Академический Документы
Профессиональный Документы
Культура Документы
LUCIANO
Colecção Autores Gregos e Latinos a trajectória de uma vida [I]
Série Textos
Amadurecido pelas viagens e pela expe
riência da vida, materialmente afortunado,
OBRA PUBLICADA
COM A COORDENAÇÃO Luciano de Samósata Luciano cedo se farta da actividade judiciá
ria, da retórica e da sofística, para se entregar
CIENTÍFICA
a uma actividade literária que, não sendo
nova, ele, no entanto, reforma de maneira
• radical: trata-se do diálogo filosófico, mas
Luciano
agora entendido e elaborado segundo prin
cípios originais. De facto, Luciano aligeira
substancialmente o majestoso diálogo filosó
fico que vinha dos tempos de Platão e acres
Luciano [I]
obras em forma de diálogo que deram fama
a Luciano. É nelas que melhor se expande
a sua crítica panfletária e corrosiva, que atin
ge, literalmente, tudo e todos: os deuses e os
heróis, a religião e as religiões, a filosofia e as
suas variadíssimas seitas, a moral convencional,
a sociedade e os seus pilares mais destaca
dos, os homens e as suas vaidades, as suas su
Luciano de
Samósata
Tradução do grego, introdução e notas perstições irracionais e o aproveitamento que
Custódio Magueijo delas fazem os espertos... enfim, podemos
dizer que em Luciano conflui o que de mais
violento havia na comédia. Um certo epicu
rismo prático e um cinismo teórico afinam e
refinam o processo.
IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
COIMBRA UNIVERSITY PRESS
Lombada: 14 mm
a trajectória de uma vida
Luciano
[I]
Série Monografias
© Dezembro .
Imprensa da Universidade de Coimbra
Classica Digitalia Vniversitatis Conimbrigensis (http://classicadigitalia.uc.pt)
Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra
Reservados todos os direitos. Nos termos legais fica expressamente proibida a reprodução total ou
parcial por qualquer meio, em papel ou em edição electrónica, sem autorização expressa dos titulares
dos direitos. É desde já excepcionada a utilização em circuitos académicos fechados para apoio a lec-
cionação ou extensão cultural por via de e-learning.
Luciano de Samósata
Luciano
[I]
1 GLÍCER A E TAIDE....................................................................... 43
2 MÍRTIO, PÂNFILO E DÓRIDE ...................................................45
3 FILINA E SUA MÃE........................................................................ 47
4 MELITA E BÁQUIDE ................................................................... 49
5 CLONÁRIO E LEENA ...................................................................53
6 CRÓBILA E [SUA FILHA] CORINA ...........................................55
7 MUSÁRIO E SUA MÃE ............................................................... 59
8 AMPÉLIDE E CRÍSIDE .................................................................61
9 DÓRCADE, PANÍQUIDE, FILÓSTR ATO E PÓLEMON .............. 63
10 QUELIDÓNIO E DRÓSIDE ...........................................................67
11 TRIFENA E CÁRMIDES .............................................................. 71
12 IOESSA, PÍTIAS E LÍSIAS ........................................................... 73
13 LEÔNTICO, QUÉNIDAS E HÍMNIDE ...................................... 77
14 DÓRION E MÍRTALE ...................................................................81
15 CÓCLIDE E PARTÉNIDE ............................................................ 85
7
10 HERMES E HÉLIO ................................................................................115
11 AFRODITE E SELENE ............................................................................117
12 AFRODITE E EROS ...............................................................................119
13 ZEUS, ASCLÉPIO E HÉRACLES ..............................................................121
14 HERMES E APOLO ...............................................................................123
15 HERMES E APOLO ...............................................................................125
16 HERA E LATONA ..................................................................................127
17 HERMES E APOLO ...............................................................................129
18 HERA E ZEUS .......................................................................................131
19 AFRODITE E EROS ...............................................................................133
20 ZEUS, HERMES, HERA, ATENA, AFRODITE, PÁRIS
(Julgamento das Deusas)..........................................................................135
21 ARES E HERMES ...................................................................................143
22 PÃ E HERMES .......................................................................................145
23 APOLO E DIONISO ...............................................................................147
24 HERMES E MAIA ..................................................................................149
25 ZEUS E HÉLIO .....................................................................................151
26 APOLO E HERMES ...............................................................................153
8
DIÁLOGOS DOS MORTOS ................................................................................191
Introdução .........................................................................................193
Tradução ............................................................................................197
1 DIÓGENES E PÓLUX.............................................................................199
2 CRESO, PLUTÃO, MENIPO, MIDAS E SARDANAPALO ............................203
3 MENIPO E TROFÓNIO ..........................................................................205
4 HERMES E CARONTE ............................................................................207
5 PLUTÃO E HERMES .............................................................................209
6 TÉRPSION E PLUTÃO ...........................................................................211
7 ZENOFANTO E CALIDÉMIDES .............................................................213
8 CNÉMON E DAMNIPO ........................................................................215
9 SÍMILO E POLÍSTRATO .........................................................................217
10 CARONTE E HERMES .........................................................................221
11 CRATES E DIÓGENES ..........................................................................227
12 ALEXANDRE E ANÍBAL .........................................................................229
13 DIÓGENES E ALEXANDRE ...................................................................233
14 FILIPE E ALEXANDRE ...........................................................................237
15 AQUILES E ANTÍLOCO .........................................................................241
16 DIÓGENES E HÉRACLES ......................................................................243
17 MENIPO E TÂNTALO ...........................................................................245
18 MENIPO E HERMES ............................................................................249
19 ÉACO E PROTESILAU ...........................................................................251
20 MENIPO E ÉACO .................................................................................253
21 MENIPO E CÉRBERO ...........................................................................257
22 CARONTE E MENIPO ..........................................................................259
23 PLUTÃO E PROTESILAU .......................................................................261
24 DIÓGENES E MAUSOLO .......................................................................263
25 NIREU, TERSITES E MENIPO ...............................................................265
26 MENIPO E QUÍRON .............................................................................267
27 ANTÍSTENES, CRATES E DIÓGENES ....................................................269
28 MENIPO E TIRÉSIAS ............................................................................273
29 ÁJAX E AGAMÉMNON ..........................................................................275
30 MINOS E SÓSTRATO ............................................................................277
9
Ficha Técnica
Autor: Luciano de Samósata
Título: Luciano (I):
– O Sonho, ou Vida de Luciano
– Diálogos das Cortesãs
– Diálogos dos Deuses
– Diálogos dos Deuses Marinhos
– Diálogos dos Mortos
– O Bibliómano Ignorante
– Alexandre, o Falso Profeta
Tradução, prefácio e notas: Custódio Magueijo
Edição utilizada: A. M. Harmon, Lucian, The Loeb Classical
Library: Greek authors, Harvard University Press, 1959-1961.
Luciano
[I]
1
Esta «Introdução» é, na generalidade, reproduzida de outras que escrevi
a propósito de diversas obras de Luciano. Não se pode exigir que, para cada
uma das cerca de oitenta, tivesse de inventar uma biografia formalmente
diferente de Luciano. No entanto, a parte final, relativa aos Diálogos das
Cortesãs e a outras obras é redigida especialmente para esta edição.
2
Os críticos modernos tendem a negar a autoria de algumas delas (entre
dez e vinte), que seriam imitações de diversas épocas, mas que acabaram
por figurar entre as autênticas.
13
«A maioria opinou que a carreira das letras requeria muito
esforço, longo tempo e uma sorte brilhante. Ora, a nossa fortuna
era limitada, pelo que, a breve trecho, precisaríamos dalguma
ajuda. Se, pelo contrário, eu aprendesse um ofício, começaria
imediatamente a retirar daí um ordenado mínimo, que me
permitiria, naquela idade, deixar de ser um encargo familiar,
e até mesmo, algum tempo depois, dar satis fação a meu pai com
o dinheiro que traria para casa.» (§ 1)
14
isso menos significativo do ponto de vista autobiográfico. De
facto, Luciano serve-se deste processo para revelar aos seus
ouvintes não tanto o que se terá passado nessa remota noite da
sua adolescência, mas principalmente a volta que a vida dera,
a partir duma situação que, em princípio, teria uma sequência
bem diferente.
Assim, e com uma nitidez — segundo afirma — «em nada
diferente da realidade», aparecem duas mulheres, que, energica-
mente e até com grande violência, disputam a posse do moço,
que passa duma para a outra, volta à primeira... enfim, «pouco
faltou para que me despedaçassem».
Uma delas era a Escultura (Hermoglyphikê), «com o (típico)
aspecto de operário, viril, de cabeleira sórdida, mãos cheias de
calos, manto subido e coberto de pó, como o meu tio quando
estava a polir as pedras». A outra era a Cultura (Paideia), «de
fisionomia extremamente agradável, atitude mui nobre e manto
traçado a preceito». (§§ 5-6)
Seguem-se os veementes discursos proferidos por cada uma
das personagens, que fazem lembrar o agôn (luta, disputa,
certame) das Nuvens de Aristófanes, travado entre a Tese Justa
e a Tese Injusta.
15
Quanto aos grandes benefícios que te proporcionará o ofício de
escultor, já esta aqui os enumerou: não passarás dum operário que
mata o corpo com trabalho e nele depõe toda a esperança da sua
vida, votado ao anonimato e ganhando um salário magro e vil, de
baixo nível intelectual, socialmente isolado, incapaz de defender
os amigos ou de impor respeito aos inimigos, de fazer inveja aos
teus concidadãos. Apenas isto: um operário, um dentre a turba,
prostrado aos pés dos poderosos, servidor humilde dos bem-falantes,
levando uma vida de lebre, presa do mais forte. E mesmo que viesses
a ser um outro Fídias ou um Policlito, mesmo que criasses muitas
obras-primas, seria apenas a obra de arte aquilo que toda a gente
louvaria, e ninguém de bom senso, entre os que a contemplassem,
ambicionaria ser como tu. Sim, por muito hábil que sejas, não
passarás dum artesão, dum trabalhador manual.
Se, porém, me deres ouvidos, antes de mais, revelar-te-ei as
numerosas obras dos antigos, falar-te-ei dos seus feitos admiráveis e
dos seus escritos, tornar-te-ei um perito em, por assim dizer, todas as
ciências. E quanto ao teu espírito − que é, afinal, o que mais importa
−, exorná-lo-ei com as mais variadas e belas virtudes: sabedoria,
justiça, piedade, doçura, benevolência, inteligência, fortaleza, o
amor do Belo e a paixão do sublime. Sim, que tais virtudes é que
constituem verdadeiramente as incorruptíveis jóias da alma.
Tu, agora pobre, tu, o filho do Zé-Ninguém, tu, que ainda há
pouco havias enveredado por um ofício tão ignóbil, serás, em breve,
admirado e invejado por toda a gente, cumulado de honrarias
e louvores, ilustre por tua alta formação, estimado das elites de
sangue e de dinheiro; usarás um traje como este (e apontava-me
para o seu, que era realmente magní fico) e gozarás de merecido
prestígio e distinção. E sempre que saias da tua terra, vás para
onde fores, não serás, lá fora, um obscuro desconhecido: impor-
-te-ei tal marca, que, ao ver-te, um qualquer, dando de cotovelo
ao vizinho, apontar-te--á com o dedo, dizendo: ‘É este, o tal’.
16
supremacia, poder e dignidades, fama literária e o apreço devido
à inteligência, então passarás a usar uma reles túnica encardida,
ganharás um aspecto servil, agarrado a alavancas, cinzéis, escopros
e goivas, completamente inclinado sobre o trabalho, rastejante e
rasteiro, humilde em todas as acepções da palavra, sem nunca
levantar a cabeça, sem um único pensamento digno dum homem
livre, mas antes continuamente preocupado com a ideia de a
obra te sair har moniosa e apresentável − enquanto a respeito de
ti próprio, da maneira de te tornares harmonioso e bem dotado,
não te importas absolutamente nada; pelo contrário, ficarás mais
vil que as próprias pedras.»
É pena que esta autobiografia não tivesse sido escrita uns
vinte (ou trinta) anos mais tarde. Em todo o caso, o A., noutras
obras, fornece-nos mais algumas informações.
Assim, pela Dupla Acusação (§ 27), escrita pouco tempo
depois do Sonho, sabemos que Luciano, entregue de alma e
coração à retórica e à sofística, iniciara a sua actividade de
advogado em várias cidades da Ásia Menor (segundo a Suda,
«começou por ser advogado em Antioquia«). Da Ásia Menor
passa para a Grécia, e daí para a Itália, mas é sobretudo na
Gália que obtém glória e fortuna.
17
panfletária e corrosiva, que atinge, literalmente, tudo e todos:
os deuses e os heróis, a re ligião e as religiões, a filosofia e
as suas variadíssimas seitas, a moral convencional, a socie-
dade e os seus pilares mais desta cados, os homens e as suas
vaidades, as suas superstições irra cionais e o aproveitamento
que delas fazem os espertos... en fim, podemos dizer que em
Luciano conf lui o que de mais violento havia na comédia.
Um certo epicurismo prático e um cinismo teórico afinam
e refinam o processo.
Aos quarenta e poucos anos, adopta uma atitude funda-
mentalmente céptica, que, sobretudo, se insurge contra todo
o dogmatismo metafísico e filosófico em geral. A este respeito,
sugere-se a leitura do Hermotimo (ou: As Seitas), obra dum
niilismo verdadeiramente perturbador: dada a variedade das
correntes filosóficas, e ainda devido ao tempo e esforço neces-
sários a uma séria apreciação de cada uma, o homem, por mais
que se esforce, não pode atingir a verdade. Basta citar uma frase,
que, não sendo de modo nenhum a mais importante deste
diálogo, é verdadeiramente lapidar: «As pessoas que se dedicam
à filosofia lutam pela sombra dum burro.» (§ 86)
Cerca de vinte anos depois de chegar a Atenas, Luciano
decide recomeçar a viajar, mas nada será como dantes: já na
recta final da existência, talvez em situação financeira menos
próspera, e sem dúvida desiludido com o deteriorado clima cul-
tural de Atenas, fixa-se no Egipto, onde aceita (ou consegue?)
um lugar de funcionário público, aliás compatível com a sua
formação e importância social. Ele próprio nos informa (Apologia
dos Assalariados, (§ 12) de que a sua situação não se compara à
dos miseráveis funcionários do Estado Romano (por exemplo:
professores), que, afinal, não passam de escravos. E continua:
18
uma soma considerável. A tudo isto acrescenta o facto de eu não
me alimentar de esperanças modestas, pois é possível que ainda
obtenha, a título pleno, a prefeitura ou qualquer outra função
verdadeiramente real.»
19
alguma vez lançado contra todas as correntes idealistas no seu
conjunto. Para sermos exactos, Luciano não condena, propria-
mente, as diversas escolas filosóficas, mas sim o seu exclusivismo,
o seu dogmatismo, a sua intolerância e, muito especial mente,
a distância que vai dos princípios morais apregoados à prática
real dos grandes mestres.
Se, no que respeita à filosofia, Luciano aceita e compreende
as diversas doutrinas em si mesmas e revela admiração pelo
epicurismo, já no tocante à religião e, sobretudo, à mitologia
tradicional, a crítica é global: não nega (pelo menos explicita-
mente) a existência dos velhos deuses, semideuses e heróis
da Grécia. Entende-os, no entanto, e principalmente, como
elementos culturais inerentes à organização social e necessários
à literatura e às artes. Só não aceita o carácter «literal» de toda
uma mitologia fantástica, pueril e, tantas ve zes, imoral.
Mas, se a mitologia lhe causa reacções de pura irritação, ainda
mais alérgico se revela relativamente às religiões de mistério e
salvação, cujos sacerdotes enganam as multidões por processos
grosseiros que uma crítica fria e acerada não tem dificuldade
em desmascarar. Uma das obras mais significativas neste
aspecto é a intitulada Alexandre ou o Falso Profeta, que é a
biografia vergonhosa dum sacerdote que recorre a truques
baixos e ilusionismos ou simples viciação, para se impor
como enviado da Divindade.
Um outro aspecto contra o qual se revolta o espírito crítico
de Luciano é o do irracionalismo dos grandes filósofos e mestres
de filosofia do seu tempo, que acreditam nas artes mágicas,
nas curas milagrosas, em fantasmas, espíritos e demónios. É
certo que Luciano também escreveu alguns livros de ficção,
como, por exemplo, O Burro. Trata-se, porém, de menti ras
assumidas, com a finalidade de divertir e distender o espírito
(sempre, é claro, com alguma crítica à mistura). Nesta ordem
de ideias, aceita, e ele próprio pratica, a fantasia inócua. O
que não admite é que certas pessoas com responsabilidade na
educação da juventude se deixem possuir desse misticismo
levado ao mais alto grau do irracional e tentem transmiti-lo
aos outros como verdade absoluta e irrefutável.
Tal é o tema do opúsculo O Mentiroso, no qual Tiquíades
(que obviamente representa Luciano) relata ao seu amigo Fílocles
as histórias incríveis de curas milagrosas, exorcismos, demónios
e fantasmas, encantamentos amorosos, aparições infer nais,
20
metamorfoses, levitação, etc., que ouvira contar em casa de
Êucrates, onde se havia reunido a fina flor da intelec tualidade
mais representativa das escolas filosóficas. Só não estava presente
um epicurista... a não ser, talvez, Tiquíades: pelo menos é ele
o único que tenta contrariar, um por um e com argumentação
racional, todo aquele chorrilho de mentiras. Mas a tarefa é
difícil, pois, para além de ser um só contra muitos, acontece
que é ingrato e incómodo discutir «fenómenos» apresentados
como reais, vistos e testemunhados pelos próprios narradores
e corroboráveis (mesmo corroborados) por testemunhas «ocu-
lares» de confiança... dos narradores. Neste ponto, chamamos
a atenção para os processos típicos da «linguagem da verdade»,
sabiamente utilizados pelos mentirosos de todos os tempos. Ao
fim de algum tempo, Tiquíades só vê uma solução: partir a
toda a pressa, embora (apesar de tudo...) com uma desculpa de
pessoa educada: «Bem, vou-me embora, vou procurar Leôntico,
pois tenho necessidade de tratar dum assunto com ele. Quanto
a vós, que não julgais já bastantes as coisas humanas, invocai os
deuses para que vos ajudem nas vossas histórias prodigiosas.
Além de obras de pura invenção e outras que não passam
de exercícios literários em moda, Luciano também escreve a
respeito de personagens reais do seu tempo. O Mentiroso, a
que acima nos referimos, é uma dessas obras, na qual, muito
provavelmente, só os nomes dos intervenientes são fictícios.
21
(Página deixada propositadamente em branco)
O SONHO OU VIDA DE LUCIANO
Texto da ed. de Karl Mras, Die Hauptwerke des Lukian
NOTA I NTRODUTÓRIA
27
de superioridade perante os rapazes da minha idade, ao verem-me
esculpir figuras de deuses e fazer pequenas estatuetas, quer para
mim próprio, quer para quem eu entendesse. Todavia, logo de
início aconteceu-me o que costuma acontecer aos principiantes:
de facto, meu tio passou-me para as mãos um escopro e mandou-
-me desbastar levemente uma placa que para ali estava, dizendo
o conhecido provérbio «Começar é meio caminho andado». Eis,
porém, que, devido à minha inexperiência, dei uma pancada mais
forte, que fez quebrar a placa, pelo que meu tio, muito furioso,
agarrou numa correia que estava ali à mão e me «iniciou» no ofício
de uma maneira nada meiga e nada apetecível, de tal maneira
que foi de lágrimas a minha iniciação no ofício.
3
Il., II, 56-57: ... qe‹Òj moi ™nÚpnion Ãlqen Ôneiroj / ¢mbros…an
di¦ nÚkta...
28
melhor e por pouco que se apoderava por completo de mim, ora
era novamente tomado pela outra. Cada uma delas vociferava
contra a outra, pretendendo uma que já tinha tomado posse de
mim, pelo que eu lhe pertencia, enquanto a outra argumentava
que aquela se arrogava, sem razão, a posse do alheio. Uma delas
tinha aspecto de operário, viril, de cabelo desgrenhado, com as
mãos cheias de calos, a veste subida até à cintura e toda coberta
de pó de mármore, tal e qual o meu tio, quando polia as pedras.
A outra, por seu lado, tinha um rosto muito agradável, um porte
distinto e um manto muito elegante. Por fim, deixam-me a mim
o cuidado de decidir com qual delas eu queria ficar a viver. Falou
em primeiro lugar a de aspecto duro e viril, que disse:
4
O texto diz «da Arte»... mas pareceu-me necessário ser mais claro.
5
Note-se que a «versão» de Luciano não contém essas deficiências...
mas talvez não tivesse sido má ideia dar uma amostra do que poderia ser
a linguagem de quem não teve instrução avançada.
29
9. «Meu filho, eu sou a Cultura, que já te é familiar e conhecida,
se bem que ainda não me tenhas experimentado por completo. Ora,
quanto aos enormes benefícios que retirarias do ofício de escultor,
esta fulana acaba de mencioná-los. De facto, não serás mais que
um simples operário, que mata o corpo com trabalho e deposita nele
toda a sua esperança de subsistência, ele próprio obscuro, ganhando
um salário magro e vil, de mentalidade humilde, desconhecido de
toda a gente, nem útil aos amigos, nem temido dos inimigos, nem
invejado pelos outros cidadãos, mas apenas isto: um simples operário,
um de entre a grande massa popular, sempre ajoelhado aos pés dos
notáveis e servidor dos que sabem falar, levando uma vida de lebre
e presa dos mais fortes. E mesmo que te tornasses um outro Fídias
ou outro Policlito, e produzisses muitas obras admiráveis, seria a
[obra de] arte em si aquilo que todos elogiariam, sem que houvesse
alguém, entre os que a observavam, que, no seu juízo perfeito,
ambicionasse ser igual a ti. De facto, por grande [artista] que sejas,
serás visto apenas como um artesão, um trabalhador manual, que
vive do trabalho braçal.
30
terra estranha nem passarás despercebido, pois imprimir-te-ei uma
marca tal, que qualquer pessoa, ao ver-te, dará de cotovelo ao vizinho
e te apontará com o dedo, dizendo: ‘É este, o tal’.
13. Ora, caso renuncies a esses homens tão nobres e tão famosos,
às suas brilhantes realizações e aos seus veneráveis escritos, ao seu
porte distinto, à honra, à fama, aos elogios, à supremacia, ao poder,
a altos cargos, ao teu reconhecimento como orador e às felicitações
devidas à tua inteligência, então andarás vestido com uma curta
túnica encardida, ganharás um aspecto servil, terás nas tuas mãos
alavancas, cinzéis, escopros e marretas, inclinado sobre a obra,
rastejante e rasteiro, humilde em todo o sentido, sem nunca erguer
a cabeça, sem ter qualquer pensamento de homem e de pessoa livre,
mas, pelo contrário, somente pensando na maneira de tornar a obra
harmoniosa e elegante, ao passo que, no que respeita à maneira de
tu próprio te tornares harmonioso e bem dotado, não te preocupas
mesmo nada, mas tornas-te ainda mais vil que as próprias pedras.
14. Ainda ela estava a pronunciar estas palavras, eis que eu, sem
esperar pelo fim do discurso, levantei-me e fiz a minha escolha:
afastei-me da outra, a de aspecto horrendo e de trabalhador, e
passei-me para o lado da Cultura, muito contente, tanto mais que
me veio ao pensamento a correia e as pancadas, que não foram
poucas, que meu tio me dera no dia anterior, logo no começo
[do novo trabalho]. Então aquela que tinha sido preterida, ao
31
princípio ficou muito zangada, batia com as mãos uma contra a
outra 6 e rangia os dentes, mas, por fim, como se diz de Níobe,
ficou hirta e transformou-se em pedra. Não fiqueis incrédulos,
meus senhores7, com o que aconteceu à Escultura, pois os sonhos
são grandes fazedores de milagres.
15. Então a outra, a Cultura, olhou para mim e disse: «Pois vou
recompensar-te pelo teu espírito de justiça, por teres julgado tão bem
este caso. Vem cá imediatamente, sobe para este carro (e apontou
para um carro puxado por cavalos alados parecidos com Pégaso),
a fim de conheceres quantas e quão grandes coisas ficarias a ignorar,
caso não me seguisses.». Tendo, pois, subido para o carro, a Cultura
partiu, dando às rédeas; e eu, elevado aos céus, ia observando, de
oriente para ocidente, cidades, nações e povos, semeando não sei
bem o quê pela terra, como Triptólemo 8, mas já não me lembro
que semeadura era essa; só me lembro de uma coisa: que os ho-
mens, por onde eu passava durante o voo, elevavam lá de baixo
os olhos ao céu, louvavam-me e dirigiam-me palavras de gratidão.
6
Este gesto de «bater as mãos uma contra outra» pode significar ale-
gria, ou, pelo contrário, desespero, como é o caso; é claro que este gesto
devia ser acompanhado de outros, de tipo facial: «ranger de dentes... (v.
logo a seguir).
7
O texto não diz explicitamente «meus senhores», mas, por um passo
anterior, sabemos que Luciano se dirigia a ouvintes: v. § 5, início.
8
Triptólemo foi o inventor e o divulgador da agricultura.
9
«com magníficas vestes bordadas» é uma versão possível de uma só
palavra...
10
A decisão fora realmente tomada, mas não concretizada definiti-
vamente.
32
17. Mas, enquanto eu vos falo, alguém dirá: «Por Héracles!,
que sonho tão longo e fastidioso11.» E logo a seguir um outro in-
terrompe: «Deve ser um sonho de Inverno, quando as noites são
muito compridas, ou talvez um sonho de três noites, como no caso de
Héracles. Que ideia tola a dele, ao evocar perante nós aquela noite
da sua infância, cheia de sonhos velhos e relhos?! Mas que conversa
tão sensaborona! Será que ele nos toma por uma espécie de intér-
pretes de sonhos?» Não meu caro amigo12 . Na verdade, também
outrora Xenofonte, ao narrar um sonho, em que lhe pareceu ver
um incêndio na casa paterna13, e outras circunstâncias que vós
bem conheceis, contou tudo isso, não por considerar essa visão
uma falsa aparência ou conversa frívola, tanto mais que estavam
em guerra, numa situação desesperada e cercados de inimigos,
mas porque a narrativa tinha uma intenção algo útil.
18. Pois bem: se também eu vos narrei este sonho, foi por
uma razão: para que os jovens se virem para o bem e se apeguem
à cultura, sobretudo no caso de algum desses jovens se deixar
levar pela pobreza e caia na depravação, corrompendo assim uma
natureza em si mesma nobre. Estou bem convicto de que esse
tal jovem se sentirá encorajado ao ouvir a minha história, vendo
à sua frente a minha pessoa como um exemplo para si próprio e
pensando naquilo que eu era e no êxito que alcancei, por amor
da cultura, sem me intimidar com a pobreza desses tempos, e
vendo a condição em que aqui cheguei, não mais obscuro, no
mínimo14, que qualquer escultor.
11
A palavra grega significa «próprio de advogado», «judiciário»;
pressupõ-se que tais discursos eram longos e fastidiosos...
