos, servidor humilde dos bem-falantes,
levando uma vida de lebre, presa do mais forte. E mesmo que viesses
a ser um outro Fídias ou um Policlito, mesmo que criasses muitas
obras-primas, seria apenas a obra de arte aquilo que toda a gente
louvaria, e ninguém de bom senso, entre os que a contemplassem,
ambicionaria ser como tu. Sim, por muito hábil que sejas, não
passarás dum artesão, dum trabalhador manual.
Se, porém, me deres ouvidos, antes de mais, revelar-te-ei as
numerosas obras dos antigos, falar-te-ei dos seus feitos admiráveis e
dos seus escritos, tornar-te-ei um perito em, por assim dizer, todas as
ciências. E quanto ao teu espírito − que é, afinal, o que mais importa
−, exorná-lo-ei com as mais variadas e belas virtudes: sabedoria,
justiça, piedade, doçura, benevolência, inteligência, fortaleza, o
amor do Belo e a paixão do sublime. Sim, que tais virtudes é que
constituem verdadeiramente as incorruptíveis jóias da alma.
Tu, agora pobre, tu, o filho do Zé-Ninguém, tu, que ainda há
pouco havias enveredado por um ofício tão ignóbil, serás, em breve,
admirado e invejado por toda a gente, cumulado de honrarias
e louvores, ilustre por tua alta formação, estimado das elites de
sangue e de dinheiro; usarás um traje como este (e apontava-me
para o seu, que era realmente magní fico) e gozarás de merecido
prestígio e distinção. E sempre que saias da tua terra, vás para
onde fores, não serás, lá fora, um obscuro desconhecido: impor-
-te-ei tal marca, que, ao ver-te, um qualquer, dando de cotovelo
ao vizinho, apontar-te--á com o dedo, dizendo: ‘É este, o tal’.

O final do discurso (§ 13) constitui um autêntico «fecho»


segundo as leis da retórica. Depois de, no parágrafo anterior, ter
mencionado os exemplos de Demóstenes (filho dum fabricante
de armas), de Ésquines (cuja mãe era tocadora de pandeireta)
e de Sócrates (filho de escultor), lança o ataque final:

«Caso desprezes o exemplo de tão ilustres homens, feitos gloriosos


e escritos veneráveis, presença imponente, honra, glória e louvores,

16
supremacia, poder e dignidades, fama literária e o apreço devido
à inteligência, então passarás a usar uma reles túnica encardida,
ganharás um aspecto servil, agarrado a alavancas, cinzéis, escopros
e goivas, completamente inclinado sobre o trabalho, rastejante e
rasteiro, humilde em todas as acepções da palavra, sem nunca
levantar a cabeça, sem um único pensamento digno dum homem
livre, mas antes continuamente preocupado com a ideia de a
obra te sair har moniosa e apresentável − enquanto a respeito de
ti próprio, da maneira de te tornares harmonioso e bem dotado,
não te importas absolutamente nada; pelo contrário, ficarás mais
vil que as próprias pedras.»
É pena que esta autobiografia não tivesse sido escrita uns
vinte (ou trinta) anos mais tarde. Em todo o caso, o A., noutras
obras, fornece-nos mais algumas informações.
Assim, pela Dupla Acusação (§ 27), escrita pouco tempo
depois do Sonho, sabemos que Luciano, entregue de alma e
coração à retórica e à sofística, iniciara a sua actividade de
advogado em várias cidades da Ásia Menor (segundo a Suda,
«começou por ser advogado em Antioquia«). Da Ásia Menor
passa para a Grécia, e daí para a Itália, mas é sobretudo na
Gália que obtém glória e fortuna.

Uma dúzia de anos depois de ter saído da sua terra natal,


regressa a casa, mas por pouco tempo. Decide fixar-se em
Atenas, onde permanece por cerca de vinte anos (c. 165-185).
A Dupla Acusação deve datar dos primeiros anos da sua estada
na capital da cultura.
Amadurecido pelas viagens e pela experiência da vida,
materialmente afortunado, este homem de cerca de quarenta
anos (v. § 32) cedo se farta da actividade judiciária, da retó-
rica e da sofística, para se entregar a uma actividade literária
que, não sendo nova, ele, no entanto, reforma de maneira
radical: trata-se do diálogo filosófico, mas agora entendido
e elaborado segundo princípios originais. De facto, Luciano
aligeira subs tancialmente o majestoso diálogo filosófico que
vinha dos tem pos de Platão e acrescenta-lhe um aspecto
dramático, orientado no sentido da sátira − o que significa
reunir no «novo género» dois géneros diferentes e até mui-
to diversos: o diálogo filosófico e a comédia. Realmente,
foram sobretudo as obras em forma de diálogo que deram
fama a Luciano. É nelas que me lhor se expande a sua crítica

17
panfletária e corrosiva, que atinge, literalmente, tudo e todos:
os deuses e os heróis, a re ligião e as religiões, a filosofia e
as suas variadíssimas seitas, a moral convencional, a socie-
dade e os seus pilares mais desta cados, os homens e as suas
vaidades, as suas superstições irra cionais e o aproveitamento
que delas fazem os espertos... en fim, podemos dizer que em
Luciano conf lui o que de mais violento havia na comédia.
Um certo epicurismo prático e um cinismo teórico afinam
e refinam o processo.
Aos quarenta e poucos anos, adopta uma atitude funda-
mentalmente céptica, que, sobretudo, se insurge contra todo
o dogmatismo metafísico e filosófico em geral. A este respeito,
sugere-se a leitura do Hermotimo (ou: As Seitas), obra dum
niilismo verdadeiramente perturbador: dada a variedade das
correntes filosóficas, e ainda devido ao tempo e esforço neces-
sários a uma séria apreciação de cada uma, o homem, por mais
que se esforce, não pode atingir a verdade. Basta citar uma frase,
que, não sendo de modo nenhum a mais importante deste
diálogo, é verdadeiramente lapidar: «As pessoas que se dedicam
à filosofia lutam pela sombra dum burro.» (§ 86)
Cerca de vinte anos depois de chegar a Atenas, Luciano
decide recomeçar a viajar, mas nada será como dantes: já na
recta final da existência, talvez em situação financeira menos
próspera, e sem dúvida desiludido com o deteriorado clima cul-
tural de Atenas, fixa-se no Egipto, onde aceita (ou consegue?)
um lugar de funcionário público, aliás compatível com a sua
formação e importância social. Ele próprio nos informa (Apologia
dos Assalariados, (§ 12) de que a sua situação não se compara à
dos miseráveis funcionários do Estado Romano (por exemplo:
professores), que, afinal, não passam de escravos. E continua:

«A minha condição é completamente diferente. Na vida pri-


vada, conservei a minha liberdade; publicamente, exerço uma
porção da autoridade suprema, que administro em conjunto com
o procurador... Tenho sob a minha responsabilidade uma parte
considerável da província do Egipto, cabe-me instruir os pro-
cessos, determinar a ordem pela qual devem dar entrada, manter
em dia os registos exactos de tudo o que se diz e faz... executar
integralmente os decretos do Imperador... E além do mais, o meu
vencimento não se parece nada com o dum simples particular, mas
é digno dum rei, e o seu montante, longe de ser módico, ascende a

18
uma soma considerável. A tudo isto acrescenta o facto de eu não
me alimentar de esperanças modestas, pois é possível que ainda
obtenha, a título pleno, a prefeitura ou qualquer outra função
verdadeiramente real.»

Esperanças nada modestas, provavelmente bem fundadas...


Só que, por motivos que ignoramos, tudo se desfez em vento.

As «obras completas» de Luciano constam de 82 títulos,


embora muitos críticos, com argumentação nem sempre con-
vincente, lhe retirem algumas obras como sendo de imitadores,
mas que, em recolhas e cópias posteriores, se teriam agregado
às obras genuínas. Em certos casos, parece que têm razão.
De toda a maneira, a glória de Luciano (um dos últimos
clássicos) não precisava de que lhe acrescentassem algumas
obras, entre as quais, naturalmente, há obras-primas e outras...
«não-primas» ou até mesmo... «menos-primas».
De facto, Luciano tem uma visão extremamente crítica da
sociedade do seu tempo, dominada pelo irracional, que im-
preg nava não só as grandes massas populares (variadas religi-
ões de mistério e salvação, crendice nas práticas de magia,
superstições pueris, etc.), mas até o mundo intelectual, quando
este ultrapas sava o idealismo estritamente filosófico em que
deveria confinar-se. Realmente, muitos desses homens − afa-
mados filósofos e mestres de filosofia − deixaram-se conquistar
por uma metafísica que já não era filosófica, mas sim irracio-
nalismo de tipo popular.
Com mais de meio milénio de Filosofia, a Grécia vira nascer,
desenvolver-se e evoluir uma grande variedade de correntes de
pensamento, que na época de Luciano se tornaram exclusivistas,
dogmáticas e intolerantes: pitagóricos, académicos (platónicos),
peripatéticos (aristotélicos), cínicos, estóicos, epicuristas, etc.,
digladiavam-se violentamente. De todas as escolas, Luciano só
poupa os epicuristas, precisamente por estes tentarem manter
uma atitude racional. O passo (§ 32) em que Tiquíades se
refere a Demócrito (juntamente com Leucipo, o inspirador
da vertente científica do epicurismo) é bem signi ficativo da
admiração que Luciano tinha por estes homens, apetrechados
dum forte espírito crítico, a que Luciano adere.
A este respeito, convirá mencionar, mais uma vez, entre
outras obras, o Hermotimo, que é talvez o mais violento libelo

19
alguma vez lançado contra todas as correntes idealistas no seu
conjunto. Para sermos exactos, Luciano não condena, propria-
mente, as diversas escolas filosóficas, mas sim o seu exclusivismo,
o seu dogmatismo, a sua intolerância e, muito especial mente,
a distância que vai dos princípios morais apregoados à prática
real dos grandes mestres.
Se, no que respeita à filosofia, Luciano aceita e compreende
as diversas doutrinas em si mesmas e revela admiração pelo
epicurismo, já no tocante à religião e, sobretudo, à mitologia
tradicional, a crítica é global: não nega (pelo menos explicita-
mente) a existência dos velhos deuses, semideuses e heróis
da Grécia. Entende-os, no entanto, e principalmente, como
elementos culturais inerentes à organização social e necessários
à literatura e às artes. Só não aceita o carácter «literal» de toda
uma mitologia fantástica, pueril e, tantas ve zes, imoral.
Mas, se a mitologia lhe causa reacções de pura irritação, ainda
mais alérgico se revela relativamente às religiões de mistério e
salvação, cujos sacerdotes enganam as multidões por processos
grosseiros que uma crítica fria e acerada não tem dificuldade
em desmascarar. Uma das obras mais significativas neste
aspecto é a intitulada Alexandre ou o Falso Profeta, que é a
biografia vergonhosa dum sacerdote que recorre a truques
baixos e ilusionismos ou simples viciação, para se impor
como enviado da Divindade.
Um outro aspecto contra o qual se revolta o espírito crítico
de Luciano é o do irracionalismo dos grandes filósofos e mestres
de filosofia do seu tempo, que acreditam nas artes mágicas,
nas curas milagrosas, em fantasmas, espíritos e demónios. É
certo que Luciano também escreveu alguns livros de ficção,
como, por exemplo, O Burro. Trata-se, porém, de menti ras
assumidas, com a finalidade de divertir e distender o espírito
(sempre, é claro, com alguma crítica à mistura). Nesta ordem
de ideias, aceita, e ele próprio pratica, a fantasia inócua. O
que não admite é que certas pessoas com responsabilidade na
educação da juventude se deixem possuir desse misticismo
levado ao mais alto grau do irracional e tentem transmiti-lo
aos outros como verdade absoluta e irrefutável.
Tal é o tema do opúsculo O Mentiroso, no qual Tiquíades
(que obviamente representa Luciano) relata ao seu amigo Fílocles
as histórias incríveis de curas milagrosas, exorcismos, demónios
e fantasmas, encantamentos amorosos, aparições infer nais,

20
metamorfoses, levitação, etc., que ouvira contar em casa de
Êucrates, onde se havia reunido a fina flor da intelec tualidade
mais representativa das escolas filosóficas. Só não estava presente
um epicurista... a não ser, talvez, Tiquíades: pelo menos é ele
o único que tenta contrariar, um por um e com argumentação
racional, todo aquele chorrilho de mentiras. Mas a tarefa é
difícil, pois, para além de ser um só contra muitos, acontece
que é ingrato e incómodo discutir «fenómenos» apresentados
como reais, vistos e testemunhados pelos próprios narradores
e corroboráveis (mesmo corroborados) por testemunhas «ocu-
lares» de confiança... dos narradores. Neste ponto, chamamos
a atenção para os processos típicos da «linguagem da verdade»,
sabiamente utilizados pelos mentirosos de todos os tempos. Ao
fim de algum tempo, Tiquíades só vê uma solução: partir a
toda a pressa, embora (apesar de tudo...) com uma desculpa de
pessoa educada: «Bem, vou-me embora, vou procurar Leôntico,
pois tenho necessidade de tratar dum assunto com ele. Quanto
a vós, que não julgais já bastantes as coisas humanas, invocai os
deuses para que vos ajudem nas vossas histórias prodigiosas.
Além de obras de pura invenção e outras que não passam
de exercícios literários em moda, Luciano também escreve a
respeito de personagens reais do seu tempo. O Mentiroso, a
que acima nos referimos, é uma dessas obras, na qual, muito
provavelmente, só os nomes dos intervenientes são fictícios.

21
(Página deixada propositadamente em branco)
O SONHO OU VIDA DE LUCIANO
Texto da ed. de Karl Mras, Die Hauptwerke des Lukian
NOTA I NTRODUTÓRIA

Esta obra de Luciano, autobiográfica como é, dispensa, em


parte, uma longa introdução. Em todo o caso, remetemos o leitor
para a introdução geral e para as introduções relativas a cada obra.
(Página deixada propositadamente em branco)
O SONHO OU VIDA DE LUCIANO

1. Tinha eu, há pouco, e já adolescente, deixado de frequentar


a escola, quando meu pai se aconselhou com os amigos sobre a
profissão que eu devia aprender. Ora, a maioria foi de opinião
que a carreira das letras requeria muito trabalho, longo tempo,
uma despesa nada pequena e uma sorte brilhante, ao passo que
os nossos recursos eram exíguos, pelo que, a breve trecho, seria
preciso recorrer a um auxílio exterior. Se, porém, eu aprendesse
um dos diversos ofícios manuais, em primeiro lugar, retiraria
imediatamente do ofício o bastante para a minha subsistência, e
deixaria de, já naquela idade, comer à custa da família; e, a mais
longo prazo, daria satisfação a meu pai, ao entregar-lhe regular-
mente algum dinheiro.

2. Posto isto, avançou-se com a matéria do segundo ponto, o


de saber qual seria o melhor dos ofícios, o mais fácil de apren-
der, o mais adequado a um homem livre e aquele que requeresse
ferramentas mais fáceis de adquirir e um razoável rendimento.
Então, como cada um, de acordo com os seus conhecimentos ou
a sua experiência, gabasse este ou aquele ofício, meu pai, olhando
para o meu tio (tio materno, presente na reunião e considerado
um excelente estatuário e um marmorista muitíssimo reputado),
disse: «Não parece bem, estando tu aqui presente, dar a preferência
a qualquer outro ofício; por isso, leva o rapaz — e apontou para
mim —, toma conta dele e ensina-o a tornar-se um bom operário
de mármores, um bom polidor e um bom escultor. Sim, ele é, por
sua natureza, como sabes, bem capaz disso.» Meu pai deduzia isso
das minhas brincadeiras com bonecos de cera. De facto, quando
regressava da escola, costumava agarrar em pedaços de cera e
moldar bois, cavalos, ou até mesmo, por Zeus!, figuras humanas,
tudo muito bem parecido, na opinião de meu pai. Devido a essa
actividade, chegava a apanhar pancada dos meus professores, mas
agora isso era motivo para louvar o meu talento natural, dando-
-me boas esperanças de que, a julgar por essa vocação plástica,
em pouco tempo aprenderia o ofício.

3. Em breve, pois, chegou o dia de iniciar a minha actividade,


confiado aos cuidados de meu tio e, por Zeus!, nada desagradado
com o meu trabalho; pelo contrário, parecia-me ver nisso um
divertimento nada desagradável, bem como uma demonstração

27
de superioridade perante os rapazes da minha idade, ao verem-me
esculpir figuras de deuses e fazer pequenas estatuetas, quer para
mim próprio, quer para quem eu entendesse. Todavia, logo de
início aconteceu-me o que costuma acontecer aos principiantes:
de facto, meu tio passou-me para as mãos um escopro e mandou-
-me desbastar levemente uma placa que para ali estava, dizendo
o conhecido provérbio «Começar é meio caminho andado». Eis,
porém, que, devido à minha inexperiência, dei uma pancada mais
forte, que fez quebrar a placa, pelo que meu tio, muito furioso,
agarrou numa correia que estava ali à mão e me «iniciou» no ofício
de uma maneira nada meiga e nada apetecível, de tal maneira
que foi de lágrimas a minha iniciação no ofício.

4. Finalmente, tendo conseguido escapar-me dali, chego a


casa a soluçar continuamente e a chorar, e, com os olhos rasos de
lágrimas, conto a cena da correia e mostro as marcas deixadas,
queixando-me da grande brutalidade de meu tio e acrescentando
que fora por inveja que ele me fizera aquilo, com receio de que
eu viesse a ultrapassá-lo no ofício. Minha mãe, também muito
irritada, censurou fortemente o irmão... Enfim, quando chegou a
noite, fui deitar-me, ainda lacrimoso, e sonhei durante toda a noite.

5. Até aqui, falei de coisas risíveis e de adolescente. O que,


porém, vem a seguir, meus senhores, e que ireis ouvir, é que já
não é nada despiciendo, mas antes deve ser escutado por ouvintes
atentos. Assim, para citar Homero3,

...Um sonho divino me visitou quando dormia,


numa noite suave...,

sonho tão nítido, que em nada se distinguia da realidade.


Passado tanto tempo, ainda permanecem nos meus olhos as
formas dessas visões, bem como ressoa ainda nos meus ouvidos
o som das palavras que ouvi, a tal ponto foi tudo tão nítido.

6. Duas mulheres pegaram-me pelas mãos e tentavam arrastar-


-me cada uma para o seu lado, com grande violência e muita
força, pelo que, naquela disputa entre elas, pouco faltou para
que me despedaçassem. De facto, ora era uma delas que levava a

3
Il., II, 56-57: ... qe‹Òj moi ™nÚpnion Ãlqen Ôneiroj / ¢mbros…an
di¦ nÚkta...

28
melhor e por pouco que se apoderava por completo de mim, ora
era novamente tomado pela outra. Cada uma delas vociferava
contra a outra, pretendendo uma que já tinha tomado posse de
mim, pelo que eu lhe pertencia, enquanto a outra argumentava
que aquela se arrogava, sem razão, a posse do alheio. Uma delas
tinha aspecto de operário, viril, de cabelo desgrenhado, com as
mãos cheias de calos, a veste subida até à cintura e toda coberta
de pó de mármore, tal e qual o meu tio, quando polia as pedras.
A outra, por seu lado, tinha um rosto muito agradável, um porte
distinto e um manto muito elegante. Por fim, deixam-me a mim
o cuidado de decidir com qual delas eu queria ficar a viver. Falou
em primeiro lugar a de aspecto duro e viril, que disse:

7. «Querido menino, eu sou a Escultura, arte que tu ontem


começaste a aprender; sou da tua família e do teu parentesco, pois
o teu avô (e aqui pronunciou o nome do meu avô materno) era
escultor, bem como os teus dois tios, ambos os quais ganharam grande
celebridade através de mim. Caso decidas renunciar às lérias e taga-
relices desta fulana (e apontava para a outra) e seguir-me a mim e
comigo conviver, antes de mais alimentar-te-ás com fartura, possuirás
ombros fortes, estarás ao abrigo de toda e qualquer inveja; além
disso, nunca viajarás para o estrangeiro, deixando a tua pátria e os
teus familiares, nem será pelos teus discursos que todos te louvarão.

8. Não fiques horrorizado com o meu aspecto vulgar nem com


as minhas vestes sujas, pois foi com este aspecto que o famoso Fídias
produziu a sua estátua de Zeus, que Policlito fez a sua Hera, que
Míron foi louvado e Praxíteles admirado. Por isso, eles são venera-
dos juntamente com os deuses [que criaram]. Ora, se tu vieres a ser
como um desses artistas, certamente serás considerado ilustre entre
todos os homens, tornarás teu pai digno de inveja e tornarás famosa
a tua terra natal.» Foram estas, e ainda muitas mais que estas, as
palavras da Escultura4, cheias de erros e barbarismos5, ainda que
diligentemente dispostas, no intuito de me persuadir... Mas já não
me lembro, pois a maior parte dessas palavras já se me varreu da
memória... Então, quando ela terminou, a outra começou mais
ou menos assim:

4
O texto diz «da Arte»... mas pareceu-me necessário ser mais claro.
5
Note-se que a «versão» de Luciano não contém essas deficiências...
mas talvez não tivesse sido má ideia dar uma amostra do que poderia ser
a linguagem de quem não teve instrução avançada.

29
9. «Meu filho, eu sou a Cultura, que já te é familiar e conhecida,
se bem que ainda não me tenhas experimentado por completo. Ora,
quanto aos enormes benefícios que retirarias do ofício de escultor,
esta fulana acaba de mencioná-los. De facto, não serás mais que
um simples operário, que mata o corpo com trabalho e deposita nele
toda a sua esperança de subsistência, ele próprio obscuro, ganhando
um salário magro e vil, de mentalidade humilde, desconhecido de
toda a gente, nem útil aos amigos, nem temido dos inimigos, nem
invejado pelos outros cidadãos, mas apenas isto: um simples operário,
um de entre a grande massa popular, sempre ajoelhado aos pés dos
notáveis e servidor dos que sabem falar, levando uma vida de lebre
e presa dos mais fortes. E mesmo que te tornasses um outro Fídias
ou outro Policlito, e produzisses muitas obras admiráveis, seria a
[obra de] arte em si aquilo que todos elogiariam, sem que houvesse
alguém, entre os que a observavam, que, no seu juízo perfeito,
ambicionasse ser igual a ti. De facto, por grande [artista] que sejas,
serás visto apenas como um artesão, um trabalhador manual, que
vive do trabalho braçal.

10. Se, pelo contrário, me deres ouvidos, antes de mais dar-te-ei


a conhecer muitas obras dos homens antigos, explicando-te os seus
actos admiráveis e os seus escritos e tornando-te, por assim dizer,
perito em todos os ramos do saber... enfim, quanto ao teu espírito,
que é a parte mais importante, ornamentá-lo-ei com muitas e belas
virtudes, tais como a prudência, a justiça, a piedade, doçura, mo-
deração, inteligência, fortaleza de alma, o amor das coisas belas e o
pendor para os assuntos mais sérios. Sim, que é nestas virtudes que
reside verdadeiramente a imaculada beleza da alma. Além disso,
não só não te escapará nada do saber antigo nem do que deves fazer
no presente, mas até, [se ficares] na minha companhia, anteverás o
futuro... numa palavra, ensinar-te-ei, num período não muito longo,
todas as coisas que existem, quer divinas, quer humanas.

11. Então, tu, agora pobre, tu, o filho de um Zé-Ninguém,


que havia deliberado seguir um ofício tão ignóbil, serás, em breve,
motivo da inveja e da emulação de toda a gente, honrado, elogiado
e apreciado entre as pessoas mais distintas, muito considerado pelas
pessoas mais proeminentes de nascença ou de fortuna, vestido com um
traje como este (e apontou-me o seu, que era realmente magnífico),
e serás digno, enfim, de ocupar um cargo superior ou um lugar de
relevo. Para onde quer que viajes, não serás um desconhecido em

30
terra estranha nem passarás despercebido, pois imprimir-te-ei uma
marca tal, que qualquer pessoa, ao ver-te, dará de cotovelo ao vizinho
e te apontará com o dedo, dizendo: ‘É este, o tal’.

12. E se algum assunto de magna importância preocupa os


teus amigos ou mesmo toda a cidade, todos voltarão para ti os seus
olhares; e se por acaso tu tomares a palavra, quase toda a gente, de
boca aberta, te escutará, admirando-te e felicitando-te pela força
das tuas palavras, bem como ao teu pai, pela ventura [de ter um tal
filho]. Mais: aquilo que se diz de certos homens, isto é, que se tornam
imortais, é o que eu farei de ti; de facto, quando tu abandonares
esta vida, não deixarás de estar presente entre as pessoas cultas nem
de conversar com as mais distintas. Vês o célebre Demóstenes, de
quem era filho, e o que eu fiz dele? Vês Ésquines, que era filho de
uma tocadora de pandeireta, e como, devido a mim, Filipe o tratava
com tanta consideração? O próprio Sócrates, tendo sido criado no
ambiente desta fulana, a Escultura, logo que compreendeu que ha-
via coisa melhor, desertou dela e refugiou-se junto de mim, e agora,
como tens ouvido dizer, é celebrado por toda a gente.

13. Ora, caso renuncies a esses homens tão nobres e tão famosos,
às suas brilhantes realizações e aos seus veneráveis escritos, ao seu
porte distinto, à honra, à fama, aos elogios, à supremacia, ao poder,
a altos cargos, ao teu reconhecimento como orador e às felicitações
devidas à tua inteligência, então andarás vestido com uma curta
túnica encardida, ganharás um aspecto servil, terás nas tuas mãos
alavancas, cinzéis, escopros e marretas, inclinado sobre a obra,
rastejante e rasteiro, humilde em todo o sentido, sem nunca erguer
a cabeça, sem ter qualquer pensamento de homem e de pessoa livre,
mas, pelo contrário, somente pensando na maneira de tornar a obra
harmoniosa e elegante, ao passo que, no que respeita à maneira de
tu próprio te tornares harmonioso e bem dotado, não te preocupas
mesmo nada, mas tornas-te ainda mais vil que as próprias pedras.

14. Ainda ela estava a pronunciar estas palavras, eis que eu, sem
esperar pelo fim do discurso, levantei-me e fiz a minha escolha:
afastei-me da outra, a de aspecto horrendo e de trabalhador, e
passei-me para o lado da Cultura, muito contente, tanto mais que
me veio ao pensamento a correia e as pancadas, que não foram
poucas, que meu tio me dera no dia anterior, logo no começo
[do novo trabalho]. Então aquela que tinha sido preterida, ao

31
princípio ficou muito zangada, batia com as mãos uma contra a
outra 6 e rangia os dentes, mas, por fim, como se diz de Níobe,
ficou hirta e transformou-se em pedra. Não fiqueis incrédulos,
meus senhores7, com o que aconteceu à Escultura, pois os sonhos
são grandes fazedores de milagres.

15. Então a outra, a Cultura, olhou para mim e disse: «Pois vou
recompensar-te pelo teu espírito de justiça, por teres julgado tão bem
este caso. Vem cá imediatamente, sobe para este carro (e apontou
para um carro puxado por cavalos alados parecidos com Pégaso),
a fim de conheceres quantas e quão grandes coisas ficarias a ignorar,
caso não me seguisses.». Tendo, pois, subido para o carro, a Cultura
partiu, dando às rédeas; e eu, elevado aos céus, ia observando, de
oriente para ocidente, cidades, nações e povos, semeando não sei
bem o quê pela terra, como Triptólemo 8, mas já não me lembro
que semeadura era essa; só me lembro de uma coisa: que os ho-
mens, por onde eu passava durante o voo, elevavam lá de baixo
os olhos ao céu, louvavam-me e dirigiam-me palavras de gratidão.

16. Depois de me mostrar tais maravilhas e de me expor a


mim a tais aplausos, trouxe-me de volta, já não vestido com a
mesma vestimenta que eu tinha ao levantar voo, mas — assim
me pareceu — regressei com magníficas vestes bordadas9. Então,
foi ao ter com meu pai, que me estava esperando, apontou para
aquela veste e para mim, no estado em que eu vinha, e lembrou-lhe
a decisão que, por pouco10, eles haviam tomado a meu respeito.
Ainda hoje me lembro desse sonho que tive, ao sair da meninice,
e que julgo ter-me deixado perturbado devido ao pavor que senti
com a pancadaria.

6
Este gesto de «bater as mãos uma contra outra» pode significar ale-
gria, ou, pelo contrário, desespero, como é o caso; é claro que este gesto
devia ser acompanhado de outros, de tipo facial: «ranger de dentes... (v.
logo a seguir).
7
O texto não diz explicitamente «meus senhores», mas, por um passo
anterior, sabemos que Luciano se dirigia a ouvintes: v. § 5, início.
8
Triptólemo foi o inventor e o divulgador da agricultura.
9
«com magníficas vestes bordadas» é uma versão possível de uma só
palavra...
10
A decisão fora realmente tomada, mas não concretizada definiti-
vamente.

32
17. Mas, enquanto eu vos falo, alguém dirá: «Por Héracles!,
que sonho tão longo e fastidioso11.» E logo a seguir um outro in-
terrompe: «Deve ser um sonho de Inverno, quando as noites são
muito compridas, ou talvez um sonho de três noites, como no caso de
Héracles. Que ideia tola a dele, ao evocar perante nós aquela noite
da sua infância, cheia de sonhos velhos e relhos?! Mas que conversa
tão sensaborona! Será que ele nos toma por uma espécie de intér-
pretes de sonhos?» Não meu caro amigo12 . Na verdade, também
outrora Xenofonte, ao narrar um sonho, em que lhe pareceu ver
um incêndio na casa paterna13, e outras circunstâncias que vós
bem conheceis, contou tudo isso, não por considerar essa visão
uma falsa aparência ou conversa frívola, tanto mais que estavam
em guerra, numa situação desesperada e cercados de inimigos,
mas porque a narrativa tinha uma intenção algo útil.

18. Pois bem: se também eu vos narrei este sonho, foi por
uma razão: para que os jovens se virem para o bem e se apeguem
à cultura, sobretudo no caso de algum desses jovens se deixar
levar pela pobreza e caia na depravação, corrompendo assim uma
natureza em si mesma nobre. Estou bem convicto de que esse
tal jovem se sentirá encorajado ao ouvir a minha história, vendo
à sua frente a minha pessoa como um exemplo para si próprio e
pensando naquilo que eu era e no êxito que alcancei, por amor
da cultura, sem me intimidar com a pobreza desses tempos, e
vendo a condição em que aqui cheguei, não mais obscuro, no
mínimo14, que qualquer escultor.

11
A palavra grega significa «próprio de advogado», «judiciário»;
pressupõ-se que tais discursos eram longos e fastidiosos...
12
Luciano dirige-se explicitamente ao último dos supostos críticos.
13
Sigo a lição de Mras: v. nota ao texto.
14
Luciano exprime-se pelo mínimo, mas o sentido profundo é que se
sentia muito mais famoso do que qualquer escultor.

33
(Página deixada propositadamente em branco)
DIÁLOGOS DAS CORTESÃS
Texto da ed. de Karl Mras, Die Hauptwerke des Lukian.
I NTRODUÇÃO

Talvez os mais lidos, comentados e até imitados dos escritos


de Luciano sejam os Diálogos: Diálogos dos Mortos, Diálogos dos
Deuses, Diálogos dos Deuses Marinhos e Diálogos das Cortesãs.
Trata-se de breves quadros dramáticos, em que várias persona-
gens debatem um problema ou uma situação mais ou menos
polémica ou censurável, num estilo a que hoje chamaríamos
«revisteiro» (até na representação possível), mas nem por isso,
no seu conjunto, menos profundo. Nos Diálogos, Luciano cri-
tica sobretudo a mitologia tradicional, a ética dos deuses, mas
também os comportamentos humanos.
Os Diálogos dos Deuses e os Diálogos dos Deuses Marinhos
baseiam-se sobretudo na mitologia e na literatura sua trans-
missora (Homero, Hesíodo...): Luciano ataca os aspectos mais
incríveis e mais irracionais dessas historietas. Os leitores de
Luciano recordam particularmente algumas dessas saborosas
cenas, como, p. ex., a de Caronte e Menipo (Diálogos dos Mortos,
2): Caronte, o barqueiro dos Infernos, insiste desesperadamente
com o filósofo cínico Menipo para que este lhe entregasse o
óbolo — pagamento obrigatório, sem o qual os mortos não
podem passar para o reino inferior. Ora, sucede que Menipo
não tem com que pagar, pelo que só resta (só restaria!) uma
solução: colocar na margem da vida o passageiro mau pagador...
No que diz especialmente respeito aos Diálogos das Cortesãs,
trata-se de uma obra importante do ponto de vista da análise
social de uma parte da sociedade ateniense do séc. II d.C.
Enquanto os outros Diálogos a que atrás nos referimos se
inspiram em histórias mitológicas ou na vida de mortos fa-
mosos (Sócrates, Filipe, Alexandre, Diógenes, Menipo, etc.),
os Diálogos das Cortesãs têm uma forte marca de actualidade,
ainda que possamos entrever neles, também, certas personagens
da chamada «Comédia Nova»: a cortesã, o jovem apaixonado
e ciumento, o criado ou a criada, a mãe...
Embora a actividade de prostituta esteja bem documentada na
época clássica (a toda a gente ocorre o nome de Aspásia, amante e
«companheira» de Péricles), esta profissão conhece um forte desen-
volvimento nos períodos helenístico e romano. Muitas vezes, era o
modo mais prático de lutar contra a miséria. Naturalmente, entre as
mulheres que viviam do aluguer do corpo, havia as «finas» e as... de
esquina de rua ou de encruzilhada, aliás normalmente designadas

37
de modo diferente: por um lado, as ˜ta‹rai hetairai, «heteras» ou
«cortesãs», que, à maneira das sua predecessoras da época clássica,
pretendiam ser «companheiras» dos seus amantes, para o que sabiam
proporcionar-lhes outros prazeres além dos da carne: dizia-se que
os homens tinham as esposas legítimas para lhes darem filhos, e as
heteras para divertimento; por outro lado, a prostituta... de esquina
era designada por pÒrnh pórnê, «puta» «meretriz», porn…dion
pornídion, «putéfia», às vezes porn…on «putinha»...
À profissão, tendencialmente rendosa, de «cortesã» estava
muitas vezes associada a figura da mãe, especialmente da mãe
viúva, que punha nos dotes físicos da filha a sua única esperança
de não morrer de fome (v. 7: Musário e sua mãe).
Naturalmente, Luciano conhecia o ambiente, não apenas das
leituras da Comédia Nova, mas, sobretudo, da vida real ateniense
dos meados do séc. II d.C.; e embora a focagem esteja projectada
principalmente sobre a cortesã, a mãe, uma amiga, a criada, etc.,
Luciano não deixa de nos mostrar alguns exemplares de amantes
(homens): os infiéis, os apaixonados, os chorões, os mãos-largas
e os forretas, os pobretanas, os violentos... Em todo o caso, é
importante notar que Luciano não se mostra muito (ou nada!)
crítico relativamente à prostituição, que ele devia ver como uma
opção de vida por parte da mulher e como uma liberdade por
parte do homem. Mais do que criticar, Luciano descreve diversos
quadros da vida sexual e do comportamento do jovem e do homem
casado do seu tempo. É que, para sermos curtos e breves, certas
«instituições», como a escravatura e a prostituição, estavam tão
integradas na mentalidade das pessoas, que a ninguém ocorria
sequer pô-las em causa.
Um aspecto que, em geral, deixa o leitor moderno um tanto
confuso é o que se refere ao valor do dinheiro, já que era este
o móbil mais importante (geralmente o único) da profissão.
Se não nos é possível ou fácil fazer o «câmbio» para as moedas
modernas, podemos, pelo menos, ter uma ideia do seu valor
relativo, do poder de compra em relação a um certo número
de artigos ou do valor dos serviços prestados. Para o caso,
interessa-nos o valor do dinheiro na Atenas de meados do séc.
II d.C. Ver quadro:

1 talento = 60 minas = 6.000 dracmas = 36.000 óbolos


1 mina = 100 dracmas = 600 óbolos
1 dracma = 6 óbolos

38
NOTA — O talento e a mina não eram propriamente moedas,
mas aquilo a que se chama «moeda de conto» (cf. um conto de réis
= 1 milhão (1.000.000) de réis).
Vejamos os casos que ocorrem nos Diálogos das Cortesãs:

§ Quantia Aplicação
TALENTO
2, 2 1 Dívida de negócios.
8, 3 1 Amante em exclusividade durante oito meses.
9, 3 1 Dádiva muito generosa.
9, 4 1 Dádiva muito generosa, c. promessa de mais 1 talento.
15, 2 2 Exclusividade (não se diz por quanto tempo; v. § 8, 3).
4, 1 5 Dote de noiva rica.
7, 4 muitos; 5 Dote de noiva rica.
MINAS
6, 1,2 1 1º salário de uma hetera, compra de um colar.
6, 1 2 Venda de tenazes, 1 bigorna e 1 martelo de ferreiro;
[dá para sobreviver 7 meses.
6, 2 2 Pagamento muito generoso (por uma «sessão»?).
7, 3 1 Pagamento generoso (por uma «sessão»?).
14, 3 2 Oferta em dinheiro + presentes vários.
14, 4 2 Mesma ref. de § 14, 3, mas «presentes de duas minas».
DRACMAS
4, 4 1 Honorário de uma feiticeira (+ 1 óbolo e diversas coisas).
7, 2 2 Um par de sapatos.
8, 2 5 Dádiva de «forreta», de longe em longe.
8, 3 10 Bom pagamento por uma noite.
11, 1 5 Pagamento razoável por uma noite; cf. § 8, 3.
11, 3 1000 Quantia pedida (por serviços passados e futuros?).
14, 2-3 2 Um par de sapatos.
( 5 exs.) 2 Um frasco de perfume da Fenícia.
1 De prata, para Afrodite, em intenção da hetera.
2 À mãe da hetera, para um par de sapatos.
5 Por junto: cebolas, 5 arenques, 4 percas, 1 cabaz de passas de
figo, sandálias, um queijo de Gítio.
ÓBOLO
4, 4 7 Parte do honorário de uma feiticeira (+1 dracma: v. 4,4b)
7, 1 1 Aliás, nem um... centavo... Insignificância.
14, 3 2 ou 4 Gorjeta para a criada, por serviços prestados e a prestar.

39
(Página deixada propositadamente em branco)
DIÁLOGOS DAS CORTESÃS
(Página deixada propositadamente em branco)
1. GLÍCERA E TAIDE15

1] GLÍCERA — Ó Taide, conheces aquele soldado acarnano, que


em tempos foi amante da Abrótono16 e que depois se apaixonou
por mim... quer dizer, aquele fulano todo aperaltado, que usava
clâmide17... Ou será que já te esqueceste do homem?
TAIDE — Não, não, querida Glicério18, conheço-o bem, até
bebeu connosco o ano passado nas Festas em honra de Deméter.
Mas a que propósito vem isso? Sim, parece que querias contar
qualquer coisa a respeito desse tipo.
GLÍCERA — Foi o caso que Górgona19, essa malvada, que
parecia ser tão minha amiga, o seduziu e mo roubou.

15
Rigorosamente, ao gr. Qaj, gen. Qadoj (-- ), devia corresponder
em português a forma trissilábica, ortograficamente complicada, *Táïde
(!), ou, partindo do nominativo, a forma dissilábica, igualmente difícil,
*Táïs (!). No primeiro caso, uma forma Taide (que acabei por adoptar)
resultaria da sinérese de duas vogais em sílabas diferentes, agora pronuncia-
das na mesma sílaba: a-i > ai (cf. Danaide, Nereide...); Caso partíssemos
do nominativo, já parece menos aceitável adoptar o monossílabo Tais (!),
que seria igualmente resultante de sinérese, mas que se me afigura um
tanto ridículo, por soar ao pronome tais; também não seria incontro-
verso transpor directamente o nominativo grego e verter por Taís, com
a acentuação grega, mas que, segundo as regras gráficas do português,
obrigaria a uma pronúncia dissilábica; a maior parte das vezes, satisfaz a
adaptação a partir do acusativo latino, -em, cf. Ácide, Ampélide, Báquide,
Cóclide, Corónide, Críside, Dáfnide, Délfide, Dóride (Dóris), Dróside,
Éride (Éris), Fébide, Filénide, Grâmide, Hímnide, Nébride, Nereide (e
Nereida), Págide, Paníquide, Parténide, Pirálide...; mas o uso também
impôs algumas formas a partir do nom.: Tétis...
16
Abrótono é um nome de mulher (ginecónimo), tirado do nome
comum, do género neutro, ¢brÒtonon «abrótono». Em port., não soam
bem estes nomes de mulher com a terminação tipicamente masculina,
pelo que lhe antepusemos o artigo feminino. Dá vontade de verter por
*Abrótona...; o mesmo se diga de diminutivos hipocorísticos em -ion (v.
infra, a respeito de Glicério).
17
A clâmide era uma capa curta, usada sobretudo pelos militares.
18
Glukšrion «docinha», diminutivo-hipocorístico de Glukšra,
«doce». Como atrás ficou dito, em port. suporta-se mal um ginecónimo em
-o, pelo que, aproveitando o valor hipocorístico, antepomos a estes nomes
ou querida, ou minha (querida); uma adaptação como *Gliceriazinha não
seria de todo reprovável; ou então, já que a palavra tem sentido («doce» e
«docinha»), poderíamos verter por Dulce e Dulcinha. Outros diminutivos-
-hipocorísticos em -ion nesta obra: Mírtio, Clonário, Musário, Quelodónio.
19
O nome da «amiga» não é escolhido ao acaso, pois faz-se referência às
Górgonas, ou melhor, à mais célebre, Medusa; todas elas eram personagens

43
TAIDE — ... E agora o fulano já não vem a tua casa, pois
tomou Górgona por sua amante?!
GLÍCERA — Isso mesmo, Taide, e sinto-me muito ferida com
este caso.
TAIDE — Sim, querida Glicério, é um acto perverso, mas
nada de inesperado; pelo contrário, é prática corrente entre nós,
cortesãs. Portanto, não deves afligir-te assim tanto, nem censurar
Górgona. Na verdade, anteriormente, a Abrótono também não te
censurou pelo mesmo motivo... e, no entanto, vocês eram amigas.
2] Em todo o caso, há uma coisa que me espanta: que é que
esse soldado encontrou nela que fosse digno de louvor... a menos
que ele fosse completamente cego, a ponto de não ver que ela
tem o cabelo ralo e muito afastado da testa 20; que os lábios são
lívidos, o pescoço muito magro e com veias muito salientes e o
nariz muito comprido. Só tem de bom o facto de ser alta e esbelta
e ter um sorriso muitíssimo sedutor.
GLÍCERA — Cuidas tu, Taide, que o acarnano está apaixonado
pela sua formosura? Então não sabes que a feiticeira Crisário21 é
sua mãe, que conhece certas fórmulas encantatórias tessálicas22 e
sabe atrair a lua cá abaixo? Dizem mesmo que ela, à noite, levanta
voo. Foi ela que deu a volta à cabeça do fulano, dando-lhe umas
drogas a beber; e agora é só «vindimá-lo23».
TAIDE — E tu, querida Glicério, hás-de «vindimar» outro
e... diz adeus a este.

horrendas, com serpentes à volta da cabeça, dentes compridos...


20
Como é fácil de perceber pela tradução literal, refere-se a calelo
pouco abundante e a grandes «entradas».
21
Crus£rion é diminutivo-hipocorístico de crusÒj «oiro», «objecto
de ouro», «jóia», pelo que o sentido seria, p. ex., «Joiinha».
22
As feiticeiras tessálicas eram das mais afamadas (e famigeradas) da
Grécia. Veja-se, entre outros, Lúcio ou O Burro de Luciano (p. ex., ed.
‘Inquérito’, trad, de C. M., com o título de Eu Lúcio — Memórias de
um Burro).
23
O verbo t rug£w significa «ceifar», «vindimar» e, em sentido
figurado, «explorar», o que também é possível em português, embora
acrescentando as aspas.

44
2. MÍRTIO24, PÂNFILO E DÓRIDE

1] MÍRTIO — Ó Pânfilo, então tu vais-te casar com a filha de


Fílon, o armador? Até se diz que já a desposaste. Tantos juramen-
tos que fizeste, tantas lágrimas, será que tudo isso se desvaneceu
num instante e esqueceste a tua querida Mírtio, para mais agora,
ó Pânfilo, quando estou grávida de oito meses? Portanto, foi isto,
e só isto, o que ganhei com o teu amor, o facto de me teres feito
uma barriga deste tamanho e de, dentro de pouco tempo, ter de
alimentar uma criança, encargo pesadíssimo para uma cortesã.
Na verdade, não tenciono expor o recém-nascido, sobretudo se for
macho, caso em que lhe porei o nome de Pânfilo e será a consolação
do meu amor; e um dia ele há-de censurar-te por teres sido infiel
à sua infeliz mãe. Mas a jovem que tu vais desposar nem sequer
é bela, que ainda há pouco tempo a vi na festa das Tesmofórias
acompanhada de sua mãe, ainda eu não sabia que, por causa dela,
nunca mais veria Pânfilo. Portanto, antes [que cases], repara bem
nela, no seu rosto e nos seus olhos, para que não te incomode o
facto de ela os ter demasiado cinzentos, serem tortos e apontarem
um para o outro... Mas certamente já viste Fílon, o pai da noiva,
e conheces a sua cara, pelo que já não precisas de ver a filha...

2] PÂNFILO — Ó querida Mírtio, será que tenho de escutar


muito mais tempo os teus delírios, ouvir-te falar de raparigas, de
casamentos e armadores, se eu conheço alguma noiva de nariz
achatado ou formosa, ou, enfim, se Fílon [do demo] de Alópece
— julgo que é a esse que te referes — tem uma filha em idade de
casar? Ora, esse tal Fílon nem sequer tem relações de amizade com
meu pai: de facto, recordo-me de que ainda há pouco tempo meu
pai lhe moveu um processo por dívidas, pois o fulano devia um
talento25, creio, a meu pai e não queria pagar, pelo que meu pai o
levou à presença dos juízes marítimos, onde ele pagou, mas não
a quantia total, segundo afirmava meu pai. Ora, se eu estivesse
decidido a casar-me, deixaria eu a filha de Démeas, o qual foi
general o ano passado, e, para mais, sendo ela minha prima por
parte da mãe, para me casar com a filha de Fílon? Mas onde é que

24
Mais um dim.-hipoc. em -ion.
25
V. nota especial sobre o valor do dinheiro; o talento não era propriamente
uma moeda, mas um valor «de conto»; quando, a seguir, se diz que pagou
a dívida de um talento, mas não a quantia total, isso significa que pagou
com moedas (minas e dracmas), que não somavam exactamente 1 talento.

45
ouviste essa história? Ou será que, por pura fantasia, inventaste,
minha querida Mírtio, essa história de ciúmes?

3] MÍRTIO — Quer dizer que não te vais casar, Pânfilo?


PÂNFILO — Ó querida Mírtio, estás doida ou ébria? No en-
tanto, ontem não bebemos em excesso.
MÍRTIO — Aqui a Dóride é que me desinquietou; de facto,
tendo-a eu mandado comprar lã para o parto e orar por mim a
Loquia 26, disse-me que, tendo-se encontrado com Lésbia... Mas...
conta-lhe antes tu, Dóride, o que lhe ouviste dizer, se é que não
inventaste essa história.
DÓRIDE — Que eu morra já aqui, minha Senhora, se disse
alguma mentira. Na verdade, ao chegar ao Pritaneu, encontrei
Lésbia, que, toda sorridente, me disse assim: «Então o vosso amante,
Pânfilo, vai-se casar com a filha de Fílon»; e, se eu não acreditava,
convidou-me a espreitar para a vossa ruela e vê-la toda enfeitada de
coroas, bem como tocadoras de flauta, muito alvoroço e pessoas
cantando o hino nupcial.
PÂNFILO — E tu foste espreitar, Dóride?
DÓRIDE — Claro, e vi tudo tal como ela me tinha dito.

4] PÂNFILO — Compreendo o engano. De facto, Dóride, nem


tudo o que Lésbia te disse era falso, e tu contaste a verdade à
nossa Mírtio, mas vós ficastes perturbada sem razão: realmente, o
casamento não era em nossa casa; agora me lembro de ter ouvido
minha mãe dizer, quando eu ontem regressei de vossa casa: «Ó
Pânfilo, Cármides, o filho do nosso vizinho Aristéneto, rapaz da
tua idade, vai-se casar já, no que revela ter juízo; e tu até quando
farás vida com uma hetera?». Eu, sem ligar ao que ela me dizia,
fui-me deitar. Depois, saí de casa logo de manhã, de modo que
não vi nada do que Dóride viu a seguir. Se não acreditas, volta lá,
Dóride, e repara bem, não na ruela, mas na porta, qual das duas
é que está ornada de coroas, e verás que é a dos nossos vizinhos.
MÍRTIO — Ó Pânfilo, salvaste-me a vida! Sim, que eu enfor-
cava-me, se isso acontecesse.
PÂNFILO — Mas nunca poderia acontecer: eu não seria tão
louco, que esquecesse a minha querida Mírtio, para mais quando
me vai dar um filho.

26
Trata-se de Ártemis, aqui designada pelo epíteto de Loce…a, «que
preside aos partos».

46
3. FILINA E SUA M ÃE

1] M ÃE — Enlouqueceste, Filina? Que é que se passou ontem


no banquete, que logo de manhã veio cá a casa Dífilo, todo lava-
do em lágrimas, e me contou o mau tratamento que recebeu da
tua parte? Disse que tu te tinhas embriagado, que te levantaste
e foste dançar no meio da sala, apesar de ele tentar impedir-te, e
que, depois de tudo isso, beijaste o seu amigo Lâmprias; depois,
como ele, Dífilo, tivesse ficado muito irritado, tu deixaste-o, foste
ter com Lâmprias e abraçaste-o; enquanto isto se passava, ele,
Dífilo, sufocava de indignação. Nessa noite, ao que parece, não
dormiste com ele, mas deixaste-o todo choroso e foste deitar-te
sozinha num cama ao lado da dele, cantando e afligindo-o.

2] F ILINA — Pois sim, minha mãe, mas o que ele não te


contou foi o seu comportamento, pois, nesse caso, já não
defenderias esse insolente, que me deixou de lado e foi con-
versar com Taide, a amante de Lâmprias, o qual ainda não
tinha chegado. Então ele, ao ver-me irritada e fazendo gestos
de cabeça desaprovando o que ele estava a fazer, pegou pela
ponta da orelha de Taide, dobrou-lhe o pescoço e beijou-a tão
apertadamente, que quase lhe arrancou os lábios. Enquanto
eu chorava, ele ria e dizia um longo palavreado ao ouvido de
Taide, coisas contra a minha pessoa, certamente, pois Taide
olhava para mim e sorria. Então, apercebendo-se da chegada
de Lâmprias e já fartos, puseram finalmente termo àquela
sessão de beijos mútuos. E eu, apesar de tudo, fui reclinar-
-se a seu lado, para que ele, mais tarde, não tivesse qualquer
pretexto contra mim. Por outro lado, Taide levantou-se e deu
início a uma dança, descobrindo as pernas o mais possível,
como se fosse a única que tinha pernas belas. Quando ela
terminou, Lâmprias ficou quieto, sem dizer nada, mas Dífilo
elogiou longamente a harmonia do ritmo e a coreografia, a
forma como o movimento dos pés e das pernas condiziam
com o toque da cítara, e mil outros elogios, como se estivesse
a elogiar a [estátua de] Sosandra de Calâmide, e não Taide,
cujo físico tu bem conheces, por vê-la no balneário connosco.
Então, essa mesma Taide deu em fazer troça de mim: «Se há
por aí alguém — disse — que não se envergonhe de ter umas
pernas muito delgadas, que se levante e dance.» Que dizer dis-
to, minha mãe? Levantei-me e dancei. Sim, que outra coisa

47
poderia eu fazer? Aguentar, dando assim razão à crítica e deixar
que Taide fosse a rainha da festa?

3] M ÃE — É realmente um caso de honra, minha filha, mas


não devias dar-lhe tanta importância. Mas conta lá o que se
passou a seguir.
FILINA — Todos os convivas aplaudiam, menos Dífilo, que,
tendo-se reclinado de costas, esteve sempre a fitar o tecto, até eu
parar extenuada.
M ÃE — Mas é verdade que beijaste Lâmprias e que saíste do
teu lugar para ir abraçá-lo?... Porque ficas calada? Sim, que isso
é que já não merece perdão.
FILINA — O que eu queria era retribuir-lhe a ofensa.
M ÃE — E depois nem sequer dormiste com ele, mas puseste-
-te a cantar, enquanto ele chorava?! Ó minha filha, não vês que
somos pobres? Não te lembras dos muitos presentes que recebemos
dele nem como teríamos passado o último Inverno, se Afrodite
não no-lo tivesse enviado?

48
4. M ELITA 27 E BÁQUIDE

1] MELITA — Ó Báquide, se conheces alguma velha, de entre


tantas [bruxas] tessálicas, que se diz haver por aí, daquelas que
usam fórmulas mágicas que tornam as pessoas apetecíveis, mes-
mo que se trate de uma mulher extremamente abominável, pela
tua saúde, pega nela e trá-la cá. Eu daria de bom grado os meus
vestidos e todas estas jóias, se visse Carino voltar de novo para
mim e odiar Símica como agora me odeia a mim.
BÁQUIDE — Que estás a dizer? Já não viveis juntos, mas
Carino foi viver com Símica, deixando-te a ti, Melita, por causa
de quem afrontou a cólera dos pais, por não querer casar com
aquela ricaça, que, segundo dizem, trazia um dote de cinco ta-
lentos28? Sei disso por te ter ouvido falar do caso.
MELITA — Foi-se tudo, Báquide; há já cinco dias inteiros que
não o vejo, pois ele e Símica vão fazer festança em casa do seu
companheiro Pâmenes.

2] BÁQUIDE — Que coisa terrível te aconteceu, Melita. Mas


que é que foi que vos separou? Realmente, não parece ter sido
coisa pequena.
MELITA — Não posso contar todo o caso em pormenor; mas,
aqui há dias, tendo Carino regressado do Pireu (aonde seu pai o
tinha enviado, a fim de — julgo eu — cobrar uma dívida), ao
entrar em casa, nem olhou para mim nem me correspondeu quan-
do eu, como era meu hábito, corri para ele, mas, pelo contrário,
rechaçou-me quando eu pretendia abraçá-lo, dizendo: «Vai-te já
daqui, vai ter com o armador 29 Hermotimo ou vai ler o que está
escrito nos muros do Ceramico, onde os vossos nomes estão gravados
numa coluna.» Ao que eu respondi: «Qual Hermotimo, qual? Ou
a que coluna te referes?». Ele, porém, não respondeu e, sem ter
ceado, foi-se deitar, de costas viradas para mim. Podes imaginar
de quantas truques eu usei: abracei-o, tentei virá-lo para o meu

27
Mšlitta «abelha» (com -tt-) é forma tipicamente ática; em jónico
(na koinê e em gr. mod.) a forma normal é mšlissa (com -ss-); se nos
baseássemos nesta última forma, teríamos Melissa (que, afinal, existe...).
28
O talento era aquilo a que se chama «moeda de conto» (cf. contos
de réis), ou seja, não existia como moeda. Equivalências: 1 talento = 60
minas; 1 mina = 100 dracmas; 1 dracma = 6 óbolos. No caso presente, a
noiva trouxe como dote 5 talentos. É só fazer a conta...
29
naÚklhroj significa: «armador»; «proprietário de um navio»; «piloto».

49
lado, beijei-lhe as omoplatas, e ele sempre de costas para mim, até
que, sem dar quaisquer mostras de ceder, disse: «Se continuas a
incomodar-me, vou-me já daqui embora, mesmo sendo meia-noite».

3] BÁQUIDE — Mas, afinal, tu conhecias esse tal Hermotimo?


M ELITA — Ó Báquide, assim tu me visses numa situação
mais infeliz do que aquela em que agora estou, se eu conheço
algum armador de nome Hermotimo. Ora, no dia seguinte, logo
de manhã, ao cantar do galo, Carino acordou e saiu de casa; eu,
lembrando-me de que ele havia dito que o meu nome estava es-
crito num certo muro do Ceramico30, mandei Ácide examinar a
coisa; ela não encontrou nada, a não ser esta frase gravada num
muro próximo do Dípilo, à direita de quem entra: «Melita ama
Hermotimo»; e novamente, um pouco mais abaixo: «O armador
Hermotimo ama Melita».
BÁQUIDE — Mas que intrometidos que são os jovens! Sim,
estou a entender: algum deles, querendo afligir Carino, e sabendo
como ele é ciumento, escreveu a frase; e ele acreditou. Mas deixa
estar que, se eu o encontrar por aí, falarei com ele, que é muito
inexperiente e ainda muito novo.
MELITA — Onde é que o encontrarás, se ele se encerrou e está
sempre com Símica? Os pais dele ainda o procuram em minha
casa... Mas, oxalá, Báquide, achemos alguma velha como eu te
disse, que apareça para me salvar.

4] BÁQUIDE — Sim, minha querida amiga, há aí uma excelente


feiticeira, síria de nascimento, muito dura e implacável, que, uma
vez, estando Fânias zangado comigo sem razão, tal como agora
Carino, o reconciliou comigo, passados quatro meses inteiros;
quando eu já desesperava, Carino voltou de novo para mim,
arrastado pelas fórmulas encantatórias.
MELITA — E quanto é que a velha cobra, se é que ainda te
recordas?
BÁQUIDE — Nem cobra honorários muito elevados, Melita:
apenas uma dracma e um pão; a isto há que acrescentar, além do
sal, sete óbolos, enxofre e um archote. A velha fica com tudo isto;
também é preciso encher uma cratera de vinho aguado31, que a

30
Gr. KerameikÒj «Ceramico», palavra grave, lit.te «bairro dos oleiros»
(dif. de adj. keramikÒj «de barro», «cerâmico».
31
Os gregos bebiam o vinho misturado com água, numa proporção
que variava; naturalmente, os grandes bebedores bebiam-no puro: Adde

50
velha bebe sozinha. Finalmente, será necessário algum objecto
pertencente ao homem, como mantos, sapatos, um pouco de
cabelo, ou qualquer coisa do género.
MELITA — Tenho sapatos seus.

5] BÁQUIDE — Então ela pendura-os num prego, queima en-


xofre por debaixo e espalha sal sobre o lume, proferindo os nomes
de ambos, de Carino e o teu. Depois, tirando do seio um fuso
mágico, fá-lo girar, ao mesmo tempo que, com um palavreado
muito enrolado, recita uma fórmula encantatória composta de
palavras bárbaras e que causam calafrios. Isto foi o que ela fez
naquela ocasião; e de facto, passado pouco tempo, Fânias, apesar
de os seus companheiros o censurarem e de Fébide, com quem
vivia, lhe suplicar, veio para a minha companhia, arrastado
sobretudo pela fórmula mágica. Além disso, a feiticeira ensinou-
-me este processo de causar um forte ódio [de Fânias] contra
Fébide: observar a marca dos passos deixados por ela e apagá-los,
colocando o meu pé direito sobre a marca do pé esquerdo dela,
depois o meu pá esquerdo sobre a marca do pé direito, e dizer:
«Andei em cima de ti e estou por cima de ti.» E fiz tudo o que a
feiticeira me ordenou.
MELITA — Rápido, rápido, Báquide, vai chamar essa síria. E
tu, Ácide, prepara o pão, o enxofre e tudo o mais que é necessário
para a fórmula encantatória.

merum «chega-lhe do puro!», diz um verso de Horácio.

51
(Página deixada propositadamente em branco)
5. CLONÁRIO E L EENA32

1] CLONÁRIO — Ó Leena, que coisa bizarra temos ouvido dizer


a teu respeito: que a ricaça Megila de Lesbos te ama à maneira
de homem e vós viveis juntas, fazendo não sei o quê uma com
a outra. O quê? Ficaste corada? Diz lá se isso é ou não verdade.
LEENA — É verdade, querida Clonário, e eu estou envergo-
nhada, pois é uma coisa antinatural.
CLONÁRIO — Por Afrodite33, que coisa essa! Mas que é que
quer essa mulher? Que é que vós fazeis quando estais juntas?
Estás a ver? Tu não me amas, senão não me ocultavas o facto.
LEENA — Amo, pois, mais que a qualquer outra, mas essa
mulher é terrivelmente varonil.

2] CLONÁRIO — Não percebo o que queres dizer, a não ser,


porventura, que se trate de uma espécie de amásia de mulheres, às
quais, em Lesbos, chamam «mulheres-machos», que não querem
suportar o jugo de homens, mas que têm relações com mulheres,
fazendo elas próprias de homem.
LEENA — É mais ou menos isso.
CLONÁRIO — Pois bem, Leena, conta-me lá tudo isso: como é
que, de início, ela te tentou, como é que tu te deixaste persuadir,
e o que veio a seguir.
LEENA — Tendo ela organizado uma festa, ela e a coríntia
Demonassa, mulher igualmente rica e dada às mesmas práticas
que Megila, esta levou-me também a mim, a fim de tocar cítara
para elas. Quando acabei de tocar, era já muito tarde, precisáva-
mos de dormir, e elas estavam embriagadas. «Ó Leena — disse
Megila — é melhor irmos já deitar-nos; dorme aqui connosco, no
meio das duas.»
CLONÁRIO — E tu dormiste? E depois que é que aconteceu?

3] LEENA — Primeiro, começaram por me beijar como fazem


os homens, não só aplicando os seus lábios nos meus, mas escanca-
rando a boca, ao mesmo tempo que me abraçavam e me apalpavam

32
Como subst. comum, klwn£rion (klonárion) significa «raminho»;
Lšaina (Léaina) significa «leoa». As regras da adaptação em português
nem sempre soam muito bem, como é o caso, nomeadamente de ginecó-
nimos hipocorísticos em -ion, que resultam em nomes femininos (?) em
-o: Clonário, Glicério, Musário, Quelidónio, etc.
33
O texto diz «pela educadora de jovens», um dos epítetos de Afrodite.

53
os peitos. Demonassa mordia-me ao beijar-me. Eu não sabia o que
pensar daquilo tudo. Passado algum tempo, Megila, que já estava
um tanto excitada, tirou a peruca, que lhe assentava muito bem
e parecia natural, mostrando-se completamente rapada, como os
atletas mais viris. Eu, ao vê-la assim, fiquei perturbada. Então diz-
-me ela: «Ó Leena, já alguma vez viste um jovenzinho tão belo?». E
eu: «Mas, ó Megila, não vejo aqui nenhum jovenzinho...». «Não me
trates no feminino — disse ela —, o meu nome é Megilo; desposei há
muito tempo aqui a Demonassa, que agora é minha esposa.» Ao ouvir
tal, ó querida Clonário, dei uma gargalhada e disse: «Quer dizer,
ó Megilo, que tu andavas a esconder de nós o facto de seres homem
(tal como Aquiles, que, segundo se diz, se escondia entre as moças) e
que tens aquela coisa viril e fazes com a Demonassa o mesmo que os
homens fazem?» E ela responde: «Ó Leena, aquela coisa... não tenho,
mas também não preciso absolutamente nada dela; verás, quando eu
estiver a ‘trabalhar’, que eu tenho um método muito próprio e muito
mais gostoso.» «Não serás tu — disse eu — um hermafrodita, um
dos muitos que, segundo se diz, têm ambos os sexos?» Na verdade,
amiga Clonário, eu desconhecia completamente a coisa. «Nada
disso — respondeu Megila — sou verdadeiramente homem.»

4] E eu disse: «É que ouvi a beócia Ismenodora, tocadora de


flauta, contar, entre as histórias da terra dela, que existiu em Tebas
uma mulher que se transformou em homem, e que este era um ex-
celente adivinho, creio que chamado Tirésias. Não se terá passado
o mesmo contigo?» «Nada disso, Leena — disse ela —, eu nasci
igual às outras mulheres, só os meus pensamentos e os meus desejos e
todos os outros sentimentos são próprios de homem.» «Mas — disse
eu — será que os desejos bastam?» Ao que Megila respondeu:
«Se duvidas, Leena, acede aos meus desejos e verificarás que não
fico a dever nada a um homem, pois possuo uma certa coisa que
substitui o órgão viril; mas acede e verás.» E eu, amiga Clonário,
acedi, não só por ela me suplicar insistentemente, mas também
por me oferecer um colar dos mais valiosos e vestidos dos mais
finos. Depois, abracei-a como se faz a um homem, enquanto ela
‘trabalhava’, beijando-me e arfando, pelo que me pareceu que
estava a gozar à grande.
CLONÁRIO — Mas afinal, Leena, que é que ela fazia? Como
é que fazia? Diz-me sobretudo isso.
LEENA — Não queiras saber pormenores, pois são indecorosos,
de tal modo que, por Afrodite Celeste, nunca os revelaria.

54
6. CRÓBILA E [SUA FILHA] CORINA

1] C RÓBILA — Agora já sabes, Corina, que não é tão mau


como tu julgavas passar de rapariga a mulher, viver com um
jovem formoso e ganhar como primeiro salário uma mina,
com a qual vou já comprar-te um colar.
CORINA — Sim, mamãzinha, um que tenha umas pedrinhas
cor de fogo, como o de Filénide.
C RÓBILA — Assim será. Mas escuta outra coisa que tenho
para te dizer: o que deves fazer e como deves comportar-te
com os homens. Na verdade, minha filha, não temos outro
meio de vida; não sabes como temos sobrevivido, desde há
dois anos que o teu pai, de boa memória, morreu? Enquanto
ele foi vivo, tínhamos tudo com fartura, pois era ferreiro
no Pireu, onde desfrutava de enorme prestígio; ainda hoje,
podemos ouvir toda a gente jurar que, depois de Filino, não
haverá nunca outro ferreiro como ele. Após a sua morte,
comecei por vender as tenazes, a bigorna e o martelo, tudo
por duas minas, com as quais nos sustentámos durante sete
meses. Depois, umas vezes tecendo, outras movendo a naveta
ou fazendo girar o fuso [v. bem todo o período] , lá ia ganhando
a vida a muito custo. Criei-te a ti, minha filha, como minha
única esperança.

2] CORINA — Estás a referir-te à mina [que eu ganhei]?


CRÓBILA — Nada disso, mas pensava que tu, ao chegares
à idade que tens agora, tomarias conta de mim e, ao mesmo
tempo, facilmente terias jóias, enriquecerias e terias vestidos de
púrpura e criadas.
CORINA — Mas como, minha mãe? Que queres tu dizer
com isso?
CRÓBILA — Juntando-te com jovens, bebendo com eles e com
eles dormindo a troco de dinheiro.
CORINA — Tal como Lira, a filha de Dáfnide?
CRÓBILA — Isso mesmo.
CORINA — Mas essa é uma cortesã.
C RÓBILA — E que mal tem isso? Sim, também tu enrique-
cerás, tal como ela, e terás muitos amantes. Mas... porque estás
a chorar, Corina? Não vês como são tantas e tão procuradas
as cortesãs e quanto dinheiro ganham? Conheço muito bem

55
a filha de Dáfnide (que Adrastia 34 me perdoe!): andava toda
esfarrapada, antes de a filha crescer e se tornar uma moça vis-
tosa. Mas agora vê lá como ela prosperou: ouro, vestes garridas
e quatro criadas.

3] CORINA — Mas como é que Lira conseguiu tudo isso?


C RÓBILA — Antes de mais, vestindo-se com elegância e
mostrando-se simples e bem disposta com todos os homens, sem
ir ao ponto de soltar gargalhadas, como tu costumas fazer, mas
sorrindo docemente e de maneira sedutora; depois, tratando-os
com muito tacto e não iludindo quem vem procurá-la ou lhe faz a
corte, mas também sem se apegar a nenhum homem. E sempre que
vai a um jantar mediante salário, não se embriaga (coisa ridícula;
os homens detestam tais mulheres) nem se atafulha alarvemente
de comida, mas toca-lhe só com a ponta dos dedos, [come] cada
porção em silêncio, sem atafulhar ambas as bochechas, bebe
tranquilamente, não de enfiada, mas em pequenos tragos.
CORINA — Mesmo que esteja com muita sede, minha mãe?
CRÓBILA — Sobretudo se tem muita sede. Além disso, não
fala mais do que o necessário nem troça de nenhum dos convivas,
e só olha para aquele que lhe paga. É por isso que os homens
gostam dela. Quando é preciso ir para a cama, não procede nem
com insolência nem com frieza, mas procura, acima de tudo,
atrair o homem e fazê-lo apaixonar-se por si. É isto o que todos os
homens louvam nela. Se tu, minha filha, aprenderes estas regras,
também nós seremos felizes, tanto mais que os teus dotes [físicos]
são muito superiores aos dela... e não digo mais... que Adrastia 35
me perdoe... só te desejo longa vida.