12
Luciano dirige-se explicitamente ao último dos supostos críticos.
13
Sigo a lição de Mras: v. nota ao texto.
14
Luciano exprime-se pelo mínimo, mas o sentido profundo é que se
sentia muito mais famoso do que qualquer escultor.
33
(Página deixada propositadamente em branco)
DIÁLOGOS DAS CORTESÃS
Texto da ed. de Karl Mras, Die Hauptwerke des Lukian.
I NTRODUÇÃO
37
de modo diferente: por um lado, as ˜ta‹rai hetairai, «heteras» ou
«cortesãs», que, à maneira das sua predecessoras da época clássica,
pretendiam ser «companheiras» dos seus amantes, para o que sabiam
proporcionar-lhes outros prazeres além dos da carne: dizia-se que
os homens tinham as esposas legítimas para lhes darem filhos, e as
heteras para divertimento; por outro lado, a prostituta... de esquina
era designada por pÒrnh pórnê, «puta» «meretriz», porn…dion
pornídion, «putéfia», às vezes porn…on «putinha»...
À profissão, tendencialmente rendosa, de «cortesã» estava
muitas vezes associada a figura da mãe, especialmente da mãe
viúva, que punha nos dotes físicos da filha a sua única esperança
de não morrer de fome (v. 7: Musário e sua mãe).
Naturalmente, Luciano conhecia o ambiente, não apenas das
leituras da Comédia Nova, mas, sobretudo, da vida real ateniense
dos meados do séc. II d.C.; e embora a focagem esteja projectada
principalmente sobre a cortesã, a mãe, uma amiga, a criada, etc.,
Luciano não deixa de nos mostrar alguns exemplares de amantes
(homens): os infiéis, os apaixonados, os chorões, os mãos-largas
e os forretas, os pobretanas, os violentos... Em todo o caso, é
importante notar que Luciano não se mostra muito (ou nada!)
crítico relativamente à prostituição, que ele devia ver como uma
opção de vida por parte da mulher e como uma liberdade por
parte do homem. Mais do que criticar, Luciano descreve diversos
quadros da vida sexual e do comportamento do jovem e do homem
casado do seu tempo. É que, para sermos curtos e breves, certas
«instituições», como a escravatura e a prostituição, estavam tão
integradas na mentalidade das pessoas, que a ninguém ocorria
sequer pô-las em causa.
Um aspecto que, em geral, deixa o leitor moderno um tanto
confuso é o que se refere ao valor do dinheiro, já que era este
o móbil mais importante (geralmente o único) da profissão.
Se não nos é possível ou fácil fazer o «câmbio» para as moedas
modernas, podemos, pelo menos, ter uma ideia do seu valor
relativo, do poder de compra em relação a um certo número
de artigos ou do valor dos serviços prestados. Para o caso,
interessa-nos o valor do dinheiro na Atenas de meados do séc.
II d.C. Ver quadro:
38
NOTA — O talento e a mina não eram propriamente moedas,
mas aquilo a que se chama «moeda de conto» (cf. um conto de réis
= 1 milhão (1.000.000) de réis).
Vejamos os casos que ocorrem nos Diálogos das Cortesãs:
§ Quantia Aplicação
TALENTO
2, 2 1 Dívida de negócios.
8, 3 1 Amante em exclusividade durante oito meses.
9, 3 1 Dádiva muito generosa.
9, 4 1 Dádiva muito generosa, c. promessa de mais 1 talento.
15, 2 2 Exclusividade (não se diz por quanto tempo; v. § 8, 3).
4, 1 5 Dote de noiva rica.
7, 4 muitos; 5 Dote de noiva rica.
MINAS
6, 1,2 1 1º salário de uma hetera, compra de um colar.
6, 1 2 Venda de tenazes, 1 bigorna e 1 martelo de ferreiro;
[dá para sobreviver 7 meses.
6, 2 2 Pagamento muito generoso (por uma «sessão»?).
7, 3 1 Pagamento generoso (por uma «sessão»?).
14, 3 2 Oferta em dinheiro + presentes vários.
14, 4 2 Mesma ref. de § 14, 3, mas «presentes de duas minas».
DRACMAS
4, 4 1 Honorário de uma feiticeira (+ 1 óbolo e diversas coisas).
7, 2 2 Um par de sapatos.
8, 2 5 Dádiva de «forreta», de longe em longe.
8, 3 10 Bom pagamento por uma noite.
11, 1 5 Pagamento razoável por uma noite; cf. § 8, 3.
11, 3 1000 Quantia pedida (por serviços passados e futuros?).
14, 2-3 2 Um par de sapatos.
( 5 exs.) 2 Um frasco de perfume da Fenícia.
1 De prata, para Afrodite, em intenção da hetera.
2 À mãe da hetera, para um par de sapatos.
5 Por junto: cebolas, 5 arenques, 4 percas, 1 cabaz de passas de
figo, sandálias, um queijo de Gítio.
ÓBOLO
4, 4 7 Parte do honorário de uma feiticeira (+1 dracma: v. 4,4b)
7, 1 1 Aliás, nem um... centavo... Insignificância.
14, 3 2 ou 4 Gorjeta para a criada, por serviços prestados e a prestar.
39
(Página deixada propositadamente em branco)
DIÁLOGOS DAS CORTESÃS
(Página deixada propositadamente em branco)
1. GLÍCERA E TAIDE15
15
Rigorosamente, ao gr. Qaj, gen. Qadoj (-- ), devia corresponder
em português a forma trissilábica, ortograficamente complicada, *Táïde
(!), ou, partindo do nominativo, a forma dissilábica, igualmente difícil,
*Táïs (!). No primeiro caso, uma forma Taide (que acabei por adoptar)
resultaria da sinérese de duas vogais em sílabas diferentes, agora pronuncia-
das na mesma sílaba: a-i > ai (cf. Danaide, Nereide...); Caso partíssemos
do nominativo, já parece menos aceitável adoptar o monossílabo Tais (!),
que seria igualmente resultante de sinérese, mas que se me afigura um
tanto ridículo, por soar ao pronome tais; também não seria incontro-
verso transpor directamente o nominativo grego e verter por Taís, com
a acentuação grega, mas que, segundo as regras gráficas do português,
obrigaria a uma pronúncia dissilábica; a maior parte das vezes, satisfaz a
adaptação a partir do acusativo latino, -em, cf. Ácide, Ampélide, Báquide,
Cóclide, Corónide, Críside, Dáfnide, Délfide, Dóride (Dóris), Dróside,
Éride (Éris), Fébide, Filénide, Grâmide, Hímnide, Nébride, Nereide (e
Nereida), Págide, Paníquide, Parténide, Pirálide...; mas o uso também
impôs algumas formas a partir do nom.: Tétis...
16
Abrótono é um nome de mulher (ginecónimo), tirado do nome
comum, do género neutro, ¢brÒtonon «abrótono». Em port., não soam
bem estes nomes de mulher com a terminação tipicamente masculina,
pelo que lhe antepusemos o artigo feminino. Dá vontade de verter por
*Abrótona...; o mesmo se diga de diminutivos hipocorísticos em -ion (v.
infra, a respeito de Glicério).
17
A clâmide era uma capa curta, usada sobretudo pelos militares.
18
Glukšrion «docinha», diminutivo-hipocorístico de Glukšra,
«doce». Como atrás ficou dito, em port. suporta-se mal um ginecónimo em
-o, pelo que, aproveitando o valor hipocorístico, antepomos a estes nomes
ou querida, ou minha (querida); uma adaptação como *Gliceriazinha não
seria de todo reprovável; ou então, já que a palavra tem sentido («doce» e
«docinha»), poderíamos verter por Dulce e Dulcinha. Outros diminutivos-
-hipocorísticos em -ion nesta obra: Mírtio, Clonário, Musário, Quelodónio.
19
O nome da «amiga» não é escolhido ao acaso, pois faz-se referência às
Górgonas, ou melhor, à mais célebre, Medusa; todas elas eram personagens
43
TAIDE — ... E agora o fulano já não vem a tua casa, pois
tomou Górgona por sua amante?!
GLÍCERA — Isso mesmo, Taide, e sinto-me muito ferida com
este caso.
TAIDE — Sim, querida Glicério, é um acto perverso, mas
nada de inesperado; pelo contrário, é prática corrente entre nós,
cortesãs. Portanto, não deves afligir-te assim tanto, nem censurar
Górgona. Na verdade, anteriormente, a Abrótono também não te
censurou pelo mesmo motivo... e, no entanto, vocês eram amigas.
2] Em todo o caso, há uma coisa que me espanta: que é que
esse soldado encontrou nela que fosse digno de louvor... a menos
que ele fosse completamente cego, a ponto de não ver que ela
tem o cabelo ralo e muito afastado da testa 20; que os lábios são
lívidos, o pescoço muito magro e com veias muito salientes e o
nariz muito comprido. Só tem de bom o facto de ser alta e esbelta
e ter um sorriso muitíssimo sedutor.
GLÍCERA — Cuidas tu, Taide, que o acarnano está apaixonado
pela sua formosura? Então não sabes que a feiticeira Crisário21 é
sua mãe, que conhece certas fórmulas encantatórias tessálicas22 e
sabe atrair a lua cá abaixo? Dizem mesmo que ela, à noite, levanta
voo. Foi ela que deu a volta à cabeça do fulano, dando-lhe umas
drogas a beber; e agora é só «vindimá-lo23».
TAIDE — E tu, querida Glicério, hás-de «vindimar» outro
e... diz adeus a este.
44
2. MÍRTIO24, PÂNFILO E DÓRIDE
24
Mais um dim.-hipoc. em -ion.
25
V. nota especial sobre o valor do dinheiro; o talento não era propriamente
uma moeda, mas um valor «de conto»; quando, a seguir, se diz que pagou
a dívida de um talento, mas não a quantia total, isso significa que pagou
com moedas (minas e dracmas), que não somavam exactamente 1 talento.
45
ouviste essa história? Ou será que, por pura fantasia, inventaste,
minha querida Mírtio, essa história de ciúmes?
26
Trata-se de Ártemis, aqui designada pelo epíteto de Loce…a, «que
preside aos partos».
46
3. FILINA E SUA M ÃE
47
poderia eu fazer? Aguentar, dando assim razão à crítica e deixar
que Taide fosse a rainha da festa?
48
4. M ELITA 27 E BÁQUIDE
27
Mšlitta «abelha» (com -tt-) é forma tipicamente ática; em jónico
(na koinê e em gr. mod.) a forma normal é mšlissa (com -ss-); se nos
baseássemos nesta última forma, teríamos Melissa (que, afinal, existe...).
28
O talento era aquilo a que se chama «moeda de conto» (cf. contos
de réis), ou seja, não existia como moeda. Equivalências: 1 talento = 60
minas; 1 mina = 100 dracmas; 1 dracma = 6 óbolos. No caso presente, a
noiva trouxe como dote 5 talentos. É só fazer a conta...
29
naÚklhroj significa: «armador»; «proprietário de um navio»; «piloto».
49
lado, beijei-lhe as omoplatas, e ele sempre de costas para mim, até
que, sem dar quaisquer mostras de ceder, disse: «Se continuas a
incomodar-me, vou-me já daqui embora, mesmo sendo meia-noite».
30
Gr. KerameikÒj «Ceramico», palavra grave, lit.te «bairro dos oleiros»
(dif. de adj. keramikÒj «de barro», «cerâmico».
31
Os gregos bebiam o vinho misturado com água, numa proporção
que variava; naturalmente, os grandes bebedores bebiam-no puro: Adde
50
velha bebe sozinha. Finalmente, será necessário algum objecto
pertencente ao homem, como mantos, sapatos, um pouco de
cabelo, ou qualquer coisa do género.
MELITA — Tenho sapatos seus.
51
(Página deixada propositadamente em branco)
5. CLONÁRIO E L EENA32
32
Como subst. comum, klwn£rion (klonárion) significa «raminho»;
Lšaina (Léaina) significa «leoa». As regras da adaptação em português
nem sempre soam muito bem, como é o caso, nomeadamente de ginecó-
nimos hipocorísticos em -ion, que resultam em nomes femininos (?) em
-o: Clonário, Glicério, Musário, Quelidónio, etc.
33
O texto diz «pela educadora de jovens», um dos epítetos de Afrodite.
53
os peitos. Demonassa mordia-me ao beijar-me. Eu não sabia o que
pensar daquilo tudo. Passado algum tempo, Megila, que já estava
um tanto excitada, tirou a peruca, que lhe assentava muito bem
e parecia natural, mostrando-se completamente rapada, como os
atletas mais viris. Eu, ao vê-la assim, fiquei perturbada. Então diz-
-me ela: «Ó Leena, já alguma vez viste um jovenzinho tão belo?». E
eu: «Mas, ó Megila, não vejo aqui nenhum jovenzinho...». «Não me
trates no feminino — disse ela —, o meu nome é Megilo; desposei há
muito tempo aqui a Demonassa, que agora é minha esposa.» Ao ouvir
tal, ó querida Clonário, dei uma gargalhada e disse: «Quer dizer,
ó Megilo, que tu andavas a esconder de nós o facto de seres homem
(tal como Aquiles, que, segundo se diz, se escondia entre as moças) e
que tens aquela coisa viril e fazes com a Demonassa o mesmo que os
homens fazem?» E ela responde: «Ó Leena, aquela coisa... não tenho,
mas também não preciso absolutamente nada dela; verás, quando eu
estiver a ‘trabalhar’, que eu tenho um método muito próprio e muito
mais gostoso.» «Não serás tu — disse eu — um hermafrodita, um
dos muitos que, segundo se diz, têm ambos os sexos?» Na verdade,
amiga Clonário, eu desconhecia completamente a coisa. «Nada
disso — respondeu Megila — sou verdadeiramente homem.»
54
6. CRÓBILA E [SUA FILHA] CORINA
55
a filha de Dáfnide (que Adrastia 34 me perdoe!): andava toda
esfarrapada, antes de a filha crescer e se tornar uma moça vis-
tosa. Mas agora vê lá como ela prosperou: ouro, vestes garridas
e quatro criadas.
34
'Adr£steia é um outro nome de Némesis, a deusa que, entre outras
coisas, punia as pessoas demasiado felizes, especialmente se se envaideciam
com isso. Aqui, Cróbila, ao fazer referência ao próspero estado actual da
filha de Dáfnide e de sua mãe, invoca a deusa, para que esta não as castigue.
35
V. nota supra.
56
belos. Mas tu preocupa-te sempre com o lucro, se queres que,
dentro de pouco tempo, todas as mulheres te apontem a dedo e
digam: «Não vês a Corina, a filha de Cróbila, não vês como está tão
rica e como fez sua mãe três vezes feliz?» Que dizes? Vais proceder
deste modo? Pois vais, que eu bem sei, e não terás dificuldade em
ultrapassar todas as outras. Agora, vai tomar um banho, para o
caso de o jovem Êucrito vir cá hoje, pois assim prometeu.
57
(Página deixada propositadamente em branco)
7. MUSÁRIO E SUA M ÃE
36
Deméter e Prosérpina.
59
3] MUSÁRIO — E daí, minha mãe, são elas mais felizes e
mais belas que eu?
M ÃE — Não, mas são mais espertas e sabem ser cortesãs; não
acreditam em palavrinhas doces nem em rapazotes que têm sempre
juramentos na ponta dos lábios, ao passo que tu és fiel e apegada a
um só homem, não deixas aproximar-se de ti mais nenhum que não
seja Quéreas. Ainda outro dia, quando aquele lavrador acarnano (e
esse também era ainda imberbe) cá veio oferecer-te duas minas, que
tinha tirado do dinheiro do vinho que seu pai o mandara vender,
tu desdenhaste dele, para ir dormir com o teu Adónis-Quéreas.
MUSÁRIO — E então? Havia de deixar Quéreas, para receber
aquele labrego a cheirar a bode? O meu Quéreas é maciozinho,
é, como sói dizer-se, um leitãozinho acarnano.
M ÃE — Pois seja: o acarnano é rústico e cheira mal. Mas en-
tão Antifonte, filho de Menécrates, que te prometia uma mina,
porque não o recebeste? Não era também belo, delicado e da
mesma idade que Quéreas?
60
8. A MPÉLIDE E CRÍSIDE
61
detrás do Pórtico38, estava apaixonado por mim. Ora, este fulano
nunca me tinha dado mais do que cinco dracmas, mas julgava-se
meu amo e senhor. Amava-me, minha Críside, com um amor
muito superficial, sem nunca soltar suspiros nem lágrimas, sem
ficar postado fora de horas à minha porta; só vinha para dormir
comigo, e mesmo assim de longe em longe.
38
Gr. Sto¦ Poik…lh «pórtico pintado», «... coberto de pinturas»;
em forma reduzida, podia usar-se só uma das palavras. Aqui é a segunda,
que, adaptada ao port., daria Pécile; entendemos traduzir por «Pórtico».
62
9. DÓRCADE39, PANÍQUIDE, FILÓSTRATO E PÓLEMON
39
O nome significa «Gazela»; Paníquide faz referência a «toda a noite»;
Pólemon lig-se a pólemos «guerra».
40
É pelo menos curiosa a ideia de que, quando alguém ausente está a
pensar em nós, sentimos as orelhas a zumbir (ou a arder).
41
«deslumbrantemente» é tradução à letra; poderíamos dizer «em
beleza»...
63
D ÓRCADE — Sim, com certeza, que disse muitas coisas
desse género... mas o principal é que anunciou que trazia uma
enorme fortuna em ouro, vestuário, criados, marfim... e que o
patrão não contava o dinheiro em prata à peça, mas media-o
em medimnos42 inteiros. Parmenonte até tinha no dedo mínimo
um anel enorme, multifacetado, com uma pedra tricolor nele
cravada e com a face superior vermelha. Quando o deixei, queria
contar-me como haviam atravessado o rio Hális, como tinham
morto um tal Tiridatas e como Pólemon se tinha distinguido
na batalha contra os Písidas... mas eu afastei-me a correr, a fim
de te dar as notícias, para que reflictas sobre a presente situação.
Na verdade, se Pólemon aqui vier (e certamente virá, depois de
se desembaraçar dos conhecidos), se perguntar o que se passa e
der com Filóstrato cá em casa, que achas que ele fará?
64
PÓLEMON — Fica sabendo que sou Pólemon, do demo de
Estíria e da tribo de Pândion, em tempos quiliarca43, e agora
comandante de uma força de cinco mil escudeiros, amante de
Paníquide, no tempo em que ainda julgava que ela tinha senti-
mentos humanos.
FILÓSTRATO — Mas agora, senhor capitão de mercenários44,
Paníquide é minha, já recebeu um talento e vai em breve receber
outro, assim que eu vender a mercadoria. Agora, Paníquide, vem
daí comigo e deixa este sujeito ser quiliarca entre os Ódrisas 45.
PÓLEMON — Paníquide é uma mulher livre, só irá contigo
se ela quiser.
PANÍQUIDE — Que fazer, Dórcade?
DÓRCADE — É melhor ir para casa, pois não convém que te
aproximes de Pólemon, furioso como ele está; além disso, ficaria
ainda mais ciumento.
PANÍQUIDE — Se assim te parece, entremos.
43
Lit.te «comandante de uma força de 1.000 homens; em Roma (época
de Luciano) correspondia a tribunus militum. Havia seis tribuni militum
(ou t. militares) por legião.
44
Ou «... de infantaria», mas a outra designação é mais claramente
depreciativa.
45
Povo da Trácia.
65
(Página deixada propositadamente em branco)
10. QUELIDÓNIO46 E DRÓSIDE
67
que, já ao cair da noite, chegou Drómon, que me trazia este bi-
lhetinho da parte dele. Pega nele e lê-mo, querida Quelidónio...,
pois julgo que sabes ler.
68
aos seus discípulos; enfim, anda embevecido com o mocinho.
Drómon até o ameaçou de ir contar tudo ao pai de Clínias.
QUELIDÓNIO — Ó Dróside, tu devias encher bem a barriga
de Drómon.
DRÓSIDE — Sim, enchi, mas, mesmo sem isso, ele ser-me-ia
fiel, pois também está louco por Nébride.
QUELIDÓNIO — Anima-te, que tudo há-de correr bem.
Por minha parte, creio que vou escrever no muro do Ceramico,
onde Arquíteles costuma passear, «Aristéneto corrompe Clínias»,
de maneira que esta frase coincida com a acusação de Drómon.
DRÓSIDE — E como é que escreverás isso sem que te vejam?
QUELIDÓNIO — Ó Dróside, arranjo um pedaço de carvão
em qualquer lado e vou lá de noite.
DRÓSIDE — Bravo, querida Quelidónio, oxalá me ajudes nesta
guerra contra esse charlatão do Aristéneto.
69
(Página deixada propositadamente em branco)
11. TRIFENA E C ÁRMIDES
71
TRIFENA — Mas viste-a mesmo toda [nua], ou de Filemátio
só viste a cara e as partes do corpo que estão mesmo à vista, como
convém a uma mulher já com quarenta e cinco anos?
C ÁRMIDES — Mas ela jura que vai completar vinte e dois
anos no próximo mês de Elafebólion50.
50
Corresponde a Março.
51
Sobre o sentido deste termo, v. § 1 (2ª fala de Trifena).
72
12. IOESSA52, PÍTIAS E LÍSIAS
52
Gr. „Òessa significa «(que tem cor de) violeta», «morena».
53
Os prítanes eram membros do Conselho dos 500, ou Senado. A sua
eleição era anual.
54
Jovem de Lesbos, amado de Safo.
55
O texto é ambíguo: «suas» ou «minhas».
56
Pode entender-se «deitado na cama» ou «reclinado à mesa».
73
a fulana deu um beijo na maçã e enfiou-a por entre as mamas57,
por debaixo do apara-seios58.
74
L ÍSIAS — Queres então, Pitíade, que eu condescenda com
esta Ioessa, que agora está toda chorosa, mas que eu outro dia
surpreendi a atraiçoar-me, deitada com outro jovem?
PITÍADE — Ó Lísias, afinal de contas, ela é uma cortesã...
Mas em que circunstâncias os surpreendeste deitados na cama?
L ÍSIAS — Faz agora para aí uns seis dias, sim, por Zeus!,
mesmo seis, pois estávamos no dia dois do mês, e hoje é dia
sete. Ora, meu pai, sabendo da minha paixão por esta lindi-
nha, fechou-me em casa, dando ordens ao porteiro para que
não me abrisse a porta. Então eu, não suportando passar sem
vir ter com ela, ordenei a Drómon que se baixasse junto do
muro do pátio, no sítio onde ele é mais baixo, e me deixasse
subir-lhe para as costas, pois assim seria mais fácil de escalar.
Mas para quê alongar-me? Saltei o muro e dirigi-me para cá,
tendo encontrado a porta de entrada cuidadosamente fechada,
pois já era meia-noite. Por isso, não bati, mas, tendo erguido
ligeiramente a porta, como fizera noutras ocasiões, e tendo-
-as feito rodar nos gonzos, entrei muito de mansinho. Estava
toda a gente a dormir. Depois, às apalpadelas na parede, chego
junto da sua cama.
75
peruca. Mostra-lhe lá, Pitíade, prova-lhe que é tal e qual como eu
digo, convence-o. Eis o mocinho adúltero de quem tinhas ciúmes.
L ÍSIAS — E não tinha motivo para tal, Ioessa, tanto mais
que estava apaixonado e, além disso, lhe toquei com as minhas
próprias mãos?
IOESSA — Portanto, agora já estás convencido. Queres que
me vingue dos desgostos que me causaste? Estou no meu direito
de também estar furiosa.
LÍSIAS — De maneira nenhuma, mas antes vamos beber, e
Pitíade connosco, pois é justo que ela assista ao nosso armistício.
IOESSA — Assistirá, pois. Oh! O que eu padeci por tua causa,
ó Pitíade, o mais encantador dos jovens!60
PITÍADE — Mas também fui eu mesmo que vos reconciliei um
com o outro. Por isso, não fiques zangado comigo. Só uma coisa
te peço, Lísias: não contes a ninguém isto da minha cabeleira.
60
Aqui e na fala seguinte, insiste-se na caracterização de Pitíade como
rapaz.
76
13. L EÔNTICO, QUÉNIDAS E HÍMNIDE
61
Outra interpretação: «... se manteve firme (no seu posto)».
62
«comandante de cavalaria».
77
3] LEÔNTICO — Mas eu avancei corajosamente para o meio
da arena, envergando um armamento em nada inferior ao do
paflagónio, mas todo dourado, de tal modo que se ouviu um
clamor, quer da nossa parte, quer do lado dos bárbaros, pois, ao
verem-me, tinham-me reconhecido sobretudo pelo escudo, pelo
arnês [do cavalo] e pelo penacho. Diz lá, Quénidas, com quem
é que toda a gente me comparava?
QUÉNIDAS — Com quem havia de ser, por Zeus!, senão com
Aquiles, filho de Tétis e de Peleu? O elmo assentava-te tão bem, as
vestes de púrpura bordadas com flores, o escudo resplandecente!
LEÔNTICO — Logo que nos chegámos um ao outro, o bár-
baro foi o primeiro a ferir-me, atingindo-me ao de leve com a
lança, um pouco acima do joelho; depois eu, atravessando-lhe o
escudo com a lança 63, firo-o em pleno peito; a seguir, corri para
ele, degolei-o com toda a facilidade com um golpe de espada,
despojei-o das armas e retirei-me, com a sua cabeça espetada na
ponta da lança e coberto de sangue.
63
s£risa é uma lança macedónica muito comprida (14-16 pés).
78
jazentes pelo campo? Julgo que morreria, eu que nunca vi sequer
matar um galo.
LEÔNTICO — Ó Hímnide, és assim tão medrosa e fraca de
espírito? E eu que cuidava que tu te deleitarias ao ouvir-me.
HÍMNIDE — Vai mas é deleitar com as tuas histórias certas
mulheres de Lemnos ou as Danaides 64 que encontres, que eu
vou já daqui a correr para casa de minha mãe, enquanto ainda é
de dia. Segue-me, Grámide. E tu, bravo quiliarca e matador de
quantos [inimigos] quiseres, passa muito bem.
5] LEÔNTICO — Fica aqui, Hímnide, fica... Oh! Foi-se embora.
QUÉNIDAS — Pois claro, Leôntico: aterrorizaste uma menina
simples, agitando penachos e contando façanhas incríveis. Eu bem
vi como ela, logo de início, ficou pálida, enquanto tu contavas
aquela cena do comandante, e depois contraiu o rosto e ficou toda
arrepiada, quando tu contaste que lhe tinhas cortado a cabeça.
LEÔNTICO — É que eu pensava que assim lhe pareceria mais
apetecível; mas tu, Quénidas, também contribuíste para me tra-
mar, sugerindo-me aquela do combate singular.
QUÉNIDAS — Porventura não devia eu ajudar-te a mentir,
vendo o motivo da sua fanfarronice? Tu é que tornaste a coisa mais
pavorosa. Sim, que tenhas cortado a cabeça do pobre paflagónio,
vá que não vá... mas porque é que lha espetaste na ponta da lança,
de modo que o sangue escorresse para cima de ti?
64
As Danaides, filhas de Dánao, em número de 50; com excepção de
uma, as outras mataram os maridos na noite de núpcias; as mulheres de
Lemnos também tinham fama de matar os maridos...
79
(Página deixada propositadamente em branco)
14. DÓRION E MÍRTALE
81
para dirigir o estibordo do navio, e tu ainda desdenhas de
mim... Mas ainda outro dia, por ocasião das Afrodisíacas,
não lancei aos pés de Afrodite uma dracma de prata em tua
intenção? Além disso, dei duas dracmas a tua mãe, para uns
sapatos, e muitas vezes tenho passado para a mão aqui de Lide
ora dois óbolos, ora quatro. Tudo isto junto faria a fortuna de
um marinheiro.
M ÍRTALE — O quê, Dórion, as cebolas e os arenques?
DÓRION — Sim, pois não tinha mais nada para te trazer. Na
verdade, se eu fosse rico, não seria remador. À minha mãe nunca
lhe dei nem sequer uma cabeça de alho. Mas... gostaria de saber
que presentes recebeste tu do bitínio.
MÍRTALE — Em primeiro lugar, estás a ver esta túnica? Foi
ele quem a comprou, bem como este colar muito grosso.
DÓRION — Foi mesmo ele? Mas eu já to conhecia desde há
muito tempo...
MÍRTALE — Aquele que tu conhecias era mais fino e não tinha
esmeraldas. Também [me ofereceu] estes brincos e um tapete e,
há pouco tempo, deu-me duas minas e pagou por nós a renda
da casa. O que não me deu foram sandálias de Pátara, queijo de
Gítio e outras bugigangas.
67
Aqui alterei a pontuação da ed. Loeb.
68
Ou «caranguejo».
69
Os Dioscuros («filhos de Zeus») eram os gémeos Castor e Pólux;
heróis nacionais no Peloponeso, também tinham um templo em Atenas...
70
Há aqui um jogo de palavras talvez impossível de traduzir, entre
Ônoj «burro» e Ônaio «que lucres», «que te faça bom proveito».
71
Referência a duas prostitutas menos exigentes, certamente bem
conhecidas, e que, por estas duas razões, são aqui nomeadas.
82
MÍRTALE — Ó Dórion, feliz daquela que te tiver como aman-
te, pois hás-de trazer-lhe cebolas de Chipre e queijo, quando
regressares de Gítio.
83
(Página deixada propositadamente em branco)
15. CÓCLIDE E PARTÉNIDE
72
O texto diz «flautas»: trata-se da flauta dupla, donde, em gr., o plural.
73
Trata-se de um jarrão grande, denominado «cratera», onde se mis-
turavam vinho e água, e de onde os convivas se serviam.
74
Música dolente e sensual.
75
Melhor do que «bater as palmas», donde «aplaudir» (interpretação
de alguns comentadores e tradutores), prefiro o sentido de «acompanhar
o ritmo com palmas»..
85
a flauta quebrada, gritando: «Desaparece daqui!». E agora vou
já daqui contar o sucedido ao meu patrão, enquanto o lavrador
vai ter com alguns amigos que tem na cidade, para entregar o
«megarense» aos prítanes.
3] CÓCLIDE — É isto o que ganhamos em ter amantes soldados:
espancamentos e processos em tribunal. Aliás, dizem-se generais
e quiliarcas, mas, quando é preciso pagar, dizem: «Espera pelo
pagamento do ordenado; logo que receba a soldada, dou-te tudo.»
Raios partam esses pantomineiros. Eu é que faço bem em não
receber nem um sequer. Quem me dera um pescador, um ma-
rinheiro ou um lavrador da minha classe social, um que pouco
saiba de lisonjas, mas que me traga muitos presentes. Esses outros,
que agitam os penachos e narram as suas batalhas, ó Parténide,
é tudo conversa fiada.
86
DIÁLOGOS DOS DEUSES
Texto da ed. de Karl Mras, Die Hauptwerke des Lukian
I NTRODUÇÃO
89
um acto, sem ter capacidade de a ele se opor, o culpado será,
única e simplesmente, aquele que deu uma tal ordem, e não
o executor, o qual — reconhece Minos — tem tanta culpa
como, por exemplo, uma espada que mata, mas sem vontade
própria. Então Minos, reforçando ainda mais a razão do...
sofista («Poderás ver muitas outras coisas que ocorrem contra a
lógica»), manda-o em paz, mas avisando: «Mas vê lá não ensines
também os outros mortos a fazerem perguntas dessas.»
Naturalmente, o argumentador não é Sóstrato, mas Luciano,
que, deste modo, põe a nu a fragilidade da justiça divina.
Outros cenas dos Diálogos dos Deuses poderiam ilustrar o
espírito crítico de Luciano. O leitor, à medida que for lendo
cada diálogo, sentirá esse criticismo ao mesmo tempo risonho e
corrosivo. Para os poetas e oradores, a mitologia constitui uma
riquíssima fonte de inspiração, mas os filósofos e os historiadores
devem distanciar-se do sentido literal dessas autênticas fábulas.
Por exemplo: Zeus e as suas metamorfoses para fins clandestinos
(Io, Ganimedes...) e os seus... partos incríveis: dá à luz Atena (pela
cabeça) e Dioniso (pela coxa); os amores, ainda que infelizes, de
Apolo com Jacinto e Dafne; a raiva e o ciúme, muito... humanos
de Hera; Hermes, o menino ladrão e senhor de outras astúcias;
o deus Hélio, o Sol, por ordem de Zeus, faz uma paragem no
seu curso, de forma que a duração da noite triplique, para que
Zeus possa passar uma tripla noite de amor com a esposa de
Anfitrião; noutra ocasião, o mesmo Hélio entrega a condução
do carro a seu filho Faetonte: resultado catastrófico; a deusa
Selene, a Lua, também se atrasa no seu curso, para contemplar
o seu bem-amado Endímion dormindo; as frechadas de Eros e
outras traquinices nada inocentes; os novos deuses, Asclépio e
Héracles, e a sua rivalidade fútil; os amores furtivos de Afrodite
e Ares; o concurso de beleza entre Atena, Hera e Afrodite e os
processos de influenciar (leia-se: subornar) o juiz, processos que,
no caso de Afrodite, são verdadeiramente abjectos, não só para
nós, modernos, mas também para Luciano e muitas pessoas
sensatas, que não viam no comportamento dos deuses nada ou
quase nada digno de imitação.
OBSERVAÇÃO
1. Seguimos a ordenação e a numeração de K ARL MRAS, Die
Hauptwerke des Lukian, Ernst Heimeran Verlag, Viena, 1954. A
numeração da ed. Loeb (e outras edições) vai entre parênteses rectos.
90
2. No entanto, o texto de base é o da «Loeb Classical Library»,
com algumas modificações,
3. Incluímos nos Diálogos dos Deuses o Nº 20 de MRAS (O
Julgamento das Deusas), que a ed. Loeb remete para o vol. III.
Neste diálogo, seguimos as lições de MRAS.
91
(Página deixada propositadamente em branco)
DIÁLOGOS DOS DEUSES
(Página deixada propositadamente em branco)
1. PROMETEU E Z EUS [5]
76
... Cronos, deposto pelo filho. Prometeu não se atreve a dizer o nome.
95
ZEUS — Nesse caso, digamos adeus a Tétis. Que Hefesto te
solte por esta informação.
96
2. EROS E Z EUS [6]
97
(Página deixada propositadamente em branco)
3. Z EUS E HERMES [7]
99
(Página deixada propositadamente em branco)
4. Z EUS E G ANIMEDES [10]
101
GANIMEDES — Isso nunca, pois tenho saudades dele. Mas,
se me levares de volta, prometo-te que te será sacrificado outro
carneiro do seu rebanho como paga da minha libertação. Temos
aquele de três anos, o grande, que conduz [o rebanho] para a
pastagem.
102
5] GANIMEDES — Em que é que a minha formosura te fará
bem em termos de sono?
ZEUS — Ela possui um doce encanto, que torna o sono mais
suave.
GANIMEDES — Mas o meu pai zangava-se comigo, quando
eu dormia com ele, e dizia, logo de manhã, que eu o tinha im-
pedido de dormir, revolvendo-me na cama, dando-lhe pontapés
e falando enquanto dormia, de tal modo, que, a maior parte das
vezes, me mandava dormir junto de minha mãe. Portanto, se,
como dizes, foi para isso [para dormir contigo] que me raptaste,
estás a tempo de me pôr de novo na terra, ou terás problemas de
insónia, pois eu incomodar-te-ei revolvendo-me continuamente
[na cama].
ZEUS — Isso mesmo é a coisa mais agradável que tu me farás:
ficar acordado ao teu lado, beijando-te mil vezes e abraçando-te.
GANIMEDES — Tu próprio verás: eu dormirei, enquanto tu
me dás beijinhos.
ZEUS — Nessa altura veremos o que fazer; mas por agora, ó
Hermes, leva-o e, depois de ele beber um trago de imortalidade,
trá-lo para nos servir de escanção, mas primeiro ensina-o como
deve servir a taça.
103
(Página deixada propositadamente em branco)
5. HERA E Z EUS [8]
105
para mim mais deleitoso e mais desejável que... — Não, não
quero dizer, para não te exasperar ainda mais.
4] H ER A — Cá por mim, até podes casar com ele; mas
lembra-te dos insultos avinhados que me lançaste por causa
desse escanção.
Z EUS — Pois não... [Se calhar] era melhor ser Hefesto, o
teu filho coxo, a servir-nos o vinho, ao chegar da forja, ainda
sujo de escumalha, acabado de poisar a tenaz, e recebermos a
taça daqueles seus dedos, puxá-lo para nós e beijá-lo... Nem
mesmo tu, sua mãe, terias gosto em beijá-lo, assim com o rosto
todo negro de fuligem. Ai não? Quer dizer que Hefesto seria o
escanção mais adequado ao simpósio dos deuses, e Ganimedes
devia ser recambiado para o [monte] Ida? Na verdade, este é
muito asseado, tem dedos rosados, sabe como se oferece a taça
e — é isso que mais te aflige — os seus beijos são mais doces
que o néctar.
106
6. HERA E Z EUS [9]
107
força violenta, que domina não só os homens, mas também,
algumas vezes, nós próprios, [os deuses].
H ER A — Pelo menos de ti, Amor é senhor absoluto, que,
segundo se diz, te traz preso e te arrasta pelo nariz; e tu segue-lo
para onde quer que ele te conduza, transformas-te facilmente
naquilo que ele ordena... numa palavra, és sua propriedade
e seu joguete. E agora estou a ver que lhe concedes perdão,
atendendo a que tu próprio tiveste relações adúlteras com a
mulher dele, que te deu à luz Pirítoo.
108
7. H EFESTO E A POLO [11]
109
4] A POLO — Tendo achado uma tartaruga morta, construiu
com ela um instrumento musical: acrescentou-lhe um braço,
fixou-lhe uma travessa, depois meteu-lhe cavilhas, pôs-lhe um
cavalete e, com sete cordas esticadas, toca com muitíssima
graça e harmonia, de tal modo que eu próprio, que há muito
pratico a lira, fico cheio de inveja. Dizia-me Maia que ele não
permanece de noite no céu, mas que, por curiosidade, desce
até ao Hades... para de lá roubar qualquer coisa, é claro. Ele
até possui asas nos pés e mandou fazer um caduceu com um
poder maravilhoso, com o qual conduz as almas e leva os
mortos lá para baixo.
H EFESTO — Fui eu que lho dei, para ele brincar.
A POLO — E ele pagou os teus honorários, foi-te à tenaz e...
H EFESTO — Fizeste bem em me lembrar: vou já buscá-la...
se é que, como tu dizes, ela se encontra no meio das fraldas.
110
8. H EFESTO E Z EUS [13]
77
Sigo a lição do ms. L (da família b)
78
Segundo a lição de alguns mss.
111
Z EUS — Se achas melhor, procede desse modo, mas eu sei
que pretendes o impossível.
112
9. POSÍDON E HERMES [12]
113
fiz, e ele, tendo feito uma abertura na coxa, introduziu o feto,
para que aí chegasse ao termo [da gravidez]. E agora, a caminho
do terceiro mês, deu à luz e encontra-se adoentado de dores de
[pós-]parto.
POSÍDON — E onde se encontra neste momento o bebé?
HERMES — Levei-o a Nisa e entreguei-o às Ninfas, para que
o criassem, com o nome de Dioniso.
POSÍDON — Quer dizer que o meu irmão Zeus é ao mesmo
tempo mãe e pai desse tal Dioniso?!
HERMES — Parece que sim. Bem... vou dar-lhe água para
[lavar] a ferida e fazer outras coisas julgadas necessárias, como
se fosse para uma parturiente.
114
10. HERMES E H ÉLIO [14]
2] HÉLIO — Pois então que ele meta mãos à obra e... boa sorte.
Mas essas acções, ó Hermes (agora que ninguém nos ouve), não
aconteciam no reinado de Cronos: este nunca dormia fora do
leito de Reia nem deixaria o céu para ir dormir a Tebas, mas o
dia era o dia, e a noite durava segundo a sua medida, de acordo
com as estações; não acontecia nada de estranho ou de anormal,
e o deus não teria nunca tido relações com uma mulher mortal.
Agora, porém, por causa de miserável mulherzinha, há que alterar
tudo por completo: os meus cavalos são obrigados a ficar presos
de movimentos devido à inactividade; e o caminho, sem ser pi-
sado durante três dias, ficará intransitável; e os pobres homens
viverão nas trevas. É isso que eles ganharão com os amores de
Zeus, esperando sentados e envolvidos em longa escuridão, até
que ele acabe de fabricar o tal atleta de que tu falas.
HERMES — Cala-te, Hélio, ainda assim não te venha algum
mal das tuas palavras. Bem, vou ter com Selene 80 e com Hipno,
79
Seguimos a lição dos mss. B e L (ed. K. Mras).
80
Selene ou Selene, a Lua; Hipno, o Sono.
115
a fim de lhes anunciar também a eles as ordens de Zeus: a uma,
Selene, que avance muito lentamente, e ao Sono que não largue 81
os homens, de modo que eles não saibam que a noite foi assim
tão longa.
81
Sigo a lição do ms. b (e ed. de K. Mras).
116
11. A FRODITE E SELENE [19]
82
Eros, Amor (o Cupido latino).
83
Segundo a lenda, Adónis repartia a sua vida amorosa entre a deusa
celeste (Afrodite) e a deusa infernal ) Perséfone).
117
(Página deixada propositadamente em branco)
12. A FRODITE E EROS [20]
119
(Página deixada propositadamente em branco)
13. Z EUS, A SCLÉPIO E H ÉRACLES [15]
121
(Página deixada propositadamente em branco)
14. HERMES E A POLO [16]
84
Nas pétalas do jacinto, os antigos viam as letras AIAI (interj. a„a‹),
donde se formou o verbo a„£zw. V. Ov., Met., X, 215...
123
(Página deixada propositadamente em branco)
15. HERMES E A POLO [17]
85
Hefesto, que os Romanos denominavam Vulcano, o ferreiro dos deuses.
86
Outros mss. dizem, mais explicitamente (talvez por obra de um
copista ou comentador mais obsequioso) «ferreiro de seu ofício».
87
Trata-se de uma das três Graças, Aglaia; as outras duas são Eufrósine
e Talia.
125
armadilha que os enrede no momento em que eles estejam [os
dois] na cama.
A POLO — Não sei... mas bem gostaria de ser eu o apanhado.
126
16. HERA E L ATONA [18]
127
todo o atrevimento; mas deixa estar que em breve te verei de novo
a chorar. quando ele te abandonar e descer à terra disfarçado de
touro.
128
17. A POLO E HERMES [21]
129
(Página deixada propositadamente em branco)
18. HERA E Z EUS [22]
88
Referência a Penteu, rei de Tebas, que violou os mistérios dionisíacos
e foi despedaçado pelas bacantes e por sua própria mãe, Ágave, que, na
sua fúria, viram nele uma corça.
89
Os antigos costumavam beber vinho misturado com água; só os
beberrões o bebiam vinho puro: Adde merum! «chega-lhe do puro!» diz
Horácio.
131
além do que é decente. Mas quem beber moderadamente ficará
mais alegre e mais agradável, e aquilo que se passou com Icário
não se passaria com nenhum dos convivas. Mas... ó Hera, parece
que ainda estás com ciúmes, lembrada [do episódio] de Sémele,
a ponto de depreciares as belas qualidades de Dioniso.
132
19. A FRODITE E EROS [23]
133
actividade. Mas o irmão dela, muito embora seja também um
[grande] arqueiro e «atire muito longe a flecha»...
A FRODITE — Já sei, meu filho: já lhe mandaste muitas fre-
chadas.
134
20. Z EUS, HERMES, HERA, ATENA, A FRODITE, PÁRIS
(O JULGAMENTO DAS DEUSAS)
135
A FRODITE — Tudo isso que me estás a dizer é muito bom...
o facto de o juiz ser justo... Mas... esse tal [fulano] é solteiro
ou vive com uma mulher?
H ERMES — Bem, Afrodite... não é completamente solteiro.
A FRODITE — É o quê?
H ERMES — Creio que vive com ele uma certa mulher do
monte Ida, engraçadota, mas rude e terrivelmente rústica. Mas
não parece que ele esteja muito apegado a essa mulher. Mas...
porque fazes essa pergunta?
A FRODITE — Perguntei por perguntar.
136
H ERMES — Como dizes? Não estás a ver, assim, na direc-
ção do meu dedo, uns bezerros saindo do meio das rochas e
um fulano a correr rochedo abaixo, com um cajado na mão,
tentando impedir a manada de se dispersar?
H ER A — Agora sim, já estou a ver... se é que é mesmo ele...
H ERMES — Mas é mesmo ele. E já que estamos perto da
terra, desçamos, por favor, e caminhemos a pé, para não o
assustarmos, se descêssemos cá de cima e repentinamente em
voo picado.
H ERA — Dizes bem: façamos desse modo. Bem... agora que
já poisámos, compete-te a ti, Afrodite, ir à frente a indicar-
-nos o caminho, pois tu, naturalmente, tens experiência deste
caminho, pelo facto de, como é voz corrente, teres descido até
aqui para te encontrares com Anquises.
A FRODITE — Ó Hera... esses teus remoques não me aque-
cem nem me arrefecem...
6] H ERMES — Pois quem vos guiará sou eu, uma vez que
eu próprio passei algum tempo no [monte] Ida, no tempo em
que Zeus estava apaixonado pelo jovem frígio 90 . Muitas vezes
vim a este lugar, enviado por Zeus, a fim de espiar o rapaz,
e, quando Zeus se transformou em águia, eu voava a seu lado
e confortava o formoso jovem. Se bem me recordo, foi deste
rochedo que ele o raptou: estava o jovem a tocar flauta junto
do rebanho, quando Zeus, descendo por detrás dele, o envol-
veu muito suavemente nas garras e, agarrando com o bico a
fita que ele tinha a envolver a cabeça, elevou-se no ar, levando
consigo o jovem aterrorizado, que voltava o pescoço para ver
[o seu raptor]. Então eu, apanhando a flauta, que ele, cheio
de medo, tinha largado... Mas... eis-nos chegados ao pé dele,
pelo que temos de o saudar:
137
Não tenhas receio, pois não se trata de nenhum assunto de-
sagradável: Zeus ordena-te que sejas o juiz da beleza destas
[deusas], pois — diz ele — tu és formoso e entendido em coisas
de amor. Deixo ao teu cuidado a sentença, mas, quanto ao
prémio do concurso, tomarás dele conhecimento lendo o que
está inscrito na maçã.
PÁRIS — Vejamos então o que é que ele quer... Está escrito:
«PAR A A MAIS BELA». Mas... ó Hermes, meu Senhor, como é
que eu, simples mortal e homem rude, poderia ser juiz num
espectáculo tão extraordinário e acima das possibilidades de
um pastor? Julgar assuntos como este é coisa mais para pessoas
finas e urbanas. Pela minha parte, mal seria capaz de julgar,
segundo a minha profissão, se uma cabra é mais bonita que
outra cabra ou uma vitela mais bonita que outra vitela...
8] ... Mas estas são todas igualmente formosas... não sei
como é que [o juiz] poderia desviar o olhar de uma para o fazer
incidir sobre outra, pois não quereria facilmente afastá-lo, mas,
onde primeiro se fixasse, aí ficaria preso e elogiaria aquela que
tivesse à frente; mas, se lançasse os olhos para outra, achá-la-ia
igualmente bela, fixar-se-ia nela e ficaria cativado com tudo
o que via. Em resumo, a beleza destas deusas penetra-me e
envolve-me todo, e só lamento não poder, como Argos, ver
com todo o meu corpo. Creio que pronunciaria um julgamento
justo, se desse a todas a maçã. E tem mais: acontece que uma
é irmã e esposa de Zeus, e as outras são filhas deste. Portanto,
como é que este julgamento pode deixar de ser difícil?
HERMES — Não sei, mas não é possível furtar-se a [cumprir]
uma ordem de Zeus.
138
H ERMES — Vocês aí, dispam-se! E tu examina-as, que eu
já virei a cara.
91
Acrescento (emenda) de Mras.
139
PÁRIS — Não é do meu carácter deixar-me influenciar por
presentes. Mas retira-te. A sentença será conforme com a minha
consciência. Que se apresente Atena.
140
parte das vezes nua e de porte atlético; na verdade, é tão
pretendida, que se gerou uma guerra por sua causa, quando
Teseu a raptou ainda em idade imatura. Mal, porém, atingiu
à idade adulta, todos os nobres aqueus se apresentaram como
seus pretendentes, mas o preferido foi Menelau, da família
dos Pelópidas. Mesmo assim, se quiseres, poderei arranjar-te
casamento com ela.
PÁRIS — É o quê? Com uma mulher casada?
A FRODITE — És muito novinho e muito ingénuo, mas eu
sei como preparar a coisa.
PÁRIS — Mas como? Sim, quero saber.
92
Hímero, o Desejo; Eros, o Amor (o Cupido latino).
141
PÁRIS — Receio que, depois do julgamento, não penses
mais em mim.
A FRODITE — Queres que jure?
PÁRIS — De maneira nenhuma... mas promete outra vez.
A FRODITE — Prometo dar-te Helena por tua esposa; que
ela seguir-te-á e que chegará a Ílion, vossa terra; e eu própria
estarei presente e farei tudo o que for preciso.
PÁRIS — E trarás contigo Eros, Hímero e as Cárites?
A FRODITE — Fica descansado, que, além destes, também
levarei Poto e Himeneu.
PÁRIS — Sendo assim, em troca disso, dou-te a maçã: toma.
142
21. A RES E HERMES [1]
143
(Página deixada propositadamente em branco)
22. PÃ E HERMES [2]
145
e chefe de dança. Se visses os meus rebanhos, todos os que eu
possuo na região de Tegeia e no cimo do Parténio, ficarias muito
contente. Sou senhor de toda a Arcádia. Muito recentemente,
lutando ao lado dos Atenienses em Maratona, portei-me tão
heroicamente, que me foi atribuída como prémio a gruta sob a
Acrópole. Portanto, se fores a Atenas, saberás quão prestigiado
é aí o nome de Pã.
146
23. A POLO E DIONISO [3]
147
(Página deixada propositadamente em branco)
24. HERMES E M AIA [4]
149
(Página deixada propositadamente em branco)
25. Z EUS E HÉLIO [24]
151
Ora, o moço já pagou pelo que fez, e eu, ó Zeus, já tenho, com
o meu luto, castigo que baste.
Z EUS — Castigo que baste, depois de uma tal audácia?
Bem, desta vez concedo-te perdão, mas, de hoje em diante,
cometeres alguma infracção semelhante [a esta], ou se man-
dares no teu lugar alguém como esse [jovem], ficarás a saber
até que ponto o meu raio é mais ardente que o teu fogo. Para
já, que as suas irmãs o sepultem nas margens do Erídano, no
local onde ele se precipitou do carro e caiu; que elas chorem
lágrimas de âmbar e se transformem em choupos 93 , em sinal
de luto. E tu concerta o teu carro, que tem o timão quebrado
e uma das rodas destroçadas, e atrela e conduz os cavalos. E
lembra-te de tudo [o que te disse].
93
Ou «salgueiros», ou (designação vulgar) «chorões», que condiz me-
lhor com o contexto.
152
26. A POLO E HERMES [25]
94
Frase idiomática, que mantivemos, mas que pode ser traduzida por
«Muito obrigado por me teres ensinado a diferençá-los».
153
A POLO — Ó Hermes, mas que profissão salutar, essa de
que falas.
154
DIÁLOGOS DOS DEUSES MARINHOS
Texto da ed. de Karl Mras, Die Hauptwerke des Lukian
INTRODUÇÃO
157
O leitor moderno pode e deve assumir as duas «leituras»:
por um lado, a do homem comum, que não detecta contradi-
ções, que aceita essas narrativas como, pelo menos, verdadeiras
enquanto são contadas, ou até como sendo a visão artística do
poeta, do pintor ou do escultor, isto é, como elemento artístico-
-cultural; e, por outro lado, a leitura do céptico, o qual, ao
tomar à letra as cenas e os eventos que fazem parte do currículo
dos deuses, denuncia a falsidade não só da mitologia, mas da
própria religião. Creio que Luciano fazia ambas as «leituras».
158
DIÁLOGOS DOS DEUSES MARINHOS
1. DÓRIDE 95 E G ALATEIA
95
Dóride (Dóris), filha de Oceano e irmã de Tétis, desposou seu irmão
Nereu, de quem teve 50 filhas, as Nereidas.
161
ninguém te elogia, seja ele pastor, marinheiro ou barqueiro. Aliás,
Polifemo entre outras coisas, é músico.
162
2. CICLOPE E POSÍDON
163
4] P OSÍDON — Estou vendo: sem tu dares por isso, os
homens escaparam-se por debaixo das ovelhas. Mas devias ter
chamado os outros ciclopes em teu socorro.
C ICLOPE — Eu chamei-os, meu pai, e eles acorreram; mas,
quando me perguntaram o nome de quem me tinha feito mal
e eu lhes disse «Ninguém», julgaram que eu estava louco, pelo
que se retiraram. Foi assim, com o seu nome, que o maldito
me enganou. Mas o que mais me aborreceu foi ter dito, ao
mesmo tempo que me lançava à cara a minha desgraça: «Nem
Posídon, teu pai, te curará.»
POSÍDON — Anima-te, meu filho, pois eu vingar-me-ei dele,
que é para saber que, se me é impossível curar a perda da vista, já
o que respeita aos navegantes — salvá-los ou aniquilá-los — está
sob a minha alçada. E ele ainda anda no mar...
164
3. POSÍDON E A LFEU96
96
Rio da Arcádia e da Élide, aqui personificado.
165
(Página deixada propositadamente em branco)
4. M ENELAU E PROTEU
97
Também para os gregos, «tudo o que vem à rede...».
167
(Página deixada propositadamente em branco)
5. POSÍDON E OS GOLFINHOS
98
Referência a Aríon, natural de Metimna, cidade de Lesbos.