4] CORINA — Diz-me, mãe: todos os pagantes são como


Êucrito, com quem dormi a noite passada?
CRÓBILA — Nem todos: uns são mais belos, outros mais viris,
outros não devem lá muito à formosura.
CORINA — E terei de dormir também com esses?
CRÓBILA — Sobretudo com esses, minha filha. Esses são os
que pagam melhor. Os homens belos só querem uma coisa: serem

34
'Adr£steia é um outro nome de Némesis, a deusa que, entre outras
coisas, punia as pessoas demasiado felizes, especialmente se se envaideciam
com isso. Aqui, Cróbila, ao fazer referência ao próspero estado actual da
filha de Dáfnide e de sua mãe, invoca a deusa, para que esta não as castigue.
35
V. nota supra.

56
belos. Mas tu preocupa-te sempre com o lucro, se queres que,
dentro de pouco tempo, todas as mulheres te apontem a dedo e
digam: «Não vês a Corina, a filha de Cróbila, não vês como está tão
rica e como fez sua mãe três vezes feliz?» Que dizes? Vais proceder
deste modo? Pois vais, que eu bem sei, e não terás dificuldade em
ultrapassar todas as outras. Agora, vai tomar um banho, para o
caso de o jovem Êucrito vir cá hoje, pois assim prometeu.

57
(Página deixada propositadamente em branco)
7. MUSÁRIO E SUA M ÃE

1] M ÃE — Ó querida Musário, se encontrarmos um outro


amante da qualidade de Quéreas, devemos sacrificar uma cabra
branca a [Afrodite] Pandemo, uma vitela à [Afrodite] Celeste que
está nos jardins e oferecer uma coroa à [Deméter] dispensadora
de riqueza, pois seremos felizes, três vezes felizes. Estás a ver
quanto é que temos recebido desse jovem, que nunca te deu nem
sequer um óbolo, nem um vestido, nem uns sapatos, nem um
[frasco de] perfume... só desculpas, promessas, longas esperanças
e sempre a frase: «Se meu pai... se eu fosse senhor dos bens paternos,
seria tudo teu.» E tu afirmas que ele fez juramento de que faria
de ti a sua legítima esposa.
MUSÁRIO — Sim, minha mãe, jurou pelas duas deusas36 e
por Atena Políade.
M ÃE — E tu acreditas, é claro. Foi por isso que outro dia, como
ele não tivesse com que pagar a sua quota-parte [no banquete],
tu, sem eu saber, lhe deste um anel, que ele vendeu para ir beber,
e também os dois colares jónicos, que pesavam dois daricos cada
um, que o armador Práxias de Quios mandou fazer em Éfeso e
te trouxe. Sim, que Quéreas devia entrar com a sua parte junta-
mente com os amigos. E a respeito de vestidos e túnicas, que é
que eu posso dizer? Enfim, calhou-nos em sorte um sujeito que
tem sido para nós uma mina e fonte de rendimento!

2] MUSÁRIO — Mas é formoso e ainda imberbe, e afirma


que me ama, e chora, e, além disso, é filho de Dinómaca e do
areopagita Laquete, e diz que vai casar comigo, e dá-nos as mais
firmes esperanças... basta que o velho feche os olhos.
M ÃE — Pois bem, querida Musário, se precisarmos de um
par de sapatos e o sapateiro nos pedir duas dracmas, dir-lhe-
-emos: «Não temos dinheiro, mas aceita umas quantas esperanças.»
E diremos o mesmo ao padeiro; e, quando nos exigirem a renda
da casa, diremos: «Espera até que Laquete de Colito morra, que
te pagarei logo a seguir ao casamento.» Não te envergonhas de
ser a única das cortesãs que não tem uns brincos, um colar, um
vestido tarentino?

36
Deméter e Prosérpina.

59
3] MUSÁRIO — E daí, minha mãe, são elas mais felizes e
mais belas que eu?
M ÃE — Não, mas são mais espertas e sabem ser cortesãs; não
acreditam em palavrinhas doces nem em rapazotes que têm sempre
juramentos na ponta dos lábios, ao passo que tu és fiel e apegada a
um só homem, não deixas aproximar-se de ti mais nenhum que não
seja Quéreas. Ainda outro dia, quando aquele lavrador acarnano (e
esse também era ainda imberbe) cá veio oferecer-te duas minas, que
tinha tirado do dinheiro do vinho que seu pai o mandara vender,
tu desdenhaste dele, para ir dormir com o teu Adónis-Quéreas.
MUSÁRIO — E então? Havia de deixar Quéreas, para receber
aquele labrego a cheirar a bode? O meu Quéreas é maciozinho,
é, como sói dizer-se, um leitãozinho acarnano.
M ÃE — Pois seja: o acarnano é rústico e cheira mal. Mas en-
tão Antifonte, filho de Menécrates, que te prometia uma mina,
porque não o recebeste? Não era também belo, delicado e da
mesma idade que Quéreas?

4] MUSÁRIO — Mas Quéreas ameaçou que nos matava a


ambos, se alguma vez me apanhasse com ele.
M ÃE — Ora ora, quantos outros não fazem tais ameaças? Lá por
isso, ficarás sem amantes, menina ajuizada, como se não fosses cor-
tesã, mas sim uma sacerdotisa de Deméter? Mas deixemos isso. Hoje
é a Festa das Colheitas. Que é que ele te ofereceu para comemorar?
MUSÁRIO — Ó mamãzinha, ele não tem com quê.
M ÃE — Mas será ele o único que não arranjou um expediente
contra o pai, que não mandou um criado para o endrominar, que
não exigiu dinheiro à mãe, ameaçando-a de se alistar na mari-
nha, caso ela não lhe dê? Pelo contrário, fica sentado cá em casa,
sobrecarregando-nos, sem nos dar dinheiro nem deixar que outros
dêem. E tu, querida Musário, cuidas que terás sempre dezoito
anos37, ou que Quéreas manterá os mesmos sentimentos, quando
ficar rico e sua mãe lhe arranjar um casamento de muitos talentos?
Julgas que ele, à vista de um dote para aí de cinco talentos, ainda
se lembrará das lágrimas, dos beijos ou dos juramentos?
MUSÁRIO — Lembrar-se-á, sim, como se prova pelo facto
de, ainda há pouco, não se ter casado: apesar de muito instado
e pressionado, recusou.
M ÃE — Oxalá ele não te engane, pois nesse dia, querida
Musário, avivar-te-ei a memória.
37
Algumas edições têm «dezasseis».

60
8. A MPÉLIDE E CRÍSIDE

1] A MPÉLIDE — Aquele homem que não tem ciúmes da mu-


lher, que não se encoleriza com ela, que não lhe dá bofetadas,
que não lhe puxa os cabelos e não lhe rasga a roupa, será que
ainda está apaixonado?
CRÍSIDE — Mas então serão essas as únicas provas de amor?
A MPÉLIDE — Sim, esse comportamento é próprio de um
homem apaixonado. Na verdade, tudo o resto, como beijos,
lágrimas, juramentos e visitas frequentes, são sinais de um amor
na fase inicial e ainda em crescimento. Todavia, o fogo completo
manifesta-se com o ciúme. Assim, se Górgias, como afirmas, te
bate e tem ciúmes de ti, deves ter esperança e fazer votos por que
ele se comporte sempre da mesma maneira.
CRÍSIDE — Sempre da mesma maneira? Que estás para aí a
dizer? Sempre a bater-me?
A MPÉLIDE — Não, mas que fique irritado, se tu não tiveres
olhos só para ele, pois, se ele não estivesse apaixonado, por que
razão havia de se encolerizar pelo facto de tu teres outro amante?
CRÍSIDE — E é que não tenho mesmo. Ele é que suspeitou de
que um certo ricaço estava apaixonado por mim, só porque, sem
qualquer significado, calhou eu tê-lo mencionado.

2] A MPÉLIDE — Também não deixa de ser agradável que ele


suspeite de que tu és pretendida por um homem rico. Deste modo,
afligir-se-á ainda mais e esforçar-se-á por que os seus rivais não
levem a melhor sobre ele.
CRÍSIDE — No entanto, ele só faz é irritar-se e bater-me, mas
não me dá nada.
A MPÉLIDE — Há-de dar, sim, pois é ciumento... e sobretudo
se tu o fizeres sofrer.
CRÍSIDE — Mas, não sei lá porquê, Ampélide, tu queres que
eu apanhe pancada dele.
A MPÉLIDE — Nada disso, mas, segundo creio, é assim que
nascem os grandes amores, [ou seja,] quando o homem se con-
vence de que está a ser desprezado; pelo contrário, se ele julgar
que é o único a possuir-te, a sua paixão vai murchando. Quem
te dá estes conselhos é uma cortesã que já vai com vinte anos de
ofício, ao passo que tu tens, segundo creio, dezoito anos de idade,
ou ainda menos. Se quiseres, contar-te-ei o que se passou comigo
ainda não há muitos anos. Demofanto, o usurário que mora por

61
detrás do Pórtico38, estava apaixonado por mim. Ora, este fulano
nunca me tinha dado mais do que cinco dracmas, mas julgava-se
meu amo e senhor. Amava-me, minha Críside, com um amor
muito superficial, sem nunca soltar suspiros nem lágrimas, sem
ficar postado fora de horas à minha porta; só vinha para dormir
comigo, e mesmo assim de longe em longe.

3] Ora, uma vez em que ele veio visitar-me, deixei-o ficar na


rua, pois tinha dentro de casa o pintor Cálides, que me havia
enviado dez dracmas. Primeiro, foi-se embora, muito ofendi-
do; depois, tendo passado muitos dias sem que eu o tivesse
mandado chamar (pois Cálides ainda estava em minha casa),
Demofanto, já muito esquentado e inflamado com o caso, ficou
postado à porta, esperando que ela se abrisse: chorou, bateu-me,
ameaçou matar-me, rasgou-me o vestido... não houve nada que
ele não fizesse. Por fim, deu-me um talento e ficou comigo
só para ele durante oito meses completos. A mulher dele dizia
a toda a gente que eu o teria enlouquecido com drogas, mas
a única droga era o ciúme. Portanto, Críside, usa esta droga
com Górgias. Esse jovem vai ficar rico, se acontecer alguma
coisa a seu pai.

38
Gr. Sto¦ Poik…lh «pórtico pintado», «... coberto de pinturas»;
em forma reduzida, podia usar-se só uma das palavras. Aqui é a segunda,
que, adaptada ao port., daria Pécile; entendemos traduzir por «Pórtico».

62
9. DÓRCADE39, PANÍQUIDE, FILÓSTRATO E PÓLEMON

1] DÓRCADE — Estamos perdidas, minha senhora, estamos


perdidas! Pólemon chegou da guerra muito rico, segundo se diz.
Eu própria acabo de vê-lo, coberto com um manto bordado a
púrpura e com um grande séquito atrás. Assim que o viram, os
amigos correram para ele a abraçá-lo. Então eu, vendo logo atrás
dele o criado que o tinha acompanhado na expedição, primeiro
cumprimentei-o e depois perguntei-lhe: «Diz-me cá, Parmenonte,
como vos correram as coisas? Que coisa boa trouxestes lá da guerra?»
PANÍQUIDE — Não devias entrar logo assim, mas de outro
modo, como por exemplo: «Chegastes sãos e salvos, graças aos deu-
ses, especialmente graças a Zeus Protector dos Estrangeiros e a Atena
Guerreira. A minha patroa andava sempre a querer saber como vocês
se encontram, onde é que estavam». E se a isto tu acrescentasses
que ela andava chorosa e sempre a lembrar-se de Pólemon, ainda
seria muitíssimo melhor.

2] D ÓRCADE — Mas foi precisamente tudo isso que eu


comecei logo por lhe dizer, mas não tencionava repetir-te, pois
o que eu pretendia era contar-te o que ouvi; de facto, comecei
por dizer assim a Parmenonte: «Ó Parmenonte, por acaso vós não
sentistes as orelhas a zumbir?40 Sim, a minha patroa estava sempre
a lembrar-se de vós, toda chorosa, principalmente quando chegava
alguém do campo de batalha e se dizia que tinha morrido muita
gente; então arrepelava os cabelos, batia no peito desatava a chorar
a cada notícia.»
PANÍQUIDE — Muito bem, Dórcade, isso mesmo é que era
preciso.
DÓRCADE — Só logo a seguir é que lhe fiz aquela pergunta,
ao que ele respondeu: «Voltámos deslumbrantemente.41»
PANÍQUIDE — O quê? Então ele não disse, antes de mais, que
Pólemon se lembrava de mim a toda a hora, que tinha saudades
minhas e fazia votos por me encontrar viva?

39
O nome significa «Gazela»; Paníquide faz referência a «toda a noite»;
Pólemon lig-se a pólemos «guerra».
40
É pelo menos curiosa a ideia de que, quando alguém ausente está a
pensar em nós, sentimos as orelhas a zumbir (ou a arder).
41
«deslumbrantemente» é tradução à letra; poderíamos dizer «em
beleza»...

63
D ÓRCADE — Sim, com certeza, que disse muitas coisas
desse género... mas o principal é que anunciou que trazia uma
enorme fortuna em ouro, vestuário, criados, marfim... e que o
patrão não contava o dinheiro em prata à peça, mas media-o
em medimnos42 inteiros. Parmenonte até tinha no dedo mínimo
um anel enorme, multifacetado, com uma pedra tricolor nele
cravada e com a face superior vermelha. Quando o deixei, queria
contar-me como haviam atravessado o rio Hális, como tinham
morto um tal Tiridatas e como Pólemon se tinha distinguido
na batalha contra os Písidas... mas eu afastei-me a correr, a fim
de te dar as notícias, para que reflictas sobre a presente situação.
Na verdade, se Pólemon aqui vier (e certamente virá, depois de
se desembaraçar dos conhecidos), se perguntar o que se passa e
der com Filóstrato cá em casa, que achas que ele fará?

3] PANÍQUIDE — Ó Dórcade, temos de encontrar, uma for-


ma de nos safarmos desta situação: de facto, não é decente pôr
na rua Filóstrato, que ainda outro dia me deu um talento e que,
de resto, é um mercador e me promete muitos presentes; mas,
por outro lado, não seria lucrativo deixar de receber Pólemon,
que regressa numa situação destas, tanto mais que ele é muito
ciumento; além disso, se, quando ele era pobre, era insuportável,
que é que ele agora não faria?
DÓRCADE — Aí vem ele.
PANÍQUIDE — Ó Dórcade, sinto-me desfalecer de ansiedade,
toda eu tremo.
DÓRCADE — Filóstrato também vem aí.
PANÍQUIDE — Que vai ser de mim? Antes queria que a terra
me tragasse.

4] FILÓSTRATO — Então, Paníquide, porque não nos dás


de beber?
PANÍQUIDE — Ó homem, tu és a minha desgraça! E tu... Ora
viva, Pólemon, que há tempos não aparecias.
PÓLEMON — Mas quem é este tipo que entrou cá em casa?
Não dizes nada? Pois bem, Paníquide, passa muito bem. E vim
eu voando das Termópilas aqui em cinco dias, a toda a pressa,
ansioso por ver uma mulher destas! Pois foi bem feito o que me
aconteceu, e até te agradeço, pois nunca mais me hás-de explorar.
FILÓSTRATO — E tu quem és, ó valentão?
42
Medida de capacidade para sólidos: 1 medimno = c. 39 litros.

64
PÓLEMON — Fica sabendo que sou Pólemon, do demo de
Estíria e da tribo de Pândion, em tempos quiliarca43, e agora
comandante de uma força de cinco mil escudeiros, amante de
Paníquide, no tempo em que ainda julgava que ela tinha senti-
mentos humanos.
FILÓSTRATO — Mas agora, senhor capitão de mercenários44,
Paníquide é minha, já recebeu um talento e vai em breve receber
outro, assim que eu vender a mercadoria. Agora, Paníquide, vem
daí comigo e deixa este sujeito ser quiliarca entre os Ódrisas 45.
PÓLEMON — Paníquide é uma mulher livre, só irá contigo
se ela quiser.
PANÍQUIDE — Que fazer, Dórcade?
DÓRCADE — É melhor ir para casa, pois não convém que te
aproximes de Pólemon, furioso como ele está; além disso, ficaria
ainda mais ciumento.
PANÍQUIDE — Se assim te parece, entremos.

5] PÓLEMON — Pois aviso-vos que é hoje a última vez que


bebereis juntos, ou foi em vão que eu me treinei em tais massa-
cres. Já para aqui os Trácios, Parmenonte! Que venham armados
e que obstruam a rua com uma falange! Na frente-centro, os
hoplitas, de um lado e do outro os fundibulários e os arqueiros,
e os restantes atrás!
FILÓSTRATO — Ó meu mercenário, cuidas que estás a falar
a criancinhas, assim a fazer de papão? Será que já alguma vez
mataste um galo ou viste sequer uma guerra? Talvez comandante
da guarda de um posto... e já é um favor que te faço.
PÓLEMON — Dentro em breve o saberás, quando nos vires
avançar pelo flanco direito e com as armas rebrilhantes.
FILÓSTRATO — Vinde então todos preparados, que eu mais
aqui o Tibio, que é o único criado que me acompanha, desbaratar-
-vos-emos à pedrada e à caqueirada, de tal modo que nem sabereis
para onde escapar.

43
Lit.te «comandante de uma força de 1.000 homens; em Roma (época
de Luciano) correspondia a tribunus militum. Havia seis tribuni militum
(ou t. militares) por legião.
44
Ou «... de infantaria», mas a outra designação é mais claramente
depreciativa.
45
Povo da Trácia.

65
(Página deixada propositadamente em branco)
10. QUELIDÓNIO46 E DRÓSIDE

1] QUELIDÓNIO — Ó Dróside, então aquele rapazote, o


Clínias, já não te visita? Na verdade, há muito tempo que não o
vejo em tua casa.
DRÓSIDE — Já não, querida Quelidónio, pois o seu mestre
impede-o de se aproximar de mim.
QUELIDÓNIO — Quem é ele? Estarás tu a referir-te a Diotimo,
o professor de ginástica? É que esse é meu amigo.
DRÓSIDE — Não, trata-se do mais execrável dos filósofos,
raios o partam, um tal Aristéneto.
QUELIDÓNIO — Referes-te àquele tipo de olhar sombrio, de
cabelos revoltos e barbudo, que costuma deambular no Pórtico
acompanhado de jovenzinhos?
DRÓSIDE — É esse mesmo a quem me refiro, esse charlatão,
que eu gostaria de ver morto de má morte, com o carrasco a
arrastá-lo pela barba.

2] QUELIDÓNIO — Mas por que artes é que ele persuadiu


Clínias a agir assim?
DRÓSIDE — Não sei, querida Quelidónio, mas [o que é certo
é que] Clínias, que, desde que começou a ter relações com uma
mulher (e fui eu quem o iniciou nisso), nunca tinha passado uma
noite longe de mim, já vai em três dias seguidos que não aparece
nesta rua. Então eu, inquieta e sem saber o que pensar do caso,
mandei a Nébrida investigar se ele passava o tempo na Ágora
ou no Pórtico. Ela comunicou-me que o tinha visto a passear
com Aristéneto e que lhe tinha feito, de longe, um sinal, mas ele
ficou vermelho, baixou a cabeça e nunca mais voltou os olhos
para ela. Depois, encaminharam-se ambos, aluno e professor,
para a Academia. Então ela seguiu-os até ao Dípilo, mas, como
o moço nunca voltasse o rosto na sua direcção, regressou a casa
sem ter nada de concreto para contar. Como é que tu julgas que
eu tenho passado depois disso, sem poder imaginar o que se passa
com o jovenzinho? E dizia [comigo mesma:] «Será que o aborreci
nalguma coisa? Ou desgostou-se de mim e agora está apaixonado
por outra qualquer? Ou foi seu pai que o proibiu [de me visitar]?»
Estava eu, infeliz de mim, matutando nestes pensamentos, e eis
46
Mais um hipocorístico em -ion. CelidÒnion é o diminutivo de
celidèn «andorinha», que, em port. já tem ressonância diminutiva; o
nome Dróside está relacionado com drÒsoj «orvalho».

67
que, já ao cair da noite, chegou Drómon, que me trazia este bi-
lhetinho da parte dele. Pega nele e lê-mo, querida Quelidónio...,
pois julgo que sabes ler.

3] QUELIDÓNIO — Então vejamos. As letras não estão muito


legíveis, mas sim arrastadas, revelando a pressa de quem escreveu.
Diz o bilhete: «Dróside, tomo os deuses por testemunhas de como
eu te amei...»
DRÓSIDE — Oh desgraçado, que nem sequer começa por
me saudar47.
QUELIDÓNIO — «...Mas agora tenho de me separar de ti,
não por te odiar, mas porque a isso sou obrigado. É que meu pai
confiou-me a Aristéneto, a fim de estudar filosofia com este mestre,
e ele, informado de tudo o que se passava entre nós, censurou-me
vivamente, dizendo que era indecoroso que eu, filho de Arquíteles e
de Erasiclia, vivesse com uma cortesã, pois era muito melhor preferir
a virtude ao prazer...».
DRÓSIDE — Raios partam esse [velho] tonto que ensina tais
coisas ao mocinho.
QUELIDÓNIO — «... Deste modo, sou obrigado a obedecer-lhe,
pois ele segue-me de perto e vigia-me severamente; em resumo: não
me é permitido olhar para qualquer outra pessoa que não seja ele.
Além disso, promete-me que, se eu tiver juízo e lhe obedecer em
tudo, serei muitíssimo feliz e, uma vez exercitado no sofrimento,
tornar-me-ei uma pessoa virtuosa. Foi a muito custo e às escondidas
dele que escrevi estas palavras. Desejo-te boa sorte e que te lembres
de Clínias.»

4] DRÓSIDE — Que te parece esta carta, querida Quelidónio?


QUELIDÓNIO — É quase tudo palavreado à maneira dos
Citas, mas aquela frase «Lembra-te de Clínias» deixa ainda algu-
ma esperança.
DRÓSIDE — Também me pareceu. Mas morro de amores.
De facto, Drómon afirma que Aristéneto é um pederasta, que,
a pretexto das lições, tem relações com os jovens mais formosos;
que até já tem conversado em particular com Clínias, fazendo-lhe
umas certas promessas... que o tornaria igual aos deuses... Além
disso, lê com o moço certos diálogos eróticos dos filósofos antigos
47
As cartas começavam com uma fórmula mais ou menos fixa, que,
neste caso, seria mais ou menos assim: Klein…aj tÍ DrÒsidi ca…rein
«Clónias saúda Dróside».

68
aos seus discípulos; enfim, anda embevecido com o mocinho.
Drómon até o ameaçou de ir contar tudo ao pai de Clínias.
QUELIDÓNIO — Ó Dróside, tu devias encher bem a barriga
de Drómon.
DRÓSIDE — Sim, enchi, mas, mesmo sem isso, ele ser-me-ia
fiel, pois também está louco por Nébride.
QUELIDÓNIO — Anima-te, que tudo há-de correr bem.
Por minha parte, creio que vou escrever no muro do Ceramico,
onde Arquíteles costuma passear, «Aristéneto corrompe Clínias»,
de maneira que esta frase coincida com a acusação de Drómon.
DRÓSIDE — E como é que escreverás isso sem que te vejam?
QUELIDÓNIO — Ó Dróside, arranjo um pedaço de carvão
em qualquer lado e vou lá de noite.
DRÓSIDE — Bravo, querida Quelidónio, oxalá me ajudes nesta
guerra contra esse charlatão do Aristéneto.

69
(Página deixada propositadamente em branco)
11. TRIFENA E C ÁRMIDES

1] TRIFENA — Já alguma vez se viu um homem tomar uma


cortesã, pagar-lhe um salário de cinco dracmas e depois deitar-se
e voltar-lhe as costas, não fazendo senão chorar e gemer? Não
bebias com prazer e eras o único que não queria comer; durante
toda a ceia, só choravas, que eu bem vi. Mesmo agora, não deixas
de chorar como uma criança. Então, Cármides, porque procedes
assim? Não me ocultes nada, para que, pelo menos, eu tire alguma
vantagem da noite em claro que passei contigo.
CÁRMIDES — Ó Trifena, a paixão acaba comigo, já não posso
mais contra a sua violência.
TRIFENA — Bem, é evidente que não é por mim que estás
apaixonado, pois não mostrarias desprezo por mim, nem me
afastarias quando eu quero abraçar-te, nem porias, com o manto,
como que uma barreira entre nós, com receio de que eu te tocasse.
Mas então... diz-me cá quem é essa mulher; talvez eu possa, de
algum modo, contribuir para esse amor, pois conheço truques
para ajudar nessa matéria.
C ÁRMIDES — Na verdade, tu conhece-la muito bem, e ela a
ti, pois trata-se de uma cortesã bem conhecida.

2] TRIFENA — Mas, ó Cármides, como é que ela se chama?


C ÁRMIDES — Chama-se Filemácio48, Trifena.
T RIFENA — A qual delas te referes? Realmente, há duas
[com esse nome]: uma do Pireu, que há pouco tempo perdeu a
virgindade e é amante de Dâmilo, filho do actual general, ou
uma outra, a quem alcunham de Págide49.
C ÁRMIDES — Essa mesma. E eu, desgraçado, deixei-me cair
e fui apanhado por ela.
TRIFENA — Então é por essa mulher que tu choras?
C ÁRMIDES — É, pois.
TRIFENA — E há muito tempo que estás apaixonado por ela,
ou é uma coisa recente?
C ÁRMIDES — Não é coisa recente, não, mas data de há qua-
se sete meses, desde as Dionisíacas, que foi quando eu a vi pela
primeira vez.
48
Filemácio (Filhm£tion) «Beijinho» é um diminutivo-hipocorístico de
f…lhma «beijo»; mais uma vez, a adaptação rigorosa em port. não sai bem.
49
Literalmente, «armadilha»; a seguir se mostra o porquê dessa alcunha;
difícil é verter o jogo de ideias, pois o nome Págide não nos diz nada.

71
TRIFENA — Mas viste-a mesmo toda [nua], ou de Filemátio
só viste a cara e as partes do corpo que estão mesmo à vista, como
convém a uma mulher já com quarenta e cinco anos?
C ÁRMIDES — Mas ela jura que vai completar vinte e dois
anos no próximo mês de Elafebólion50.

3] TRIFENA — E tu em qual das duas coisas acreditarias: nos


juramentos dela ou nos teus próprios olhos? Examina bem, olhando
pela parte de baixo, as suas têmporas, que é o único sítio onde
ela tem cabelos naturais; o resto não passa de um chinó muito
espesso; mas na zona das têmporas, logo que se esvai a coloração da
tinta com que se pinta, aparecem os cabelos brancos. Mas... para
quê tudo isto? Insiste com ela para que te deixe vê-la toda nua.
C ÁRMIDES — Nunca se prestou a fazer-me esse favor.
TRIFENA — Naturalmente! Ela bem sabia que tu ficarias hor-
rorizado com as manchas brancas, pois, desde o pescoço até aos
joelhos, parece um leopardo. E ainda tu choravas por não estares
junto dela?! Porventura também ela te afligiu e te desprezou?
C ÁRMIDES — Sim, Trifena, apesar de tantos presentes que
recebia de mim. Ainda agora, porque não tinha ali à mão mil
dracmas para lhe dar, pois sou criado por um pai muito forreta,
ela recebeu Mósquion e deixou-me a mim na rua. Então eu, para
me vingar, resolvi também desgostá-la e escolhi-te a ti.
TRIFENA — Por Afrodite! eu não teria vindo, se me tivessem
avisado de que era escolhida para este efeito, para desgostar outra
mulher, sobretudo Filemátio, essa urna funerária. Bem, vou-me
embora, pois o galo já cantou três vezes.

4] C ÁRMIDES — Ó Trifena, não te vás com tanta pressa: se


é verdade o que dizes a respeito de Filemátio — que usa chinó,
que se pinta, e mais aquilo das manchas brancas —, nunca mais
poderei olhar sequer para ela.
TRIFENA — Pergunta à tua mãe, se é que já tem estado no
balneário com ela; e quanto à sua idade, talvez o teu avô te conte
alguma coisa, se ainda é vivo.
C ÁRMIDES — Pois então, se ela é assim, retire-se já neste
momento a ‘barreira’51, abracemo-nos, beijemo-nos e fiquemos
verdadeiramente juntos. Quanto a Filemátio, que passe muito bem.

50
Corresponde a Março.
51
Sobre o sentido deste termo, v. § 1 (2ª fala de Trifena).

72
12. IOESSA52, PÍTIAS E LÍSIAS

1] IOESSA — Ó Lísias, então agora fazes-te caro comigo?


Muito bonito! E logo comigo, que nunca te exigi dinheiro nem
te deixei ficar à porta, quando tu cá vinhas, dizendo que tinha
outro cá em casa, nem te induzi a enganar o teu pai ou a roubar
a tua mãe, a fim de me trazeres qualquer coisa, como fazem as
outras; pelo contrário, desde sempre que eu te tenho recebido
sem pagar e sem entrares com a tua parte [nas festas]... e tu bem
sabes quantos amantes eu mandei embora: Téocles, que agora é
prítane53, Pásion, o armador, e o teu companheiro Melisso, ape-
sar de lhe ter morrido o pai há pouco tempo e ele ter ficado na
posse da herança. Só eu é que fiquei sempre com o meu Fáon54,
sem olhar para nenhum outro homem e sem me aproximar de
qualquer outro que não tu. Na verdade, cuidava eu, a palerma,
na sinceridade dos teus juramentos e, por causa disso, mantinha-
-me ajuizada como Penélope, apesar de minha mãe me criticar
e me censurar perante as suas55 amigas. Então tu, sentindo que
me tinhas na mão e que eu estava perdida de amor por ti, ora
te divertias com Licena, na minha presença, só para me abor-
receres, ora fazias o elogio da citarista Magídio, quando estavas
deitado56 comigo. É por isso que eu choro e me sinto ofendida.
Aqui há dias, quando tu bebias na companhia de Tráson e de
Dífilo, estavam presentes a flautista Cimbálio e Pirálide, minha
grande inimiga, como tu bem sabes. Não me importei muito
por tu teres beijado Cimbálio cinco vezes, pois foi a ti que tu
ofendeste ao beijar uma tal mulher. Mas quantos sinais fazias a
Pirálide! Ao beber, dedicavas a taça à sua saúde e, ao devolver a
taça ao criado, ordenavas-lhe ao ouvido que não enchesse para
mais ninguém, sem que Pirálide mandasse. Por fim, deste uma
dentada numa maçã e, logo que viste que Dífilo estava distraído a
conversar com Tráson, atiraste-a com precisão ao peito da outra,
sem sequer tentares fazer com que eu não desse por isso. Então

52
Gr. „Òessa significa «(que tem cor de) violeta», «morena».
53
Os prítanes eram membros do Conselho dos 500, ou Senado. A sua
eleição era anual.
54
Jovem de Lesbos, amado de Safo.
55
O texto é ambíguo: «suas» ou «minhas».
56
Pode entender-se «deitado na cama» ou «reclinado à mesa».

73
a fulana deu um beijo na maçã e enfiou-a por entre as mamas57,
por debaixo do apara-seios58.

2] Porque te comportas assim? Que ofensa ou desgosto, grande


ou pequeno, te causei? Olhei para algum outro homem? Não
vivo eu só para ti? Ó Lísias, que grande proeza cometes, afligin-
do uma pobre mulher que está louca por ti! Mas [lembra-te de
que] existe uma deusa chamada Adrastia59, que vê actos como
este. Talvez um dia venhas a arrepender-te, ao ouvir dizer que eu
morri, quer me tenha enforcado com uma corda de nó corrediço,
quer me tenha atirado de cabeça para dentro de um poço, quer
tenha encontrado qualquer outro género de morte, para não te
importunar com a minha presença. Então poderás vangloriar-te
de ter cometido uma grande e brilhante proeza. Porque me olhas
de través e ranges os dentes? Se tens alguma coisa a apontar-me,
fala; aqui a Pitíade será a nossa juíza. Mas... que é isso? Não
respondes, vais-te embora e deixas-me aqui? Estás a ver, Pitíade,
como Lísias me trata?
PITÍADE — Ó que crueldade! Ele não se comove com as tuas
lágrimas: é uma pedra, não um homem. Mas, para dizer a ver-
dade, foste tu, Ioessa, que o estragaste, amando-o em excesso e
mostrando-lhe isso mesmo. Pelo contrário, não devias apegar-te
tanto a ele, pois os homens ficam muito orgulhosos quando se
apercebem desses sentimentos. Pára de chorar, infeliz, dá-me
ouvidos e, quando ele vier visitar-te, deixa-o ficar uma ou duas
vezes plantado na rua, e então verás como ele fica todo inflamado
e também ele completamente louco.
IOESSA — Não digas uma coisa dessas! Vai-te daqui! Deixar
Lísias na rua? Oxalá não seja ele o primeiro a separar-se de mim.
PITÍADE — Mas ei-lo que volta atrás.
IOESSA — Ai que me desgraçaste, Pitíade! Ele deve ter-te
ouvido dizer «Deixa-o ficar plantado na rua».

3] LÍSIAS — Pitíade, voltei atrás, não por causa desta mulher,


que não quero ver na minha frente enquanto ela for como é, mas
por causa de ti, para que não me condenes nem digas: «Lísias é
um homem implacável».
PITÍADE — Pois foi isso mesmo que eu disse.
57
Esta cena da maçã tem um significado erótico evidente.
58
É a peça a que em francês se chama soutien-gorge.
59
Nome menos vulgar de Némesis, deusa vingadora de actos ímpios...

74
L ÍSIAS — Queres então, Pitíade, que eu condescenda com
esta Ioessa, que agora está toda chorosa, mas que eu outro dia
surpreendi a atraiçoar-me, deitada com outro jovem?
PITÍADE — Ó Lísias, afinal de contas, ela é uma cortesã...
Mas em que circunstâncias os surpreendeste deitados na cama?
L ÍSIAS — Faz agora para aí uns seis dias, sim, por Zeus!,
mesmo seis, pois estávamos no dia dois do mês, e hoje é dia
sete. Ora, meu pai, sabendo da minha paixão por esta lindi-
nha, fechou-me em casa, dando ordens ao porteiro para que
não me abrisse a porta. Então eu, não suportando passar sem
vir ter com ela, ordenei a Drómon que se baixasse junto do
muro do pátio, no sítio onde ele é mais baixo, e me deixasse
subir-lhe para as costas, pois assim seria mais fácil de escalar.
Mas para quê alongar-me? Saltei o muro e dirigi-me para cá,
tendo encontrado a porta de entrada cuidadosamente fechada,
pois já era meia-noite. Por isso, não bati, mas, tendo erguido
ligeiramente a porta, como fizera noutras ocasiões, e tendo-
-as feito rodar nos gonzos, entrei muito de mansinho. Estava
toda a gente a dormir. Depois, às apalpadelas na parede, chego
junto da sua cama.

4] IOESSA — Por Deméter! Que é que vais dizer? Estou ansiosa.


LÍSIAS — Como não sentia somente uma respiração, primei-
ro pensei que ela estava a dormir com Lide; mas não era isso,
Pitíade, pois, tendo apalpado, percebi que era alguém com um
queixo sem barba e muito macio, uma cabeça completamente
rapada e exalando perfume. Ao dar com esta situação, ah! se eu
tivesse trazido a minha espada, não hesitaria, fica sabendo. Mas,
ó Pitíade, porque estão vocês a rir? Será para rir a história que
estou a contar-vos?
IOESSA — Ó Lísias! Então foi isso que te desgostou? Era aqui
a Pitíade quem estava deitada comigo.
PITÍADE — Não lhe contes nada, Ioessa.
IOESSA — Não lhe conto porquê? Era Pitíade, pois, meu
querido, a quem eu pedi que viesse dormir comigo, pois estava
triste por não te ter comigo.

5] LÍSIAS — Era então Pitíade a pessoa de cabeça rapada? E


como é que em seis dias lhe cresceu uma cabeleira tão grande?
IOESSA — Sabes, Lísias, ela rapou o cabelo devido a uma
doença que lhe provocava a queda do cabelo. Agora pôs uma

75
peruca. Mostra-lhe lá, Pitíade, prova-lhe que é tal e qual como eu
digo, convence-o. Eis o mocinho adúltero de quem tinhas ciúmes.
L ÍSIAS — E não tinha motivo para tal, Ioessa, tanto mais
que estava apaixonado e, além disso, lhe toquei com as minhas
próprias mãos?
IOESSA — Portanto, agora já estás convencido. Queres que
me vingue dos desgostos que me causaste? Estou no meu direito
de também estar furiosa.
LÍSIAS — De maneira nenhuma, mas antes vamos beber, e
Pitíade connosco, pois é justo que ela assista ao nosso armistício.
IOESSA — Assistirá, pois. Oh! O que eu padeci por tua causa,
ó Pitíade, o mais encantador dos jovens!60
PITÍADE — Mas também fui eu mesmo que vos reconciliei um
com o outro. Por isso, não fiques zangado comigo. Só uma coisa
te peço, Lísias: não contes a ninguém isto da minha cabeleira.

60
Aqui e na fala seguinte, insiste-se na caracterização de Pitíade como
rapaz.

76
13. L EÔNTICO, QUÉNIDAS E HÍMNIDE

1] LEÔNTICO — Conta lá, ó Quénidas, como é que eu, na


batalha contra os Gálatas, irrompi de entre a nossa cavalaria,
montado no meu cavalo branco, e como é que os Gálatas, apesar
de serem [guerreiros] corajosos, ficaram aterrorizados assim que
me viram, de tal modo que nenhum ousou fazer-me frente61. Então
eu, atirando a lança como se fosse um dardo, trespassei de um só
golpe o próprio Hiparco62 e o seu cavalo. Depois, desembainhei
a espada, virei-me com toda a alma para os que ainda resistiam
(pois restavam ainda uns quantos, os quais, tendo desfeito a falan-
ge, se agruparam em quadrado) e derrubei, só com o choque do
meu cavalo, uns sete dos seus comandantes. A seguir, brandindo
a minha espada de alto a baixo, rachei em duas a cabeça de um
dos comandantes, com elmo e tudo. Pouco depois chegaste tu,
Quénidas, já eles estavam em debandada.

2] QUÉNIDAS — Sim, sim, Leôntico. E daquela vez, na


Paflagónia, em que tu lutaste com o sátrapa em combate corpo
a corpo, não te exibiste também em grande?
L EÔNTICO — Ainda bem que lembraste essa minha mui
nobre façanha. De facto, o sátrapa, homem de enorme estatura
e considerado o melhor de todos os guerreiros [de arma pesada]
e que menosprezava as tropas gregas, saltou para o terreno entre
os dois exércitos, desafiando quem quisesse lutar com ele em
combate singular. Todos ficaram transidos de medo, comandantes
de companhia, comandantes de divisão, e até o nosso general,
que não era homem falho de coragem: de facto, estávamos sob
o comando de Aristecmo, natural da Etólia, que manejava o
dardo como ninguém, enquanto eu era ainda quiliarca. Então
eu, cheio de coragem, afasto os amigos que queriam segurar-me,
pois temiam pela minha vida, ao verem o bárbaro rebrilhando
nas suas armas douradas, grande e aterrador no seu penacho e
brandindo a lança.
QUÉNIDAS — Também eu, Leôntico, fiquei aterrorizado;
bem sabes como eu me agarrava a ti, suplicando-te que não te
arriscasses pelos outros, pois, se tu morresses, a minha vida não
teria sentido.

61
Outra interpretação: «... se manteve firme (no seu posto)».
62
«comandante de cavalaria».

77
3] LEÔNTICO — Mas eu avancei corajosamente para o meio
da arena, envergando um armamento em nada inferior ao do
paflagónio, mas todo dourado, de tal modo que se ouviu um
clamor, quer da nossa parte, quer do lado dos bárbaros, pois, ao
verem-me, tinham-me reconhecido sobretudo pelo escudo, pelo
arnês [do cavalo] e pelo penacho. Diz lá, Quénidas, com quem
é que toda a gente me comparava?
QUÉNIDAS — Com quem havia de ser, por Zeus!, senão com
Aquiles, filho de Tétis e de Peleu? O elmo assentava-te tão bem, as
vestes de púrpura bordadas com flores, o escudo resplandecente!
LEÔNTICO — Logo que nos chegámos um ao outro, o bár-
baro foi o primeiro a ferir-me, atingindo-me ao de leve com a
lança, um pouco acima do joelho; depois eu, atravessando-lhe o
escudo com a lança 63, firo-o em pleno peito; a seguir, corri para
ele, degolei-o com toda a facilidade com um golpe de espada,
despojei-o das armas e retirei-me, com a sua cabeça espetada na
ponta da lança e coberto de sangue.

4] HÍMNIDE — Basta, Leôntico! O que me estás a contar a


teu respeito é repugnante e terrível: nenhuma mulher poderia
olhar para ti, que te comprazes assim tanto com chacinas, nem
beber e dormir contigo. Pois eu vou-me daqui.
LEÔNTICO — Eu pago-te o dobro do dinheiro.
HÍMNIDE — Não suportaria dormir com um assassino.
L EÔNTICO — Não tenhas medo, Hímnide; estas coisas
passaram-se no país dos Paflagónios, mas agora estou em [tempo
de] paz.
HÍMNIDE — Mas tu és um homem maldito, pois gotejava
sobre ti o sangue da cabeça do bárbaro, que tu levavas na ponta
da lança. Depois disto, poderei eu abraçar e beijar um tal homem?
Que as Graças me livrem! Sim, que este homem não é melhor
que um carrasco.
LEÔNTICO — E no entanto, se tu me visses com o meu ar-
mamento, tenho a certeza de que ficarias apaixonada.
HÍMNIDE — Só de ouvir-te, Leôntico, fico com náuseas e
toda arrepiada; parece-me ver as sombras e os fantasmas dos
homens assassinados, sobretudo daquele pobre comandante a
quem rachaste a cabeça em duas. Que julgas [que aconteceria],
se eu tivesse assistido a essa cena e visto o sangue e os cadáveres

63
s£risa é uma lança macedónica muito comprida (14-16 pés).

78
jazentes pelo campo? Julgo que morreria, eu que nunca vi sequer
matar um galo.
LEÔNTICO — Ó Hímnide, és assim tão medrosa e fraca de
espírito? E eu que cuidava que tu te deleitarias ao ouvir-me.
HÍMNIDE — Vai mas é deleitar com as tuas histórias certas
mulheres de Lemnos ou as Danaides 64 que encontres, que eu
vou já daqui a correr para casa de minha mãe, enquanto ainda é
de dia. Segue-me, Grámide. E tu, bravo quiliarca e matador de
quantos [inimigos] quiseres, passa muito bem.
5] LEÔNTICO — Fica aqui, Hímnide, fica... Oh! Foi-se embora.
QUÉNIDAS — Pois claro, Leôntico: aterrorizaste uma menina
simples, agitando penachos e contando façanhas incríveis. Eu bem
vi como ela, logo de início, ficou pálida, enquanto tu contavas
aquela cena do comandante, e depois contraiu o rosto e ficou toda
arrepiada, quando tu contaste que lhe tinhas cortado a cabeça.
LEÔNTICO — É que eu pensava que assim lhe pareceria mais
apetecível; mas tu, Quénidas, também contribuíste para me tra-
mar, sugerindo-me aquela do combate singular.
QUÉNIDAS — Porventura não devia eu ajudar-te a mentir,
vendo o motivo da sua fanfarronice? Tu é que tornaste a coisa mais
pavorosa. Sim, que tenhas cortado a cabeça do pobre paflagónio,
vá que não vá... mas porque é que lha espetaste na ponta da lança,
de modo que o sangue escorresse para cima de ti?

6] LEÔNTICO — Esta última foi uma coisa verdadeiramente


infame, Quénidas, embora, no geral, a história não estivesse nada
mal arquitectada. Portanto, vai lá e convence-a a vir dormir comigo.
QUÉNIDAS — Digo-lhe que foi tudo mentira tua, no intuito
de lhe pareceres destemido?
LEÔNTICO — É vergonhoso, Quénidas.
QUÉNIDAS — No entanto, de outro modo ela não viria.
Escolhe, pois, de duas uma: ser detestado por ela, fazendo-te
passar por um valentão, ou dormir com Hímnide, mas à custa
de lhe confessares que mentiste.
LEÔNTICO — Ambas as coisas são penosas. Em todo o caso,
escolho Hímnide. Vai lá então, Quénidas, e diz-lhe que eu lhe
menti... mas não por completo!

64
As Danaides, filhas de Dánao, em número de 50; com excepção de
uma, as outras mataram os maridos na noite de núpcias; as mulheres de
Lemnos também tinham fama de matar os maridos...

79
(Página deixada propositadamente em branco)
14. DÓRION E MÍRTALE

1] DÓRION — Ó Mírtale, então agora pões-me na rua, agora,


que fiquei pobre por tua causa?! Mas quando te trazia tantos
presentes, era o teu amado, o teu homem, o teu senhor, era tudo
para ti. Agora que fiquei completamente «teso» e que tu arranjaste
para amante esse comerciante da Bitínia, eu sou posto na rua e
fico à tua porta a chorar, enquanto o outro faz amor contigo
todas as noites e é o único a ser admitido e a passar a noite em
tua casa... até dizes que estás grávida dele.
MÍRTALE — Tudo isso me sufoca, Dórion, principalmente
quando dizes que me deste muitos presentes e que ficaste pobre
por minha causa. Enumera lá então, desde o princípio, todos os
presentes que me deste.

2] DÓRION — Pois bem, Mírtale, enumeremos. Em primeiro


lugar, uns sapatos de Sícion, por duas dracmas. Assenta aí: duas
dracmas.
MÍRTALE — Mas também dormiste comigo duas noites.
DÓRION — E quando regressei da Síria, um frasco de ala-
bastro com perfume da Fenícia, este também por duas dracmas,
juro por Posídon.
MÍRTALE — Mas também, quando tu embarcaste, eu dei-
-te aquela túnica curta até às coxas, para que a usasses quando
estivesses a remar, e que foi deixada esquecida cá em casa pelo
timoneiro Epiuro, quando cá dormiu comigo.
DÓRION — Mas, ainda há pouco tempo, em Samos, Epiuro
reconheceu a sua túnica e fez-me despi-la, depois de uma grande
briga, meus deuses! ... Também te trouxe cebolas de Chipre, cinco
arenques65 salgados e quatro percas, quando regressei do Bósforo.
Que mais? Oito pães secos66 de marinheiro, no seu cestinho, um
cabaz de passas de figo da Cária e, finalmente, umas sandálias
douradas de Pátara. Minha Ingrata!... Ah!, já me esquecia de um
queijo enorme que uma vez te trouxe de Gítio.
MÍRTALE — Vá lá... para aí umas cinco dracmas por tudo isso.

3] DÓRION — Ó Mírtale, mas isso é o que eu, simples mari-


nheiro, podia juntar para além do salário. Acabo de ser nomeado
65
Há certa dificuldade em identificar este peixe...
66
JDeve tratar-se de biscoitos, secos para aguentarem melhor...

81
para dirigir o estibordo do navio, e tu ainda desdenhas de
mim... Mas ainda outro dia, por ocasião das Afrodisíacas,
não lancei aos pés de Afrodite uma dracma de prata em tua
intenção? Além disso, dei duas dracmas a tua mãe, para uns
sapatos, e muitas vezes tenho passado para a mão aqui de Lide
ora dois óbolos, ora quatro. Tudo isto junto faria a fortuna de
um marinheiro.
M ÍRTALE — O quê, Dórion, as cebolas e os arenques?
DÓRION — Sim, pois não tinha mais nada para te trazer. Na
verdade, se eu fosse rico, não seria remador. À minha mãe nunca
lhe dei nem sequer uma cabeça de alho. Mas... gostaria de saber
que presentes recebeste tu do bitínio.
MÍRTALE — Em primeiro lugar, estás a ver esta túnica? Foi
ele quem a comprou, bem como este colar muito grosso.
DÓRION — Foi mesmo ele? Mas eu já to conhecia desde há
muito tempo...
MÍRTALE — Aquele que tu conhecias era mais fino e não tinha
esmeraldas. Também [me ofereceu] estes brincos e um tapete e,
há pouco tempo, deu-me duas minas e pagou por nós a renda
da casa. O que não me deu foram sandálias de Pátara, queijo de
Gítio e outras bugigangas.

4] DÓRION — Mas não me dizes como é essa pessoa com


quem dormes? Já deve ter passado dos cinquenta, é completa-
mente calvo67 e tem pele cor de lagosta 68. Não vês os seus dentes?
Ó Dioscuros!69 Muitos encantos tem o homem, principalmente
quando canta e quer parecer gracioso, tal e qual, como diz o
provérbio, «um burro a tocar lira». Pois então, mulher digna de
tal homem, que te faça bom proveito70 e que vos nasça um me-
nino igual ao pai... Eu hei-de encontrar uma Délfide71 ou uma
Cimbálio qualquer da minha classe, ou a minha vizinha tocadora
de flauta ou qualquer outra. Nem todos temos [possibilidade de
dar] tapetes, colares ou presentes de duas minas.

67
Aqui alterei a pontuação da ed. Loeb.
68
Ou «caranguejo».
69
Os Dioscuros («filhos de Zeus») eram os gémeos Castor e Pólux;
heróis nacionais no Peloponeso, também tinham um templo em Atenas...
70
Há aqui um jogo de palavras talvez impossível de traduzir, entre
Ônoj «burro» e Ônaio «que lucres», «que te faça bom proveito».
71
Referência a duas prostitutas menos exigentes, certamente bem
conhecidas, e que, por estas duas razões, são aqui nomeadas.

82
MÍRTALE — Ó Dórion, feliz daquela que te tiver como aman-
te, pois hás-de trazer-lhe cebolas de Chipre e queijo, quando
regressares de Gítio.

83
(Página deixada propositadamente em branco)
15. CÓCLIDE E PARTÉNIDE

1] CÓCLIDE — Porque choras, Parténide? Donde é que vens,


que trazes a flauta72 completamente quebrada?
PARTÉNIDE — Foi aquele soldado da Etólia, o grandalhão,
amante de Crócale, que me deu bofetadas, por me surpreender a
tocar flauta em casa de Crócale, contratada pelo seu rival Gorgo;
irrompeu por ali dentro, esmigalhou-me a flauta, virou de panta-
nas a mesa onde ceavam e despejou o jarrão [do vinho]73. Depois,
arrastando pelos cabelos para fora da sala esse tal Gorgo, um tipo
rude, espancaram-no, ele, o soldado — creio que Dinómaco de
seu nome —, e um seu camarada, com tal violência, Cóclide,
que não sei se o homem sobreviverá, pois o sangue corria-lhe do
nariz e tinha toda a cara inchada e muito lívida.

2] CÓCLIDE — Terá o homem endoidecido ou foi efeito da


bebedeira e da excitação do vinho?
PARTÉNIDE — Foi o ciúme, Cóclide, e uma paixão exagerada.
Creio que Crócale tinha pedido dois talentos a Dinómaco, para
que este a tivesse só para si. Ora, como Dinómaco não estivesse
disposto a pagar essa quantia, ela pô-lo na rua, bateu-lhe com
a porta na cara — é o que se diz — e recebeu um tal Gorgo de
Énoe, rico lavrador e boa pessoa, que há muito estava apaixo-
nado por ela. Então bebia com ele e contratou-me a mim para
tocar flauta para os dois. Enquanto o beberete ia decorrendo, eu
executava uma ária lídia74, o lavrador já se tinha levantado para
dançar, e Crócale acompanhava com palmas 75... enfim, tudo
corria agradavelmente. Nisto, ouviu-se um estrondo e grande
algazarra; a porta principal foi arrombada e, logo a seguir, ir-
romperam por ali dentro oito robustos jovens, entre os quais o...
«megarense». Puseram logo tudo de pantanas, e Gorgo, como já
disse, foi espancado e jazia estendido no chão; Crócale, não sei lá
como, precipitou-se em fuga para casa da sua vizinha Tespíada; e
eu apanhei umas bofetadas de Dinómaco, que me atirou à cara

72
O texto diz «flautas»: trata-se da flauta dupla, donde, em gr., o plural.
73
Trata-se de um jarrão grande, denominado «cratera», onde se mis-
turavam vinho e água, e de onde os convivas se serviam.
74
Música dolente e sensual.
75
Melhor do que «bater as palmas», donde «aplaudir» (interpretação
de alguns comentadores e tradutores), prefiro o sentido de «acompanhar
o ritmo com palmas»..

85
a flauta quebrada, gritando: «Desaparece daqui!». E agora vou
já daqui contar o sucedido ao meu patrão, enquanto o lavrador
vai ter com alguns amigos que tem na cidade, para entregar o
«megarense» aos prítanes.
3] CÓCLIDE — É isto o que ganhamos em ter amantes soldados:
espancamentos e processos em tribunal. Aliás, dizem-se generais
e quiliarcas, mas, quando é preciso pagar, dizem: «Espera pelo
pagamento do ordenado; logo que receba a soldada, dou-te tudo.»
Raios partam esses pantomineiros. Eu é que faço bem em não
receber nem um sequer. Quem me dera um pescador, um ma-
rinheiro ou um lavrador da minha classe social, um que pouco
saiba de lisonjas, mas que me traga muitos presentes. Esses outros,
que agitam os penachos e narram as suas batalhas, ó Parténide,
é tudo conversa fiada.

86
DIÁLOGOS DOS DEUSES
Texto da ed. de Karl Mras, Die Hauptwerke des Lukian
I NTRODUÇÃO

Embora muitas das obras de Luciano assumam a forma de


diálogo, algumas receberam mesmo esse título: Diálogos dos
Deuses, Diálogos dos Deuses Marinhos, Diálogos dos Mortos e
Diálogos das Cortesãs. Sob o aspecto de curtas cenas mais ou
menos dramatizadas, Luciano critica a velha mitologia, as
velhas e novas crendices, a moralidade de deuses e homens, a
vida social do seu tempo, etc.
Especialmente nos Diálogos dos Deuses, Luciano refere-se a
certos aspectos do comportamento dos deuses, que certamen-
te mais escandalizariam as mentes mais instruídas. Podemos
mesmo perguntar se, pelo menos no tempo de Luciano, os
intelectuais e os filósofos acreditavam mesmo nos deuses e
nos seus diversos e vergonhosos... currículos. Já muito antes
do tempo de Luciano, surgem figuras que põem em causa toda
essa mitologia, como, no tempo de Sócrates, um tal Diágoras
de Melos; e até mesmo Sócrates não se livrou da acusação de
não acreditar nos deuses em que a cidade acreditava.
Naturalmente, muitos filósofos, prosadores, poetas e outros
intelectuais, encaravam a mitologia como elemento cultural que
não deviam destruir, ou como uma preciosa herança inspira-
dora da arte e da literatura, que era preciso preservar. Mas, do
mero ponto de vista da existência dos deuses e da realidade dos
seus actos, poucos seriam os que verdadeiramente acreditavam.
Diferente seria, porém, o caso das pessoas comuns, às quais
geralmente não ocorrem questões de simples lógica racional.
Veja-se, p. ex., o diálogo (Diálogo dos Mortos, 30) trava-
do entre Minos, juiz dos infernos, e o malfeitor e assassino
Sóstrato, que Minos sumariamente condena a ser lançado no
Piriflegetonte (rio de fogo). Ora o condenado acha-se no di-
reito de se defender, por muito que Minos entenda que ele não
pode ter nada a alegar em sua defesa. É interessante o facto de
o acusado não negar os seus crimes, mas a defesa vai ser feita
segundo o método dialéctico. Diz Sóstrato que a condenação,
simplesmente, não é justa. E porquê? Porque o acusado é — como
hoje diríamos — inimputável, já que todos os seus actos foram
involuntários, pelo simples facto, reconhecido por Minos, de
todos esses actos terem sido tecidos pela Parca (Cloto), à qual
nem os homens nem sequer os deuses podem opor-se. Por isso
Sóstrato argumenta que, se uma pessoa é forçada a cometer

89
um acto, sem ter capacidade de a ele se opor, o culpado será,
única e simplesmente, aquele que deu uma tal ordem, e não
o executor, o qual — reconhece Minos — tem tanta culpa
como, por exemplo, uma espada que mata, mas sem vontade
própria. Então Minos, reforçando ainda mais a razão do...
sofista («Poderás ver muitas outras coisas que ocorrem contra a
lógica»), manda-o em paz, mas avisando: «Mas vê lá não ensines
também os outros mortos a fazerem perguntas dessas.»
Naturalmente, o argumentador não é Sóstrato, mas Luciano,
que, deste modo, põe a nu a fragilidade da justiça divina.
Outros cenas dos Diálogos dos Deuses poderiam ilustrar o
espírito crítico de Luciano. O leitor, à medida que for lendo
cada diálogo, sentirá esse criticismo ao mesmo tempo risonho e
corrosivo. Para os poetas e oradores, a mitologia constitui uma
riquíssima fonte de inspiração, mas os filósofos e os historiadores
devem distanciar-se do sentido literal dessas autênticas fábulas.
Por exemplo: Zeus e as suas metamorfoses para fins clandestinos
(Io, Ganimedes...) e os seus... partos incríveis: dá à luz Atena (pela
cabeça) e Dioniso (pela coxa); os amores, ainda que infelizes, de
Apolo com Jacinto e Dafne; a raiva e o ciúme, muito... humanos
de Hera; Hermes, o menino ladrão e senhor de outras astúcias;
o deus Hélio, o Sol, por ordem de Zeus, faz uma paragem no
seu curso, de forma que a duração da noite triplique, para que
Zeus possa passar uma tripla noite de amor com a esposa de
Anfitrião; noutra ocasião, o mesmo Hélio entrega a condução
do carro a seu filho Faetonte: resultado catastrófico; a deusa
Selene, a Lua, também se atrasa no seu curso, para contemplar
o seu bem-amado Endímion dormindo; as frechadas de Eros e
outras traquinices nada inocentes; os novos deuses, Asclépio e
Héracles, e a sua rivalidade fútil; os amores furtivos de Afrodite
e Ares; o concurso de beleza entre Atena, Hera e Afrodite e os
processos de influenciar (leia-se: subornar) o juiz, processos que,
no caso de Afrodite, são verdadeiramente abjectos, não só para
nós, modernos, mas também para Luciano e muitas pessoas
sensatas, que não viam no comportamento dos deuses nada ou
quase nada digno de imitação.

OBSERVAÇÃO
1. Seguimos a ordenação e a numeração de K ARL MRAS, Die
Hauptwerke des Lukian, Ernst Heimeran Verlag, Viena, 1954. A
numeração da ed. Loeb (e outras edições) vai entre parênteses rectos.

90
2. No entanto, o texto de base é o da «Loeb Classical Library»,
com algumas modificações,
3. Incluímos nos Diálogos dos Deuses o Nº 20 de MRAS (O
Julgamento das Deusas), que a ed. Loeb remete para o vol. III.
Neste diálogo, seguimos as lições de MRAS.

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(Página deixada propositadamente em branco)
DIÁLOGOS DOS DEUSES
(Página deixada propositadamente em branco)
1. PROMETEU E Z EUS [5]

1] PROMETEU — Ó Zeus, solta-me, que já padeci horrivelmente.


ZEUS — O quê? Soltar-te, a ti, que devias ter grilhetas ainda
mais pesadas, ter todo o Cáucaso sobre a tua cabeça e dezasseis
abutres não só a dilacerar-te o fígado, mas também a arrancar-te
os olhos, como castigo por nos teres modelado esses seres que são
os homens, por nos teres roubado o fogo e teres criado mulheres?
Será preciso mencionar também como me enganaste na distri-
buição da carne, servindo-me ossos disfarçados nas gorduras e
guardando para ti a melhor das partes?
PROMETEU — Porventura não fui já suficientemente punido
durante todo este tempo pregado no Cáucaso, alimentando com
o meu fígado a pior das aves, esta maldita águia?
ZEUS — Isso não é nem sequer uma pequena parte do que
mereces sofrer.
PROMETEU — Em todo o caso, ó Zeus, não será gratuitamente
que me soltarás, pois [em troca] eu fornecer-te-ei uma informação
muitíssimo importante.

2] ZEUS — Estás a querer iludir-me, Prometeu.


PROMETEU — E que é que eu ganharia com isso? De facto,
nessa altura, tu não desconhecerias onde fica o Cáucaso nem
terias falta de grilhões, caso eu fosse apanhado a enganar-te.
ZEUS — Mas, antes de mais, diz-me cá que paga é essa assim
tão importante que tu me darás.
PROMETEU — Se eu te disser para onde é que tu te encami-
nhas neste momento, acreditarás em mim e nas minhas restantes
profecias?
ZEUS — Claro que sim.
PROMETEU — Vais a casa de Tétis, para teres relações com ela.
ZEUS — Nisso acertaste; mas... e a seguir? Sim, parece-me
que vais dizer uma coisa verdadeira.
PROMETEU — Ó Zeus, não tenhas relações com a Nereida,
pois, se ela engravidar de ti, a criança far-te-á o mesmo que tu
fizeste a...76
ZEUS — Queres tu dizer que serei expulso do meu reino?
PROMETEU — Oxalá que não, Zeus... mas uma relação com
ela é uma ameaça algo parecida com isso.

76
... Cronos, deposto pelo filho. Prometeu não se atreve a dizer o nome.

95
ZEUS — Nesse caso, digamos adeus a Tétis. Que Hefesto te
solte por esta informação.

96
2. EROS E Z EUS [6]

1] EROS — Ó Zeus, se eu pequei nalguma coisa, perdoa-me,


pois ainda sou uma criança insensata.
ZEUS — Tu, Eros, uma criança... tu que és muito mais velho
que Jápeto? Lá porque não tens barba nem cabelos brancos, já te
julgas no direito de ser considerado um bebé... tu, que não passas
de um velho e de um velhaco?
EROS — Então que grande mal é que eu te fiz, eu, um velho,
segundo dizes, para pensares em me pôr a ferros.
ZEUS — Vê lá bem, meu tratante, se é coisa de pouca monta
teres feito pouco de mim, a ponto de não haver figura por que
não me tenhas feito passar: sátiro, touro, [chuva de] ouro, cisne,
águia... Ora, tu nunca por nunca fizeste que uma mulher se apai-
xonasse [espontaneamente] por mim, nem nunca me apercebi de,
graças a ti, ter sido agradável a uma mulher, mas, pelo contrário,
tive de servir-me de artes mágicas e disfarçar-me. Elas gostam
muito de um touro ou de um cisne, mas, se me vissem [como eu
sou], morreriam de medo.

2] EROS — É natural, ó Zeus, pois elas, mortais como são,


não suportam o teu aspecto.
ZEUS — Então porque é que Branco e Jacinto amam Apolo?
EROS — E no entanto, Dafne fugia de Apolo, apesar de ele
ter uma [bela] cabeleira e ser imberbe. Ora, se queres ser amado,
não agites a égide nem empunhes o raio, mas mostra-te o mais
simpático possível e terno só de se ver; usa cabeleira encaracola-
da, presos ao alto com uma mitra, veste um manto de púrpura,
[calça] umas sandálias de ouro, caminha ritmicamente ao som
da flauta e de pandeiros, e verás que vão atrás de ti em número
maior que as Ménades de Dioniso.
ZEUS — Vai-te daqui! Não admitiria ser amado à custa de me
apresentar desta forma.
EROS — Nesse caso, ó Zeus, não queiras amar: é mais fácil
assim.
ZEUS — Oh não! [Eu quero] amar, sim, mas também con-
seguir chegar junto delas sem problemas. Por estes dois favores,
deixo-te ir em paz.

97
(Página deixada propositadamente em branco)
3. Z EUS E HERMES [7]

ZEUS — Ó Hermes, conheces a formosa filha de Ínaco?


HERMES — Sim; referes-te a Io?
ZEUS — Já não é uma moça, mas uma bezerra.
HERMES — Que monstruosidade! Como é que se transformou?
Z EUS — Foi Hera, que, por ciúmes, a metamorfoseou. E
concebeu ainda contra a desgraçada uma coisa inaudita e terrível:
pôs a guardá-la um certo pastor de muitos olhos, de nome Argos,
que apascenta a bezerra sem nunca adormecer.
HERMES — E então que é que eu devo fazer?
ZEUS — Voa até Nemeia — que é nessa região que Argos
pastoreia —, mata-o, leva Io por cima do mar até ao Egipto e
transforma-a em Ísis; daí em diante, será uma deusa para os desse
país, fará refluir as águas do Nilo, enviará os ventos e salvará os
navegantes.

99
(Página deixada propositadamente em branco)
4. Z EUS E G ANIMEDES [10]

1] ZEUS — Vamos lá, Ganimedes: agora que chegámos ao


nosso destino, dá-me já um beijo, para que verifiques que já não
tenho um bico adunco, nem garras afiadas, nem asas, na forma
em que te apareci, disfarçado de ave.
G ANIMEDES — Ó homem! Então há pouco não eras uma
águia que me raptou do meio do meu rebanho e me trouxe voando
até aqui? Como é que essas tuas asas desapareceram, e agora te
mostras completamente diferente?
ZEUS — Meu jovenzinho, tu não estás a olhar nem para um
homem, nem para uma águia, pois, aqui onde me vês, sou o rei
de todos os deuses: só momentaneamente mudei de figura.
GANIMEDES — É o quê? Tu és o famoso Pã? Então porque é
que não trazes a flauta, nem tens cornos, nem as pernas peludas?
ZEUS — Julgas que esse [Pã] é o único deus?
G ANIMEDES — Sim, e até lhe sacrificamos um bode não
castrado, que levamos à gruta onde ele está. Mas... tu pareces
mais um traficante de escravos.

2] ZEUS — Diz-me cá: nunca ouviste [pronunciar] o nome de


Zeus, nem viste o seu altar no Gárgaro, desse Zeus que chove,
troveja e produz o raio?
GANIMEDES — Então, meu caro, estás a dizer que és aquele que
outro dia atirou para cima de nós uma forte granizada, aquele que,
segundo dizem, habita lá em cima, aquele que grande estrondo,
a quem meu pai sacrificou um carneiro? Ora, que mal te fiz eu,
ó rei dos deuses, para me teres raptado? Neste momento, talvez
os lobos tenham caído sobre as minhas ovelhas desprotegidas e
estejam a despedaçá-las.
ZEUS — Ainda estás preocupado com as ovelhas, tu, que foste
feito imortal e vais coabitar aqui connosco?
GANIMEDES — É o quê? Então não tencionas levar-me ainda
hoje para o [monte] Ida?
ZEUS — De maneira nenhuma, pois teria sido em vão que eu
me transformei de deus em águia.
GANIMEDES — Mas o meu pai há-de procurar-me e ficará
zangado por não me encontrar, e eu levarei pancada por ter
abandonado o rebanho.
ZEUS — E onde é que ele te encontrará?

101
GANIMEDES — Isso nunca, pois tenho saudades dele. Mas,
se me levares de volta, prometo-te que te será sacrificado outro
carneiro do seu rebanho como paga da minha libertação. Temos
aquele de três anos, o grande, que conduz [o rebanho] para a
pastagem.

3] ZEUS — Como é ingénuo este menino, como é simpló-


rio... sim, é isso mesmo: é ainda um menino... Em todo o caso,
Ganimedes, diz adeus a todas essas coisas e esquece-te delas: do
teu rebanho e do Ida. Ora tu, que agora já és um ser celestial,
podes, daqui, fazer bem ao teu pai e à tua pátria e, em vez de
queijo e leite, comerás ambrósia e beberás néctar; apenas terás
de servir esta bebida a todos nós; e, ainda mais importante, já
não serás homem, mas sim imortal; e farei que a tua estrela seja
a mais brilhante... enfim, serás completamente venturoso.
GANIMEDES — E... se eu quiser brincar, quem brincará co-
migo? Sim, que no Ida éramos muitos da mesma idade.
ZEUS — Tens cá, para brincar contigo, aqui o Eros, e muitos
ossinhos para jogares. Vá lá, anima-te, mostra-te alegre e não
anseies pelas coisas lá de baixo.

4] GANIMEDES — Mas em que é que eu vos seria útil? Haverá


por cá necessidade de um pastor?
ZEUS — Não, mas serás o nosso escanção, terás a teu cargo
o néctar e supervisionarás o banquete.
GANIMEDES — Isso não me é penoso, pois sei como se deve
verter o leite e colocar a vasilha.
ZEUS — Vejam lá como ele se lembra outra vez do leite e jul-
ga que está a servir homens. Isto aqui é o céu e, como eu disse,
bebemos néctar.
GANIMEDES — Mas, ó Zeus, isso é mais agradável que o leite?
ZEUS — Em breve o saberás e, depois de provares, nunca mais
terás saudade de leite.
GANIMEDES — E onde é que eu dormirei de noite? Com o
meu companheiro Eros?
ZEUS — Não, pois eu raptei-te com a intenção de dormirmos
juntos.
G ANIMEDES — Não poderias dormir sozinho? Será mais
agradável dormir comigo?
ZEUS — Sim, pelo menos com um rapaz tão formoso como
tu, Ganimedes.