99
Alguns mss. e editores modernos (Loeb...) incluem o período de
Realmente até outros na fala anterior, só fazendo entrar a fala de Posídon
desde Mas então até Aríon. Entendi seguir outra interpretação (K. Mras...).
Naturalmente, cada uma das opções implica pequenas alterações (vos/nos).
169
(Página deixada propositadamente em branco)
6. POSÍDON, [A NFITRITE] E AS NEREIDAS [9]
100
Segui a lição q£mbei. Muitos editores (K. Mras, Loeb...) preferem
a lição q£lpei, que daria o sentido de «cheia de calor»...
171
(Página deixada propositadamente em branco)
7. PÂNOPE E G ALENE101 [5]
101
Duas Nereidas.
102
Personificação da discórdia: Discórdia.
173
(Página deixada propositadamente em branco)
8. TRITÃO, [A MIMONE103] E POSÍDON [6]
103
Danaide amada por Posídon. Como a Argólida era muito seca,
Posídon fez nascer uma fonte naquela região. Alguns editores não a in-
cluem no título.
104
O seu nome, como se vê a seguir, é Dánao.
175
A MIMONE — Ó homem, porque me raptas e para onde
me levas? És mesmo um raptor de gente livre... Parece-me que
foste enviado pelo meu tio Egipto. Vou gritar pelo meu pai.
T RITÃO — Cala-te, Amimone, pois trata-se de Posídon.
A MIMONE — Qual Posídon?! Ó homem, porque me violen-
tas e me arrastas para o mar? Infeliz de mim, que irei ao fundo
e morrerei afogada.
POSÍDON — Anima-te, nada de mal te acontecerá. Mas antes,
batendo com o tridente na rocha junto à praia, farei brotar neste
sítio uma fonte com o teu nome, e tu ficarás feliz e, além disso, serás
a única de entre as tuas irmãs que, depois de morta, não carregará
água.
176
9. ÍRIS E POSÍDON [10]
105
Jogo de palavras intraduzível: dÁloj «visível» e DÁloj «(ilha de)
Delos». Luciano parece recolher uma variante da lenda, que não se encontra
em mais nenhuma fonte de informação.
177
(Página deixada propositadamente em branco)
10. X ANTO E O M AR [11]
179
(Página deixada propositadamente em branco)
11. NOTO E Z ÉFIRO
106
Para alguns editores atribuem o último período à fala seguinte,
de Zéfiro.
107
Trata-se do deus egípcio Anúbis, que os Gregos identificavam com
Hermes.
181
(Página deixada propositadamente em branco)
12. DÓRIDE108 E TÉTIS
108
Dóride (Dóris), filha de Oceano e irmã de Tétis, desposou seu irmão
Nereu, de quem teve 50 filhas, as Nereidas.
109
Aqui segui a edição de K. Mras.
183
(Página deixada propositadamente em branco)
13. ENIPEU E POSÍDON
185
(Página deixada propositadamente em branco)
14. TRITÃO E AS NEREIDAS
110
Polidectes, rei de Sérifo (ilha do mar Egeu).
187
3] Depois, ao chegar aqui às costas da Etiópia, e voando
já mais baixo, avista Andrómeda, que jazia amarrada a um
rochedo alcantilado, formosíssima, ó deuses, de cabelos soltos
e seminua muito abaixo dos seios. Logo de início, compade-
cido da sua sorte, perguntou-lhe o motiva da condenação, mas,
um pouco depois, dominado pela paixão... mas havia primeiro
que salvar a jovem, decidiu socorrê-la. Assim, logo que surgiu o
monstro deveras pavoroso que vinha devorar Andrómeda, o jovem
elevou-se no ar de cimitarra em riste numa das mãos, com que
ataca, e, exibindo na outra mão a Górgona, transforma em pedra
o monstro, bem morto, ao mesmo tempo que ficou petrificada
a maior parte do seu corpo — aquela que esteve virada para a
Medusa. Então Perseu desatou as cadeias da jovem e, dando-lhe
a mão, amparou-a, enquanto ela, nas pontas dos pés, descia do
rochedo, que era muito escorregadio. E vai já casar com ela no
palácio de Cefeu, e depois há-de levá-la para Argos... e foi assim
que a jovem, em vez da morte, conseguiu um casamento nada
habitual.
188
15. Z ÉFIRO E NOTO
189
espectadores, enquanto os Amores, esvoaçando um pouco acima
da superfície do mar, a ponto de algumas vezes tocarem na água
com as pontas dos pés, e empunhando fachos acesos, cantavam
e entoavam o hino do casamento; e as Nereidas, emergiam das
águas cavalgando golfinhos, batendo palmas e quase todas nuas;
e a raça dos Tritões e todos os outros seres marinhos de aspecto
nada aterrorizador dançavam à volta da jovem; Posídon, de cima
do seu carro e tendo a seu lado Anfitrite, seguia na frente, todo
feliz por acompanhar seu irmão que nadava. Enfim, na cauda do
cortejo, seguia Afrodite, transportada por dois Tritões, reclinada
numa concha e espalhando toda a espécie de flores sobre a noiva.
190
DIÁLOGOS DOS MORTOS
191
Texto da ed. de Karl Mras, Die Hauptwerke des Lukian
192
I NTRODUÇÃO
O S Diálogos
193
os homens tinham as esposas legítimas para lhes darem filhos,
e as heteras para divertimento; por outro lado, a prostituta...
de esquina era designada por pÒrnh, pórnê, «puta» «meretriz»,
porn…dion, pornídion, «putéfia», às vezes porn…on, «putinha»...
À profissão, tendencialmente rendosa, de «cortesã» estava
muitas vezes associada a figura da mãe, especialmente da mãe
viúva, que punha nos dotes físicos da filha a sua única esperança
de não morrer de fome (v. 7: «Musário e sua mãe»).
Naturalmente, Luciano conhecia o ambiente, não apenas
das leituras da Comédia Nova, mas, sobretudo, da vida real
ateniense dos meados do séc. II d.C.; e embora a focagem
esteja projectada principalmente sobre a cortesã, a mãe, uma
amiga, a criada, etc., Luciano não deixa de nos mostrar alguns
exemplares de amantes (homens): os infiéis, os apaixonados,
os chorões, os mãos-largas e os forretas, os pobretanas, os
violentos... Em todo o caso, é importante notar que Luciano
não se mostra muito (ou nada!) crítico relativamente à pros-
tituição, que ele devia ver como uma opção de vida por parte
da mulher e como uma liberdade por parte do homem. Mais
do que criticar, Luciano descreve diversos quadros da vida
sexual e do comportamento do jovem e do homem casado
do seu tempo. É que, para sermos curtos e breves, certas
«instituições», como a escravatura e a prostituição, estavam
tão integradas na mentalidade das pessoas, que a ninguém
ocorria sequer pô-las em causa.
194
Fundamentalmente, são-nos apresentados mortos ilustres,
quer à chegada ao reino de Hades, quer já de há longo tempo
aí residentes. Naquele ambiente concentracionário, lúgubre
e escuro, surgem alguns problemas, que envolvem não só os
«hóspedes» entre si, mas também as divindades infernais.
Deste modo, poderíamos dizer que se trata, de algum modo,
também de diálogos dos deuses infernais, nas suas relações
com os mortos à sua guarda.
Mais uma vez, Luciano aplica aqui a sua crítica acutilante,
que não poupa nem as fraquezas humanas, nem alguns aspectos
irracionais da mitologia. Entre as personagens destes diálogos
salientam-se sobretudo, como representantes das ideias do
próprio Luciano, as figuras dos filósofos cínicos Menipo e
Diógenes, que entram em 16 dos 30 diálogos: 1 (Menipo indi-
rectamente), 2, 3, 11 (Diógenes e o filósofo cínico Crates), 13,
16, 17, 18, 20, 21, 22, 24, 25, 26, 27 (Diógenes, Antístenes e
Crates) e 28. A estes devemos acrescentar outras personagens,
divinas ou humanas, como Agamémnon, Ájax, Alexandre,
Aníbal, Antíloco, Aquiles, Cipião, Creso, Filipe, Mausolo,
Midas, Nireu, Pitágoras, Protesilau, Sardanapalo, Sócrates,
Sóstrato, Tântalo, Tersites, Tirésias; Caronte, Cérbero, Éaco,
Héracles (Hércules), Hermes, Minos, Perséfone (Prosérpina),
Pólux, Plutão, Quíron...
Umas quantas (poucas) personagens humanas podem ser
fictícias ou não passam de «celebridades locais», mas, por isso
mesmo, têm, mais do que valor histórico, um certo valor sim-
bólico, como os parasitas Calidémides, Cnémon, Zenofanto,
Térpsion, Damnipo... Mas as grandes figuras dos Diálogos
dos Mortos são mesmo personagens da grande história: heróis
homéricos, soberbos monarcas orientais, generais, filósofos e,
é claro, algumas das principais divindades infernais.
Entre as personagens que merecem a simpatia de Luciano,
contam-se os filósofos cínicos Diógenes e Menipo. De facto, a
filosofia cínica, constituiu, na Antiguidade, o movimento mais
corrosivo e mais crítico dos valores «universais», supostamente
imutáveis, da sociedade «bem-pensante». Outra corrente filo-
sófica que merece a admiração de Luciano (presente noutras
obras, que não nesta) é o atomismo (Demócrito...), pela sua
racionalidade contrária a todas as crenças infantis e cretinizantes.
Diógenes de Sinope, no Ponto Euxino, viveu no séc. IV a.C.,
em Atenas e Corinto. É o principal representante da filosofia
195
Cínica, fundada em Atenas por Antístenes (n. 440 a.C.). Outros
filósofos cínicos são Crates e Menipo. Na sua forma mais ou
menos definitiva, a filosofia cínica tenta destruir os valores
mais firmes, pretensamente universais, da sociedade tradicional
«bem comportada». Na Antiguidade, contavam-se, a respeito
de Diógenes, centenas de histórias, na sua maioria inventadas,
mas, de qualquer forma, bem ilustrativas da personagem e das
suas ideias. A designação de cínico deriva de Cinosarges, local
a leste e nos arredores de Atenas, onde a escola funcionava.
Outros fazem derivar a palavra de kÚwn, tema kun-, «cão», al-
cunha dada a Diógenes... e a todos os outros (p. ex., Menipo:
v. D. M., 21).
Menipo (séc. III a.C.) foi um notável filósofo desta mesma
escola, cuja obra se perdeu, mas de que restam ecos noutros es-
critores. No diálogo nº 1, Luciano, por intermédio de Diógenes,
fornece-nos um bom retrato deste cínico.
196
DIÁLOGOS DOS MORTOS
(Página deixada propositadamente em branco)
1. DIÓGENES E PÓLUX111
111
Castor e Pólux, os Dioscuros «filhos de Zeus», gémeos dos mais
famosos da mitologia. Sua mãe, Leda, esposa de Tíndaro, rei de Esparta,
teve, na mesma noite, relações com o marido e com Zeus, que lhe havia
aparecido sob a forma de cisne. Dessa união nasceram Castor, filho de
Tíndaro, e Pólux, filho de Zeus. Só este teria direito à mortalidade... mas
as coisas compuseram-se, na medida do possível: cada um deles passaria,
alternadamente, seis meses no Hades e seis meses no Olimpo. É a essa
alternância que se refere o texto.
112
Hécate, deusa infernal, venerada nas encruzilhadas, protectora
das bruxas, por vezes associada à Lua. Os mortos acalmavam a sua ira,
levando-lhe o «jantar de Hécate», a que aqui se faz referência.
199
PÓLUX — Então diz lá, pois não será muito custoso.
DIÓGENES — Em poucas palavras, recomenda-lhes que
deixem de dizer asneiras, de discutir sobre todas as matérias,
de porem cornos uns aos outros113 , de fazerem crocodilos e de
ensinarem os espíritos a fazerem perguntas insolúveis como estas.
PÓLUX — Mas... eles vão dizer que eu sou um ignorante,
um estúpido, por atacar a sua sabedoria.
DIÓGENES — E tu diz-lhes que vão passear, que sou eu
que mando.
PÓLUX —Também lhes darei esse recado, Diógenes.
113
Alude-se a um falso silogismo: a) Tens o que não perdeste; b) Não
perdestes os cornos; c) Logo, tens cornos. A falácia do crocodilo era outra
das armadilhas com que alguns «filósofos» maravilhavam e confundiam
os simples.
114
Além do «jantar de Hécate» (v. supra), os mortos levavam uma
moedinha de 1 óbolo, para pagarem a passagem (v. diálogo nº 22).
115
Castor e Pólux tinham nascido em Esparta, na Lacónia (v. nota supra).
200
P ÓLUX — Ó Diógenes, não digas nada a respeito dos
Lacedemónios, que é coisa que eu não vou admitir; todavia, o
que tu disseste dirigido aos outros, isso eu transmitirei.
DIÓGENES — Pois deixemos esses em paz, já que assim o
queres. Quanto àqueles que anteriormente referi, leva-lhes o
recado da minha parte.
201
(Página deixada propositadamente em branco)
2. C RESO, P LUTÃO116, M ENIPO, M IDAS E SARDANAPALO
116
Plutão, ou Hades, o deus supremo do reino dos mortos.
203
M ENIPO — Muito bem! Continuai assim: vós lamentais-
-vos, e eu, repetindo vezes sem conto o «Conhece-te a ti mesmo»,
cantá-lo-ei para vós, pois será bem próprio de ser cantado a
acompanhar as vossas lamentações.
204
3. M ENIPO E TROFÓNIO 117
117
Alguns editores atribuem a 2ª fala a Anfíloco, pelo que introduzem
o seu nome no título: M ENIPO, A NFÍLOCO E TROFÓNIO.
118
Trofónio e Anfíloco, apesar de terem origem humana, ganharam
tal fama como adivinhos, que foram assimilados a divindades. As dúvidas
de Menipo são, pois, muito pertinentes. Curiosa é a justificação dada por
Trofónio.
119
Lebadia, cidade da Beócia.
205
(Página deixada propositadamente em branco)
4. HERMES120 E C ARONTE
207
maioria chegam cá, ao que parece, por conspirarem uns com os
outros por motivos de dinheiro.
C ARONTE — Realmente, o dinheiro é uma coisa muito
apetecível.
HERMES — Justamente por isso, não deve parecer-te desca-
bido que eu exija amargamente que me pagues o que me deves.
208
5. PLUTÃO E HERMES
122
Cinquenta mil é aquilo a que se chama «numeração indeterminada»;
traduzi à letra, mas também podiam ser «mais de mil», «dez dúzias», etc.
(cf. Diál. nº 9, nota).
123
Siciónio, natural de Sícione, cidade da Acaia.
124
Alguns editores cortam aqui a fala de Hermes, passando para Plutão,
até ao fim do parágrafo e continuando pelo parágrafo seguinte.
125
Iolau, companheiro de Héracles, muito popular na Beócia.
209
HERMES — Não te dê cuidados, Plutão, que tos vou trazer
imediatamente, todos se enfiada... creio que são sete.
PLUTÃO — Arrasta-os cá para baixo, enquanto ele, novamente
regressado, de velho que era, à primeira juventude, acompanhará
o funeral de cada um deles.
210
6. TÉRPSION126 E PLUTÃO
211
levá-los à certa? Por isso mesmo é que sois motivo de riso, quando
enterrados antes dos velhos, facto que provoca enorme gozo em
muita gente. Sim, que quanto mais vós fazeis votos por que os
velhos morram, tanto maior gozo causa a toda a gente que vós
morrais antes deles. Realmente, vós imaginastes uma nova arte,
a de amar velhas e velhos, especialmente se não têm filhos, pois
os que têm filhos não suscitam o vosso amor. Mesmo assim,
muitos daqueles que vós amais, compreendendo a perversidade
do vosso amor, se por acaso têm filhos, fingem odiá-los, a fim
de terem amadores; mas depois, nos seus testamentos, deixam de
fora os antigos satélites, e o filho e a natureza, como é de justiça,
se apoderam de toda a fortuna, enquanto os outros rangem os
dentes, consumidos de raiva.
212
7. Z ENOFANTO128 E C ALIDÉMIDES
213
o que se passara, desatou a rir com o que o escanção acabara de
fazer.
ZENOFANTO — Mas tu não precisavas de te virar para a via mais rá-
pida, pois a fortuna chegaria às tuas mãos pela via geral, mais segura,
ainda que um pouco mais lenta.
214
8. CNÉMON131 E DAMNIPO
131
Cnémon e Damnipo são, mais uma vez, sobretudo personagens
simbólicas.
215
(Página deixada propositadamente em branco)
9. SÍMILO E POLÍSTR ATO
132
O texto diz «dez mil», que é um número indeterminado, que po-
deríamos traduzir, p. ex., por «mil», «um milhão»... (v. diál. nº 5, nota).
133
A tradução por «amantes» (nesta fala e na seguinte) poderia induzir
em erro, pois trata-se de «amantes homens», como se vê logo a seguir...
217
SÍMILO — Porventura também tu, à semelhança de Fáon,
passaste Afrodite de barco, de Quios, e depois a deusa, a teu
pedido, te concedeu seres outra vez jovem e belo como outrora
e digno de ser amado?
POLÍSTR ATO — Não, mas, mesmo sendo como agora, eu
era muito desejado.
SÍMILO — É um enigma isso que me contas.
134
«Afrodite de ouro» era uma designação corrente e poética da deusa,
mas aqui joga-se com outro sentido: a beleza conferida (!) pelo dinheiro...,
a beleza de quem é rico...
218
uma língua bárbara, e é considerado mais nobre que Codro135,
mais belo que Nireu136 e mais arguto que Ulisses.
SÍMILO — Pouco me importa! Até pode ser o general da
Grécia, se assim entenderem: basta que os outros não sejam
herdeiros.
135
Codro foi o último dos lendários reis de Atenas.
136
Nireu faz parte da galeria de beldades lendárias (cf. Diál. nº 18).
219
(Página deixada propositadamente em branco)
10. C ARONTE E H ERMES
137
Outras edições preferem «vossa»; a variante vem desde muito cedo,
desde que passou a confundir-se Øm‹n com ¹m‹n ambos pronunciados
[himín],
138
O talento não era uma moeda, mas aquilo a que chamamos uma
«unidade de conto» (cf. dez contos de reis): 1 talento = 60 minas; 1 mina
= 100 dracmas; 1 dracma = 6 óbolos. Como se vê, trata-se de uma quantia
elevadíssima.
221
elegante. Sobe já! ... E esse aí, vestido de púrpura e com um
diadema, todo altivo... Quem és tu?
4] L AMPICO — Lampico, tirano139 de Gela 140 .
H ERMES — Ó Lampico, então porque é que te apresentas
aqui com tanta coisa?
L AMPICO — O quê? devia vir todo nu, ó Hermes, eu, um
tirano?
H ERMES — Qual tirano, qual quê! Diz antes um simples
morto. Portanto, deita tudo isso fora.
L AMPICO — Pronto, lá se foi a riqueza.
H ERMES — Deita fora também a vaidade, ó Lampico, e a
altivez, pois estas, ao caírem no barco, torná-lo-ão mais pesado.
L AMPICO — Mas... deixa-me ao menos ficar com o diadema
e com o manto.
H ERMES — De modo nenhum! Larga também isso.
L AMPICO — Pronto! Que mais ainda? Já larguei tudo,
como vês.
H ERMES —Também a crueldade, a insensatez, a insolência
e a cólera, larga tudo isso.
L AMPICO — Pronto, estou completamente nu.
139
A tirania foi o regime político que, muitas vezes, sucedeu à monarquia
e antecedeu a democracia; enquanto a monarquia era de origem divina, a
tirania, em princípio, apoiava-se no Povo. Para os Antigos, o bom tirano
era mais frequente que o déspota. Como aconteceu com outras palavras
(sofista, demagogo...), tirano e tirania ganharam um sentido altamente
pejorativo. Segundo Aristóteles (v. P. Lavedan, Dict. de la myth. et des
antiquités grecques et romaines), «o tirano tem por única missão proteger
o povo contra os ricos; começou sempre por ser um demagogo [outra
palavra sem sentido necessariamente pejorativo: «condutor do Povo»], e
é da essência da tirania combater a aristocracia».
140
Gela, colónia grega na costa sul da Sicília.
222
DAMÁSIAS — Pronto, agora, como vês, estou verdadeira-
mente nu e nas mesmas condições que os outros mortos.
223
9] MENIPO — Que ele largue também essa barba, ó Hermes,
pois é pesada e farfalhuda, como vês: são pelo menos cinco
minas141 de cabelo.
H ERMES — Dizes bem. Larga também essa coisa.
F ILÓSOFO — E quem é que ma vai rapar?
HERMES — Aqui o Menipo pega no machado da construção
naval e corta-a, servindo-se da escada como cepo.
MENIPO — Não, Hermes, dá-me antes uma serra, que assim tem
mais piada.
HERMES — O machado serve muito bem... Pronto, agora tens
mais aspecto humano, depois de te libertares desse cheiro a bode.
MENIPO — Queres que eu lhe corte um pouco as sobrancelhas?
HERMES — Sim, é claro, pois ele fê-las subir pela testa acima,
dando de si um aspecto mais sobranceiro, não sei lá porquê.
Mas... que vem a ser isto? Agora choras, meu monte de merda, e
acobardas-te perante a morte? Vamos, entra!
MENIPO — Há ainda uma coisa, mais pesada, que ele tem de-
baixo do sovaco.
H ERMES — O que é, ó Menipo?
M ENIPO — A adulação, ó Hermes, que lhe foi muito útil
em vida.
F ILÓSOFO — Então também tu, ó Menipo, larga essa tua
liberdade, a tua franqueza no falar, o teu desprezo pela dor, a
tua magnanimidade, e o teu riso... Sim, pois, entre nós todos,
és o único que ris.
H ERMES — De maneira nenhuma, mas conserva essas qua-
lidades, pois elas são muito leves, fáceis de transportar e úteis
à viagem...[10] E tu aí, o orador, larga essa chorrilho intermi-
nável de sentenças, as antíteses, os paralelismos, os períodos,
os barbarismos e a restante bagagem dos teus discursos.
F ILÓSOFO — Pronto, já larguei.
H ERMES — Muito bem. Portanto, tu aí, solta as amarras,
enquanto nós recolhemos a escada. Levantar a âncora! Desferrar
a vela! Barqueiro, dirige o leme! Boa viagem!142 ... [11]
Vós aí, gente frívola, porque, vos lamuriais especialmente tu,
o filósofo, a quem há pouco raparam a barba?
141
A mina, além de ser uma moeda, equivalia como peso, a cerca de
436g, mas este valor variava conforme as épocas e os locais. Neste caso,
não interessa o peso certo...
142
Seguimos a lição dos mss. recentiores, mas também poderíamos
adoptar a lição equivalente a «Boa sorte!».
224
F ILÓSOFO — É que eu, ó Hermes, acreditava que a alma
era imortal e persistia.
M ENIPO — Ele está a mentir. Sim, é óbvio que o que o
aflige é outra coisa.
H ERMES — O quê?
M ENIPO — O facto de nunca mais comer jantares caríssi-
mos, nem sair à noite sem ninguém dar por isso, com a cabeça
coberta pelo manto, a fim de percorrer as casas de prostituição;
nem, logo de manhã, receber dinheiro, endrominando os jovens
com a sua ciência. É isso que o aflige.
F ILÓSOFO — Mas tu, ó Menipo, não te incomoda teres
morrido?
M ENIPO — Mas como, se eu próprio me apressei a ir ao
encontro da morte, sem que ninguém me solicitasse?!... [12]
Mas... não ouvem, no meio da nossa conversa, um rumor como
que de pessoas gritando do lado de terra?
H ERMES — Sim, Menipo, e não vem de um único sítio,
mas umas pessoas, reunidas na Assembleia, todas contentes,
riem todas elas com a morte de Lampico, enquanto a mulher
deste é assaltada pelas outras mulheres, e até os filhos, ainda
de tenra idade, apanham inúmeras pedradas dos outros miú-
dos... Outras pessoas, em Sícion, elogiam o orador Diofanto,
que profere uma oração fúnebre em honra de Cráton, aqui
presente. E, por Zeus!, também a mãe de Damásias, numa
gritaria estridente, dá início ao canto fúnebre entoado pelas
mulheres em honra de Damásias. Mas a ti, Menipo, ninguém
te chora, és o único que jazes em completo silêncio.
225
(Página deixada propositadamente em branco)
11. CRATES E DIÓGENES
144
Apolo.
145
Vento do quadrante de noroeste...
146
Este passo mostra a sequência da direcção da escola cínica: Antístenes,
seu fundador, Diógenes e Crates.
147
A quénice equivalia mais ou menos a um litro.
227
e eu herdei-o de ti, e era muito melhor e mais estimável que o
trono da Pérsia.
DIÓGENES — Que é isso de que estás a falar?
CRATES — A sabedoria, a moderação, a verdade, a franqueza
e a liberdade.
DIÓGENES — Sim, por Zeus!, recordo-me de ter recebido essa
fortuna de Antístenes e de ta ter deixado ainda maior.
148
O termo grego significa «esgotado», mas também «gasto», «usado»,
que aqui pode entender-se no sentido de «esburacado». Aliás, a frase é
usual nesta época.
149
As filhas de Dánao são as Danaides, em número de cinquenta. Por
matarem os respectivos maridos, foram condenadas a encher continua-
mente um tonel esburacado.
228
12. A LEX ANDRE E A NÍBAL
150
Líbio = Africano. A Líbia compreendia todo o norte de África; aqui,
a palavra significa, propriamente, «Cartaginês».
151
Minos, Éaco e Radamanto eram os três juízes do reino dos mortos,
o (reino de) Hades (ou Plutão). Este, embora podendo julgar directamente
os mortos, em geral delegava essas funções num dos três juízes.
229
pelo contrário, confessando-me simples ser humano, bati-me
contra os generais mais competentes e ataquei os soldados
mais belicosos, e não defrontei Medos e Arménios, que batem
em retirada mesmo antes de serem perseguidos e que dão sem
demora a vitória a quem ousa atacá-los... [3] Alexandre, porém,
tendo recebido o reino de seu pai, aumentou-o e acrescentou-
-o muitíssimo, aproveitando o impulso da fortuna. Todavia,
logo que venceu e dominou esse miserável do Dario em Isso
e em Arbela, abandonou os costumes pátrios e considerou-se
digno de ser adorado, adoptou o modo de vida dos Medos e
chegava a matar vergonhosamente os seus amigos durante os
banquetes ou mandava-os prender para os matar. Eu, porém,
governei a minha pátria com equidade, e, quando ela me
mandou chamar, numa altura em que uma numerosa armada
inimiga navegava em direcção à Líbia, imediatamente obedeci
e me apresentei como simples cidadão comum, e, quando fui
condenado, suportei a coisa com resignação. E procedi desse
modo, mesmo sendo bárbaro e ignorante da cultura grega, sem
recitar Homero, como este aqui, e sem ter sido educado pelo
sofista 152 Aristóteles, mas unicamente inspirado pela minha
boa natureza. E são estas as qualidades em que eu afirmo ser
superior a Alexandre. Se ele é mais belo que eu pelo facto
de cingir a cabeça com um diadema, talvez isso seja, para os
Macedónios, um título de nobreza, mas não é por isso que ele
seria considerado superior a um homem valoroso e com dons
de comando, que usou mais da sua inteligência que da sorte.
M INOS — Ele acaba de proferir em sua defesa um discurso
a que não falta nobreza, e que até nem seria de esperar da parte
de um líbio. E tu, Alexandre, que respondes a essas palavras?
230
pai me deixou, mas antes, tendo lançado o pensamento sobre
toda a terra e tendo considerado que seria muito mau não con-
quistar todo o mundo, invadi a Ásia à frente de um pequeno
contingente e saí vencedor numa grande batalha nas margens
do Granico; depois, tendo conquistado a Lídia, a Jónia, a Frígia
e, enfim, tudo o que surgia no meu caminho, dirigi-me a Isso,
onde Dario me aguardava à frente de um exército de muitas
dezenas de milhares de homens... [5] O que se seguiu a isto, ó
Minos, já vós aqui sabeis: quantos mortos num só dia eu vos
enviei cá para baixo. Diz o barqueiro que, nesse dia, o barco não
foi suficiente para todos eles, pelo que muitos deles construíram
jangadas e atravessaram nelas. Participei pessoalmente nesta ba-
talha, correndo perigos e arriscando-me a ser ferido. Finalmente,
para não te descrever o que aconteceu em Tiro ou em Arbela,
basta dizer que cheguei à terra dos Indos e fiz do seu Oceano
a fronteira do Império, tomei-lhes os elefantes, apoderei-me de
Poro e, tendo atravessado o Tánais, venci, numa grande batalha
de cavalaria, os Citas, que são homens de não pouco valor. Além
disso, concedi benefícios ao meus amigos e castiguei os meus
inimigos. E se surgi aos olhos dos homens como sendo um deus,
eles são dignos de perdão, ao acreditarem numa coisa dessas a
meu respeito, dada a grandeza das minhas façanhas...
231
7] C IPIÃO153 — Não faças isso, sem primeiro me teres es-
cutado.
M INOS — Mas quem és tu, meu caro? E donde és natural,
não me dirás?
C IPIÃO — Sou o italiota Cipião, o general que conquistou
Cartago e se apoderou da Líbia em grandes batalhas.
M INOS — Então que é que tens a dizer?
C IPIÃO — Para já, digo que sou inferior a Alexandre, mas
superior a Aníbal, eu que o venci, persegui e obriguei a fugir
sem honra nem glória. Na verdade, este fulano é muito desca-
rado, ao rivalizar com Alexandre, com o qual nem mesmo eu,
Cipião, que venci Aníbal, me atrevo a comparar-me.
MINOS — Por Zeus!, ó Cipião, é bem pensado o que dizes. Por-
tanto, que Alexandre seja classificado em primeiro lugar, tu a se-
guir a ele, e depois, em terceiro lugar, se estais de acordo, Aníbal,
que também não é de desprezar.
153
Trata-se de Públio Cornélio Cipião Africano (235-183 a.C.), célebre
general romano que, como ele próprio diz logo a seguir, conquistou Cartago
e se apoderou da Líbia em grandes batalhas. De notar que se designa à sua
pessoa como sendo «italiota» (e não «Romano» ou «Africano».
232
13. DIÓGENES E A LEXANDRE
233
DIÓGENES — Então, ó Alexandre, não será caso para rir, ao
ver que, mesmo no Hades, ainda estás louco, esperando tornar-
-te Anúbis ou Osíris? Não tenhas essa esperança, ó diviníssima
criatura, pois a ninguém, de entre os que uma vez atravessaram o
pântano e passaram para o lado de dentro da entrada, é permitido
subir lá acima. De facto, Éaco não é assim tão descuidado, nem
Cérbero155 tão menosprezável... [4] Mas teria todo o gosto em
que me informasses de uma coisa, de como suportas, ao meditar
nisso, a ideia da grande felicidade que abandonaste ao chegar
aqui: guardas de corpo, escudeiros, sátrapas, tanto ouro, povos
que te adoravam, Babilónia e Bactras, as enormes feras, a honra
e a glória, os cortejos triunfais, em que tu seguias à frente, com
uma fita branca na cabeça e um manto de púrpura. Quando te
lembras disso, não ficas triste? ... Porque choras, meu imbecil?
Então o sábio Aristóteles156 não te ensinou a não considerar se-
guros os bens que nos vêm da sorte?
5] A LEXANDRE — Sábio, esse, o mais manhoso de todos os
aduladores?! Deixa que só eu conheça as manhas de Aristóteles,
quantas coisas me pediu, quantas cartas me escreveu, como abu-
sou de mim e do meu entusiasmo pela cultura, adulando-me e
elogiando-me ora pela minha beleza, como sendo esta uma parte
do bem, ora pelos meus actos e pela minha riqueza. De facto, ele
considerava que esta também era um bem, a ponto de ele próprio
não se envergonhar de a aceitar. Um vigarista, um charlatão, é
o que ele é, ó Diógenes. Um benefício, porém, retirei da sua sa-
bedoria: o facto de me afligir com essas coisas que tu há pouco
enumeraste como sendo os maiores bens.
6] DIÓGENES — Sabes o que tens a fazer? Vou indicar-te
um remédio para a tua tristeza: uma vez que aqui não cresce o
eléboro157, ao menos farta-te à boca cheia e bebe e torna a beber
muitas vezes a água do Lete158. Desse modo, deixarás de te afligir
com os bens de que fala Aristóteles... Mas... eis que avisto além
155
Cérbero é o cão de guarda do reino de Hades; é geralmente repre-
sentado com três cabeças.
156
Aristóteles, mestre de letras e filosofia e director espiritual de
Alexandre, é o principal responsável pelo filelenismo do príncipe e depois
monarca macedónio; com a conquista da Grécia, a língua e a cultura grega
espalharam-se por todo o Mediterrâneo.
157
O eléboro é uma planta a que se atribuía a propriedade de curar
a loucura.
158
A água do rio Lete (rio do «esquecimento»), quando ingerida, fazia
os mortos esquecerem-se da vida terrena.
234
esse tal Clito159, Calístenes e muitos outros, que avançam contra
ti, com ar de quererem despedaçar-te e vingarem-se do mal que
lhes fizeste. Por isso, segue por outro caminho e bebe muitas
vezes, como eu te disse.
159
Irmão de leite e general de Alexandre, ao qual se refere Filipe no
Diálogo 14: «Clito, a quem tu, enquanto ele jantava, assassinaste, varando-
-o de lado a lado com uma seta, só pelo facto de ele ter ousado elogiar as
minhas façanhas em comparação com as tuas».
235
(Página deixada propositadamente em branco)
14. FILIPE E A LEXANDRE
160
Este episódio dos «dez mil» é o tema da Anábase de Xenofonte.
237
as minhas façanhas em comparação com as tuas... [4] Além
disso, tu renunciaste à clâmide macedónica e, segundo se diz,
trocaste-a pelo manto persa [kándys], e cingiste a cabeça com a
tiara direita e julgavas-te digno de ser adorado pelos Macedónios,
que eram homens livres, e ainda — o mais ridículo de tudo
— imitavas os costumes dos povos vencidos. Sim, passo em
claro todos as outros actos, como encerrar homens educados
na jaula dos leões, os casamentos que tu fizeste e a tua paixão
excessiva por Hefestião. Uma só coisa louvei em ti, ao ouvir
dizer que te abstiveste de tocar na esposa de Dario, que era
muito bela, e que cuidaste da mãe e das filhas dele. Isso foi
acção digna de um rei.
238
Dioniso. E na verdade, nenhum deles foi capaz de tomar o
[rochedo de] Aorno163: só eu me apoderei dele.
F ILIPE — Ó Alexandre, não vês que estás a dizer tal coisa
como se fosses filho de Ámon, ao comparares-te com Héracles
e com Dioniso? Nem mesmo agora deixarás essa tua soberba,
te conhecerás a ti mesmo e te compenetrarás de que já estás
morto?
163
Rochedo e fortaleza da Índia. A palavra significa «inacessível às aves».
239
(Página deixada propositadamente em branco)
15. AQUILES E A NTÍLOCO
241
Põe os olhos em Héracles165, Meléagro e tantos outros varões
admiráveis, os quais — creio eu — não aceitariam voltar lá
acima, caso alguém os mandasse servir homens sem herança
e sem fortuna.
165
A natureza simultaneamente humana e divina de Héracles é motivo
de um raciocínio muito mordaz no diálogo seguinte («Diógenes e Héracles).
242
16. DIÓGENES E HÉRACLES
166
Hebe, deusa da juventude, começou por servir à mesa dos deuses
olímpicos, mas posteriormente foi dada em casamento ao recém-chegado
Héracles.
167
Éaco, um dos juízes do Inferno, juntamente com Minos e Radamanto.
168
Rigorosamente joga com rigoroso mais acima.
243
ti, uma vez que estou morto? Em todo o caso, diz-me cá, por
Héracles!169, quer dizer... por ti!: Quando aquele era vivo, vivias
dentro dele, na qualidade de simulacro... ou vós éreis um só
enquanto vivos, mas, quando vós morrestes, vos separastes, tendo
um voado para junto dos deuses, enquanto tu, seu simulacro,
te apresentaste no Hades, como seria de esperar?
H ÉR ACLES — Eu nem devia responder a um homem de-
liberadamente trocista. Em todo o caso, ouve lá esta: a parte
de Anfitrião170 que existia em Héracles, essa morreu, e eu sou
toda essa parte; mas a parte de Zeus, essa está no céu, em
convivência com os deuses.
244
DIÓGENES — Do seguinte modo: se um deles está no céu,
e o outro, um simulacro, que és tu, está entre nós, e o corpo
está no monte Eta 173 , já transformado em cinza, tudo somado,
dá três... Vê lá bem que pai imaginarás para este corpo.
H ÉR ACLES — És um atrevido e um sofista. Mas... afinal,
quem és tu?
DIÓGENES — Sou o simulacro de Diógenes de Sinope.
Eu propriamente, porém, por Zeus!, não estou «com os deuses
imortais», mas, na companhia dos melhores de entre os mortos,
rio-me de Homero e de disparates quejandos.
173
Local onde Héracles se imolou pelo fogo e de onde, já purificado,
subiu ao Olimpo e passou a fazer parte da comunidade dos deuses celestes...
245
(Página deixada propositadamente em branco)
17. M ENIPO E TÂNTALO174
174
Tântalo é um dos grandes supliciados da mitologia. Cortou em
pedaços o corpo de Pélops e ofereceu-o aos deuses num banquete sacrílego,
o que lhe valeu a punição a que se refere o texto do diálogo.
175
O eléboro é uma planta a que se atribuía a propriedade de curar a
loucura (v. diálogo 13, 6.
247
boa verdade, nem todos, como tu, e por castigo, estão sequiosos
de uma água que não espera por eles.
248
18. M ENIPO E HERMES
176
Jacinto, amado por Apolo, foi morto por um disco lançado pela
mão de Apolo, que Zéfiro, por ciúme, fizera desviar da sua trajectória; foi
transformado na f lor com o seu nome. Narciso era um formoso jovem,
que se apaixonou pela sua própria imagem ref lectida na água. Nireu era o
mais belo dos gregos, depois de Aquiles. Tiro, e Leda são beldades femi-
ninas, amadas, respectivamente, por Posídon e Zeus; Helena, a belíssima
esposa de Menelau, raptada por Páris e levada para Tróia, foi a causa da
guerra de Tróia... mas considerem-se outras interpretações no diálogo 19.
177
Citação de Homero, Ilíada, III, 157.
249
(Página deixada propositadamente em branco)
19. É ACO178 E PROTESILAU179
251
grande imprudência, movido pelo amor da glória, devido à
qual foste o primeiro a morrer, quando do desembarque.
PROTESILAU — Então agora, ó Éaco, vou dar-te uma resposta
mais justa em minha defesa. De facto, não sou eu o culpado
desta desgraça, mas sim a Moira182 , que desde o princípio assim
fiou o meu destino.
É ACO — Está certo... Mas então porque acusas estas pessoas?
182
As Moiras (ou Parcas), filhas de Zeus e de Témis (a Justiça), eram
as divindades que presidiam ao destino dos humanos. Eram três: Cloto,
Láquesis e Átropo. Láquesis determinava a parte de vida que cabia a cada
pessoa e carregava a roca, que depunha nas mãos de Cloto; Átropo, ao
cortar o fio, punha termo aos dias de vida concedidos. Aqui, o singular,
a Moira, deve referir-se a Cloto, a «fiandeira».
252
20. M ENIPO E É ACO
183
Por Plutão é a leitura de alguns manuscritos e de quase todos os
editores modernos, que também segui, em vez da lição de outros manus-
critos e da edição de Mras.
184
Cérbero é o cão de guarda do reino de Hades; é geralmente repre-
sentado com três cabeças.
185
O Piriflegetonte, um dos rios do Inferno, tem ondas de fogo e exala
um forte cheiro a enxofre.
186
As Erínias (ou Fúrias) eram três: Tisífine, Alecto e Megera. «Vestidas
de negro, com asas nos ombros, estas sinistras vigilantes percorriam silen-
ciosamente o espaço e mostravam-se ao malfeitor coroadas de serpentes,
enquanto a lembrança do crime lhe roía o coração... (v. A.-M. Guillemin,
Récits mythologiques, Paris, Hatier, 2ª ed. 1936, p. 191).
187
Agamémnon foi o comandante supremo da expedição contra Tróia.
188
Refere-se concretamente a Xerxes.
253
É ACO — De maneira nenhuma, pois quebrar-lhe-ias a ca-
veira, que é de mulher.
M ENIPO — Nesse caso, pelo menos vou mandar-lhe uma
escarradela, já que ele é andrógino189.
189
A palavra andrógino significa «homem-mulher», logo, «homem
efeminado».
190
Euforbo, guerreiro troiano morto por Menelau. Pitágoras afirmava
ser uma sua reincarnação.
191
Entre diversas proibições no que respeita a alimentos, contam-se as
favas, peixe e ovos, por motivos ligados à crença na metempsicose.
192
Estas conversa de favas alude à proibição, entre os pitagóricos, de
ingerir tal alimento, pois nele podiam introduzir-se almas de pessoas...
193
Luciano, através de Éaco, menciona somente os três sábios mais
conhecidos e mais consensuais (Sólon, Tales e Pítaco).
254
mais as tuas sandálias... e não deixaste de o merecer. Todavia,
de nada te valeu o truque, pois houve quem te visse já morto...
Mas... e o Sócrates, ó Éaco, onde está ele?
É ACO — Esse está quase sempre tagarelando com Nestor
e Palamedes.
MENIPO — Em todo o caso, desejava vê-lo, se é que está por aí.
É ACO — Estás a ver aquele calvo?
M ENIPO — Mas são todos calvos... Esse sinal é comum a
todos.
É ACO — Refiro-me ao do nariz achatado.
M ENIPO — Também isso é igual, pois todos têm nariz
achatado.
255
MENIPO — Bravo, ó Sócrates, pois até mesmo aqui te ocupas
da tua arte e não desprezas os belos moços197.
SÓCRATES — Que outra coisa mais agradável poderia fazer?
Ora bem, deita-te aqui ao nosso lado, se isso te apraz.
M ENIPO — Não, por Zeus!, pois tenho de ir para junto de
Creso e de Sardanapalo, para residir perto deles. Parece-me
bem que vou rir, e não pouco, ao ouvir as suas lamentações.
É ACO — Pois eu vão já vou indo, não se dê o caso de algum
morto se me escapar sem eu dar por isso. Para a outra vez verás
o resto, ó Menipo.
M ENIPO — Vai, sim, Éaco, que por agora já basta.
197
A referência à arte (ars amatoria) e aos belos moços sugerem, subtil-
mente, uma prática pederástica de Sócrates, o qual, pelo menos, da fama
não se livrou, por muito injusta que seja a alusão.
256
21. M ENIPO E CÉRBERO
198
Menipo é um filósofo cínico, gr. kynikós, «relativo a cão», «canino».
199
Um dos rios do Inferno.
200
Aqui segui a ed. Loeb, num passo em que os manuscritos divergem.
201
A cicuta é uma planta apiácea tóxica. Além de ser usada como tera-
pèutica externa, servia também como modo de suicídio e em condenações
à morte. Pela descrição de Platão, o seu efeito começava nas pernas e ia
subindo mais ou menos lentamente até ao coração, sem provocar sofrimento.
202
«Fazia-se de todas as cores» é tradução do Prof. Costa Ramalho.
203
A aplicação do termo sofista a Sócrates é realmente bastante forte,
pois Sócrates e os sofistas estavam em campos opostos... mas a comparação
não deixa de ter algum fundamento...
257
(Página deixada propositadamente em branco)
22. C ARONTE E M ENIPO
259
C ARONTE — Ó Hermes, onde foste desencantar este cão?
Que coisas ele palrava durante a viagem, rindo e troçando de
todos os passageiros e o único que cantava, enquanto aqueles
gemiam.
H ERMES — É que tu, ó Caronte, desconheces que homem
passaste: um homem completamente livre, que não se preocupa
com coisa nenhuma. Este é o Menipo!
C ARONTE — Seja como for, se alguma vez te apanhar...
M ENIPO — Se apanhares, meu caro. Não poderás apanhar-
-me duas vezes.
260
23. PLUTÃO E PROTESILAU205
205
Ver diálogo 19.
206
Refere-se, naturalmente, a Plutão (Hades), senhor do reino dos
mortos.
207
A filha de Deméter é Perséfone (Prosérpina), esposa de Plutão, junto
do qual passa seis meses por ano, e os outros seis meses na companhia da
mãe, na terra.
208
Ílion = Tróia.
209
Aidoneu é outra designação de Hades ou Plutão.
210
A água do Lete é a «água do esquecimento».
211
De facto, Plutão raptou Perséfone (Prosérpina), filha de Deméter,
e levou-a para o seu reino, o reino dos mortos, onde, porém, ela só passa
seis meses por ano (v. nota supra).
261
P ROTESILAU — Creio poder convencê-la a acompanhar-
-me para junto de vós, de modo que, dentro de pouco tempo,
receberás dois mortos em vez de um só.
P LUTÃO — Não é lícito que tal coisa ocorra... nem nunca
ocorreu 212 .
212
Aqui os manuscritos divergem um pouco, mas a ideia é clara.
213
Protesilau menciona dois precedentes de derrogação às leis da morte,
em que os deuses infernais permitiram que duas humanas regressassem
à vida terrena.
214
É óbvio que Plutão se dirige a Hermes, e logo a seguir a Protesilau.
262
24. DIÓGENES E M AUSOLO215
215
Mausolo, rei da Cária (costas da Ásia Menor). Quando morreu,
Artemísia, sua esposa e irmã, mandou erigir na capital, Halicarnasso, em
sua honra e memória, um grandioso monumento, um «mausoléu», que os
antigos consideravam uma das sete maravilhas do mundo. A designação
Mausoléu passou a aplicar-se a outros monumentos funerários de grande
espavento.
216
Sinopense = natural de Sinope, cidade da Paflagónia (Ásia Menor).
263
DIÓGENES — Igual, isso não, mui nobre senhor 217, pois
Mausolo lamentar-se-á, recordado dos bens que deixou na terra,
com os quais se julgava feliz, enquanto Diógenes troçará dele;
Mausolo falará do seu túmulo em Halicarnasso, mandado erigir
por Artemísia, sua mulher e irmã, ao passo que Diógenes nem
sequer sabe se existe algum túmulo a cobrir o seu corpo, pois
isso era coisa que não o preocupava, mas antes, depois de viver
uma vida de autêntico homem, deixou às pessoas de bem uma
reputação de si próprio muito mais alta, ó mais vil dos escravos
cários, do que o teu monumento, reputação essa erigida em ter-
reno mais firme.
217
Naturalmente, há nesta designação («nobilíssimo») muita ironia.
264
25. NIREU218, TERSITES E M ENIPO
218
Entre os guerreiros gregos da expedição contra Tróia, Nireu era o
mais belo, a seguir a Aquiles, e Tersites o mais feio. Só no reino de Hades
seria possível este concurso de... beleza.
219
A referência à cegueira de Homero é realmente impiedosa, tratando-
-se de atribuir formosuras e fealdades...
265
(Página deixada propositadamente em branco)
26. M ENIPO E QUÍRON220
220
Quíron é um centauro, ou melhor, um hipocentauro, meio homem
e meio cavalo. Especialista, entre outras artes, em música e medicina.
267
M ENIPO — Aquilo — creio eu — que sói dizer-se: que é
um acto de bom senso contentarmo-nos com aquelas coisas que
temos, estimá-las e não considerar nenhuma delas insuportável.
268
27. A NTÍSTENES221, CRATES E DIÓGENES
221
Três filósofos cínicos: Antístenes, fundador da Escola, e Diógenes
e Crates, seus sucessores.
222
Os peltastas eram soldados de infantaria ligeira, que usavam um
pequeno escudo redondo, pelte, donde a designação.
223
Naturalmente, já na rampa dentro do Hades.
269
a lança de Arsaces e, metendo a sua lança por baixo, atravessou,
bem como ao cavalo.
4] A NTÍSTENES — Ó Crates, como foi possível fazer isso
com um único golpe?
CRATES — Muito facilmente, Antístenes. De facto, Arsaces
avançou de lança em riste, uma lança para aí de vinte côva-
dos 224 , mas o trácio desviou a arma com o escudo, pelo que a
ponta da lança lhe passou ao lado; então, dobrando um joelho,
recebe com a sua lança o ataque de Arsaces e fere em pleno
peito o cavalo, que se trespassou a si próprio devido ao ardor e
impetuosidade. Arsaces, por seu lado, é varado de lado a lado,
das virilhas até às nádegas. Já vês como tudo aconteceu, que
não foi obra do homem, mas mais propriamente do cavalo.
Mesmo assim, Arsaces estava irritado por ter honras iguais aos
outros mortos, e exigia descer a rampa a cavalo... [5] Finalmente
Oretes era tão delicado de pés, que nem sequer era capaz de se
ter de pé, e muito menos caminhar, o que é uma característica
geral de todos os Medos: sempre que desmontam do cavalo,
andam com muita dificuldade, nas pontas dos pés, como se
andassem sobre espinhos... de modo que, deitando-se no chão,
ali ficou, não querendo de maneira nenhuma levantar-se, pelo
que foi o bom do Hermes que o levantou e o levou até ao barco,
enquanto eu não fazia senão rir.
224
o côvado equivale a cerca de 0,462 cm; pelo que uma lança de 20
côvados teria um pouco mais de 9 metros...
225
Muitas prostitutas tinham (ou usavam) nomes de forma diminutiva,
geralmente em -ion, que em grego são do género neutro, e que, vertido
segundo as regras, dão em port. formas de aparência masculinas. Aqui, a
270
Blépsias, pobre dele!, tinha-se deixado mirrar de fome, segundo
se dizia e era, aliás, manifesto pela sua aparência extremamente
pálida e sua magreza excessiva. Ora eu, embora conhecedor do
caso, perguntei-lhe de que forma é que ele tinha morrido; então,
como Dâmis acusasse o filho, eu disse-lhe: «Não foi mal feito
o que o teu filho te fez, porquanto, com uma fortuna à volta de
mil talentos 226 , e ainda gozando as delícias da vida aos noventa
anos, só davas quatro óbolos a um jovem de dezoito anos.»... E tu,
ó acarnense (este também gemia e amaldiçoava a Mirtinha),
porque deitas culpas a Eros, em vez de as deitares a ti próprio,
tu, que nunca tremeste perante o inimigo, mas lutavas teme-
rariamente à frente dos outros, e agora, meu valentão, foste
apanhado pelas lágrimas fingidas e pelos suspiros da primeira
galdéria 227 que te apareceu... Finalmente Blépsias era o primeiro
a recriminar-se pela sua grande estupidez, por guardar o seu
dinheiro para herdeiros que não lhe eram nada, cuidando, o
parvo, que havia de viver sempre. A mim, porém, todas essas
lamentações só me provocavam gozo, e não pouco... [8] Ora
bem, eis-nos chegados à entrada; agora há que olhar e observar
de longe os que vão chegando... Tchiiii! Como são tantos e tão
variados, e todos chorosos, excepto aqui estes recém-nascidos
que ainda não falam! Mas até os muito velhos se lamentam...
Pois quê?! Será que ainda estão possuídos da magia da vida?...
[9] Vou então interrogar este aqui muito velho: Porque choras,
tu que morreste tão velho? Porque estás tão irritado, meu caro,
apesar de teres chegado a velho? Porventura eras algum rei?
VELHO — De modo nenhum.
DIÓGENES — Algum sátrapa?228
VELHO — Também não.
DIÓGENES — Acaso eras um ricaço, e agora te afliges por
ter morrido e deixares tantas delícias?
271
VELHO — Também não, mas, pelo contrário, tinha chega-
do até cerca dos noventa anos, levava uma vida de privações,
vivendo da cana e da linha de pesca, extremamente pobre, sem
filhos, e ainda por cima coxo e com falta de vista.
DIÓGENES — E ainda querias viver, mesmo nessa situação?
VELHO — Sim, porque a luz do dia me era agradável, e a
morte era uma coisa horrenda e de fugir.
DIÓGENES — Ó velhote, estás a delirar e a comportas-te
como um adolescente, ao falares do inevitável, e isto apesar
de seres da idade do barqueiro229. Então que diríamos nós dos
jovens, quando homens da tua idade são tão apegados à vida e
que, estes sim, deviam procurar a morte como remédio dos males
da velhice?... Bem... afastemo-nos já daqui, não vá alguém, ao
ver-nos cirandar junto da porta, desconfiar de que pretendemos
evadir-nos230.
229
Naturalmente, há aqui um exagero... mas muito expressivo.
230
Esta ideia de «evasão» não deixa de ser, pelo menos, curiosa.
272
28. M ENIPO E TIRÉSIAS231
231
Tirésias é talvez o mais famoso adivinho da mitologia, mas a história
da sua dupla e alternada condição de homem e mulher é menos conhecida.
Naturalmente, Menipo não deixa de aproveitar o insólito da situação para
fazer perguntas (im)pertinentes.
232
Fineu, rei da Trácia, foi cegado por Posídon (lat. Neptuno); Linceu,
um dos argonautas, era famoso pela sua visão... de lince...
233
É curioso este conjunto de factores que tornam a vida das mulheres
preferível à dos homens, os quais — dito de outra maneira — além de serem
dominados pelas mulheres, são obrigadas a ir à guerra, estão de sentinela
nas muralhas, deslocam-se à assembleia e são interrogadas em tribunal.
273
MENIPO — Será que, a pouco e pouco, o útero desapareceu, os
órgãos genitais se foram fechando e os seios se foram esvaziaram,
e foi despontando o órgão viril e foi crescendo a barba, ou foi de
repente que te transformaste de mulher em homem?