102
5] GANIMEDES — Em que é que a minha formosura te fará
bem em termos de sono?
ZEUS — Ela possui um doce encanto, que torna o sono mais
suave.
GANIMEDES — Mas o meu pai zangava-se comigo, quando
eu dormia com ele, e dizia, logo de manhã, que eu o tinha im-
pedido de dormir, revolvendo-me na cama, dando-lhe pontapés
e falando enquanto dormia, de tal modo, que, a maior parte das
vezes, me mandava dormir junto de minha mãe. Portanto, se,
como dizes, foi para isso [para dormir contigo] que me raptaste,
estás a tempo de me pôr de novo na terra, ou terás problemas de
insónia, pois eu incomodar-te-ei revolvendo-me continuamente
[na cama].
ZEUS — Isso mesmo é a coisa mais agradável que tu me farás:
ficar acordado ao teu lado, beijando-te mil vezes e abraçando-te.
GANIMEDES — Tu próprio verás: eu dormirei, enquanto tu
me dás beijinhos.
ZEUS — Nessa altura veremos o que fazer; mas por agora, ó
Hermes, leva-o e, depois de ele beber um trago de imortalidade,
trá-lo para nos servir de escanção, mas primeiro ensina-o como
deve servir a taça.

103
(Página deixada propositadamente em branco)
5. HERA E Z EUS [8]

1] H ER A — Ó Zeus, desde que raptaste este jovenzinho


frígio e o trouxeste do monte Ida, dás-me muito menos atenção.
Z EUS — Ó Hera, então já estás com ciúmes dele, tão sim-
ples e tão inocente? Eu pensava que tu eras dura apenas para
as mulheres que tivessem relações comigo.

2] H ER A — Não procedes bem nem é decoroso para ti


que, sendo senhor de todos os deuses, me deixes aqui, a mim,
tua legítima esposa, e desças à terra para cometer adultérios,
disfarçado de [chuva de] ouro, de sátiro, de touro... com a dife-
rença de que essas mulheres ficam na terra, ao passo que a este
jovem lá do [monte] Ida, tu, o mais nobre de entre... as águias,
raptaste-o, voaste com ele até cá para cima, e agora convive
aqui connosco, impingido assim sem o meu consentimento,
para, supostamente, ser teu escanção. Precisas assim tanto de
escanções? Ou será que Hebe e Hefesto se fartaram de ser teus
criados? Ora, tu não recebes o a taça das mãos deste [jovem]
sem antes o beijares à vista de toda a gente... um beijo que é,
para ti, mais doce que o néctar, e por isso é que, mesmo sem
teres sede, estás sempre a pedir mais uma taça; algumas vezes,
provas só um pouquito, e devolves-lhe a taça; e, depois de ele
ter bebido, pegas na sua taça e bebes o que fica no fundo, pelo
bordo por onde o jovem tinha bebido e onde tinha tocado
com os lábios, de modo que bebes e beijas ao mesmo tempo.
Aqui há dias, o rei e pai de todos, tendo poisado a égide e o
raio, sentou-se a jogar aos ossinhos com ele... com uma barba
desse tamanho todo... Sim, eu vi tudo isso, não julgues que
me passou despercebido.

3] Z EUS — E que mal tem, ó Hera, que eu, ao mesmo tem-


po que bebo, beije e me console com ambas as coisas, com o
beijo e com o néctar? Se eu permitir que ele te beije nem que
seja uma só vez, deixarás de me censurar por considerar que o
beijo é preferível ao néctar.
H ERA — Isso são palavras de pederastas. Oxalá nunca fique
tão louca, que aproxime os meus lábios desse delicado frígio,
tão efeminado.
Z EUS — Ó nobre [Senhora], não me censures pelo meu
queridinho: este efeminado, este bárbaro, este delicadinho é

105
para mim mais deleitoso e mais desejável que... — Não, não
quero dizer, para não te exasperar ainda mais.
4] H ER A — Cá por mim, até podes casar com ele; mas
lembra-te dos insultos avinhados que me lançaste por causa
desse escanção.
Z EUS — Pois não... [Se calhar] era melhor ser Hefesto, o
teu filho coxo, a servir-nos o vinho, ao chegar da forja, ainda
sujo de escumalha, acabado de poisar a tenaz, e recebermos a
taça daqueles seus dedos, puxá-lo para nós e beijá-lo... Nem
mesmo tu, sua mãe, terias gosto em beijá-lo, assim com o rosto
todo negro de fuligem. Ai não? Quer dizer que Hefesto seria o
escanção mais adequado ao simpósio dos deuses, e Ganimedes
devia ser recambiado para o [monte] Ida? Na verdade, este é
muito asseado, tem dedos rosados, sabe como se oferece a taça
e — é isso que mais te aflige — os seus beijos são mais doces
que o néctar.

5] H ER A — Ó Zeus, então só agora, desde que o monte Ida


gerou este belo jovem de longa cabeleira, é que Hefesto é coxo,
é que os seus dedos são indignos da tua taça, está coberto de
fuligem e ficas com náuseas só de vê-lo, mas dantes não vias
nada disso, e a escumalha e a forja não te impediam de tomar
a bebida da sua mão.
Z EUS — Ó Hera, com esses teus ciúmes, não fazes mais
que afligir-te a ti e aumentar a minha paixão. Se te desgosta
receber a taça das mãos deste formoso jovem, que o teu filho
te sirva de escanção... E tu, Ganimedes, serve-me a taça só a
mim e, de cada uma, beija-me duas vezes: sempre que ma ser-
vires cheia, e depois outra vez quando ta devolver. Mas... que
é isso? Estás a chorar? Não tenhas medo: se alguém pretender
afligir-te, lamentar-se-á [amargamente].

106
6. HERA E Z EUS [9]

1] H ER A — Ó Zeus, que opinião tens tu a respeito desse


tal Ixíon?
Z EUS — É boa pessoa, Hera, e bom companheiro de be-
bida... aliás, não acompanharia connosco, se fosse indigno da
nossa mesa.
H ER A — Pois é mesmo indigno, esse insolente. Por isso,
nunca mais o convides.
Z EUS — Que insolência é que ele cometeu? Sim, preciso
de saber.
H ER A — Claro que sim... mas... envergonho-me de dizer,
tão grande foi o seu descaramento.
Z EUS — Se ele cometeu uma acção assim tão vergonhosa,
maior razão para me contares. Acaso terá ele tentado seduzir
qualquer pessoa? Imagino o género de acto vergonhoso, para
que tu hesites em contar.

2] H ER A — Foi a mim, ó Zeus, e não a qualquer pessoa [que


ele tentou seduzir]... e já desde há bastante tempo. Ao princí-
pio, não percebia a coisa, quando ele olhava para mim muito
fixamente; suspirava e lacrimejava; e, sempre que eu, depois
de beber, entregava a taça a Ganimedes, ele pedia-lhe que lhe
desse de beber por essa mesma taça; pegava nela, beijava-a, e,
a meio [da bebida], aproximava-a dos olhos e voltava a olhar
para mim. Nesse momento, compreendi que eram sinais de
amor. Durante muito tempo, tive vergonha de te contar, além
de que julgava que o homem havia de pôr termo a essa loucura;
Quando, porém, se atreveu a declarar-se por palavras, eu deixei-o
ainda a chorar e a rebolar-se pelo chão, tapei os ouvidos para
não o ouvir suplicar coisas insolentes e vim contar-te. Agora,
trata tu mesmo de punir o indivíduo.

3] ZEUS — Que grande tratante, [querendo] passar por cima


de mim e [chegar] até ao amor de Hera. Estaria ele assim tão
embriagado de néctar? Mas nós é que temos a culpa disto, por
sermos demasiado amigos dos homens e por tê-los feito nossos
convivas nos banquetes. Portanto, eles até têm desculpa, se,
bebendo o mesmo que nós e vendo as beldades celestes e todas
as outras coisas que nunca tinham visto na terra, desejaram
gozar de tudo isso, tocados pelo amor; sim, que o amor é uma

107
força violenta, que domina não só os homens, mas também,
algumas vezes, nós próprios, [os deuses].
H ER A — Pelo menos de ti, Amor é senhor absoluto, que,
segundo se diz, te traz preso e te arrasta pelo nariz; e tu segue-lo
para onde quer que ele te conduza, transformas-te facilmente
naquilo que ele ordena... numa palavra, és sua propriedade
e seu joguete. E agora estou a ver que lhe concedes perdão,
atendendo a que tu próprio tiveste relações adúlteras com a
mulher dele, que te deu à luz Pirítoo.

4] Z EUS — Continuas a evocar todas as vezes que eu fui à


terra para me divertir? Sabes o que entendo fazer com Ixíon?
Castigá-lo ou expulsá-lo da nossa mesa... de modo nenhum,
pois seria falta de educação. Mas, uma vez que ele está apaixo-
nado e, segundo dizes, chora e sofre tormentos insuportáveis...
H ER A — O quê? Ó Zeus! Receio que também tu vás dizer
algo ultrajante.
ZEUS — De modo nenhum, mas antes, modelemos, com uma
nuvem, uma imagem igual a ti; e, quando o banquete terminar e ele,
como é natural, não consiga dormir por causa da paixão, nós leva-
mos a imagem e colocamo-la reclinada sobre ele; assim, ele deixaria
de se atormentar, julgando que tinha conseguido o que almejava.
H ER A — Raios partam o homem, mais os seus desejos
acima do que é possível.
ZEUS — Espera um pouco, Hera. Sim, que mal te poderia vir
da tua imagem, se, afinal, Ixíon tiver relações com uma nuvem?

5] H ER A — Mas a nuvem parecer-se-á comigo, e então a


vergonha recairá sobre mim, devido à parecença.
ZEUS — Nada disso, pois nem a nuvem se transformará alguma
vez em Hera, nem tu em nuvem. Só Ixíon é que será enganado.
H ER A — Mas os homens são todos uns ignorantes, e ele,
ao descer à terra, talvez se gabe e conte a toda a gente que tem
tido relações com Hera, que compartilha o leito com Zeus e,
enfim, afirmará que eu o amo; e os homens acreditarão, sem
saberem que ele teve relações com uma nuvem.
Z EUS — Pois bem, se ele disser uma coisa dessas, precipitá-
-lo-ei no Hades, amarrá-lo-ei a uma roda, juntamente com a
qual o desgraçado girará continuamente e sentirá um sofrimento
sem fim, como punição, não da sua paixão amorosa (pois isso
não tem nada de mal), mas da sua exagerada fanfarronice.

108
7. H EFESTO E A POLO [11]

1] H EFESTO — Já viste, ó Apolo, o bebé recém-nascido de


Maia, como é formoso e ri para toda a gente, e como revela já
que será uma grande personagem?
A POLO — Ó Hefesto! Uma grande personagem, aquele
bebé, que é mais velho que Jápeto no que toca a velhacaria?
H EFESTO — Mas que mal poderia ele ter feito, assim aca-
bado de nascer?
A POLO — Pergunta a Posídon, a quem ele roubou o tri-
dente, ou a Ares, cuja espada, sem ele dar por isso, lhe tirou
da bainha... isto para não falar de mim próprio, a quem ele
desarmou do arco e das flechas.

2] H EFESTO — Este recém-nascido, envolto em fraldas,


que mal se tem nas pernas?
A POLO — Ficarás a saber, ó Hefesto, caso ele chegue perto
de ti.
H EFESTO — E é que já chegou mesmo.
A POLO — E então? Tens todas as ferramentas, sem faltar
nenhuma?
H EFESTO — Todas, Apolo.
A POLO — Em todo o caso, repara bem.
HEFESTO — Por Zeus! Não vejo a tenaz.
A POLO — Mas vê-la-ás nas fraldas do bebé.
H EFESTO — Terá uma mão assim tão ágil, como se tivesse
praticado no ventre da mãe?

3] A POLO — E ainda tu não o ouviste falar: é cá um pala-


vreado, uma fluência... Além disso, quer já servir-nos [como
mensageiro]. Ontem mesmo, tendo desafiado Eros [para uma
luta], venceu-o num instante, atirando-o ao chão, não sei lá
como, com um golpe de pés; depois, no momento em que es-
tava a ser felicitado, roubou a cinta a Afrodite, enquanto esta o
abraçava pela vitória; e, ainda Zeus estava a rir com este caso,
roubou-lhe o ceptro; e, se o raio não fosse tão pesado e não
tivesse tanto fogo, também o roubaria.
H EFESTO — Pelo que me contas, trata-se de uma criança
sobredotada.
A POLO — E não é tudo, pois ele já é um [grande] músico.
H EFESTO — Como podes provar isso?

109
4] A POLO — Tendo achado uma tartaruga morta, construiu
com ela um instrumento musical: acrescentou-lhe um braço,
fixou-lhe uma travessa, depois meteu-lhe cavilhas, pôs-lhe um
cavalete e, com sete cordas esticadas, toca com muitíssima
graça e harmonia, de tal modo que eu próprio, que há muito
pratico a lira, fico cheio de inveja. Dizia-me Maia que ele não
permanece de noite no céu, mas que, por curiosidade, desce
até ao Hades... para de lá roubar qualquer coisa, é claro. Ele
até possui asas nos pés e mandou fazer um caduceu com um
poder maravilhoso, com o qual conduz as almas e leva os
mortos lá para baixo.
H EFESTO — Fui eu que lho dei, para ele brincar.
A POLO — E ele pagou os teus honorários, foi-te à tenaz e...
H EFESTO — Fizeste bem em me lembrar: vou já buscá-la...
se é que, como tu dizes, ela se encontra no meio das fraldas.

110
8. H EFESTO E Z EUS [13]

1] H EFESTO — Ó Zeus, que é que queres que eu faça? Pois


aqui estou, como me ordenaste, com o machado muito bem
afiado, capaz de cortar uma pedra 77 de meio a meio de um só
golpe.
Z EUS — Muito bem, Hefesto. Pois então racha-me a cabeça
com um golpe de alto a baixo.
H EFESTO — Estás a experimentar-me, a ver se eu estou lou-
co? Manda-me mas é fazer o que realmente queres que eu faça.
Z EUS — Isso mesmo: que me raches o crânio. Se não me
obedeceres, não será a primeira vez que experimentarás a minha
fúria. Mas deves bater-me com toda a alma e sem tardar, pois
estou aflito de morte, com dores de parto que me transtornam
a cabeça.
H EFESTO — Vê lá bem, Zeus, não te cause algum mal, pois
o machado está muito afiado e não executará o parto sem dor
nem à maneira de Ilitia.
Z EUS — Vamos, Hefesto, chega-lhe de alto a baixo, com
alma! Eu é que sei o que é do meu interesse.
H EFESTO — [Contra a minha vontade]78 , mas vou mesmo
chegar-lhe. Sim, que poderei fazer contra as tuas ordens? Mas...
que é isto? Uma jovem armada? Ó Zeus, tinhas um grande mal
na cabeça. É natural que andasses de mau humor, gerando sob
a membrana do cérebro uma jovem desse tamanho todo, viva
e ainda por cima armada. Sem nós nos apercebermos, o que tu
tinhas era um campo de batalha, não uma cabeça... E agora ela
salta, executa a dança pírrica, agita o escudo, brande a lança e
está possuída de entusiasmo divino e — o mais maravilhoso
de tudo — tornou-se, em muito pouco tempo, muitíssimo bela
e vigorosa; é certo que tem os olhos cinzentos, mas o elmo
disfarça este defeito. Portanto, ó Zeus, como pagamento ao
parteiro, promete-ma já em casamento.
Z EUS — Ó Hefesto, pedes-me uma coisa impossível, pois
ela vai querer ser virgem para sempre. Cá por mim, não tenho
nada a opor.
H EFESTO — É o que eu queria ouvir. Deixa o resto comigo,
que vou já levá-la.

77
Sigo a lição do ms. L (da família b)
78
Segundo a lição de alguns mss.

111
Z EUS — Se achas melhor, procede desse modo, mas eu sei
que pretendes o impossível.

112
9. POSÍDON E HERMES [12]

1] POSÍDON — Ó Hermes, será que posso encontrar-me com


Zeus?
HERMES — De modo nenhum, Posídon.
POSÍDON — Mesmo assim, anuncia-me a ele.
HERMES — Não me incomodes, já disse; é inoportuno, por
isso não podes visitá-lo neste momento.
POSÍDON — Porventura ele está com Hera?
HERMES — Não, é uma coisa diferente.
POSÍDON — Compreendo: Ganimedes está lá dentro.
HERMES — Também não. Está adoentado.
POSÍDON — Que é que ele tem, ó Hermes? É espantoso o
que me estás a dizer.
HERMES — Tenho vergonha de dizer, mas é como te digo.
POSÍDON — Mas não deves ter vergonha comigo, que sou
teu tio.
HERMES — Bem, Posídon... ele acaba de dar à luz.
POSÍDON — C’ um raio, acaba de dar à luz? Por obra de quem?
Será que tem andado a ocultar-nos que é andrógino? Mas... o seu
ventre não denotava qual inchaço...
HERMES — Dizes bem, mas não era no ventre que ele tinha
o feto.
POSÍDON — Já sei: deu à luz outra vez pela cabeça, como no
caso de Atena. Realmente, tem uma cabeça parideira.
HERMES — Nada disso, mas trazia na coxa o menino de Sémele.
POSÍDON — Que sujeito magnífico, que fica grávido por
todas as partes do corpo. Mas quem é essa Sémele?

2] HERMES — É tebana, uma das filhas de Cadmo. Teve


relações com ela e engravidou-a.
POSÍDON — E depois, ó Hermes, foi ele que deu à luz, em
vez de ser ela?!
HERMES — Justamente, por muito estranho que isso te pareça.
Na verdade, Hera — tu bem sabes como ela é ciumenta — foi
ter com Sémele e persuadiu-a a pedir a Zeus que viesse a sua
casa, mas trazendo consigo os trovões e os relâmpagos. E Zeus
deixou-se convencer e chegou trazendo também o raio, pelo que
o telhado se incendiou e Sémele morreu no incêndio. Então Zeus
ordenou-me que fizesse uma incisão no ventre da mulher e dele
retirasse o feto ainda incompleto, apenas com sete meses. Assim

113
fiz, e ele, tendo feito uma abertura na coxa, introduziu o feto,
para que aí chegasse ao termo [da gravidez]. E agora, a caminho
do terceiro mês, deu à luz e encontra-se adoentado de dores de
[pós-]parto.
POSÍDON — E onde se encontra neste momento o bebé?
HERMES — Levei-o a Nisa e entreguei-o às Ninfas, para que
o criassem, com o nome de Dioniso.
POSÍDON — Quer dizer que o meu irmão Zeus é ao mesmo
tempo mãe e pai desse tal Dioniso?!
HERMES — Parece que sim. Bem... vou dar-lhe água para
[lavar] a ferida e fazer outras coisas julgadas necessárias, como
se fosse para uma parturiente.

114
10. HERMES E H ÉLIO [14]

1] HERMES — Ó Hélio, por ordem de Zeus, não conduzas hoje


o teu carro, nem amanhã, nem depois de amanhã, mas fica em
casa, e que entretanto haja uma só noite muito longa. Portanto,
que as Horas desatrelem os cavalos, e tu apaga o fogo e descansa
durante este longo tempo.
HÉLIO — Ó Hermes, o que tu vieste anunciar-me é uma coisa
inaudita e muito estranha. Parece-te que eu me terei desviado
da minha rota e guiado [o carro] fora das baias, e que por isso
ele está furioso comigo e resolveu fazer a noite três vezes mais
longa que o dia?
HERMES — Nada disso, nem é coisa para sempre, mas só por
agora é que ele necessita de uma noite mais longa.
HÉLIO — E onde é que ele se encontra? Donde é que te enviou
a anunciares-me essa ordem?
HERMES — Da Beócia, ó Hélio, de junto da esposa de Anfitrião,
por quem está apaixonado e com quem agora se encontra.
HÉLIO — Mas não lhe basta uma noite?
HERMES — De maneira nenhuma, pois é preciso que dessa
relação seja gerado um deus enorme e façanhoso79. Ora, isso
torna-se impossível [de conseguir] num só dia.

2] HÉLIO — Pois então que ele meta mãos à obra e... boa sorte.
Mas essas acções, ó Hermes (agora que ninguém nos ouve), não
aconteciam no reinado de Cronos: este nunca dormia fora do
leito de Reia nem deixaria o céu para ir dormir a Tebas, mas o
dia era o dia, e a noite durava segundo a sua medida, de acordo
com as estações; não acontecia nada de estranho ou de anormal,
e o deus não teria nunca tido relações com uma mulher mortal.
Agora, porém, por causa de miserável mulherzinha, há que alterar
tudo por completo: os meus cavalos são obrigados a ficar presos
de movimentos devido à inactividade; e o caminho, sem ser pi-
sado durante três dias, ficará intransitável; e os pobres homens
viverão nas trevas. É isso que eles ganharão com os amores de
Zeus, esperando sentados e envolvidos em longa escuridão, até
que ele acabe de fabricar o tal atleta de que tu falas.
HERMES — Cala-te, Hélio, ainda assim não te venha algum
mal das tuas palavras. Bem, vou ter com Selene 80 e com Hipno,
79
Seguimos a lição dos mss. B e L (ed. K. Mras).
80
Selene ou Selene, a Lua; Hipno, o Sono.

115
a fim de lhes anunciar também a eles as ordens de Zeus: a uma,
Selene, que avance muito lentamente, e ao Sono que não largue 81
os homens, de modo que eles não saibam que a noite foi assim
tão longa.

81
Sigo a lição do ms. b (e ed. de K. Mras).

116
11. A FRODITE E SELENE [19]

1] A FRODITE — Ó Selene, que é isto que dizem de ti?... Que,


sempre que te encontras sobre a Cária, fazes parar a parelha de
cavalos e ficas a contemplar Endímion a dormir ao relento, como
um caçador, e que algumas vezes, a meio da tua rota, chegas a
descer até junto dele?!
SELENE — Ó Afrodite, pergunta ao teu filho82, pois é ele o
culpado disto.
A FRODITE — Nem me fales! Esse [menino] é muito inso-
lente... Quantas maldades ele me tem feito, a mim, sua própria
mãe, quer fazendo-me descer o monte Ida por causa do troiano
[Anquises], quer fazendo-me ir ao Líbano atrás desse jovem
assírio [Adónis], a quem depois fez que fosse desejado também
por Perséfone, e assim me roubou metade do meu querido83. Eu
até já muitas vezes o ameacei de lhe quebrar as setas e a aljava e
de lhe arrancar as asas, se ele não se deixasse dessas maldades.
Também já lhe apliquei umas nalgadas com a sandália, mas ele,
estranhamente temeroso e suplicante nesse momento, não tardava
a esquecer-se do castigo...

2] ... Mas... diz-me cá: Esse teu Endímion é formoso? Nesse


caso, a tua situação é inconsolável.
SELENE — Aos meus olhos, Afrodite, é mesmo muito formoso,
especialmente quando está a dormir sobre uma rocha, coberto com
a clâmide, tendo na mão esquerda as setas prestes a escorregar-lhe
da mão, enquanto a mão direita, mais acima e dobrada à volta
da cabeça, enquadra graciosamente o seu rosto, e ele, dormindo
a sono solto, exala aquele seu hálito a cheirar a ambrósia. Então
eu desço silenciosamente, avançando nas pontas dos pés, com
receio de o acordar e o sobressaltar... Sabes como é... Para quê
contar-te o resto, a não ser que morro de paixão por ele?

82
Eros, Amor (o Cupido latino).
83
Segundo a lenda, Adónis repartia a sua vida amorosa entre a deusa
celeste (Afrodite) e a deusa infernal ) Perséfone).

117
(Página deixada propositadamente em branco)
12. A FRODITE E EROS [20]

1] A FRODITE — Ó Eros, meu filho, vê lá o que andas a


fazer. Já não falo do que se passa na terra, dos actos que tu
obrigas os homens a cometer, quer contra si mesmos, quer uns
contra os outros, mas sim do que se passa no céu: mostras-
-nos Zeus sob muitas formas, transformando-o naquilo que
de momento te parece, fazes Selene descer do céu, algumas
vezes obrigas Hélio a atrasar-se em companhia de Clímene,
esquecendo-se dos cavalos... para já não falar dos ultrajes que,
com toda a desfaçatez, cometes contra mim, tua mãe. Mas
tu, meu grande desavergonhado, até induziste Reia, já velha
e mãe de tantos deuses, a apaixonar-se por jovens e desejar
esse moço frígio, e agora, enlouquecida por ti, atrelou os seus
leões e, juntamente com os Coribantes arrebanhados, que são
tão loucos como ela, percorrem o Ida, [monte] acima, [monte
abaixo], ela ululando por Átis, e, dos Coribantes, um retalha
os braços com uma espada, outro, soltando a cabeleira, corre
furioso pelos montes, outro faz soar o corno, outro rufa no
tambor, toca címbalo... enfim, é tudo algazarra e loucura no
monte Ida. Por isso, temo tudo, mas temo sobretudo, eu que
dei à luz uma grande peste, que Reia, num acesso de loucura,
ou melhor, que, entrando em si, ordene aos Coribantes que
peguem em ti e te despedacem, ou que te lancem aos leões. É
isso que eu temo, ao ver-te correndo um tal perigo.

2] EROS — Anima-te, mãe, pois já estou habituado [a lidar]


com leões: salto-lhes muitas vezes para o lombo e conduzo-os,
agarrando-lhes a crina como se fossem rédeas; e eles abanam
[alegremente] a cauda, deixam-me meter-lhes a mão na boca e,
depois de a lamberem, deixam-me retirá-la. E quanto a Reia,
quando é que ela teria vagar para me castigar, toda ocupada
como está com o seu Átis?! Em boa verdade, que mal vos faço
eu, ao mostrar-vos como é a beleza? E vós mesmas, [divinda-
des,] não gostais do que é belo? Portanto, não me censureis
por isso. Ou será que tu própria, minha mãe, desistes de amar
Ares e ser amada por ele?
A FRODITE — Como tu és fino e sabes como dominar tudo!
Em todo o caso, lembra-te, de vez em quando, das minhas
palavras.

119
(Página deixada propositadamente em branco)
13. Z EUS, A SCLÉPIO E H ÉRACLES [15]

1] Z EUS — Vocês aí, Asclépio e Héracles, deixem de dis-


cutir um com o outro, que até parecem humanos. Sim, essas
discussões são indecorosas e indignas do simpósio dos deuses.
H ÉR ACLES — Ó Zeus, tu admites que este... curandeiro
ocupe um lugar à mesa acima do meu?
A SCLÉPIO — Sim, por Zeus, pois sou superior a ti.
H ÉR ACLES — Em quê, meu... miolos-queimados? Será por-
que Zeus te atingiu com o seu raio, por fazeres o que não era
lícito, ainda que agora, por ele ter dó de ti, compartilhes da
nossa imortalidade?
A SCLÉPIO — Esqueces-te, Héracles, de que também tu
foste queimado lá no [monte] Eta, para agora me censurares
ter sofrido o fogo?
HÉRACLES — Mas as nossas vidas não foram as mesmas nem
sequer idênticas: eu sou filho de Zeus, fartei-me de trabalhar
para limpar o mundo, lutando contra monstros e punindo pes-
soas violentas, ao passo que tu não passas de um ervanário e de
um charlatão, talvez útil aos pobres homens pela administração
de remédios, mas sem teres cometido qualquer acto heróico.

2] A SCLÉPIO — O que tu não dizes é que te curei das


queimaduras, quando ainda há pouco apareceste cá em cima
semiqueimado e com o corpo em muito mau estado, devido a
duas coisas: a túnica [mágica: de sua esposa Dejanira] e, depois
disso, o fogo [da pira], enquanto eu, se mais não fosse, nem fui
escravo como tu, nem cardei lã na Lídia, vestido de púrpura e
apanhando pancada de Ônfale com uma sandália de ouro, nem
matei os meus filhos e a minha esposa num acesso de fúria.
H ÉR ACLES — Se não páras de me insultar, ficarás em breve
a saber que de nada te valerá a imortalidade, pois pego em ti
atiro-te de cabeça para fora do céu, de modo que nem Péan te
curará do esmagamento craniano.
Z EUS — Parai lá com isso e não nos estragueis a festa, ou
terei de vos expulsar da sala. Em todo o caso, Héracles, é justo
que Asclépio se sente em lugar superior ao teu, uma vez que
morreu primeiro que [tu].

121
(Página deixada propositadamente em branco)
14. HERMES E A POLO [16]

1] H ERMES — Ó Apolo, porque estás assim cabisbaixo?


A POLO — É que, ó Hermes, ando com pouca sorte no amor.
H ERMES — Boa razão para estar triste. Mas... pouca sorte
porquê? Será que o caso de Dafne ainda te aflige?
A POLO — De modo nenhum... É que estou de luto por
aquele querido Lacónico, filho de Ébalo.
H ERMES — Diz-me, foi Jacinto que morreu?
A POLO — Exactamente.
H ERMES — E... ó Apolo, quem é que o matou? Houve al-
guém tão execrável, que seja capaz de matar esse formoso jovem?
A POLO — Foi obra própria minha.
H ERMES — Nesse caso, estavas louco, ó Apolo.
A POLO — Nada disso, foi um acidente involuntário.
H ERMES — Como? Quero ouvir como isso aconteceu.

2] A POLO — Ele estava a aprender a lançar o disco, e eu


lançava o disco com ele, quando o mais ruim dos ventos, esse
maldito Zéfiro, que desde há muito também estava apaixonado
pelo jovem, mas era por ele rejeitado, não suportando o desdém,
fez esse trabalho. Eu lancei o disco nos ares, como costumava,
mas Zéfiro, soprando dos lados do Táigeto, impeliu o disco
de maneira que fosse bater na cabeça do jovem, e de tal modo,
que da ferida começou a correr muito sangue e o jovem morreu
logo ali. Mas eu vinguei-me imediatamente de Zéfiro, atirando-
-lhe frechadas e perseguindo-o na sua fuga até à montanha; e
quanto ao jovem, erigi-lhe um túmulo em Amiclas, no local
onde o disco o atingiu; e fiz que do seu sangue a terra fizesse
brotar uma flor mui deleitável, a mais garrida, ó Hermes, de
todas as flores, uma flor que tem [nas suas pétalas] as letras
da interjeição dedicada ao defunto 84 . Então, ainda te parece
que eu estou triste sem motivo?
H ERMES — Sim, Apolo, pois já sabias que te tinhas apaixo-
nado por um mortal; por isso, não te aflijas por ele ter morrido.

84
Nas pétalas do jacinto, os antigos viam as letras AIAI (interj. a„a‹),
donde se formou o verbo a„£zw. V. Ov., Met., X, 215...

123
(Página deixada propositadamente em branco)
15. HERMES E A POLO [17]

1] H ERMES — Pensar eu, ó Apolo, que esse coxo 85 , que


exerce um ofício tão vil 86 , desposou as mais formosas divin-
dades — Afrodite e uma Cárite! 87
A POLO — Foi mesmo uma sorte, [caro] Hermes. Mas o que
me causa maior admiração é que elas suportem ter relações com
ele, especialmente quando o vêem escorrendo em suor, curvado
sobre a forja, com o rosto coberto de fuligem, e mesmo assim
abraçam-no, beijam-no e dormem com ele.
HERMES — É isso que me irrita e me faz ter inveja de Hefesto:
tu, Apolo, cuidas da tua cabeleira, tocas cítara e orgulhas-te
da tua formosura, e eu [que me orgulhe] da minha bela figura
e da minha lira... Depois, quando tivermos que nos ir deitar,
dormiremos sem companhia.
2] A POLO — Pelo que me toca, aliás, sou infeliz em coisas
de amor, pelo menos no que toca a duas pessoas que muito
amei — Dafne e Jacinto: a primeira foge de mim e odeia-me a
tal ponto, que preferiu transformar-se em árvore a ter relações
comigo; e o segundo morreu com um golpe de um disco, e
agora, em vez dessas pessoas, tenho [apenas] coroas.
H ERMES — Em tempos, Afrodite foi por mim... Bem... não
é coisa de que me gabe.
A POLO — Eu sei... Até se diz que ela deu à luz Hermafrodito,
por obra tua. Mas... diz-me cá, se souberes, porque é que nem
Afrodite tem ciúmes da Cárite, nem a Cárite de Afrodite?
3] H ERMES — É que, [meu caro] Apolo, uma [a Cárite]
vive com ele em Lemnos, enquanto Afrodite vive com ele no
céu. Além disso, Afrodite ocupa a maior parte do seu tempo
com Ares, por quem está apaixonada, de modo que pouco de
preocupa com esse ferreiro.
A POLO — Achas que Hefesto sabe disso?
H ERMES — Sabe, pois... Mas que poderá ele fazer perante
um jovem valente e soldado [de profissão]? Por isso, Hefesto
fica quieto, mas ameaça-os de lhes fabricar uma espécie de

85
Hefesto, que os Romanos denominavam Vulcano, o ferreiro dos deuses.
86
Outros mss. dizem, mais explicitamente (talvez por obra de um
copista ou comentador mais obsequioso) «ferreiro de seu ofício».
87
Trata-se de uma das três Graças, Aglaia; as outras duas são Eufrósine
e Talia.

125
armadilha que os enrede no momento em que eles estejam [os
dois] na cama.
A POLO — Não sei... mas bem gostaria de ser eu o apanhado.

126
16. HERA E L ATONA [18]

1] HERA — São muito formosos, ó Latona, os filhos que tu


tiveste de Zeus.
L ATONA — [Minha cara] Hera, nem todas podemos dar à
luz filhos parecidos com Hefesto.
HERA — Mas esse, embora coxo, é-nos muito útil, um ex-
celente artesão, que nos decorou o céu e desposou Afrodite, por
quem é muito apreciado, ao passo que, dos teus filhos, uma [,
Ártemis,] é varonil para lá da medida, muito amiga de andar
pelos montes e, para concluir, quando vai à Cítia, toda a gente
sabe como ela mata e devora estrangeiros, imitando assim os Citas
antropófagos, enquanto Apolo se dá ares de saber tudo, de atirar
ao arco, de tocar cítara, de ser médico, de ser adivinho; e, tendo
estabelecido ‘fábricas’ de adivinhação em Delfos, em Claro, em
Cólofon e em Dídimos, ludibriar os que o vão consultar, dando
respostas tortuosas e de duplo sentido a cada uma das suas per-
guntas, para não correr o risco de errar... e lá vai enriquecendo
por este processo, pois são muitos os tolos prontos a deixarem-se
enganar. Todavia, não passa despercebido às pessoas sensatas que,
muitas vezes, ele mente. Assim, ele, o próprio adivinho, por um
lado, desconhecia que havia de matar o seu amado com o disco,
e, por outro lado, não previu que Dafne lhe fugiria, por muito
formoso e bem encabelado que ele fosse. Por isso, não vejo por
que motivo tens a reputação de ter melhores filhos que Níobe.

2] L ATONA — Seja como for, esses meus filhos, a ‘matadora


de estrangeiros’ e o ‘falso adivinho’, sei bem como te aflige vê-los
entre os deuses, principalmente pelo facto de ela ser elogiada pela
sua formosura e ele ser admirado por todos, quando toca cítara.
HERA — Ó Latona, fazes-me rir! Digno de admiração, esse,
que Mársias teria esfolado, como vencedor na competição mu-
sical, caso as Musas tivessem decidido pronunciar uma sentença
justa?! Mas quem morreu, injustamente vencido, foi o desgraçado.
E quanto à tua formosa donzela, é tão formosa, que, quando se
apercebeu de que fora vista [toda nua] por Actéon, receando que
o jovem revelasse a sua fealdade, açulou os cães contra ele... Isto
para não dizer que, se ela ainda fosse realmente virgem, não viria
em socorro das parturientes.
L ATONA — Ó Hera, estás toda orgulhosa por dormires com
Zeus e reinares juntamente com ele, e por isso me insultas com

127
todo o atrevimento; mas deixa estar que em breve te verei de novo
a chorar. quando ele te abandonar e descer à terra disfarçado de
touro.

128
17. A POLO E HERMES [21]

1] A POLO — De que é que está a rir, ó Hermes?


HERMES — Porque, ó Apolo, vi uma cena muitíssimo risível.
A POLO — Conta cá, para que eu oiça e tenha também
motivo para rir.
H ERMES — Afrodite foi surpreendida na cama com Ares,
onde Hefesto os apanhou e amarrou.
A POLO — Como foi isso? Parece que tens uma história
saborosa para contar.
H ERMES — Desde há muito, creio eu, que Hefesto, sabedor
do caso, tentava apanhá-los; então, tendo colocado à volta do
leito uma rede invisível, saiu para trabalhar na forja. Em segui-
da, entra Ares, às escondidas... segundo julgava... mas Hélio
enxerga-o lá de cima e vem contar a Hefesto. Ora, quando já
tinham subido para o leito e estavam já em pleno trabalho,
na zona de acção da armadilha, eis que a rede os envolveu... e
depois apareceu Hefesto. Afrodite, que estava toda nua, não
tendo maneira de se cobrir, ficou envergonhada, enquanto
Ares, de início, tentou escapar-se, esperando rebentar com as
malhas da rede, mas depois percebendo que se encontrava sem
possibilidade de fugir, pôs-se a suplicar.

2] A POLO — E então? Hefesto libertou-o?


H ERMES — Não imediatamente, mas antes convocou os
deuses, a fim de lhes mostrar o adultério. Eles, ambos nus,
de olhos baixos e amarrados, estavam corados [de vergonha].
Pareceu-me um espectáculo deleitoso, por pouco que não vimos
praticar o próprio acto.
A POLO — Então e esse ferreiro não se envergonha de ser
ele próprio a revelar a vergonha causada ao seu casamento?
H ERMES — Qual quê! Até se pôs a rir fazendo coro com
os outros [deuses]. Cá por mim, para ser franco, fiquei com
inveja de Ares, ao vê-lo não só fornicando com a formosíssima
deusa, mas também amarrado juntinho a ela.
A POLO — Quer dizer que te sujeitarias a ser amarrado em
idênticas circunstâncias?
H ERMES — E tu não, ó Apolo? Vem cá vê-los. Louvar-te-
ei, se, depois de os veres [naquela posição], não desejares o
mesmo que eu.

129
(Página deixada propositadamente em branco)
18. HERA E Z EUS [22]

1. HERA — Ó Zeus, eu teria vergonha de ter um filho assim,


tão efeminado e tão viciado na bebida, com os cabelos atados com
uma fita, quase sempre acompanhado de mulheres desvairadas,
ainda mais delicado que elas, dançando ao som de tambores,
flautas e címbalos, em suma, parecido com qualquer outro,
menos contigo.
ZEUS — E no entanto, ó Hera, esse tal, que usa fitas de mu-
lher [no cabelo] e é mais delicado que elas, não só conquistou
a Lídia, venceu os habitantes do Tmolo e submeteu os Trácios,
mas também, tendo ido com um exército de mulheres numa
expedição contra os Indos, capturou-lhes elefantes, conquistou
o país e trouxe como refém o seu rei, que durante um certo tem-
po tinha ousado resistir-lhe; e realizou todas estas façanhas ao
mesmo tempo que saltava e dançava, tendo na mão apenas tirsos
de hera, embriagado, como tu dizes, e possesso. E se [como já
sucedeu] alguém se atreveu a insultá-lo e a proferir ofensas contra
os seus mistérios, ele puniu-o, quer amarrando-o com sarmentos
de videira, quer fazendo-o despedaçar pela própria mãe, como
se fosse uma corça 88. Vês como estas façanhas são viris e não in-
dignas de seu pai? Se a essas façanhas ele acrescenta brincadeiras
e prazeres, isso não tem nada de censurável, especialmente se
pensarmos do que é que ele seria capaz em estado de sobriedade,
se, embriagado, faz tais coisas.

2. HERA — Parece-me que vais louvar a sua invenção, a vi-


nha e o vinho, mesmo vendo o que fazem os ébrios, tropeçando,
entregando-se a actos de violência ou, numa palavra, tornados
loucos por acção do vinho. Icário, por exemplo, a quem ele
primeiro deu a videira, foi morto a golpes de enxada pelos seus
companheiros de bebida.
ZEUS — Isso não prova nada. Na verdade, não é o vinho
nem Dioniso que provocam essas coisas, mas sim o excesso de
bebida e o facto de uma pessoa se encher de vinho puro89 para

88
Referência a Penteu, rei de Tebas, que violou os mistérios dionisíacos
e foi despedaçado pelas bacantes e por sua própria mãe, Ágave, que, na
sua fúria, viram nele uma corça.
89
Os antigos costumavam beber vinho misturado com água; só os
beberrões o bebiam vinho puro: Adde merum! «chega-lhe do puro!» diz
Horácio.

131
além do que é decente. Mas quem beber moderadamente ficará
mais alegre e mais agradável, e aquilo que se passou com Icário
não se passaria com nenhum dos convivas. Mas... ó Hera, parece
que ainda estás com ciúmes, lembrada [do episódio] de Sémele,
a ponto de depreciares as belas qualidades de Dioniso.

132
19. A FRODITE E EROS [23]

1. A FRODITE — Ó Eros, porque é que tu, que já venceste


todos os outros deuses — Zeus, Posídon, Apolo, Reia, e até a
mim, tua mãe — só te absténs de Atena? No caso desta, o teu
facho não tem chama, a tua aljava está vazia de setas, tu não tens
arco e perdeste a pontaria.
E ROS — É que eu, minha mãe, tenho pavor dela, pois é
aterradora, tem olhos claros chispantes e é terrivelmente varo-
nil. Então, quando, de arco tenso, me dirijo na sua direcção, ela
aterroriza-me, agitando o penacho: fico a tremelicar, e as setas
escorregam-me das mãos.
A FRODITE — Mas então Ares não era mais temível? E no
entanto, tu desarmaste-o e venceste-o.
E ROS — Mas esse avança contra mim com ar decidido e
desafia-me, ao passo que Atena me fixa de alto a baixo. Uma
vez, esvoaçava eu por acaso perto dela, com o meu facho, quando
ela me disse: «Se te aproximas de mim, juro pelo meu pai que te
trespasso com a minha lança ou que te pego por um pé e te lanço no
Tártaro, ou então que te despedaço e...»... Proferiu muitas outras
ameaças do género. Fixa-me com olhar severo, e, além disso, acima
do peito tem um rosto ameaçador, com uma cabeleira repleta de
víboras, coisa que eu temo muitíssimo: sempre que vejo aquela
coisa, fujo apavorado.
2. AFRODITE — Mas então, segundo dizes, tens medo de Atena
e da Górgona, tu que não temes o raio de Zeus? E as Musas, por
que motivo as deixas incólumes e livres das tuas frechadas? Será
que elas agitam o penacho e te fazem ver Górgonas?
EROS — É que a essas, minha mãe, eu tenho respeito, pois
são veneráveis, sempre em meditação ou ocupadas com o canto,
de modo que eu, muitas vezes, aproximo-me delas, fascinado
pela sua melodia.
A FRODITE — Deixemos essas, já que são veneráveis. Mas
então Ártemis, porque é que não a feres?
EROS — Em primeiro lugar, porque não é possível agarrá-la,
sempre a fugir por esses montes; e depois, porque ela já tem uma
paixão muito sua.
A FRODITE — [Paixão] por quem, meu filho?
EROS — Pela caça, por cervos e corças, que ela persegue e
apanha, abatendo-os com frechadas; em suma, está sempre nesta

133
actividade. Mas o irmão dela, muito embora seja também um
[grande] arqueiro e «atire muito longe a flecha»...
A FRODITE — Já sei, meu filho: já lhe mandaste muitas fre-
chadas.

134
20. Z EUS, HERMES, HERA, ATENA, A FRODITE, PÁRIS
(O JULGAMENTO DAS DEUSAS)

1] Z EUS — Ó Hermes, toma lá esta maçã e vai à Frígia, vai


ter com o filho de Príamo, o pastor, que guarda [o gado] no
pico do Gárgaro, no monte Ida, e diz-lhe o seguinte: «Páris,
Zeus ordena-te que, visto seres formoso e entendido em coisas de
amor, que julgues, de entre as deusas, qual delas é a mais bela,
e que a vencedora receba esta maçã como prémio do concurso.»
Portanto, [deusas,] é tempo de vos dirigirdes junto do juiz. Por
mim, nego-me a ser árbitro, pois amo-vos por igual, pelo que,
se fosse possível, dar-me-ia o maior prazer ver-vos todas vence-
doras. Além disso, é fatal que aquele que atribuir o prémio de
beleza a uma, fique odiado pelas outras [duas]. Por isso, eu não
sou o juiz adequado ao vosso caso; mas o jovem frígio que vós
ides procurar é de família real, parente aqui do Ganimedes e,
de resto, muito simples e rústico; ninguém o julgaria indigno
de assistir a um tal espectáculo.

2] A FRODITE — Cá por mim, ó Zeus, mesmo que nomeasses


o próprio Momo como nosso juiz, eu iria com toda a confiança
para o desfile. Sim, que é que Momo poderia... momar contra
mim? Mas é preciso que a criatura agrade também a estas
senhoras.
HERA — Ó Afrodite, nós não temos medo, mesmo que fosse
o teu [querido] Ares encarregado da arbitragem. Mas enfim,
aceitamos esse tal Páris, seja lá ele quem for.
Z EUS — Estás de acordo com elas, minha filha? É o quê?
viras o rosto e coras? Na verdade, é característico de vós, don-
zelas, envergonhar-vos destas coisas. Em todo o caso,, dás o teu
assentimento. Portanto, ide que as vencidas não se zanguem
com o juiz nem façam mal ao jovem, pois não é possível que
todas vós sejais [declaradas] igualmente belas.

3] H ERMES — Partamos imediatamente para a Frígia: eu


vou à frente, e vós vinde atrás de mim e... coragem, que eu
conheço Páris, sei que é um jovem formoso e, além disso, dado
a coisas de amor e capacíssimo de julgar tais demandas: esse
não pronunciaria nunca uma sentença injusta.

135
A FRODITE — Tudo isso que me estás a dizer é muito bom...
o facto de o juiz ser justo... Mas... esse tal [fulano] é solteiro
ou vive com uma mulher?
H ERMES — Bem, Afrodite... não é completamente solteiro.
A FRODITE — É o quê?
H ERMES — Creio que vive com ele uma certa mulher do
monte Ida, engraçadota, mas rude e terrivelmente rústica. Mas
não parece que ele esteja muito apegado a essa mulher. Mas...
porque fazes essa pergunta?
A FRODITE — Perguntei por perguntar.

4] ATENA — Ó tu aí! Estás a faltar aos deveres de embai-


xador, há tanto tempo a falar com essa fulana em particular.
H ERMES — Ó Atena, não é nada de mal, nada contra vós
as duas: ela apenas me perguntou se Páris é solteiro.
ATENA — E para quê essa conversa tão indiscreta?
H ERMES — Não sei... Ela diz que foi apenas uma ideia que
lhe ocorreu... que perguntou sem qualquer intenção especial.
ATENA — E então? Ele é solteiro?
H ERMES — Não creio.
ATENA — E depois? Ele tem predilecção para as coisas da
guerra, é ambicioso de glória... ou é apenas um boieiro?
H ERMES — Não te sei dizer ao certo, mas é de supor que,
sendo jovem, anseie por alcançar tudo isso e pretenda ser o
primeiro nas batalhas.
A FRODITE — Estás a ver? Eu não te censuro nem te acuso
de falares com ela em particular, pois Afrodite não é dada a
queixumes por coisas desse género.
H ERMES — Ela fazia-me quase a mesma pergunta que tu.
Portanto, não leves a mal nem cuides que ficas desfavorecida,
pois eu respondi-lhe também da maneira mais natural...

5] ... Mas... com toda esta conversa, já andámos muito e


nos afastámos [bastante] das estrelas e estamos quase a chegar
à Frígia. Já avisto nitidamente o [monte] Ida e todo o pico
Gárgaro e, se não me engano, o vosso juiz, Páris.
H ER A — Onde está ele, que não estou a vê-lo?
HERMES — Olha aqui para este lado, Hera, para a esquerda,
e não para o alto do monte, mas para a encosta, onde vês a sua
caverna e a sua manada.
H ER A — Não vejo nenhuma manada.

136
H ERMES — Como dizes? Não estás a ver, assim, na direc-
ção do meu dedo, uns bezerros saindo do meio das rochas e
um fulano a correr rochedo abaixo, com um cajado na mão,
tentando impedir a manada de se dispersar?
H ER A — Agora sim, já estou a ver... se é que é mesmo ele...
H ERMES — Mas é mesmo ele. E já que estamos perto da
terra, desçamos, por favor, e caminhemos a pé, para não o
assustarmos, se descêssemos cá de cima e repentinamente em
voo picado.
H ERA — Dizes bem: façamos desse modo. Bem... agora que
já poisámos, compete-te a ti, Afrodite, ir à frente a indicar-
-nos o caminho, pois tu, naturalmente, tens experiência deste
caminho, pelo facto de, como é voz corrente, teres descido até
aqui para te encontrares com Anquises.
A FRODITE — Ó Hera... esses teus remoques não me aque-
cem nem me arrefecem...

6] H ERMES — Pois quem vos guiará sou eu, uma vez que
eu próprio passei algum tempo no [monte] Ida, no tempo em
que Zeus estava apaixonado pelo jovem frígio 90 . Muitas vezes
vim a este lugar, enviado por Zeus, a fim de espiar o rapaz,
e, quando Zeus se transformou em águia, eu voava a seu lado
e confortava o formoso jovem. Se bem me recordo, foi deste
rochedo que ele o raptou: estava o jovem a tocar flauta junto
do rebanho, quando Zeus, descendo por detrás dele, o envol-
veu muito suavemente nas garras e, agarrando com o bico a
fita que ele tinha a envolver a cabeça, elevou-se no ar, levando
consigo o jovem aterrorizado, que voltava o pescoço para ver
[o seu raptor]. Então eu, apanhando a flauta, que ele, cheio
de medo, tinha largado... Mas... eis-nos chegados ao pé dele,
pelo que temos de o saudar:

7] «Ora viva, pastor!»


PÁRIS — «Igualmente, meu jovem». Quem és tu, que vens a
esta nossa terra? E quem são essas mulheres que trazes contigo?
Na verdade, belas como são, não parecem feitas para viverem
nas montanhas.
H ERMES — Mas, ó Páris, não são mulheres. Estas que
estás a ver são Hera, Atena e Afrodite, e eu sou Hermes, aqui
enviado por Zeus. Mas... porque estás a tremer e a ficar pálido?
90
Ganimedes (v. Índice mitológico).

137
Não tenhas receio, pois não se trata de nenhum assunto de-
sagradável: Zeus ordena-te que sejas o juiz da beleza destas
[deusas], pois — diz ele — tu és formoso e entendido em coisas
de amor. Deixo ao teu cuidado a sentença, mas, quanto ao
prémio do concurso, tomarás dele conhecimento lendo o que
está inscrito na maçã.
PÁRIS — Vejamos então o que é que ele quer... Está escrito:
«PAR A A MAIS BELA». Mas... ó Hermes, meu Senhor, como é
que eu, simples mortal e homem rude, poderia ser juiz num
espectáculo tão extraordinário e acima das possibilidades de
um pastor? Julgar assuntos como este é coisa mais para pessoas
finas e urbanas. Pela minha parte, mal seria capaz de julgar,
segundo a minha profissão, se uma cabra é mais bonita que
outra cabra ou uma vitela mais bonita que outra vitela...
8] ... Mas estas são todas igualmente formosas... não sei
como é que [o juiz] poderia desviar o olhar de uma para o fazer
incidir sobre outra, pois não quereria facilmente afastá-lo, mas,
onde primeiro se fixasse, aí ficaria preso e elogiaria aquela que
tivesse à frente; mas, se lançasse os olhos para outra, achá-la-ia
igualmente bela, fixar-se-ia nela e ficaria cativado com tudo
o que via. Em resumo, a beleza destas deusas penetra-me e
envolve-me todo, e só lamento não poder, como Argos, ver
com todo o meu corpo. Creio que pronunciaria um julgamento
justo, se desse a todas a maçã. E tem mais: acontece que uma
é irmã e esposa de Zeus, e as outras são filhas deste. Portanto,
como é que este julgamento pode deixar de ser difícil?
HERMES — Não sei, mas não é possível furtar-se a [cumprir]
uma ordem de Zeus.

9] PÁRIS — Ó Hermes, convence as deusas de uma única


coisa: que as duas vencidas fiquem zangadas comigo, mas que
considerem que o erro foi somente dos meus olhos.
H ERMES — Elas comprometem-se a proceder desse modo.
Bem: já é tempo de procederes ao julgamento.
PÁRIS — Procedamos. Sim, que remédio... Ora, em primei-
ro lugar, quero saber como devo examiná-las: tal como elas
se encontram, ou se será necessário despirem-se, por respeito
pelo rigor do julgamento.
H ERMES — Isso é assunto da competência do juiz: dá as
tuas ordens como entenderes.
PÁRIS — Como entender? Quero examiná-las todas nuas.

138
H ERMES — Vocês aí, dispam-se! E tu examina-as, que eu
já virei a cara.

10] H ER A — Muito bem, Páris, serei a primeira a despir-


-me, para que saibas que não só possuo «níveos braços» e me
gabo de ter «[grandes] olhos de vaca», mas que sou igualmente
bela em todo o corpo.
<PÁRIS — Despe-te também tu, Afrodite.>91
ATENA — Ó Páris, não a deixes despir-se, sem que ela tire a
cinta, que tem poderes mágicos, não se dê o caso de te seduzir
por esse meio. Na verdade, ela não devia apresentar-se assim
ataviada e de cara pintada, como qualquer cortesã, em vez de
mostrar a sua beleza nua e sem artifícios.
PÁRIS — Elas têm razão no que respeita à tua cinta. Por
isso, tira-a.
A FRODITE — Então e tu, Atena, porque é que não tiras
o elmo e mostras a cabeça desguarnecida, em vez de agitares
o penacho para amedrontar o juiz? Ou será que receias que
te critiquem a cor cinzenta dos olhos, patente sem esse elmo
aterrorizante?
ATENA — Pronto, já tirei o elmo.
A FRODITE — Pronto, também a cinta.
H ER A — Então dispamo-nos.

11] PÁRIS — Ó Zeus prodigioso! Que espectáculo! Que


beleza! Que deleite! Veja-se esta jovem, como irradia dela um
brilho real e augusto, verdadeiramente digno de Zeus! Veja-se
aquela, com um sorriso tão doce, tão delicado, tão provocante,
que até já me sinto no cúmulo da felicidade... Mas agora, se
me dão licença, quero examinar cada uma em particular, pois
neste momento estou indeciso, não sei em qual hei-de fixar-me,
os meus olhos estão divididos de todos os lados...
A FRODITE — Façamos assim.
PÁRIS — Vós as duas retirai-vos, e tu, Hera, fica.
HERA — Ficarei. Depois de me teres examinado atentamente,
será tempo de considerar também outra coisa: se são belos os
presentes pela votação a meu favor. Sim, Páris, se sentenciares
que sou eu a mais bela, far-te-ei dono e senhor de toda a Ásia.

91
Acrescento (emenda) de Mras.

139
PÁRIS — Não é do meu carácter deixar-me influenciar por
presentes. Mas retira-te. A sentença será conforme com a minha
consciência. Que se apresente Atena.

12] ATENA — Aqui estou, Páris. Se a seguir me julgares


a mais belas, nunca sairás vencido de nenhum combate, mas
sempre vencedor, pois farei de ti um guerreiro e um vencedor.
PÁRIS — Ó Atena, eu não tenho necessidade de guerras ou
de combates, pois, como vês, a paz reina em toda a Frígia e na
Lídia, e os domínios de meu pai estão livres de inimigos. Mas
anima-te, pois não serás prejudicada, embora eu não julgue
baseado em presentes. Bem, agora veste-te e põe o elmo. É
tempo de se apresentar Afrodite.

13] A FRODITE — Aqui estou eu em pessoa junto a ti.


Examina com muita atenção cada parte, sem descurar nenhu-
ma, mas demorando-te em cada uma delas. Se te apraz, meu
belo, escuta o que eu tenho para te dizer. Na verdade, desde
há muito tempo que, olhando para ti, jovem e belo como não
sei de outro que a Frígia tenha produzido, te felicito pela tua
formosura, mas também te censuro por não teres já deixado
as grutas e estas fragas, para viveres na cidade, em vez de des-
perdiçares a tua beleza neste ermo. Sim, que prazer poderias
tu tirar das montanhas? Que é que as tuas vacas ganham com
a tua beleza? Tu já devias estar casado, não com uma mulher
rústica e grosseira, como são as do monte Ida, mas com uma
mulher da Grécia: de Argos, ou de Corinto, ou da Lacónia,
como, por exemplo, Helena, jovem e bela, em nada inferior a
mim, e — ainda mais importante — de índole apaixonada.
Sim, estou convencido de que bastaria que, mal ela te visse
nem que fosse uma vez, deixaria tudo, entregar-se-ia toda a ti
e seguir-te-ia para ir viver contigo. Certamente que já ouviste
falar dela.
PÁRIS — Nunca, Afrodite, mas agora tenho todo o prazer
em ouvir-te contar tudo isso.

14] A FRODITE — Ela é filha dessa formosa Leda, para junto


da qual Zeus desceu transformado em cisne.
PÁRIS — E como é ela fisicamente?
A FRODITE — É alva, como é natural que seja uma filha
de cisne, delicada, por ser criada dentro de um ovo, e a maior

140
parte das vezes nua e de porte atlético; na verdade, é tão
pretendida, que se gerou uma guerra por sua causa, quando
Teseu a raptou ainda em idade imatura. Mal, porém, atingiu
à idade adulta, todos os nobres aqueus se apresentaram como
seus pretendentes, mas o preferido foi Menelau, da família
dos Pelópidas. Mesmo assim, se quiseres, poderei arranjar-te
casamento com ela.
PÁRIS — É o quê? Com uma mulher casada?
A FRODITE — És muito novinho e muito ingénuo, mas eu
sei como preparar a coisa.
PÁRIS — Mas como? Sim, quero saber.

15] A FRODITE — Antes de mais, sairás do teu país, a pre-


texto de ires visitar a Grécia; depois chegarás à Lacedemónia,
onde Helena te verá... e, a partir daí, é tarefa minha fazer que
ela se apaixone por ti e te siga.
PÁRIS — Isso parece-me uma coisa incrível, que ela deixe
o marido e queira embarcar com um bárbaro e estrangeiro.
A FRODITE — Não te dê cuidado, pois eu tenho dois belos
filhos, Hímero 92 e Eros; entregar-te-ei ambos, para que sejam
teus guias durante a viagem: Eros, penetrando no coração da
mulher, forçá-la-á a ficar apaixonada; e Hímero, introduzindo-se
em ti, tornar-te-á, tal como ele, desejável e amável. Eu mesma,
sempre presente, pedirei às Cárites que nos acompanhem, para
assim, todos juntos, convencermos Helena.
PÁRIS — Não sei, Afrodite, como correrá a aventura, mas
o que é certo é que já estou apaixonado por Helena e, não sei
lá como, já me julgo estar a vê-la e me imagino a navegar a
caminho da Grécia, a entrar em Esparta e a regressar de lá com
essa mulher... Só lamento não estar já neste momento a fazer
realmente tudo isso.

16] A FRODITE — Mas, ó Páris, não fiques assim tão entu-


siasmado, antes de me pagares, com o teu julgamento, a minha
função de alcoviteira e mediadora, pois ficaria bem que eu me
colocasse a vosso lado já como vencedora [deste concurso] e
festejasse, o ao mesmo tempo, o vosso casamento e a minha
vitória. Na verdade, está nas tuas mãos comprar, com uma
[simples] maçã, o amor, a beleza, o casamento.

92
Hímero, o Desejo; Eros, o Amor (o Cupido latino).

141
PÁRIS — Receio que, depois do julgamento, não penses
mais em mim.
A FRODITE — Queres que jure?
PÁRIS — De maneira nenhuma... mas promete outra vez.
A FRODITE — Prometo dar-te Helena por tua esposa; que
ela seguir-te-á e que chegará a Ílion, vossa terra; e eu própria
estarei presente e farei tudo o que for preciso.
PÁRIS — E trarás contigo Eros, Hímero e as Cárites?
A FRODITE — Fica descansado, que, além destes, também
levarei Poto e Himeneu.
PÁRIS — Sendo assim, em troca disso, dou-te a maçã: toma.

142
21. A RES E HERMES [1]

1] A RES — Ó Hermes, ouviste as ameaças que Zeus nos fez,


tão arrogantes e tão disparatadas? «Se eu quiser — disse ele —,
deito uma corda cá do céu, e vós todos, pendurados nela, esforçar-
-vos-eis por me arrastar aí para baixo, mas será esforço baldado:
não me mandareis abaixo. E se eu quisesse, içar-vos-ia não só a vós,
mas também puxaria ao mesmo tempo a terra e o mar e suspendê-
-los-ia no espaço.» E muitas outras coisas que tu também ouviste.
Por mim, não posso negar que ele seja superior e mais forte que
cada um de nós um por um, mas que ele seja superior a todos
nós juntos, a ponto de não o vergarmos com o nosso peso, mes-
mo que acrescentássemos a terra e o mar, nisso é que eu já não
posso acreditar.

2] HERMES — Está calado, Ares, pois não é prudente falar


dessas coisas, não se dê o caso de sermos castigados pela nossa
linguarice.
A RES — Cuidas tu que eu tive esta conversa com toda a gente,
e não apenas contigo, que eu bem sei que tens tento na língua?
Ora, eu não podia deixar de te contar uma ameaça que eu ouvi
e que me pareceu sumamente ridícula. Na verdade, recordo-me
de que, não há muito tempo, quando Posídon, Hera e Atena se
revoltaram e conspiraram contra Zeus no sentido de o prender e
pôr a ferros, ele ficou completamente aterrado... e eram apenas
três; e se Tétis, com pena dele, não tivesse chamado em seu so-
corro Briareu, [o gigante] de cem braços, teria mesmo ficado a
ferros, juntamente com o seu raio e o seu trovão. Ao pensar neste
episódio, desatei a rir da fanfarronice de Zeus.
HERMES — Cala-te, repito! Não é prudente nem para ti dizer
tais coisas, nem para mim escutá-las.

143
(Página deixada propositadamente em branco)
22. PÃ E HERMES [2]

1] PÃ — Ora viva, meu pai Hermes!


HERMES — Já eu não digo o mesmo... mas... como é que eu
sou teu pai?
PÃ — Por acaso não és tu Hermes, do monte Cilénio?
HERMES — Claro que sim. Mas então como é que és meu filho?
PÃ — Sou teu filho bastardo, nascido de uma tua relação
amorosa.
HERMES —Por Zeus, talvez antes dos amores espúrios de
algum bode com uma cabra... mas meu [filho]?... Como é isso
possível, com cornos, com esse focinho, uma barba emaranhada,
patas fendidas de bode e cauda a sobressair do traseiro?
PÃ — Ó meu pai, quaisquer zombarias que me dirigires, estás
a pôr em situação censurável o teu próprio filho, ou melhor, a ti
próprio, por teres gerado e criado uma tal criatura. Eu é que não
tenho culpa [de nada].
HERMES — Mas então quem é que dizes que é a tua mãe?
Porventura, sem o saber, tive relações adúlteras com uma cabra?
PÃ — Não, não tiveste relações com uma cabra, mas lembra-
-te de uma vez, na Arcádia, em que violaste uma donzela livre.
Porque mordes no dedo, [a fingir que] procuras [lembrar-te]?
Refiro-me à filha de Icário, Penélope.
HERMES — Então por que razão é que ela te deu à luz assim
parecido, não comigo, mas com um bode?

2] PÃ — Vou dizer-te as próprias palavras dela. Na verdade,


quando me estava a enviar para a Arcádia, disse: «Meu menino,
a tua mãe sou eu, Penélope de Esparta. Quanto ao teu pai, fica
sabendo que é Hermes, filho de Maia e de Zeus. Não te aflijas por
teres cornos e pés de bode: a razão é que, quando o teu pai teve
relações comigo, veio disfarçado de bode, para passar despercebido.
É por isso que tu saíste parecido com um bode.»
HERMES — Por Zeus, recordo-me de ter feito uma coisa desse
género. Mas, lá por isso, eu, tão vaidoso da minha formosura,
eu, ainda imberbe, hei-de ser chamado teu pai e ser motivo da
troça de toda a gente, pelo lindo filho que gerei?

3] PÃ — Deixa lá, pai, que não vou envergonhar-te, pois sou


músico e toco flauta maravilhosamente; além disso, Dioniso
não pode fazer nada sem mim, que até me fez seu companheiro

145
e chefe de dança. Se visses os meus rebanhos, todos os que eu
possuo na região de Tegeia e no cimo do Parténio, ficarias muito
contente. Sou senhor de toda a Arcádia. Muito recentemente,
lutando ao lado dos Atenienses em Maratona, portei-me tão
heroicamente, que me foi atribuída como prémio a gruta sob a
Acrópole. Portanto, se fores a Atenas, saberás quão prestigiado
é aí o nome de Pã.

4] HERMES — Diz-me cá: és casado, Pã (Julgo que é assim


que te chamam)?
PÃ — De maneira nenhuma, meu pai; é que... sou muito dado
ao amor... tanto que não gostaria de viver com uma única mulher.
HERMES — Quer dizer que te atiras às cabritas?!
PÃ — Estás a escarnecer de mim. Convivo com as ninfas
Eco e Pítis e com todas as Ménades de Dioniso... e sou muito
cortejado por elas.
HERMES — Bem, meu filho, sabes que favor — o primeiro
que te peço — gostaria que me fizesses?
PÃ — Dás as tuas ordens, meu pai, e depois veremos.
HERMES — Vem visitar-me e apresentar os teus respeitos...
mas vê lá não me chames pai quando alguém puder ouvir.

146
23. A POLO E DIONISO [3]

1] A POLO — Que diremos disto, Dioniso? Eros, Hermafrodito


e Priapo, irmãos filhos da mesma mãe, são os seres mais disseme-
lhantes do ponto de vista físico e da ocupação. Um deles — Eros
— é mui formoso, bom arqueiro, dotado de grande força e senhor
de tudo; outro — Hermafrodito — de aparência feminina, mas-
culina e ambígua... ninguém seria capaz de distinguir se é rapaz
ou rapariga; e o outro — Priapo — é viril para lá da decência.
DIONISO — Não te admires, Apolo; na verdade, Afrodite não
tem culpa disso, mas sim os pais, que eram diferentes; e mesmo
assim, muitas vezes, os que têm o mesmo pai e nasceram do
mesmo ventre, um é macho e o outro é fêmea, como vós — [tu
e tua irmã Ártemis].
A POLO — Sim, mas nós somos iguais e temos a mesma ocu-
pação: ambos somos arqueiros.
DIONISO — Até isso do arco, Apolo, sois iguais, mas já não
são iguais noutros aspectos, pois Ártemis mata estrangeiros ma
Cítia, ao passo que tu praticas a adivinhação e curas os doentes.
A POLO — Julgas que a minha irmã gosta dos Cítios, ela que,
mal um grego chegou um dia à Táurica, ficou pronta para zarpar
dali juntamente com ele, horrorizada com as mortandades?

2] DIONISO — E fez ela muito bem. Mas, quanto a Priapo...


vou contar-te um caso muito engraçado: aqui há tempos, estando
eu em Lâmpsaco, passeava pela cidade, quando ele me acolheu
e recebeu em sua casa. Ora, quando, já bastante bem bebidos,
tínhamos adormecido na sala de jantar, o nosso valentão, aí pelo
meio da noite, levantou-se e... tenho vergonha de dizer.
A POLO — Tentou seduzir-te, Dioniso?
DIONISO — Mais ou menos.
A POLO — E tu como é que reagiste?
DIONISO — Ora, que havia de fazer, senão rir?
A POLO — E fizeste muito bem, sem azedume e sem cólera.
De facto, ele tem desculpa, pois tentou seduzir uma bela figura
como tu.
DIONISO — Nessa ordem de ideias, Apolo, ele poderia esten-
der a tentativa até à tua pessoa, pois és formoso e tens uma longa
cabeleira, de modo Priapo, mesmo sóbrio, poderia atirar-se a ti.
A POLO — Não há-de atirar-se, não, Dioniso, pois eu, além
de cabeleira, tenho flechas.

147
(Página deixada propositadamente em branco)
24. HERMES E M AIA [4]

1] H ERMES — Ó minha mãe, haverá no céu algum deus


mais desgraçado que eu?
M AIA — Ó Hermes, não digas uma coisa dessas.
H ERMES — E porque não hei-de dizer, se tenho tantas
ocupações, a trabalhar sozinho e disperso por tantos servi-
ços? Realmente, logo de madrugada, tenho de me levantar
para varrer a sala de jantar, estender a toalha de mesa, deixar
tudo arrumado, apresentar-me diante de Zeus, levar as sua
mensagens, fazendo de correio, para cima e para baixo, e, mal
regresso, todo coberto de pó, tenho de lhe servir a ambrósia;
e, antes de ele ter arranjado este novo escanção, era eu próprio
que lhe servia o néctar. Mas o mais terrível de tudo é que sou
o único, de entre todos os deuses, que não durmo de noite,
pois, mesmo então, tenho de levar as almas a Plutão, de servir
de condutor de mortos e de estar presente no tribunal. E como
não me bastassem as funções diurnas — assistir às competi-
ções de luta, ser arauto nas assembleias e orientar os oradores
—, ainda por cima sou muito solicitado para participar em
cerimónias fúnebres.
2] No entanto, os filhos de Leda, passam, dia sim dia não,
um no céu e o outro no Hades, ao passo que eu sou obrigado
a fazer todos os dias o mesmo que eles. E os filhos de Alcmena
e de Sémele, nascidos de míseras mulheres, passam a vida
tranquilamente em banquetes, enquanto eu, filho da filha de
Atlas, Maia, sou criado deles. Ainda agora acabo de chegar
de Sídon, de casa da filha de Cadmo, aonde Zeus me enviou,
a fim de observar como estava a jovem; e ainda eu não tinha
retomado fôlego, acaba de me mandar ir a Argos visitar Dánae,
«e depois — disse ele — vais daí para a Beócia e, de caminho,
dá uma olhadela a Antíope». Numa palavra, estou esgotado. Se
pudesse, pedia, com todo o gosto, que me vendessem, como
os pobres escravos lá da terra.
M AIA — Deixa lá, meu filho... Tu és jovem, deves obedecer
a todas as ordens de teu pai. Agora, tal como foste mandado,
corre já depressa para Argos, e depois para a Beócia, ainda
assim não apanhes uma sova por te atrasares.

149
(Página deixada propositadamente em branco)
25. Z EUS E HÉLIO [24]

1] Z EUS — Que é que fizeste, tu, o mais ruim dos Titãs?


Arruinaste tudo na terra, ao confiar o teu carro a um jovem
insensato, que incendiou uma parte, aproximando-se demasiado
da terra, e fez que a outra parte fosse destruída pelo gelo, ao
afastar muito o fogo... Numa palavra, não houve nada que ele
não transtornasse e confundisse. E se eu, tendo-me apercebido
do que estava a acontecer, não o tivesse abatido com o meu
raio, não teria sobrevivido nem um resto de humanidade. Que
belo condutor, que belo auriga nos arranjaste!
HÉLIO — Eu errei, ó Zeus, mas não te irrites comigo, por me
ter deixado convencer pelas súplicas do meu filho. Como é que
eu podia esperar que daí resultaria uma tão grande catástrofe?
Z EUS — Não sabias quanta destreza requer esse trabalho?
[Não sabias] que, se uma pessoa sair, mesmo que pouco, da
rota, deita tudo a perder? Também desconhecias a fogosidade
dos teus cavalos, e que é absolutamente necessário puxar-lhes
as rédeas? Se uma pessoa os deixa ir [à vontade], tomam logo o
freio nos dentes, e foi assim que eles, à solta, levaram o jovem,
[desviando-se] ora para a esquerda, ora logo a seguir para a
direita, algumas vezes no sentido inverso da rota, ou mais para
cima, ou mais para baixo... em resumo: para onde os cavalos
quisessem, sem que o moço soubesse o que fazer deles.

2] H ÉLIO — De facto, eu sabia de tudo isso e, por esse


motivo, resisti durante muito tempo sem lhe confiar a condu-
ção. Como o moço, porém, me suplicasse a chorar, e sua mãe
Clímene fazendo coro com ele, eu fi-lo subir para o carro e
indiquei-lhe como devia manter o andamento, até que ponto
devia aliviar as rédeas para subir, como fazer para voltar a
descer, como ficar senhor das rédeas e não ceder à fogosidade
dos cavalos. Também o avisei do risco [que corria], se não
conduzisse sempre a direito. Ele, porém, criança como era, ao
entrar num fogo tão grande e ao debruçar-se sobre o profundo
vazio [lá em baixo], ficou transido de medo, como era natural.
Os cavalos, sentindo que não era eu quem os montava, despre-
zaram o jovem e desviaram-se da sua rota e provocaram todas
essas tropelias. Então o moço, com medo — julgo eu — de
cair dali abaixo, largou as rédeas agarrou-se ao varal do carro.

151
Ora, o moço já pagou pelo que fez, e eu, ó Zeus, já tenho, com
o meu luto, castigo que baste.
Z EUS — Castigo que baste, depois de uma tal audácia?
Bem, desta vez concedo-te perdão, mas, de hoje em diante,
cometeres alguma infracção semelhante [a esta], ou se man-
dares no teu lugar alguém como esse [jovem], ficarás a saber
até que ponto o meu raio é mais ardente que o teu fogo. Para
já, que as suas irmãs o sepultem nas margens do Erídano, no
local onde ele se precipitou do carro e caiu; que elas chorem
lágrimas de âmbar e se transformem em choupos 93 , em sinal
de luto. E tu concerta o teu carro, que tem o timão quebrado
e uma das rodas destroçadas, e atrela e conduz os cavalos. E
lembra-te de tudo [o que te disse].

93
Ou «salgueiros», ou (designação vulgar) «chorões», que condiz me-
lhor com o contexto.

152
26. A POLO E HERMES [25]

1] A POLO — Ó Hermes, és capaz de me dizer qual destes


dois é Castor e qual é Pólux? É que eu não sei distingui-los.
H ERMES — Aquele que esteve ontem connosco, é Castor,
e este é Pólux.
A POLO — Como é que os reconheces, se eles são iguais?
H ERMES — É que este, ó Apolo, tem no rosto as cicatrizes
dos golpes que recebeu dos seus adversários de pugilismo,
sobretudo dos golpes que recebeu de Bébrice, filho de Âmico,
quando da expedição em que viajava com Jasão. O outro não
apresenta nenhum destes sinais, mas tem o rosto limpo e ileso.
A POLO — Foste-me muito útil94 ao ensinares-me a diferençá-
-los, pois em tudo o resto são iguais: a mesma meia casca de
ovo, a mesma estrela na cabeça, o mesmo dardo na mão, cada
um com o seu cavalo branco, de tal maneira [iguais], que muitas
vezes chamei Castor a Pólux e Pólux a Castor. Mas diz-me cá
ainda uma coisa: por que motivo não vivem ambos connosco,
mas cada um é alternadamente ora morto, ora divindade?

2] H ERMES — Eles procedem deste modo por amor frater-


no. Na verdade, como um dos filhos de Leda tinha de morrer,
enquanto o outro seria imortal, eles repartiram deste modo a
imortalidade.
A POLO — Ó Hermes, mas essa partilha não é sensata, já
que, desse modo, não se vêem um ao outro, que era — creio
bem — o que eles desejavam. Então porque é que um está
junto dos deuses, enquanto o outro está com os mortos? E...
além disso, assim como eu profiro oráculos, Asclépio é médi-
co, tu ensinas a lutar e és um excelente treinador de ginástica,
Ártemis é parteira... enfim, cada um dos outros deuses tem a
sua profissão, útil quer aos deuses, quer aos homens, estes dois
que benefícios nos trazem? Será que, não fazem nada, a não
ser estar à mesa... daquela idade?!
H ER MES — De modo nenhum, pois foi-lhes ordenado
que ficassem ao serviço de Posídon, devendo percorrer o mar
a cavalo: no caso de verem marinheiros flagelados pelas tem-
pestades, descem para dentro do barco e salvam a tripulação.

94
Frase idiomática, que mantivemos, mas que pode ser traduzida por
«Muito obrigado por me teres ensinado a diferençá-los».

153
A POLO — Ó Hermes, mas que profissão salutar, essa de
que falas.

154
DIÁLOGOS DOS DEUSES MARINHOS
Texto da ed. de Karl Mras, Die Hauptwerke des Lukian
INTRODUÇÃO

Sem esquecer as restantes obras de Luciano, as cenas e as


personagens dos Diálogos abarcam alguns dos aspectos mais
significativos da cultura, da sociedade e da mentalidade gre-
gas no tempo do crítico que, fundamentalmente, Luciano foi,
para além, já se vê, do grande escritor — qualidade que alguns
modernos ainda persistem em apoucar.
Nos Diálogos das Cortesãs, o cenário e as personagens são,
como do título se depreende, «terrestres»: é sobre um dos
aspectos importantes da vida social, a vida extraconjugal dos
homens e a correspondente «oferta» de serviços, que incide a
crítica, desta vez não muito contundente, de um escritor do
«grupo dos homens». Luciano fala de gente do seu tempo.
Os Diálogos dos Mortos têm por cenário o reino de Hades.
Note-se, porém, que não se trata de diálogos dos deuses infer-
nais, mas sim dos mortos, embora, naturalmente, aí figurem
divindades infernais ou que têm algo que fazer nessas paragens.
A crítica, no entanto, vai, quase toda ela, directa aos mortos
ilustres, às sua ilusões enquanto vivos e às suas decepções finais
e definitivas.
Os Diálogos dos Deuses são inspirados na mitologia, tal como
ela é apresentada pelos poetas, sobretudo Homero, Hesíodo e
Hinos Homéricos, mas também, em certos casos, através de
diferentes tradições. A crítica incide sobre aspectos relativos
à moralidade dos deuses e a acontecimentos mais ou menos
incríveis, no seguimento implícito das críticas de Xenófanes,
Platão e outros.
Finalmente, os Diálogos dos Deuses Marinhos, tal como os
outros, retiram a sua inspiração dos poemas homéricos e outras
tradições por vezes contraditórias, mas é bem visível, mais que
noutros diálogos, a influência da pintura e da escultura.
Os deuses marinhos, na crítica de Luciano, têm os mesmos
defeitos morais dos seus congéneres infernais ou celestes, mas,
com excepção de certas cenas, aparecem-nos com um ar um
pouco mais simpático. Embora o seu comportamento não
deixe de escandalizar Luciano, ele compraz-se, sobretudo,
em apontar aspectos verdadeiramente inacreditáveis, próprios
para encantar poetas e seus leitores, mas indignos da crença
de filósofos e intelectuais mais positivos.

157
O leitor moderno pode e deve assumir as duas «leituras»:
por um lado, a do homem comum, que não detecta contradi-
ções, que aceita essas narrativas como, pelo menos, verdadeiras
enquanto são contadas, ou até como sendo a visão artística do
poeta, do pintor ou do escultor, isto é, como elemento artístico-
-cultural; e, por outro lado, a leitura do céptico, o qual, ao
tomar à letra as cenas e os eventos que fazem parte do currículo
dos deuses, denuncia a falsidade não só da mitologia, mas da
própria religião. Creio que Luciano fazia ambas as «leituras».

158
DIÁLOGOS DOS DEUSES MARINHOS
1. DÓRIDE 95 E G ALATEIA

1] DÓRIDE — Ó Galateia, mas que belo amante é esse tal


pastor siciliano, que dizem estar louco por ti!
GALATEIA — Não faças pouco de mim, Dóride, pois, seja
como for, é filho de Posídon.
DÓRIDE — E daí? Mesmo que ele fosse filho do próprio Zeus,
se aparecesse assim selvagem e peludo e — cúmulo da fealdade
— com um único olho, cuidas tu que esta origem familiar lhe
valeria de alguma coisa em termos de beleza?
GALATEIA — O seu corpo peludo não é — como tu dizes
— selvagem e feio, mas sim másculo; e quanto ao olho [único],
além de assentar bem na sua fronte, não vê menos bem do que
se tivesse dois.
DÓRIDE — Ó Dóride, pela maneira como o elogias, até pa-
rece que Polifemo é, não tanto teu amador, mas sim teu amado.

2] GALATEIA — Ele não é meu amado... simplesmente não


suporto esse teu ar ofensivo... até parece que é por despeito que
assim procedes, pelo facto de ele, um dia em que apascentava
o gado, ao ver-nos, lá do alto, brincando na praia, no sopé do
Etna, no sítio em que se estende um areal entre a montanha e o
mar, nem sequer ter olhado para ti, mas me considerou a mais
formosa e só em mim fixou o seu olho. É isso que te atormenta,
pois prova que eu sou melhor que tu e mais digna de ser amada,
enquanto tu foste menosprezada.
DÓRIDE — Julgas-te digna de ser invejada, pelo facto de
pareceres bela a um pastor de vista curta? Na verdade, que outra
coisa poderia ele louvar em ti, a não ser a tua brancura... e isso
— creio — só pelo facto de estar habituado ao queijo e ao leite,
pelo que julga belo tudo o que com eles se parece.

3] Aliás, se quiseres saber como é realmente o teu aspecto


físico, olha para a água, do alto de um rochedo, em dia de mar
calmo, e verás que não tens nada mais que pele alva. Ora, isso não
é coisa que se elogie, se não se lhe juntar um pouco de vermelho.
GALATEIA — Mesmo assim, eu, apesar da minha alvura sem
mistura, tenho um amador, ainda que só este, ao passo que a ti

95
Dóride (Dóris), filha de Oceano e irmã de Tétis, desposou seu irmão
Nereu, de quem teve 50 filhas, as Nereidas.

161
ninguém te elogia, seja ele pastor, marinheiro ou barqueiro. Aliás,
Polifemo entre outras coisas, é músico.

4] DÓRIDE — Ó Galateia, nem me fales disso... Ainda há pouco


o ouvimos cantar, quando te dedicou uma serenata... Valha-me
Afrodite! Parecia um burro a zurrar. E que dizer da própria lira?!
— A cabeça descarnada de um veado, os cornos a servirem de
braços, ligados entre si, onde atou as cordas, sem serem esticadas
por meio de cavilhas! E ele executava uma melodia desengraçada
e dissonante, ele berrando uma coisa, e a lira soando outra coisa,
de tal modo, que não éramos capazes de suster o riso, ao ouvirmos
aquela cantiga de amor. A própria [ninfa] Eco, apesar de muito
tagarela, não se dignou responder àquele bramido, com vergonha
de parecer imitar uma canção rude e ridícula.

5] Entretanto, o apaixonado trazia nos braços um ursinho de


brinquedo, tão peludo como o dono. Ó Galateia, quem não te
invejaria por teres um tal apaixonado?!
GALATEIA — Pois então, Dóride, mostra-nos lá o teu, certa-
mente mais belo, melhor cantor e melhor executante de cítara.
DÓRIDE — Bem... não tenho nenhum apaixonado nem me
gabo de ser desejada... mas... uma figura como é o Ciclope, que
tresanda a bodum — um autêntico bode —, que, segundo se
diz, come carne crua e devora os estrangeiros que aportam [à sua
ilha], conserva-o e corresponde-lhe sempre da mesma maneira.

162
2. CICLOPE E POSÍDON

1] C ICLOPE — Ó meu pai, o que eu sofri com esse maldito


desse estrangeiro, que, depois de me ter embriagado, me atacou
enquanto dormia e me cegou!
POSÍDON — Ó Polifemo, quem é que se atreveu a fazer
tal coisa?
C ICLOPE — Ao princípio, dizia chamar-se Ninguém, mas,
depois de se ter escapado, já fora do alcance de dardo, disse
chamar-se Ulisses.
POSÍDON — Sei a quem te referes: trata-se do itacense, que
regressava de Ílion. Mas como fez ele isso, uma vez que não é
lá muito corajoso?

2] C ICLOPE — Ao regressar da pastagem, apanhei bastan-


tes deles dentro da caverna, certamente cobiçosos das minhas
ovelhas. Depois de ter colocado a tampa na entrada — tenho
para esse fim uma pedra enorme —, e de ter feito uma fogueira
com uma árvore que tinha trazido da montanha, apercebi-
-me de que eles tentavam esconder-se. Então eu apanhei uns
quantos e, como é natural tratando-se de ladrões, devorei-os.
Aí, esse malvado desse Ninguém, ou Ulisses, dá-me a beber
uma droga qualquer, muito doce e perfumada, mas extrema-
mente insidiosa e perturbadora. Logo depois de a ter bebido,
pareceu-me que andava tudo à roda: a própria caverna estava
virada ao contrário, e eu deixei de estar no meu perfeito juízo.
Por fim, mergulhei no sono. Então ele aguçou um tronco, pô-
-lo em brasa e cegou-me enquanto eu dormia. Desde então,
Posídon, fiquei cego.

3] POSÍDON — Como adormeceste profundamente, meu


filho, a ponto de não teres saltado enquanto te cegavam! Mas
então como é que Ulisses conseguiu fugir? Estou certo de que
não era capaz de deslocar a pedra da entrada.
C ICLOPE — Fui eu que a retirei, para mais facilmente
poder apanhá-lo à saída; sentado junto à porta, ali fiquei de
mãos estendidas, a apalpar, só deixando sair as ovelhas para
a pastagem, tendo deixado entregue ao carneiro o que devia
fazer no meu lugar.

163
4] P OSÍDON — Estou vendo: sem tu dares por isso, os
homens escaparam-se por debaixo das ovelhas. Mas devias ter
chamado os outros ciclopes em teu socorro.
C ICLOPE — Eu chamei-os, meu pai, e eles acorreram; mas,
quando me perguntaram o nome de quem me tinha feito mal
e eu lhes disse «Ninguém», julgaram que eu estava louco, pelo
que se retiraram. Foi assim, com o seu nome, que o maldito
me enganou. Mas o que mais me aborreceu foi ter dito, ao
mesmo tempo que me lançava à cara a minha desgraça: «Nem
Posídon, teu pai, te curará.»
POSÍDON — Anima-te, meu filho, pois eu vingar-me-ei dele,
que é para saber que, se me é impossível curar a perda da vista, já
o que respeita aos navegantes — salvá-los ou aniquilá-los — está
sob a minha alçada. E ele ainda anda no mar...

164
3. POSÍDON E A LFEU96

1] POSÍDON — Que é isto, ó Alfeu? És o único, entre todos,


que te lanças no mar sem te misturares com a água salgada, como
acontece com todos os rios, nem descansas depois de desaguar,
mas, pelo contrário, prosseguindo através do mar e conservando
a tua corrente de água doce, precipitas-te sem mistura e puro,
mergulhando fundo, sabe-se lá para onde, tal qual as gaivotas
ou os alcatrazes; depois, parece que emerges de qualquer lado e
voltas a aparecer.
A LFEU — Ó Posídon, trata-se de um caso de amor. Portanto,
não me censures. Tu próprio já te apaixonaste muitas vezes.
POSÍDON — Mas, ó Alfeu, estás apaixonado por uma mulher,
por uma ninfa ou por uma das Nereidas marinhas?
A LFEU — Nada disso, Posídon: é por uma fonte.
POSÍDON — E em que parte da terra é que ela corre?
A LFEU — Numa ilha... na Sicília. Chama-se Aretusa.

2] POSÍDON — Conheço-a bem, ó Alfeu, essa Aretusa. Não


é nada feia e, além disso, é límpida, brota de uma nascente pura,
e a sua água brilha sobre os seixos, que dão a toda ela um tom
prateado.
A LFEU — De facto, Posídon, tu conheces essa fonte. Bem...
vou ter com ela.
POSÍDON — Pois então, vai lá, e que tenhas sorte no amor.
Mas... diz-me cá uma coisa: Onde é que viste Aretusa, sendo tu
da Arcádia, e ela de Siracusa?
A LFEU — Ó Posídon, estou com pressa, e tu estás a atrasar-me
com perguntas indiscretas.
POSÍDON — Dizes bem. Pois corre para junto da tua amada
e, emergindo do mar, mistura-te com essa fonte e tornai-vos uma
só [corrente de] água.

96
Rio da Arcádia e da Élide, aqui personificado.

165
(Página deixada propositadamente em branco)
4. M ENELAU E PROTEU

1] MENELAU — Que tu, Proteu, te transformes em água, não


tem nada de incrível, pois és um ser marinho; em árvore, ainda
admito; e até mesmo que te transfigures em leão... nada disso
está fora do que é crível. Mas que tu, habitante do mar, sejas
capaz de te transformar em fogo, é coisa que muito me espanta
e me faz duvidar.
PROTEU — Não te espantes, Menelau: transformo-me mesmo.
MENELAU — Sim, eu próprio vi [com os meus olhos]... No
entanto — permite-me que te diga —, dá a impressão de que
metes ilusionismo na coisa e assim ludibrias os olhos de quem
assiste, sem que realmente te transformes nessas coisas.

2] PROTEU — Mas que ludíbrio poderia haver em coisas tão


evidentes? Não assististe de olhos bem abertos a tudo em que eu
me metamorfoseei? Se não acreditas, se te parece coisa falsa e
fantasia aquilo que está diante dos teus olhos, então, meu caro,
toca-me com a tua mão, quando eu me transformar em fogo, e
logo ficarás a saber se eu só tenho essa aparência, ou se tenho
mesmo o poder de queimar.
MENELAU — A experiência, Proteu, não deixa de ser perigosa.
PROTEU — Ó Menelau, até parece que nunca viste um polvo,
nem sabes o que acontece com este [tipo de] peixe97.
MENELAU — Claro que já vi um polvo, mas gostaria de saber
da tua boca o que acontece com ele.

3] PROTEU — Quando o polvo aplica as ventosas a uma


rocha qualquer e se pega fortemente a ela com os tentáculos,
fica semelhante a essa rocha e modifica a própria cor, imitando
a [cor da] rocha, a fim de passar despercebido aos pescadores,
não se diferençando, assim, nem se deixando assinalar, por se
confundir com a rocha.
MENELAU — É o que se diz. Mas o teu caso, Proteu, é muito
mais incrível.
PROTEU — Já não sei, Menelau, em que outra coisa tu poderias
acreditar, já que duvidas dos teus próprios olhos.
MENELAU — Sim, eu vi, mas trata-se de algo muito estranho:
a mesma pessoa ser fogo e ser água.

97
Também para os gregos, «tudo o que vem à rede...».

167
(Página deixada propositadamente em branco)
5. POSÍDON E OS GOLFINHOS

1] POSÍDON — Acho muito bem, golfinhos, que sejais amigos


dos homens. Há muito tempo, recolhestes e transportastes até
ao Istmo o filho de Ino, que tinha caído da falésia de Círon,
juntamente com sua mãe. Ainda agora, tu aí, tomaste sobre ti
o citaredo de Metimna 98 e depuseste-o no [cabo] Ténaro, com
o seu vestuário próprio e com a cítara, não permitindo que ele
fosse ingloriamente assassinado pelos marinheiros.
GOLFINHOS — Não te admires, Posídon, por nós fazermos
bem aos homens, pois nós próprios fomos transformados de
homens em peixes.
POSÍDON — Realmente 99, censuro Dioniso pelo facto de,
depois de vos ter vencido numa batalha naval, vos ter meta-
morfoseado, quando bastava fazer-vos prisioneiros, tal como
submeteu outros. Mas então, ó Golfinho, como é que foi esse
episódio passado com Aríon?

2] GOLFINHOS — Periandro, segundo parece, gostava muito


de Aríon, a quem mandava chamar, devido ao seu virtuosismo.
Ora, tendo ele feito fortuna graças ao tirano, decidiu regressar
à sua pátria, a Metimna, para aí exibir a sua riqueza, pelo que
embarcou num navio pertencente a uns facínoras. Então, tendo
revelado que levava consigo muito ouro e prata, os tripulantes,
a meio do mar Egeu, conspiraram contra ele. Nesse momento
— eu ouvi tudo, pois nadava junto do navio —, Aríon disse:
«Já que assim decidistes, pelo menos deixai-me envergar as vestes
adequadas, entoar um canto fúnebre por mim mesmo e lançar-me
voluntariamente [ao mar].» Os marinheiros acederam [ao seu
pedido], e ele envergou o vestuário próprio, entoou um canto
muito melodioso e lançou-se ao mar, na intenção de ter uma
morte rápida. Então eu, aparei-o, carreguei-o no lombo e,
mantendo-o nessa posição, fi-lo desembarcar no [cabo] Ténaro.
POSÍDON — Louvo o teu amor pela música. Na verdade,
retribuíste-lhe condignamente pelo concerto.

98
Referência a Aríon, natural de Metimna, cidade de Lesbos.
99
Alguns mss. e editores modernos (Loeb...) incluem o período de
Realmente até outros na fala anterior, só fazendo entrar a fala de Posídon
desde Mas então até Aríon. Entendi seguir outra interpretação (K. Mras...).
Naturalmente, cada uma das opções implica pequenas alterações (vos/nos).

169
(Página deixada propositadamente em branco)
6. POSÍDON, [A NFITRITE] E AS NEREIDAS [9]

1] POSÍDON — Que este estreito, onde a jovem se precipitou,


seja denominado Helesponto, do seu nome. E vós, Nereidas,
pegai no seu cadáver e levai-o para a Tróade, a fim de ser se-
pultado pela gente dessa terra.
A NFITRITE — De maneira nenhuma, Posídon: é preferível
que ela seja sepultada no mar que tem o seu nome. Na ver-
dade, lamentamo-la por ter sido tão miseravelmente tratada
pela madrasta.
POSÍDON — Isso não seria legítimo, Anfitrite. Aliás, não
seria decente que ela jazesse por aqui, sob o areal, mas, pelo
contrário, como eu já disse, devia ser sepultada na Tróade ou
no Quersoneso. Seria para ela um grande motivo de consolação
o facto de, dentro de pouco tempo, vir a acontecer o mesmo a
Ino, a qual, perseguida por Atamante, se lançará, com o filho
nos braços, do cabo de Citéron ao abismo, no sítio onde [este
cabo] desce abruptamente sobre o mar. Mas vamos ter de salvar
Ino, a fim de agradar a Dioniso, de quem ela foi ama-de-leite.

2] A NFITRITE — Não devia ser assim, má como ela é.


POSÍDON — Mas também, ó Anfitrite, não é justo desa-
gradar a Dioniso.
NEREIDAS — Afinal, como é que Hele caiu do carneiro
abaixo, ao passo que seu irmão Frixo prosseguiu caminho em
segurança?
POSÍDON — É muito simples. De facto, enquanto ele é um
jovem capaz de resistir à impetuosidade [do carneiro], ela, sem
ter a devida experiência, galopou numa montada nada habi-
tual. Então, olhando para o imenso vazio lá em baixo, ficou
aterrorizada e, ao mesmo tempo, maravilhada 100; enjoada pela
rapidez do voo, largou os cornos do carneiro, aos quais até aí
se tinha mantido agarrada, e precipitou-se no mar.
NEREIDAS — Mas... não deveria sua mãe, Néfele, prestar-
-lhe socorro na queda?
POSÍDON — Pois devia... mas a Moira é mais poderosa que
Néfele.

100
Segui a lição q£mbei. Muitos editores (K. Mras, Loeb...) preferem
a lição q£lpei, que daria o sentido de «cheia de calor»...

171
(Página deixada propositadamente em branco)
7. PÂNOPE E G ALENE101 [5]

1] PÂNOPE — Ó Galene, viste o que é que Éride102 fez on-


tem na Tessália, durante o jantar, pelo facto de não ter sido
convidada para o banquete?
G ALENE — Não estive presente no vosso banquete; na
verdade, Pânope, Posídon tinha-me ordenado que, a essa hora,
cuidasse da tranquilidade do mar. Mas então que é que fez
Éride, por não ter sido convidada?
PÂNOPE — Tétis e Peleu já se haviam retirado para os seus
aposentos, acompanhados por Anfitrite e Posídon, quando
Éride, passando despercebida de todos (coisa fácil, pois uns
bebiam, e outros aplaudiam ou estavam atentos, escutando
Apolo a tocar cítara ou as Musas a cantar), arremessou para
o meio da sala uma maçã magnífica, de oiro maciço, na qual
estava uma inscrição que dizia: PAR A A MAIS BELA . A maçã
foi rolando e, como se de propósito, foi parar ao sítio onde
estavam reclinadas Hera, Afrodite e Atena.

2] Então Hermes apanhou a maçã e leu a inscrição, e nós,


Nereidas, ficámos muito caladinhas. Sim, que outra coisa po-
deríamos nós fazer, perante aquelas grandes senhoras? Cada
uma delas reclamava que a maçã lhe pertencia de direito, e a
discussão teria chegado a vias de facto, se Zeus não as tivesse
apartado. Então ele disse: «Eu, pessoalmente, não emitirei juízo
sobre essa demanda (de facto, elas queriam que fosse ele a julgar),
mas descei até ao [monte] Ida, até junto do filho de Príamo, o
qual, apreciador como é da beleza, saberá sentenciar qual é mais
bela e certamente não vos julgará mal.»
G ALENE — E que é que as deusas fizeram?
PÂNOPE — Hoje mesmo, creio eu, partem para o Ida, e
dentro de pouco tempo virá alguém anunciar-nos quem foi a
vencedora.
GALENE — Mas eu digo-te já: nenhuma das outras vencerá a
combativo Afrodite... a menos que o árbitro seja curto de vista.

101
Duas Nereidas.
102
Personificação da discórdia: Discórdia.

173
(Página deixada propositadamente em branco)
8. TRITÃO, [A MIMONE103] E POSÍDON [6]

1] T RITÃO — Todos os dias, Posídon, vai buscar água à


fonte de Lerna uma jovem... coisinha deveras formosa. Eu,
pelo menos, não me lembro de ter visto rapariga mais bela.
POSÍDON — Mas, ó Tritão, referes-te a uma jovem livre,
ou é alguma serva encarregada de transportar água?
T RITÃO — Não é serva, mas sim filha desse tal Egípcio104 ,
uma das cinquenta [Danaides], chamada Amimone. Na verda-
de, eu informei-me do seu nome e da sua família. Ora Dánao
trata com muita severidade as filhas, acostuma-as a trabalhar
duramente, manda-as carregar água e, entre outras coisas mais,
educa-as para que não sejam preguiçosas.

2] POSÍDON — E ela faz sozinha uma caminhada tão longa


de Argos a Lerna?
T RITÃO — Sozinha, sim. Além disso, como sabes, Argos é
uma região muito árida, pelo que é preciso transportar água
para lá.
POSÍDON — Ó Tritão, tu perturbaste-me, e não foi pouco,
falando-me dessa jovem. Portanto, vamos até ela.
T RITÃO — Vamos, pois está na hora de ela carregar água.
Já deve estar mais ou menos a meio do caminho para Lerna.
POSÍDON — Pois então aparelha o carro... ou então, já que
é uma operação demorada atrelar os cavalos ao jugo e preparar
o carro, arranja-me tu mesmo um dos golfinhos mais rápidos,
pois, montado nele, chegarei lá mais depressa.
T RITÃO — Aqui está o mais veloz dos golfinhos.
POSÍDON — Muito bem, partamos. E tu, Tritão, vai nadan-
do ao nosso lado; e logo que cheguemos a Lerna, eu ficarei de
emboscada em qualquer sítio, enquanto tu observas... e logo
que a vires chegar...
T RITÃO — Ei-la já bem perto.

3] POSÍDON — Ó Tritão, que moça tão bela e tão perfeita!


Temos de raptá-la.

103
Danaide amada por Posídon. Como a Argólida era muito seca,
Posídon fez nascer uma fonte naquela região. Alguns editores não a in-
cluem no título.
104
O seu nome, como se vê a seguir, é Dánao.

175
A MIMONE — Ó homem, porque me raptas e para onde
me levas? És mesmo um raptor de gente livre... Parece-me que
foste enviado pelo meu tio Egipto. Vou gritar pelo meu pai.
T RITÃO — Cala-te, Amimone, pois trata-se de Posídon.
A MIMONE — Qual Posídon?! Ó homem, porque me violen-
tas e me arrastas para o mar? Infeliz de mim, que irei ao fundo
e morrerei afogada.
POSÍDON — Anima-te, nada de mal te acontecerá. Mas antes,
batendo com o tridente na rocha junto à praia, farei brotar neste
sítio uma fonte com o teu nome, e tu ficarás feliz e, além disso, serás
a única de entre as tuas irmãs que, depois de morta, não carregará
água.

176
9. ÍRIS E POSÍDON [10]

1] Í RIS — Ó Posídon, aquela ilha errante, que se separou da


Sicília e ainda vagueia por sob as águas, essa, Zeus ordena-te
que a faças parar imediatamente, a tragas à superfície e faças
que ela, bem visível105 em pleno mar Egeu, fique aí muito bem
firme, pois ele tem necessidade dessa ilha.
POSÍDON — Será feita a sua vontade, Íris. Mas que utili-
dade lhe proporcionará ela pelo facto de estar emersa e deixar
de navegar?
Í RIS — É que Latona deve ir dar à luz nessa ilha, e até já
está com terríveis dores de parto.
POSÍDON — O quê? Então o céu não bastante grande para
ela aí dar à luz? Ou, à falta deste, não pode toda a terra receber
os filhos de Latona?
Í RIS — Não, Posídon. Na verdade, Hera obrigou a Terra,
sob juramento solene, a não dar hospitalidade a Latona em
trabalhos de parto. Ora, esta ilha está fora do juramento, pois
não era visível.

2] POSÍDON — Compreendo. Ó ilha, emerge novamente do


abismo e não te mexas daí, mas permanece bem fixa e acolhe,
ó bem-aventurada, os dois filhos de meu irmão, os mais for-
mosos de entre os deuses. E vós, Tritões, transportai Latona a
esta ilha, e que o mar esteja calmo. E quanto à serpente que
a atormenta e aterroriza, logo que estes seus filhos nascerem,
atacá-la-ão e vingarão a mãe. E tu, Íris, vai anunciar a Zeus
que está tudo preparado: Delos está fixa. Que venha já Latona
e que dê à luz.

105
Jogo de palavras intraduzível: dÁloj «visível» e DÁloj «(ilha de)
Delos». Luciano parece recolher uma variante da lenda, que não se encontra
em mais nenhuma fonte de informação.

177
(Página deixada propositadamente em branco)
10. X ANTO E O M AR [11]

1] X ANTO — Ó Mar, acode-me, que estou a sofrer horri-


velmente: apaga-me este fogo ardente.
M AR — Que é que foi, ó Xanto? Quem te pegou fogo?
X ANTO — Foi Hefesto. Desgraçado de mim, que fiquei
em brasa e todo a ferver.
M AR — Mas porque é que ele te lançou fogo?
X ANTO — Foi por causa do filho de Tétis. De facto, estan-
do ele a massacrar os Frígios, por muito que eu lhe suplicasse,
não punha termo à sua cólera, mas atravancava-me a corrente
com os cadáveres. Aí eu, apiedando-me dos infelizes, lancei-
-me sobre ele, na intenção de o submergir e de o obrigar, por
medo, a deixar esses homens.

2] Então Hefesto, que por acaso estava ali perto, carregou


e atirou contra mim todo o fogo — julgo eu — que tinha na
forja e quanto havia no Etna, esturrou-me os choupos e os
tamariscos, grelhou-me os pobres peixes e enguias, e a mim
próprio fez-me transbordar, pouco faltando para me deixar
completamente seco. Estás a ver em que estado eu fiquei com
aquelas queimaduras.
M AR — É natural, Xanto, que estejas turvado e a ferver:
turvado, devido ao sangue dos mortos, e a ferver, devido, como
dizes, ao fogo. E foi bem feito, ó Xanto, por te teres atirado
contra o meu neto e sem respeito pelo filho de uma Nereida.
X ANTO — Então eu não devia compadecer-me dos meus
vizinhos Frígios?
M AR — E também não devia Hefesto compadecer-se de
Aquiles, filho de Tétis?

179
(Página deixada propositadamente em branco)
11. NOTO E Z ÉFIRO

1] NOTO — Ó Zéfiro, esta novilha, que Hermes conduz


através do mar até ao Egipto, foi mesmo desflorada por Zeus,
tomado de paixão por ela?
Z ÉFIRO — Sim, Noto, mas nesse tempo ela não era uma
novilha, mas sim filha do rio Ínaco. Agora, porém, Hera
metamorfoseou-a assim, ciumenta por ver que Zeus estava
completamente apaixonado por ela.
NOTO — Será que Zeus ainda está apaixonado por ela
como vaca?
Z ÉFIRO — Claro que sim, e foi por esse motivo que ele
a mandou para o Egipto e nos ordenou que não agitássemos
as ondas do mar, até que ela fizesse a travessia, pois dará aí à
luz — até já está grávida —, e será feita deusas, bem como o
menino.

2] NOTO — A novilha... uma deusa?


Z ÉFIRO — Claro, Noto. E mais: segundo me disse Hermes,
mandará nos navegantes e será a nossa patroa, escolhendo qual
de nós ela quer enviar [a qualquer parte] ou impedir de soprar.
NOTO — Portanto, temos de tratá-la bem, Zéfiro, já que é
a nossa patroa. Deste modo, ser-nos-á mais propícia.106
Z ÉFIRO — Mas eis que terminou a travessia e já pôs pé
em terra. Estás a ver como já não caminha a quatro patas? De
facto, Hermes endireitou-a e transformou-a novamente numa
mulher formosíssima.
NOTO — Mas que coisa incrível, ó Zéfiro! Já não tem cor-
nos, nem cauda, nem patas fendidas, mas agora é uma moça
amorosa. E que é que se passa com Hermes, que também está
transformado? Em vez de jovem, ficou com cabeça de cão107.
Z ÉFIRO — Não sejamos indiscretos, pois ele sabe melhor
do que nós o que tem a fazer.

106
Para alguns editores atribuem o último período à fala seguinte,
de Zéfiro.
107
Trata-se do deus egípcio Anúbis, que os Gregos identificavam com
Hermes.

181
(Página deixada propositadamente em branco)
12. DÓRIDE108 E TÉTIS

1] DÓRIDE — Porque choras, Tétis?


T ÉTIS — É que, ó Dóride, vi uma jovem formosíssima
encerrada por seu pai numa caixa — ela e o seu bebé recém-
-nascido. O pai ordenou a uns marinheiros que levassem a caixa
e, quando já estivessem muito afastados de terra, a lançassem
ao mar, para que a desgraçada morresse — ela mais o bebé.
DÓRIDE — E porquê, minha irmã? Conta-me cá tudo em
pormenor, se é que sabes109.
TÉTIS — Acrísio, seu pai, por ela ser tão formosa, encerrou-a
numa câmara de bronze, a fim de lhe conservar a virgindade.
Mais tarde... não posso dizer se é verdade, mas diz-se que
Zeus, sob a forma de [chuvisco de] ouro, escorregou através do
telhado até junto da jovem, e que esta, tendo recebido no seu
seio o deus escorrente, ficou grávida. Então seu pai, um velho
cruel e ciumento, ao saber do caso, ficou furioso e, julgando
que a moça tinha sido seduzida por algum homem, meteu-a
nessa caixa, mal ela deu à luz.

2] DÓRIDE — E que é que ela fazia, ó Dóride, enquanto


estavam a metê-la na caixa?
T ÉTIS — Em sua defesa, Dóride, não dizia nada, pois
submetia-se à condenação, mas suplicava que não matassem o
bebé, chorando e mostrando ao avô o menino, que era formo-
síssimo e que, na sua ignorância, sorria para o mar. Até fico
com os olhos rasos de água, só de me lembrar.
DÓRIDE — E fizeste-me chorar também a mim. Mas será
que eles já estão mortos?
T ÉTIS — Nada disso: a caixa ainda flutua ao largo da ilha
de Sérifo, mantendo-os vivos.
DÓRIDE — Então porque não os salvamos e os atiramos
para as redes dos pescadores de Sérifo? Estes, ao recolherem
as redes, certamente os salvarão.
T ÉTIS — Dizes bem, façamos assim, para que não morram,
nem ela nem uma criança tão formosa.

108
Dóride (Dóris), filha de Oceano e irmã de Tétis, desposou seu irmão
Nereu, de quem teve 50 filhas, as Nereidas.
109
Aqui segui a edição de K. Mras.

183
(Página deixada propositadamente em branco)
13. ENIPEU E POSÍDON

1] E NIPEU — Ó Posídon, para dizer a verdade, isto não está


certo: tomaste a minha figura, introduziste-te junto da minha
amada e desvirgaste a jovem. Esta julgava que era eu a fazer a
coisa, e por isso entregou-se.
P OSÍDON — É que tu, Enipeu, mostravas-te muito so-
branceiro e indiferente: desdenhavas de uma jovem assim tão
bela, que todos os dias te procurava, morta de amor por ti, e
gostavas de afligi-la. Ela deambulava pelas tuas margens, por
vezes entrava e tomava banho nas tuas águas, ansiava por ter
relações contigo, mas tu desprezava-la.

2] E NIPEU — E daí? Lá por isso já te achas no direito de


te apressares a roubar o objecto do meu amor, de fingires que
eras Enipeu, em vez de Posídon, e de iludir uma jovem tão
ingénua como é Tiro?
POSÍDON — Ó Enipeu, os teus ciúmes já vêm tarde, depois
de tanta sobranceria. Aliás, Tiro não sofreu a mínima desonra,
pois cuidou que tinha sido desvirgada por ti.
E NIPEU — Nada disso, pois tu, ao retirares-te, disseste que
eras Posídon, o que muito a desgostou. Eu é que fiquei lesado,
já que tu gozaste do que era meu e, envolto numa onda cerúlea
que vos encobria, tiveste, no meu lugar, relações com a jovem.
POSÍDON — Pois tive. Afinal, Enipeu, tu não querias.

185
(Página deixada propositadamente em branco)
14. TRITÃO E AS NEREIDAS

1] T RITÃO — Esse vosso monstro, ó Nereidas, que vós en-


viastes contra a filha de Cefeu, não só não fez qualquer mal à
jovem, como vós imaginais, mas quem morreu foi ele.
NEREIDAS — Às mãos de quem, ó Tritão? Será que Cefeu,
usou a jovem como engodo e, tendo-se posto de emboscada
com uma hoste numerosa, o atacou e matou?
T RITÃO — Nada disso. Creio que tu, Ifianassa, conheces
Perseu, filho de Dánae e que, mandado lançar ao mar, dentro
de uma caixa e juntamente com sua mãe, vós salvastes, por
terdes piedade de ambos.
I FIANASSA — Sei a quem te referes. É natural que já seja
um jovem valente e formoso de se ver.
T RITÃO — Foi esse que matou o monstro.
I FIANASSA — E porque fez ele isso? Na verdade, ele não
devia dar-nos uma tal paga por o termos salvo.

2] T RITÃO — Vou contar-vos como tudo se passou. Este


Perseu fora mandado contra as Górgonas, a fim de realizar uma
tarefa por ordem do rei110 . Ora, ao chegar à Líbia...
I FIANASSA — Como foi isso, ó Tritão? Foi sozinho, ou le-
vou quem o ajudasse? Realmente, o caminho é muito penoso.
T RITÃO — Ele fez a viagem pelo ar, pois Atena fê-lo ala-
do. Ao chegar ao local onde elas viviam, elas, segundo creio,
estavam a dormir, e então ele cortou a cabeça da Medusa e
partiu dali voando.
I FIANASSA — E como é que ele a viu? Na verdade, elas não
se deixam ver, ou então, se alguém olha para elas, nunca mais
vê mais nada depois disso.
T RITÃO — Atena facultou-lhe o seu escudo — de facto,
ouvi-o contar estes factos a Andrómeda e, posteriormente, a
Cefeu — ... Atena, como ia dizendo, proporcionou-lhe a ma-
neira de ver a imagem da Medusa no escudo bem polido, como
num espelho. Então Perseu, agarrando-lhe os cabelos com a
mão esquerda e olhando para a imagem, pegou na cimitarra
com a mão direita, cortou-lhe a cabeça e levantou voo, antes
que as irmãs acordassem.

110
Polidectes, rei de Sérifo (ilha do mar Egeu).

187
3] Depois, ao chegar aqui às costas da Etiópia, e voando
já mais baixo, avista Andrómeda, que jazia amarrada a um
rochedo alcantilado, formosíssima, ó deuses, de cabelos soltos
e seminua muito abaixo dos seios. Logo de início, compade-
cido da sua sorte, perguntou-lhe o motiva da condenação, mas,
um pouco depois, dominado pela paixão... mas havia primeiro
que salvar a jovem, decidiu socorrê-la. Assim, logo que surgiu o
monstro deveras pavoroso que vinha devorar Andrómeda, o jovem
elevou-se no ar de cimitarra em riste numa das mãos, com que
ataca, e, exibindo na outra mão a Górgona, transforma em pedra
o monstro, bem morto, ao mesmo tempo que ficou petrificada
a maior parte do seu corpo — aquela que esteve virada para a
Medusa. Então Perseu desatou as cadeias da jovem e, dando-lhe
a mão, amparou-a, enquanto ela, nas pontas dos pés, descia do
rochedo, que era muito escorregadio. E vai já casar com ela no
palácio de Cefeu, e depois há-de levá-la para Argos... e foi assim
que a jovem, em vez da morte, conseguiu um casamento nada
habitual.

4] IFIANASSA — Pela minha parte, não fico aborrecida com


o [feliz] desenlace. Sim, em que é que a rapariga nos ofendia,
lá porque sua mãe se gabava e pretendia ser mais bela que nós?
DÓRIDE — É que, desse modo, a mãe, pelo facto de ser
mãe, sofria pela filha.
I FIANASSA — Não recordemos isso, Dóride, quer dizer, o
facto de uma mulher bárbara ter falado mais do que convinha.
De facto, já foi bem castigada, ao temer pela sorte da filha.
Portanto, congratulemo-nos com o seu casamento.

188
15. Z ÉFIRO E NOTO

1] Z ÉFIRO — Desde que me conheço e sopro, nunca assisti


a uma procissão no mar mais magnífica que esta. Tu não viste,
ó Noto?
NOTO — A que procissão te referes, ó Zéfiro? E quem eram
os participantes?
Z ÉFIRO — Perdeste um espectáculo muitíssimo agradável,
como não verás mais nenhum outro.
N OTO — É que eu tinha que fazer na região do Mar
Vermelho e soprava sobre a parte do [oceano] Índico junto à
costa. Por isso, não sei a que te referes.
Z ÉFIRO — Ora bem: conheces Agenor de Sídon?
NOTO — Sim, é o pai de Europa. E então?
Z ÉFIRO — É precisamente sobre ela que te vou falar.
NOTO — Porventura [vais contar-me] que Zeus está, desde
há muito, apaixonado por essa jovem? Já sabia desse caso há
muito tempo.
Z ÉFIRO — Portanto, já conheces o amor existente entre
eles. Mas escuta o que se passou a seguir.

2] Europa, brincando com as suas companheiras, tinha


descido à praia, quando Zeus se pôs a brincar com elas, sob a
forma de um touro de formosíssima aparência, pois era comple-
tamente alvo, com cornos recurvados e olhar doce. Começou
também a saltar na praia e a mugir ternamente, de tal modo
que Europa se atreveu a montá-lo. Mal isso aconteceu, Zeus
lançou-se numa correria em direcção do mar, levando sobre
o lombo; depois, entrando na água, avançou a nado; a jovem,
completamente aterrorizada com o caso, agarrava-se com a mão
esquerda a um corno, a fim de não escorregar, enquanto, com
a outra mão, segurava o vestido contra o vento.

3] NOTO — Ó Zéfiro, esse espectáculo a que tu assististe


foi muito agradável e muito erótico: Zeus transportando a
nado a sua amada.
Z ÉFIRO — Sim, ó Noto, mas o que se passou a seguir é
ainda mais agradável. Na verdade, o mar ficou imediatamen-
te sem ondas e, ganhando um aspecto calmo, apresentava-se
muito liso. Todos nós, [os ventos,] sem termos nada que fazer,
limitávamo-nos a acompanhar os acontecimentos como simples

189
espectadores, enquanto os Amores, esvoaçando um pouco acima
da superfície do mar, a ponto de algumas vezes tocarem na água
com as pontas dos pés, e empunhando fachos acesos, cantavam
e entoavam o hino do casamento; e as Nereidas, emergiam das
águas cavalgando golfinhos, batendo palmas e quase todas nuas;
e a raça dos Tritões e todos os outros seres marinhos de aspecto
nada aterrorizador dançavam à volta da jovem; Posídon, de cima
do seu carro e tendo a seu lado Anfitrite, seguia na frente, todo
feliz por acompanhar seu irmão que nadava. Enfim, na cauda do
cortejo, seguia Afrodite, transportada por dois Tritões, reclinada
numa concha e espalhando toda a espécie de flores sobre a noiva.

4] Este cortejo realizou-se desde a Fenícia até Creta. Logo


que desembarcou nesta ilha, o touro deixou essa forma, e Zeus,
tomando Europa pela mão, levou-a para a caverna do [monte]
Dicteu, ruborizada e de olhos no chão, pois agora já sabia com
que intenção fora raptada. Então nós lançámo-nos, cada um
para sua parte do mar, a fim de levantarmos as ondas.
NOTO — Feliz de ti, Zéfiro, que assististe a um tal espec-
táculo! E eu que só via grifos, elefantes e homens negros!

190
DIÁLOGOS DOS MORTOS

191
Texto da ed. de Karl Mras, Die Hauptwerke des Lukian
192
I NTRODUÇÃO

O S Diálogos

Talvez os mais lidos, comentados e até imitados dos seus


escritos sejam os Diálogos: Diálogos dos Mortos, Diálogos dos
Deuses, Diálogos dos Deuses Marinhos e Diálogos das Cortesãs.
Trata-se de quadros dramáticos, geralmente breves, em que
várias personagens debatem um problema ou uma situação
mais ou menos polémica ou censurável, num estilo a que hoje
chamaríamos «revisteiro» (até na representação possível), mas
nem por isso, no seu conjunto, menos profundo. Nos Diálogos,
Luciano critica sobretudo a mitologia tradicional, a ética dos
deuses, mas também os comportamentos humanos.

Os Diálogos dos Deuses e os Diálogos dos Deuses Marinhos


baseiam-se sobretudo na mitologia e na literatura sua trans-
missora (Homero, Hesíodo...): Luciano ataca os aspectos mais
incríveis e mais irracionais dessas historietas.
No que diz respeito aos Diálogos das Cortesãs, trata-se de
uma obra importante do ponto de vista da análise social de
uma parte da sociedade ateniense do séc. II d.C. Enquanto
os outros Diálogos a que atrás nos referimos se inspiram em
histórias mitológicas ou na vida de mortos famosos (Sócrates,
Filipe, Alexandre, Diógenes, Menipo, etc.), os Diálogos das
Cortesãs têm uma forte marca de actualidade, ainda que pos-
samos entrever neles, também, certas personagens da chamada
«Comédia Nova»: a cortesã, o jovem apaixonado e ciumento,
o criado ou a criada, a mãe...
Embora a actividade de prostituta esteja bem documentada
na época clássica (a toda a gente ocorre o nome de Aspásia,
amante e «companheira» de Péricles), esta profissão conhece
um forte desenvolvimento nos períodos helenístico e romano.
Muitas vezes, era o modo mais prático de lutar contra a miséria.
Naturalmente, entre as mulheres que viviam do aluguer do
corpo, havia as «finas» e as... de esquina de rua ou de encruzi-
lhada, aliás normalmente designadas de modo diferente: por
um lado, as ˜ta‹rai, hetairai, «heteras» ou «cortesãs», que, à
maneira das sua predecessoras da época clássica, pretendiam
ser «companheiras» dos seus amantes, para o que sabiam pro-
porcionar-lhes outros prazeres além dos da carne: dizia-se que

193
os homens tinham as esposas legítimas para lhes darem filhos,
e as heteras para divertimento; por outro lado, a prostituta...
de esquina era designada por pÒrnh, pórnê, «puta» «meretriz»,
porn…dion, pornídion, «putéfia», às vezes porn…on, «putinha»...
À profissão, tendencialmente rendosa, de «cortesã» estava
muitas vezes associada a figura da mãe, especialmente da mãe
viúva, que punha nos dotes físicos da filha a sua única esperança
de não morrer de fome (v. 7: «Musário e sua mãe»).
Naturalmente, Luciano conhecia o ambiente, não apenas
das leituras da Comédia Nova, mas, sobretudo, da vida real
ateniense dos meados do séc. II d.C.; e embora a focagem
esteja projectada principalmente sobre a cortesã, a mãe, uma
amiga, a criada, etc., Luciano não deixa de nos mostrar alguns
exemplares de amantes (homens): os infiéis, os apaixonados,
os chorões, os mãos-largas e os forretas, os pobretanas, os
violentos... Em todo o caso, é importante notar que Luciano
não se mostra muito (ou nada!) crítico relativamente à pros-
tituição, que ele devia ver como uma opção de vida por parte
da mulher e como uma liberdade por parte do homem. Mais
do que criticar, Luciano descreve diversos quadros da vida
sexual e do comportamento do jovem e do homem casado
do seu tempo. É que, para sermos curtos e breves, certas
«instituições», como a escravatura e a prostituição, estavam
tão integradas na mentalidade das pessoas, que a ninguém
ocorria sequer pô-las em causa.

Os Diálogos dos Mortos

De entre os Diálogos de Luciano (a que poderíamos acres-


centar muitas outras obras igualmente em forma dramática), os
Diálogos dos Mortos salientam-se nitidamente pela popularidade
que ao longo dos séculos foram acumulando. Os leitores de
Luciano recordam particularmente algumas dessas saborosas
cenas, como, p. ex., a de Caronte e Menipo (D. M., 2): Caronte,
o barqueiro dos Infernos, insiste desesperadamente com o
filósofo cínico Menipo para que este lhe entregasse o óbolo
— pagamento obrigatório, sem o qual os mortos não podem
passar para o reino inferior. Ora, sucede que Menipo não tem
com que pagar, pelo que só resta (só restaria!) uma solução:
colocar na margem da vida o passageiro mau pagador...

194
Fundamentalmente, são-nos apresentados mortos ilustres,
quer à chegada ao reino de Hades, quer já de há longo tempo
aí residentes. Naquele ambiente concentracionário, lúgubre
e escuro, surgem alguns problemas, que envolvem não só os
«hóspedes» entre si, mas também as divindades infernais.
Deste modo, poderíamos dizer que se trata, de algum modo,
também de diálogos dos deuses infernais, nas suas relações
com os mortos à sua guarda.
Mais uma vez, Luciano aplica aqui a sua crítica acutilante,
que não poupa nem as fraquezas humanas, nem alguns aspectos
irracionais da mitologia. Entre as personagens destes diálogos
salientam-se sobretudo, como representantes das ideias do
próprio Luciano, as figuras dos filósofos cínicos Menipo e
Diógenes, que entram em 16 dos 30 diálogos: 1 (Menipo indi-
rectamente), 2, 3, 11 (Diógenes e o filósofo cínico Crates), 13,
16, 17, 18, 20, 21, 22, 24, 25, 26, 27 (Diógenes, Antístenes e
Crates) e 28. A estes devemos acrescentar outras personagens,
divinas ou humanas, como Agamémnon, Ájax, Alexandre,
Aníbal, Antíloco, Aquiles, Cipião, Creso, Filipe, Mausolo,
Midas, Nireu, Pitágoras, Protesilau, Sardanapalo, Sócrates,
Sóstrato, Tântalo, Tersites, Tirésias; Caronte, Cérbero, Éaco,
Héracles (Hércules), Hermes, Minos, Perséfone (Prosérpina),
Pólux, Plutão, Quíron...
Umas quantas (poucas) personagens humanas podem ser
fictícias ou não passam de «celebridades locais», mas, por isso
mesmo, têm, mais do que valor histórico, um certo valor sim-
bólico, como os parasitas Calidémides, Cnémon, Zenofanto,
Térpsion, Damnipo... Mas as grandes figuras dos Diálogos
dos Mortos são mesmo personagens da grande história: heróis
homéricos, soberbos monarcas orientais, generais, filósofos e,
é claro, algumas das principais divindades infernais.
Entre as personagens que merecem a simpatia de Luciano,
contam-se os filósofos cínicos Diógenes e Menipo. De facto, a
filosofia cínica, constituiu, na Antiguidade, o movimento mais
corrosivo e mais crítico dos valores «universais», supostamente
imutáveis, da sociedade «bem-pensante». Outra corrente filo-
sófica que merece a admiração de Luciano (presente noutras
obras, que não nesta) é o atomismo (Demócrito...), pela sua
racionalidade contrária a todas as crenças infantis e cretinizantes.
Diógenes de Sinope, no Ponto Euxino, viveu no séc. IV a.C.,
em Atenas e Corinto. É o principal representante da filosofia

195
Cínica, fundada em Atenas por Antístenes (n. 440 a.C.). Outros
filósofos cínicos são Crates e Menipo. Na sua forma mais ou
menos definitiva, a filosofia cínica tenta destruir os valores
mais firmes, pretensamente universais, da sociedade tradicional
«bem comportada». Na Antiguidade, contavam-se, a respeito
de Diógenes, centenas de histórias, na sua maioria inventadas,
mas, de qualquer forma, bem ilustrativas da personagem e das
suas ideias. A designação de cínico deriva de Cinosarges, local
a leste e nos arredores de Atenas, onde a escola funcionava.
Outros fazem derivar a palavra de kÚwn, tema kun-, «cão», al-
cunha dada a Diógenes... e a todos os outros (p. ex., Menipo:
v. D. M., 21).
Menipo (séc. III a.C.) foi um notável filósofo desta mesma
escola, cuja obra se perdeu, mas de que restam ecos noutros es-
critores. No diálogo nº 1, Luciano, por intermédio de Diógenes,
fornece-nos um bom retrato deste cínico.

196
DIÁLOGOS DOS MORTOS
(Página deixada propositadamente em branco)
1. DIÓGENES E PÓLUX111

1] DIÓGENES — Ó Pólux, recomendo-te, logo que chegues


lá acima (creio que é já amanhã a tua vez de voltar à vida), se
por acaso vires Menipo, o cão (deves encontrá-lo em Corinto,
lá para as bandas do Craneu, ou então no Liceu, fazendo troça
dos filósofos em permanente discussão uns com os outros),
que lhe dês este recado: «Ó Menipo, Diógenes convida-te, se já
troçaste o bastante das misérias terrenas, a vir cá abaixo, para te
rires muitíssimo mais. Sim, que o teu riso, aí na terra, pode, de
algum modo, ser injustificado, e muitas vezes se pergunta: ‘Quem
conhece completamente o que há para além da vida?’, ao passo
que, cá em baixo, não cessarás de rir com todo o fundamento,
como eu agora, sobretudo ao veres os ricos, os sátrapas e os tiranos
agora tão reles e tão insignificantes, só reconhecíveis pelas suas
lamentações; vê como essas criaturas são frágeis e ignóbeis, a
recordarem continuamente a sua vida terrena.» Dá-lhe, pois,
este recado. E mais: que venha com o saco bem atafulhado de
tremoços bem como, caso o ache para aí nalguma encruzilhada,
o jantar de Hécate112 , ou então um ovo lustral, ou qualquer
coisa do género.

2] PÓLUX — Dar-lhe-ei o recado, Diógenes. Mas... para


poder identificá-lo bem, que aspecto tem ele?
DIÓGENES — É velho, careca, com um manto cheio de
buracos e exposto a todos os ventos, e muito garrido, tantos
são os remendos feitos de andrajos; além disso, está sempre a rir
e, a maior parte das vezes, a troçar desses filósofos charlatães.
PÓLUX — Com esses dados, é fácil encontrá-lo.
DIÓGENES — Queres que eu faça alguma recomendação
dirigida a esses tais filósofos?

111
Castor e Pólux, os Dioscuros «filhos de Zeus», gémeos dos mais
famosos da mitologia. Sua mãe, Leda, esposa de Tíndaro, rei de Esparta,
teve, na mesma noite, relações com o marido e com Zeus, que lhe havia
aparecido sob a forma de cisne. Dessa união nasceram Castor, filho de
Tíndaro, e Pólux, filho de Zeus. Só este teria direito à mortalidade... mas
as coisas compuseram-se, na medida do possível: cada um deles passaria,
alternadamente, seis meses no Hades e seis meses no Olimpo. É a essa
alternância que se refere o texto.
112
Hécate, deusa infernal, venerada nas encruzilhadas, protectora
das bruxas, por vezes associada à Lua. Os mortos acalmavam a sua ira,
levando-lhe o «jantar de Hécate», a que aqui se faz referência.

199
PÓLUX — Então diz lá, pois não será muito custoso.
DIÓGENES — Em poucas palavras, recomenda-lhes que
deixem de dizer asneiras, de discutir sobre todas as matérias,
de porem cornos uns aos outros113 , de fazerem crocodilos e de
ensinarem os espíritos a fazerem perguntas insolúveis como estas.
PÓLUX — Mas... eles vão dizer que eu sou um ignorante,
um estúpido, por atacar a sua sabedoria.
DIÓGENES — E tu diz-lhes que vão passear, que sou eu
que mando.
PÓLUX —Também lhes darei esse recado, Diógenes.

3] DIÓGENES — Aos ricos, meu queridinho Pólux, dá-lhes


este recado da minha parte: «Insensatos, porque guardais o vosso
ouro? Porque vos atormentais a calcular os juros e a acumular
talentos sobre talentos, vós, a quem basta trazer um só óbolo114 ,
quando, em breve, vierdes para este lado?»
PÓLUX — Também esse recado lhes será transmitido.
DIÓGENES — E aos belos e robustos, por exemplo a Megilo
de Corinto e a Damóxeno, o lutador, diz-lhes que cá entre nós
já não há nem cabeleira loira, nem olhos azuis ou negros, nem
faces coradas, nem músculos tensos, nem ombros fortes, mas,
como sói dizer-se, tudo aqui é um só monte de pó e caveiras
despojadas de toda a beleza.
PÓLUX — Também não é difícil transmitir esse recado aos
belos e robustos.

4] DIÓGENES — E aos pobres, ó Lacónio115 (que são tantos,


tão carregados de dificuldades e queixosos da sua miséria),
diz-lhes que não chorem nem se lamentem, depois de tu lhes
falares da igualdade que aqui reina e de lhes dizeres que eles
próprios verificarão que aqueles que aí na terra eram ricos
não estão agora em melhor situação que eles. E quanto aos
Lacedemónios, teus patrícios, faz o favor de os censurar e de
lhes dizer que eles estão completamente em decadência.

113
Alude-se a um falso silogismo: a) Tens o que não perdeste; b) Não
perdestes os cornos; c) Logo, tens cornos. A falácia do crocodilo era outra
das armadilhas com que alguns «filósofos» maravilhavam e confundiam
os simples.
114
Além do «jantar de Hécate» (v. supra), os mortos levavam uma
moedinha de 1 óbolo, para pagarem a passagem (v. diálogo nº 22).
115
Castor e Pólux tinham nascido em Esparta, na Lacónia (v. nota supra).

200
P ÓLUX — Ó Diógenes, não digas nada a respeito dos
Lacedemónios, que é coisa que eu não vou admitir; todavia, o
que tu disseste dirigido aos outros, isso eu transmitirei.
DIÓGENES — Pois deixemos esses em paz, já que assim o
queres. Quanto àqueles que anteriormente referi, leva-lhes o
recado da minha parte.

201
(Página deixada propositadamente em branco)
2. C RESO, P LUTÃO116, M ENIPO, M IDAS E SARDANAPALO

1] C RESO — Ó Plutão, não suportamos aqui este cão deste


Menipo que mora junto de nós. Assim, ou tu o colocas em
qualquer outro lado, ou nós nos mudaremos para outro sítio.
PLUTÃO — Mas que mal vos faz ele, sendo um morto como
vós?
C RESO — Sempre que nós nos lamentamos e gememos,
lembrados das coisas lá de cima — aqui o Midas do seu oiro;
Sardanapalo das suas muitas delícias; e eu, Creso, dos meus
tesouros —, ele troça de nós e ofende-nos, chamando-nos
escravos e merdosos; por vezes, chega mesmo a cantar, com o
que perturba as nossas lamentações. Numa palavra: é aflitivo.
P LUTÃO — Que é isto que eles estão dizendo, ó Menipo?
M ENIPO — A verdade, Plutão. De facto, odeio-os, por
serem ignóbeis e uns miseráveis, aos quais não bastou terem
vivido de forma ignominiosa, mas, depois de mortos, ainda
evocam a vida terrena e se apegam a ela. Por isso, apraz-me
atormentá-los.
PLUTÃO — Mas não deve ser assim: realmente, eles sofrem,
ao verem-se privados de bens nada desprezáveis.
M ENIPO — Também tu endoideceste, ó Plutão, ao concor-
dares com as lamentações destes tipos?

2] P LUTÃO — De maneira nenhuma... só que não quereria


que vós brigásseis.
M ENIPO — Seja como for, ó vós, as piores criaturas de
entre os Lídios, os Frígios e os Assírios, ficai sabendo que não
tenciono parar: sim, para onde quer que vades, seguir-vos-ei,
atormentando-vos, cantando e rindo.
C RESO — Não é isto uma insolência?
M ENIPO — Não, não é! Insolência era o que vós fazíeis,
julgando-vos dignos de serdes adorados, fazendo pouco de ho-
mens livres e não vos lembrando absolutamente nada da morte.
Por isso mesmo, lamentar-vos-eis, privados de todos esses bens.
C RESO — De quanta e enormes riquezas, ó deuses!
M IDAS — E eu, de quanto ouro!
SARDANAPALO — E eu, de quantas delícias!

116
Plutão, ou Hades, o deus supremo do reino dos mortos.

203
M ENIPO — Muito bem! Continuai assim: vós lamentais-
-vos, e eu, repetindo vezes sem conto o «Conhece-te a ti mesmo»,
cantá-lo-ei para vós, pois será bem próprio de ser cantado a
acompanhar as vossas lamentações.

204
3. M ENIPO E TROFÓNIO 117

1] MENIPO — Vós ambos, Trofónio118 e Anfíloco, não sei lá


como é que, sendo mortos, fostes julgados dignos de terdes tem-
plos e de serdes considerados adivinhos... E os tolos dos homens
acreditam que vós sois deuses.
TROFÓNIO — E que culpa temos nós que eles, na sua estu-
pidez, acreditem numa tal coisa a respeito de mortos?
M ENIPO — Mas não acreditariam, se vós, quando vivos,
não vos tivésseis dedicado a charlatanices, passando por pessoas
capazes de prever e predizer o futuro dos vossos consulentes.
TROFÓNIO — Ó Menipo, aqui o Anfíloco saberá o que há-
-de responder a seu respeito, mas eu sou um herói e exerço a
adivinhação, se alguém vem procurar-me. Ora, parece que tu
nunca por nunca estiveste em Lebadia 119, pois, caso contrário,
não duvidarias deste facto.

2] MENIPO — É o quê? Se eu não for a Lebadia e, ridiculamente


envergando uma veste de linho e tendo nas mãos um pãozinho,
não penetrar de rastos pela entrada da gruta, que é muito baixa,
não poderei saber que tu estás morto, como nós, apenas com a
diferença da tua charlatanice? Mas... pelo teu dom de adivinho,
diz-me cá o que é isso de ser herói, que eu não sei.
TROFÓNIO — É um composto de uma parte de homem e
uma parte de deus.
MENIPO — Um ser que, segundo dizes, não é nem homem
nem deus, mas participa das duas naturezas? Mas, neste momento,
para onde foi essa tua metade divina?
TROFÓNIO — Profere oráculos na Beócia, ó Menipo.
MENIPO — Não sei do que estás a falar, ó Trofónio, mas lá
que estás completamente morto, isso vejo eu claramente.

117
Alguns editores atribuem a 2ª fala a Anfíloco, pelo que introduzem
o seu nome no título: M ENIPO, A NFÍLOCO E TROFÓNIO.
118
Trofónio e Anfíloco, apesar de terem origem humana, ganharam
tal fama como adivinhos, que foram assimilados a divindades. As dúvidas
de Menipo são, pois, muito pertinentes. Curiosa é a justificação dada por
Trofónio.
119
Lebadia, cidade da Beócia.