TIRÉSIAS — Não estou a ver o que queres dizer com essa per-
gunta. Parece que duvidas que as coisas se tenham passado assim.
MENIPO — Ó Tirésias, então não é caso para duvidar de tais
fenómenos, em vez de aceitá-los, sem os examinar, como um
basbaque, quer eles sejam possíveis, quer não?
234
Aédon, figura feminina transformada em rouxinol. Dafne, ninfa
dos bosques, por quem Apolo se apaixonou. Perseguida por este, invocou
a mãe Terra, que a transformou num loureiro (daphne). Calisto, filha de
Licáon, rei da Arcádia, foi amada por Zeus, mas, logo que deu à luz o
pequeno Árcade, Hera, ciumenta como sempre, metamorfoseou-a em ursa.
274
29. ÁJAX E AGAMÉMNON
235
A panóplia era o armamento completo de um hoplita: escudo, elmo,
couraça, coxote, espada e lança.
236
O termo Frígios acabou por ser sinónimo de Troianos.
275
(Página deixada propositadamente em branco)
30. MINOS E SÓSTRATO
237
O Piriflegetonte, um dos rios do Inferno, tem ondas de fogo e exala
um forte cheiro a enxofre.
238
Quimera, monstro que assolava a Lícia, foi morta por Belerofonte.
Tal como a Esfinge, havia nascido da hidra de Lerna. A Quimera tinha
a forma de uma cabra selvagem com cabeça de leão e cauda de serpente,
e vomitava fogo.
239
Ticio era um gigante, que foi castigado por impiedade contra Latona:
dois abutres roíam-lhe o fígado, que voltava a crescer. Compreende-se qual
o duplo castigo a que Minos condena Sóstrato: ser esticado até atingir o
comprimento do gigante, e ter o fígado devorado por abutres.
240
As Moiras (ou Parcas), filhas de Zeus e de Témis (a Justiça), eram
as divindades que presidiam ao destino dos humanos. Eram três: Cloto,
Láquesis e Átropo. Láquesis determinava a parte de vida que cabia a cada
pessoa e carregava a roca, que depunha nas mãos de Cloto; Átropo, ao
cortar o fio, punha termo aos dias de vida concedidos. Aqui, o singular,
a Moira, refere-se a Cloto, como se vê a seguir.
277
SÓSTR ATO — Nesse caso, todos nós, quer os bons, quer
os criminosos, agimos, ao que parece, por ordem dessa divin-
dade, não é?
M INOS — Sim, por ordem de Cloto, a qual destinou a cada
um, ao nascer, o que ele havia de fazer.
S ÓSTR ATO — Portanto, se alguém, obrigado por outro,
matasse uma pessoa, sem ter possibilidade de resistir àquele que
o forçara, como por exemplo um carrasco ou um mercenário
(um obedecendo ao juiz, e o outro ao tirano), a quem é que tu
acusarias da morte?
M INOS — Claro que ao juiz ou ao tirano, tal como não
culparia uma espada, pois esta, como instrumento que é, serve
apenas a vontade do primeiro, que age como causa inicial.
S ÓSTR ATO — Muito bem, Minos, tanto mais que vens
reforçar o meu exemplo. Se alguém, enviado pelo seu senhor,
vier trazer prata ou ouro a outra pessoa, a quem é que se deve
agradecer? A quem é que se deve inscrever no rol dos benfeitores?
MINOS — Ao que enviou a coisa, ó Sóstrato, pois o portador
foi apenas um criado.
241
Sóstrato refere-se concretamente àquelas personagens que, no início
do diálogo, Minos havia mandado, em bloco, para os Campos Elísios.
242
Este final é de uma força crítica arrasadora: não digas que vais daqui...
278
O BIBLIÓMANO IGNORANTE
(Página deixada propositadamente em branco)
ÀS MINHAS ANTIGAS MESTR AS
PROFESSOR AS
MARIA MANUELA BARROSO DE ALBUQUERQUE
E
MARIA DE LURDES FLOR DE OLIVEIR A
243
V. nota ao § 14 da tradução.
283
pessoas que pretenderam ou pretendem ser mais do que aquilo
que são, sempre com resultado contrário às suas expectativas.
Nesta obra, Luciano conta-nos uma dezena de histórias apli-
cáveis à personagem. O leitor moderno poderá ficar com a
impressão de um certo ‘enchimento’ artificial do tema, mas
recordemos que se trata de um processo habitual. São as se-
guintes essas histórias:
284
secundário, ganha, por isso mesmo, uma força subtil mente
arrasadora. Ao longo da diatribe, surge, de vez em quando,
uma ‘farpa’ dirigida ao comportamento imoral do sujeito (§§
19, 22, 24, 25...). Mesmo no fecho da diatribe, Luciano volta a
fazer uma leve mas clara referência à moralidade do indivíduo:
«Por agora, é isto que tenho para te dizer francamente, apenas a
respeito dos livros. Sobre as outras coisas nojentas e ignominiosas
a que te dedicas, voltarás a ouvir-me, e muitas vezes.»
285
Como documento de uma época (Atenas na 2ª metade
do séc. II d. C.), O Bibliómano Ignorante informa-nos de um
ambiente cultural em que a figura do intelectual mantinha
bastante prestígio, o suficiente para que certas pessoas, mais ou
menos autodidactas (como a nossa personagem), pretendessem
entrar no círculo dessa gente importante.
Por outro lado, e em ligação com este aspecto, vemos que o
comércio do livro estava em franco desenvolvimento: os comer-
ciantes de livros tinham clientes para todo o tipo de edições: as
mais baratas, que satisfaziam perfeitamente os desejos dos menos
afortunados, que apenas queriam ter acesso às obras, e as mais
caras, que tanto podiam ser edições recentes elaboradas com
elevada técnica, como livros antigos (até mesmo autógra fos),
mais ou menos danificados pelo tempo, mas que suscitavam
a gula dos bibliófilos, a ponto de surgir a edição fraudulenta,
em que os livros eram artificialmente envelhecidos. Luciano
não deixa de fazer referência a este último aspecto, ao dizer
que a personagem não sabia distinguir entre as obras realmente
antigas e as falsas antiguidades. Naturalmente, nem todos os
amadores de livros antigos se deixavam enganar, mas o que é
certo é que este negócio rendia bastante.
286
O BIBLIÓMANO IGNORANTE
(Página deixada propositadamente em branco)
O BIBLIÓMANO IGNOR ANTE 244
244
Lit.te «Contra determinado indivíduo inculto que compra muitos
livros». Ver nota ao texto, onde se encontram as observações de natureza
gramatical. Na tradução, reduzi e limitei as notas ao estritamente indispen-
sável do ponto de vista da compreensão (alusões históricas, mitológicas...).
245
No texto grego, lit.te «diferentemente», i. é, «por outras causas» (que
não as causas naturais: humidade, ataque de traças...).
246
Calino e Ático, editores de grande prestígio. V. nota 8 do texto grego.
289
autor empregou com precisão e de acordo com as regras e quais
[outras] são equívocas, bastardas ou mal formadas 247.
3. O quê? Sustentas que, mesmo sem instrução, percebes
dessas coisas tanto como nós? E donde é que te vem a ciência,
a menos, talvez, que tenhas recebido das Musas um ramo de
loureiro, tal como o famoso pastor? Na verdade – creio bem – tu
nunca ouviste sequer falar do Hélicon, onde se diz que vivem
essas divindades, nem seguiste, na tua juventude, os mesmos
estudos que nós. Em ti, o próprio acto de mencionar as Musas
já é algo de sacrílego. Sim, que elas não teriam hesitado em
aparecer a um pastor248 , homem duro, hirsuto e patenteando
na pele o forte ardor do sol, ao passo que duma pessoa como tu
(pela deusa do Líbano249, dispensa-me, por agora, de dizer tudo
por claro!) tenho por certo que elas nunca se teriam dignado
aproxi mar-se. Pelo contrário, fustigar-te-iam não com ramos
de lou reiro, mas com mirto 250 , ou até com folhas de malva, e
expulsar-te-iam de tais regiões, para que não conspurcasses o
Olmio 251 ou a Fonte do Cavalo [Hipocrene], em cujas águas só
podem beber ou rebanhos sedentos ou bocas puras de pastores.
Verdadeiramente, por muito desavergonhado que sejas [e
és], por muito destemido em coisas deste género, nunca te
atre verias a dizer que recebeste instrução, ou que alguma vez
na vida te preocupou o contacto íntimo com os livros, ou que
fulano foi teu mestre, ou que frequentaste a escola de beltrano.
247
Luciano, integrado no movimento aticista, dá grande valor à cor-
recção linguística (ático clássico, claro).
248
Referência a Hesíodo, a quem as Musas apareceram no monte
Hélicon. Todo o passo é alusivo a este poeta.
249
A deusa do Líbano, ou Afrodite do Líbano, era venerada com ritos
sexuais, que atingiam proporções de orgia, tal como o culto da deusa
Cótis, a que Luciano se refere noutro passo.
250
O mirto e a malva tinham aplicações medicinais, mas também
mágicas. Nomeadamente, restituíam a razão aos tresloucados.
251
Olmio, pequena ribeira da Beócia, af luente do Permesso.
290
Mas que vantagem para a tua cultura retirarias daí, mesmo que
ponhas os livros debaixo de ti e durmas sobre eles, ou passeies
com eles colados a ti, a envolver-te todo? Lá diz o provérbio:
«Um macaco é um macaco», ainda que tenha consigo objectos
de ouro identificativos da sua origem. Também tu, de facto,
trazes sempre um livro na mão e estás sempre a ler, embora
não entendas nada do que lá está escrito, mas afinal, és tal qual
um burro a arrebitar as orelhas ao ouvir uma lira.
É que... se o simples facto de possuir livros revelasse a cultura
do seu possuidor, tal posse seria verdadeiramente preciosa e
unicamente ao alcance de vós, os ricos, uma vez que vos seria
possível comprá-la, como uma mercadoria, e, dessa forma,
superiorizar-vos a nós, os pobres. Mas, nesse caso, quem po-
deria competir em cultura com os comerciantes e proprietários
de livrarias, que possuem e vendem tão grande quantidade de
livros? Ora, se queres uma demonstração completa, verificarás
que esses tais não são muito superiores a ti em matéria de cul-
tura, mas sim uns bárbaros no falar, tal como tu, e broncos de
inteligência, como seria de esperar de pessoas que não têm a
noção do que é belo e do que é feio. E no entanto, tu possuis
apenas uma meia dúzia 252 de livros que lhes compraste, enquanto
eles os têm entre mãos noite e dia.
252
Lit.te «dois ou três»... o que parece ser muito pouco para um co-
leccionador. Trata-se da chamada «numeração indeterminada». V. nota
ao texto grego.
253
Sete talentos, uma soma elevadíssima: v. nota ao texto grego.
291
do um bom flautista, a menos que tivesse aprendido. E que
sucederia a quem adquirisse o arco de Héracles, sem ser um
outro Filoctetes, capaz de esticá-lo e dispará-lo direito ao alvo?
Que achas de uma tal pessoa? [Parece-te] que seria porventura
capaz de cometer um feito digno de um arqueiro? Também a
isto levantaste [negativamente] a cabeça. O mesmo se passa
com uma pessoa que não conheça a arte de pilotar, ou com
uma que nunca se exercitou no hipismo: aquela, se lhe dessem
um belíssimo navio, magnificamente construído em todos os
aspectos, no tocante quer a beleza, quer a segurança; esta, se
adquirisse um cavalo medo [árabe] ou um centáuride ou um
copátias: quer uma, quer outra mostrariam – estou certo – não
saber servir-se da respectiva aquisição. Fazes que sim bai xando
a cabeça? Então convence-te também do seguinte e faz também
que sim com a cabeça: se uma pessoa inculta, como tu, andasse
sempre a comprar grandes porções de livros, não suscitaria
contra si [veementes] censuras, devido à sua incultura? Porque
hesitas em também fazer que sim com a cabeça? Realmente,
essa seria uma prova evidente, e qualquer pessoa que assim o
visse, logo citaria o conhecido e bem apropriado provérbio:
«Que tem um cão a ver com um balneário?».
254
Lit.te «talhadas de novo», i. é, «feitas de encomenda» ou, por ex-
tensão, «da última moda».
255
«inteligência ‘coxa’ e ‘de pau de figueira’»: estilo figurado, tirado
da imagem do amputado de pés, que tinha pés de pau.
292
7. Mas, já que, entre outros livros, compraste, em diversas
ocasiões 256 , as obras de Homero, pede a alguém que tome e
te leia o canto II da Ilíada desse poeta, sem, no entanto, exa-
minar outros passos (os quais, na verdade, não se aplicam à
tua pessoa), mas apenas aquele em que ele, Homero, descreve
um certo indivíduo a discursar, completamente ridículo, fisi-
camente disforme e desfigurado. Pois bem: se esse tal sujeito,
Tersites 257, recebesse a armadura de Aquiles, cuidas tu que
ficaria automaticamente belo e forte, que atravessaria o rio e o
tingiria do sangue dos Frígios, que mataria Heitor e, antes dele,
Licáon e Asteropeu, ele que não tinha força nem sequer para
levar nos ombros a lança de madeira de freixo? Não poderias
afirmar tal coisa. Pelo contrário, seria motivo de troça, assim
a coxear debaixo do escudo e a cair de bruços vergado ao peso
deste, deixando ver por sob o elmo, sempre que levantasse a
cabeça, aqueles seus olhos esbugalhados, tentando segurar
a couraça com a bossa das costas, arrastando as polainas...
enfim, envergonhando quer o fabricante dessas armas, quer o
seu possuidor. Então não vês que o mesmo se passa contigo,
quando tens na mão um livro realmente muito belo, com uma
capa cor de púrpura, com um botão de fecho em ouro... mas
que tu lês de forma bárbara, conspurcando-o e adulterando-o,
tornando-te motivo de riso por parte das pessoas cultas, ainda
que aplaudido pelos que contigo convivem, os quais também,
na sua maior parte, se viram uns para os outros e riem?
293
pessoas execráveis da sua roda, que o gabavam e aplaudiam
sempre que ele dedilhava a mais pequena nota de abertura,
de que facilmente venceria. Chegou, pois, a Delfos, num
aparato em tudo espampanante, nomeada mente com uma
veste bordada a oiro, que mandara fazer expres samente, e
uma coroa de louro belíssima e de oiro, a ponto de as bagas
de loureiro serem esmeraldas do tamanho das bagas. Quanto
à cítara, era um instrumento soberbo, tanto em beleza como
em sumptuosidade, toda de oiro puro, toda ornamentada de
jóias cravejadas e de variadas pedras preciosas, por entre as
quais [se representavam] as Musas, Apolo e Orfeu... enfim,
uma coisa maravilhosa de se ver.
258
«jacinto» era, na acepção mais comum, a conhecida planta, mas
também uma pedra preciosa do tipo da safira.
259
Os mastigóforos, «portadores de chicote» eram os guardas en-
carregados da segurança e da tranquilidade pública, especialmente em
espectáculos que juntavam muita gente.
294
10. Passado um breve intervalo depois desta actuação, foi
a vez de entrar um tal Eumelo da Élide, que trazia uma velha
cítara com cavilhas de madeira e uma veste que mal valeria
dez dracmas, incluindo a coroa. Mas foi justamente este que,
após uma excelente exibição de canto e uma execução de cítara
segundo as regras da arte, levou a palma e foi proclamado ven-
cedor, acabando por meter a ridículo Evângelo, que tinha feito
um vão espavento com a cítara e com todas aquelas jóias. Até se
conta que Eumelo lhe disse: «Evângelo, tu cinges o louro de oiro,
pois és rico, ao passo que eu, que sou pobre, cinjo o louro délfico.
No entanto, com o teu equipamento, só ganhaste uma coisa: vais
daqui sem que ninguém se compadeça do teu falhanço, e ainda
por cima odiado por essa tua insolência grosseira». O exemplo
deste Evângelo assenta-te lindamente, apenas com a diferença
de que tu não te preocupas, por pouco que seja, com a risota
dos espectadores.
11. Também não viria fora de propósito contar-te uma
história passada há muito tempo em Lesbos. Diz-se que, quan-
do as mulheres da Trácia despedaçaram Orfeu, a sua cabeça,
junta mente com a lira, caiu ao rio Hebro e foram ambas dar
ao «Golfo Negro» [Mar Egeu]. Enquanto a cabeça, flutuando
sobre a lira, cantava um treno por Orfeu – é o que se conta
–, a lira acompa nhava-a por si mesma, ao simples sopro dos
ventos nas cordas, e assim, ao som da música, aportaram a
Lesbos, onde os habitantes recolheram a cabeça de Orfeu e
lhe deram sepultura, no local onde está agora o templo de
Dioniso. Quanto à lira, foi oferecida ao santuário de Apolo,
onde se conservou durante muito tempo.
295
quais toda a gente se sentiria fascinada e encantada, e que,
enfim, ficaria cumulado de felicidade por ter herdado o génio
musical de Orfeu. Eis senão quando, uns cães, dos muitos que
havia por aquelas paragens, acorreram ao som e despedaçaram
o homem, de modo que, pelo menos neste ponto, teve a mesma
sorte que Orfeu, com a diferença de que só conseguiu atrair
cães sobre si, donde se conclui com toda a clareza que não era
a lira [por si] que encantava, mas sim a arte e o canto que, em
grau excelente e ímpar, Orfeu possuía por herança materna.
A lira, essa, era um objecto vulgar, não melhor que qualquer
outro instrumento de corda.
260
A expressão «que era de barro» tem, no texto grego, uma força
especial, significando, implicitamente, que não era de um material mais
caro, mas uma simples candeia de barro.
261
«enquanto dormia», ou «em sonho». Esta pode ser uma das primeiras
referências ao aprendizado hipnótico...
262
«Proteu» (não confundir com o deus marinho) era a alcunha do
filósofo Peregrino (100-165 d. C.), que se suicidou pelo fogo, durante os
Jogos Olímpicos. Luciano escreveu sobre esta personagem o livro Perì tês
Peregrínou teleutês (A Morte de Peregrino). Por aqui se vê que O Bibliómano
Ignorante foi escrito depois de 165 d. C., mas não necessariamente logo a
seguir à morte do filósofo. A compra do seu cajado aconteceu, literalmente,
«ontem ou anteontem», que é uma expressão de tempo indeterminado =
«há coisa de pouco tempo». Por isso admitimos que a obra foi escrita (em
números ‘redondos’) por volta de 170 d. C.
263
Este terrível javali, que Ártemis enviou, por vingança, para devastar
as terras da cidade etólia de Cálidon, foi morto por Meléagro. Gérion, o
gigante de três cabeças, está envolvido num dos «trabalhos de Hércules».
296
ou os Menfitas as madeixas de Ísis. O dono deste maravilhoso
objecto até te ultrapassou em ignorância e descaramento. Estás
a ver como ele está doido varrido, mesmo a precisar de umas
boas cajadadas na cabeça.
ou ainda:
ou ainda:
297
figadal»? Concluindo, se os livros produzissem pessoas dessa
tua laia, seria caso para fugir deles a sete pés e para o mais
longe possível.
18. Mais ainda: não seria uma vergonha [para ti] que
alguém, vendo-te com um livro na mão (e tu tens sempre,
mas mesmo sempre, algum contigo), te perguntasse de que
orador, historiador ou poeta era o livro? Então tu, pela leitura
do título, responderias facilmente à pergunta; mas em seguida
(pois estas coisas, na convivência, costumam dar em conversa
prolongada), quando o outro louvasse ou criticasse algum
aspecto do conteúdo, tu ficarias embaraçado, sem nada para
dizer. Não deseja rias tu, nesse momento, que a terra se abrisse
debaixo dos teus pés, qual Belerofonte 265, que levava consigo
um escrito contra si próprio?
19. O filósofo cínico Demétrio 266 , ao ver, em Corinto, um
fu lano inculto a ler um belíssimo livro (cuido que as Bacantes
de Eurípides, naquele passo em que o mensageiro narra o in-
fortúnio de Penteu 267 e o acto de Agave), arrebatou-lhe o livro
e, rasgando-o, disse: «É melhor para Penteu ser despedaçado de
uma vez por mim, do que muitas vezes por ti.»
Ora, pergunto constantemente a mim mesmo, sem nunca,
até hoje, ter sido capaz de descobrir, por que motivo te dedicas
com tanto zelo a essa actividade de comprar livros. Ninguém,
de entre aqueles que te conhecem, mesmo que muito pouco,
265
Na sequência de uma história longa de contar, Belerofonte, filho
do deus Posídon, foi encarregado pelo rei de Tirinto de levar a Ióbates,
rei da Lícia, uma carta, na qual se pedia que matasse o portador... o que
não aconteceu...
266
Este Demétrio (nome de muitas personagens ilustres) viveu no
tempo de Calígula, Nero e Vespasiano.
267
Penteu, rei de Tebas, pretendia acabar com os rituais orgiásticos
celebrados pelas mulheres de Tebas em honra de Baco (Dioniso). Foi despe-
daçado por elas, entre as quais teve parte activa a sua própria mãe, Agave.
298
julgaria que fosse por razões de utilidade ou de necessidade,
nada mais [nada menos] do que se um calvo comprasse pentes,
ou um cego um espelho, ou um surdo um tocador de flauta,
ou um eunuco uma concubina, ou um homem do campo um
remo, ou um piloto um arado. Não se tratará antes de um caso
de ostentação de riqueza, em que pretendes mostrar a toda a
gente que esbanjas a tua enorme fortuna com coisas que não
te são absolutamente nada úteis? Todavia, tanto quanto sei na
minha qualidade de sírio, se não te tivesses apressado a fazer-te
inscrever fraudulentamente no testamento de um certo velho,
estarias agora a morrer de fome e porias à venda os teus livros.
299
a mesma opinião e não concordasse com ele... até que uma
velha estrangeira, em Larissa, lhe disse a verdade, acabando-
-lhe assim com a tolice. De facto, Pirro, tendo-lhe mostrado a
imagem de Filipe, de Perdicas, de Alexandre, de Cassandro e
de outros reis, perguntou-lhe com qual deles o achava parecido,
absolutamente convencido de que a velha apontaria para a ima-
gem de Alexandre. Ela, porém, depois de pensar longamente,
respondeu: «Com Batraquião, o cozinheiro». Realmente, havia
em Larissa um cozinheiro chamado Batraquião, que era muito
parecido com Pirro.
23. Mas... julgas tu, meu debochado, que ele está tão
encharcado de mandrágora 268 , que dê ouvidos a essa fama,
sem, por outro lado, saber de outras coisas [a teu respeito],
como sejam o teu modo de vida durante o dia, mas também
as tuas bebedeiras, o estilo das tuas noitadas e com que gente,
e de que qualidade, tu dormes? Não sabes como são nume-
rosos os ouvidos e os olhos de um rei? Ora, os teus actos são
tão manifestos, que até os cegos e os surdos os conhecem. Na
verdade, bastaria abrires a boca, bastaria despires-te para o
banho [público]... ou por outra, não te dispas, por favor, mas
dispam-se apenas os teus criados: Que tal? Não ficariam ime-
diatamente patentes os teus inconfessáveis segredos nocturnos?
268
A mandrágora era usada como estupefaciente e soporífero.
300
Mas diz-me cá mais uma coisa: se Basso, esse vosso grande
intelectual, ou Bátalo, o tocador de flauta, ou o debochado
Hemíteon de Síbaris, que compôs para vosso uso um espantoso
tratado onde se ensina a amaciar a pele, a depilar, a ‘suportar’
e ‘praticar’ coisas abomináveis – se algum deles, agora mesmo,
se pusesse para aí a deambular envolvido numa pele de leão e
com uma moca na mão, que é que achas que pareceriam aos
olhos das pessoas? Héracles, porventura? Não, a menos que
tivessem umas remelas do tamanho de panelas. Real mente,
há mil e uma coisas que desmentem essa aparência exterior: o
modo de andar e de olhar, a voz, o pescoço pendurado para a
frente, o alvaiade e o rouge de algas com que vos embelezais...
numa palavra – e como diz o provérbio – «é mais fácil esconder
cinco elefantes debaixo do sovaco, do que um debochado». Ora,
se uma pele de leão não disfarçaria uma tal pessoa, cuidas tu
que passarias despercebido [na tua ignorância], assim escondido
por detrás de um livro? Mas tal não é possível, pois todas as
outras vossas características te trairão e porão a descoberto.
301
de beber, como [aconteceu] outro dia, em que um debochado,
após sair de tua casa, andava por aí a contar as coisas mais
vergonhosas a teu respeito, mostrando até umas marcas de
mordidelas. Até podia mencionar-te pessoas presentes na altura,
que testemunhariam como eu próprio fiquei indignado com o
fulano e por pouco que não lhe dei umas bordoadas, revoltado
como estava por consideração pela tua pessoa, e ainda mais
quando ele invocou como testemunha outro tipo da mesma
laia, e outro ainda, os quais contavam exactamente a mesma
coisa. Portanto, meu caro, continua a administrar bem o teu
dinheiro, a poupá-lo, para poderes, em tua casa e na maior
segurança, praticar e «suportar» tais actos. Sim, ao ponto a que
a coisa chegou, quem poderia persuadir-te a deixar de proceder
desse modo? Tal qual o cão, que, uma vez ensinado a roer couro,
não será capaz de se deixar disso.
302
livros, com que mãos os desenrolas. E quando é que costumas
ler? Durante o dia? Eis uma coisa que nunca ninguém te viu
fazer. Durante a noite? Mas... já depois de te ocupares 270 com
esses tais fulanos?!... Ou será ao lusco-fusco?!
270
... ocupares [tensamente e ‘tesamente’]: o verbo tem sentido priápico.
271
Cótis: v. nota supra. A lição prós Kótyos é conjectural: v. «Apêndice».
272
O texto diz, literalmente, «doença», considerando-se o vício como
uma doença do espírito. O grego não tem uma palavra para designar um
mau hábito. Não serviria, pelo menos neste caso, o termo œqoj, que Aristt.
(Ret., 1309b 6) define: œqei... Óti di¦ tÕ poll£kij pepoihkšnai
poioàsin (éthei... hóti dià tò pollákis pepoiekénai poioûsin): «(diz-se) por
hábito... porque se faz por se ter feito muitas vezes». Assim, a palavra não
tem a carga negativa do vício ou mau hábito. Também seriam inadequados
termos como trib ḗ «rotina», empeiría «experiência», ›xij «modo de ser
habitual», «tempera mento»... E poderíamos experimentar outras palavras:
eláttōma «imperfeição», «defeito», tò kakón «mal (em geral)», «malefício»,
kakía, mokhtēría, ponēría «maldade», akolasía, asélgeia «libertinagem».
De todas elas, parece que nósos «doença», mas com a carga (embora con-
textual) de «doença mental».
273
dóxa significa propr.te «opinião», «reputação», «fama», mas o sen-
tido de «glória» já era corrente na koinê (v. numerosos passos do Novo
Testamento). Mesmo que Luciano só pensasse em «reputação», muitos
leitores não deixariam de sentir a acepção corrente, de resto, muito pró-
xima. V. o mesmo termo no § seguinte, que traduzi por «fama».
303
comprá-los e a não tirar deles qualquer proveito, continuarás
a ser motivo de troça das pessoas cultas, às quais basta tirar
benefício, não da beleza das edições nem do seu luxo, mas sim
da forma literária e do pensamento dos autores.
Por agora, é isto que tenho para te dizer, com toda a fran-
queza, a respeito somente dos livros. No que respeita a outras
actividades nojentas e ignominiosas a que te dedicas, voltarás
a ouvir-me... e muitas vezes.
274
«fama»: v. § precedente.
275
É claro que Luciano e os seus contemporâneos desconheciam os
agentes infecciosos... mas isso só foi conhecido ... antes de ontem!
304
ALEXANDRE OU O FALSO PROFETA
(Página deixada propositadamente em branco)
INTRODUÇÃO
No tempo de Luciano (c. 125-190 d. C.), estavam em pleno
florescimento as doutrinas de mistério e salvação, bem como
antigos e modernos oráculos (de divindades gregas ou orien-
tais), aos quais o povoléu inculto e supersticioso recorria nos
seus muitos momentos de aflição. Naturalmente (o fenómeno
é geral em todos os tempos...), não faltava quem explorasse a
ignorância, o irracionalismo, o medo e as ansiedades das amplas
massas (e até de pessoas mais letradas), no intuito de enriquecer.
Assim, proliferavam os feiticeiros e as feiticeiras, bem como os
sacerdotes, profetas e oráculos de diversas religiões deste ou
daquele deus (grego ou «bárbaro»).
Luciano, homem de espírito lúcido e desempoeirado, não
podia compactuar com tais processos de pura charlatanice,
praticados por pessoas que, para mais, se apresentavam como
sábios, santos e inspirados directamente pela divindade. Mesmo
entre os que se consideravam filósofos, muitos enveredavam
pelas vias mais sinuosas da superstição popular e por uma me-
tafísica nada científica (v. O Mentiroso 276). De toda essa classe
influente (fazedores de opinião e de sentimentos), salvavam-se
uns quantos pensadores, que tomavam por missão sagrada es-
clarecer as pessoas e apetrechá-las contra todos esses embustes.
Entre eles, Luciano refere, com muita frequência, os filósofos
cínicos (Diógenes, Menipo) e os atomistas (Demócrito, Epicuro
e seus seguidores).
A personagem central deste panfleto, Alexandre de Abonotico,
exerceu, entre 150 e 170 d. C., nesta cidade da Paf lagónia
(Ásia Menor) o seu ministério de profeta de Asclépio. A fim
de abranger clientela muito diversa, apresentava-se não só
(nem principalmente) como curandeiro, mas também como
conselheiro, adivinho do futuro e profeta. Para chegar a esse
grau de fama e... proveito, teve de fazer um percurso lento,
mas firme, pontuado das maiores indignidades.
Esta figura está bem atestada em moedas e inscrições, e a
sua fama propagou-se por toda a Ásia Menor, Mediterrâneo,
Grécia, Gália... e estendeu-se até à própria Roma. Da sua vida,
propriamente, as únicas coisas que sabemos são as transmitidas
neste panf leto de Luciano, seu acérrimo adversário mesmo
276
Edições Colibri, Colecção MARE NOSTRUM).
307
antes de o conhecer pessoalmente, mas, sobretudo, depois de
ter sofrido da parte do “profeta” um grave atentado contra a
sua vida (v. § 55-57).
Assim, esta biografia póstuma é, antes de mais, uma vingança
de Luciano contra o seu mortal inimigo, escrita, uns dez anos
depois da morte de Alexandre, a pedido do seu amigo Celso,
que havia escrito uma ou mais obras contra o Cristianismo. Uma
delas, escrita entre 178 e 180, a Palavra Verdadeira mereceu,
mais tarde, a resposta de Orígenes intitulada Contra Celsum,
que nos informa, passo por passo, do conteúdo daquela obra
de Celso.
Tratando-se, como se disse, de um panfleto escrito por um
inimigo de Alexandre, pergunta-se que valor histórico deve
atribuir-se a esta obra. À falta de outra informação, podemos
aceitar o facto de Alexandre se comportar como muitos outros
profetas e adivinhos da sua época. Por outro lado, a menção
precisa de personagens e os abundantes episódios narrados
apontam para uma personagem tenebrosa, que conhecia bem
a alma da gente simples e se aproveitava disso para explorá-la.
Parece claro que Luciano força muitas vezes os factos e, de
qualquer modo, só menciona os casos gritantes de charlatanice.
Esta biografia traz-nos à memória, significativamente, os
diversos retratos de Sócrates: por um lado, a figura do filóso-
fo tal como nos é apresentada pelos seus discípulos Platão e
Xenofonte, nitidamente uma «fotografia retocada» do Mestre;
e, por outro lado, a «caricatura» desenhada por Aristófanes nas
Nuvens. Ambas figuram traços verídicos da mesma persona-
gem, mas aqui devemos notar que o Sócrates das Nuvens é o
«primeiro Sócrates», devotado às ciências da Natureza, ao passo
que o de Platão e Xenofonte é o «último Sócrates», o filósofo
das Ideias: as duas figuras não se sobrepõem no tempo, mas
ambos os Sócrates são retratados segundo os sentimentos e os
objectivos dos seus autores. Se possuímos duas obras intituladas
Apologia de Sócrates (melhor: Discurso de Defesa Pronunciado
por Sócrates), respectivamente de Platão e Xenofonte, falta-nos
a Acusação de Sócrates (i. é, o Discurso de Acusação Pronunciado
contra Sócrates), que foi escrita e publicada por um tal Polícrates...
mas não chegou até nós: com os devidos cuidados, servir-nos-
-ia para procedermos a uma espécie de acareação entre os dois
pontos de vista.
308
De toda a maneira, a biografia que Luciano traça de
Alexandre, além de conter factos concretos, na generalidade
fora de dúvida, constitui, sobretudo, um documento, agora
sim, histórico, do estado de espírito das massas ignorantes, que
acreditavam cegamente nos muitos charlatães que a exploravam.
Na mesma ordem de intenções, podemos ainda citar uma outra
obra de Luciano, O Mentiroso, acima mencionada.
Para o leitor moderno, há que reter a ideia da modernidade
deste panfleto, numa época – a nossa – em que impera a irra-
cionalidade e o acriticismo popular (e até... erudito) relativo
a diversas pseudociências que aparecem propagandeadas por
esses jornais... e têm freguesia. Não há quem os extermine?
Luciano, no seu tempo, bem o tentou.
309
(Página deixada propositadamente em branco)
A LEXANDRE OU O FALSO PROFETA
(Página deixada propositadamente em branco)
A LEX ANDRE OU O FALSO P ROFETA
313
embora eu não seja lá muito bom desenhador. No que toca
ao físico (para te mostrar também este aspecto), era alto e de
bela aparência, na verdade até divinamente imponente, de tez
clara, barba não muito espessa, com cabeleira em parte natural,
em parte postiça, mas muito semelhante [à natural], a ponto
de a maioria das pessoas não se aperceber de que não era dele
próprio. Os olhos tinham um brilho cintilante e divino; a
voz era muito suave e sonora. Numa palavra, não tinha, neste
aspecto, qualquer defeito que se lhe apontasse.
314
dos outros, imitadora hipócrita da virtude e dando a aparência
completamente oposta aos seus verdadeiros propósitos. De
facto, não houve ninguém que, ao primeiro contacto com ele,
não saísse dali com a opinião de que ele era o mais honesto e
o mais virtuoso dos homens, e, além disso, o mais simples e
mais despretensioso. A tudo isto acrescia um ar de grandeza
e um espírito que não se ocupava de coisas mesquinhas, mas
que, pelo contrário, estava constantemente aplicado a assuntos
transcendentes.
278
Podia: o imperfeito justifica-se pelo facto de, no momento em que
Luciano escreve, o biografado já estar morto.
279
Lit.te, «pela palha», imagem sem correspondência exacta em port.:
pela palha que resta, depois de ceifado o trigo, ainda pode ver-se a qua-
lidade da colheita.
315
tempo que já lhe murchava a flor da juventude, que até então
lhe permitia subsistir), pôs de lado planos tacanhos e, tendo-
-se associado a um certo bizantino, autor de cantos corais280 ,
daqueles indivíduos que entram em concursos públicos, fulano
de carácter ainda mais execrando que o dele (um tipo alcunha-
do, julgo eu, de Coconas 281), começaram a percorrer a região,
ludibriando as pessoas, fazendo passes de magia e “tosquiando
os parvos” (como eles próprios, na gíria dos magos, se referem
ao vulgo). Foi assim que tendo encontrado uma macedónia,
mulher rica, já passada da idade, mas ainda apetitosa 282 , não
só começaram a viver à sua custa, mas também a seguiram da
Bitínia para a Macedónia. Essa mulher era natural de Pela,
cidade 283 outrora florescente, nos tempos dos reis macedónicos,
mas actualmente modesta e com muito poucos habitantes.
7. Aí, tendo visto umas serpentes enormes, muito mansas
e dóceis, de tal modo que até eram alimentadas por mulheres,
dormiam com crianças, deixavam-se pisar, não se enfureciam
quando as apertavam fortemente e mamavam na teta junta-
mente com os bebés (existem lá muitas desta espécie, donde
provavelmente se originou a lenda a respeito de Olimpíade:
quando esta estava grávida de Alexandre, uma serpente – creio
que desta espécie – dormia com ela)... então compram, por uns
poucos de óbolos, um destes répteis, o mais belo.
280
Alguns editores lêem khronográphos «cronista », «analista».
281
A alcunha significa «pinhão»...
282
Noutra interpretação, «desejosa de ser amada», «dada aos amores»...
283
O texto diz «região», que, naturalmente, inclui a cidade.
284
Esta frase do livro II de Tucídides está aqui, naturalmente, em
sentido metafórico = «foi aqui que tudo começou».
316
Delfos, mas também Delos, Claros e os Brânquides285 tinham
enriquecido e se tinham tornado famosos por meio destes
dois tiranos dos homens (a que acima me referi – a esperança
e o medo –), os quais se dirigiam aos santuários movidos pela
necessidade de conhecer o futuro e que, para tal, sacrificavam
hecatombes e ofertavam lingotes de ouro. Assim, após discutirem
longamente sobre o assunto, e encarando as várias hipóteses,
decidiram fundar um santuário e um oráculo: esperavam, se
o negócio lhes corresse bem, ficar ricos e prósperos em pouco
tempo – o que de facto aconteceu para além das suas primeiras
expectativas e se revelou muito acima do que esperavam.
317
pai Apolo, se deslocariam à região do Ponto e se estabeleceriam
em Abonotico. Estas plaquetas, adrede descobertas, fizeram que
esta história se espalhasse rapidamente por toda a Bitínia e pelo
Ponto, e por Abonotico mais que por todas as outras regiões. E
de facto, os abotonicenses votaram a edificação de um templo,
e já estavam mesmo a abrir os alicerces. Entretanto, Coconas
fica em Calcedónia, compondo oráculos duplos, equívocos e
obscuros, mas terminou aí os seus dias, mordido – segundo
creio – por uma víbora.
11. Alexandre avança, já então provido de uma grande
cabeleira aos caracóis e vestido com uma túnica de púrpura às
riscas brancas e com um alvo manto sobre os ombros, empu-
nhando uma cimitarra à maneira de Perseu, do qual se dizia
descendente por parte da mãe. E os pobres dos Paflagónios,
que sabiam muito bem que ambos os seus progenitores eram
pessoas obscuras e humildes, acreditaram no oráculo, que dizia:
12. Pois bem: entrando na sua pátria com tão grande apa-
rato e depois de longa ausência, Alexandre tornou-se notável e
famoso, ao simular, algumas vezes, ataques de loucura sagrada
e deitando espuma pela boca. Este truque era muito fácil,
288
Os números eram representados por letras; assim, no caso presente,
temos: a/= 1; l/= 30 (23x10); e/= 5; x/= 60 (3x20), o que dá ¢lex (alex),
completado por ¢ndrÒj, mais a terminação -htÁroj (-êtêros), que sugere
swtÁroj (sôtêtos), «salvador». Mesmo para mau entendedor...
318
bastando mascar raiz da saponária, planta usada em tintura-
ria. Mas os espectadores tomavam aquela espuma como algo
de sobrenatural e estarrecedor. Além disso, desde há muito
que [ele e o sócio 289] tinham fabricado, em linho, uma cabeça
de serpente com uma certa semelhança antropomórfica, bem
pintada e muito bem desenhada, a qual, por meio de crinas
de cavalo, abria e fechava a boca e projectava uma língua ne-
gra e bífida, como as serpentes, também pelo mecanismo das
crinas. Além disso, a tal serpente de Pela continuava guardada
para a função, alimentada em casa, destinada a ser, em devido
tempo, mostrada às pessoas e a participar no espectáculo, no
qual desempenharia mesmo o papel de protagonista.
319
com água e lama, o tal ovo, no qual tinha encerrado a divin-
dade, depois de lhe abrir uma tampa, cuja junta estava colada
com cera branca e alvaiade. Então, tendo tomado o ovo nas
mãos, proclamava que, naquele momento, tinha ali o próprio
Asclépio. E os espectadores, já antes mui maravilhados com a
descoberta do ovo dentro de água, não despegavam os olhos
do que iria acontecer. Então, tendo quebrado o ovo, tomou na
concha da mão a tal serpente recém-nascida. Os presentes, ao
vê-la mexer-se e enroscar-se nos dedos do profeta, desataram
logo em clamores, saudavam o deus e felicitavam a sua cidade;
cada um, embasbacado, cumulava-o de preces, pedindo-lhe
tesouros, riqueza, saúde e todos os outros bens. Então o profeta
regressou novamente a casa, a toda a pressa, levando consigo
o recém-nascido Asclépio, “ duas vezes nascido, enquanto as
restantes criaturas nascem apenas uma vez” 290 , nascido, neste
caso, não de Corónide, nem ao menos (c’ os diabos) de uma
gralha 291, mas de uma gansa. Atrás dele vai o povo em massa,
todos cheios de fanatismo religioso e loucos de esperança.
290
Paródia de um verso de Homero, Odisseia, XII, 22: “Duas vezes
mortos, enquanto as restantes criaturas morrem apenas uma vez”.
291
Há aqui um jogo de palavras intraduzível: o palavra korône «gralha»
é sugerida pelo nome próprio Corônís, mãe de Asclépio.
320
16. Agora imagina uma pequena sala, não muito bem ilu-
minada nem recebendo suficiente luz do dia, e uma multidão
de pessoas em tropel, agitadas, antecipadamente maravilhadas
e excitadas de expectativa: logo de entrada, como é natural,
parecia-lhes assombroso o facto de, em poucos dias, um pequeno
réptil se transformar numa serpente de todo o tamanho, com
cara de homem e, além disso, muito mansa. Mas logo eram
empurrados para a porta de saída, sem tempo para observar
com atenção, impelidos pela multidão que não parava de en-
trar, para o que tinha sido aberta uma outra porta de saída
na parte de trás. Um processo semelhante, segundo se diz, foi
utilizado pelos Macedónios, em Babilónia, durante a doença
de Alexandre, quando este já estava gravemente doente e os
soldados rodeavam o palácio ansiando por vê-lo e dizer-lhe
o último adeus. Diz-se mesmo que não foi só uma vez que o
patife encenou esta representação, mas muitas outras vezes,
em especial se se tratava de pessoas ricas acabadas de chegar à
cidade.
17. Neste ponto, meu caro Celso, para falar verdade, há que
desculpar essa gente da Paflagónia e do Ponto, pessoas broncas
e ignorantes, pelo facto de se deixarem enganar, mesmo tocando
a serpente (coisa que Alexandre permitia a quem quisesse), ao
verem, a uma luz muito fraca, a sua pretensa cabeça e a boca
a abrir e fechar, pois o truque requeria mesmo [para ser desco-
berto] um Demócrito, ou um Epicuro, ou um Metrodoro, ou
qualquer outra pessoa que possuísse um espírito resistente como
aço para esse tipo de coisas, a ponto de desconfiar e imaginar
do que é poderia tratar-se, e que, caso não fosse capaz de des-
cobrir como é que o truque era feito, estivesse já previamente
persuadido de que, embora o processo lhe escapasse, era tudo
uma fraude que não poderia nunca acontecer realmente.
321
dado ao deus, pois este chamava-se Glícon, nome originado de
uma ordem divina em verso, pois Alexandre havia proclamado:
292
Quer dizer, «terceira geração», «neto».
293
Entenda-se: «tal como seu pai (fazia em Tebas)».
294
O texto diz «à letra», ou «palavra por palavra». O profeta queria
informar os consulentes de que não procedia como tantos outros oráculos,
que davam respostas confusas e dúbias.
322
a segurança e com uma marca muito difícil de imitar, se não
existisse por detrás um deus que verdadeiramente tudo sabe?»
323
presumia ser melhor; a outros receitava mezinhas e dietas,
pois, como eu disse no princípio, conhecia muitos remédios
salutares. Mas o que tinha a sua preferência especial eram as
cítmides, designação, por ele forjada, de um certo fortificante
feito à base de gordura de urso296 . Quando, porém, se tratava
de expectativas, prosperidade e sucessão de heranças, remetia
a resposta sempre para outro dia, acrescentando: «Tudo isso
ficará para quando eu quiser e Alexandre, o meu profeta, mo
solicitar e rogar por vós».
324
contra eles um espantalho, dizendo que o Ponto estava cheio de
ateus e de cristãos, que ousavam proferir a seu respeito as piores
blasfémias, e aconselhava as pessoas a expulsá-los à pedrada, se
quisessem que o deus lhes fosse propício. Especialmente contra
Epicuro, chegou mesmo a proferir um oráculo do mesmo teor;
e quando alguém lhe perguntava o que é que Epicuro fazia no
reino de Hades, dizia:
297
Literalmente: «não declarada».
298
Entenda-se: já feito. Note-se que Alexandre, como tantos outros,
dispunha de uma vasta colecção de oráculos já redigidos, donde, sem
perda de tempo e de trabalho de elaboração, escolhia o mais apropriado
a cada caso.
325
Tempera com cominhos, em amassadeira sagrada, uma malva de porcos 299.
299
Vê-se bem o ilogismo... mas era mesmo assim.
300
Governador da Capadócia, invadiu a Arménia em 161 d. C., sendo
completa mente derrotado.
301
Trata-se de uma coroa com uma auréola irradiante; outro tipo era
a coroa de louro.
326
28. Na verdade, tinha imaginado este processo muito esperto,
que consistia em fabricar oráculos posteriores aos factos, a fim
de emendar as previsões que havia feito e que tinham dado
errado. Muitas vezes, antes da morte dos doentes, anunciava-
-lhes a cura, mas, se a pessoa morria, tinha logo ali à mão, já
preparada, outra versão do oráculo:
Ou então:
E ainda:
327
Ora, este indivíduo, ao ouvir falar de tal oráculo, pouco fal-
tou para abandonar o cargo de que estava investido e voar para
Abonotico. No entanto, enviou emissários atrás de emissários.
Ora estes, pessoas incultas e simples servos, eram facilmente
iludidos e, ao regressarem, contavam não só o que tinham
visto, mas também, como se tivessem visto, aquilo que apenas
tinham ouvido dizer, ainda por cima exagerando muito os
factos, a fim de ficarem bem vistos aos olhos do patrão. Deste
modo, inflamavam o espírito do pobre velho e induziam-no
em forte loucura.
303
para o consulente depreende-se do contexto, como se vê a seguir.
304
Recorde-se que Luciano está a escrever para o seu amigo Celso.
328
33. Agora proponho-me contar-te alguns dos oráculos da-
dos a Rutiliano. Tendo-lhe este perguntado, a respeito de um
filho que tinha tido da anterior esposa e que estava na idade
de ser educado, que mestre lhe indicava para os seus estudos,
respondeu:
305
O ilustre aedo narrador de guerras é Homero.
306
Lit.te «de bílis negra», talvez de cirrose; outra possibilidade: «de
loucura», «louco».
307
Selene = Lua. V. infra.
329
o caso que Selene, uma vez, ao contemplá-lo a dormir, ficou
apaixonada por ele, pois era seu costume apaixonar-se pelos
belos adormecidos. Então o inteligentíssimo do Rutiliano,
sem perder tempo, mandou pedir a rapariga em casamento,
celebrou as bodas e – noivo sessentão – teve relações com
ela, invocando a bênção da sua sogra Selene, a quem ofertou
hecatombes completas, cuidando que, deste modo, também
ele se havia tornado um dos deuses celestiais.
Por toda a parte se podia ver este verso inscrito nas ombreiras
das portas, como antídoto contra a peste, mas o que é certo é
que ele tinha, na maior parte dos casos, o efeito contrário: por
qualquer acaso, ficaram despovoadas especialmente aquelas
casas em que o verso estava inscrito. Mas não cuides que estou
a afirmar que foi por causa do verso que as pessoas pereceram,
pois isso sucedeu assim por mero acaso, ou talvez, também,
porque muitas pessoas, confiadas nesse verso, se descuidavam
e levavam uma vida muito despreocupada, não ajudando o
oráculo a combater a moléstia, como se considerassem que
essas simples sílabas os defenderiam e que o “Febo de longos
cabelos” afastaria a peste com as suas setas.
330
estava pronto para dar as respostas, mesmo antes da chegada
dos consulentes.
331
40. Frequentemente, durante a procissão dos fachos e por
entre as cabriolices místicas, deixava ver, propositadamente, a
sua coxa de oiro, provavelmente coberta com uma pele pintada
com tinta dourada e que brilhava ao reflexo dos fachos. Por
isso, tendo, certa vez, dois sabichões mui cretinos levantado a
questão de saber se Alexandre, em vista da coxa de oiro, tinha
também herdado a alma de Pitágoras, ou se apenas tinha uma
alma semelhante à do filósofo, e tendo estes apresentado a per-
gunta ao próprio Alexandre, o rei Glícon resolveu o problema
com este oráculo:
42. Era assim que ele usava e abusava dos simplórios, cor-
rompendo sem ponta de vergonha as mulheres e abusando
de jovens adolescentes. Mais: os homens consideravam uma
honra muito grande e desejável que Alexandre deitasse os olhos
à esposa de um deles, porquanto, se o profeta achava alguma
delas digna de ser beijada, por certo que isso reverteria em boa
sorte para a sua casa. Muitas mulheres até se vangloriavam de
ter tido um filho dele, e os maridos juravam a pés juntos que
elas falavam verdade.
332
43. Agora quero contar-te um diálogo havido entre Glícon
e um tal Sacerdote natural de Tios 310 , e de cuja inteligência
tu julgarás, a avaliar pelas suas perguntas. Eu próprio li esse
diálogo gravado a letras de oiro, em Tios, na casa de Sacerdote.
«Diz-me lá, Senhor Glícon – perguntou Sacerdote – quem
és tu?»
«Eu – respondeu Alexandre – sou um novo Asclépio, mas
diferente daqueloutro, o primeiro.311»
«Como é isso?»
«Não te é lícito saber tal coisa.312»
«Quanto tempo permanecerás entre nós proferindo oráculos?»
«Três anos e mais mil.»
«E depois para onde te mudarás?»
«Para Bactra e sua região, pois os bárbaros também devem
usufruir da minha presença entre eles.»
«Então e os outros oráculos, como o de Dídimos, o de Claro e o
de Delfos, são inspirados pelo teu pai Apolo, quando proferem os
seus oráculos, ou será que são falsos os oráculos que actualmente
de lá saem?»
«Não queiras conhecer isso, pois não é lícito.»
«Que é que eu serei depois desta vida?»
«Primeiro, camelo; depois, cavalo; e depois, homem sábio e um
profeta não inferior a Alexandre.»
Este foi o teor do diálogo entre Glícon e Sacerdote. E para
terminar, Alexandre proferiu este oráculo em verso, por saber
que Sacerdote era um adepto de Lépido 313:
310
Tios era uma cidade da Paf lagónia. O texto tem o adj. “tiano” =
«(natural) de Tios».
311
Alguns editores consideram a segunda parte uma pergunta de
Sacerdote: «Mas... diferente daqueloutro, o primeiro?». O que se segue
faria parte, naturalmente, da mesma fala: «Como é isso?». Entendo melhor
a versão aqui apresentada.
312
O texto diz: «Não te é lícito ouvir tal coisa».
313
Este Lépido parece ser um filósofo epicurista e, por esse facto, do
total desagrado de Alexandre.
333
44. Assim, fez incorrer num grave risco um certo filósofo
epicurista, que se atreveu a desmascará-lo diante de testemu-
nhas. Foi o caso que, acercando-se de Alexandre, lhe disse
com voz forte: «Foste então tu, Alexandre, que induziste um
certo paflagónio a levar uns criados seus à presença do governador
da Galácia, para que este os condenasse à morte pelo assassinato
do seu filho, estudante em Alexandria? Este, porém, está vivo e
regressou a casa são e salvo, mas já depois da morte dos criados,
lançados às feras por tua causa.» Eis, mais ou menos, como as
coisas se passaram:
Tendo o jovem navegado rio Nilo acima até Clisma 314 , e
como nesse porto estivesse um navio prestes a levantar ferro,
decidiu embarcar nele a caminho da Índia. Ora, como ele
tardasse em aparecer, os desventurados criados, cuidando
que o jovem tinha perecido nas águas do Nilo ou que havia
sido raptado por salteadores (que nesse tempo proliferavam
na região), regressaram, anunciando o seu desaparecimento.
Seguiu-se o tal oráculo e a condenação dos criados, após o que
o jovem apareceu e narrou a viagem que fizera.
334
do fogo e da água, pelo que se via obrigado a errar de terra em
terra, considerado ímpio, um ateu e... um epicurista –que era
o maior dos vitupérios.
316
O título em grego era Kyríai Dóxai.
317
Planta liliácea bolbosa usada em medicina.
318
A palavra divino indica que o imperador já tinha morrido e, por-
tanto, havia passado à categoria divina. Em termos mais profanos significa
«o falecido...».
319
Nome do Danúbio inferior.
335
Na torvelinho do Istro, rio de Zeus originado,
ordeno sejam lançados dois servidores de Cíbele,
feras criadas nos montes, e quantas flores e drogas
cheirosas cultiva o índio. E logo sobrevirá
vitória e grande fama, seguida da doce paz.
320
Este desastre militar e o assalto à cidade de Aquileia deram-se entre
167 e 169 d. C.
321
Cidade da Ístria, ao norte da Itália, junto do Adriático.
322
Esse cuidado indicaria que se tratava de um consulente especial
ou... perigoso.
336
era mesmo objecto de arrematação: cada intérprete pagava a
Alexandre um talento ático 323 .
323
O talento não era moeda corrente, mas sim aquilo a que se chama
«moeda de conto». Um talento equivalia a 60 minas ou 6.000 dracmas.
Era uma quantia avultada, que diz bem do lucro que o negócio propor-
cionava a ambas as partes.
324
Demócrito é, em muitos passos da obra de Luciano, o protótipo
do homem racional, que não se deixa enganar por truques de mágicos,
profetas e quejandos.