205
(Página deixada propositadamente em branco)
4. HERMES120 E C ARONTE

1] HERMES — Se estás de acordo, barqueiro, façamos a conta


a quanto já me deves, para não voltarmos a discutir sobre esse
assunto.
C ARONTE — Façamos a conta, Hermes, pois é melhor e dá
menos aborrecimentos que fique acertada.
HERMES — Uma âncora que me encomendaste: cinco dracmas.
C ARONTE — É muito caro.
HERMES — Juro por Hades 121 que a comprei por cinco dra-
cmas... Mais uma correia para o remo: dois óbolos.
C ARONTE — Aponta lá cinco dracmas e dois óbolos.
HERMES — Mais uma agulha de coser velas: custou-me cinco
óbolos.
C ARONTE — Aponta também isso.
HERMES — Mais cera para calafetar as fendas da barquinha...
e pregos... e cordel com que fizeste o cabo da antena: ao todo,
duas dracmas.
C ARONTE — Muito bem! Fizeste uma boa compra.
HERMES — É tudo, se não me escapa nada na conta. E então
quando tencionas pagar-me?
C ARONTE — Ó Hermes, neste momento é impossível, mas,
se uma peste ou uma guerra me mandarem por aí abaixo grandes
quantidades de gente, então será possível obter lucro, especulando
com o preço da passagem, à conta do grande número de pessoas.

2] HERMES — Então e eu vou ficar para aqui sentado, fazen-


do votos por que aconteçam essas desgraças, para delas retirar a
minha paga?
C ARONTE — Não há outra forma, Hermes; neste momento,
como vês, chegam-nos poucos mortos, pois reina a paz.
HERMES — É melhor assim, ainda que se arraste a tua dívida
para comigo. Em todo o caso, ó Caronte, sabes bem como os
antigos se apresentavam, todos viris e, na sua maioria, cobertos
de sangue e crivados de feridas. Agora, porém, lá aparece um ou
outro que morreu envenenado pelo filho ou pela esposa, ou com
o ventre e as pernas inchadas pelo deboche, todos eles pálidos
e frágeis, nada parecidos com os de antanho. E na sua grande
120
Hermes é o deus psicopompo, o «condutor de almas», que entrega os
mortos a Caronte, o barqueiro do Inferno, que os passa para o outro lado.
121
Hades ou Plutão, o deus supremo do reino dos mortos.

207
maioria chegam cá, ao que parece, por conspirarem uns com os
outros por motivos de dinheiro.
C ARONTE — Realmente, o dinheiro é uma coisa muito
apetecível.
HERMES — Justamente por isso, não deve parecer-te desca-
bido que eu exija amargamente que me pagues o que me deves.

208
5. PLUTÃO E HERMES

1] PLUTÃO — Conheces aquele velho, quer dizer, mesmo


muito velho, o ricaço Êucrates, que não tem filhos, mas cinquenta
mil122 tipos à caça da sua herança?
HERMES — Sim, referes-te ao siciónio123. E então?
PLUTÃO — Esse mesmo, Hermes; deixa-o viver, para além dos
noventa anos que já viveu e mede-lhe outros tantos anos de vida,
se tal é possível, ou ainda mais; e quanto aos seus aduladores, o
jovem Carino, Dâmon e os outros, arrasta-os todos de enfiada
cá para baixo.
HERMES — Mas isso seria descabido.
PLUTÃO — Não seria, não, mas antes a coisa mais justa. Sim,
porque é que esses tipos fazem votos por que o velho morra e
cobiçam a sua fortuna, sem lhe pertencerem? Mas o mais re-
pugnante de tudo é o facto de que, enquanto fazem tais votos,
cuidam do velho, pelo menos em público, e, quando ele adoece,
toda a gente se apercebe do que eles ficam a magicar, por muito
que prometam fazer sacrifícios, caso ele se restabeleça. Enfim, a
adulação desses homens assume aspectos variados. Por isso, que
o velho seja imortal, e que os outros, frustrados nas suas expec-
tativas, partam antes dele.

2] HERMES — Será um castigo de fazer rir, safados como


eles são 124. Mas olha que o velho também os leva à certa e lhes
alimenta esperanças, mas ele, afinal, com aquele aspecto de es-
tar sempre preste a morrer, tem mais saúde que os novos; então
estes, com a herança já dividida entre eles, alimentam a cobiça,
imaginando para si uma vida regalada.
PLUTÃO — Sendo assim, que o velho se dispa da velhice, tal
como Iolau125, e rejuvenesça, enquanto aqueles, privados da so-
nhada riqueza, venham imediatamente para cá, esses miseráveis,
mortos de morte miserável.

122
Cinquenta mil é aquilo a que se chama «numeração indeterminada»;
traduzi à letra, mas também podiam ser «mais de mil», «dez dúzias», etc.
(cf. Diál. nº 9, nota).
123
Siciónio, natural de Sícione, cidade da Acaia.
124
Alguns editores cortam aqui a fala de Hermes, passando para Plutão,
até ao fim do parágrafo e continuando pelo parágrafo seguinte.
125
Iolau, companheiro de Héracles, muito popular na Beócia.

209
HERMES — Não te dê cuidados, Plutão, que tos vou trazer
imediatamente, todos se enfiada... creio que são sete.
PLUTÃO — Arrasta-os cá para baixo, enquanto ele, novamente
regressado, de velho que era, à primeira juventude, acompanhará
o funeral de cada um deles.

210
6. TÉRPSION126 E PLUTÃO

1] TÉRPSION — Ó Plutão, será justo eu ter morrido aos trinta


anos, enquanto o velho Túcrito, que já passa dos noventa, ainda
esteja vivo?
PLUTÃO — É justíssimo, Térpsion, que ele continue vivo,
pois não deseja a morte de nenhum dos seus amigos, enquanto
tu conspiravas constantemente contra ele, na mira de ficares
com a herança.
T ÉRPSION — Mas não devia ele, um velho já incapaz de
gozar da sua fortuna, abandonar a vida, dando lugar aos novos?
PLUTÃO — Que nova lei tu estabeleces, Térpsion, estipulando
que todo aquele que fique incapaz de gozar da sua fortuna deve
morrer! Todavia, a Moira127 e a natureza dispuseram que fosse
doutra maneira.

2] TÉRPSION — Nesse caso, é a elas que eu acuso por essa


disposição. As coisas deviam passar-se mais ou menos assim: pri-
meiro ia o mais velho, e a seguir a ele iria quem se lhe seguisse na
idade, sem a mínima alteração da ordem, sem ficar vivo o velhadas,
só com os três dentes que lhe restam, quase cego, apoiado em
quatro criados, com o nariz escorrendo de ranho, com os olhos
cheios de remelas, incapaz de gozar a vida, enfim, um autêntico
sepulcro com vida, escarnecido dos jovens, em vez de morrerem
os jovenzinhos formosos e cheios de saúde. É tal e qual como se
os rios corressem para cima. Finalmente, devia saber-se quando é
que cada velho iria morrer, a fim de não tratarem escusadamente
de alguns deles. Neste caso, porém, aplica-se o provérbio: «A
carroça à frente dos bois.»

3] PLUTÃO — Mas isso, ó Térpsion, acaba por ser mais ra-


zoável do que tu julgas: porque é que vós cobiçais a fortuna de
outrem e vos introduzis em casa dos velhos sem filhos, tentando
126
Térpsion, personagem provavelmente real, mas, como noutros diá-
logos, sobretudo representativa de um tipo social, aqui o tipo do adulador
e parasita.
127
As Moiras (ou Parcas), filhas de Zeus e de Témis (a Justiça), eram
as divindades que presidiam ao destino dos humanos. Eram três: Cloto,
Láquesis e Átropo. Láquesis determinava a parte de vida que cabia a cada
pessoa e carregava a roca, que depunha nas mãos de Cloto; Átropo, ao
cortar o fio, punha termo aos dias de vida concedidos. Aqui, o singular,
a Moira, deve referir-se, naturalmente, a Átropo, que cortava o fio.

211
levá-los à certa? Por isso mesmo é que sois motivo de riso, quando
enterrados antes dos velhos, facto que provoca enorme gozo em
muita gente. Sim, que quanto mais vós fazeis votos por que os
velhos morram, tanto maior gozo causa a toda a gente que vós
morrais antes deles. Realmente, vós imaginastes uma nova arte,
a de amar velhas e velhos, especialmente se não têm filhos, pois
os que têm filhos não suscitam o vosso amor. Mesmo assim,
muitos daqueles que vós amais, compreendendo a perversidade
do vosso amor, se por acaso têm filhos, fingem odiá-los, a fim
de terem amadores; mas depois, nos seus testamentos, deixam de
fora os antigos satélites, e o filho e a natureza, como é de justiça,
se apoderam de toda a fortuna, enquanto os outros rangem os
dentes, consumidos de raiva.

4] TÉRPSION — É bem verdade o que dizes. Quanto não co-


meu Túcrito do que era meu, dando a impressão de estar sempre
prestes a morrer: sempre que eu entrava em sua casa, gemia e
soltava uns pios profundos, como de um pintainho acabado de
sair do ovo, de forma que eu, convencido de que ele em breve iria
entrar no caixão, mandava-lhe grande quantidade de presentes,
para que os meus rivais não me ultrapassassem em generosidade;
muitas vezes, passava as noites em claro, cheio de preocupações
e fazendo contas e planeando coisas, e terão sido talvez estas
coisas, as insónias e as preocupações, a causa da minha morte.
Ao contrário, anteontem, depois de engolir o isco que eu lhe
lançara, o velho, enquanto me enterravam, estava junto do meu
túmulo a rir-se de mim.

5] PLUTÃO — Pois muito bem, ó Túcrito! Que vivas o máximo


de tempo possível, que rias de tais fulanos e que não morras antes
de teres mandado à tua frente todos os aduladores.
TÉRPSION — Uma coisa, ó Plutão, que me seria particular-
mente agradável, é que Caréades morresse antes de Túcrito.
PLUTÃO — Anima-te, Térpsion, pois também Fídon e Melanto
e, enfim, todos os outros partirão antes do velho, minados pelas
mesmas preocupações.
T ÉRPSION — Aprovado. Então que tu, Túcrito, vivas por
muito tempo.

212
7. Z ENOFANTO128 E C ALIDÉMIDES

1] Z ENOFANTO — Então e tu, Calidémides, como é que


morreste? No meu caso, era parasita de Dínias; então, tendo
comido mais que a conta, tive uma congestão, como sabes, pois
assististe à minha morte.
CALIDÉMIDES — Sim, Zenofanto, assisti. O meu caso, porém,
foi algo de insólito. Conheces, não é assim, o velho Pteodoro?
ZENOFANTO — Sim, um que não tem filhos, muito rico e
cuja casa eu sabia que tu frequentavas assiduamente.
C ALIDÉMIDES — Esse mesmo, do qual eu tratava e que me
prometia que eu seria contemplado após a sua morte. Todavia,
como a coisa se arrastava demasiado e o velho vivia mais tempo
que Titono129, achei um caminho mais curto para chegar à herança:
comprei um veneno e convenci o seu escanção a que, logo que
Pteodoro lhe pedisse de beber (e ele bebe o vinho razoavelmente
puro), tivesse o veneno pronto, o deitasse na taça e lha oferecesse.
E jurei que, caso ele assim fizesse, lhe concederia a liberdade.
ZENOFANTO — E que é que aconteceu? Tenho a impressão
de que mais contar algo de extraordinário.

2] C ALIDÉMIDES — Quando, após o banho, regressámos


à sala, o moço, que tinha já duas taças preparadas (uma para
Pteodoro — a que continha o veneno —, e a outra para mim),
não sei como, enganou-se e deu-me a do veneno a mim e a que
não tinha veneno a Pteodoro. Então o velho bebeu calmamente130,
enquanto eu caí logo ali todo ao comprido, morto no lugar do
velho... Mas... porque estás a rir, ó Zenofanto? Na verdade, não
devias fazer troçar de um amigo.
ZENOFANTO — É que o que te aconteceu, Calidémides, tem
muita graça... E como é que o velho reagiu a isso?
C ALIDÉMIDES — Primeiro, ficou algo perturbado perante o
inesperado da coisa, mas depois, tendo — creio eu — percebido
128
Zenofanto, Calidémides e outros são personagens provavelmente
reais, mas representam sobretudo um tipo social: o dos parasitas caçadores
de heranças.
129
Titono, filho de Laomedonte e irmão de Príamo, foi amado por Eos
(Aurora), a qual pediu a Zeus que concedesse a imortalidade a Titono, no
que foi atendida... mas esqueceu-se de pedir também a eterna juventude,
pelo que Titono, embora imortal, envelhecia eternamente.
130
O imperfeito «bebia», «ia bebendo» (aspecto contínuo) sugere o
advérbio «calmamente», o qual já permite o uso do perfeito em português.

213
o que se passara, desatou a rir com o que o escanção acabara de
fazer.
ZENOFANTO — Mas tu não precisavas de te virar para a via mais rá-
pida, pois a fortuna chegaria às tuas mãos pela via geral, mais segura,
ainda que um pouco mais lenta.

214
8. CNÉMON131 E DAMNIPO

1] CNÉMON — É caso para citar o provérbio: «O veado caçou


o leão».
DAMNIPO — Porque é que estás tão irritado, Cnémon?
CNÉMON — Queres saber porque é que estou tão irritado?
Desgraçado de mim, que, sem querer e por me deixar enganar,
acabo de deixar um herdeiro, privando da minha herança quem
eu mais queria que ficasse com ela.
DAMNIPO — Como é que isso foi?
CNÉMON — Eu tratava de Hermolau, aquele fulano muito
velho e sem filhos, na esperança de que ele morresse. Ele, por
seu lado, não era sem prazer que recebia os meus serviços. Além
disso, tive por bem e por acertado divulgar publicamente o meu
testamento, no qual lhe havia deixado todos os meus bens, a fim
de que ele me imitasse e procedesse da mesma maneira.
DAMNIPO — E ele que é que fez?
CNÉMON — O que ele tinha escrito no seu testamento, não
sei, pois morri de repente, por me ter caído em cima o tecto da
minha casa. E agora Hermolau possui os meus bens, como uma
perca que tivesse engolido o anzol juntamente com o isco.
DAMNIPO — E não só... mas também a ti, o pescador, que
armaste um engano a ti próprio.
CNÉMON — Parece que sim, e por isso me lamento.

131
Cnémon e Damnipo são, mais uma vez, sobretudo personagens
simbólicas.

215
(Página deixada propositadamente em branco)
9. SÍMILO E POLÍSTR ATO

1] SÍMILO — Até que enfim, Polístrato, que também tu che-


gas cá às nossas bandas, depois de viveres, creio eu, não muito
menos de cem anos.
POLÍSTR ATO — Noventa e oito, Símilo.
SÍMILO — E então como é que passaste estes trinta anos
depois da minha morte? Sim, pois, quando eu morri, tu tinhas
à volta de setenta anos.
POLÍSTR ATO — Muito agradavelmente, por estranho que
isso te pareça.
SÍMILO — Estranho, sim, se tu, velho, doente e sem filhos,
ainda foste capaz de gozar das coisas da vida.

2] POLÍSTR ATO — Antes de mais, podia fazer tudo o que


quisesse; além disso, tinha à minha volta muitos jovens formo-
sos e mulheres mui graciosas e perfumes e vinho cheirando a
flores, enfim, uma mesa mais farta que as da Sicília.
SÍMILO — Isso é novidade para mim, pois sempre te conheci
muito poupadinho.
P OLÍSTR ATO — É que, meu caro, todas as coisas boas
chegavam até mim, trazidas por outros: por um lado, logo de
manhã, acorriam à minha porta grandes multidões, e depois
era-me trazida de toda a terra toda a espécie de magníficos
presentes.
SÍMILO — Ó Polístrato, será que, depois da minha morte,
te tornaste um soberano absoluto?
POLÍSTRATO — Não, mas tinha mais de dez mil132 apaixo-
nados133.
SÍMILO — Fazes-me rir! Tu, dessa idade, só com quatro
dentes, e tendo apaixonados?!
P OLÍSTR ATO — Sim, por Zeus!, e os mais distintos da
cidade. E mesmo sendo eu, como tu vês, velho e careca, cheio
de remelas e ainda por cima ranhoso, eles tinham enorme pra-
zer em me servir, e sentia-se feliz qualquer um de entre eles, a
quem um lançasse nem que fosse um só olhar.

132
O texto diz «dez mil», que é um número indeterminado, que po-
deríamos traduzir, p. ex., por «mil», «um milhão»... (v. diál. nº 5, nota).
133
A tradução por «amantes» (nesta fala e na seguinte) poderia induzir
em erro, pois trata-se de «amantes homens», como se vê logo a seguir...

217
SÍMILO — Porventura também tu, à semelhança de Fáon,
passaste Afrodite de barco, de Quios, e depois a deusa, a teu
pedido, te concedeu seres outra vez jovem e belo como outrora
e digno de ser amado?
POLÍSTR ATO — Não, mas, mesmo sendo como agora, eu
era muito desejado.
SÍMILO — É um enigma isso que me contas.

3] POLÍSTR ATO — Mesmo assim, é manifesto este grande


amor que as pessoas têm aos velhos sem filhos e ricos.
SÍMILO — Agora, meu bravo, entendo a tua beleza: ela era
a de Afrodite de ouro134!
POLÍSTR ATO — Apesar de tudo, Símilo, não foi pouco o
que eu gozei com os meus amantes, a bem dizer adorado por
eles; mas muitas vezes tratava-os com dureza e até punha alguns
na rua, mas eles rivalizavam e disputavam uns com os outros,
a ver qual deles tinha maior consideração por mim.
SÍMILO — E então, por fim, como é que decidiste a respeito
dos teus bens?
POLÍSTRATO — Em público, apregoava que tinha feito des-
te ou daquele meu herdeiro, e então esse acreditava e fazia-se
ainda mais bajulador, mas deixei um outro testamento, esse
verdadeiro, em que os mandei para o raio que os parta.

4] SÍMILO — E a quem é que o teu último testamento fez


teu herdeiro? Porventura alguém da tua família?
POLÍSTR ATO — Não, por Zeus!, mas antes um adolescente
mui viçoso, um frígio, que eu comprara recentemente.
SÍMILO — Que idade mais ou menos tem ele, Polístrato?
POLÍSTR ATO — Cerca de vinte anos.
SÍMILO — Agora já percebo em que é que ele te agradava.
POLÍSTR ATO — Em todo o caso, era mais digno que os
outros de ser meu herdeiro, muito embora seja bárbaro e de-
bochado, a quem os próprios notáveis já estão fazendo a corte.
Foi ele, pois, que herdou os meus bens, e agora conta-se entre
as pessoas de boas famílias, embora tenha o queixo rapado e

134
«Afrodite de ouro» era uma designação corrente e poética da deusa,
mas aqui joga-se com outro sentido: a beleza conferida (!) pelo dinheiro...,
a beleza de quem é rico...

218
uma língua bárbara, e é considerado mais nobre que Codro135,
mais belo que Nireu136 e mais arguto que Ulisses.
SÍMILO — Pouco me importa! Até pode ser o general da
Grécia, se assim entenderem: basta que os outros não sejam
herdeiros.

135
Codro foi o último dos lendários reis de Atenas.
136
Nireu faz parte da galeria de beldades lendárias (cf. Diál. nº 18).

219
(Página deixada propositadamente em branco)
10. C ARONTE E H ERMES

1] C ARONTE — Ouvi qual é a nossa 137 situação: a barca,


como vedes, é pequena para todos vós, e ainda por cima está
podre e mete água por todos os lados; se baloiçar de um lado
para o outro, vira-se e afunda-se. Vós também chegastes tantos
ao mesmo tempo, cada um carregado de tanta bagagem... Ora,
se embarcais com essa tralha toda, receio que venhais mais tarde
a arrepender-vos, especialmente aqueles que não sabem nadar.
H ERMES — Como havemos então de proceder, para termos
uma boa navegação?
C ARONTE — Eu explico-vos: é preciso que embarqueis nus,
deixando na margem todas essas coisas supérfluas, pois, desse
modo, dificilmente o barco poderia receber-vos. E tu, Hermes,
tem cuidado, daqui em diante, não deixes entrar ninguém que
não esteja nu e não se tenha separado da bagagem, conforme
eu disse. Coloca-te junto da escada, examina-os bem, recebe-os
e obriga-os a embarcar todos nus.

2] H ERMES — Dizes bem, e é assim que faremos... Este


aqui, o primeiro, quem é ele?
M ENIPO — Sou eu, Menipo. Repara, Hermes, que o meu
saco e o cajado já foram lançados ao pântano, e quanto ao meu
manto, nem sequer o trouxe... e fiz muito bem.
H ERMES — Embarca, Menipo, o melhor dos homens, e
vai ocupar a presidência, ao lado do piloto, lá no alto, para
observares todas as pessoas... E aqui este formoso, quem é ele?

3] C ARMÓLEO — Sou Carmóleo de Mégara, cujo beijo


custava dois talentos138 .
H ERMES — Nesse caso, despe-te da tua beleza, dos teus
lábios mais dos seus beijos, da tua espessa cabeleira, do rosado
das faces e, enfim, de toda a pele... Está muito bem, estás muito

137
Outras edições preferem «vossa»; a variante vem desde muito cedo,
desde que passou a confundir-se Øm‹n com ¹m‹n ambos pronunciados
[himín],
138
O talento não era uma moeda, mas aquilo a que chamamos uma
«unidade de conto» (cf. dez contos de reis): 1 talento = 60 minas; 1 mina
= 100 dracmas; 1 dracma = 6 óbolos. Como se vê, trata-se de uma quantia
elevadíssima.

221
elegante. Sobe já! ... E esse aí, vestido de púrpura e com um
diadema, todo altivo... Quem és tu?
4] L AMPICO — Lampico, tirano139 de Gela 140 .
H ERMES — Ó Lampico, então porque é que te apresentas
aqui com tanta coisa?
L AMPICO — O quê? devia vir todo nu, ó Hermes, eu, um
tirano?
H ERMES — Qual tirano, qual quê! Diz antes um simples
morto. Portanto, deita tudo isso fora.
L AMPICO — Pronto, lá se foi a riqueza.
H ERMES — Deita fora também a vaidade, ó Lampico, e a
altivez, pois estas, ao caírem no barco, torná-lo-ão mais pesado.
L AMPICO — Mas... deixa-me ao menos ficar com o diadema
e com o manto.
H ERMES — De modo nenhum! Larga também isso.
L AMPICO — Pronto! Que mais ainda? Já larguei tudo,
como vês.
H ERMES —Também a crueldade, a insensatez, a insolência
e a cólera, larga tudo isso.
L AMPICO — Pronto, estou completamente nu.

5] HERMES — Sobe depressa!... E tu aí, o gordo, bem aviado


de carnes, quem és tu?
DAMÁSIAS — Sou Damásias, o atleta.
H ERMES — Sim, tens ar disso; aliás, sei-o bem, por te ter
visto muitas vezes nos ginásios.
DAMÁSIAS — Sim, Hermes... mas recebe-me, pois estou nu.
H ERMES — Não estás nu, não, meu caro, assim envolvi-
do em tanta carne. Portanto, despe-te delas, pois afundarias
o barco, mal pusesses um pé dentro. Além disso, deita fora
também essas coroas e as proclamações de vitória.

139
A tirania foi o regime político que, muitas vezes, sucedeu à monarquia
e antecedeu a democracia; enquanto a monarquia era de origem divina, a
tirania, em princípio, apoiava-se no Povo. Para os Antigos, o bom tirano
era mais frequente que o déspota. Como aconteceu com outras palavras
(sofista, demagogo...), tirano e tirania ganharam um sentido altamente
pejorativo. Segundo Aristóteles (v. P. Lavedan, Dict. de la myth. et des
antiquités grecques et romaines), «o tirano tem por única missão proteger
o povo contra os ricos; começou sempre por ser um demagogo [outra
palavra sem sentido necessariamente pejorativo: «condutor do Povo»], e
é da essência da tirania combater a aristocracia».
140
Gela, colónia grega na costa sul da Sicília.

222
DAMÁSIAS — Pronto, agora, como vês, estou verdadeira-
mente nu e nas mesmas condições que os outros mortos.

6] H ERMES — Assim é melhor, estares sem peso. Portanto,


entra... E tu aí, Cráton, põe de parte a tua riqueza, e mais a
moleza e a volúpia; não tragas nem as vestes fúnebres nem os
pergaminhos dos teus antepassados; Deixa também a linhagem,
a glória e alguma aclamação que a cidade te tenha feito, bem
como as inscrições nas tuas estátuas. Nem sequer digas que
erigiram um grande túmulo em tua honra, pois isso também
faz aumentar o peso, mesmo que só mencionado.
C R ÁTON — Não é por vontade minha, mas deitarei fora
tudo isso. Sim, que poderia fazer?

7] HERMES — Ó lá... Tu aí, assim armado, que é que queres?


Porque trazes esse troféu?
SOLDADO — Porque fui vencedor e me distingui, pelo que
a cidade me honrou.
H ERMES — Deixa o troféu aí no chão, pois aqui no Hades
reina a paz e não temos nenhuma precisão de armas...[8] E este
aqui, mui venerável e altivo, pelo menos a julgar pelo aspecto
exterior, de sobrancelhas eriçadas, perdido em meditações,
quem é ele, assim com essas espessas barbas compridas?
M ENIPO — Ó Hermes, é um filósofo, ou melhor, um char-
latão, um tipo com grande lábia; portanto, manda-o despir-se
também, e verás muita coisa risível escondida debaixo do manto.
H ERMES — Antes de mais, desfaz-te desse aspecto exterior,
e depois tudo o resto... Ó Zeus! Quanta charlatanice ele traz
consigo, quanta ignorância, quanta polémica, quanta vangló-
ria, quantas questões insolúveis, palavras bicudas e conceitos
retorcidos, mas também muitíssimo esforço inútil, não pouca
tagarelice, cacarejos, linguagem subtil e, por Zeus!, todo este
ouro, tanta volúpia, despudor, cólera, delícias e moleza. Nenhum
desses defeitos me escapou, por muito que os dissimulasses.
Larga também a mentira, a arrogância e a convicção de que és
superior às outras pessoas. Se embarcares com toda essa bagagem,
que navio, mesmo de cinquenta remadores, poderia contigo?
FILÓSOFO — Pois seja: largo tudo isso, já que assim o ordenas.

223
9] MENIPO — Que ele largue também essa barba, ó Hermes,
pois é pesada e farfalhuda, como vês: são pelo menos cinco
minas141 de cabelo.
H ERMES — Dizes bem. Larga também essa coisa.
F ILÓSOFO — E quem é que ma vai rapar?
HERMES — Aqui o Menipo pega no machado da construção
naval e corta-a, servindo-se da escada como cepo.
MENIPO — Não, Hermes, dá-me antes uma serra, que assim tem
mais piada.
HERMES — O machado serve muito bem... Pronto, agora tens
mais aspecto humano, depois de te libertares desse cheiro a bode.
MENIPO — Queres que eu lhe corte um pouco as sobrancelhas?
HERMES — Sim, é claro, pois ele fê-las subir pela testa acima,
dando de si um aspecto mais sobranceiro, não sei lá porquê.
Mas... que vem a ser isto? Agora choras, meu monte de merda, e
acobardas-te perante a morte? Vamos, entra!
MENIPO — Há ainda uma coisa, mais pesada, que ele tem de-
baixo do sovaco.
H ERMES — O que é, ó Menipo?
M ENIPO — A adulação, ó Hermes, que lhe foi muito útil
em vida.
F ILÓSOFO — Então também tu, ó Menipo, larga essa tua
liberdade, a tua franqueza no falar, o teu desprezo pela dor, a
tua magnanimidade, e o teu riso... Sim, pois, entre nós todos,
és o único que ris.
H ERMES — De maneira nenhuma, mas conserva essas qua-
lidades, pois elas são muito leves, fáceis de transportar e úteis
à viagem...[10] E tu aí, o orador, larga essa chorrilho intermi-
nável de sentenças, as antíteses, os paralelismos, os períodos,
os barbarismos e a restante bagagem dos teus discursos.
F ILÓSOFO — Pronto, já larguei.
H ERMES — Muito bem. Portanto, tu aí, solta as amarras,
enquanto nós recolhemos a escada. Levantar a âncora! Desferrar
a vela! Barqueiro, dirige o leme! Boa viagem!142 ... [11]
Vós aí, gente frívola, porque, vos lamuriais especialmente tu,
o filósofo, a quem há pouco raparam a barba?

141
A mina, além de ser uma moeda, equivalia como peso, a cerca de
436g, mas este valor variava conforme as épocas e os locais. Neste caso,
não interessa o peso certo...
142
Seguimos a lição dos mss. recentiores, mas também poderíamos
adoptar a lição equivalente a «Boa sorte!».

224
F ILÓSOFO — É que eu, ó Hermes, acreditava que a alma
era imortal e persistia.
M ENIPO — Ele está a mentir. Sim, é óbvio que o que o
aflige é outra coisa.
H ERMES — O quê?
M ENIPO — O facto de nunca mais comer jantares caríssi-
mos, nem sair à noite sem ninguém dar por isso, com a cabeça
coberta pelo manto, a fim de percorrer as casas de prostituição;
nem, logo de manhã, receber dinheiro, endrominando os jovens
com a sua ciência. É isso que o aflige.
F ILÓSOFO — Mas tu, ó Menipo, não te incomoda teres
morrido?
M ENIPO — Mas como, se eu próprio me apressei a ir ao
encontro da morte, sem que ninguém me solicitasse?!... [12]
Mas... não ouvem, no meio da nossa conversa, um rumor como
que de pessoas gritando do lado de terra?
H ERMES — Sim, Menipo, e não vem de um único sítio,
mas umas pessoas, reunidas na Assembleia, todas contentes,
riem todas elas com a morte de Lampico, enquanto a mulher
deste é assaltada pelas outras mulheres, e até os filhos, ainda
de tenra idade, apanham inúmeras pedradas dos outros miú-
dos... Outras pessoas, em Sícion, elogiam o orador Diofanto,
que profere uma oração fúnebre em honra de Cráton, aqui
presente. E, por Zeus!, também a mãe de Damásias, numa
gritaria estridente, dá início ao canto fúnebre entoado pelas
mulheres em honra de Damásias. Mas a ti, Menipo, ninguém
te chora, és o único que jazes em completo silêncio.

13] M ENIPO — De modo nenhum, mas, em breve, ouvirás


os cães uivando lugubremente por mim, e os corvos batendo
as asas, quando se reunirem para me darem sepultura.
H ERMES — És um tipo corajoso, ó Menipo... Bem, já que
chegámos ao fim da viagem, vós dirigi-vos ao tribunal, se-
guindo a direito por aquele caminho além, enquanto eu mais
o barqueiro vamos passar outros mortos.
M ENIPO — Boa viagem, ó Hermes! Quanto a nós, avan-
cemos... Mas... porque vos demorais? Tereis mesmo de ser
julgados... e dizem que as sentenças são pesadas: rodas 143 ,
pedras e abutres. Além disso, será mostrada a cada um a vida
que ele levou.
143
«rodas, pedras e abutres», referência a diversos tipos de tortura.

225
(Página deixada propositadamente em branco)
11. CRATES E DIÓGENES

1] CRATES — Ó Diógenes, conhecias Mérico, um tipo rico,


muito rico, de Corinto, que tinha muitos navios mercantes, e
cujo primo, Arísteas, era igualmente rico? Ora, este costumava
citar aquele passo de Homero: «Ou tu me levantas, ou eu a ti».
DIÓGENES — A que propósito vem isso, ó Crates?
CRATES — É que eles cortejavam-se mutuamente, cada um
na mira da herança do outro; embora fossem da mesma idade,
deram publicidade aos respectivos testamentos: caso Mérico
morresse antes de Arísteas, deixá-lo-ia dono e senhor de todos
os seus bens; do mesmo modo, Arísteas em relação a Mérico, se
morresse antes deste. Ficara tudo escrito. Então, cortejavam-se
mutuamente, rivalizando em adulação. Os adivinhos (uns que
vaticinavam o futuro por meio dos astros, outros através dos
sonhos, à maneira dos Caldeus, e até o próprio Pítio144), davam
vantagem ora a Arísteas, ora a Mérico, e o prato da balança pendia
ora para um, ora para outro.

2] DIÓGENES — E como acabou isso, ó Crates? É coisa digna


de se ouvir.
CRATES — Morreram ambos no mesmo dia, pelo que as
heranças foram respectivamente para Eunómio e Trásicles, am-
bos seus parentes, que nunca poderiam adivinhar que as coisas
iriam acontecer assim. De facto, navegavam eles de Sícion para
Cirra, e eis que, a meio da viagem, deram com o iápige 145, que
os apanhou de lado e os fez virou.

3] DIÓGENES — Bem feito! Cá nós, quando éramos vivos, não


pensávamos nenhuma dessas coisas a respeito uns dos outros; eu
nunca desejei que Antístenes146 morresse, para herdar o seu cajado
(um cajado feito por ele, muitíssimo rijo, de zambujeiro); nem tu,
ó Crates — creio eu — ambicionavas herdar por minha morte os
meus bens: o tonel e o bornal com duas quénices 147 de tremoços.
CRATES — Eu não tinha precisão de nada disso, nem tu,
Diógenes. O que era mesmo preciso, tu herdaste-o de Antístenes,

144
Apolo.
145
Vento do quadrante de noroeste...
146
Este passo mostra a sequência da direcção da escola cínica: Antístenes,
seu fundador, Diógenes e Crates.
147
A quénice equivalia mais ou menos a um litro.

227
e eu herdei-o de ti, e era muito melhor e mais estimável que o
trono da Pérsia.
DIÓGENES — Que é isso de que estás a falar?
CRATES — A sabedoria, a moderação, a verdade, a franqueza
e a liberdade.
DIÓGENES — Sim, por Zeus!, recordo-me de ter recebido essa
fortuna de Antístenes e de ta ter deixado ainda maior.

4] CRATES — Mas as outras pessoas não davam importância


a tais bens, e ninguém nos apaparicava na expectativa de vir a
ser nosso herdeiro, pois toda a gente olhava apenas ao dinheiro.
DIÓGENES — Naturalmente. De facto, essas pessoas não tinham
sítio onde receber de nós tais bens, pois estavam «esburacados»148
pela volúpia, como bolsas velhas, de modo que, se alguém lhes
atirava para dentro sabedoria, franqueza ou verdade, logo estes
bens escorriam para fora e se escapavam, pelo facto de o fundo
não poder contê-los, tal como acontece com as filhas de Dánao149
a tentarem esvaziar o tonel crivado de buracos. Mas o ouro, esse
defendiam-no com unhas e dentes, fosse por que processo fosse.
CRATES — Portanto, nós, mesmo aqui, conservaremos a nossa
riqueza, ao passo que eles virão com um óbolo, e mesmo esse só
até chegarem junto do barqueiro.

148
O termo grego significa «esgotado», mas também «gasto», «usado»,
que aqui pode entender-se no sentido de «esburacado». Aliás, a frase é
usual nesta época.
149
As filhas de Dánao são as Danaides, em número de cinquenta. Por
matarem os respectivos maridos, foram condenadas a encher continua-
mente um tonel esburacado.

228
12. A LEX ANDRE E A NÍBAL

1] A LEX ANDRE — Eu é que devo ter a primazia sobre ti, ó


Líbio150 , pois sou melhor que tu.
A NÍBAL — Não, eu é que devo ter a primazia.
A LEX ANDRE — Nesse caso, que seja Minos151 a julgar.
M INOS — Quem sois vós?
A LEX ANDRE — Este aqui é Aníbal, o cartaginês, e eu sou
Alexandre, filho de Filipe.
M INOS — Por Zeus! Sois ambos famosos. Então qual é o
motivo da vossa disputa?
A LEX ANDRE — É sobre a ordem de precedência: este aqui
afirma ter sido melhor general que eu, enquanto eu sustento,
como todos sabem, que, em matéria de guerra, sou superior
não só a ele, mas também a quase todos os que me precederam.
M INOS — Então fale cada um por sua vez. Tu, ó Líbio,
fala primeiro.

2] A NÍBAL — Para já, ó Minos, ganhei pelo facto de tam-


bém eu ter aprendido na terra a língua grega, pelo que nem
nesta matéria ele me levará a palma. Além disso, afirmo que
são particularmente dignos de louvor aqueles que, nada sendo
nos seus princípios, chegaram, porém, a uma elevada situa-
ção, conseguindo, por esforço próprio, um grande poderio e
sendo dignos de ocupar o comando supremo. Ora eu, tendo
invadido a Ibéria com um punhado de homens, primeiro
como lugar-tenente de meu irmão, fui cumulado das maiores
honrarias e considerado o mais valoroso. Venci os Celtiberos,
dominei os Gálatas do Ocidente e, tendo atravessado as altas
montanhas, devastei todas as terras à volta do rio Erídano,
destruí enorme quantidade de cidades, conquistei a planície
itálica, cheguei aos arredores da cidade capital e matei tantas
pessoas num único dia, que medi os seus anéis em medimnos
e, com os cadáveres, fiz pontes sobre os rios. E tudo isso eu
fiz, sem me intitular filho de Ámon, sem me fazer passar por
um deus ou sem descrever os sonhos de minha mãe, mas,

150
Líbio = Africano. A Líbia compreendia todo o norte de África; aqui,
a palavra significa, propriamente, «Cartaginês».
151
Minos, Éaco e Radamanto eram os três juízes do reino dos mortos,
o (reino de) Hades (ou Plutão). Este, embora podendo julgar directamente
os mortos, em geral delegava essas funções num dos três juízes.

229
pelo contrário, confessando-me simples ser humano, bati-me
contra os generais mais competentes e ataquei os soldados
mais belicosos, e não defrontei Medos e Arménios, que batem
em retirada mesmo antes de serem perseguidos e que dão sem
demora a vitória a quem ousa atacá-los... [3] Alexandre, porém,
tendo recebido o reino de seu pai, aumentou-o e acrescentou-
-o muitíssimo, aproveitando o impulso da fortuna. Todavia,
logo que venceu e dominou esse miserável do Dario em Isso
e em Arbela, abandonou os costumes pátrios e considerou-se
digno de ser adorado, adoptou o modo de vida dos Medos e
chegava a matar vergonhosamente os seus amigos durante os
banquetes ou mandava-os prender para os matar. Eu, porém,
governei a minha pátria com equidade, e, quando ela me
mandou chamar, numa altura em que uma numerosa armada
inimiga navegava em direcção à Líbia, imediatamente obedeci
e me apresentei como simples cidadão comum, e, quando fui
condenado, suportei a coisa com resignação. E procedi desse
modo, mesmo sendo bárbaro e ignorante da cultura grega, sem
recitar Homero, como este aqui, e sem ter sido educado pelo
sofista 152 Aristóteles, mas unicamente inspirado pela minha
boa natureza. E são estas as qualidades em que eu afirmo ser
superior a Alexandre. Se ele é mais belo que eu pelo facto
de cingir a cabeça com um diadema, talvez isso seja, para os
Macedónios, um título de nobreza, mas não é por isso que ele
seria considerado superior a um homem valoroso e com dons
de comando, que usou mais da sua inteligência que da sorte.
M INOS — Ele acaba de proferir em sua defesa um discurso
a que não falta nobreza, e que até nem seria de esperar da parte
de um líbio. E tu, Alexandre, que respondes a essas palavras?

4] A LEXANDRE — Ó Minos, eu não precisava de responder


a um homem tão atrevido. De facto, a minha simples fama
bastaria para te esclarecer quão grande rei eu fui e quão grande
salteador ele foi. Mesmo assim, considera lá se eu lhe fui só
um pouco superior, eu que, tendo chegado ainda muito novo
à governação e tendo tomado posse de um reino conturbado,
persegui os assassinos de meu pai e, depois de ter aterrorizado
a Grécia com o massacre dos Tebanos, fui por eles aclamado
general; e não julguei digno de mim ocupar-me apenas do reino
da Macedónia e contentar-me com mandar nas terras que meu
152
O texto diz mesmo «sofista», com todo o seu sentido depreciativo.

230
pai me deixou, mas antes, tendo lançado o pensamento sobre
toda a terra e tendo considerado que seria muito mau não con-
quistar todo o mundo, invadi a Ásia à frente de um pequeno
contingente e saí vencedor numa grande batalha nas margens
do Granico; depois, tendo conquistado a Lídia, a Jónia, a Frígia
e, enfim, tudo o que surgia no meu caminho, dirigi-me a Isso,
onde Dario me aguardava à frente de um exército de muitas
dezenas de milhares de homens... [5] O que se seguiu a isto, ó
Minos, já vós aqui sabeis: quantos mortos num só dia eu vos
enviei cá para baixo. Diz o barqueiro que, nesse dia, o barco não
foi suficiente para todos eles, pelo que muitos deles construíram
jangadas e atravessaram nelas. Participei pessoalmente nesta ba-
talha, correndo perigos e arriscando-me a ser ferido. Finalmente,
para não te descrever o que aconteceu em Tiro ou em Arbela,
basta dizer que cheguei à terra dos Indos e fiz do seu Oceano
a fronteira do Império, tomei-lhes os elefantes, apoderei-me de
Poro e, tendo atravessado o Tánais, venci, numa grande batalha
de cavalaria, os Citas, que são homens de não pouco valor. Além
disso, concedi benefícios ao meus amigos e castiguei os meus
inimigos. E se surgi aos olhos dos homens como sendo um deus,
eles são dignos de perdão, ao acreditarem numa coisa dessas a
meu respeito, dada a grandeza das minhas façanhas...

[6] Finalmente, eu morri em pleno reinado, enquanto este


morreu no exílio na corte de Prúsias, na Bitínia, como convi-
nha a um homem do mais celerado e mais cruel que existe. De
facto, passo em claro a maneira como venceu os Ítalos, não pela
força, mas pela maldade, pela perfídia e pelos embustes, e nada
segundo as leis da lealdade e da transparência. E uma vez que
ele me censurou pela minha vida dissoluta, acho melhor omitir
o que ele, esse homem admirável, fazia em Cápua, frequentando
prostitutas e gastando em prazeres o tempo que devia dedicar
à guerra. Se eu, por considerar as regiões ocidentais de pouca
importância, não me tivesse lançado de preferência contra o
Oriente, que grande feito não teria realizado, ao conquistar a
Itália sem derramamento de sangue e submetendo a Líbia e as
terras até Gadiros [Cádis]! Pelo contrário, não considerei essas
terras um bom objecto de guerra, pois já estavam submetidas
e já reconheciam em mim o seu Senhor. E tenho dito. E tu,
Minos, procede ao julgamento, pois, de entre muitos outros
factos, bastará o que ficou dito.

231
7] C IPIÃO153 — Não faças isso, sem primeiro me teres es-
cutado.
M INOS — Mas quem és tu, meu caro? E donde és natural,
não me dirás?
C IPIÃO — Sou o italiota Cipião, o general que conquistou
Cartago e se apoderou da Líbia em grandes batalhas.
M INOS — Então que é que tens a dizer?
C IPIÃO — Para já, digo que sou inferior a Alexandre, mas
superior a Aníbal, eu que o venci, persegui e obriguei a fugir
sem honra nem glória. Na verdade, este fulano é muito desca-
rado, ao rivalizar com Alexandre, com o qual nem mesmo eu,
Cipião, que venci Aníbal, me atrevo a comparar-me.
MINOS — Por Zeus!, ó Cipião, é bem pensado o que dizes. Por-
tanto, que Alexandre seja classificado em primeiro lugar, tu a se-
guir a ele, e depois, em terceiro lugar, se estais de acordo, Aníbal,
que também não é de desprezar.

153
Trata-se de Públio Cornélio Cipião Africano (235-183 a.C.), célebre
general romano que, como ele próprio diz logo a seguir, conquistou Cartago
e se apoderou da Líbia em grandes batalhas. De notar que se designa à sua
pessoa como sendo «italiota» (e não «Romano» ou «Africano».

232
13. DIÓGENES E A LEXANDRE

1] DIÓGENES — Que é isto, Alexandre? Também tu morreste,


como todos nós?
A LEXANDRE — É como vês, Diógenes. Aliás, não é de espantar
que, sendo humano, tenha morrido.
DIÓGENES — Quer dizer que Ámon154 mentiu, ao dizer que
tu eras seu filho, mas tu eras, afinal, filho de Filipe?
A LEXANDRE — De Filipe, é claro, pois não estaria agora
morto, se fosse filho de Ámon.
DIÓGENES — Mas também a respeito de Olimpíade se diziam
coisas do género, por exemplo, que uma serpente costumava ter
relações com ela e era vista no seu leito, que tu foste gerado desse
modo, e Filipe fora enganado, cuidando que tu eras filho dele.
A LEXANDRE — Tal como tu, também eu ouvi dizer isso, mas
agora verifico que não havia nada de verdade naquilo que minha
mãe e os sacerdotes de Ámon diziam.
DIÓGENES — Mas, pelo menos, a sua mentira, ó Alexandre,
não deixou de ser proveitosa para ti e para a tua política, já que
muitos homens tremiam de medo, ao acreditar que tu eras um
deus...

2] Mas, diz-me cá: A quem deixaste esse teu grandioso império?


A LEXANDRE — Não sei, Diógenes, pois não tive tempo para
pensar nesse assunto, a não ser apenas que, prestes a morrer,
entreguei o anel a Perdicas... Mas... porque te ris, ó Diógenes?
DIÓGENES — Ora... porque havia de ser, senão por me lem-
brar do que toda a Grécia procedia, mal tu acabaste de receber
o trono, com todos a adularem-te e a elegerem-te seu protector
e general contra os bárbaros; alguns chegaram mesmo a juntar-
-te aos doze deuses, a erigir templos em tua honra e a fazer-te
sacrifícios na qualidade de filho da serpente... Mas... diz-me cá:
onde é que os Macedónios te sepultaram?

3] A LEXANDRE — Há três dias que ainda jazo em Babilónia,


mas o meu escudeiro Ptolomeu promete que, mal tenha tempo
livre da desordem que tem pela frente, me levará para o Egipto
e me dará aí sepultura, a fim de me tornar mais um de entre os
deuses egípcios.
154
Ámon, deus egípcio confundido com Zeus. A lenda da origem divina
de Alexandre merece as corrosivas farpas de Luciano.

233
DIÓGENES — Então, ó Alexandre, não será caso para rir, ao
ver que, mesmo no Hades, ainda estás louco, esperando tornar-
-te Anúbis ou Osíris? Não tenhas essa esperança, ó diviníssima
criatura, pois a ninguém, de entre os que uma vez atravessaram o
pântano e passaram para o lado de dentro da entrada, é permitido
subir lá acima. De facto, Éaco não é assim tão descuidado, nem
Cérbero155 tão menosprezável... [4] Mas teria todo o gosto em
que me informasses de uma coisa, de como suportas, ao meditar
nisso, a ideia da grande felicidade que abandonaste ao chegar
aqui: guardas de corpo, escudeiros, sátrapas, tanto ouro, povos
que te adoravam, Babilónia e Bactras, as enormes feras, a honra
e a glória, os cortejos triunfais, em que tu seguias à frente, com
uma fita branca na cabeça e um manto de púrpura. Quando te
lembras disso, não ficas triste? ... Porque choras, meu imbecil?
Então o sábio Aristóteles156 não te ensinou a não considerar se-
guros os bens que nos vêm da sorte?
5] A LEXANDRE — Sábio, esse, o mais manhoso de todos os
aduladores?! Deixa que só eu conheça as manhas de Aristóteles,
quantas coisas me pediu, quantas cartas me escreveu, como abu-
sou de mim e do meu entusiasmo pela cultura, adulando-me e
elogiando-me ora pela minha beleza, como sendo esta uma parte
do bem, ora pelos meus actos e pela minha riqueza. De facto, ele
considerava que esta também era um bem, a ponto de ele próprio
não se envergonhar de a aceitar. Um vigarista, um charlatão, é
o que ele é, ó Diógenes. Um benefício, porém, retirei da sua sa-
bedoria: o facto de me afligir com essas coisas que tu há pouco
enumeraste como sendo os maiores bens.
6] DIÓGENES — Sabes o que tens a fazer? Vou indicar-te
um remédio para a tua tristeza: uma vez que aqui não cresce o
eléboro157, ao menos farta-te à boca cheia e bebe e torna a beber
muitas vezes a água do Lete158. Desse modo, deixarás de te afligir
com os bens de que fala Aristóteles... Mas... eis que avisto além

155
Cérbero é o cão de guarda do reino de Hades; é geralmente repre-
sentado com três cabeças.
156
Aristóteles, mestre de letras e filosofia e director espiritual de
Alexandre, é o principal responsável pelo filelenismo do príncipe e depois
monarca macedónio; com a conquista da Grécia, a língua e a cultura grega
espalharam-se por todo o Mediterrâneo.
157
O eléboro é uma planta a que se atribuía a propriedade de curar
a loucura.
158
A água do rio Lete (rio do «esquecimento»), quando ingerida, fazia
os mortos esquecerem-se da vida terrena.

234
esse tal Clito159, Calístenes e muitos outros, que avançam contra
ti, com ar de quererem despedaçar-te e vingarem-se do mal que
lhes fizeste. Por isso, segue por outro caminho e bebe muitas
vezes, como eu te disse.

159
Irmão de leite e general de Alexandre, ao qual se refere Filipe no
Diálogo 14: «Clito, a quem tu, enquanto ele jantava, assassinaste, varando-
-o de lado a lado com uma seta, só pelo facto de ele ter ousado elogiar as
minhas façanhas em comparação com as tuas».

235
(Página deixada propositadamente em branco)
14. FILIPE E A LEXANDRE

1] F ILIPE — Ó Alexandre, agora não poderás negar que és


meu filho, pois não terias morrido, caso fosses filho de Ámon.
A LEXANDRE — Eu também não desconhecia, meu pai, que
sou filho de Filipe filho de Amintas, mas aceitei o oráculo,
convencido de que era útil à minha vida.
FILIPE — É o quê? Então parece-te útil apresentares-te como
uma pessoa pronta a ser enganada pelos profetas?
A LEXANDRE — Nada disso, mas os bárbaros ficavam estar-
recidos diante de mim, e nenhum deles me resistia, convencidos
de que lutavam contra um deus, pelo que eu os dominava mais
facilmente.

2] FILIPE — Mas que soldados verdadeiramente belicosos é


que tu dominaste, tu que sempre defrontaste homens cobardes,
que se defendiam com arquinhos, com pequenas lanças e com
escudos de vime? Grande gesta seria vencer os Gregos, os Beócios,
os Fócios e os Atenienses, e subjugar os hoplitas da Arcádia, ou
a cavalaria da Tessália, ou os lançadores de dardo da Eleia, ou a
infantaria ligeira dos Mantinenses, ou os Trácios, os Ilírios ou
os Peónios... Isso é que seria uma grande façanha. Mas Medos,
Persas e Caldeus, homens cobertos de ouro e efeminados, não
sabes como é que, antes de ti, os dominaram os dez mil que
marcharam com Clearco160, e como eles, sem esperarem por che-
garem à luta corpo a corpo, se puseram em debandada, mesmo
antes que uma flecha os atingisse?

3] A LEXANDRE — Mas, meu pai, os Citas e os elefantes dos


Indos não constituem façanha de somenos importância, e, no
entanto, eu venci-os, sem provocar dissensões entre eles e sem
comprar com traições as minhas vitórias. Também nunca faltei
ao meu juramento, nem me neguei a cumprir uma promessa,
nem cometi qualquer deslealdade, a fim de vencer. E quanto
aos Gregos, uns dominei-os sem verter sangue, e, quanto aos
Tebanos, talvez tenhas ouvido como os tratei.
F ILIPE — Sei tudo isso, pois me foi contado por Clito, a
quem tu, enquanto ele jantava, assassinaste, varando-o de lado
a lado com uma seta, só pelo facto de ele ter ousado elogiar

160
Este episódio dos «dez mil» é o tema da Anábase de Xenofonte.

237
as minhas façanhas em comparação com as tuas... [4] Além
disso, tu renunciaste à clâmide macedónica e, segundo se diz,
trocaste-a pelo manto persa [kándys], e cingiste a cabeça com a
tiara direita e julgavas-te digno de ser adorado pelos Macedónios,
que eram homens livres, e ainda — o mais ridículo de tudo
— imitavas os costumes dos povos vencidos. Sim, passo em
claro todos as outros actos, como encerrar homens educados
na jaula dos leões, os casamentos que tu fizeste e a tua paixão
excessiva por Hefestião. Uma só coisa louvei em ti, ao ouvir
dizer que te abstiveste de tocar na esposa de Dario, que era
muito bela, e que cuidaste da mãe e das filhas dele. Isso foi
acção digna de um rei.

5] A LEX ANDRE — E a minha temeridade, meu pai, não


a elogias, por exemplo no país dos Oxidracas161, onde fui o
primeiro a saltar para dentro das muralhas e a receber tantos
ferimentos?
FILIPE — Não te elogio esse feito, Alexandre, não porque
não considere belo o facto de um rei ser algumas vezes ferido e
afrontar o perigo à frente do exército, mas porque, no teu caso,
isso não te convinha mesmo nada. De facto, se, ao quereres
passar por um deus, alguma vez fosses ferido e te vissem a ser
retirado de maca do campo de batalha, todo coberto de san-
gue, gemendo por via dos ferimentos, isso seria objecto de riso
para quem estivesse a assistir, e provar-se-ia que Ámon era um
charlatão e um falso adivinho, e que os seus profetas eram uns
aduladores. E quem não desataria a rir, ao ver o filho de Zeus162
desmaiado e necessitado de cuidados médicos? Mas agora, que já
estás morto, não crês que há muitas pessoas que troçam desse teu
fingimento, ao verem o cadáver do deus estendido ao comprido,
já a apodrecer e inchado, como costuma acontecer com todos
os corpos? Aliás, ó Alexandre, mesmo essa coisa que dizias ser-
-te útil, isto é, o facto de, por essa circunstância, venceres mais
facilmente, precisamente essa retirava boa parte da glória aos teus
feitos, pois fazia parecer inferior tudo o que desse a impressão
de ser realizado com a ajuda de um deus.

6] A LEX ANDRE — Não é essa a opinião das pessoas a meu


respeito, mas antes consideram-me um rival de Héracles e de
161
Povo da Índia.
162
O deus egípcio Ámon estava identificado com o Zeus grego.

238
Dioniso. E na verdade, nenhum deles foi capaz de tomar o
[rochedo de] Aorno163: só eu me apoderei dele.
F ILIPE — Ó Alexandre, não vês que estás a dizer tal coisa
como se fosses filho de Ámon, ao comparares-te com Héracles
e com Dioniso? Nem mesmo agora deixarás essa tua soberba,
te conhecerás a ti mesmo e te compenetrarás de que já estás
morto?

163
Rochedo e fortaleza da Índia. A palavra significa «inacessível às aves».

239
(Página deixada propositadamente em branco)
15. AQUILES E A NTÍLOCO

1] A NTÍLOCO — Ó Aquiles, que barbaridades tu dizias


outro dia a Ulisses a respeito da morte! Como essas palavras
eram ignóbeis e indignas de ambos os teus mestres, Quíron164
e Fénix! Sim, que eu bem te ouvi, quando dizias que antes
querias servir como trabalhador rural às ordens de um desses
homens sem terra própria e sem grandes meios de fortuna, do
que ser rei de todos os mortos. Essas palavras talvez fossem
próprias de um frígio reles, cobarde e apegado à vida mais do
que é decente; mas que o filho de Peleu, aquele que, de entre
todos os heróis, era o que mais gostava de se expor aos perigos,
tenha a seu respeito pensamentos tão baixos, é uma grande
vergonha, contrária aos feitos que tu realizaste em vida, tu
que, podendo reinar na Ftiótida durante longo tempo, mas
sem glória, escolheste de bom grado uma morte gloriosa.

2] AQUILES — Ó filho de Nestor, é que eu, nessa altura,


como ainda não tinha experiência do mundo aqui de baixo, e
desconhecia qual das duas situações era a melhor, dava mais
valor a essa miserável gloríola, do que à vida. Agora, porém,
compreendo como essa glória é vã, por muito que os poetas lá
de cima a celebrem. Aqui entre os mortos, ó Antíloco, reina a
igualdade, e não existe nem a beleza nem o poder, mas jazemos
todos rodeados da mesma escuridão, sem nos distinguirmos
uns dos outros; nem os mortos do lado troiano me temem,
nem os do lado dos Aqueus me servem: a igualdade de direitos
é perfeita, e um morto é igual a outro morto, «quer seja mau,
quer seja bom». É isto que me aflige e me faz sofrer pelo facto
de não ser um serviçal, mas vivo.

3] A NTÍLOCO — Mas, ó Aquiles, que se há-de fazer? De


facto, assim o decretou a Natureza: que todos morressem, sem
excepção, de modo que temos de nos submeter a essa lei natural
e não nos afligirmos com o que está determinado. De resto,
estás a ver quantos dos teus companheiros aqui estamos à tua
volta. Dentro de pouco tempo, também Ulisses aqui chegará
forçosamente. Ora, a partilha da desgraça e o facto de uma
pessoa não ser a única a sofrer conferem uma certa consolação.
164
Quíron é um centauro, meio homem e meio cavalo (hipocentauro).
Especialista, entre outras artes, em música e medicina.

241
Põe os olhos em Héracles165, Meléagro e tantos outros varões
admiráveis, os quais — creio eu — não aceitariam voltar lá
acima, caso alguém os mandasse servir homens sem herança
e sem fortuna.

4] AQUILES — É um conselho de amigo, mas, de qualquer


modo, aflige-me a lembrança da vida terrena... e julgo que o
mesmo acontece com todos vós. Mas, se não concordais comigo,
então estais ainda pior, pois suportais em silêncio esta situação.
A NTÍLOCO — Pior, não, ó Aquiles, mas melhor, porque nos
apercebemos de como é inútil falar. De facto, pareceu-nos bem
estarmos calados, aguentar e sofrer, para não sermos motivo
de troça, como tu, ao exprimires tais desejos.

165
A natureza simultaneamente humana e divina de Héracles é motivo
de um raciocínio muito mordaz no diálogo seguinte («Diógenes e Héracles).

242
16. DIÓGENES E HÉRACLES

1] DIÓGENES — Este sujeito aqui não é Héracles? Não é


outro... por Héracles!: o arco, a maça, a pele de leão, a cor-
pulência... é Héracles sem tirar nem pôr. Mas então... está
morto, sendo filho de Zeus? Diz-me cá, ó glorioso vencedor:
tu estás mesmo morto? É que, lá na terra, fazia-te sacrifícios
como a um deus.
H ÉR ACLES — E fazias muito bem, já que o verdadeiro
Héracles está no céu, na companhia dos deuses, «e possui Hebe166
dos belos tornozelos». Eu aqui sou apenas a sua imagem.
DIÓGENES — É o quê? Uma imagem do deus? Será possível
que alguém seja metade deus [imortal], e que a outra metade
esteja morta?
H ÉR ACLES — Sim, pois aquele, o deus, não morreu, mas
eu aqui sou o seu simulacro.

2] DIÓGENES — Estou a entender: ele, o outro, entregou-te


a Plutão, como substituto, em seu lugar... e tu, portanto, estás
morto em vez dele, o outro...
H ÉR ACLES — É mais ou menos isso.
DIÓGENES — Mas então... como é que Éaco167, rigoroso
como é, não descobriu que tu não eras ... o outro, e deixou
entrar o falso Héracles que se lhe apresentava?
H ÉR ACLES — É que este parecia-se com o outro... rigoro-
samente 168 .
DIÓGENES — É verdade, é de facto rigorosamente pareci-
do com ele... Mas vê lá não suceda o contrário: que tu sejas o
Héracles verdadeiro, e que o seu simulacro é que tenha despo-
sado Hebe e esteja na companhia dos deuses...

3] HÉRACLES — És muito atrevido e tagarela. Se não deixas


de troçar de mim, não tarda que fiques a saber de que deus
eu sou simulacro.
D IÓGENES — De facto, o arco está de fora e pronto a
funcionar... Mas porque é que eu ainda havia de ter medo de

166
Hebe, deusa da juventude, começou por servir à mesa dos deuses
olímpicos, mas posteriormente foi dada em casamento ao recém-chegado
Héracles.
167
Éaco, um dos juízes do Inferno, juntamente com Minos e Radamanto.
168
Rigorosamente joga com rigoroso mais acima.

243
ti, uma vez que estou morto? Em todo o caso, diz-me cá, por
Héracles!169, quer dizer... por ti!: Quando aquele era vivo, vivias
dentro dele, na qualidade de simulacro... ou vós éreis um só
enquanto vivos, mas, quando vós morrestes, vos separastes, tendo
um voado para junto dos deuses, enquanto tu, seu simulacro,
te apresentaste no Hades, como seria de esperar?
H ÉR ACLES — Eu nem devia responder a um homem de-
liberadamente trocista. Em todo o caso, ouve lá esta: a parte
de Anfitrião170 que existia em Héracles, essa morreu, e eu sou
toda essa parte; mas a parte de Zeus, essa está no céu, em
convivência com os deuses.

4] DIÓGENES — Agora percebo perfeitamente: dizes tu


que Alcmena deu à luz dois Héracles de uma só vez — um
como obra de Anfitrião, e outro gerado por Zeus, de modo
que passou despercebido o facto de vós serdes gémeos, filhos
da mesma mãe.
H ÉR ACLES — Nada disso, meu cretino! Na realidade, éra-
mos ambos a mesma pessoa.
DIÓGENES — Não é fácil de compreender essa coisa de
existirem dois Héracles unidos num só... a não ser que vós
fôsseis uma espécie de hipocentauro171, com duas naturezas
— humana e divina — numa só.
H ÉR ACLES — Não é verdade que todos vós, filósofos,
acreditais que somos compostos de duas partes, alma e corpo?
Portanto, que é que impede que a alma, que é proveniente de
Zeus, esteja no céu, enquanto a parte mortal, eu aqui, esteja
entre os mortos?

5] DIÓGENES — Ó meu caro Anfitriónides172 , estarias a


falar muito acertadamente, se fosses corpo... mas agora és
apenas um simulacro incorpóreo, pelo que corres o risco de
ter criado um triplo Héracles.
H ÉR ACLES — Triplo, como?
169
Esta expressão, dirigida a Héracles, tem graça. O texto grego diz,
literalmente, «por ti, Héracles!».
170
Recorde-se que Héracles nasceu da relação de Zeus com Alcmena,
esposa de Anfitrião, rei de Tebas, enquanto este estava fora, na guerra.
171
hipocentauro: figura mitológica, metade cavalo e metade homem.
A comparação com natureza humana e divina é, pois, só parcial.
172
Anfitriónides, «filho (ou da família) de Anfitrião» é mais uma
«farpa» lançada pelo cínico Diógenes.

244
DIÓGENES — Do seguinte modo: se um deles está no céu,
e o outro, um simulacro, que és tu, está entre nós, e o corpo
está no monte Eta 173 , já transformado em cinza, tudo somado,
dá três... Vê lá bem que pai imaginarás para este corpo.
H ÉR ACLES — És um atrevido e um sofista. Mas... afinal,
quem és tu?
DIÓGENES — Sou o simulacro de Diógenes de Sinope.
Eu propriamente, porém, por Zeus!, não estou «com os deuses
imortais», mas, na companhia dos melhores de entre os mortos,
rio-me de Homero e de disparates quejandos.

173
Local onde Héracles se imolou pelo fogo e de onde, já purificado,
subiu ao Olimpo e passou a fazer parte da comunidade dos deuses celestes...

245
(Página deixada propositadamente em branco)
17. M ENIPO E TÂNTALO174

1] MENIPO — Porque estás a chorar, ó Tântalo? Porque te


lamentas, postado à beira do lago?
TÂNTALO — É que estou a morrer de sede, Menipo.
MENIPO — És assim tão indolente, que não te baixas para
beber, ou então, por Zeus!, para recolher água na concha da mão?
TÂNTALO — Não ganharia nada em baixar-me, pois a água,
mal sente que me aproximo, escapa-se; e se por acaso a recolho
e a aproximo da boca, não chego sequer a molhar a ponta dos
lábios, pois a água, não sei lá como, escapa-se-me por entre os
dedos e deixa-me a mão seca.
MENIPO — É espantoso o que se passa contigo, ó Tântalo.
Mas... diz-me cá: porque é que precisas de beber? Na verdade, não
tens corpo, pois esse, que podia ter fome e sede, está sepultado
algures na Lídia. Tu, porém, isto é, a tua alma, como é que ainda
poderias ter sede ou beber?
TÂNTALO — A minha punição consiste precisamente nisso:
que a alma tenha sede, como se fosse corpo.

2] MENIPO — Bem... admitamos que assim é, já que és tu


que dizes que o teu castigo consiste em sentir sede. Mas que mal
tem isso? Será que receias morrer por falta de água? Na verdade,
não vejo outro Hades depois deste, nem outra morte que nos leve
daqui para outro lugar.
TÂNTALO — Dizes bem. Isto de desejar beber sem ter neces-
sidade faz parte da minha condenação.
MENIPO — Ó Tântalo, estás a delirar, e, na verdade, parece
que precisas de uma bebida, e mesmo, por Zeus!, de eléboro175
puro, pois passa-se contigo o contrário do que sucede com as
pessoas que são mordidas por cães raivosos: tens horror, não à
água, mas à sede.
TÂNTALO — Ó Menipo, eu não me recuso a tomar eléboro:
oxalá mo dessem!
MENIPO — Tem coragem, Tântalo, pois nem tu nem qual-
quer outro de entre os mortos o beberá: isso é impossível. Em

174
Tântalo é um dos grandes supliciados da mitologia. Cortou em
pedaços o corpo de Pélops e ofereceu-o aos deuses num banquete sacrílego,
o que lhe valeu a punição a que se refere o texto do diálogo.
175
O eléboro é uma planta a que se atribuía a propriedade de curar a
loucura (v. diálogo 13, 6.

247
boa verdade, nem todos, como tu, e por castigo, estão sequiosos
de uma água que não espera por eles.

248
18. M ENIPO E HERMES

1] M ENIPO — Ó Hermes, mas onde é que estão os belos e


as belas? Guia-me lá, pois acabo de chegar.
H ERMES — Não tenho vagar, Menipo. Mas olha naquela
direcção, ali para a direita, onde estão Jacinto176 , Narciso, Nireu,
Aquiles, Tiro, Helena, Leda, enfim, todas as beldades antigas.
M ENIPO — Só vejo ossos e caveiras, despojados de carne e
na sua maioria todos iguais.
H ERMES — E no entanto, é isso o que todos os poetas
louvam, esses ossos que tu pareces desprezar.
M ENIPO — Mesmo assim, mostra-me Helena, pois eu, só
por mim, não seria capaz de a identificar.
H ERMES — Esta caveira... é Helena.

2] MENIPO — Então foi por causa disto que foram equipados


milhares de navios vindos de toda a Grécia e que morreram
tantos Gregos e bárbaros e tantas cidades foram arrasadas?!
H ERMES — É que tu, Menipo, não viste a mulher quando
ela era viva, pois então também tu dirias que não seria censu-
rável «por esta mulher afrontar padecimentos longamente»177. É
como as flores, as quais, quando as vemos murchas e com a
cor perdida, nos parecem claramente feias, mas que, quando
estão viçosas e mantêm a sua cor, são formosíssimas.
M ENIPO — Justamente, ó Hermes, o que me espanta é o
facto de os Aqueus não terem compreendido que estavam a
sofrer por uma coisa tão efémera e estiolável.
H ERMES — Bem, Menipo, não tenho vagar para filosofar
contigo. Portanto, escolhe um sítio que te apeteça, estende-te
ao comprido e fica por lá, que eu vou já daqui procurar outros
mortos.

176
Jacinto, amado por Apolo, foi morto por um disco lançado pela
mão de Apolo, que Zéfiro, por ciúme, fizera desviar da sua trajectória; foi
transformado na f lor com o seu nome. Narciso era um formoso jovem,
que se apaixonou pela sua própria imagem ref lectida na água. Nireu era o
mais belo dos gregos, depois de Aquiles. Tiro, e Leda são beldades femi-
ninas, amadas, respectivamente, por Posídon e Zeus; Helena, a belíssima
esposa de Menelau, raptada por Páris e levada para Tróia, foi a causa da
guerra de Tróia... mas considerem-se outras interpretações no diálogo 19.
177
Citação de Homero, Ilíada, III, 157.

249
(Página deixada propositadamente em branco)
19. É ACO178 E PROTESILAU179

1] É ACO — Ó Protesilau, porque é que te lanças sobre


Helena no intuito de a estrangular?
P ROTESILAU — Porque foi por causa dela, ó Éaco, que eu
morri, deixando a minha casa meia acabada e viúva a minha
esposa recém-casada.
É ACO — Nesse caso, acusa antes Menelau, que nos levou
a Tróia por causa de tal mulher.
P ROTESILAU — Dizes bem: é a esse que devo acusar.
M ENELAU — A mim não, meu caro, mas mais justamente
a Páris, que, contra todos os princípios da justiça, raptou a
esposa do seu hospedeiro, que era eu. Na verdade, Páris é que
merecia ser estrangulado, não apenas por ti, mas por todos os
Gregos e Bárbaros, visto ter sido ele o responsável pela morte
de tantos homens.
P ROTESILAU — Assim é melhor. Portanto, maldito Páris,
nunca te largarei da mão.
PÁRIS — Ó Protesilau, estás a ser injusto, tanto mais que sou
da mesma arte180 que tu: sim, eu também sou um apaixonado
e estou possuído pelo mesmo deus... e tu bem sabes como ele
é algo de irresistível, uma força divina que nos conduz para
onde entender, e contra quem é impossível resistir.

2] P ROTESILAU — Dizes bem. Quem me dera que fosse


possível apanhar aqui Eros181.
É ACO — Eu vou dar-te a justa resposta, em nome de Eros. Na
verdade, Eros dir-te-á que ele mesmo é talvez o responsável pela
paixão de Páris, mas que da tua morte, ó Protesilau, ninguém
é culpado, a não ser tu próprio, uma vez que, esquecendo-te
da tua esposa recém-casada, quando do assalto a Tróia, saltaste
à frente dos outros com completo desprezo pelo perigo e com
178
Éaco é, juntamente com Minos e Radamanto, um dos juízes do
Inferno.
179
Protesilau foi o primeiros grego que morreu junto das muralhas
de Tróia.
180
Trata-se da «arte» de amar...: também sou amador, como tu.
181
Eros (Cupido, Amor), «de aljava bem guarne cida, era um menino
travesso e malicioso, que pregava partidas nem sempre inocentes. De
cada vez que lançava uma seta do seu arco infalível, o amor implantava-se
num coração e aí reinava como um tirano» (v. A.-M. Guillemin, Récits
mythologiques, Paris, Hatier, 2ª ed. 1936, p. 67).

251
grande imprudência, movido pelo amor da glória, devido à
qual foste o primeiro a morrer, quando do desembarque.
PROTESILAU — Então agora, ó Éaco, vou dar-te uma resposta
mais justa em minha defesa. De facto, não sou eu o culpado
desta desgraça, mas sim a Moira182 , que desde o princípio assim
fiou o meu destino.
É ACO — Está certo... Mas então porque acusas estas pessoas?

182
As Moiras (ou Parcas), filhas de Zeus e de Témis (a Justiça), eram
as divindades que presidiam ao destino dos humanos. Eram três: Cloto,
Láquesis e Átropo. Láquesis determinava a parte de vida que cabia a cada
pessoa e carregava a roca, que depunha nas mãos de Cloto; Átropo, ao
cortar o fio, punha termo aos dias de vida concedidos. Aqui, o singular,
a Moira, deve referir-se a Cloto, a «fiandeira».

252
20. M ENIPO E É ACO

1] M ENIPO — Por Plutão183 , ó Éaco, leva-me a ver tudo o


que existe no Hades.
É ACO — Mesmo tudo, ó Menipo, não é lá muito fácil.
Mas fica a conhecer pelo menos o essencial... Que este aqui é
Cérbero184 , já tu sabes; também conheces o barqueiro que te
passou; e já viste, ao entrar, o lago e o [rio] Piriflegetonte185.
M ENIPO — Isso conheço eu, e a ti, que és o porteiro;
também vi o rei e as Erínias186 . Mas o que eu quero que me
mostres são os homens de antigamente, sobretudo os mais
famosos de entre eles.
É ACO — Este aqui é Agamémnon187, este é Aquiles, este
aqui ao lado é Idomeneu, este é Ulisses, depois estão Ájax e
Diomedes e os mais nobres de entre os gregos.

2] M ENIPO — Ó Homero! Como os chefes das tuas rap-


sódias estão prostrados por terra, irreconhecíveis e informes,
reduzidos a pó, coisas insignificantes, caveiras verdadeiramente
inconsistentes! Ora então, ó Éaco, quem é este aqui?
É ACO — É Ciro; e este é Creso, e este a seu lado é Sardanapalo,
e ao lado dele está Midas, e aquele além é Xerxes.
M ENIPO — Então foi diante de ti188 , monte de porcaria,
que a Grécia tremeu, ao tentares ligar o Helesponto e preten-
dendo navegar através das montanhas? Vejam em que estado
está Creso! Ó Éaco, permite-me que dê um murro na cara de
Sardanapalo.

183
Por Plutão é a leitura de alguns manuscritos e de quase todos os
editores modernos, que também segui, em vez da lição de outros manus-
critos e da edição de Mras.
184
Cérbero é o cão de guarda do reino de Hades; é geralmente repre-
sentado com três cabeças.
185
O Piriflegetonte, um dos rios do Inferno, tem ondas de fogo e exala
um forte cheiro a enxofre.
186
As Erínias (ou Fúrias) eram três: Tisífine, Alecto e Megera. «Vestidas
de negro, com asas nos ombros, estas sinistras vigilantes percorriam silen-
ciosamente o espaço e mostravam-se ao malfeitor coroadas de serpentes,
enquanto a lembrança do crime lhe roía o coração... (v. A.-M. Guillemin,
Récits mythologiques, Paris, Hatier, 2ª ed. 1936, p. 191).
187
Agamémnon foi o comandante supremo da expedição contra Tróia.
188
Refere-se concretamente a Xerxes.

253
É ACO — De maneira nenhuma, pois quebrar-lhe-ias a ca-
veira, que é de mulher.
M ENIPO — Nesse caso, pelo menos vou mandar-lhe uma
escarradela, já que ele é andrógino189.

3] É ACO — Queres que te mostre também os sábios?


M ENIPO — Sim, por Zeus!
É ACO — Este aqui, o primeiro, é Pitágoras.
M ENIPO — Salve, ó Euforbo190 ... ou Apolo... ou lá o que
queiras ser!
P ITÁGOR AS — Salve para ti também, Menipo.
M ENIPO — Então já não tens a coxa de ouro?
P ITÁGOR AS — Não... Mas... deixa ver se tens aí no saco
alguma coisa que se coma.
M ENIPO — Favas, meu caro! Não é coisa que tu possas
comer191.
PITÁGORAS — Vá lá, dá-me! Entre os mortos, as crenças são
outras: na verdade, aprendi que aqui não há nada de comum
entre favas e cabeças dos nossos pais192 .

4] É ACO — E este é Sólon, filho de Execéstides... e aquele


além é Tales, e ao lado deles está Pítaco e outros: são sete ao
todo, como vês193 .
MENIPO — De entre todos, ó Éaco, estes são os únicos livres
de tristeza e jubilosos... E aquele coberto de cinza, como um
pão cozido sob as cinzas, aquele salpicado de pústulas... quem é?
ÉACO — É Empédocles, Menipo... chegou do Etna meio cozido.
M ENIPO — Ó caríssimo «pé-de-bronze», porque é que te
lançaste na cratera?
EMPÉDOCLES — Ó Menipo, foi uma espécie de melancolia.
M ENIPO — Não foi, não, por Zeus!, mas antes a vanglória,
o orgulho e muita estupidez, isso é que te reduziu a carvão,

189
A palavra andrógino significa «homem-mulher», logo, «homem
efeminado».
190
Euforbo, guerreiro troiano morto por Menelau. Pitágoras afirmava
ser uma sua reincarnação.
191
Entre diversas proibições no que respeita a alimentos, contam-se as
favas, peixe e ovos, por motivos ligados à crença na metempsicose.
192
Estas conversa de favas alude à proibição, entre os pitagóricos, de
ingerir tal alimento, pois nele podiam introduzir-se almas de pessoas...
193
Luciano, através de Éaco, menciona somente os três sábios mais
conhecidos e mais consensuais (Sólon, Tales e Pítaco).

254
mais as tuas sandálias... e não deixaste de o merecer. Todavia,
de nada te valeu o truque, pois houve quem te visse já morto...
Mas... e o Sócrates, ó Éaco, onde está ele?
É ACO — Esse está quase sempre tagarelando com Nestor
e Palamedes.
MENIPO — Em todo o caso, desejava vê-lo, se é que está por aí.
É ACO — Estás a ver aquele calvo?
M ENIPO — Mas são todos calvos... Esse sinal é comum a
todos.
É ACO — Refiro-me ao do nariz achatado.
M ENIPO — Também isso é igual, pois todos têm nariz
achatado.

5] SÓCR ATES — Andas à minha procura, ó Menipo?


M ENIPO — Ando, sim, ó Sócrates.
SÓCR ATES — Como vão as coisas em Atenas?
M ENIPO — Muitos jovens dizem filosofar, e de facto, a
julgar pela pose e modo de andar, são filósofos de alto gabarito.
SÓCR ATES — Tenho visto muitos assim.
M ENIPO — Também viste, creio eu, em que estado aqui
chegaram Aristipo194 e o próprio Platão, aquele cheirando a
perfume, e este habituado a cortejar os tiranos na Sicília.
SÓCR ATES — E de mim... que é que as pessoas pensam?
M ENIPO — Pelo menos nesse ponto, ó Sócrates, és uma
pessoa feliz, pois todos acham que foste um homem admirável,
que sabia tudo, embora — julgo que há que dizer a verdade
— nada sabendo195.
SÓCR ATES — Eu próprio lhes dizia e repetia isso, mas eles
cuidavam que era por ironia.

6] M ENIPO — E quem são estes aqui à tua volta?


SÓCR ATES — É Cármides, ó Menipo, e Fedro, e o filho
de Clínias196 .
194
Aristipo, discípulo de Sócrates e fundador das escola de Cirene (na
Líbia), ou cirenaica, ou hedonística, que defende que a felicidade reside no
prazer. Já se compreende a alusão ao perfume. No que respeita a Platão,
Menipo não deixa de mencionar as relações com os tiranos da Sicília.
195
Referência à conhecida e repetida frase de Sócrates: «eu só sei que
nada sei»».
196
O filho de Clínias é Alcibíades (450-404 a.C), sobrinho de Péricles,
personagem muito controversa, à qual, segundo os seus adversários, de
nada valeram as lições de Sócrates.

255
MENIPO — Bravo, ó Sócrates, pois até mesmo aqui te ocupas
da tua arte e não desprezas os belos moços197.
SÓCRATES — Que outra coisa mais agradável poderia fazer?
Ora bem, deita-te aqui ao nosso lado, se isso te apraz.
M ENIPO — Não, por Zeus!, pois tenho de ir para junto de
Creso e de Sardanapalo, para residir perto deles. Parece-me
bem que vou rir, e não pouco, ao ouvir as suas lamentações.
É ACO — Pois eu vão já vou indo, não se dê o caso de algum
morto se me escapar sem eu dar por isso. Para a outra vez verás
o resto, ó Menipo.
M ENIPO — Vai, sim, Éaco, que por agora já basta.

197
A referência à arte (ars amatoria) e aos belos moços sugerem, subtil-
mente, uma prática pederástica de Sócrates, o qual, pelo menos, da fama
não se livrou, por muito injusta que seja a alusão.

256
21. M ENIPO E CÉRBERO

1] MENIPO — Ó Cérbero — sim, eu sou teu parente, pois


também sou «cão»198, diz-me cá, pelo Estige!199, que aspecto tinha
Sócrates, quando desceu até vós. É natural que tu, sendo uma
divindade, não te limites a ladrar, mas que também fales como
os humanos, sempre que quiseres.
CÉRBERO — Visto de longe, ó Menipo, parecia avançar de
rosto impávido, com aspecto de quem não temia absolutamente
nada a morte200 e querendo mostrar isso mesmo aos que se en-
contravam no exterior da entrada para aqui. Quando, porém, se
inclinou para dentro do abismo e viu as trevas, e ainda por cima
eu o mordi e o arrastei por um pé, pelo facto de ele se demorar
por efeito da cicuta 201, berrava como um bebé, chorava pelos seus
filhinhos e fazia-se de todas as cores202 .

2] MENIPO — Quer dizer que o homem era um autêntico


sofista 203, para quem essa coisa [da morte] não era indiferente?!
CÉRBERO — Não... mas quando viu que, de qualquer modo,
a morte era inevitável, fazia-se forte, como se fosse sofrer de boa
vontade aquilo que, de toda a maneira, tinha de sofrer, só para
que os assistentes o admirassem. E o mesmo, em geral, poderia
dizer a respeito de todos nesta situação: até aqui à entrada, são
ousados e viris, mas, uma vez cá dentro, mostram aquilo que são.
MENIPO — E eu... como é que te pareci ao descer?
CÉRBERO — Tu, Menipo, foste o único digno da tua raça...
bem como Diógenes antes de ti, porquanto, viestes sem serdes
obrigados ou empurrados, mas de bom grado, rindo e prague-
jando contra todos.

198
Menipo é um filósofo cínico, gr. kynikós, «relativo a cão», «canino».
199
Um dos rios do Inferno.
200
Aqui segui a ed. Loeb, num passo em que os manuscritos divergem.
201
A cicuta é uma planta apiácea tóxica. Além de ser usada como tera-
pèutica externa, servia também como modo de suicídio e em condenações
à morte. Pela descrição de Platão, o seu efeito começava nas pernas e ia
subindo mais ou menos lentamente até ao coração, sem provocar sofrimento.
202
«Fazia-se de todas as cores» é tradução do Prof. Costa Ramalho.
203
A aplicação do termo sofista a Sócrates é realmente bastante forte,
pois Sócrates e os sofistas estavam em campos opostos... mas a comparação
não deixa de ter algum fundamento...

257
(Página deixada propositadamente em branco)
22. C ARONTE E M ENIPO

1] C ARONTE — Paga a passagem, maldito!


M ENIPO — Ó Caronte, berra, se isso te é mais agradável.
C ARONTE — Paga — repito — a quantia por que te passei.
M ENIPO — Não poderias receber de quem não tem.
C ARONTE — Mas há alguém que não tenha um óbolo?
M ENIPO — Se há alguém, não sei... eu é que não tenho.
C ARONTE — Pois então, por Plutão!, vou esganar-te, mal-
dito, se não me pagares.
M ENIPO — E eu bato-te com o cajado, que até te racho o
crânio.
C ARONTE — Será que fizeste em vão uma tal viagem?
M ENIPO — Hermes que te pague por mim, já que foi ele
que me trouxe junto de ti.

2] H ERMES — Por Zeus!, estava bem arranjado, se tivesse


de pagar pelos mortos.
C ARONTE — Não te largarei.
MENIPO — Nesse caso, põe o barco em seco e vai esperando.
Mas como poderias receber o que eu não tenho?
C ARONTE — Então não sabias que era preciso trazer [o
óbolo]?
M ENIPO — Sabia, pois, mas não tinha. Então e lá por isso
não devia morrer?
C ARONTE — Serás tu o único a gabar-se de ter feito a
travessia de graça?
M ENIPO — De graça, não, meu caro, pois esvaziei a água,
ajudei ao remo e fui o único, de entre todos os passageiros,
que não chorei.
C ARONTE — Isso não interessa ao barqueiro. Tens é de
pagar o óbolo, não pode ser de outro modo.

3] M ENIPO — Nesse caso, leva-me de novo para a vida.


C ARONTE — Tens cá uma graça... Para levar pancada de
Éaco por causa disso...
M ENIPO — Então não me chateies.
C ARONTE — Mostra cá o que tens no saco.
M ENIPO — Tremoços, se quiseres, e o jantar de Hécate 204 .
204
Hécate, deusa infernal, venerada nas encruzilhadas, protectora
das bruxas, por vezes associada à Lua. Os mortos acalmavam a sua ira,

259
C ARONTE — Ó Hermes, onde foste desencantar este cão?
Que coisas ele palrava durante a viagem, rindo e troçando de
todos os passageiros e o único que cantava, enquanto aqueles
gemiam.
H ERMES — É que tu, ó Caronte, desconheces que homem
passaste: um homem completamente livre, que não se preocupa
com coisa nenhuma. Este é o Menipo!
C ARONTE — Seja como for, se alguma vez te apanhar...
M ENIPO — Se apanhares, meu caro. Não poderás apanhar-
-me duas vezes.

levando-lhe o «jantar de Hécate», a que aqui se faz referência.

260
23. PLUTÃO E PROTESILAU205

1] P ROTESILAU — Ó meu Senhor e meu rei 206 , e tu, nosso


Zeus, e tu, filha de Deméter207, não rejeiteis a súplica de um
amoroso.
P LUTÃO — Que é que tu nos pedes? E quem és tu?
P ROTESILAU — Sou Protesilau filho de Ificlo, de Fílace,
soldado aliado dos Aqueus e o primeiro a morrer junto de
Ílion 208 . Rogo-vos que me concedais uma curta licença para
voltar de novo à vida.
PLUTÃO — Ó Protesilau, essa paixão atinge todos os mortos,
mas nenhum deles consegue concretizá-la.
P ROTESILAU — Mas eu, ó Aidoneu 209, não estou apaixo-
nado pela vida, mas por minha esposa, que, ao fazer-me ao
mar, deixei recém-casada no leito nupcial. Depois, por minha
desgraça, morri ao desembarcar, às mãos de Heitor. Por isso,
meu Senhor, o amor por minha esposa está-me torturando, e
não é pouco, pelo que desejo que ela me veja, ainda que por
pouco tempo, e depois eu volto novamente para cá.

2] P LUTÃO — Ó Protesilau, não bebeste a água do Lete 210?


P ROTESILAU — Muito, meu Senhor, mas o tormento era
enorme.
PLUTÃO — Nesse caso, vai esperando, pois também ela, um
dia, há-de cá chegar, pelo que não precisarás de ir lá acima.
P ROTESILAU — Mas, ó Plutão, não suporto a demora.
Tu também já estiveste apaixonado 211, pelo que sabes quanto
custa amar.
P LUTÃO — Mas então de que te servirá reviver durante um
dia, se pouco depois sofres as mesma dores?

205
Ver diálogo 19.
206
Refere-se, naturalmente, a Plutão (Hades), senhor do reino dos
mortos.
207
A filha de Deméter é Perséfone (Prosérpina), esposa de Plutão, junto
do qual passa seis meses por ano, e os outros seis meses na companhia da
mãe, na terra.
208
Ílion = Tróia.
209
Aidoneu é outra designação de Hades ou Plutão.
210
A água do Lete é a «água do esquecimento».
211
De facto, Plutão raptou Perséfone (Prosérpina), filha de Deméter,
e levou-a para o seu reino, o reino dos mortos, onde, porém, ela só passa
seis meses por ano (v. nota supra).

261
P ROTESILAU — Creio poder convencê-la a acompanhar-
-me para junto de vós, de modo que, dentro de pouco tempo,
receberás dois mortos em vez de um só.
P LUTÃO — Não é lícito que tal coisa ocorra... nem nunca
ocorreu 212 .

3] P ROTESILAU — Vou avivar-te a memória 213 , Plutão. Na


verdade, por esta mesmíssima razão vós entregastes Eurídice a
Orfeu e deixastes partir a minha parente Alceste, para agradar
a Héracles.
P LUTÃO — Mas quererás tu aparecer a essa tua linda noiva
assim de crânio nu e sem beleza? Como é que ela te acolherá,
se nem sequer é capaz de te reconhecer? Na verdade — estou
certo — ficará aterrorizada e fugirá de ti, pelo que terás feito
em vão uma tão grande caminhada.
P ERSÉFONE — Nesse caso, meu esposo, remedeia tu a si-
tuação e ordena a Hermes que, mal Protesilau esteja à luz do
dia, lhe toque com a vara e assim o transforme imediatamente
num belo moço, tal como ele era ao sair do leito nupcial.
PLUTÃO — Uma vez que é essa a opinião de Perséfone, leva-
-o 214 lá para cima e transforma-o num noivo. E tu lembra-te
de que só tens um dia.

212
Aqui os manuscritos divergem um pouco, mas a ideia é clara.
213
Protesilau menciona dois precedentes de derrogação às leis da morte,
em que os deuses infernais permitiram que duas humanas regressassem
à vida terrena.
214
É óbvio que Plutão se dirige a Hermes, e logo a seguir a Protesilau.

262
24. DIÓGENES E M AUSOLO215

1] DIÓGENES — Ó cário, porque é que estás tão orgulhoso e


te julgas digno de mais honrarias que todos nós?
M AUSOLO — Antes de mais, ó sinopense 216 , pela minha
realeza, por ter sido rei de toda a Cária, por ter governado al-
guns Lídios, por ter submetido certas ilhas e por ter chegado até
Mileto, devastando a maior parte da Jónia. Em segundo lugar,
por ser belo, de elevada estatura e valente nas guerras. Mas a
coisa mais importante é o facto de ter deixado em Halicarnasso
um monumento enorme, como o de nenhum outro morto, nem
tão trabalhado com tanta beleza, com representações exactas de
cavalos e homens feitos da mais bela pedra, de tal modo, que não
é fácil de encontrar nem sequer um templo assim. Não achas que
é com razão que estou tão orgulhoso?

2] DIÓGENES — Referes-te à tua realeza, à tua formosura e


à magnificência do teu túmulo?
M AUSOLO — Sim, por Zeus!, a tudo isso.
DIÓGENES — Mas... ó belo Mausolo, tu já não possuis nem
essa força nem essa beleza. Certamente que, se escolhêssemos
um juiz que julgasse a beleza, não posso dizer por que razão o
teu crânio haveria de valer mais que o meu. Realmente, ambos
os crânios são calvos e nus, temos ambos os dentes igualmente
salientes, estamos privados de olhos e temos os narizes achata-
dos. Quanto ao túmulo e a essas pedras caríssimas, talvez os
Halicarnassenses os achem dignos de serem mostrados e admirados
pelos estrangeiros, como grande construção que constituem. Mas
tu, meu caro, não sei que é que ganhas com isso, a não ser o facto
de dizeres que estás mais sobrecarregado que nós, esmagado ao
peso de tão grandes pedras.

3] M AUSOLO — Então todas essas coisas me são inúteis, e


Mausolo será igual a Diógenes?

215
Mausolo, rei da Cária (costas da Ásia Menor). Quando morreu,
Artemísia, sua esposa e irmã, mandou erigir na capital, Halicarnasso, em
sua honra e memória, um grandioso monumento, um «mausoléu», que os
antigos consideravam uma das sete maravilhas do mundo. A designação
Mausoléu passou a aplicar-se a outros monumentos funerários de grande
espavento.
216
Sinopense = natural de Sinope, cidade da Paflagónia (Ásia Menor).

263
DIÓGENES — Igual, isso não, mui nobre senhor 217, pois
Mausolo lamentar-se-á, recordado dos bens que deixou na terra,
com os quais se julgava feliz, enquanto Diógenes troçará dele;
Mausolo falará do seu túmulo em Halicarnasso, mandado erigir
por Artemísia, sua mulher e irmã, ao passo que Diógenes nem
sequer sabe se existe algum túmulo a cobrir o seu corpo, pois
isso era coisa que não o preocupava, mas antes, depois de viver
uma vida de autêntico homem, deixou às pessoas de bem uma
reputação de si próprio muito mais alta, ó mais vil dos escravos
cários, do que o teu monumento, reputação essa erigida em ter-
reno mais firme.

217
Naturalmente, há nesta designação («nobilíssimo») muita ironia.

264
25. NIREU218, TERSITES E M ENIPO

1] NIREU — Ora aí está! Aqui o Menipo é que vai decidir


qual de nós dois é mais formoso? Diz lá, ó Menipo: não te pareço
mais belo?
MENIPO — Mas quem sois vós? Antes de mais, julgo eu, é
preciso saber isso.
NIREU — Nireu e Tersites.
MENIPO — E qual é o Nireu, e qual o Tersites? É que isso
também não é óbvio.
TERSITES — Uma coisa já eu consegui: que sou igual a ti
e que não diferes de mim nas qualidades que o ilustre cego219,
Homero, tanto gabava em ti, ao chamar-te o mais belo de todos;
mas, pelo contrário, eu, o cabeça-de-melão, o calvo, não pareci
nada inferior aos olhos do juiz. Ora vê lá bem, ó Menipo, qual
de nós consideras mais formoso.
NIREU — A mim, certamente, o filho de Aglaia e de Cárope,

«o mais formoso guerreiro, que vim sob os muros de Tróia ».

2] MENIPO — Mas não o mais formoso, segundo creio, a vir


para debaixo da terra; pelo contrário, os vossos ossos são idênticos,
e o crânio difere num único ponto do crânio de Tersites: o teu é
quebradiço, sim, muito mole e nada viril.
NIREU — No entanto, pergunta a Homero como é que eu
era, quando fazia parte do exército dos Aqueus.
M ENIPO — Estás a sonhar! O que eu vejo é o teu estado
actual, e quanto a essas fantasias, conhecem-nas os de outrora.
NIREU — Quer dizer, ó Menipo, que, aqui, não sou o mais
formoso?
MENIPO — Nem tu és formoso, nem qualquer outro, pois no
Hades reina a igualdade de direitos e são todos iguais.
TERSITES — Isso é quanto me basta.

218
Entre os guerreiros gregos da expedição contra Tróia, Nireu era o
mais belo, a seguir a Aquiles, e Tersites o mais feio. Só no reino de Hades
seria possível este concurso de... beleza.
219
A referência à cegueira de Homero é realmente impiedosa, tratando-
-se de atribuir formosuras e fealdades...

265
(Página deixada propositadamente em branco)
26. M ENIPO E QUÍRON220

1] M ENIPO — Ó Quíron, ouvi dizer que tu, apesar de seres


deus, quiseste morrer.
QUÍRON — É verdade o que ouviste, ó Menipo; e, como
vês, estou morto, podendo ser imortal.
M ENIPO — Mas então que paixão pela morte se apoderou
de ti, uma coisa que a generalidade das pessoas abomina?
QUÍRON — Vou dizer-te, mas só a ti, que não és tolo: é que
deixou de me ser agradável gozar da imortalidade.
M ENIPO — Não te era agradável viver e ver a luz do dia?
QUÍRON — Não, Menipo. De facto, eu pelo menos considero
que o que é agradável é algo de variado e não simples, pelo que,
ao viver perpetuamente e a gozar sempre das mesmas coisas,
como o sol, a luz, a comida (e até as estações eram sempre as
mesmas, e os acontecimentos surgiam todos de enfiada, como
seguindo-se uns aos outros)... fartei-me de tudo isso. Na ver-
dade, o prazer consiste, não na constante repetição do mesmo,
mas na mudança.
M ENIPO — Dizes bem, Quíron... Mas agora... como su-
portas as coisas aqui no Hades, já que foi por opção tua que
vieste para cá?

2] QUÍRON — Não desagradavelmente, Menipo. De facto,


a igualdade de direitos é muito democrática, e não há diferença
nesta coisa de estar à luz do dia ou na escuridão. De resto, não
há que ter sede ou ter fome, como lá em cima, mas estamos
livres de tudo isso.
M ENIPO — Vê lá bem, Quíron, não te contradigas e que
o teu argumento caia nos termos anteriores.
QUÍRON — Porque dizes isso?
MENIPO — Porque, se a monotonia das coisas da vida, cons-
tante e sempre a mesma, acabou por te saturar, então também
as coisas daqui, monótonas como são, te hão-de igualmente
saturar, e precisarás de procurar uma qualquer mudança daqui
para uma outra vida — coisa que considero impossível.
QUÍRON — Então que havemos de fazer, ó Menipo?

220
Quíron é um centauro, ou melhor, um hipocentauro, meio homem
e meio cavalo. Especialista, entre outras artes, em música e medicina.

267
M ENIPO — Aquilo — creio eu — que sói dizer-se: que é
um acto de bom senso contentarmo-nos com aquelas coisas que
temos, estimá-las e não considerar nenhuma delas insuportável.

268
27. A NTÍSTENES221, CRATES E DIÓGENES

1] DIÓGENES — Antístenes e Crates, não temos nada que


fazer; então porque não vamos até além à descida, para passe-
armos e observarmos os que descem e vermos que espécie de
pessoas são e como cada uma delas se comporta.
A NTÍSTENES — Vamos, sim, Diógenes. De facto, será um
espectáculo divertido ver alguns deles chorando, outros, su-
plicando que os libertem, uns quantos descendo muito a custo
e fazendo marcha-atrás, ainda que Hermes os empurre pelo
pescoço, e eles resistindo, deitados no chão — resistência inútil.
CRATES — Também eu vos contarei o que vi, quando vinha
pela rampa abaixo.
DIÓGENES — Sim, Crates, conta lá, pois parece que vais
dizer coisas mui dignas de riso.

2] CRATES — Eram muitos os que desciam juntamente comi-


go, entre os quais gente importante, como o ricaço Ismenodoro,
meu compatriota, Arsaces, governador da Média, e o arménio
Oretes. Ora, Ismenodoro (que fora assassinado por salteadores
na região do Citéron, quando — presumo — se dirigia para
Elêusis) lamentava-se, com ambas as mãos agarradas à ferida,
chamava pelos filhos, que deixara abandonados de tenra idade,
e censurava-se pela sua temeridade, por atravessar o Citéron e
viajar por Elêuteras — região completamente deserta devido às
guerras — acompanhado apenas dois criados, e isto apesar de
levar consigo cinco vasos de ouro e quatro taças... [3] Quanto
a Arsaces, já velho, mas, por Zeus!, de aspecto venerável, sofria
à maneira dos bárbaros, mostrava-se indignado pelo facto de
caminhar a pé e exigia que lhe trouxessem o cavalo. E realmente,
o cavalo tinha morrido juntamente com ele, quando ambos
foram varados por um só golpe desferido por um peltasta 222
trácio, num recontro com o chefe capadócio, nas margens do
Araxe. De facto, Arsaces, como ele próprio contava 223 , avan-
çara, atacando muito à frente dos outros, quando o trácio,
esperando-o a pé firme e cobrindo-se com o escudo, fez saltar

221
Três filósofos cínicos: Antístenes, fundador da Escola, e Diógenes
e Crates, seus sucessores.
222
Os peltastas eram soldados de infantaria ligeira, que usavam um
pequeno escudo redondo, pelte, donde a designação.
223
Naturalmente, já na rampa dentro do Hades.

269
a lança de Arsaces e, metendo a sua lança por baixo, atravessou,
bem como ao cavalo.
4] A NTÍSTENES — Ó Crates, como foi possível fazer isso
com um único golpe?
CRATES — Muito facilmente, Antístenes. De facto, Arsaces
avançou de lança em riste, uma lança para aí de vinte côva-
dos 224 , mas o trácio desviou a arma com o escudo, pelo que a
ponta da lança lhe passou ao lado; então, dobrando um joelho,
recebe com a sua lança o ataque de Arsaces e fere em pleno
peito o cavalo, que se trespassou a si próprio devido ao ardor e
impetuosidade. Arsaces, por seu lado, é varado de lado a lado,
das virilhas até às nádegas. Já vês como tudo aconteceu, que
não foi obra do homem, mas mais propriamente do cavalo.
Mesmo assim, Arsaces estava irritado por ter honras iguais aos
outros mortos, e exigia descer a rampa a cavalo... [5] Finalmente
Oretes era tão delicado de pés, que nem sequer era capaz de se
ter de pé, e muito menos caminhar, o que é uma característica
geral de todos os Medos: sempre que desmontam do cavalo,
andam com muita dificuldade, nas pontas dos pés, como se
andassem sobre espinhos... de modo que, deitando-se no chão,
ali ficou, não querendo de maneira nenhuma levantar-se, pelo
que foi o bom do Hermes que o levantou e o levou até ao barco,
enquanto eu não fazia senão rir.

6] A NTÍSTENES — No meu caso, ao descer a rampa, não


me misturei com os outros, mas deixando-os a lamentarem-
-se, corri para o barco e arranjei lugar antes deles, para fazer
a viagem comodamente. Durante a travessia, uns choravam e
outros vomitavam, enquanto eu me divertia à brava à sua custa.

7] DIÓGENES — Enquanto tu, Crates, e tu, Antístenes,


fizestes viagem com tais companheiros, juntamente comigo
desceram Blépsias, o agiota do Pireu, o acarnense Lâmpis,
comandante de mercenários, e Dâmis, um ricaço de Corinto.
Dâmis morrera com uma dose de veneno ministrado por seu
filho; Lâmpis matara-se por amor da hetera Mirtinha 225; e

224
o côvado equivale a cerca de 0,462 cm; pelo que uma lança de 20
côvados teria um pouco mais de 9 metros...
225
Muitas prostitutas tinham (ou usavam) nomes de forma diminutiva,
geralmente em -ion, que em grego são do género neutro, e que, vertido
segundo as regras, dão em port. formas de aparência masculinas. Aqui, a

270
Blépsias, pobre dele!, tinha-se deixado mirrar de fome, segundo
se dizia e era, aliás, manifesto pela sua aparência extremamente
pálida e sua magreza excessiva. Ora eu, embora conhecedor do
caso, perguntei-lhe de que forma é que ele tinha morrido; então,
como Dâmis acusasse o filho, eu disse-lhe: «Não foi mal feito
o que o teu filho te fez, porquanto, com uma fortuna à volta de
mil talentos 226 , e ainda gozando as delícias da vida aos noventa
anos, só davas quatro óbolos a um jovem de dezoito anos.»... E tu,
ó acarnense (este também gemia e amaldiçoava a Mirtinha),
porque deitas culpas a Eros, em vez de as deitares a ti próprio,
tu, que nunca tremeste perante o inimigo, mas lutavas teme-
rariamente à frente dos outros, e agora, meu valentão, foste
apanhado pelas lágrimas fingidas e pelos suspiros da primeira
galdéria 227 que te apareceu... Finalmente Blépsias era o primeiro
a recriminar-se pela sua grande estupidez, por guardar o seu
dinheiro para herdeiros que não lhe eram nada, cuidando, o
parvo, que havia de viver sempre. A mim, porém, todas essas
lamentações só me provocavam gozo, e não pouco... [8] Ora
bem, eis-nos chegados à entrada; agora há que olhar e observar
de longe os que vão chegando... Tchiiii! Como são tantos e tão
variados, e todos chorosos, excepto aqui estes recém-nascidos
que ainda não falam! Mas até os muito velhos se lamentam...
Pois quê?! Será que ainda estão possuídos da magia da vida?...
[9] Vou então interrogar este aqui muito velho: Porque choras,
tu que morreste tão velho? Porque estás tão irritado, meu caro,
apesar de teres chegado a velho? Porventura eras algum rei?
VELHO — De modo nenhum.
DIÓGENES — Algum sátrapa?228
VELHO — Também não.
DIÓGENES — Acaso eras um ricaço, e agora te afliges por
ter morrido e deixares tantas delícias?

personagem é designada por Mýrtion, que daria em port. Mírtio. Decidi


verter em forma de diminutivo em -inha, talvez preferível (mas não supe-
rior!) a -inho (cf. versão do Prof. Costa Ramalho: Mirtinho).
226
O talento não era uma moeda, mas aquilo a que chamamos uma
«unidade de conto» (cf. dez contos de reis): 1 talento = 60 minas; 1 mina
= 100 dracmas; 1 dracma = 6 óbolos. Como se vê, trata-se de uma quantia
elevadíssima.
227
Adopto a interpretação do Prof. Costa Ramalho («galderiazinha»)...
com excepção do sufixo -inho, que não me pareceu necessário...
228
Os sátrapas eram os governadores de província do Império persa.

271
VELHO — Também não, mas, pelo contrário, tinha chega-
do até cerca dos noventa anos, levava uma vida de privações,
vivendo da cana e da linha de pesca, extremamente pobre, sem
filhos, e ainda por cima coxo e com falta de vista.
DIÓGENES — E ainda querias viver, mesmo nessa situação?
VELHO — Sim, porque a luz do dia me era agradável, e a
morte era uma coisa horrenda e de fugir.
DIÓGENES — Ó velhote, estás a delirar e a comportas-te
como um adolescente, ao falares do inevitável, e isto apesar
de seres da idade do barqueiro229. Então que diríamos nós dos
jovens, quando homens da tua idade são tão apegados à vida e
que, estes sim, deviam procurar a morte como remédio dos males
da velhice?... Bem... afastemo-nos já daqui, não vá alguém, ao
ver-nos cirandar junto da porta, desconfiar de que pretendemos
evadir-nos230.

229
Naturalmente, há aqui um exagero... mas muito expressivo.
230
Esta ideia de «evasão» não deixa de ser, pelo menos, curiosa.

272
28. M ENIPO E TIRÉSIAS231

1] MENIPO — Ó Tirésias, se tu és realmente cego, eis o que


já não é fácil de distinguir, pois todos nós temos olhos iguais,
quer dizer, só as suas cavidades vazias, de modo que já não serias
capaz de dizer quem é Fineu 232 e quem é Linceu. Que tu eras
um adivinho e que foste a única pessoa que se tornou nos dois
sexos — homem e mulher —, sei-o por ter ouvido os poetas.
Pois então, pelos deuses!, diz-me cá qual das duas vidas que
experimentaste era mais agradável: quando eras homem, ou era
melhor a vida de mulher?
TIRÉSIAS — Ó Menipo, era muito melhor a vida de mulher,
pois é menos trabalhosa. De facto, as mulheres, além de domi-
narem os homens, não são obrigadas a ir à guerra, não estão de
sentinela nas muralhas, nem se deslocam à assembleia, nem são
interrogadas em tribunal 233.

2]MENIPO — Na verdade, ó Tirésias, nunca ouviste a Medeia


de Eurípides, as coisas que essa personagem disse, lamentando
a vida das mulheres, como elas eram infelizes e como estavam
sujeitas às insuportáveis dores do parto? Mas... diz-me cá uma
coisa que me foi sugerida pelos iambos da Medeia: No período
em que tu, Tirésias, eras mulher, alguma vez deste à luz, ou
permaneceste, nessa condição, a ser estéril e sem descendência?
TIRÉSIAS — Porque fazes essa pergunta, ó Menipo?
MENIPO — Não tem qualquer dificuldade, ó Tirésias. Mas
responde lá, se puderes.
TIRÉSIAS — Não era estéril, não, mas nunca dei à luz.
MENIPO — Isso já me basta... Mas também gostava de saber
se tinhas útero.
TIRÉSIAS — Claro que tinha.

231
Tirésias é talvez o mais famoso adivinho da mitologia, mas a história
da sua dupla e alternada condição de homem e mulher é menos conhecida.
Naturalmente, Menipo não deixa de aproveitar o insólito da situação para
fazer perguntas (im)pertinentes.
232
Fineu, rei da Trácia, foi cegado por Posídon (lat. Neptuno); Linceu,
um dos argonautas, era famoso pela sua visão... de lince...
233
É curioso este conjunto de factores que tornam a vida das mulheres
preferível à dos homens, os quais — dito de outra maneira — além de serem
dominados pelas mulheres, são obrigadas a ir à guerra, estão de sentinela
nas muralhas, deslocam-se à assembleia e são interrogadas em tribunal.

273
MENIPO — Será que, a pouco e pouco, o útero desapareceu, os
órgãos genitais se foram fechando e os seios se foram esvaziaram,
e foi despontando o órgão viril e foi crescendo a barba, ou foi de
repente que te transformaste de mulher em homem?
TIRÉSIAS — Não estou a ver o que queres dizer com essa per-
gunta. Parece que duvidas que as coisas se tenham passado assim.
MENIPO — Ó Tirésias, então não é caso para duvidar de tais
fenómenos, em vez de aceitá-los, sem os examinar, como um
basbaque, quer eles sejam possíveis, quer não?

3] TIRÉSIAS — Portanto, também não acreditas que tenham


acontecido outros casos do mesmo género, quando ouves dizer
que certas mulheres se transformaram em aves, em árvores ou em
animais, como por exemplo Aédon234, Dafne ou a filha de Licáon?
MENIPO — Se por acaso um dia as encontrar, saberei aquilo
que elas me disserem... Mas agora tu, meu caro, quando eras
mulher, já tinhas o dom da adivinhação, como mais tarde, ou
tornaste-te homem e adivinho ao mesmo tempo?
TIRÉSIAS — Estás a ver? Desconheces tudo a meu respeito,
por exemplo, como resolvi uma disputa entre os deuses e, por
isso, Hera me mutilou, mas Zeus consolou essa minha desgraça,
dando-me o dom da adivinhação.
MENIPO — Ó Tirésias, então ainda és dado a mentiras? Bem...
procedes assim à maneira dos adivinhos, pois é vosso costume
não dizer nada de sensato.

234
Aédon, figura feminina transformada em rouxinol. Dafne, ninfa
dos bosques, por quem Apolo se apaixonou. Perseguida por este, invocou
a mãe Terra, que a transformou num loureiro (daphne). Calisto, filha de
Licáon, rei da Arcádia, foi amada por Zeus, mas, logo que deu à luz o
pequeno Árcade, Hera, ciumenta como sempre, metamorfoseou-a em ursa.

274
29. ÁJAX E AGAMÉMNON

1] AGAMÉMNON — Ó Ájax, se foste tu que, por teres en-


louquecido, te mataste e até estiveste quase a matar-nos a nós
todos, porque incriminas Ulisses, a ponto de, outro dia, nem
sequer teres olhado para ele, quando veio consultar o oráculo,
nem te dignaste dirigir a palavra a esse homem, que foi teu
companheiro de armas e camarada, mas passaste por ele com
modos arrogantes e a passos largos?
ÁJAX — É óbvio, Agamémnon, pois ele foi o causador da
minha loucura, por ter sido o único a disputar-me a posse das
armas.
AGAMÉMNON — Pretendias ficar sem adversário e apoderar-
-te das armas sem haver luta?
ÁJAX — Sim, é mesmo isso. De facto, essa panóplia 235 vi-
nha de família, por ter pertencido a um primo meu. Ora, vós
outros, que éreis muito melhores que Ulisses, renunciastes à
sua disputa e cedestes-me o prémio, ao passo que o filho de
Laertes, que eu muitas vezes salvei quando ele corria o risco
de ser despedaçado pelos Frígios 236 , achava-se melhor que eu
e mais merecedor de possuir as armas.
2] AGAMÉMNON — Nesse caso, meu bravo, acusa antes
Tétis, a qual, em vez de te entregar a herança das armas, por
seres sua parente, as colocou à disposição de todos.
Á JA X — De todos não, mas de Ulisses, o único que as
reivindicou.
AGAMÉMNON — Ó Ájax, há que lhe perdoar, pois, sendo
homem, se apaixonou pela glória, que é uma coisa muito agra-
dável e pela qual todos nós suportávamos o perigo. Além disso,
Ulisses também te venceu, e isso na presença dos Troianos,
que serviram de juízes.
ÁJAX — Sei muito bem quem me condenou... mas não é
lícito falar seja o que for a respeito dos deuses. No entanto, ó
Agamémnon, não poderei deixar de odiar Ulisses, mesmo que
Atena em pessoa me ordenasse o contrário.

235
A panóplia era o armamento completo de um hoplita: escudo, elmo,
couraça, coxote, espada e lança.
236
O termo Frígios acabou por ser sinónimo de Troianos.

275
(Página deixada propositadamente em branco)
30. MINOS E SÓSTRATO

1] MINOS — Que aqui este salteador, o Sóstrato, seja lançado


ao Piriflegetonte 237; que aí o outro, o sacrílego, seja despedaça-
do pela Quimera 238; que o tirano, ó Hermes, seja esticado ao
lado de Ticio 239 e que o seu fígado seja devorado pelos abutres.
Quanto a vós, os bons, ide-vos daqui a toda a pressa para os
Campos Elísios e habitai as ilhas dos bem-aventurados, como
prémio das justas acções que praticastes durante a vossa vida.
SÓSTR ATO — Ó Minos, escuta-me, a ver se te parece que
eu tenho razão.
M INOS — Escutar-te outra vez... agora? Mas, ó Sóstrato,
não ficou provado que tu foste um facínora que assassinou
tanta gente?
SÓSTR ATO — Sim, ficou provado, mas vê lá se eu fui jus-
tamente castigado.
MINOS — Muito justamente, se é justo pagar pelo que se fez.
SÓSTR ATO — Mesmo assim, ó Minos, responde-me, pois
só vou fazer-te uma breve pergunta.
M INOS — Fala, na condição de não te alongares, para que
ainda possa julgar outros.

2] SÓSTR ATO — Os actos eu cometi em vida, será que os


cometi livremente, ou foram-me fiados pela Moira 240?
M INOS — Foram fiados pela Moira, é claro.

237
O Piriflegetonte, um dos rios do Inferno, tem ondas de fogo e exala
um forte cheiro a enxofre.
238
Quimera, monstro que assolava a Lícia, foi morta por Belerofonte.
Tal como a Esfinge, havia nascido da hidra de Lerna. A Quimera tinha
a forma de uma cabra selvagem com cabeça de leão e cauda de serpente,
e vomitava fogo.
239
Ticio era um gigante, que foi castigado por impiedade contra Latona:
dois abutres roíam-lhe o fígado, que voltava a crescer. Compreende-se qual
o duplo castigo a que Minos condena Sóstrato: ser esticado até atingir o
comprimento do gigante, e ter o fígado devorado por abutres.
240
As Moiras (ou Parcas), filhas de Zeus e de Témis (a Justiça), eram
as divindades que presidiam ao destino dos humanos. Eram três: Cloto,
Láquesis e Átropo. Láquesis determinava a parte de vida que cabia a cada
pessoa e carregava a roca, que depunha nas mãos de Cloto; Átropo, ao
cortar o fio, punha termo aos dias de vida concedidos. Aqui, o singular,
a Moira, refere-se a Cloto, como se vê a seguir.

277
SÓSTR ATO — Nesse caso, todos nós, quer os bons, quer
os criminosos, agimos, ao que parece, por ordem dessa divin-
dade, não é?
M INOS — Sim, por ordem de Cloto, a qual destinou a cada
um, ao nascer, o que ele havia de fazer.
S ÓSTR ATO — Portanto, se alguém, obrigado por outro,
matasse uma pessoa, sem ter possibilidade de resistir àquele que
o forçara, como por exemplo um carrasco ou um mercenário
(um obedecendo ao juiz, e o outro ao tirano), a quem é que tu
acusarias da morte?
M INOS — Claro que ao juiz ou ao tirano, tal como não
culparia uma espada, pois esta, como instrumento que é, serve
apenas a vontade do primeiro, que age como causa inicial.
S ÓSTR ATO — Muito bem, Minos, tanto mais que vens
reforçar o meu exemplo. Se alguém, enviado pelo seu senhor,
vier trazer prata ou ouro a outra pessoa, a quem é que se deve
agradecer? A quem é que se deve inscrever no rol dos benfeitores?
MINOS — Ao que enviou a coisa, ó Sóstrato, pois o portador
foi apenas um criado.

3] S ÓSTR ATO — Portanto, estás a ver como procedes


injustamente ao castigar-nos, a nós que fomos apenas servos
executantes das ordens de Cloto, e ainda por cima enalteces
estes aqui 241, que agiram como simples executantes das boas
acções de outros?! Na verdade, ninguém poderia dizer que era
possível resistir a ordens dadas com força obrigatória.
M INOS — Ó Sóstrato, se examinasses minuciosamente,
poderias ver muitas mais coisas que não estão de acordo com a
razão. Em todo o caso, com a tua pergunta, ganharás o seguinte
(pois não pareces ser apenas um salteador, mas também um
sofista): Ó Hermes, liberta-o, e que deixe de ser castigado...
E tu, Sóstrato, vê lá não ensines os outros mortos a fazerem
perguntas semelhantes242 .

241
Sóstrato refere-se concretamente àquelas personagens que, no início
do diálogo, Minos havia mandado, em bloco, para os Campos Elísios.
242
Este final é de uma força crítica arrasadora: não digas que vais daqui...

278
O BIBLIÓMANO IGNORANTE
(Página deixada propositadamente em branco)
ÀS MINHAS ANTIGAS MESTR AS
PROFESSOR AS
MARIA MANUELA BARROSO DE ALBUQUERQUE
E
MARIA DE LURDES FLOR DE OLIVEIR A

... Hoc primum sentio,


nisi in bonis amicitiam esse non posse.

(Cícero, De Amicitia, 5, 18)


(Página deixada propositadamente em branco)
INTRODUÇÃO
O Bibliómano Ignorante, escrito cerca de 170 d. C.243 (por-
tanto na primeira fase da vida de Luciano em Atenas), tem por
alvo uma personagem nitidamente real, não nomeada, mas
facilmente identificável pelos leitores contemporâneos. Fica-
se com a nítida impressão de que se trata de algo mais do que
uma vingança, pelo facto de um certo indivíduo ter recusado
emprestar um livro a Luciano, que reage escrevendo contra
ele uma violenta diatribe, em que acentua especialmente a
ignorância da pessoa, mas sem deixar de aludir, como que de
passagem, mas com efeito arrasador, aos aspectos morais do
seu comportamento. Deviam ser velhos inimigos...
O título (que deve ser original) é claramente descritivo: Kat¦
tÕn ¢pa…deuton kaˆ poll¦ bibl…a çnoÚmenon. Numa tra dução
interpretativa, que dê conta das subtilezas do texto (e por isso
conscientemente «alargada»), entendemos: Contra um certo e
determinado indivíduo muito ignorante, mas que tem a mania
de comprar muitos livros. Numa tradução aparentemente mais
chegada e mais concisa (mas com perda de «informação»),
poderíamos dizer: Contra aquele ignorante que compra muitos
livros. Perde-se em precisão o que se ganha em concisão. No
comentário ao texto explica-se aquela interpretação. A nossa
tradução, O Bibliómano Ignorante, agradou-nos pela sua con-
cisão levada ao extremo, mas que parece conter os principais
elementos do título original.
O tema da diatribe já está bem explícito no título, que, como
se disse, é suficientemente descritivo. O desenvolvimento do
tema mostra-nos um indivíduo sem cultura, mas que pretende
fazer-se passar por intelectual, para o que se cerca dos «sintomas
exteriores» de intelectualidade: frequenta as livrarias, onde
adquire grandes quantidades de livros (edições de luxo ou pres-
tigiadas «primeiras edições»), com que se pavoneia pelas ruas
e praças de Atenas, rodeado de admiradores, que não perdem
uma só ocasião de lhe gabar tão grandes méritos, a troco de
jantaradas, onde também são obrigados a aplaudir... sem o que
o dono da casa não passará à fase das bebidas.
Segundo as normas da composição literária, Luciano ilustra
o seu ataque com exemplos similares, passados ou recentes, de

243
V. nota ao § 14 da tradução.

283
pessoas que pretenderam ou pretendem ser mais do que aquilo
que são, sempre com resultado contrário às suas expectativas.
Nesta obra, Luciano conta-nos uma dezena de histórias apli-
cáveis à personagem. O leitor moderno poderá ficar com a
impressão de um certo ‘enchimento’ artificial do tema, mas
recordemos que se trata de um processo habitual. São as se-
guintes essas histórias:

§ 6 – Um indivíduo, amputado de ambos pés, usa botas do


mais refinado luxo;
§ 8-10 – O tarentino Evângelo concorre, nos Jogos Píticos, na
disciplina de canto e música. Luxuosamente vestido e ostentando
uma cítara soberba, faz uma figura deplorável;
§ 12 – História de Neanto, filho do tirano Pítaco, que adquiriu
a lira de Orfeu, convencido de que esta faria dele um executante
exímio. Resultado trágico;
§ 13 – Um homem comprou por elevado preço a candeia de
Epicteto, convicto de que, lendo todas as noites sob a mesma luz
que o grande filósofo, ficaria igual ao seu primitivo dono;
§ 14 – Uma outra pessoa comprou a preço de ouro (um talento)
o cajado do filósofo cínico Proteu, que ostenta por toda a parte;
§ 15 – O tirano Dionísio, mau tragediógrafo, comprou a
prancheta em que Ésquilo compunha as suas obras... mas nem
assim passou a compor melhor;
§ 19 – O filósofo cínico Demétrio, ao ver um indivíduo a
ler desajeitadamente um passo das Bacantes de Eurípides, arre-
batou-lhe o livro e rasgou-o... a fim de poupar o grande trágico
das tropelias infligidas por um leitor bárbaro;
§ 20 – A suposta parecença do nosso homem com Pirro, rei do
Epiro, e outros casos de semelhança com personalidades famosas:
Pseudo-Alexandre, Pseudo-Filipe, Pseudo-Nero;
§ 21 – História de Pirro, rei do Epiro, convencido de que era
um autêntico sósia de Alexandre.

Mas Luciano não se contenta com atacar o snobismo ignorante


do indivíduo, que até é seu patrício (sírio), e cujo princípio de
vida ele bem conhece: o fulano conseguiu fazer-se herdeiro de
um certo velho, após o que se transferiu para Atenas, onde a
fortuna lhe permite levar uma vida não só luxuosa, mas tam-
bém... luxuriosa. Este aspecto, que, no conjunto do tema, parece

284
secundário, ganha, por isso mesmo, uma força subtil mente
arrasadora. Ao longo da diatribe, surge, de vez em quando,
uma ‘farpa’ dirigida ao comportamento imoral do sujeito (§§
19, 22, 24, 25...). Mesmo no fecho da diatribe, Luciano volta a
fazer uma leve mas clara referência à moralidade do indivíduo:
«Por agora, é isto que tenho para te dizer francamente, apenas a
respeito dos livros. Sobre as outras coisas nojentas e ignominiosas
a que te dedicas, voltarás a ouvir-me, e muitas vezes.»

Além do uso de histórias ilustrativas, Luciano cita vários


provérbios (que apresentamos em versão literal, acompanhada
do provérbio português mais aproximado.

§ 4 – «Um macaco é [sempre] um macaco»


[O que o berço dá, a tumba o leva]
[Quem torto nasce, tarde ou nunca se endireita]
[Burro velho não aprende linguagem]

§ 4 – «(Como) um burro, escutas uma lira, arrebitando


as orelhas»
[Dar pérolas a porcos]

§ 5 – «Que tem um cão a ver com um balneário?»


[Que tem a ver o cu com as calças»]
[Pra que queres tu botas, se tens as pernas tortas?]

§ 23 – «É mais fácil esconder cinco elefantes debaixo do


sovaco, do que um debochado»
[Mais depressa se apanha um mentiroso que um coxo]

§ 25 – «O cão, uma vez ensinado a roer couro, nunca


mais se desabitua»
[O hábito é uma segunda natureza]

§ 28 – «Estou tentando branquear um etíope»


[É malhar em ferro frio]

§ 30 – «É como o cão, que não come cevada nem deixa


o cavalo comer»

285
Como documento de uma época (Atenas na 2ª metade
do séc. II d. C.), O Bibliómano Ignorante informa-nos de um
ambiente cultural em que a figura do intelectual mantinha
bastante prestígio, o suficiente para que certas pessoas, mais ou
menos autodidactas (como a nossa personagem), pretendessem
entrar no círculo dessa gente importante.
Por outro lado, e em ligação com este aspecto, vemos que o
comércio do livro estava em franco desenvolvimento: os comer-
ciantes de livros tinham clientes para todo o tipo de edições: as
mais baratas, que satisfaziam perfeitamente os desejos dos menos
afortunados, que apenas queriam ter acesso às obras, e as mais
caras, que tanto podiam ser edições recentes elaboradas com
elevada técnica, como livros antigos (até mesmo autógra fos),
mais ou menos danificados pelo tempo, mas que suscitavam
a gula dos bibliófilos, a ponto de surgir a edição fraudulenta,
em que os livros eram artificialmente envelhecidos. Luciano
não deixa de fazer referência a este último aspecto, ao dizer
que a personagem não sabia distinguir entre as obras realmente
antigas e as falsas antiguidades. Naturalmente, nem todos os
amadores de livros antigos se deixavam enganar, mas o que é
certo é que este negócio rendia bastante.

286
O BIBLIÓMANO IGNORANTE
(Página deixada propositadamente em branco)
O BIBLIÓMANO IGNOR ANTE 244

1. Em boa verdade, o teu modo de proceder dá um resul-


tado diametralmente oposto às tuas pretensões. Sim: cuidas
tu que serás considerado um grande senhor no mundo da
cultura, só pelo facto de afanosamente adquirires grandes
quantidades dos mais belos livros... Só que a coisa te dá para
o torto e se torna, digamos, a prova provada da tua ignorância.
Mais: tu nem ao menos adqui res os livros mais belos, antes
te fias naquelas pessoas que os louvam à toa, pelo que és não
só uma presa fácil para os que dizem tais patranhas sobre os
livros, mas também uma autêntica mina para os negociantes
do ramo. Senão vejamos: com que base estás em condições de
distinguir entre os que são antigos e de grande valor, e os que
são medíocres e artificialmente 245 apodrecidos, a não ser que te
fundamentes na maneira como estão carcomidos e mutilados
e tragas à colação, para esse exame, os próprios vermes como
teus conselheiros? Sim: no que toca a precisão e segurança nessa
matéria, que outro julgamento haveria, e qual o seu valor?

2. Mas... vá lá... mesmo concedendo-te que tenhas essa


capacidade de julgar [por exemplo] quais é que Calino 246 , em
edições de luxo, ou o célebre Ático, com toda a diligência,
copiaram, que é que te aproveitaria, ó espantosa criatura, a
sua propriedade, se tu nem entendes a beleza desses livros
nem jamais poderás minimamente alguma vez deleitar-te com
eles, mais do que um cego se deleitaria com a beleza de um
seu rapazinho querido? Ora tu, é verdade, miras os teus livros
com olhos esbugalhados e (por Zeus!) com um ar embeveci-
do; chegas mesmo a ler alguns passos com bastante fluência,
mantendo o olhar adiantado em relação à boca. Pois bem:
para mim, isso não basta, se tu não apreenderes as qualidades
e os defeitos de cada um desses passos e não apanhares o seu
sentido geral, qual a ligação das palavras, quais delas é que o

244
Lit.te «Contra determinado indivíduo inculto que compra muitos
livros». Ver nota ao texto, onde se encontram as observações de natureza
gramatical. Na tradução, reduzi e limitei as notas ao estritamente indispen-
sável do ponto de vista da compreensão (alusões históricas, mitológicas...).
245
No texto grego, lit.te «diferentemente», i. é, «por outras causas» (que
não as causas naturais: humidade, ataque de traças...).
246
Calino e Ático, editores de grande prestígio. V. nota 8 do texto grego.

289
autor empregou com precisão e de acordo com as regras e quais
[outras] são equívocas, bastardas ou mal formadas 247.
3. O quê? Sustentas que, mesmo sem instrução, percebes
dessas coisas tanto como nós? E donde é que te vem a ciência,
a menos, talvez, que tenhas recebido das Musas um ramo de
loureiro, tal como o famoso pastor? Na verdade – creio bem – tu
nunca ouviste sequer falar do Hélicon, onde se diz que vivem
essas divindades, nem seguiste, na tua juventude, os mesmos
estudos que nós. Em ti, o próprio acto de mencionar as Musas
já é algo de sacrílego. Sim, que elas não teriam hesitado em
aparecer a um pastor248 , homem duro, hirsuto e patenteando
na pele o forte ardor do sol, ao passo que duma pessoa como tu
(pela deusa do Líbano249, dispensa-me, por agora, de dizer tudo
por claro!) tenho por certo que elas nunca se teriam dignado
aproxi mar-se. Pelo contrário, fustigar-te-iam não com ramos
de lou reiro, mas com mirto 250 , ou até com folhas de malva, e
expulsar-te-iam de tais regiões, para que não conspurcasses o
Olmio 251 ou a Fonte do Cavalo [Hipocrene], em cujas águas só
podem beber ou rebanhos sedentos ou bocas puras de pastores.
Verdadeiramente, por muito desavergonhado que sejas [e
és], por muito destemido em coisas deste género, nunca te
atre verias a dizer que recebeste instrução, ou que alguma vez
na vida te preocupou o contacto íntimo com os livros, ou que
fulano foi teu mestre, ou que frequentaste a escola de beltrano.

4. E no entanto, esperas agora corrigir tudo isso por um


processo simples: adquirindo uma grande quantidade de livros.
Nesta ordem de ideias, compra e colecciona todas as obras de
Demóstenes que este orador redigiu por sua própria mão, ou,
das de Tucídides, todas quantas subsistem, pertencentes ao
espólio de Demóstenes e que este copiou oito vezes, ou, enfim,
todos aqueles livros que Sula trouxe de Atenas para a Itália.

247
Luciano, integrado no movimento aticista, dá grande valor à cor-
recção linguística (ático clássico, claro).
248
Referência a Hesíodo, a quem as Musas apareceram no monte
Hélicon. Todo o passo é alusivo a este poeta.
249
A deusa do Líbano, ou Afrodite do Líbano, era venerada com ritos
sexuais, que atingiam proporções de orgia, tal como o culto da deusa
Cótis, a que Luciano se refere noutro passo.
250
O mirto e a malva tinham aplicações medicinais, mas também
mágicas. Nomeadamente, restituíam a razão aos tresloucados.
251
Olmio, pequena ribeira da Beócia, af luente do Permesso.

290
Mas que vantagem para a tua cultura retirarias daí, mesmo que
ponhas os livros debaixo de ti e durmas sobre eles, ou passeies
com eles colados a ti, a envolver-te todo? Lá diz o provérbio:
«Um macaco é um macaco», ainda que tenha consigo objectos
de ouro identificativos da sua origem. Também tu, de facto,
trazes sempre um livro na mão e estás sempre a ler, embora
não entendas nada do que lá está escrito, mas afinal, és tal qual
um burro a arrebitar as orelhas ao ouvir uma lira.
É que... se o simples facto de possuir livros revelasse a cultura
do seu possuidor, tal posse seria verdadeiramente preciosa e
unicamente ao alcance de vós, os ricos, uma vez que vos seria
possível comprá-la, como uma mercadoria, e, dessa forma,
superiorizar-vos a nós, os pobres. Mas, nesse caso, quem po-
deria competir em cultura com os comerciantes e proprietários
de livrarias, que possuem e vendem tão grande quantidade de
livros? Ora, se queres uma demonstração completa, verificarás
que esses tais não são muito superiores a ti em matéria de cul-
tura, mas sim uns bárbaros no falar, tal como tu, e broncos de
inteligência, como seria de esperar de pessoas que não têm a
noção do que é belo e do que é feio. E no entanto, tu possuis
apenas uma meia dúzia 252 de livros que lhes compraste, enquanto
eles os têm entre mãos noite e dia.

5. Por conseguinte, que vantagem retiras da compra de


livros... a menos que cuides que as próprias livrarias são cul-
tas, pelo facto de conterem tantas obras notáveis de antigos
escritores.
Ora responde-me, se fazes favor... ou melhor (já que isso te é
impossível), baixa [afirmativamente] ou levanta [negativamente]
a cabeça em resposta às minhas perguntas: se um homem que
não soubesse tocar flauta adquirisse as flautas de Timóteo, ou as
de Isménias, que este comprou em Corinto por sete talentos253,
acaso poderia ele, só por esse facto, tornar-se um bom flautista,
ou não será que de nada lhe valeria a sua aquisição, visto não
saber usar dela segundo as regras da arte? Bravo! Levantaste
[negativamente] a cabeça. Na realidade, nem que ele tivesse
adquirido a flauta de Mársias ou a de Olimpo se teria torna-

252
Lit.te «dois ou três»... o que parece ser muito pouco para um co-
leccionador. Trata-se da chamada «numeração indeterminada». V. nota
ao texto grego.
253
Sete talentos, uma soma elevadíssima: v. nota ao texto grego.

291
do um bom flautista, a menos que tivesse aprendido. E que
sucederia a quem adquirisse o arco de Héracles, sem ser um
outro Filoctetes, capaz de esticá-lo e dispará-lo direito ao alvo?
Que achas de uma tal pessoa? [Parece-te] que seria porventura
capaz de cometer um feito digno de um arqueiro? Também a
isto levantaste [negativamente] a cabeça. O mesmo se passa
com uma pessoa que não conheça a arte de pilotar, ou com
uma que nunca se exercitou no hipismo: aquela, se lhe dessem
um belíssimo navio, magnificamente construído em todos os
aspectos, no tocante quer a beleza, quer a segurança; esta, se
adquirisse um cavalo medo [árabe] ou um centáuride ou um
copátias: quer uma, quer outra mostrariam – estou certo – não
saber servir-se da respectiva aquisição. Fazes que sim bai xando
a cabeça? Então convence-te também do seguinte e faz também
que sim com a cabeça: se uma pessoa inculta, como tu, andasse
sempre a comprar grandes porções de livros, não suscitaria
contra si [veementes] censuras, devido à sua incultura? Porque
hesitas em também fazer que sim com a cabeça? Realmente,
essa seria uma prova evidente, e qualquer pessoa que assim o
visse, logo citaria o conhecido e bem apropriado provérbio:
«Que tem um cão a ver com um balneário?».

6. Ainda não há muito tempo, houve na Ásia um certo


indivíduo, muito rico, a quem, por sua infelicidade, tiveram de
amputar ambos os pés, completamente gangrenados, devido –
creio eu – ao frio, pois sucedera ter de viajar através da neve.
Ficou, é claro, numa situação deplorável. Então, como remédio
para a desgraça, mandou fazer uns pés de madeira, que aplicava
para caminhar, e mesmo assim apoiando-se nos criados. No
entanto, passou a fazer uma coisa ridícula: costumava comprar
as mais belas botas, sempre feitas de encomenda 254 , nas quais
punha os maiores cuidados, de forma que esses seus pés de
pau andassem sempre adornados com o mais belo calçado.
Ora bem: não é precisamente assim que tu procedes, com essa
tua inteligência «coxa»255 e «de pau de figueira», ao comprares
[como que] «coturnos» de oiro, com os quais até mesmo uma
pessoa escorreita de pés dificilmente seria capaz de caminhar?

254
Lit.te «talhadas de novo», i. é, «feitas de encomenda» ou, por ex-
tensão, «da última moda».
255
«inteligência ‘coxa’ e ‘de pau de figueira’»: estilo figurado, tirado
da imagem do amputado de pés, que tinha pés de pau.

292
7. Mas, já que, entre outros livros, compraste, em diversas
ocasiões 256 , as obras de Homero, pede a alguém que tome e
te leia o canto II da Ilíada desse poeta, sem, no entanto, exa-
minar outros passos (os quais, na verdade, não se aplicam à
tua pessoa), mas apenas aquele em que ele, Homero, descreve
um certo indivíduo a discursar, completamente ridículo, fisi-
camente disforme e desfigurado. Pois bem: se esse tal sujeito,
Tersites 257, recebesse a armadura de Aquiles, cuidas tu que
ficaria automaticamente belo e forte, que atravessaria o rio e o
tingiria do sangue dos Frígios, que mataria Heitor e, antes dele,
Licáon e Asteropeu, ele que não tinha força nem sequer para
levar nos ombros a lança de madeira de freixo? Não poderias
afirmar tal coisa. Pelo contrário, seria motivo de troça, assim
a coxear debaixo do escudo e a cair de bruços vergado ao peso
deste, deixando ver por sob o elmo, sempre que levantasse a
cabeça, aqueles seus olhos esbugalhados, tentando segurar
a couraça com a bossa das costas, arrastando as polainas...
enfim, envergonhando quer o fabricante dessas armas, quer o
seu possuidor. Então não vês que o mesmo se passa contigo,
quando tens na mão um livro realmente muito belo, com uma
capa cor de púrpura, com um botão de fecho em ouro... mas
que tu lês de forma bárbara, conspurcando-o e adulterando-o,
tornando-te motivo de riso por parte das pessoas cultas, ainda
que aplaudido pelos que contigo convivem, os quais também,
na sua maior parte, se viram uns para os outros e riem?

8. Vou contar-te um episódio passado em Delfos. Certo


tarentino, de nome Evângelo e pessoa nada obscura em
Tarento, pretendeu uma vez alcançar uma vitória nos Jogos
Píticos. Em relação a competições atléticas, imediatamente
se apercebeu de que isso lhe estava vedado, por não ser na-
turalmente dotado quer em força, quer em velocidade; mas,
na disciplina de cítara e canto, deixou-se convencer por
256
Entenda-se que o nosso homem possuía várias e variadas edições
de Homero (das muitas que circulavam), ou então (e também) cantos
separados, pois não era praticamente possível incluir todo o poema (neste
caso a Ilíada) num único rolo. Aliás, Luciano fala aqui, expressamente,
do canto II, que devia estar separadamente num rolo.
257
Tersites era o grego mais feio, mais cobarde e mais insolente de
todos os que estiveram na guerra de Tróia (v. Ilíada, II, 212). Luciano
refere-se-lhe noutras obras, p. ex., História Verídica, II, 20, Diálogos
dos Mortos, 25, etc.

293
pessoas execráveis da sua roda, que o gabavam e aplaudiam
sempre que ele dedilhava a mais pequena nota de abertura,
de que facilmente venceria. Chegou, pois, a Delfos, num
aparato em tudo espampanante, nomeada mente com uma
veste bordada a oiro, que mandara fazer expres samente, e
uma coroa de louro belíssima e de oiro, a ponto de as bagas
de loureiro serem esmeraldas do tamanho das bagas. Quanto
à cítara, era um instrumento soberbo, tanto em beleza como
em sumptuosidade, toda de oiro puro, toda ornamentada de
jóias cravejadas e de variadas pedras preciosas, por entre as
quais [se representavam] as Musas, Apolo e Orfeu... enfim,
uma coisa maravilhosa de se ver.

9. Quando, finalmente, chegou o dia do certame, apresenta-


ram-se três concorrentes, calhando a Evângelo cantar em se-
gundo lugar. Assim, a seguir a Téspis de Tebas, que não tinha
actuado nada mal, entra ele, todo rebrilhante de oiro, esmeral-
das, berilos e jacintos258 [safiras]. Até a púrpura da sua veste lhe
assentava magnificamente, deixando-se vislumbrar por entre
o oiro. Com todo este aparato, conseguira antecipadamente
deslumbrar o teatro em peso e encher os espectadores duma
expectativa de maravilhas; mas quando, finalmente, chegou
mesmo a sua vez de cantar e tocar cítara, começa por executar
um prelúdio desafi nado e fora do ritmo; a seguir, rebenta com
três cordas de uma assentada, ao atacar a cítara com mais força
do que convinha; depois, começa a cantar, mas com uma voz
desengraçada e fraca, a ponto de suscitar risadas por parte dos
espectadores e de os juízes, indignados com a sua ousadia, lhe
mandarem dar umas chibatadas e o expulsarem do teatro.
Assistiu-se então a uma cena ridícula, com o precioso Evângelo
a chorar, arrastado pelos guardas [mastigóforos 259] através da
cena, com as pernas ensanguentadas das chibatadas e apanhando
do chão as jóias da cítara, que também se tinham espalhado,
pois o instrumento havia sido igualmente «chicoteado».

258
«jacinto» era, na acepção mais comum, a conhecida planta, mas
também uma pedra preciosa do tipo da safira.
259
Os mastigóforos, «portadores de chicote» eram os guardas en-
carregados da segurança e da tranquilidade pública, especialmente em
espectáculos que juntavam muita gente.

294
10. Passado um breve intervalo depois desta actuação, foi
a vez de entrar um tal Eumelo da Élide, que trazia uma velha
cítara com cavilhas de madeira e uma veste que mal valeria
dez dracmas, incluindo a coroa. Mas foi justamente este que,
após uma excelente exibição de canto e uma execução de cítara
segundo as regras da arte, levou a palma e foi proclamado ven-
cedor, acabando por meter a ridículo Evângelo, que tinha feito
um vão espavento com a cítara e com todas aquelas jóias. Até se
conta que Eumelo lhe disse: «Evângelo, tu cinges o louro de oiro,
pois és rico, ao passo que eu, que sou pobre, cinjo o louro délfico.
No entanto, com o teu equipamento, só ganhaste uma coisa: vais
daqui sem que ninguém se compadeça do teu falhanço, e ainda
por cima odiado por essa tua insolência grosseira». O exemplo
deste Evângelo assenta-te lindamente, apenas com a diferença
de que tu não te preocupas, por pouco que seja, com a risota
dos espectadores.
11. Também não viria fora de propósito contar-te uma
história passada há muito tempo em Lesbos. Diz-se que, quan-
do as mulheres da Trácia despedaçaram Orfeu, a sua cabeça,
junta mente com a lira, caiu ao rio Hebro e foram ambas dar
ao «Golfo Negro» [Mar Egeu]. Enquanto a cabeça, flutuando
sobre a lira, cantava um treno por Orfeu – é o que se conta
–, a lira acompa nhava-a por si mesma, ao simples sopro dos
ventos nas cordas, e assim, ao som da música, aportaram a
Lesbos, onde os habitantes recolheram a cabeça de Orfeu e
lhe deram sepultura, no local onde está agora o templo de
Dioniso. Quanto à lira, foi oferecida ao santuário de Apolo,
onde se conservou durante muito tempo.

12. Passado algum tempo, Neanto, filho do tirano Pítaco,


tendo ouvido falar dessa lira, de como ela fascinava feras,
plantas e pedras, e de como, depois da tragédia sucedida a
Orfeu, conti nuava a tocar sem que ninguém a dedilhasse,
sentiu um vivo desejo de a possuir, pelo que, a poder de muito
dinheiro, subornou o sacerdote, convencendo-o a pôr no lugar
da lira uma outra igual e lhe entregar a de Orfeu. Mas, uma
vez na sua posse, não achava seguro utilizá-la em pleno dia
na cidade, e então, uma noite, com a lira escondida no seio,
saiu sozinho para os arredores, pegou na lira e, como jovem
inábil e inexperiente que era, começou a atacar e a atormentar
as cordas, esperando que a lira produzisse árias divinas, pelas

295
quais toda a gente se sentiria fascinada e encantada, e que,
enfim, ficaria cumulado de felicidade por ter herdado o génio
musical de Orfeu. Eis senão quando, uns cães, dos muitos que
havia por aquelas paragens, acorreram ao som e despedaçaram
o homem, de modo que, pelo menos neste ponto, teve a mesma
sorte que Orfeu, com a diferença de que só conseguiu atrair
cães sobre si, donde se conclui com toda a clareza que não era
a lira [por si] que encantava, mas sim a arte e o canto que, em
grau excelente e ímpar, Orfeu possuía por herança materna.
A lira, essa, era um objecto vulgar, não melhor que qualquer
outro instrumento de corda.

13. Mas para que estou eu a falar-te de Orfeu e de Neanto,


quando, no nosso próprio tempo, existiu um indivíduo, e ainda
vive – cuido eu –, que comprou por três mil dracmas a candeia,
que era [simplesmente] de barro260, do filósofo estóico Epicteto?
De facto – suponho eu –, o fulano esperava que, se fizesse todas
as noites as suas leituras à luz dessa candeia, adquiriria logo a
seguir, enquanto dormia 261, a sabedoria de Epicteto e ficaria
igual a esse admirável ancião.

14. Ainda há coisa de pouco tempo, um outro fulano com-


prou por um talento o cajado do filósofo cínico Proteu 262 , que
este atirou fora quando se lançou na fogueira. Agora, conserva
essa preciosa relíquia e ostenta-a, tal como os Tegeatas ostentam
a pele do javali calidónio 263 , ou os Tebanos os ossos de Gérion,

260
A expressão «que era de barro» tem, no texto grego, uma força
especial, significando, implicitamente, que não era de um material mais
caro, mas uma simples candeia de barro.
261
«enquanto dormia», ou «em sonho». Esta pode ser uma das primeiras
referências ao aprendizado hipnótico...
262
«Proteu» (não confundir com o deus marinho) era a alcunha do
filósofo Peregrino (100-165 d. C.), que se suicidou pelo fogo, durante os
Jogos Olímpicos. Luciano escreveu sobre esta personagem o livro Perì tês
Peregrínou teleutês (A Morte de Peregrino). Por aqui se vê que O Bibliómano
Ignorante foi escrito depois de 165 d. C., mas não necessariamente logo a
seguir à morte do filósofo. A compra do seu cajado aconteceu, literalmente,
«ontem ou anteontem», que é uma expressão de tempo indeterminado =
«há coisa de pouco tempo». Por isso admitimos que a obra foi escrita (em
números ‘redondos’) por volta de 170 d. C.
263
Este terrível javali, que Ártemis enviou, por vingança, para devastar
as terras da cidade etólia de Cálidon, foi morto por Meléagro. Gérion, o
gigante de três cabeças, está envolvido num dos «trabalhos de Hércules».

296
ou os Menfitas as madeixas de Ísis. O dono deste maravilhoso
objecto até te ultrapassou em ignorância e descaramento. Estás
a ver como ele está doido varrido, mesmo a precisar de umas
boas cajadadas na cabeça.

15. Também se conta que [o tirano] Dionísio 264 compu-


nha tra gédias num estilo muito vulgar e ridículo, a ponto de
Filóxeno ter ido muitas vezes parar ao cárcere por causa delas,
pois não era capaz de conter o riso. Então, apercebendo-se de
que era motivo de mofa, adquiriu a prancheta de Ésquilo, em
que este costumava escrever, cuidando que ficaria inspirado e
possuído [de veia poética], por virtude da prancheta. Apesar
disso, porém, o que nela escrevia era ainda mais ridículo, como
por exemplo:

Dóride morreu, a mulher de Dionísio

ou ainda:

Ai de mim, uma mulher prestável perdi!


Era isto, na verdade, o que a prancheta lhe inspirava;

ou ainda:

Realmente, os tolos dos mortais iludem-se a si próprios.

Pelo menos este verso, poderia Dioniso, com toda a proprie-


dade, aplicá-lo à tua pessoa, e só por ele devia aquela prancheta
ser revestida a ouro.

16. Mas que esperança pões tu nos livros, para estares


sempre a desenrolá-los, a colá-los, a apará-los, a untá-los com
[óleo de] açafrão e [óleo de] cedro, a encapá-los com pele e a
colocar-lhes botões de fecho, como se fosses tirar deles algum
proveito? Será que, à força de comprares livros, és agora muito
melhor, como tu, por um lado, proclamas – Mas estás mais
calado que um peixe –, enquanto, por outro lado, vives de uma
forma que nem é decente dizer e, pela tua conduta infame,
suscitas por parte das pessoas – como sói dizer-se – «um ódio
264
Dionísio, tirano de Siracusa (431-367 a. C.), reinou a partir de
405 a. C.

297
figadal»? Concluindo, se os livros produzissem pessoas dessa
tua laia, seria caso para fugir deles a sete pés e para o mais
longe possível.

17. Ora, havendo duas coisas que se podem obter do con-


tacto com os antigos – capacidade de expressão e cumprimento
dos deveres, por imitação dos melhores e rejeição dos piores –,
quando uma pessoa não se revela capaz de aproveitar deles nem
uma coisa nem outra, não é verdade que está antes a comprar
ninhos para os ratos, habitação para as traças e pancadaria
para os criados, a pretexto de estes serem desmazelados?

18. Mais ainda: não seria uma vergonha [para ti] que
alguém, vendo-te com um livro na mão (e tu tens sempre,
mas mesmo sempre, algum contigo), te perguntasse de que
orador, historiador ou poeta era o livro? Então tu, pela leitura
do título, responderias facilmente à pergunta; mas em seguida
(pois estas coisas, na convivência, costumam dar em conversa
prolongada), quando o outro louvasse ou criticasse algum
aspecto do conteúdo, tu ficarias embaraçado, sem nada para
dizer. Não deseja rias tu, nesse momento, que a terra se abrisse
debaixo dos teus pés, qual Belerofonte 265, que levava consigo
um escrito contra si próprio?
19. O filósofo cínico Demétrio 266 , ao ver, em Corinto, um
fu lano inculto a ler um belíssimo livro (cuido que as Bacantes
de Eurípides, naquele passo em que o mensageiro narra o in-
fortúnio de Penteu 267 e o acto de Agave), arrebatou-lhe o livro
e, rasgando-o, disse: «É melhor para Penteu ser despedaçado de
uma vez por mim, do que muitas vezes por ti.»
Ora, pergunto constantemente a mim mesmo, sem nunca,
até hoje, ter sido capaz de descobrir, por que motivo te dedicas
com tanto zelo a essa actividade de comprar livros. Ninguém,
de entre aqueles que te conhecem, mesmo que muito pouco,
265
Na sequência de uma história longa de contar, Belerofonte, filho
do deus Posídon, foi encarregado pelo rei de Tirinto de levar a Ióbates,
rei da Lícia, uma carta, na qual se pedia que matasse o portador... o que
não aconteceu...
266
Este Demétrio (nome de muitas personagens ilustres) viveu no
tempo de Calígula, Nero e Vespasiano.
267
Penteu, rei de Tebas, pretendia acabar com os rituais orgiásticos
celebrados pelas mulheres de Tebas em honra de Baco (Dioniso). Foi despe-
daçado por elas, entre as quais teve parte activa a sua própria mãe, Agave.

298
julgaria que fosse por razões de utilidade ou de necessidade,
nada mais [nada menos] do que se um calvo comprasse pentes,
ou um cego um espelho, ou um surdo um tocador de flauta,
ou um eunuco uma concubina, ou um homem do campo um
remo, ou um piloto um arado. Não se tratará antes de um caso
de ostentação de riqueza, em que pretendes mostrar a toda a
gente que esbanjas a tua enorme fortuna com coisas que não
te são absolutamente nada úteis? Todavia, tanto quanto sei na
minha qualidade de sírio, se não te tivesses apressado a fazer-te
inscrever fraudulentamente no testamento de um certo velho,
estarias agora a morrer de fome e porias à venda os teus livros.

20. Só resta, portanto, uma explicação: persuadido pelos


bajuladores de que és não só belo e amável, mas também um
sábio, um orador e um prosador como não existe outro, com-
pras livros como que para justificar os seus elogios. Diz-se até
que tu, depois do jantar, costumas fazer-lhes um discurso, e
eles, à ma neira de rãs em seco, ficam a grasnar de sede, e não
bebem enquanto não rebentarem em aplausos.
De facto, não sei lá como, és facílimo de arrastar pelo nariz,
acreditas em tudo o que te dizem, como uma vez, em que te
deixaste convencer de que eras a cara chapada de um certo
príncipe, como sucedeu com o Pseudo-Alexandre, ou com o
Pseudo-Filipe, que era pisoeiro, ou, no tempo dos nossos avós,
com o Pseudo-Nero, ou, enfim, com qualquer outro de entre
os que têm sido apelidados de Pseudo-[Qualquer Coisa].
21. Mas que grande admiração que isso aconteça contigo,
pessoa estúpida e ignorante, que te mostras em público com
ar enfatuado, imitando o andar, a pose e a maneira de olhar
daquela pessoa com cuja semelhança te comprazes, quando
– segundo se diz – o próprio Pirro, rei do Epiro e homem,
de resto, maravi lhoso, foi, num caso idêntico, de tal modo
estragado pelos baju ladores, que acreditava ser parecido com
o famoso Alexandre. E no entanto – para usar uma linguagem
musical –, a diferença era de duas oitavas. Sim, que eu já vi
uma imagem de Pirro. Mesmo assim, estava convencido de
que era a cara chapada de Alexandre... Mas, com esta história,
estou a cometer uma ofensa a Pirro, ao comparar-te a ele neste
aspecto. Mas o que vem a seguir, isso sim, assenta-te às mil
maravilhas. Estando Pirro neste estado, acreditando no que
se dizia a seu respeito, não havia ninguém que não assumisse

299
a mesma opinião e não concordasse com ele... até que uma
velha estrangeira, em Larissa, lhe disse a verdade, acabando-
-lhe assim com a tolice. De facto, Pirro, tendo-lhe mostrado a
imagem de Filipe, de Perdicas, de Alexandre, de Cassandro e
de outros reis, perguntou-lhe com qual deles o achava parecido,
absolutamente convencido de que a velha apontaria para a ima-
gem de Alexandre. Ela, porém, depois de pensar longamente,
respondeu: «Com Batraquião, o cozinheiro». Realmente, havia
em Larissa um cozinheiro chamado Batraquião, que era muito
parecido com Pirro.

22. Quanto a ti, não seria capaz de dizer com qual te


pareces de entre os depravados que se juntam aos actores de
pantomimas, mas o que eu sei de ciência certa é que, aos olhos
de toda a gente, pareces atacado de uma loucura galopante
por essa parecença. Não é, pois, de admirar que tu, um «pin-
tor» assim tão pouco convincente, pretendas assemelhar-te a
pessoas cultas e acredites em quem te gaba tais qualidades.
Mas para que estou eu para aqui a divagar? Na realidade,
é claro o motivo do teu interesse pelos livros; eu é que, por
lentidão de inteligência, não o tinha visto mais cedo. De facto,
meteste na cabeça um plano engenhoso (pelo menos é o que
tu cuidas) e pões nele esperanças nada pequenas: se o rei, que
é um homem erudito e dá muito valor à cultura, soubesse do
teu caso, se ele ouvisse falar disso a teu respeito, isto é, que
compras e coleccionas grandes quantidades de livros, breve-
mente – esperas tu – conseguirias tudo dele.

23. Mas... julgas tu, meu debochado, que ele está tão
encharcado de mandrágora 268 , que dê ouvidos a essa fama,
sem, por outro lado, saber de outras coisas [a teu respeito],
como sejam o teu modo de vida durante o dia, mas também
as tuas bebedeiras, o estilo das tuas noitadas e com que gente,
e de que qualidade, tu dormes? Não sabes como são nume-
rosos os ouvidos e os olhos de um rei? Ora, os teus actos são
tão manifestos, que até os cegos e os surdos os conhecem. Na
verdade, bastaria abrires a boca, bastaria despires-te para o
banho [público]... ou por outra, não te dispas, por favor, mas
dispam-se apenas os teus criados: Que tal? Não ficariam ime-
diatamente patentes os teus inconfessáveis segredos nocturnos?
268
A mandrágora era usada como estupefaciente e soporífero.

300
Mas diz-me cá mais uma coisa: se Basso, esse vosso grande
intelectual, ou Bátalo, o tocador de flauta, ou o debochado
Hemíteon de Síbaris, que compôs para vosso uso um espantoso
tratado onde se ensina a amaciar a pele, a depilar, a ‘suportar’
e ‘praticar’ coisas abomináveis – se algum deles, agora mesmo,
se pusesse para aí a deambular envolvido numa pele de leão e
com uma moca na mão, que é que achas que pareceriam aos
olhos das pessoas? Héracles, porventura? Não, a menos que
tivessem umas remelas do tamanho de panelas. Real mente,
há mil e uma coisas que desmentem essa aparência exterior: o
modo de andar e de olhar, a voz, o pescoço pendurado para a
frente, o alvaiade e o rouge de algas com que vos embelezais...
numa palavra – e como diz o provérbio – «é mais fácil esconder
cinco elefantes debaixo do sovaco, do que um debochado». Ora,
se uma pele de leão não disfarçaria uma tal pessoa, cuidas tu
que passarias despercebido [na tua ignorância], assim escondido
por detrás de um livro? Mas tal não é possível, pois todas as
outras vossas características te trairão e porão a descoberto.

24. Mas tu pareces ignorar por completo que não deves


procurar alcançar essas tuas boas esperanças junto dos comer-
ciantes de livros, mas sim tomá-las de ti próprio e do teu modo
de vida quotidiano. Cuidas tu que editores como Ático ou
Calino serão teus advogados públicos ou tuas testemunhas?
Pelo contrário, haverá pessoas impiedosas que te esmagarão, se
os deuses quiserem, e te reduzirão à extrema pobreza. Devias,
desde já, ganhar juízo e vender esses livros a alguma pessoa
culta, e, juntamente com eles, essa tua casa recém-construída,
e [com esse dinheiro] pagar aos mercadores de escravos pelo
menos uma parte do muito que lhes deves.
25. Sim, é isso mesmo, tens uma terrível paixão por estas
duas coisas: a aquisição de edições de luxo e a compra de rapa-
zolas crescidotes e já robustos, actividade que ocupa muito
do teu zelo e da tua procura. Todavia, se ficares pobre, é-te
impos sível atender a ambas as actividades. Portanto, conside-
ra um conselho como uma coisa preciosa. De facto, é minha
ideia que deves pôr de lado aquela que não te fica nada bem,
e cultivar o teu outro vício, i. é, adquirir servidores, de forma
que, à falta de pessoal de tua casa, não tenhas de mandar vir
pessoas livres, as quais, no caso de não serem bem pagas, sairão
dali e divulgarão impunemente aquilo que vós fazeis depois

301
de beber, como [aconteceu] outro dia, em que um debochado,
após sair de tua casa, andava por aí a contar as coisas mais
vergonhosas a teu respeito, mostrando até umas marcas de
mordidelas. Até podia mencionar-te pessoas presentes na altura,
que testemunhariam como eu próprio fiquei indignado com o
fulano e por pouco que não lhe dei umas bordoadas, revoltado
como estava por consideração pela tua pessoa, e ainda mais
quando ele invocou como testemunha outro tipo da mesma
laia, e outro ainda, os quais contavam exactamente a mesma
coisa. Portanto, meu caro, continua a administrar bem o teu
dinheiro, a poupá-lo, para poderes, em tua casa e na maior
segurança, praticar e «suportar» tais actos. Sim, ao ponto a que
a coisa chegou, quem poderia persuadir-te a deixar de proceder
desse modo? Tal qual o cão, que, uma vez ensinado a roer couro,
não será capaz de se deixar disso.

26. Quanto ao meu outro conselho, é fácil [de seguir]:


de hoje em diante, não compres mais livros. Já és suficiente-
mente culto, já tens sabedoria que baste, pouco falta para que
tenhas na ponta da língua todas as obras antigas. Conheces
toda a História, toda a arte literária com as suas virtudes e os
seus defeitos, o uso do vocabulário ático... Graças à enorme
quantidade de livros [que possuis], tornaste-te uma criatura
sapientíssima, um expoente em matéria de cultura. Bem...
nada obsta a que eu gaste assim o meu tempo contigo, já que
aprecias ser enganado.

27. Gostaria, porém, de te perguntar uma coisa: possuindo


tu tantos livros, qual deles preferes ler? Os de Platão? Os de
Antístenes? Os de Arquíloco? Os de Hipónax? Ou será que
menosprezas esses e preferes ter à mão os oradores? Diz-me
cá: costumas ler o discurso de Ésquines Contra Timarco? É
possível que conheças todas essas obras e entendas todos os
seus pormenores... Mas já te embrenhaste bem em Aristófanes
e em Êupolis? Já leste integralmente os Purificadores 269? E en-
tão não te tocou [pessoalmente] nada do que aí está contido?
Não coraste ao reconhecer [em ti] esses traços? Mas aquilo que
mais espantaria as pessoas é com que estado de alma tocas nos
269
Comédia de Êupolis, uma sátira contra os devotos da deusa trácia
Cótis ou Cotito, também venerada em Corinto. O seu culto envolvia
ritos orgiásticos.

302
livros, com que mãos os desenrolas. E quando é que costumas
ler? Durante o dia? Eis uma coisa que nunca ninguém te viu
fazer. Durante a noite? Mas... já depois de te ocupares 270 com
esses tais fulanos?!... Ou será ao lusco-fusco?!

28. De qualquer forma, [por Cótis! 271], nunca mais te


atrevas a uma coisa dessas: deixa lá os livros e trata apenas das
tuas coisas... E mesmo dessas não devias tratar, mas respeitar
a Fedra de Eurípides, quando ela, irritada contra as mulheres,
diz:

Não temem nem as trevas suas cúmplices


nem que os tectos das casas soltem vozes.

Se, porém, estás firmemente decidido a persistir em seme-


lhante vício 272 , vamos!, continua a comprar livros, sim, mas
aferrolha-os em tua casa e goza a glória 273 de os possuíres.
Para ti, é quanto basta. Mas nunca lhes toques, nunca os leias,
nunca submetas à tua língua as prosas ou os poemas de autores
antigos, que não te fizeram mal nenhum.
Bem sei que tenho estado para aqui a divagar inutilmente
sobre o mesmo assunto. Como diz o provérbio, «estou ten-
tando branquear um etíope». Efectivamente, tu continuarás a

270
... ocupares [tensamente e ‘tesamente’]: o verbo tem sentido priápico.
271
Cótis: v. nota supra. A lição prós Kótyos é conjectural: v. «Apêndice».
272
O texto diz, literalmente, «doença», considerando-se o vício como
uma doença do espírito. O grego não tem uma palavra para designar um
mau hábito. Não serviria, pelo menos neste caso, o termo œqoj, que Aristt.
(Ret., 1309b 6) define: œqei... Óti di¦ tÕ poll£kij pepoihkšnai
poioàsin (éthei... hóti dià tò pollákis pepoiekénai poioûsin): «(diz-se) por
hábito... porque se faz por se ter feito muitas vezes». Assim, a palavra não
tem a carga negativa do vício ou mau hábito. Também seriam inadequados
termos como trib ḗ «rotina», empeiría «experiência», ›xij «modo de ser
habitual», «tempera mento»... E poderíamos experimentar outras palavras:
eláttōma «imperfeição», «defeito», tò kakón «mal (em geral)», «malefício»,
kakía, mokhtēría, ponēría «maldade», akolasía, asélgeia «libertinagem».
De todas elas, parece que nósos «doença», mas com a carga (embora con-
textual) de «doença mental».
273
dóxa significa propr.te «opinião», «reputação», «fama», mas o sen-
tido de «glória» já era corrente na koinê (v. numerosos passos do Novo
Testamento). Mesmo que Luciano só pensasse em «reputação», muitos
leitores não deixariam de sentir a acepção corrente, de resto, muito pró-
xima. V. o mesmo termo no § seguinte, que traduzi por «fama».

303
comprá-los e a não tirar deles qualquer proveito, continuarás
a ser motivo de troça das pessoas cultas, às quais basta tirar
benefício, não da beleza das edições nem do seu luxo, mas sim
da forma literária e do pensamento dos autores.

29. Mas tu cuidas remediar e encobrir a tua ignorância


com essa [simples] fama 274 , cuidas espantar as pessoas com a
quantidade dos teus livros, sem te aperceberes de que, [p. ex.]
os médicos mais incompetentes procedem como tu: mandam
fazer estojos de marfim, ventosas de prata e bisturis cravejados
de ouro; quando, porém, chega o momento de se servirem destes
instrumentos, nem sequer sabem manejá-los como deve ser.
Então, chega ao local um qualquer dos que aprenderam [a arte
da medicina] e, com uma lanceta bem afiada, aliás coberta de
ferrugem 275, e já está: livra o paciente do seu sofrimento.
Mas deixa-me comparar o teu caso com um ainda mais ri-
dículo: observa esses barbeiros que há por aí e verás que, entre
eles, os mestres usam apenas uma navalha de barbear, uma
tesoura e um espelho vulgar, ao passo que os incompetentes e
amadores, embora fazendo espavento de grandes quantidades
de tesouras e de enormes espelhos, não conseguirão, com tudo
isso, esconder a sua ignorância. Mas ainda o maior ridículo por
que passam é que muitos vão cortar o cabelo nas barbearias
dos vizi nhos destes, mas depois vêm aos espelhos dos outros
compor o penteado.

30. Assim, também tu poderias facultar os teus livros a


quem deles tivesse necessidade, embora tu, propriamente, não
sejas capaz de te servir deles. Todavia, tu nunca emprestaste
um [único] livro fosse a quem fosse, mas fazes como o cão que
está na manjedoura, o qual não come cevada, mas também não
deixa comer o cavalo, que poderia fazê-lo.

Por agora, é isto que tenho para te dizer, com toda a fran-
queza, a respeito somente dos livros. No que respeita a outras
actividades nojentas e ignominiosas a que te dedicas, voltarás
a ouvir-me... e muitas vezes.

274
«fama»: v. § precedente.
275
É claro que Luciano e os seus contemporâneos desconheciam os
agentes infecciosos... mas isso só foi conhecido ... antes de ontem!

304
ALEXANDRE OU O FALSO PROFETA
(Página deixada propositadamente em branco)
INTRODUÇÃO
No tempo de Luciano (c. 125-190 d. C.), estavam em pleno
florescimento as doutrinas de mistério e salvação, bem como
antigos e modernos oráculos (de divindades gregas ou orien-
tais), aos quais o povoléu inculto e supersticioso recorria nos
seus muitos momentos de aflição. Naturalmente (o fenómeno
é geral em todos os tempos...), não faltava quem explorasse a
ignorância, o irracionalismo, o medo e as ansiedades das amplas
massas (e até de pessoas mais letradas), no intuito de enriquecer.
Assim, proliferavam os feiticeiros e as feiticeiras, bem como os
sacerdotes, profetas e oráculos de diversas religiões deste ou
daquele deus (grego ou «bárbaro»).
Luciano, homem de espírito lúcido e desempoeirado, não
podia compactuar com tais processos de pura charlatanice,
praticados por pessoas que, para mais, se apresentavam como
sábios, santos e inspirados directamente pela divindade. Mesmo
entre os que se consideravam filósofos, muitos enveredavam
pelas vias mais sinuosas da superstição popular e por uma me-
tafísica nada científica (v. O Mentiroso 276). De toda essa classe
influente (fazedores de opinião e de sentimentos), salvavam-se
uns quantos pensadores, que tomavam por missão sagrada es-
clarecer as pessoas e apetrechá-las contra todos esses embustes.
Entre eles, Luciano refere, com muita frequência, os filósofos
cínicos (Diógenes, Menipo) e os atomistas (Demócrito, Epicuro
e seus seguidores).
A personagem central deste panfleto, Alexandre de Abonotico,
exerceu, entre 150 e 170 d. C., nesta cidade da Paf lagónia
(Ásia Menor) o seu ministério de profeta de Asclépio. A fim
de abranger clientela muito diversa, apresentava-se não só
(nem principalmente) como curandeiro, mas também como
conselheiro, adivinho do futuro e profeta. Para chegar a esse
grau de fama e... proveito, teve de fazer um percurso lento,
mas firme, pontuado das maiores indignidades.
Esta figura está bem atestada em moedas e inscrições, e a
sua fama propagou-se por toda a Ásia Menor, Mediterrâneo,
Grécia, Gália... e estendeu-se até à própria Roma. Da sua vida,
propriamente, as únicas coisas que sabemos são as transmitidas
neste panf leto de Luciano, seu acérrimo adversário mesmo

276
Edições Colibri, Colecção MARE NOSTRUM).

307
antes de o conhecer pessoalmente, mas, sobretudo, depois de
ter sofrido da parte do “profeta” um grave atentado contra a
sua vida (v. § 55-57).
Assim, esta biografia póstuma é, antes de mais, uma vingança
de Luciano contra o seu mortal inimigo, escrita, uns dez anos
depois da morte de Alexandre, a pedido do seu amigo Celso,
que havia escrito uma ou mais obras contra o Cristianismo. Uma
delas, escrita entre 178 e 180, a Palavra Verdadeira mereceu,
mais tarde, a resposta de Orígenes intitulada Contra Celsum,
que nos informa, passo por passo, do conteúdo daquela obra
de Celso.
Tratando-se, como se disse, de um panfleto escrito por um
inimigo de Alexandre, pergunta-se que valor histórico deve
atribuir-se a esta obra. À falta de outra informação, podemos
aceitar o facto de Alexandre se comportar como muitos outros
profetas e adivinhos da sua época. Por outro lado, a menção
precisa de personagens e os abundantes episódios narrados
apontam para uma personagem tenebrosa, que conhecia bem
a alma da gente simples e se aproveitava disso para explorá-la.
Parece claro que Luciano força muitas vezes os factos e, de
qualquer modo, só menciona os casos gritantes de charlatanice.
Esta biografia traz-nos à memória, significativamente, os
diversos retratos de Sócrates: por um lado, a figura do filóso-
fo tal como nos é apresentada pelos seus discípulos Platão e
Xenofonte, nitidamente uma «fotografia retocada» do Mestre;
e, por outro lado, a «caricatura» desenhada por Aristófanes nas
Nuvens. Ambas figuram traços verídicos da mesma persona-
gem, mas aqui devemos notar que o Sócrates das Nuvens é o
«primeiro Sócrates», devotado às ciências da Natureza, ao passo
que o de Platão e Xenofonte é o «último Sócrates», o filósofo
das Ideias: as duas figuras não se sobrepõem no tempo, mas
ambos os Sócrates são retratados segundo os sentimentos e os
objectivos dos seus autores. Se possuímos duas obras intituladas
Apologia de Sócrates (melhor: Discurso de Defesa Pronunciado
por Sócrates), respectivamente de Platão e Xenofonte, falta-nos
a Acusação de Sócrates (i. é, o Discurso de Acusação Pronunciado
contra Sócrates), que foi escrita e publicada por um tal Polícrates...
mas não chegou até nós: com os devidos cuidados, servir-nos-
-ia para procedermos a uma espécie de acareação entre os dois
pontos de vista.

308
De toda a maneira, a biografia que Luciano traça de
Alexandre, além de conter factos concretos, na generalidade
fora de dúvida, constitui, sobretudo, um documento, agora
sim, histórico, do estado de espírito das massas ignorantes, que
acreditavam cegamente nos muitos charlatães que a exploravam.
Na mesma ordem de intenções, podemos ainda citar uma outra
obra de Luciano, O Mentiroso, acima mencionada.
Para o leitor moderno, há que reter a ideia da modernidade
deste panfleto, numa época – a nossa – em que impera a irra-
cionalidade e o acriticismo popular (e até... erudito) relativo
a diversas pseudociências que aparecem propagandeadas por
esses jornais... e têm freguesia. Não há quem os extermine?
Luciano, no seu tempo, bem o tentou.

309
(Página deixada propositadamente em branco)
A LEXANDRE OU O FALSO PROFETA
(Página deixada propositadamente em branco)
A LEX ANDRE OU O FALSO P ROFETA

1. Talvez tu imagines, meu caro Celso, que me impuseste


uma tarefa fácil e insignificante, ao solicitares-me que redu-
za a escrito e te envie a biografia do impostor Alexandre de
Abonotico, com todas as suas artimanhas, o seu descaramento
e as suas prestidigitações. Ora, pretender historiar cada episó-
dio com toda a minúcia não é tarefa menor do que descrever
os feitos desse outro Alexandre, o filho de Filipe: tamanha é a
perversidade de um como a grandeza do outro. Mesmo assim, se
te dispuseres a ler-me com indulgência e a preencher as lacunas
da minha narração, aceitarei o teu desafio e tentarei limpar
o curral de Áugeas, se não todo, pelo menos na medida das
minhas forças, carregando cá para fora uns quantos cestos [de
esterco], de forma que, pela amostra, possas julgar da grandeza
do todo e como era indescritível a quantidade de esterco que
três mil bois foram capazes de fazer em muitos anos.

2. Todavia, sinto vergonha por nós ambos, por ti e por


mim: por ti, ao julgares digno de ser entregue à memória e à
escrita um homem do mais execrável que há; e por mim, ao
gastar o meu esforço com uma história dessas e com os actos
de um homem que não merece ser dado à leitura das pessoas
cultas, mas antes ser visto num grande teatro apinhado de
público e ser despedaçado por macacos ou raposas. Em todo
o caso, se alguém nos lançar essa acusação, poderemos referir-
-lhe como exemplo um acontecimento semelhante. De facto,
Arriano, discípulo de Epicteto, varão romano dos mais ilustres
e que durante toda a vida se dedicou às letras, tendo-se passado
o mesmo com ele, viria em nosso socorro, pois também ele
considerou digna de ser contada a vida do salteador Tilóboro.
Ora, nós propomo-nos conservar a memória de um salteador
muito mais cruel, tanto mais que ele praticava os seus assaltos,
não nos bosques ou nas montanhas, mas nas cidades; não per-
corria apenas a Mísia ou o Monte Ida, nem devastava apenas
umas quantas partes mais desertas da Ásia, mas enchia, por
assim dizer, todo o Império Romano com os seus assaltos.

3. Antes de mais, vou fazer-te um desenho verbal da


personagem, representando-o o mais fielmente que for capaz,

313
embora eu não seja lá muito bom desenhador. No que toca
ao físico (para te mostrar também este aspecto), era alto e de
bela aparência, na verdade até divinamente imponente, de tez
clara, barba não muito espessa, com cabeleira em parte natural,
em parte postiça, mas muito semelhante [à natural], a ponto
de a maioria das pessoas não se aperceber de que não era dele
próprio. Os olhos tinham um brilho cintilante e divino; a
voz era muito suave e sonora. Numa palavra, não tinha, neste
aspecto, qualquer defeito que se lhe apontasse.

4. No aspecto físico, era assim. No que respeita, porém,


ao seu espírito e ao seu carácter... Ó Héracles afastador de
desgraças! Ó Zeus tutelar! Ó Dioscuros salvadores! Antes cair
nas mãos de adversários ou de inimigos pessoais do que ter
contacto com tal fulano277. Na verdade, ele superava largamente
qualquer outra pessoa em inteligência, sagacidade e astúcia; e
no que respeita a curiosidade, facilidade de aprender, memória
e aptidão natural para o estudo, tudo isso ele possuía no mais
elevado grau, mas fazia o pior uso dessas qualidades, pois, tendo
ao seu dispor estes nobres instrumentos, em breve se tornou,
em perversidade, muito superior aos mais famigerados crimino-
sos, muito acima dos Cercopes, de Euríbato, de Frinondas, de
Aristodemo ou de Sóstrato. Este indivíduo, uma vez, escrevendo
a seu genro Rutiliano, e referindo-se muito modestamente a si
mesmo, reclamava-se igual a Pitágoras. Ora – e que Pitágoras
me perdoe, esse homem sábio e de inteligência divina –, se o
filósofo tivesse vivido no tempo deste fulano, de certeza que
pareceria uma criança em comparação com ele. Pelas Graças!,
não julgues que digo isto para ofender Pitágoras ou que estou
tentando comparar em pé de igualdade os feitos de ambos. Pelo
contrário, se reuníssemos as mais graves e mais ímpias calúnias
que se dizem a respeito de Pitágoras (que eu não tomaria por
verdadeiras), estas, todas juntas, constituiriam uma parte mí-
nima da astúcia de Alexandre. Numa palavra: imagina e forma
no teu pensamento a imagem de uma mistura muito diversi-
ficada de uma alma composta de mentira, fraudes, perjúrios
e malícia, sem escrúpulos, insolente, audaciosa, diligente na
execução dos seus planos, persuasiva, geradora da confiança
277
Outra interpretação (com emenda da lição do manuscrito, seria:
«Oxalá os meus inimigos e adversários encontrem e tenham contacto com
tal pessoa».

314
dos outros, imitadora hipócrita da virtude e dando a aparência
completamente oposta aos seus verdadeiros propósitos. De
facto, não houve ninguém que, ao primeiro contacto com ele,
não saísse dali com a opinião de que ele era o mais honesto e
o mais virtuoso dos homens, e, além disso, o mais simples e
mais despretensioso. A tudo isto acrescia um ar de grandeza
e um espírito que não se ocupava de coisas mesquinhas, mas
que, pelo contrário, estava constantemente aplicado a assuntos
transcendentes.

5. Sendo ainda muito jovem, e extremamente belo, como


se podia 278 avaliar pelo que ainda lhe restava 279 e pelo teste-
munho que ouvi de outras pessoas, costumava prostituir-se
descaradamente e ter relações, a troco de dinheiro, com quem
lho solicitasse. Entre outros, teve por amante um charlatão, um
daqueles que se gabam de conhecer as artes mágicas e fórmu-
las miraculosas, obter favores das pessoas amadas e má sorte
para os inimigos, ou descoberta de tesouros e recebimento de
heranças. Este fulano, vendo nele um rapaz esperto, perfeita-
mente disposto a ajudá-lo nas suas actividades e não menos
apaixonado pelas suas trafulhices do que ele pela formosura
do moço, instruiu-o muito bem e utilizava-o constantemente
como assistente, ajudante e acólito. O dito sujeito era também
uma espécie de médico público, mas que, tal como a mulher
do egípcio Ton, conhecia

muitas drogas e misturas salutares, e muitas outras nocivas,

que o jovem recebeu como herdeiro e sucessor. Esse seu


mestre e amante era natural de Tiana e um dos amigos muito
íntimos de Apolónio e do círculo dos que conheciam toda a
sua encenação «trágica». Já estás a ver de que escola provinha
a criatura a que me refiro.

6. Já a barba lhe cobria o rosto, quando Alexandre, vendo-


-se, por morte desse tal tianense, em situação difícil (ao mesmo

278
Podia: o imperfeito justifica-se pelo facto de, no momento em que
Luciano escreve, o biografado já estar morto.
279
Lit.te, «pela palha», imagem sem correspondência exacta em port.:
pela palha que resta, depois de ceifado o trigo, ainda pode ver-se a qua-
lidade da colheita.

315
tempo que já lhe murchava a flor da juventude, que até então
lhe permitia subsistir), pôs de lado planos tacanhos e, tendo-
-se associado a um certo bizantino, autor de cantos corais280 ,
daqueles indivíduos que entram em concursos públicos, fulano
de carácter ainda mais execrando que o dele (um tipo alcunha-
do, julgo eu, de Coconas 281), começaram a percorrer a região,
ludibriando as pessoas, fazendo passes de magia e “tosquiando
os parvos” (como eles próprios, na gíria dos magos, se referem
ao vulgo). Foi assim que tendo encontrado uma macedónia,
mulher rica, já passada da idade, mas ainda apetitosa 282 , não
só começaram a viver à sua custa, mas também a seguiram da
Bitínia para a Macedónia. Essa mulher era natural de Pela,
cidade 283 outrora florescente, nos tempos dos reis macedónicos,
mas actualmente modesta e com muito poucos habitantes.
7. Aí, tendo visto umas serpentes enormes, muito mansas
e dóceis, de tal modo que até eram alimentadas por mulheres,
dormiam com crianças, deixavam-se pisar, não se enfureciam
quando as apertavam fortemente e mamavam na teta junta-
mente com os bebés (existem lá muitas desta espécie, donde
provavelmente se originou a lenda a respeito de Olimpíade:
quando esta estava grávida de Alexandre, uma serpente – creio
que desta espécie – dormia com ela)... então compram, por uns
poucos de óbolos, um destes répteis, o mais belo.

8. Ora, como diz Tucídides, «foi este o princípio da guer-


ra 284 ». De facto, estes dois patifes, extremamente audaciosos e
dispostos a juntarem-se para o crime, facilmente compreende-
ram que a vida dos homens é dominada por estes dois tiranos,
a esperança e o medo, e que aquele que fosse capaz de utilizar
convenientemente cada um destes sentimentos enriqueceria
rapidamente. Na verdade, verificaram que, para ambos os tipos
de pessoas – os que temem e os que esperam –, a previsão [dos
acontecimentos] era uma coisa absolutamente essencial e alta-
mente desejada, e que fora deste modo que, há muito, não só

280
Alguns editores lêem khronográphos «cronista », «analista».
281
A alcunha significa «pinhão»...
282
Noutra interpretação, «desejosa de ser amada», «dada aos amores»...
283
O texto diz «região», que, naturalmente, inclui a cidade.
284
Esta frase do livro II de Tucídides está aqui, naturalmente, em
sentido metafórico = «foi aqui que tudo começou».

316
Delfos, mas também Delos, Claros e os Brânquides285 tinham
enriquecido e se tinham tornado famosos por meio destes
dois tiranos dos homens (a que acima me referi – a esperança
e o medo –), os quais se dirigiam aos santuários movidos pela
necessidade de conhecer o futuro e que, para tal, sacrificavam
hecatombes e ofertavam lingotes de ouro. Assim, após discutirem
longamente sobre o assunto, e encarando as várias hipóteses,
decidiram fundar um santuário e um oráculo: esperavam, se
o negócio lhes corresse bem, ficar ricos e prósperos em pouco
tempo – o que de facto aconteceu para além das suas primeiras
expectativas e se revelou muito acima do que esperavam.

9. Desde logo, começaram a fazer planos: em primeiro


lugar, sobre a região, e, em segundo lugar, sobre o arranque e
o carácter da empresa. Coconas considerava a Calcedónia uma
região adequada e propícia, por ficar próxima da Trácia e da
Bitínia e não muito longe da Ásia e da Galácia e de todos os
povos em volta. Alexandre, por seu lado, preferia a sua pátria,
argumentando – e estava certo – que, para iniciar um empre-
endimento daqueles, precisavam de pessoas broncas, néscias e
crédulas 286 , como eram – segundo afirmava – os Paflagónios
da vizinhança de Abonotico, na sua maior parte supersticiosos
e ricos: bastava que lhes aparecesse alguém levando na frente
um flautista, ou um timpanista, ou um tocador de címbalo,
adivinhando o futuro – como sói dizer-se – por meio de uma
peneira, para logo acorrerem todos, de boca aberta e de olhos
arregalados, como se ele fosse um enviado dos deuses.

10. Depois de uma não pequena discussão287, acabou por pre-


valecer a ideia de Alexandre. Então, tendo chegado a Calcedónia
– pois, apesar de tudo, Alexandre pensou que essa cidade lhes
era de alguma utilidade –, aí, no templo de Apolo, que é o mais
antigo de Calcedónia, enterraram umas plaquetas de bronze
que diziam que muito em breve Asclépio, juntamente com seu
285
Sacerdotes que se diziam descendentes de Brancos, filho de Apolo,
que dirigiam um santuário perto de Mileto (Ásia Menor).
286
Dois sentidos possíveis: «dispostas a acolher (um estrangeiro...»), i.
é «hospitaleiras» ou «dispostas a aceitar (uma ideia...)», donde «ingénuas»,
«crédulas». O 2º sentido está mais de acordo com o contexto.
287
Os manuscritos dizem: «depois de uma pequena discussão». A
emenda do filólogo Hermann (que aqui acolhemos) não era absolutamente
necessária.

317
pai Apolo, se deslocariam à região do Ponto e se estabeleceriam
em Abonotico. Estas plaquetas, adrede descobertas, fizeram que
esta história se espalhasse rapidamente por toda a Bitínia e pelo
Ponto, e por Abonotico mais que por todas as outras regiões. E
de facto, os abotonicenses votaram a edificação de um templo,
e já estavam mesmo a abrir os alicerces. Entretanto, Coconas
fica em Calcedónia, compondo oráculos duplos, equívocos e
obscuros, mas terminou aí os seus dias, mordido – segundo
creio – por uma víbora.
11. Alexandre avança, já então provido de uma grande
cabeleira aos caracóis e vestido com uma túnica de púrpura às
riscas brancas e com um alvo manto sobre os ombros, empu-
nhando uma cimitarra à maneira de Perseu, do qual se dizia
descendente por parte da mãe. E os pobres dos Paflagónios,
que sabiam muito bem que ambos os seus progenitores eram
pessoas obscuras e humildes, acreditaram no oráculo, que dizia:

Perseida de descendência, caro a Febo, este que vedes,


o mui divino Alexandre, do sangue de Podalírio.

Este Podalírio, pelos vistos, era de sua natureza, tão


lascivo e perdido por mulheres, que veio de Trica para a
Paflagónia, a fim de satisfazer o cio com a mãe de Alexandre.
Também tinha sido encontrado um oráculo, dado como
uma profecia da Sibila:

Nas margens do Ponto Euxino, muito perto de Sinope,


em Tirse, sob os Ausónios, um profeta nascerá:
Partindo da unidade, e depois três vezes dez,
mais cinco outras unidades, e três vezes a vintena,
aí tens em quatro letras, ao seu nome semelhante,
ao do homem teu protector – andrós alex...etêros.288

12. Pois bem: entrando na sua pátria com tão grande apa-
rato e depois de longa ausência, Alexandre tornou-se notável e
famoso, ao simular, algumas vezes, ataques de loucura sagrada
e deitando espuma pela boca. Este truque era muito fácil,

288
Os números eram representados por letras; assim, no caso presente,
temos: a/= 1; l/= 30 (23x10); e/= 5; x/= 60 (3x20), o que dá ¢lex (alex),
completado por ¢ndrÒj, mais a terminação -htÁroj (-êtêros), que sugere
swtÁroj (sôtêtos), «salvador». Mesmo para mau entendedor...

318
bastando mascar raiz da saponária, planta usada em tintura-
ria. Mas os espectadores tomavam aquela espuma como algo
de sobrenatural e estarrecedor. Além disso, desde há muito
que [ele e o sócio 289] tinham fabricado, em linho, uma cabeça
de serpente com uma certa semelhança antropomórfica, bem
pintada e muito bem desenhada, a qual, por meio de crinas
de cavalo, abria e fechava a boca e projectava uma língua ne-
gra e bífida, como as serpentes, também pelo mecanismo das
crinas. Além disso, a tal serpente de Pela continuava guardada
para a função, alimentada em casa, destinada a ser, em devido
tempo, mostrada às pessoas e a participar no espectáculo, no
qual desempenharia mesmo o papel de protagonista.

13. Quando viu que já era tempo de começar, imaginou o


seguinte truque: dirigiu-se, pela calada da noite, aos alicerces
do templo, que estavam precisamente a ser abertos e onde se
havia juntado uma certa quantidade de água (quer infiltrada
de qualquer parte, quer caída do céu), e aí depositou um ovo
de ganso previamente esvaziado, que continha uma serpente
recém-nascida. Meteu o ovo bem no fundo da lama e foi-se dali.
Então, na madrugada seguinte, irrompendo pela praça pública
todo nu, apenas com uma tanga bordada a oiro a cobrir-lhe
as partes pudendas, empunhando a tal cimitarra e sacudindo
a cabeleira ao vento, num grande frenesim, à maneira dos sa-
cerdotes mendicantes da Deusa-Mãe, sobe a um altar elevado
e começa logo por felicitar calorosamente aquela cidade, que
ia receber a divindade em pessoa. Os espectadores (já então
tinha acorrido quase toda a cidade, incluindo mulheres, velhos
e rapazes) ficam estupefactos e irrompem em preces e actos
de adoração. E ele, pronunciando umas palavras ininteligíveis,
qualquer coisa parecida com hebraico ou fenício, espantava as
pessoas, que não percebiam o que ele dizia, a não ser os nomes
de Apolo e Asclépio, que ele misturava a cada passo.

14. A seguir, lançou-se numa correria para o futuro templo,


dirigiu-se aos caboucos e à improvisada fonte do oráculo e, en-
trando na água, começou a entoar hinos em honra de Asclépio e
de Apolo, com uma voz muito forte, rogando ao deus que viesse
à cidade sob bons auspícios. Depois, pede uma taça, que alguém
lhe dá, e, mergulhando-a habilmente, faz aparecer, misturado
289
Trata-se do supramencionado Coconas, já falecido (v. § 10).

319
com água e lama, o tal ovo, no qual tinha encerrado a divin-
dade, depois de lhe abrir uma tampa, cuja junta estava colada
com cera branca e alvaiade. Então, tendo tomado o ovo nas
mãos, proclamava que, naquele momento, tinha ali o próprio
Asclépio. E os espectadores, já antes mui maravilhados com a
descoberta do ovo dentro de água, não despegavam os olhos
do que iria acontecer. Então, tendo quebrado o ovo, tomou na
concha da mão a tal serpente recém-nascida. Os presentes, ao
vê-la mexer-se e enroscar-se nos dedos do profeta, desataram
logo em clamores, saudavam o deus e felicitavam a sua cidade;
cada um, embasbacado, cumulava-o de preces, pedindo-lhe
tesouros, riqueza, saúde e todos os outros bens. Então o profeta
regressou novamente a casa, a toda a pressa, levando consigo
o recém-nascido Asclépio, “ duas vezes nascido, enquanto as
restantes criaturas nascem apenas uma vez” 290 , nascido, neste
caso, não de Corónide, nem ao menos (c’ os diabos) de uma
gralha 291, mas de uma gansa. Atrás dele vai o povo em massa,
todos cheios de fanatismo religioso e loucos de esperança.

15. Durante alguns dias permaneceu em casa, esperando


– como de facto aconteceu – que, com o espalhar da notícia,
logo acorresse uma grande multidão de paflagónios. Assim
que a cidade ficou cheia de pessoas, todas elas desprovidas
de razão e de bom senso, sem qualquer semelhança com os
homens “comedores de pão”, mas antes (tirando o aspecto
exterior), em nada diferentes dos carneiros, o profeta, metido
numa saleta e recostado num leito, paramentado como convém
a um deus, tinha ao peito o tal “Asclépio” de Pela, que – como
anteriormente disse– era [uma serpente] enorme e muito bela.
Enrolou a serpente à volta do pescoço, deixando que a cauda
(que era muito comprida) saísse pela parte de baixo da túnica
e rastejasse parcialmente pelo chão, apenas lhe mantendo a
cabeça escondida sob o sovaco (pois o réptil suportava tudo), e
mostrando a cabeça de linho de um dos lados da barba, como
se a cabeça que estava à vista fosse mesmo da serpente.

290
Paródia de um verso de Homero, Odisseia, XII, 22: “Duas vezes
mortos, enquanto as restantes criaturas morrem apenas uma vez”.
291
Há aqui um jogo de palavras intraduzível: o palavra korône «gralha»
é sugerida pelo nome próprio Corônís, mãe de Asclépio.

320
16. Agora imagina uma pequena sala, não muito bem ilu-
minada nem recebendo suficiente luz do dia, e uma multidão
de pessoas em tropel, agitadas, antecipadamente maravilhadas
e excitadas de expectativa: logo de entrada, como é natural,
parecia-lhes assombroso o facto de, em poucos dias, um pequeno
réptil se transformar numa serpente de todo o tamanho, com
cara de homem e, além disso, muito mansa. Mas logo eram
empurrados para a porta de saída, sem tempo para observar
com atenção, impelidos pela multidão que não parava de en-
trar, para o que tinha sido aberta uma outra porta de saída
na parte de trás. Um processo semelhante, segundo se diz, foi
utilizado pelos Macedónios, em Babilónia, durante a doença
de Alexandre, quando este já estava gravemente doente e os
soldados rodeavam o palácio ansiando por vê-lo e dizer-lhe
o último adeus. Diz-se mesmo que não foi só uma vez que o
patife encenou esta representação, mas muitas outras vezes,
em especial se se tratava de pessoas ricas acabadas de chegar à
cidade.

17. Neste ponto, meu caro Celso, para falar verdade, há que
desculpar essa gente da Paflagónia e do Ponto, pessoas broncas
e ignorantes, pelo facto de se deixarem enganar, mesmo tocando
a serpente (coisa que Alexandre permitia a quem quisesse), ao
verem, a uma luz muito fraca, a sua pretensa cabeça e a boca
a abrir e fechar, pois o truque requeria mesmo [para ser desco-
berto] um Demócrito, ou um Epicuro, ou um Metrodoro, ou
qualquer outra pessoa que possuísse um espírito resistente como
aço para esse tipo de coisas, a ponto de desconfiar e imaginar
do que é poderia tratar-se, e que, caso não fosse capaz de des-
cobrir como é que o truque era feito, estivesse já previamente
persuadido de que, embora o processo lhe escapasse, era tudo
uma fraude que não poderia nunca acontecer realmente.

18. A pouco e pouco, a Bitínia, a Galácia e a Trácia começa-


ram a acorrer em massa, à medida que cada visitante transmitia
a boa-nova com foros de verdade, dizendo que até tinha visto
nascer o deus, que depois o havia tocado, que este, em pouco
tempo, se havia tornado enorme e que tinha um rosto muito
parecido com o rosto humano. A juntar a isso,, fizeram pin-
turas, bem como imagens e estátuas, umas de bronze, outras
de prata, muito bem parecidas e, é claro, com o nome que foi

321
dado ao deus, pois este chamava-se Glícon, nome originado de
uma ordem divina em verso, pois Alexandre havia proclamado:

Eu sou Glícon, terceiro sangue292 de Zeus, farol da Humanidade.

19. Quando foi chegado o tempo de pôr em prática o plano


completo que havia concebido, ou seja, dar oráculos e fazer
profecias a quem o pedisse, adoptou o modelo de Anfíloco, da
Cilícia, o qual, após a morte e o desaparecimento de seu pai
Anfiarau, em Tebas, deixou a sua pátria e foi instalar-se na
Cilícia, onde não se deu nada mal, profetizando também ele 293
o futuro aos cilícios e recebendo dois óbolos por cada oráculo.
Adoptando, pois, este modelo, Alexandre proclama a todos os
que o visitam que o deus vai fazer profecias, e indicou com
antecedência a data do acontecimento. Recomendou que cada
pessoa escrevesse num rolo de pergaminho o que pretendia e,
sobretudo, o que desejava saber, que atasse o rolo e o selasse
com cera, barro ou qualquer outra substância. Então ele próprio
recebia os rolos e descia ao santuário (pois, por esta altura, já o
templo estava construído e o cenário preparado), dizendo que
chamaria por ordem, através de um arauto e de um clérigo, os
que tinham entregue os rolos e que, à medida que ouvisse o
deus a respeito de cada caso, devolveria o rolo, selado tal e qual
estava, tendo na parte de baixo escrita a resposta, em termos
explícitos 294 , que o deus dava àquilo que cada um perguntava.

20. Este truque, para um homem como tu, ou mesmo, se


não fosse presunçoso dizê-lo, como eu, era por demais evidente
e fácil de descobrir, mas, para pessoas vulgares e estúpidas,
afigurava-se como uma coisa fabulosa e absolutamente fantás-
tica. A verdade é que, tendo imaginado variadas maneiras de
desfazer os selos, lia cada uma das perguntas e dava as respostas
mais convenientes; depois, voltava a enrolar os rolos de papiro,
selava-os e devolvia-os, com grande pasmo dos que os recebiam,
que frequentemente comentavam entre si: «Como é que este
homem conhecia o texto que eu lhe entreguei, selado com toda

292
Quer dizer, «terceira geração», «neto».
293
Entenda-se: «tal como seu pai (fazia em Tebas)».
294
O texto diz «à letra», ou «palavra por palavra». O profeta queria
informar os consulentes de que não procedia como tantos outros oráculos,
que davam respostas confusas e dúbias.

322
a segurança e com uma marca muito difícil de imitar, se não
existisse por detrás um deus que verdadeiramente tudo sabe?»

21. “Mas então que processos eram esses” – perguntar-me-


-ás. Ora escuta, a fim de ficares em condições de desmascarar
esse género de embustes. O primeiro processo, meu caro Celso,
é esse tal [bem conhecido]: com uma agulha aquecida ao ru-
bro, derretia e retirava a parte da cera por debaixo do selo e,
depois de ler o conteúdo do rolo, aquecia novamente a cera
com a agulha, assim colando facilmente a cera por debaixo do
linho com a que continha o selo. Outro processo é o chamado
“do emplastro”: este é fabricado com pez de Brútio, alcatrão,
“pedra diáfana” (?) moída, cera e goma arábica. Com todos
estes produtos, amassa-se uma espécie de “emplastro”, que
se aquece ao fogo; depois, humedecendo previamente o selo
com saliva, aplica-se-lhe o “emplastro” e copia-se o molde.
Seguidamente, logo que este ficava seco, abria facilmente o
rolo, lia o seu conteúdo e depois punha nova cera e imprimia
sobre ela o selo, como se fosse feito com uma pedra e muito
semelhante ao original. Escuta ainda um terceiro processo, a
juntar aos outros dois: misturando um pouco de gesso com
aquela cola com que se colam os livros, e fazendo com isso uma
pasta, vertia-a no selo quando esta ainda estava macia; depois
retirava esta massa (que endurece rapidamente e fica mais dura
que corno ou até que ferro) e utilizava-a como molde. Existem
ainda outros processos inventados para obter o mesmo resulta-
do, mas não há necessidade de os mencionar todos, para não
parecer uma pessoa de mau gosto, tanto mais que tu, no livro
que escreveste contra os magos (um tratado ao mesmo tempo
muito belo e utilíssimo e capaz de inspirar sensatez a qualquer
leitor), apresentas exemplos bastantes, muito mais abundantes
do que os que aqui ficam.

22. Portanto, Alexandre pronunciava oráculos295, o que fazia


com muita perspicácia, combinando probabilidade e imagi-
nação, respondendo às perguntas de uns de forma obscura e
ambígua, e às de outros de forma absolutamente ininteligível,
pois era assim que ele considerava o estilo oracular. A uns,
dissuadia-os ou encorajava-os, conforme se lhe afigurava e
295
A palavra grega significa, simultaneamente, «pronunciar oráculos
e profecias».

323
presumia ser melhor; a outros receitava mezinhas e dietas,
pois, como eu disse no princípio, conhecia muitos remédios
salutares. Mas o que tinha a sua preferência especial eram as
cítmides, designação, por ele forjada, de um certo fortificante
feito à base de gordura de urso296 . Quando, porém, se tratava
de expectativas, prosperidade e sucessão de heranças, remetia
a resposta sempre para outro dia, acrescentando: «Tudo isso
ficará para quando eu quiser e Alexandre, o meu profeta, mo
solicitar e rogar por vós».

23. Por cada oráculo tinha sido fixado o preço de uma


dracma e dois óbolos. Não cuides, companheiro, que esta pe-
quena quantia lhe proporcionava um magro rendimento, mas
ganhava por ano até setenta ou oitenta mil, pois havia pessoas
tão insaciáveis, que requeriam dez ou mesmo quinze oráculos
de uma assentada. No entanto, este rendimento não ia apenas
só para ele, nem servia para amealhar, pois, como tinha ao seu
serviço muitos assistentes, criados, informadores, fazedores e
guardas de oráculos, escrivães, fazedores de selos e intérpretes,
por todos eles distribuía dinheiro, a cada um segundo o seu
mérito.

24. Além disso, também enviava emissários ao estrangeiro,


a fim de espalharem por esses povos a fama do oráculo e con-
tarem como ele fazia profecias, descobrira escravos fugitivos,
desmascarara ladrões e salteadores, indicava onde estavam
tesouros enterrados, curara doentes e até ressuscitara mortos.
Deste modo, verificava-se grande correria e afluência de gente
vinda de toda a parte, que fazia sacrifícios e ofertas votivas e
pagava em dobro ao profeta e discípulo do deus, pois tinha sido
divulgado um oráculo que dizia:

Ordeno-vos que honreis o meu servo e meu profeta:


prezo mais o meu intérprete que prezo as vossas ofertas.

25. Como, porém, já começavam a insurgir-se contra ele


muitas pessoas de bom senso, como se tivessem saído de uma
profunda embriaguez, entre as quais se contavam sobretudo os
seguidores de Epicuro, e como, pouco e pouco, iam sendo postas
a nu toda aquela charlatanice e encenação teatral, Alexandre lança
296
Outros manuscritos dizem «gordura de cabra».

324
contra eles um espantalho, dizendo que o Ponto estava cheio de
ateus e de cristãos, que ousavam proferir a seu respeito as piores
blasfémias, e aconselhava as pessoas a expulsá-los à pedrada, se
quisessem que o deus lhes fosse propício. Especialmente contra
Epicuro, chegou mesmo a proferir um oráculo do mesmo teor;
e quando alguém lhe perguntava o que é que Epicuro fazia no
reino de Hades, dizia:

De plúmbeas grilhetas carregado, num lodaçal imundo


está jazente.

Depois disto, ainda te admiras com o facto de o seu orá-


culo gozar de grande consideração, ao veres as perguntas tão
inteligentes e eruditas que os visitantes faziam?
Resumindo, tinha declarado a Epicuro uma guerra sem tré-
gua e sem quartel 297, como é fácil de compreender. Sim, a que
outra pessoa é que um charlatão, um amigo da imposturice e
inimicíssimo da verdade, poderia com mais fundamento fazer
guerra, do que a Epicuro, que via claramente a natureza das
coisas e o único que conhecia realmente a verdade? Quanto aos
adeptos de Platão, de Crisipo e de Pitágoras, mantinha com eles
relações de profunda amizade; mas o «indobrável» Epicuro – era
assim que ele o denominava – era o seu pior inimigo, e com
razão, pois punha a ridículo e troçava de todos os seus truques.
Por isso, entre todas as cidades do Ponto, odiava especialmente
Amástris, pois sabia que nessa cidade residiam muitos adeptos
de Lépido e outros da mesma laia que esses. Por isso, nunca
proferiu qualquer oráculo para um amastriense. Quando, numa
ocasião, se atreveu a proferir um oráculo para o irmão de um
senador, teve de se retirar vergonhosamente, por não ter acha-
do298 nem ter podido ele próprio compor um oráculo apropriado
nem ter arranjado quem fosse capaz de lhe fazer um em tempo
oportuno. Foi o caso que o consulente se queixava de uma dor
de estômago; então, querendo receitar-lhe que comesse perna de
porco cozinhada em água de malvas, disse:

297
Literalmente: «não declarada».
298
Entenda-se: já feito. Note-se que Alexandre, como tantos outros,
dispunha de uma vasta colecção de oráculos já redigidos, donde, sem
perda de tempo e de trabalho de elaboração, escolhia o mais apropriado
a cada caso.

325
Tempera com cominhos, em amassadeira sagrada, uma malva de porcos 299.

26. Muitas vezes, como disse atrás, mostrava a serpente a


quem quisesse vê-la, não toda, porém, mas expondo especial-
mente a cauda e o resto do corpo, mantendo-lhe invisível a
cabeça, escondida no sovaco. Ora, querendo maravilhar ainda
mais a multidão, prometeu mostrar o deus a falar e a proferir
oráculos em pessoa e sem a intermediação do profeta. Depois,
cosendo umas às outras, sem a menor dificuldade, traqueias de
grou, fê-las passar por dentro da outra cabeça, aquela que ele
fabricara com muita semelhança; então, respondia às pergun-
tas que lhe faziam, por meio de uma pessoa colocada lá fora a
falar e fazendo passar a voz através daquele Asclépio de pano.
Estes oráculos, denominados autófonos, não eram dados a
toda a gente indiferentemente, mas somente às grandes perso-
nalidades, aos ricos e aos que davam grandes presentes.

27. Por exemplo, o oráculo dado a Severiano 300 a respeito


da invasão da Arménia era um desses oráculos autófonos.
Incitando-o à invasão, disse:

Partos e Arménios vergados à tua lança aguçada,


a Roma regressarás e às nobres águas do Tibre,
ostentando em tua fronte a coroa radiada 301.

Severiano, esse tolo celta, deu-lhe ouvidos e procedeu à


invasão, mas acabou derrotado e despedaçado por Ósroes,
juntamente com o seu exército. Então Alexandre faz desapa-
recer este oráculo do seu arquivo e põe lá outro no seu lugar:

Melhor é que não conduzas as tropas contra os Arménios,


não vá algum inimigo, com seu traje feminino, de seu arco disparar
contra ti golpe funesto, que a vida te arrebate bem como a luz dos
[teus olhos.

299
Vê-se bem o ilogismo... mas era mesmo assim.
300
Governador da Capadócia, invadiu a Arménia em 161 d. C., sendo
completa mente derrotado.
301
Trata-se de uma coroa com uma auréola irradiante; outro tipo era
a coroa de louro.

326
28. Na verdade, tinha imaginado este processo muito esperto,
que consistia em fabricar oráculos posteriores aos factos, a fim
de emendar as previsões que havia feito e que tinham dado
errado. Muitas vezes, antes da morte dos doentes, anunciava-
-lhes a cura, mas, se a pessoa morria, tinha logo ali à mão, já
preparada, outra versão do oráculo:

Não busques nunca remédio para doença fatal:


teu destino está traçado, não poderás evitá-lo.

29. Ora, sabendo que os oráculos de Claro, de Dídimos 302e


de Malo também eram muito apreciados por uma actividade
divinatória idêntica à sua, fazia por torná-los seus amigos,
enviando-lhes muitos consulentes, com estas palavras:

Dirige-te já a Claro, a fim de ouvires meu pai.

Ou então:

Vai ao santuário dos Brânquides e escuta seus oráculos.

E ainda:

Põe-te a caminho de Malo, ouve a palavra de Anfíloco.

30. Tudo isto se passava numa zona que se estendia até à


Jónia, à Cilícia, à Paflagónia e à Galácia. Mas como a fama do
oráculo se propagasse até à Itália e tivesse mesmo invadido a
cidade de Roma, não havia ninguém que não acorresse a ele,
em grande massa, uns em pessoa, outros através de emissá-
rios, especialmente os mais poderosos e os que tinham maior
posição na cidade, o primeiro e mais importante dos quais foi
Rutiliano, varão a todos os títulos ilustre e com provas dadas
em muitas funções da administração romana, mas, no que
respeitava aos deuses, profundamente supersticioso e crente nas
coisas mais disparatadas a seu respeito. Bastava ver em qual-
quer parte uma pedra besuntada com óleo ou adornada com
uma coroa de flores, que logo se punha de joelhos, a adorava
e, assim prostrado durante muito tempo, lhe dirigia preces e
lhe rogava as maiores graças para a sua pessoa.
302
V. Luc., Astr. 23.

327
Ora, este indivíduo, ao ouvir falar de tal oráculo, pouco fal-
tou para abandonar o cargo de que estava investido e voar para
Abonotico. No entanto, enviou emissários atrás de emissários.
Ora estes, pessoas incultas e simples servos, eram facilmente
iludidos e, ao regressarem, contavam não só o que tinham
visto, mas também, como se tivessem visto, aquilo que apenas
tinham ouvido dizer, ainda por cima exagerando muito os
factos, a fim de ficarem bem vistos aos olhos do patrão. Deste
modo, inflamavam o espírito do pobre velho e induziam-no
em forte loucura.

31. Ora, Rutiliano, que tinha muitos e poderosos amigos,


ia-lhes passando a palavra, mas contando não só da forma
como tinha ouvido da boca dos emissários, mas também acres-
centando outras coisas por sua conta. Deste modo, inundou e
agitou a cidade com essas notícias e transtornou a maior parte
das pessoas do seu círculo, que logo se apressaram a ir escutar
pessoalmente o oráculo sobre alguma coisa das suas vidas.
Então Alexandre recebia muito cordialmente os forasteiros
e, por meio de um acolhimento hospitaleiro e de presentes mag-
níficos, fazia-os ficar com boa impressão da sua pessoa, após
o que se despedia deles, que não só iam divulgar as perguntas
[e respostas], mas também glorificavam o deus, chegando até
a mentir a respeito dos milagres operados pelo seu oráculo.

32. Mas o grande patife utilizava ainda um processo nada


mal imaginado, que não lembrava a um criminoso vulgar: se,
ao desenrolar e ler os papiros, previamente amolecidos, deparava
com alguma pergunta melindrosa ou comprometedora para o
consulente 303 , retinha-a em seu poder e não a devolvia, a fim
de, através do medo, manter sob o seu domínio e, digamos
mesmo, em escravidão os que tinham enviado as perguntas,
pelo simples facto de se lembrarem do teor das perguntas que
haviam feito. Podes imaginar304 que perguntas era natural que
os ricos e muito poderosos lhe apresentassem. Assim, recebia
muitas oferendas dessas pessoas, que sabiam muito bem que
ele as tinha na sua rede.

303
para o consulente depreende-se do contexto, como se vê a seguir.
304
Recorde-se que Luciano está a escrever para o seu amigo Celso.

328
33. Agora proponho-me contar-te alguns dos oráculos da-
dos a Rutiliano. Tendo-lhe este perguntado, a respeito de um
filho que tinha tido da anterior esposa e que estava na idade
de ser educado, que mestre lhe indicava para os seus estudos,
respondeu:

Pitágoras e o ilustre aedo de pelejas narrador 305 .

Ora, como o rapaz tivesse morrido passados poucos dias,


Alexandre ficou em apuros, sem saber como responder aos que
o criticavam, pois o oráculo havia sido claramente desmentido.
Mas foi o bom do próprio Rutiliano que veio em defesa do
oráculo, ao dizer que o deus predissera esse acontecimento, e
que por isso mesmo não o aconselhara a escolher para mestre do
rapaz nenhuma personagem viva, mas sim Pitágoras e Homero,
há muito tempo mortos, com os quais, naturalmente, o jovem
estava agora a conviver no reino de Hades. No fundo, poder-
-se-ia censurar Alexandre pelo facto de ele entender por bem
gastar o seu tempo com semelhantes criaturinhas?

34. Uma vez, tendo-lhe perguntado de quem é que ele,


Rutiliano tinha herdado a alma, respondeu:

Primeiro nasceste Peleida, foste em seguida Menandro,


depois o que agora és, serás mais tarde raio de sol,
e oitenta meses lunares viverás, mais outros cem.

No entanto, Rutiliano morreu de figadeira 306 aos setenta


anos, sem esperar pela promessa do deus.
35. Ora, este oráculo era, ainda por cima, autófono.
De outra vez, tendo-lhe Rutiliano feito uma pergunta sobre
o seu próprio casamento, respondeu explicitamente:

Consorcia-te com a filha de Alexandre e de Selene 307.

De facto, Alexandre havia posto a correr a fama de que a


filha que ele tinha nascera da sua relação com Selene. Fora

305
O ilustre aedo narrador de guerras é Homero.
306
Lit.te «de bílis negra», talvez de cirrose; outra possibilidade: «de
loucura», «louco».
307
Selene = Lua. V. infra.

329
o caso que Selene, uma vez, ao contemplá-lo a dormir, ficou
apaixonada por ele, pois era seu costume apaixonar-se pelos
belos adormecidos. Então o inteligentíssimo do Rutiliano,
sem perder tempo, mandou pedir a rapariga em casamento,
celebrou as bodas e – noivo sessentão – teve relações com
ela, invocando a bênção da sua sogra Selene, a quem ofertou
hecatombes completas, cuidando que, deste modo, também
ele se havia tornado um dos deuses celestiais.

36. O mesmo Alexandre, mal se tinha apoderado do negócio


na Itália, logo imaginou projectos cada vez mais ambiciosos:
enviou a todos os cantos do Império Romano portadores de
oráculos, nos quais advertia as cidades a que se prevenissem
contra pestes, incêndios e sismos, prometendo-lhes que as
protegeria eficazmente, de modo que tais calamidades não
ocorressem. Por exemplo, enviou um oráculo, este autófono, a
todas as nações, por ocasião da peste 308 , que dizia assim, em
verso:

Febo de longos cabelos afasta a nuvem da peste.

Por toda a parte se podia ver este verso inscrito nas ombreiras
das portas, como antídoto contra a peste, mas o que é certo é
que ele tinha, na maior parte dos casos, o efeito contrário: por
qualquer acaso, ficaram despovoadas especialmente aquelas
casas em que o verso estava inscrito. Mas não cuides que estou
a afirmar que foi por causa do verso que as pessoas pereceram,
pois isso sucedeu assim por mero acaso, ou talvez, também,
porque muitas pessoas, confiadas nesse verso, se descuidavam
e levavam uma vida muito despreocupada, não ajudando o
oráculo a combater a moléstia, como se considerassem que
essas simples sílabas os defenderiam e que o “Febo de longos
cabelos” afastaria a peste com as suas setas.

37. Na própria Roma, Alexandre pôs como informadores


muitos dos seus cúmplices, que lhe transmitiam os sentimen-
tos das pessoas e lhe anunciavam de antemão as perguntas e,
em especial, o que é que eles pretendiam saber, de forma que
308
Trata-se da peste de 165 d. C., que assolou todo o Império Romano.
Como Luciano escreve esta obra alguns anos (dez?) depois da morte de
Alexandre, podemos datá-la de c. de 175 d. C.

330
estava pronto para dar as respostas, mesmo antes da chegada
dos consulentes.

38. Estas eram as artimanhas que ele executava na Itália.


< E na sua pátria fazia mais ou menos o mesmo >309. Além
disso instituiu uma espécie de mistérios com procissão à luz
de fachos e rituais iniciáticos, que duravam três dias conse-
cutivos. No primeiro dia, era feita uma proclamação, como
em Atenas, pouco mais ou menos nestes termos: “Se algum
ateu, cristão ou epicurista vier aqui no intuito de espiar os nossos
mistérios, que seja escorraçado; e que os fiéis ao deus cumpram os
rituais sob bons auspícios.” E logo tinha início a expulsão, que
ele próprio comandava com estas palavras: “Fora os cristãos!”,
ao que a multidão em peso correspondia bradando: “Fora os
epicuristas!”. Seguidamente, vinha o parto de Latona, o nasci-
mento de Apolo, o casamento de Corónide e o nascimento de
Asclépio. No segundo dia, representava-se a epifania de Glícon
e o nascimento do deus.

39. No terceiro dia, representava-se o casamento de Podalírio


com a mãe de Alexandre. Esse dia era chamado “dos fachos”
[Dadís], pois nele se acendiam fachos [dádes]. Por fim, vinham
os amores de Selene e Alexandre e o nascimento da esposa de
Rutiliano. Naturalmente, quem empunhava o facho e presidia
à cerimónia era Endímion... quer dizer, Alexandre. Enquanto
este, fingia estar a dormir, ali à vista de todos, descia até ele,
vinda lá do tecto, como se descida do céu, não Selene, mas
uma tal Rutília, uma jovem mui formosa, mulher de um dos
intendentes do Imperador, a qual estava verdadeiramente
apaixonada por Alexandre e era correspondida por ele. Então,
perante os olhos do imbecil marido da jovem, passava-se, à vista
de toda a gente, uma cena de beijos e abraços, e, se não fosse
a grande quantidade de fachos, talvez ele consumasse aquele
acto que só se pratica às ocultas. Pouco depois, Alexandre
entrava de novo em cena, ataviado com as vestes sacerdotais
e em profundo silêncio, bradando com voz poderosa: “Ohhh
Glícon!”, enquanto uns pretensos Eumólpidas e uns arautos
Paflagónios, calçados com as suas botifarras e arrotando a alho
respondiam: “Ohhh Alexandre!”.
309
Os manuscritos parecem conter uma lacuna, que alguns editores
tentaram preencher, pelo que o texto, neste ponto, é algo duvidoso.

331
40. Frequentemente, durante a procissão dos fachos e por
entre as cabriolices místicas, deixava ver, propositadamente, a
sua coxa de oiro, provavelmente coberta com uma pele pintada
com tinta dourada e que brilhava ao reflexo dos fachos. Por
isso, tendo, certa vez, dois sabichões mui cretinos levantado a
questão de saber se Alexandre, em vista da coxa de oiro, tinha
também herdado a alma de Pitágoras, ou se apenas tinha uma
alma semelhante à do filósofo, e tendo estes apresentado a per-
gunta ao próprio Alexandre, o rei Glícon resolveu o problema
com este oráculo:

De Pitágoras a alma ora morre ora renasce.


É emanação profética do espírito divino.
O Pai no-la enviou, dos homens bons protectora.
E p’ra Zeus regressará, pelo raio de Zeus atingida.

41. Por outro lado, enquanto advertia toda a gente de que


devia abster-se de relações carnais com rapazinhos, por ser um
acto ímpio, ele próprio – nobre homem! – inventou para seu
uso este artifício: ordenou às cidades do Ponto e da Paflagónia
que, de três em três anos, lhe enviassem ministros do culto,
para virem ao seu santuário entoar hinos em louvor do deus.
Deviam, porém, previamente examinados e seleccionados,
ser enviados os mais nobres, na f lor da juventude e que se
distinguissem por sua formosura. Fechava-se com estes jovens
e utilizava-os como objecto comprado, dormindo com eles e
submetendo-os a todas as suas loucuras. Além disso, estabeleceu
uma lei, segundo a qual ninguém que tivesse mais de dezoito
anos podia aproximar-se dos seus lábios ou beijá-lo na boca;
a esses, dava-lhes a mão a beijar, ao passo que aos mais novos
beijava-os na boca. Por isso, estes eram chamados “os do beijo”.

42. Era assim que ele usava e abusava dos simplórios, cor-
rompendo sem ponta de vergonha as mulheres e abusando
de jovens adolescentes. Mais: os homens consideravam uma
honra muito grande e desejável que Alexandre deitasse os olhos
à esposa de um deles, porquanto, se o profeta achava alguma
delas digna de ser beijada, por certo que isso reverteria em boa
sorte para a sua casa. Muitas mulheres até se vangloriavam de
ter tido um filho dele, e os maridos juravam a pés juntos que
elas falavam verdade.

332
43. Agora quero contar-te um diálogo havido entre Glícon
e um tal Sacerdote natural de Tios 310 , e de cuja inteligência
tu julgarás, a avaliar pelas suas perguntas. Eu próprio li esse
diálogo gravado a letras de oiro, em Tios, na casa de Sacerdote.
«Diz-me lá, Senhor Glícon – perguntou Sacerdote – quem
és tu?»
«Eu – respondeu Alexandre – sou um novo Asclépio, mas
diferente daqueloutro, o primeiro.311»
«Como é isso?»
«Não te é lícito saber tal coisa.312»
«Quanto tempo permanecerás entre nós proferindo oráculos?»
«Três anos e mais mil.»
«E depois para onde te mudarás?»
«Para Bactra e sua região, pois os bárbaros também devem
usufruir da minha presença entre eles.»
«Então e os outros oráculos, como o de Dídimos, o de Claro e o
de Delfos, são inspirados pelo teu pai Apolo, quando proferem os
seus oráculos, ou será que são falsos os oráculos que actualmente
de lá saem?»
«Não queiras conhecer isso, pois não é lícito.»
«Que é que eu serei depois desta vida?»
«Primeiro, camelo; depois, cavalo; e depois, homem sábio e um
profeta não inferior a Alexandre.»
Este foi o teor do diálogo entre Glícon e Sacerdote. E para
terminar, Alexandre proferiu este oráculo em verso, por saber
que Sacerdote era um adepto de Lépido 313:

A Lépido não dês crédito, pois má sorte o acompanha.

De facto, Alexandre, como eu disse atrás, temia grandemente


Epicuro, como adversário e hábil contraditor das suas trapaças.

310
Tios era uma cidade da Paf lagónia. O texto tem o adj. “tiano” =
«(natural) de Tios».
311
Alguns editores consideram a segunda parte uma pergunta de
Sacerdote: «Mas... diferente daqueloutro, o primeiro?». O que se segue
faria parte, naturalmente, da mesma fala: «Como é isso?». Entendo melhor
a versão aqui apresentada.
312
O texto diz: «Não te é lícito ouvir tal coisa».
313
Este Lépido parece ser um filósofo epicurista e, por esse facto, do
total desagrado de Alexandre.

333
44. Assim, fez incorrer num grave risco um certo filósofo
epicurista, que se atreveu a desmascará-lo diante de testemu-
nhas. Foi o caso que, acercando-se de Alexandre, lhe disse
com voz forte: «Foste então tu, Alexandre, que induziste um
certo paflagónio a levar uns criados seus à presença do governador
da Galácia, para que este os condenasse à morte pelo assassinato
do seu filho, estudante em Alexandria? Este, porém, está vivo e
regressou a casa são e salvo, mas já depois da morte dos criados,
lançados às feras por tua causa.» Eis, mais ou menos, como as
coisas se passaram:
Tendo o jovem navegado rio Nilo acima até Clisma 314 , e
como nesse porto estivesse um navio prestes a levantar ferro,
decidiu embarcar nele a caminho da Índia. Ora, como ele
tardasse em aparecer, os desventurados criados, cuidando
que o jovem tinha perecido nas águas do Nilo ou que havia
sido raptado por salteadores (que nesse tempo proliferavam
na região), regressaram, anunciando o seu desaparecimento.
Seguiu-se o tal oráculo e a condenação dos criados, após o que
o jovem apareceu e narrou a viagem que fizera.

45. Assim falou o epicurista. Então Alexandre, irritado por


se ver desmascarado, e não suportando a verdade da crítica,
ordenou aos circunstantes que o apedrejassem, sob pena de serem
tidos por ímpios e lhes chamarem epicuristas. Já eles tinham
começado a atirar pedras, quando um certo Demóstrato, per-
sonalidade importante do Ponto e que por acaso se encontrava
na cidade, acorreu a livrar da morte o filósofo, que por pouco
não era lapidado... e com muita razão315: sim, que é que ele tinha
que se armar em única pessoa sensata no meio de tanta gente
louca, expondo-se a ser vítima da cretinice dos paflagónios?

46. A respeito deste, foi assim que as coisas se passaram.


Depois disso, se por acaso, entre os consulentes chamados pela
ordem em que haviam solicitado os oráculos (os quais eram
redigidos de véspera), havia algum a quem, à pergunta do arauto
se «havia um oráculo para Fulano», Alexandre respondia lá de
dentro «Que vá para o raio que o parta», a esse, daí em diante,
já ninguém o recebia em sua casa nem compartilhava com ele
314
Porto egípcio nas costas do Mar Vermelho, que comunicava com o
Nilo por um canal mandado abrir por Trajano.
315
É evidente que Luciano usa aqui de ironia.

334
do fogo e da água, pelo que se via obrigado a errar de terra em
terra, considerado ímpio, um ateu e... um epicurista –que era
o maior dos vitupérios.

47. A propósito, um acto verdadeiramente ridículo foi este


que Alexandre perpetrou: tendo encontrado os Princípios
Fundamentais 316 de Epicuro, que é, como sabes, o mais belo
dos seus livros e que contém o resumo da doutrina e da sabe-
doria deste grande homem, levou o livro para o meio da praça
pública e queimou-o em toros de figueira, como se estivesse
a queimar o próprio autor, e depois lançou as cinzas ao mar,
pronunciando o oráculo seguinte:

Ordeno seja queimada do velho cego a doutrina.

O malvado ignorava quão grandes benefícios esse livro


proporciona aos que dele se abeiram, quanta paz, quanta tran-
quilidade e quanta liberdade transmite, ao libertar as pessoas
de terrores, fantasmas, prodígios, vãs esperanças e ambições
desmesuradas, mas antes insuflando nelas inteligência e verdade
e purificando verdadeiramente as suas almas, não através de
tochas ardentes, de cila 317 ou charlatanices quejandas, mas sim
através da recta razão, da verdade e da sinceridade.

48. Entre outras audaciosas façanhas deste infame, escuta


lá esta, que é a maior de todas: tendo, pelas boas graças de
Rutiliano, acesso fácil ao palácio e à corte, envia um oráculo
relativo à guerra na Germânia, então no auge, no tempo em
que o divino [Imperador] Marco [Aurélio]318 andava envolvido
em guerra contra os Marcomanos e os Quados. Esse oráculo
preceituava que fossem lançados ao Istro 319 dois leões vivos,
juntamente com uma grande quantidade de perfumes e mag-
níficas oferendas. Mas é melhor citar o próprio oráculo:

316
O título em grego era Kyríai Dóxai.
317
Planta liliácea bolbosa usada em medicina.
318
A palavra divino indica que o imperador já tinha morrido e, por-
tanto, havia passado à categoria divina. Em termos mais profanos significa
«o falecido...».
319
Nome do Danúbio inferior.

335
Na torvelinho do Istro, rio de Zeus originado,
ordeno sejam lançados dois servidores de Cíbele,
feras criadas nos montes, e quantas flores e drogas
cheirosas cultiva o índio. E logo sobrevirá
vitória e grande fama, seguida da doce paz.

Ora, tendo sido tudo isto executado tal como Alexandre


ordenara, sucedeu, porém, que os leões, salvando-se a nado, se
dirigiram para a margem do lado do inimigo, onde os bárbaros
acabaram com eles à paulada, tomando-os por uma espécie
de cães ou de lobos. Imediatamente a seguir, as nossas tropas
sofreram uma terrível derrota, tendo perdido a vida, de uma
assentada, cerca de vinte mil homens320 . Depois, deu-se o caso
de Aquileia 321, em que essa cidade esteve prestes a ser tomada.
Então Alexandre, perante este resultado, citou calmamente
a célebre justificação de Delfos a respeito do oráculo dado a
Creso, dizendo que o deus tinha, sim, vaticinado uma vitória,
mas não declarara se seria a favor dos Romanos ou dos inimigos.

49. Mas já então multidões atrás de multidões acorriam à


cidade de Alexandre, que começava a ficar apinhada de gente
que vinha consultar o oráculo, a tal ponto que a cidade já não
dispunha de víveres em quantidade suficiente. Foi então que
imaginou os chamados «oráculos nocturnos»: recebia os papiros
com as perguntas, dormia sobre eles (assim o afirmava) e depois
respondia às consultas, como se tivesse tido um sonho inspirado
pelo deus. Todavia, as respostas, na sua grande maioria, não
eram claras, mas ambíguas e confusas, sobretudo se via que
o papiro fora selado com especial cuidado 322 . Neste caso, não
querendo correr riscos, escrevia na margem o que primeiro
lhe vinha à cabeça, convencido de que um tal processo con-
dizia perfeitamente com o estilo oracular. Além disso, havia
uns intérpretes designados para estes casos, os quais recebiam
das pessoas que obtinham tais oráculos um pagamento nada
despiciendo pela sua interpretação e explicação. Esta função

320
Este desastre militar e o assalto à cidade de Aquileia deram-se entre
167 e 169 d. C.
321
Cidade da Ístria, ao norte da Itália, junto do Adriático.
322
Esse cuidado indicaria que se tratava de um consulente especial
ou... perigoso.

336
era mesmo objecto de arrematação: cada intérprete pagava a
Alexandre um talento ático 323 .

50. Por vezes, sem que ninguém o consultasse ou lhe man-


dasse pedir, e mesmo sem referência a alguém em especial,
emitia oráculos só para maravilhar os pacóvios, como este,
por exemplo:
Queres saber quem, clandestino, copula com tua esposa.
a bela Caligenia, em teu leito, em tua casa?
É teu criado Protógenes, em quem tanto confiavas.
Este, que antes violavas, toma agora tua esposa,
assim tirando vingança do sumo ultraje sofrido.
Está pronta a droga funesta que eles pra ti destinaram,
pra que não oiças nem vejas os actos que eles praticam.
Hás-de achá-la sob o leito bem próximo da parede,
do lado da cabeceira. A serva Calipso é cúmplice.

Que Demócrito324 não ficaria perturbado ao ouvir citar com


precisão nomes e lugares, mas que, logo a seguir, percebendo
a manigância, repudiaria 325 o oráculo?

52.326 A uma outra pessoa, que não estava presente (e que


nem sequer talvez existisse), disse, em prosa: «Regressa a casa,
pois a pessoa que te enviou foi hoje assassinada pelo seu vizinho
Díocles, com a ajuda dos ladrões Magno, Céler e Búbalo, que já
foram apanhados e estão presos.»

51. Frequentemente, dava consulta mesmo a bárbaros que


se lhe dirigiam na língua materna, em sírio ou em celta, pois

323
O talento não era moeda corrente, mas sim aquilo a que se chama
«moeda de conto». Um talento equivalia a 60 minas ou 6.000 dracmas.
Era uma quantia avultada, que diz bem do lucro que o negócio propor-
cionava a ambas as partes.
324
Demócrito é, em muitos passos da obra de Luciano, o protótipo
do homem racional, que não se deixa enganar por truques de mágicos,
profetas e quejandos.
325
Literalmente, o termo grego significa «cuspir para o chão», em
sinal de repúdio.
326
Embora mantendo a numeração tradicional, muitos editores mo-
dernos aceitam a transposição proposta pelo filólogo Fritzsche: 52 antes
de 51. Em todo o caso, não nos parece que essa transposição seja absolu-
tamente necessária.

337
era fácil 327 encontrar residentes estrangeiros da mesma nação
dos consulentes. Devido a esse facto, era mais longo o tempo
que mediava entre a entrega dos rolos e a resposta do oráculo,
já que, entretanto, havia que tirar o selo com todo o vagar e
cuidadosamente e, depois, encontrar pessoas capazes de traduzir
cada uma das perguntas. Eis um exemplo de um oráculo dado
em língua cítia:

Morphên eubárgoulis eis skián khnekhikrágê leípsei pháos 328 .

53. Ouve agora umas quantas respostas que me foram dadas


a mim próprio. Tendo-lhe eu perguntado se Alexandre era
calvo, este, notando que o rolo estava manifestamente selado
com todo o cuidado, respondeu com um «oráculo nocturno»:

Sabardalakhou malakhaatthalos ên 329.

Noutra ocasião, tendo-lhe eu feito a mesma pergunta – «Donde


era natural o poeta Homero» –, em dois rolos diferentes e sob di-
ferentes nomes, a uma das consultas (enganado pelo meu jovem
criado, que, interrogado para que é que ali vinha, respondera que
era «para pedir a cura de uma dor nas costas»), respondeu:

Besunta-te com unguento330 e espuma de corcel.

À outra consulta (informado pelo meu criado de que o re-


metente perguntava se seria melhor ir à Itália de barco ou por
terra) não respondeu nada que tivesse relação com Homero:

327
Alguns manuscritos têm «não era fácil», o que obrigaria a ajeitar
a frase para «mas não era fácil...». É difícil decidir, porquanto, sendo ou
não fácil encontrar tradutor, a operação de traduzir e responder na mesma
língua sempre levava o seu tempo.
328
Neste texto, reconhecem-se algumas palavras gregas – o que seria
de todo em todo ilógico. Certamente que o texto original de Luciano seria
mesmo em língua cítia, mas, posteriormente, os copistas sucessivos, não
entendendo nada do que estava escrito, tentaram «helenizar» o oráculo.
O sentido parece ser: «Morpen Eubárgoulis irá (?) para as trevas e aban-
donará a luz [do dia]».
329
Texto completamente obscuro. Os manuscritos apresentam textos
muito diferentes.
330
Não é possível determinar de que espécie de unguento se tratava.

338
Não vás por via marinha, viaja por terra seca.

54. Armei-lhe ainda mais algumas ciladas do mesmo género


destas. Por exemplo, tendo-lhe feito uma única pergunta, escrevi,
na parte de fora, como é costume, «de Fulano, oito oráculos», mas
usando nome falso e enviando as respectivas oito dracmas mais os
trocos para perfazer o total331. Então ele, fiado na quantia enviada
para pagamento e no que estava escrito na parte de fora do rolo,
enviou-me, pela única pergunta – «Quando é que Alexandre será
preso por vigarice?» –, oito respostas, que, como sói dizer-se, «não
tinham nada que ver nem com a terra nem com o céu», mas
eram, todas elas, disparatadas e absurdas.
Quando, posteriormente, se apercebeu da minha artimanha
e, além disso, que fora eu quem tentara dissuadir Rutiliano
de se casar com a filha dele e de se apegar excessivamente às
esperanças dadas pelo oráculo, passou, como se esperava, a
odiar-me e a considerar-me o seu pior inimigo. Uma vez, tendo-
-o Rutiliano interrogado a meu respeito da minha, respondeu:

Em relações nocturnas se compraz, e em coitos desonestos.

Numa palavra, eu era, e com razão, o seu pior inimigo.

55. Doutra vez, quando soube que eu tinha chegado à sua


cidade, tendo-se certificado de que eu era o famoso Luciano
(além disso, eu vinha acompanhado de dois soldados, um lan-
ceiro e um frecheiro, designados pelo governador da Capadócia,
então meu amigo, para me escoltarem até ao mar), apressou-se
a mandar-me convidar com muita cortesia e amabilidade. Ao
chegar, encontro-o rodeado de numeroso séquito, mas, por
feliz acaso, eu tinha trazido comigo os soldados. Estendeu-
me a mão direita a beijar, como costumava fazer com a maior
parte das pessoas, mas eu, aproximando os lábios como se fosse
beijá-la, aplico-lhe uma valente mordidela, que por pouco não
lhe arrancou a mão.
Os presentes tentaram esganar-me e espancar-me como
sacrílego, eles que já anteriormente se haviam indignado pelo

331
O preço de cada oráculo era de 1 dracma e 2 óbolos. A dracma
continha 6 óbolos, pelo que os oito oráculos ficavam em 8 dracmas e 16
óbolos, ou seja, 10 dracmas e 4 óbolos. Luciano pagou 8 dracmas com
moedas de 1, 2 ou 4 dracmas, e o restante em óbolos.

339
facto de eu ter tratado Alexandre pelo seu próprio nome, e não
por «Profeta». Ele, porém, suportando corajosamente o golpe,
acalmou as pessoas e prometeu-lhes que facilmente faria de mim
uma pessoa mais cordata e que, desse modo patentearia o poder
de Glícon, que consegue transformar em amigos até mesmo as
pessoas mais violentas. Depois, tendo mandado toda a gente
embora, tentou justificar-se perante mim, dizendo que sabia
muito bem quem eu era e os conselhos que eu dera a Rutiliano.
E acrescentou: «Por que motivo me trataste desta maneira, quando
eu, afinal, até seria capaz de aumentar a tua reputação junto de
Rutiliano?». Aí eu, vendo o perigo em que incorria, aceitei de
bom grado a sua amizade e, passados alguns momentos, apare-
ci em público como seu amigo, facto que a todos pareceu um
milagre, tão rápida foi a minha transformação.
56. Algum tempo depois, como eu decidisse partir (por acaso
acompanhado somente de Xenofonte332 , pois havia previamente
mandado meu pai e outros familiares para Amástris), enviou-
-me lembranças e presentes, juntamente com a promessa de me
fornecer um navio e respectivos remadores para me conduzis-
sem, o que eu considerei um acto sincero e cortês. Chegados,
porém, a meio da viagem, vendo o piloto a chorar e a discutir
junto dos remadores, foram-se-me as boas perspectivas de fu-
turo: era evidente que tinham recebido ordens de Alexandre
no sentido de pegarem em nós e nos lançarem ao mar, o que,
a ter sucedido, seria a forma mais fácil de acabar com a guerra
entre nós. Por fim, o piloto, com as suas lágrimas, convenceu
os companheiros a que não nos fizessem mal. E disse-me ele:
«Tenho sessenta anos, como vês; ora, tendo chegado a esta idade
levando sempre uma vida irrepreensível e pura, não quereria,
na minha idade e com mulher e filhos, manchar as minhas mãos
com um homicídio.». E confessou a intenção com que nos havia
embarcado e as ordens que recebera de Alexandre.

57. Depois desembarcou-nos em Egíalos333, mencionada pelo


bom do Homero, e voltaram todos para trás.
Ali, encontrei umas pessoas do Bósforo que navegavam ao
longo da costa; eram delegados do rei Êupator, que se dirigiam à
Bitínia a fim de cobrarem o tributo anual. Contei-lhes o perigo
que havíamos corrido, e eles, mostrando-se muito simpáticos
332
Supõe-se que seria um criado de confiança.
333
Nas costas da Paf lagónia.

340
receberam-nos no navio e conduziram-nos sãos e salvos até
Amástris, depois de ter estado tão perto de perder a vida.
Desse momento em diante, declarei guerra a Alexandre e
movi todos os cordelinhos 334 no intuito de me vingar, eu que
já antes desta emboscada o odiava e o considerava meu grande
inimigo mortal, devido à vileza do seu carácter. Assim, avancei
com um processo contra ele, secundado por muitos companhei-
ros de luta, nomeadamente os adeptos do filósofo Timócrates
de Heracleia. Foi então que Avito 335, ao tempo governador da
Bitínia e do Ponto, me refreou, pouco faltando para me rogar e
implorar que desistisse do processo, dizendo que, devido às suas
relações de amizade com Rutiliano, não poderia punir Alexandre,
mesmo que se provasse claramente que ele era culpado. Assim,
contive o meu impulso e desisti daquela temeridade nada opor-
tuna, tratando-se de um juiz com tal predisposição.

58. Foi ou não foi, entre outros, um grande descaramento por


parte de Alexandre, aquele de ter requerido ao Imperador que
mudasse o nome da cidade de Abonotico, para passar a chamar-
-se Ionópois? Ou de cunhar uma nova moeda com a imagem de
Glícon numa face e, na outra, a de Alexandre cingindo a coroa
do seu antepassado Asclépio e a famosa cimitarra de Perseu, seu
ascendente por parte da mãe336?

59. Embora tivesse vaticinado, em oráculo sobre a sua pessoa,


que estava destinado a viver cento e cinquenta anos e que, em
seguida, morreria atingido por um raio, morreu de morte miserável
quando ainda não tinha completado setenta anos, como filho que
era de Podalírio, com uma perna completamente apodrecida até
à virilha e fervilhando de vermes. Foi então que se descobriu que
ele era calvo, pois, por causa das dores, teve de descobrir a cabeça
perante os médicos, a fim de lhe aplicarem uma loção, operação
impossível de executar sem lhe retirarem a peruca.

60. Foi este o desenlace da tragédia de Alexandre, foi este o triste


epílogo de toda a peça, que parece mesmo obra da Providência,

334
O texto diz «todos os cabos» ou «todas as cordas», mas o sentido é,
em grego como em português, metafórico.
335
Lúcio Loliano Avito foi governador da Bitínia em 165 d. C.
336
V. §11.

341
muito embora se tenha devido ao acaso337. Depois, havia que
lhe fazer um funeral digno da sua vida e abrir concurso para a
sua sucessão no oráculo, pelo que os cúmplices e charlatães mais
importantes se dirigiram a Rutiliano a fim de que este, na quali-
dade de árbitro, decidisse qual deles havia de ser escolhido para
lhe suceder no oráculo e ser coroado com a coroa de sacerdote e
profeta. Ora, havia entre eles um tal Peto, médico de sua profissão,
já de cabelos grisalhos, que se comportava de maneira indigna
quer de um médico quer de um velho. Todavia, Rutiliano, juiz
do concurso, despediu-os a todos, sem lhes outorgar a coroa da
vitória, mantendo para Alexandre o lugar de profeta, mesmo
depois da sua morte.

61. O que aqui fica, meu caro amigo, é apenas uma pequena
parte, que, a título de amostra, tive por bem escrever, não só
para te ser agradável, como meu companheiro e amigo, que eu
muito admiro entre todos, pela tua sabedoria, pelo teu amor da
verdade, pela doçura do teu carácter, teu sentido de equidade,
serenidade na vida e gentileza com aqueles que te visitam, mas
especialmente – coisa que te é sumamente grata – no intuito de
vingar Epicuro, homem realmente santo e de natureza divina, o
único que conheceu de ciência certa o sumo bem e o transmitiu,
esse libertador dos que com ele convivem. Também estou convicto
de que os leitores encontrarão algo de útil neste meu escrito, que,
por um lado, desmascara imposturices, e, por outro, consolida
as convicções das pessoas de bom senso.

337
Luciano expõe aqui uma ideia dos atomistas (Demócrito, Epicuro...),
materialistas convictos, que defendiam a ideia de que os deuses, se existem,
não se ocupam das coisas humanas. O conceito de acaso (juntamente com
o de vazio e a constituição atómica da matéria) é um dos princípios dos
atomistas e epicuristas.

342
PRONTUÁRIO MITOLÓGICO
(Página deixada propositadamente em branco)
PRONTUÁRIO MITOLÓGICO

NOTA — Naturalmente, a informação que se segue está reduzida ao


mínimo indispensável. O leitor interessado em mais pormenores deve
recorrer a obras da especialidade, nomeadamente:

— LAVEDAN, P., Dictionnaire illustré de la mythologie et des antiqui-


tés grecques et romaines. Paris, Hachette.
— VARII, The Oxford Classical Dictionary. Oxford, Clarendon Press,
— HARVEY, P., The Oxford Companion to Classical Literature. Ox-
ford, Clarendon Press.
— CROON, J. H., Encyclopédie de l’antiquité classique. Paris-Bruxe-
las, Éditions Sequoia.
— SCHMIDT, J., Dicionário de Mitologia Grega e Romana. Lisboa,
Edições 70, tradução de João Domingos.
— GRIMAL, P., Dicionário da Mitologia Grega e Romana. Ed. Difel,
4ª ed., 2004. Tradução de Victor Jabouille et alii.
— PINHEIRO, Marília P. Futre, Mitos e Lendas — Grécia Antiga.
Vol. I, Lisboa, “Livros e Livros”, 2007

345
SIGLAS:

AFP – Alexandre ou O Falso Profeta DDM – Diálogos dos Deuses Marinhos


BI – O Bibliómano Ignorante DM – Diálogos dos Mortos
DC – Diálogos das Cortesãs SVL – O Sonho ou Vida de Luciano
DD – Diálogos dos Deuses
ACTÉON (DD 16) — Filho de Aristeu e de cuja relação nasceu Eneias. Mãe
de Autónoe. Grande caçador. Um de Eros (11,1; 12; 19); de Herma-
dia, surpreendeu por acaso Árte- frodito, Eros e Priapo (15,2; 23,1);
mis a tomar banho. Então a deusa, amante de Ares, apanhada em fla-
irritada, metamorfoseou-o em vea- grante por artimanha de Hefesto,
do; sob esta forma, foi despedaça- seu legítimo esposo (15,3); vence-
do pelos seus próprios cães. dora do concurso de beleza com
Hera e Atena.
ADÓNIS (DC 7; DD 11) — Um dos gran-
des símbolos da beleza masculina. ALCMENA (DD 24; DM 16) — Esposa
Filho da princesa assíria Mirra e do de Anfitrião, foi amada por Zeus,
seu próprio avô materno. Sua mãe, de cuja união nasceu Héracles.
envergonhada, transformou-se em
ÂMICO (DD 26) — Rei da Bebrícia (país
árvore, de cuja casca, passado o
mal identificado); v. BÉBRICE.
tempo de gravidez, brotou o for-
moso menino Adónis, logo recolhi- Amor: v. EROS
do por Afrodite, que se apaixonou
ANQUISES (DD 11; 20) — Amado por
por ele e o guardou num cofre, mas
Afrodite, dessa união nasceu Eneias.
teve a triste ideia de o dar a guar-
dar a Perséfone, rainha do Hades, ANTÍOPE (DD 24) — Amada de Zeus,
a qual, também encantada com a que a seduziu disfarçado de sátiro.
formosura do menino, se recusou APOLO (DD 2; 7; 14; 15; 16; 17; 19; 23;
a devolvê-lo. Então Zeus, chama- 26 | DDM 7 | DM 20 | BI 9; 11 |
do a arbitrar o caso, decidiu que o AFP 10; 13; 14; 38; 43) — Um
menino pertenceria quatro meses a dos grandes deuses gregos. Se-
cada uma das deusas, ficando os res- gundo a lenda, nasceu na ilha de
tantes quatro meses em completa li- Delos, tal como sua irmã gémea
berdade, mas Adónis concedeu este Ártemis. Tinha importantes san-
tempo a Afrodite, pelo que passava tuários em Claro, em Cólofon e
um terço da vida no reino de Hades em Dídimos e — o mais famoso
e dois terços no Olimpo. Foi mor- — em Delfos, onde em sua hon-
to por um javali, quando andava a ra se celebravam os Jogos Píticos.
caçar. Além de ser um dos símbolos Deus curandeiro, é pai de Asclépio
da beleza, também representa a luta (q. v.). Amante infeliz de Dafne e
entre as forças da vida e da morte. Jacinto (q. v.); grande atirador ao
AFRODITE (DC 3; 5; 5; 11; 14 | DD 7; arco, tocador de cítara, médico,
11; 12; 15; 17; 19; 20; 23 | DM 1; adivinho; (16,1).
7; 9; 15) (lat. Vénus) — Deusa do ARES (lat. Marte) (DD 7; 12; 15; 17;
amor, da beleza e da fecundidade, 19; 20; 21) — Deus da guerra,
de origem oriental, mas adoptada amante de Afrodite, foi apanha-
pelos Gregos como uma das suas do em pleno acto de adultério
principais divindades, cujo nome pelo marido de Afrodite, Hefes-
entendiam como «nascida da es- to... que se fartou de rir, junta-
puma das ondas»; esposa de He- mente com os outros deuses que
festo; amou o troiano Anquises, assistiam à cena do casalinho en-

347
rodilhado numa rede bem mon- ÁTIS (DD 12) — Companheiro de Cíbele
tada (17). (a Deusa-Mãe) e participante nos
seus mistérios. Foi amado pela ve-
ARGOS (DD 3; 20) — Gigante com cem
lha deusa Reia.
olhos (ou quatro: dois à frente e
dois atrás), a quem, por isso mes- Baco: v. DIONISO
mo, foi confiado a guarda de Io
BÉBRICE (DD 26) — nome comum: «bé-
(v.). Foi morto por Hermes, que,
brice», «da Bebrícia»; andrónimo:
depois de o ter adormecido ao
Bébrice, filho de Âmico, rei da
som da flauta, lhe cortou a ca-
Bebrícia.
beça.
BRANCO (DD 2) — Filho (e sacerdote)
ÁRTEMIS (lat. Diana) (DD 16; 19; 23;
de Apolo.
26) — Irmã gémea de Apolo.
Deusa da natureza e da caça, BRIAREU (DD 21) — Gigante de cem
mas também protectora das par- braços, lutou ao lado de Zeus con-
turientes. «É varonil para lá da tra os Titãs.
medida, muito amiga de andar pe-
CADMO (DD 9; 24) — Neto de Posídon,
los montes e, para concluir, quando
filho de Agenor; herói de origem
vai à Cítia, toda a gente sabe como
fenícia, parte à procura de sua irmã
ela mata e devora estrangeiros».
Europa, raptada por Zeus. Depois
ASCLÉPIO (Esculápio) (DD 13; 26 | de muito procurar, chega à Beócia,
AFP 10; 13-15; 26; 38; 43; 58) onde funda Tebas, de que se tor-
— Herói tessálico, que os Gregos nou rei. Casado com Harmonia,
fizeram deus da medicina, dando- filha de Ares, dessa união nasce-
-lhe, como paternidade adequada, ram diversos filhos, entre os quais
precisamente Apolo. A sua arte Sémele, mãe de Dioniso. Passa por
era tal, que chegava a ressuscitar ser o inventor do alfabeto (pela sua
mortos, o que irritou sumamen- origem fenícia) e da metalurgia.
te Zeus, que o atingiu com o seu
CÁRITE(S) (lat. Graças) (DD 15; 20) —
raio. Tinha um grande número de
Filhas de Zeus, personificam o ide-
santuários em toda a Grécia (Pau-
al de graça, delicadeza e perfeição:
sânias fala de 63), o mais famoso
Eufrósine («alegria»), Aglaia («bri-
dos quais era o de Epidauro.
lho») e Talia («florescente»).
ATENA (lat. Minerva) (DC 7; 9 | DD 9;
CASTOR E PÓLUX (DD 26) — Leda,
19; 20; 21 | DDM 7; 14 | DM
esposa de Tíndaro, rei de Esparta,
29) — Nascida da cabeça de
teve uma união com Zeus, que a
Zeus, armada e equipada (9), é
seduziu sob a forma de cisne. Des-
a deusa das artes e da filosofia e
sa relação nasceram dois... ovos: de
protectora de Atenas. Deu aos
um deles, saíram Helena e Pólux,
homens o precioso presente da
e do outro Castor e Clitemnestra.
oliveira. Também deusa guer-
Pólux, distinguiu-se na luta, sobre-
reira, que, sob o nome de Níkê,
tudo no pugilato, e Castor era um
«Vitória», favorecia quem a invo-
exímio domador de cavalos. Protec-
casse.
tores dos homens, sobretudo como

348
salvadores de náufragos. Quando numa prisão, bem preservada do
chegou a hora de Castor morrer, mundo exterior, mas Zeus conse-
Pólux, desde o nascimento dotado guiu lá entrar sob a forma de chuva
da imortalidade, fica inconsolável de oiro... e Dánae foi mãe de Per-
com o destino do irmão, mas é-lhe seu... ...
concedida a graça de partilharem as
DEJANIRA (DD 13) — Esposa de Héracles
duas situações: alternadamente, um
está no reino de Hades, e o outro Delfos: v. APOLO
encontra-se no Olimpo.
Diana: v. ÁRTEMIS
Claro(s): v. APOLO
Dídimos: v. APOLO
CLÍMENE (DD 12; 25) — Uma das Oce-
DIONISO (Baco) (DD 2; 9; 18; 22; 23 |
ânides. Da sua união com Hélio
DDM 5-6 | DM 14 | BI 11)— Fi-
nasceu Faetonte, jovem impru-
lho de Zeus e de Sémele, mas, como
dente a quem seu pai, ainda mais
esta tivesse morrido antes do seu
imprudente, emprestou o carro
nascimento (v. SÉMELE), Zeus in-
puxado por fogosos cavalos.
troduziu o feto na coxa, até que se
Cólofon: v. APOLO cumprisse o tempo necessário para o
nascimento. Deus da vinha e do vi-
CORIBANTES (DD 12) — Sacerdotes de
nho, da arruaça e da desordem, anda
Cíbele, participavam em ritos de
sempre acompanhado das Ménades,
mistério e orgiásticos. Represen-
das Bacantes e dos Centauros, Sátiros
tam as forças irracionais.
e Silenos. Dioniso represente a força
CRONOS (DD 9) — O maior dos Titãs, irracional, o pulsar da natureza bruta,
pai de Zeus, que engolia os filhos por oposição ao pensamento racio-
à nascença. Zeus, porém, escapou, nal e à ordem universal representada
pois sua mãe escondeu-o. Mais por Apolo.
tarde, revoltou-se contra o pai e
DÓRIDE (DÓRIS) — 1. (DDM 1; 12;
ocupou-lhe o trono.
14) Filha de Oceano, esposa de
Cupido: v. EROS Nereu, donde é mãe das Nereides. |
2. (DC 2) Nome duma cortesã | 3.
DAFNE (DD 2; 14-16 | DM 28) — Bela
(BI 15) Esposa de Dioniso, tirano
ninfa, amada por Apolo, que a per-
de Siracusa
seguiu longamente. Vendo-se qua-
se apanhada, gritou por sua mãe, ECO (DD 22; DDM 1) — Ninfa, apai-
Terra, tendo-se logo transformado xonada pelo belo Narciso, mas não
em loureiro (gr. d£fnh), planta correspondida, definhou de des-
que passa a ser o símbolo e o pré- gosto. O seu corpo, reduzido a um
mio da vitória. fantasma, habita em grutas e nas
montanhas, onde não fala, mas só
DÁNAE (DD 24 | DDM 14) — Filha
responde a quem se lhe dirige, mas
única de Acrísio, rei de Argos. Um
apenas repetindo a última sílaba.
oráculo declarou que Dánae daria
à luz um filho que haveria matar o ENDÍMION (DD 11; AFP 39) — Jovem
avô. Então Acrísio encerrou a filha pastor por quem Selene (a Lua) se

349
apaixonou, não se fartando de o dois irmãos. Desposou Perséfone
contemplar enquanto ele dormia. (Prosérpina). Diz-se o reino de
Hades ou o Hades para designar o
EROS (lat. Amor, Cupido) (DD 2; 4; 7;
Inferno.
12; 19; 23 | DM 19; 26) — Filho
de Afrodite e de Ares, suscita a HEBE (DD 5 | DM 16) — Deusa da ju-
paixão irresistível de deuses e hu- ventude, era a copeira dos deuses
manos, por meio de setas com que olímpicos, mas, após o seu casa-
atinge o coração das vítimas. mento com Héracles, foi substi-
tuída nessa função por Ganimedes
Esculápio: v. ASCLÉPIO
HEFESTO (DD 1; 5; 7; 8; 15-17 | DDM
GALATEIA (DDM 1) — Filha de Dóride
10) — Filho de Zeus e de Hera.
e de Nereu.
Ferreiro dos deuses, para quem fa-
GANIMEDES (DD 4; 5; 6; 9; 20) — bricava armas e outros engenhos.
Príncipe troiano, foi escolhido por Tenta libertar sua mãe, que, jun-
Zeus para ser seu escanção (em tamente com outras deusas, havia
substituição de Hebe) e seu aman- participado numa conspiração
te. Segundo uma versão, Zeus en- contra Zeus, pelo que este o preci-
viou uma águia para o raptar; ou- pita do alto do Olimpo, indo cair
tra versão diz que o próprio Zeus no mar, onde foi recolhido por
se disfarçou de águia. Tétis. Devido a essa queda, ficou
coxo, a juntar ao facto de já ser feio
Gárgaro: v. Ida, monte
por natureza e, pelo ofício, andar
GÓRGONA(S) (DD 19; DDM 14) — Se- sempre sujo e enfarruscado. Os
res de aspecto monstruoso e ater- Gregos situavam a sua oficina na
rador, eram três irmãs — Esteno, ilha de Lemnos. Desposou Afro-
Euríale e Medusa. Esta última, a dite, a qual, no entanto, preferiu
mais famosa, é por vezes designada sempre o esbelto Ares. Hefesto
por a Górgona (por excelência). É armou-lhes uma rede, que os en-
representada com serpentes enle- volveu no leito, em pleno acto
adas nos cabelos, dentes longos e amoroso (17). Foi Hefesto que,
aguçados como os de um javali; o por ordem de Zeus, rachou com
seu olhar petrifica quem a fixa. | um machado a cabeça do Olím-
Cortesã: DC 1 pico, donde brotou Atena (13).
Graça(s): v. CÁRITE(S) Eventualmente, também servia de
copeiro dos deuses.
HADES ou PLUTÃO (Hades: DD 6; 7;
24 | DM 4; 10; 13; 16; 17; 20; HÉLIO (DD 10; 12; 17; 25) — O Sol ou
25; 26 | AFP 25; 33; Plutão: DD o Deus-Sol, percorre todos os dias
24; DM 2; 5; 6; 16; 20; 22; 23) a Terra no seu carro de oiro puxa-
— Rei do reino inferior (Inferno), do por quatro fogosos cavalos. Um
irmão de Posídon (rei dos mares) dia, confiou o governo do carro a
e de Zeus (soberano celeste), que, seu filho Faetonte, que, por insen-
depois da vitória sobre os Titãs, satez e falta de experiência, ora se
repartiu o universo com esses seus aproximava da Terra, ora se afasta-

350
va, causando os maiores prejuízos, rainha das Amazonas; 10: roubou
pelo que Zeus teve de intervir, os bois de Gérion, gigante de três
atingindo o jovem com os seus corpos, ajudado por um cão de
temíveis raios (25). Uma vez, em duas cabeças; 11: roubou as maçãs
que Zeus precisava de uma noite de ouro do jardim das Hespérides;
três vezes mais longa, a fim de estar 12: capturou Cérbero, o cão do
com a bela Alcmena, legítima es- reino de Hades. v. 13...
posa de Anfitrião, recebeu ordem
Hércules: v. HÉRACLES
de retardar a marcha.
HERMAFRODITO (DD 15; 23) — Fi-
HERA (SVL 8 | DD 3; 5; 6; 9; 16; 18; 20;
lho de Hermes e de Afrodite
21 | DDM 7; 9; 11 | DM 28) —
Esposa de Zeus, ciumenta (com HERMES (DD 3; 4; 9; 10; 14; 15; 17; 20-
toda a razão) e vingativa. V. IO (3; 22; 24; 26 | DDM 7; 11 | DM 4;
5); Num concurso de beleza entre 5; 10; 18; 22; 23; 27; 30) — Filho
Hera, Atena e Afrodite, o juiz Páris de Zeus e da ninfa Maia. Menino
atribui a vitória a esta última. prodígio, cometeu, ainda bebé,
façanhas admiráveis: rouba o gado
HÉRACLES (lat. Hércules) (SVL 17 | DD
de Apolo e inventa a lira de sete
13 | DM 14; 15; 16; 23 | BI 5; 23
cordas. Entre outras funções, é
| AFP 4) — Filho de Alcmena,
mensageiro dos deuses e condutor
esposa de Anfitrião, e de Zeus,
das almas para o reino de Hades.
é o mais célebre, o mais forte e
o mais valente dos heróis. Antes HIMENEU (DD 20) — Filho de Afrodite
de tomar lugar entre os imortais, e de Dioniso, é a divindade que
teve de desempenhar tarefas ex- preside à união dos amantes, após
tremamente perigosas (os «doze casamento legal, ao contrário de
trabalhos») impostos por Eristeu, Eros.
rei de Micenas. 1-2: mata o leão
HÍMERO (DD 20) — Irmão de Eros, am-
de Nemeia e a hidra de Lerna; 3-4:
bos filhos de Afrodite. Personifica-
captura do javali de Erimanto e
ção do desejo apaixonado.
da corça de pernas de bronze de
Ártemis; 5: extermina as aves do HIPNO (Sono) (DD 10) — Filho da Noi-
lago de Estínfalo, com bicos garras te, irmão gémeo da Morte (10.2).
e penas de bronze e consagradas a ICÁRIO (DD 18; 21) — Pai de Penélope
Ares; 6: limpeza dos estábulos de de Esparta, foi morto pelos seus
Áugias, que continha três mil bois, companheiros embriagados.
e que Héracles só conseguiu lim-
par, desviando para aí os rios Alfeu ÍNACO — v. IO.
e Peneu; 7: captura do touro que IO (DD 3) — Filha de Ínaco, um das mais
assolava a ilha de Creta; 8: captura célebres amores de Zeus e, por
das éguas de Diomedes, rei da Trá- isso, odiada por Hera, que a trans-
cia, que lançavam fogo pelas nari- formou em vitela e pôs a guardá-la
nas e eram alimentadas com carne o monstro Argos, que tinha cem
humana; 9: obtém para Eristeu olhos, metade dos quais estava
a maravilhosa cinta de Hipólita, sempre vigilante. Hermes, porém,

351
por ordem de Zeus, conseguiu LETO: v. LATONA.
adormecê-lo ao som da flauta e
Lua: v. SELENE
cortou-lhe a cabeça.
MAIA (DD 7; 22; 24) — Ninfa, a mais
IXÍON (DD 6) — Rei dos Lápitas, povo
velha das Plêiades, foi amada de
selvagem da Tessália. Admitido no
Zeus, de cuja união nasceu Her-
banquete dos deuses, tentou sedu-
mes.
zir Hera, esposa de Zeus, pelo que
este o condenou a ser amarrado MÁRSIAS (DD 16 | BI 5) — Um sátiro,
a uma roda que girava continua- grande tocador de flauta (algumas
mente. lendas consideram-no seu inven-
tor), desafia Apolo para competir
JACINTO (DD 2; 14; 15 | DM 18) —
consigo com a cítara. Os juízes,
Formoso jovem amado por Apolo.
numa votação quase unânime, de-
Numa sessão de treino de lança-
ram a vitória a Apolo, que esfolou
mento do disco, o projéctil lan-
vivo o seu adversário.
çado por Apolo foi desviado por
Zéfiro (personificação de um ven- Marte: v. ARES
to), que também amava o jovem,
MÉNADES (DD 2; 22) — Ninfas agres-
atingindo-o mortalmente. Apolo
tes, às quais Hermes confiou Dio-
e Afrodite deram sepultura ao jo-
niso, fazem parte do séquito baru-
vem, de cujo sangue fizeram uma
lhento e orgiástico deste deus.
flor com o seu nome, e em cujas
pétalas os antigos viam as letras MENELAU (DD 20 | DDM 4 |DM 19)
AIAI (interj. a„ a„). — Esposo de Helena, a qual foi
raptada por Páris, facto que deu
JÁPETO (DD 2; 7) — Divindade antiquís-
origem à guerra de Tróia.
sima, um dos Titãs, pai de Prome-
teu e de Epimeteu. Símbolo da ve- Mercúrio: v. HERMES
lhice: «mais velho que Jápeto». Minerva: v. ATENA
JASÃO (DD 16) — Chefe dos argonautas MOMO (DD 20) — Deus da troça, pu-
em busca do velo de oiro. nha defeito em tudo.
Juno: v. HERA MUSAS (DD 16; 19 | DDM 7 | BI 3; 8)
Júpiter: v. ZEUS — Filhas de Zeus e de Mnemósine
(«Memória»). Habitam o Hélicon
LATONA (designação latina usual, = gr.
e o Parnaso, onde, dirigidas por
Leto) (AFP 38) — Mãe de Apolo
Apolo, executavam a música e o
e de Ártemis.
canto. São nove irmãs, todas de-
LEDA (DD 20; 24; 26 | DM 18) — Espo- dicadas às coisas do espírito, mais
sa de Tíndaro, rei de Esparta. Foi tarde repartidas por diversas espe-
amada por Zeus, que lhe apareceu cialidades: história (Clio), poesia
sob a forma de cisne, pelo que teve lírica (Euterpe), poesia elegíaca
quatro filhos, nascidos de dois (Érato), poesia épica (Calíope),
ovos: Helena e Pólux, e Castor e tragédia (Melpómene), comédia
Clitemnestra. (Talia), dança e canto (Terpsícora),

352
hinos e, mais tarde, mimo (Polím- concurso de beleza que envolveu
nia) e astronomia (Urânia). Hera, Atena e Afrodite, à qual atri-
buiu a vitória, em troca do que a
Neptuno: v. POSÍDON
deusa do amor lhe proporcionou o
NEREIDA(S) (DD 1 | DDM 3; 6; 7; 10; rapto de Helena, esposa de Mene-
14) — As cinquenta filhas do deus lau, facto que originou a guerra de
marinho Nereu. As mais famosas Tróia.
são Aretusa, Galateia e Tétis, mãe
PÉAN — (v. APOLO...)
de Aquiles.
PELÓPIDAS (DD 20) — Descendentes
NEREU (V. Dóride, Galateia, Nereidas)
de Pélops (Menelau, Agamém-
— Filho de Ponto e de Geia, ma-
non...).
rido de Dóride e pai das Nereides.
PENÉLOPE (DC 12 | DD 22) — Filha de
NINFAS (DD 9) — Divindades concebi-
Icário, esposa de Ulisses. Segundo
das em forma de belas jovens «noi-
Luciano (D. D., 22,1-2), da sua
vas». Personificação das fontes,
união com Hermes nasceu Pã.
nascentes, rios, florestas e monta-
nhas... PERSÉFONE (lat. Prosérpina) (DD 11
|DM 23) — Esposa de Hades
NÍOBE (SVL 14 | DD 16) — Filha de Tân-
(Plutão), rainha do Inferno.
talo, teve sete filhas e sete filhos, de
quem estava orgulhosa, demasiado PIRÍTOO (DD 6) — Um dos centauros,
orgulhosa para o «gosto» dos deu- rei dos Lápitas, tentou raptar Per-
ses, muito especialmente de Apolo séfone do reino de Hades, onde
e Ártemis, que mataram, primeiro, acabou por ficar preso. Foi liberta-
os sete rapazes e, a seguir, as sete do pelo seu amigo Héracles.
raparigas, que haviam acorrido aos
PÍTIS (DD 22) — ninfa amada por Pã.
gritos dos irmãos. De tanto chorar
a perda dos filhos, Níobe desfez-se PLUTÃO: v. HADES
em lágrimas.
PÓLUX: v. CASTOR E PÓLUX
ÔNFALE (DD 13) — Rainha da Lídia,
POSÍDON (DC 14:juramento; DD 7; 9;
em cuja corte Héracles cumpriu
19; 21; 26 | DDM 1; 2; 3; 5; 6; 7;
um período de escravatura, duran-
8; 9; 13; 15) — Deus dos mares,
te o qual herói limpou o país de
irmão de Zeus e de Hades (Plu-
bandidos que o assolavam.
tão), pai do ciclope Polifemo. É
PÃ (DD 4; 22) — Divindade originária representado com o tridente e cer-
da Arcádia. Filho de Hermes e de cado de golfinhos.
uma de várias... mães (Cilena, Drí-
POTO (DD 20) — (PÒqoj)
ope, ou Penélope de Esparta: 22,
1-2). A iconografia apresenta-o PRÍAMO (DD 20 | DDM 7) — Rei de
com cornos e pés de bode. Tróia no tempo da célebre guerra.
Pai de Páris e de Heitor.
PÁRIS (ou Alexandre) (DD 20 | DM 19)
— Filho do rei de Tróia, Príamo, PRIAPO (DD 23) — Deus da fecundida-
foi o juiz, indicado por Zeus, do de, originário de Lâmpsaco, nas

353
margens do Mar Negro. Ao prin- gerado da sua união com Zeus,
cípio, representado por um falo, que a assediou sob a forma de chu-
foi-lhe posteriormente acrescenta- va. Tendo-lhe ela, um dia, pedido
do um corpo. É dado como filho que o deixasse ver em toda a sua
de Afrodite (ou de uma ninfa). Em grandeza, Zeus acedeu, mas Séme-
Roma, era o guarda das hortas, exi- le não resistiu e morreu fulminada
bindo dois temíveis apêndices: o pelo raio, com o feto dentro de si,
falo e a foice. que Zeus introduziu na própria
coxa, até perfazer o tempo de ges-
PROMETEU (DD 1) — «Aquele que pen-
tação.
sa antes», «o previdente», irmão de
Epimeteu «aquele que pensa de- Sol: v. HÉLIO
pois». Um dos Titãs, lutou ao lado
TÁRTARO (DD 19) — A região mais
de Zeus na guerra e conspiração
profunda do Inferno, onde eram
dos gigantes. Criador do homem,
lançados os maiores criminosos,
por ele modelado em barro, torna-
como Tântalo, Sísifo e outros.
-se o patrono dos oleiros. Benfeitor
da Humanidade, roubou o fogo TESEU (DD 20) — Filho de Egeu, rei de
aos deuses para o entregar aos ho- Atenas (ou de Posídon), é o herói
mens, ensinou-lhes o alfabeto e a de Atenas por excelência, come-
aritmética, a metalurgia, etc., pelo tendo feitos que o tornam quase
que foi duramente castigado por igual a Héracles. A sua maior fa-
Zeus, que ordenou que o amarras- çanha teve lugar em Creta, onde
sem num rochedo do Cáucaso... venceu o Minotauro.

Prosérpina: v. PERSÉFONE TÉTIS (DC 13 | DD 1; 21 | DDN 7; 10;


12 | DM 29) — A mais famosa
PROTEU (DDM 4) — Filho de Posídon
das nereidas (filhas de Nereu), aju-
e de Tétis. Transformava-se em di-
dou Zeus a jugular uma conspi-
versos monstros e até em água e
ração tramada por Hera, Posídon
fogo | Filósofo cínico (BI 14)
e Atena, chamando em socorro
REIA (DD 10; 12; 19) — Velha deusa do de Zeus Briareu, gigante de cem
grupo dos Titãs, por vezes confun- braços. (21,2). Desposou o mortal
dida com Gê (Terra»), e também, Peleu, de cuja união nasceu o herói
mais tarde, com Cíbele. Esposa de Aquiles.
Cronos (10,2). Apaixona-se por
TITÃS (DD 25) — Divindades primitivas,
Átis.
filhos de Úrano (o Céu) e de Gê
SELENE (Lua) (DD 10; 11; 12 | AFP 35; (a Terra), eram (segundo Hesíodo)
39) — Irmã de Hélio, o Sol, tam- doze, seis de cada sexo: Oceano,
bém por vezes identificada com Ceos (Koios), Jápeto, Crono, Crio,
Ártemis. Apaixonada pelo jovem Hiperíon; Teia, Reia, Témis, Febe,
Endímion, que gostava de surpre- Mnemósine e Tétis (Téthys: não
ender enquanto dormia. confundir com a nereida Tétis).
SÉMELE (DD 9; 24) — Filha de Cadmo TRIPTÓLEMO (SVL 15) — Inventor e
e de Harmonia, mãe de Dioniso, divulgador da agricultura.

354
Vénus: v. AFRODITE
Vulcano: v. HEFESTO
ZÉFIRO (DD 14 | DDM 11; 15) — Per-
sonificação do vento oeste.
ZEUS (SVL 8 | DD 1-6; 7; 8; 9; 10; 12; 13;
16; 18; 19-22; 24; 25 | DDM 1; 7;
9; 11; 12; 15 | DM 14; 16; 23; 28
| AFP 18; 40; 48) — filho de Cro-
no e de Reia. Como o pai tivesse
o costume de devorar os filhos, a
mãe, logo após o parto, na ilha de
Creta, escondeu-o no seio da gran-
de mãe Terra, onde foi criado pelas
ninfas das nascentes e alimentado
com o mel do monte Ida e o leite
da cabra Amalteia. Esta, ao brincar
com Zeus, quebrou um corno, o
qual se tornou o chamado «corno
da abundância». Ao chegar à ida-
de adulta, Zeus conspirou contra
o pai, acabando por destroná-lo e
tornando-se, assim, o deus supre-
mo. No entanto, embora guar-
dando para si o domínio dos céus,
cedeu aos irmãos, Posídon e Hades
(Plutão), respectivamente, os ma-
res e o reino dos mortos. Teve de
fazer frente a diversas conspirações,
mas de todas saiu vencedor. Casou
com Hera, a quem era permanen-
temente infiel, gerando assim uma
numerosa prole de homens e semi-
deuses, o mais famoso dos quais
é Héracles, nascido da sua união
com Alcmena, esposa de Anfitrião.
Este e outros aspectos da moral
dos deuses e do rei dos deuses e
dos homens não podia deixar de
merecer violentas críticas de um
número cada vez maior de intelec-
tuais. [V. Diálogos dos. Deuses: 1-2,
8, etc.]

355
(Página deixada propositadamente em branco)
VOLUMES PUBLICADOS NA C OLECÇÃO
AUTORES GREGOS E L ATINOS – SÉRIE TEXTOS GREGOS

1. Delfim F. Leão e Maria do Céu Fialho: Plutarco. Vidas


Paralelas – Teseu e Rómulo. Tradução do grego, introdução
e notas (Coimbra, CECH, 2008).
2. Delfim F. Leão: Plutarco. Obras Morais – O banquete dos Sete
Sábios. Tradução do grego, introdução e notas (Coimbra,
CECH, 2008).
3. Ana Elias Pinheiro: Xenofonte. Banquete, Apologia de Sócrates.
Tradução do grego, introdução e notas (Coimbra, CECH,
2008).
4. Carlos de Jesus, José Luís Brandão, Martinho Soares, Rodolfo
Lopes: Plutarco. Obras Morais – No Banquete I – Livros
I-IV. Tradução do grego, introdução e notas. Coordenação
de José Ribeiro Ferreira (Coimbra, CECH, 2008).
5. Ália Rodrigues, Ana Elias Pinheiro, Ândrea Seiça, Carlos de
Jesus, José Ribeiro Ferreira: Plutarco. Obras Morais – No
Banquete II – Livros V-IX. Tradução do grego, introdução
e notas. Coordenação de José Ribeiro Ferreira (Coimbra,
CECH, 2008).
6. Joaquim Pinheiro: Plutarco. Obras Morais – Da Educação das
Crianças. Tradução do grego, introdução e notas (Coimbra,
CECH, 2008).
7. Ana Elias Pinheiro: Xenofonte. Memoráveis. Tradução do
grego, introdução e notas (Coimbra, CECH, 2009).
8. Carlos de Jesus: Plutarco. Obras Morais – Diálogo sobre o
Amor, Relatos de Amor. Tradução do grego, introdução e
notas (Coimbra, CECH, 2009).
9. Ana Maria Guedes Ferreira e Ália Rosa Conceição Rodrigues:
Plutarco. Vidas Paralelas – Péricles e Fábio Máximo. Tradução
do grego, introdução e notas (Coimbra, CECH, 2010).
10. Paula Barata Dias: Plutarco. Obras Morais - Como Distinguir
um Adulador de um Amigo, Como Retirar Benefício dos
Inimigos, Acerca do Número Excessivo de Amigos. Tradução
do grego, introdução e notas (Coimbra, CECH, 2010).
11. Bernardo Mota: Plutarco. Obras Morais - Sobre a Face
Visível no Orbe da Lua. Tradução do grego, introdução e
notas (Coimbra, CECH, 2010).
12. J. A. Segurado e Campos: Licurgo. Oração Contra Leócrates.
Tradução do grego, introdução e notas (Coimbra, CECH
/CEC, 2010).
13. Carmen Soares e Roosevelt Rocha: Plutarco. Obras Morais
- Sobre o Afecto aos Filhos, Sobre a Música. Tradução do
grego, introdução e notas (Coimbra, CECH, 2010).
14. José Luís Lopes Brandão: Plutarco. Vidas de Galba e Otão.
Tradução do grego, introdução e notas (Coimbra, CECH,
2010).
15. Marta Várzeas: Plutarco. Vidas de Demóstenes e Cícero.
Tradução do grego, introdução e notas (Coimbra, CECH,
2010).
16. Maria do Céu Fialho e Nuno Simões Rodrigues: Plutarco.
Vidas de Alcibíades e Coriolano. Tradução do grego, intro-
dução e notas (Coimbra, CECH, 2010).
17. Glória Onelley e Ana Lúcia Curado: Apolodoro. Contra
Neera. [Demóstenes] 59. Tradução do grego, introdução e
notas (Coimbra, CECH, 2011).
18. Rodolfo Lopes: Platão. Timeu-Critías. Tradução do grego,
introdução e notas (Coimbra, CECH, 2011).
19. Pedro Ribeiro Martins: Pseudo-Xenofonte. A Constituição
dos Atenienses. Tradução do grego, introdução, notas e
índices (Coimbra, CECH, 2011).
20. Delfim F. Leão e José Luís L. Brandão: Plutarco.Vidas de
Sólon e Publícola. Tradução do grego, introdução, notas e
índices (Coimbra, CECH, 2012).
21. Custódio Magueijo: Luciano de Samósata I. Tradução do
grego, introdução e notas (Coimbra, CECH/IUC, 2012).
(Página deixada propositadamente em branco)
PROVA 2

LUCIANO
Colecção Autores Gregos e Latinos a trajectória de uma vida [I]
Série Textos
Amadurecido pelas viagens e pela ex­pe­
riência da vida, materialmente afortunado,
OBRA PUBLICADA
COM A COORDENAÇÃO Luciano de Samósata Luciano cedo se farta da actividade judiciá­
ria, da retórica e da sofística, para se entregar
CIENTÍFICA
a uma actividade literária que, não sendo
nova, ele, no entanto, reforma de maneira
• radical: trata-se do diálogo filosófico, mas

Luciano
agora entendido e elaborado segundo prin­
cípios originais. De facto, Luciano aligeira
substancialmente o majestoso diálogo filosó­
fico que vinha dos tempos de Platão e acres­

[I] centa-lhe um aspecto dramático, orientado


no sentido da sátira - o que significa reunir
no «novo género» dois géneros diferentes
e até muito diversos: o diálogo filosófico e
a comédia. Realmente, foram sobretudo as

Luciano [I]
obras em forma de diálogo que deram fama
a Luciano. É nelas que melhor se expande
a sua crítica panfletária e corrosiva, que atin­
ge, literalmente, tudo e todos: os deuses e os
heróis, a religião e as religiões, a filosofia e as
suas variadíssimas seitas, a moral convencional,
a sociedade e os seus pilares mais destaca­
dos, os homens e as suas vaidades, as suas su­

Luciano de
Samósata
Tradução do grego, introdução e notas perstições irracionais e o aproveitamento que
Custódio Magueijo delas fazem os espertos... enfim, podemos
dizer que em Luciano conflui o que de mais
violento havia na comédia. Um certo epicu­
rismo prático e um cinismo teórico afinam e
refinam o processo.
IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
COIMBRA UNIVERSITY PRESS

Lombada: 14 mm

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