325
Literalmente, o termo grego significa «cuspir para o chão», em
sinal de repúdio.
326
Embora mantendo a numeração tradicional, muitos editores mo-
dernos aceitam a transposição proposta pelo filólogo Fritzsche: 52 antes
de 51. Em todo o caso, não nos parece que essa transposição seja absolu-
tamente necessária.
337
era fácil 327 encontrar residentes estrangeiros da mesma nação
dos consulentes. Devido a esse facto, era mais longo o tempo
que mediava entre a entrega dos rolos e a resposta do oráculo,
já que, entretanto, havia que tirar o selo com todo o vagar e
cuidadosamente e, depois, encontrar pessoas capazes de traduzir
cada uma das perguntas. Eis um exemplo de um oráculo dado
em língua cítia:
327
Alguns manuscritos têm «não era fácil», o que obrigaria a ajeitar
a frase para «mas não era fácil...». É difícil decidir, porquanto, sendo ou
não fácil encontrar tradutor, a operação de traduzir e responder na mesma
língua sempre levava o seu tempo.
328
Neste texto, reconhecem-se algumas palavras gregas – o que seria
de todo em todo ilógico. Certamente que o texto original de Luciano seria
mesmo em língua cítia, mas, posteriormente, os copistas sucessivos, não
entendendo nada do que estava escrito, tentaram «helenizar» o oráculo.
O sentido parece ser: «Morpen Eubárgoulis irá (?) para as trevas e aban-
donará a luz [do dia]».
329
Texto completamente obscuro. Os manuscritos apresentam textos
muito diferentes.
330
Não é possível determinar de que espécie de unguento se tratava.
338
Não vás por via marinha, viaja por terra seca.
331
O preço de cada oráculo era de 1 dracma e 2 óbolos. A dracma
continha 6 óbolos, pelo que os oito oráculos ficavam em 8 dracmas e 16
óbolos, ou seja, 10 dracmas e 4 óbolos. Luciano pagou 8 dracmas com
moedas de 1, 2 ou 4 dracmas, e o restante em óbolos.
339
facto de eu ter tratado Alexandre pelo seu próprio nome, e não
por «Profeta». Ele, porém, suportando corajosamente o golpe,
acalmou as pessoas e prometeu-lhes que facilmente faria de mim
uma pessoa mais cordata e que, desse modo patentearia o poder
de Glícon, que consegue transformar em amigos até mesmo as
pessoas mais violentas. Depois, tendo mandado toda a gente
embora, tentou justificar-se perante mim, dizendo que sabia
muito bem quem eu era e os conselhos que eu dera a Rutiliano.
E acrescentou: «Por que motivo me trataste desta maneira, quando
eu, afinal, até seria capaz de aumentar a tua reputação junto de
Rutiliano?». Aí eu, vendo o perigo em que incorria, aceitei de
bom grado a sua amizade e, passados alguns momentos, apare-
ci em público como seu amigo, facto que a todos pareceu um
milagre, tão rápida foi a minha transformação.
56. Algum tempo depois, como eu decidisse partir (por acaso
acompanhado somente de Xenofonte332 , pois havia previamente
mandado meu pai e outros familiares para Amástris), enviou-
-me lembranças e presentes, juntamente com a promessa de me
fornecer um navio e respectivos remadores para me conduzis-
sem, o que eu considerei um acto sincero e cortês. Chegados,
porém, a meio da viagem, vendo o piloto a chorar e a discutir
junto dos remadores, foram-se-me as boas perspectivas de fu-
turo: era evidente que tinham recebido ordens de Alexandre
no sentido de pegarem em nós e nos lançarem ao mar, o que,
a ter sucedido, seria a forma mais fácil de acabar com a guerra
entre nós. Por fim, o piloto, com as suas lágrimas, convenceu
os companheiros a que não nos fizessem mal. E disse-me ele:
«Tenho sessenta anos, como vês; ora, tendo chegado a esta idade
levando sempre uma vida irrepreensível e pura, não quereria,
na minha idade e com mulher e filhos, manchar as minhas mãos
com um homicídio.». E confessou a intenção com que nos havia
embarcado e as ordens que recebera de Alexandre.
340
receberam-nos no navio e conduziram-nos sãos e salvos até
Amástris, depois de ter estado tão perto de perder a vida.
Desse momento em diante, declarei guerra a Alexandre e
movi todos os cordelinhos 334 no intuito de me vingar, eu que
já antes desta emboscada o odiava e o considerava meu grande
inimigo mortal, devido à vileza do seu carácter. Assim, avancei
com um processo contra ele, secundado por muitos companhei-
ros de luta, nomeadamente os adeptos do filósofo Timócrates
de Heracleia. Foi então que Avito 335, ao tempo governador da
Bitínia e do Ponto, me refreou, pouco faltando para me rogar e
implorar que desistisse do processo, dizendo que, devido às suas
relações de amizade com Rutiliano, não poderia punir Alexandre,
mesmo que se provasse claramente que ele era culpado. Assim,
contive o meu impulso e desisti daquela temeridade nada opor-
tuna, tratando-se de um juiz com tal predisposição.
334
O texto diz «todos os cabos» ou «todas as cordas», mas o sentido é,
em grego como em português, metafórico.
335
Lúcio Loliano Avito foi governador da Bitínia em 165 d. C.
336
V. §11.
341
muito embora se tenha devido ao acaso337. Depois, havia que
lhe fazer um funeral digno da sua vida e abrir concurso para a
sua sucessão no oráculo, pelo que os cúmplices e charlatães mais
importantes se dirigiram a Rutiliano a fim de que este, na quali-
dade de árbitro, decidisse qual deles havia de ser escolhido para
lhe suceder no oráculo e ser coroado com a coroa de sacerdote e
profeta. Ora, havia entre eles um tal Peto, médico de sua profissão,
já de cabelos grisalhos, que se comportava de maneira indigna
quer de um médico quer de um velho. Todavia, Rutiliano, juiz
do concurso, despediu-os a todos, sem lhes outorgar a coroa da
vitória, mantendo para Alexandre o lugar de profeta, mesmo
depois da sua morte.
61. O que aqui fica, meu caro amigo, é apenas uma pequena
parte, que, a título de amostra, tive por bem escrever, não só
para te ser agradável, como meu companheiro e amigo, que eu
muito admiro entre todos, pela tua sabedoria, pelo teu amor da
verdade, pela doçura do teu carácter, teu sentido de equidade,
serenidade na vida e gentileza com aqueles que te visitam, mas
especialmente – coisa que te é sumamente grata – no intuito de
vingar Epicuro, homem realmente santo e de natureza divina, o
único que conheceu de ciência certa o sumo bem e o transmitiu,
esse libertador dos que com ele convivem. Também estou convicto
de que os leitores encontrarão algo de útil neste meu escrito, que,
por um lado, desmascara imposturices, e, por outro, consolida
as convicções das pessoas de bom senso.
337
Luciano expõe aqui uma ideia dos atomistas (Demócrito, Epicuro...),
materialistas convictos, que defendiam a ideia de que os deuses, se existem,
não se ocupam das coisas humanas. O conceito de acaso (juntamente com
o de vazio e a constituição atómica da matéria) é um dos princípios dos
atomistas e epicuristas.
342
PRONTUÁRIO MITOLÓGICO
(Página deixada propositadamente em branco)
PRONTUÁRIO MITOLÓGICO
345
SIGLAS:
347
rodilhado numa rede bem mon- ÁTIS (DD 12) — Companheiro de Cíbele
tada (17). (a Deusa-Mãe) e participante nos
seus mistérios. Foi amado pela ve-
ARGOS (DD 3; 20) — Gigante com cem
lha deusa Reia.
olhos (ou quatro: dois à frente e
dois atrás), a quem, por isso mes- Baco: v. DIONISO
mo, foi confiado a guarda de Io
BÉBRICE (DD 26) — nome comum: «bé-
(v.). Foi morto por Hermes, que,
brice», «da Bebrícia»; andrónimo:
depois de o ter adormecido ao
Bébrice, filho de Âmico, rei da
som da flauta, lhe cortou a ca-
Bebrícia.
beça.
BRANCO (DD 2) — Filho (e sacerdote)
ÁRTEMIS (lat. Diana) (DD 16; 19; 23;
de Apolo.
26) — Irmã gémea de Apolo.
Deusa da natureza e da caça, BRIAREU (DD 21) — Gigante de cem
mas também protectora das par- braços, lutou ao lado de Zeus con-
turientes. «É varonil para lá da tra os Titãs.
medida, muito amiga de andar pe-
CADMO (DD 9; 24) — Neto de Posídon,
los montes e, para concluir, quando
filho de Agenor; herói de origem
vai à Cítia, toda a gente sabe como
fenícia, parte à procura de sua irmã
ela mata e devora estrangeiros».
Europa, raptada por Zeus. Depois
ASCLÉPIO (Esculápio) (DD 13; 26 | de muito procurar, chega à Beócia,
AFP 10; 13-15; 26; 38; 43; 58) onde funda Tebas, de que se tor-
— Herói tessálico, que os Gregos nou rei. Casado com Harmonia,
fizeram deus da medicina, dando- filha de Ares, dessa união nasce-
-lhe, como paternidade adequada, ram diversos filhos, entre os quais
precisamente Apolo. A sua arte Sémele, mãe de Dioniso. Passa por
era tal, que chegava a ressuscitar ser o inventor do alfabeto (pela sua
mortos, o que irritou sumamen- origem fenícia) e da metalurgia.
te Zeus, que o atingiu com o seu
CÁRITE(S) (lat. Graças) (DD 15; 20) —
raio. Tinha um grande número de
Filhas de Zeus, personificam o ide-
santuários em toda a Grécia (Pau-
al de graça, delicadeza e perfeição:
sânias fala de 63), o mais famoso
Eufrósine («alegria»), Aglaia («bri-
dos quais era o de Epidauro.
lho») e Talia («florescente»).
ATENA (lat. Minerva) (DC 7; 9 | DD 9;
CASTOR E PÓLUX (DD 26) — Leda,
19; 20; 21 | DDM 7; 14 | DM
esposa de Tíndaro, rei de Esparta,
29) — Nascida da cabeça de
teve uma união com Zeus, que a
Zeus, armada e equipada (9), é
seduziu sob a forma de cisne. Des-
a deusa das artes e da filosofia e
sa relação nasceram dois... ovos: de
protectora de Atenas. Deu aos
um deles, saíram Helena e Pólux,
homens o precioso presente da
e do outro Castor e Clitemnestra.
oliveira. Também deusa guer-
Pólux, distinguiu-se na luta, sobre-
reira, que, sob o nome de Níkê,
tudo no pugilato, e Castor era um
«Vitória», favorecia quem a invo-
exímio domador de cavalos. Protec-
casse.
tores dos homens, sobretudo como
348
salvadores de náufragos. Quando numa prisão, bem preservada do
chegou a hora de Castor morrer, mundo exterior, mas Zeus conse-
Pólux, desde o nascimento dotado guiu lá entrar sob a forma de chuva
da imortalidade, fica inconsolável de oiro... e Dánae foi mãe de Per-
com o destino do irmão, mas é-lhe seu... ...
concedida a graça de partilharem as
DEJANIRA (DD 13) — Esposa de Héracles
duas situações: alternadamente, um
está no reino de Hades, e o outro Delfos: v. APOLO
encontra-se no Olimpo.
Diana: v. ÁRTEMIS
Claro(s): v. APOLO
Dídimos: v. APOLO
CLÍMENE (DD 12; 25) — Uma das Oce-
DIONISO (Baco) (DD 2; 9; 18; 22; 23 |
ânides. Da sua união com Hélio
DDM 5-6 | DM 14 | BI 11)— Fi-
nasceu Faetonte, jovem impru-
lho de Zeus e de Sémele, mas, como
dente a quem seu pai, ainda mais
esta tivesse morrido antes do seu
imprudente, emprestou o carro
nascimento (v. SÉMELE), Zeus in-
puxado por fogosos cavalos.
troduziu o feto na coxa, até que se
Cólofon: v. APOLO cumprisse o tempo necessário para o
nascimento. Deus da vinha e do vi-
CORIBANTES (DD 12) — Sacerdotes de
nho, da arruaça e da desordem, anda
Cíbele, participavam em ritos de
sempre acompanhado das Ménades,
mistério e orgiásticos. Represen-
das Bacantes e dos Centauros, Sátiros
tam as forças irracionais.
e Silenos. Dioniso represente a força
CRONOS (DD 9) — O maior dos Titãs, irracional, o pulsar da natureza bruta,
pai de Zeus, que engolia os filhos por oposição ao pensamento racio-
à nascença. Zeus, porém, escapou, nal e à ordem universal representada
pois sua mãe escondeu-o. Mais por Apolo.
tarde, revoltou-se contra o pai e
DÓRIDE (DÓRIS) — 1. (DDM 1; 12;
ocupou-lhe o trono.
14) Filha de Oceano, esposa de
Cupido: v. EROS Nereu, donde é mãe das Nereides. |
2. (DC 2) Nome duma cortesã | 3.
DAFNE (DD 2; 14-16 | DM 28) — Bela
(BI 15) Esposa de Dioniso, tirano
ninfa, amada por Apolo, que a per-
de Siracusa
seguiu longamente. Vendo-se qua-
se apanhada, gritou por sua mãe, ECO (DD 22; DDM 1) — Ninfa, apai-
Terra, tendo-se logo transformado xonada pelo belo Narciso, mas não
em loureiro (gr. d£fnh), planta correspondida, definhou de des-
que passa a ser o símbolo e o pré- gosto. O seu corpo, reduzido a um
mio da vitória. fantasma, habita em grutas e nas
montanhas, onde não fala, mas só
DÁNAE (DD 24 | DDM 14) — Filha
responde a quem se lhe dirige, mas
única de Acrísio, rei de Argos. Um
apenas repetindo a última sílaba.
oráculo declarou que Dánae daria
à luz um filho que haveria matar o ENDÍMION (DD 11; AFP 39) — Jovem
avô. Então Acrísio encerrou a filha pastor por quem Selene (a Lua) se
349
apaixonou, não se fartando de o dois irmãos. Desposou Perséfone
contemplar enquanto ele dormia. (Prosérpina). Diz-se o reino de
Hades ou o Hades para designar o
EROS (lat. Amor, Cupido) (DD 2; 4; 7;
Inferno.
12; 19; 23 | DM 19; 26) — Filho
de Afrodite e de Ares, suscita a HEBE (DD 5 | DM 16) — Deusa da ju-
paixão irresistível de deuses e hu- ventude, era a copeira dos deuses
manos, por meio de setas com que olímpicos, mas, após o seu casa-
atinge o coração das vítimas. mento com Héracles, foi substi-
tuída nessa função por Ganimedes
Esculápio: v. ASCLÉPIO
HEFESTO (DD 1; 5; 7; 8; 15-17 | DDM
GALATEIA (DDM 1) — Filha de Dóride
10) — Filho de Zeus e de Hera.
e de Nereu.
Ferreiro dos deuses, para quem fa-
GANIMEDES (DD 4; 5; 6; 9; 20) — bricava armas e outros engenhos.
Príncipe troiano, foi escolhido por Tenta libertar sua mãe, que, jun-
Zeus para ser seu escanção (em tamente com outras deusas, havia
substituição de Hebe) e seu aman- participado numa conspiração
te. Segundo uma versão, Zeus en- contra Zeus, pelo que este o preci-
viou uma águia para o raptar; ou- pita do alto do Olimpo, indo cair
tra versão diz que o próprio Zeus no mar, onde foi recolhido por
se disfarçou de águia. Tétis. Devido a essa queda, ficou
coxo, a juntar ao facto de já ser feio
Gárgaro: v. Ida, monte
por natureza e, pelo ofício, andar
GÓRGONA(S) (DD 19; DDM 14) — Se- sempre sujo e enfarruscado. Os
res de aspecto monstruoso e ater- Gregos situavam a sua oficina na
rador, eram três irmãs — Esteno, ilha de Lemnos. Desposou Afro-
Euríale e Medusa. Esta última, a dite, a qual, no entanto, preferiu
mais famosa, é por vezes designada sempre o esbelto Ares. Hefesto
por a Górgona (por excelência). É armou-lhes uma rede, que os en-
representada com serpentes enle- volveu no leito, em pleno acto
adas nos cabelos, dentes longos e amoroso (17). Foi Hefesto que,
aguçados como os de um javali; o por ordem de Zeus, rachou com
seu olhar petrifica quem a fixa. | um machado a cabeça do Olím-
Cortesã: DC 1 pico, donde brotou Atena (13).
Graça(s): v. CÁRITE(S) Eventualmente, também servia de
copeiro dos deuses.
HADES ou PLUTÃO (Hades: DD 6; 7;
24 | DM 4; 10; 13; 16; 17; 20; HÉLIO (DD 10; 12; 17; 25) — O Sol ou
25; 26 | AFP 25; 33; Plutão: DD o Deus-Sol, percorre todos os dias
24; DM 2; 5; 6; 16; 20; 22; 23) a Terra no seu carro de oiro puxa-
— Rei do reino inferior (Inferno), do por quatro fogosos cavalos. Um
irmão de Posídon (rei dos mares) dia, confiou o governo do carro a
e de Zeus (soberano celeste), que, seu filho Faetonte, que, por insen-
depois da vitória sobre os Titãs, satez e falta de experiência, ora se
repartiu o universo com esses seus aproximava da Terra, ora se afasta-
350
va, causando os maiores prejuízos, rainha das Amazonas; 10: roubou
pelo que Zeus teve de intervir, os bois de Gérion, gigante de três
atingindo o jovem com os seus corpos, ajudado por um cão de
temíveis raios (25). Uma vez, em duas cabeças; 11: roubou as maçãs
que Zeus precisava de uma noite de ouro do jardim das Hespérides;
três vezes mais longa, a fim de estar 12: capturou Cérbero, o cão do
com a bela Alcmena, legítima es- reino de Hades. v. 13...
posa de Anfitrião, recebeu ordem
Hércules: v. HÉRACLES
de retardar a marcha.
HERMAFRODITO (DD 15; 23) — Fi-
HERA (SVL 8 | DD 3; 5; 6; 9; 16; 18; 20;
lho de Hermes e de Afrodite
21 | DDM 7; 9; 11 | DM 28) —
Esposa de Zeus, ciumenta (com HERMES (DD 3; 4; 9; 10; 14; 15; 17; 20-
toda a razão) e vingativa. V. IO (3; 22; 24; 26 | DDM 7; 11 | DM 4;
5); Num concurso de beleza entre 5; 10; 18; 22; 23; 27; 30) — Filho
Hera, Atena e Afrodite, o juiz Páris de Zeus e da ninfa Maia. Menino
atribui a vitória a esta última. prodígio, cometeu, ainda bebé,
façanhas admiráveis: rouba o gado
HÉRACLES (lat. Hércules) (SVL 17 | DD
de Apolo e inventa a lira de sete
13 | DM 14; 15; 16; 23 | BI 5; 23
cordas. Entre outras funções, é
| AFP 4) — Filho de Alcmena,
mensageiro dos deuses e condutor
esposa de Anfitrião, e de Zeus,
das almas para o reino de Hades.
é o mais célebre, o mais forte e
o mais valente dos heróis. Antes HIMENEU (DD 20) — Filho de Afrodite
de tomar lugar entre os imortais, e de Dioniso, é a divindade que
teve de desempenhar tarefas ex- preside à união dos amantes, após
tremamente perigosas (os «doze casamento legal, ao contrário de
trabalhos») impostos por Eristeu, Eros.
rei de Micenas. 1-2: mata o leão
HÍMERO (DD 20) — Irmão de Eros, am-
de Nemeia e a hidra de Lerna; 3-4:
bos filhos de Afrodite. Personifica-
captura do javali de Erimanto e
ção do desejo apaixonado.
da corça de pernas de bronze de
Ártemis; 5: extermina as aves do HIPNO (Sono) (DD 10) — Filho da Noi-
lago de Estínfalo, com bicos garras te, irmão gémeo da Morte (10.2).
e penas de bronze e consagradas a ICÁRIO (DD 18; 21) — Pai de Penélope
Ares; 6: limpeza dos estábulos de de Esparta, foi morto pelos seus
Áugias, que continha três mil bois, companheiros embriagados.
e que Héracles só conseguiu lim-
par, desviando para aí os rios Alfeu ÍNACO — v. IO.
e Peneu; 7: captura do touro que IO (DD 3) — Filha de Ínaco, um das mais
assolava a ilha de Creta; 8: captura célebres amores de Zeus e, por
das éguas de Diomedes, rei da Trá- isso, odiada por Hera, que a trans-
cia, que lançavam fogo pelas nari- formou em vitela e pôs a guardá-la
nas e eram alimentadas com carne o monstro Argos, que tinha cem
humana; 9: obtém para Eristeu olhos, metade dos quais estava
a maravilhosa cinta de Hipólita, sempre vigilante. Hermes, porém,
351
por ordem de Zeus, conseguiu LETO: v. LATONA.
adormecê-lo ao som da flauta e
Lua: v. SELENE
cortou-lhe a cabeça.
MAIA (DD 7; 22; 24) — Ninfa, a mais
IXÍON (DD 6) — Rei dos Lápitas, povo
velha das Plêiades, foi amada de
selvagem da Tessália. Admitido no
Zeus, de cuja união nasceu Her-
banquete dos deuses, tentou sedu-
mes.
zir Hera, esposa de Zeus, pelo que
este o condenou a ser amarrado MÁRSIAS (DD 16 | BI 5) — Um sátiro,
a uma roda que girava continua- grande tocador de flauta (algumas
mente. lendas consideram-no seu inven-
tor), desafia Apolo para competir
JACINTO (DD 2; 14; 15 | DM 18) —
consigo com a cítara. Os juízes,
Formoso jovem amado por Apolo.
numa votação quase unânime, de-
Numa sessão de treino de lança-
ram a vitória a Apolo, que esfolou
mento do disco, o projéctil lan-
vivo o seu adversário.
çado por Apolo foi desviado por
Zéfiro (personificação de um ven- Marte: v. ARES
to), que também amava o jovem,
MÉNADES (DD 2; 22) — Ninfas agres-
atingindo-o mortalmente. Apolo
tes, às quais Hermes confiou Dio-
e Afrodite deram sepultura ao jo-
niso, fazem parte do séquito baru-
vem, de cujo sangue fizeram uma
lhento e orgiástico deste deus.
flor com o seu nome, e em cujas
pétalas os antigos viam as letras MENELAU (DD 20 | DDM 4 |DM 19)
AIAI (interj. a„ a„). — Esposo de Helena, a qual foi
raptada por Páris, facto que deu
JÁPETO (DD 2; 7) — Divindade antiquís-
origem à guerra de Tróia.
sima, um dos Titãs, pai de Prome-
teu e de Epimeteu. Símbolo da ve- Mercúrio: v. HERMES
lhice: «mais velho que Jápeto». Minerva: v. ATENA
JASÃO (DD 16) — Chefe dos argonautas MOMO (DD 20) — Deus da troça, pu-
em busca do velo de oiro. nha defeito em tudo.
Juno: v. HERA MUSAS (DD 16; 19 | DDM 7 | BI 3; 8)
Júpiter: v. ZEUS — Filhas de Zeus e de Mnemósine
(«Memória»). Habitam o Hélicon
LATONA (designação latina usual, = gr.
e o Parnaso, onde, dirigidas por
Leto) (AFP 38) — Mãe de Apolo
Apolo, executavam a música e o
e de Ártemis.
canto. São nove irmãs, todas de-
LEDA (DD 20; 24; 26 | DM 18) — Espo- dicadas às coisas do espírito, mais
sa de Tíndaro, rei de Esparta. Foi tarde repartidas por diversas espe-
amada por Zeus, que lhe apareceu cialidades: história (Clio), poesia
sob a forma de cisne, pelo que teve lírica (Euterpe), poesia elegíaca
quatro filhos, nascidos de dois (Érato), poesia épica (Calíope),
ovos: Helena e Pólux, e Castor e tragédia (Melpómene), comédia
Clitemnestra. (Talia), dança e canto (Terpsícora),
352
hinos e, mais tarde, mimo (Polím- concurso de beleza que envolveu
nia) e astronomia (Urânia). Hera, Atena e Afrodite, à qual atri-
buiu a vitória, em troca do que a
Neptuno: v. POSÍDON
deusa do amor lhe proporcionou o
NEREIDA(S) (DD 1 | DDM 3; 6; 7; 10; rapto de Helena, esposa de Mene-
14) — As cinquenta filhas do deus lau, facto que originou a guerra de
marinho Nereu. As mais famosas Tróia.
são Aretusa, Galateia e Tétis, mãe
PÉAN — (v. APOLO...)
de Aquiles.
PELÓPIDAS (DD 20) — Descendentes
NEREU (V. Dóride, Galateia, Nereidas)
de Pélops (Menelau, Agamém-
— Filho de Ponto e de Geia, ma-
non...).
rido de Dóride e pai das Nereides.
PENÉLOPE (DC 12 | DD 22) — Filha de
NINFAS (DD 9) — Divindades concebi-
Icário, esposa de Ulisses. Segundo
das em forma de belas jovens «noi-
Luciano (D. D., 22,1-2), da sua
vas». Personificação das fontes,
união com Hermes nasceu Pã.
nascentes, rios, florestas e monta-
nhas... PERSÉFONE (lat. Prosérpina) (DD 11
|DM 23) — Esposa de Hades
NÍOBE (SVL 14 | DD 16) — Filha de Tân-
(Plutão), rainha do Inferno.
talo, teve sete filhas e sete filhos, de
quem estava orgulhosa, demasiado PIRÍTOO (DD 6) — Um dos centauros,
orgulhosa para o «gosto» dos deu- rei dos Lápitas, tentou raptar Per-
ses, muito especialmente de Apolo séfone do reino de Hades, onde
e Ártemis, que mataram, primeiro, acabou por ficar preso. Foi liberta-
os sete rapazes e, a seguir, as sete do pelo seu amigo Héracles.
raparigas, que haviam acorrido aos
PÍTIS (DD 22) — ninfa amada por Pã.
gritos dos irmãos. De tanto chorar
a perda dos filhos, Níobe desfez-se PLUTÃO: v. HADES
em lágrimas.
PÓLUX: v. CASTOR E PÓLUX
ÔNFALE (DD 13) — Rainha da Lídia,
POSÍDON (DC 14:juramento; DD 7; 9;
em cuja corte Héracles cumpriu
19; 21; 26 | DDM 1; 2; 3; 5; 6; 7;
um período de escravatura, duran-
8; 9; 13; 15) — Deus dos mares,
te o qual herói limpou o país de
irmão de Zeus e de Hades (Plu-
bandidos que o assolavam.
tão), pai do ciclope Polifemo. É
PÃ (DD 4; 22) — Divindade originária representado com o tridente e cer-
da Arcádia. Filho de Hermes e de cado de golfinhos.
uma de várias... mães (Cilena, Drí-
POTO (DD 20) — (PÒqoj)
ope, ou Penélope de Esparta: 22,
1-2). A iconografia apresenta-o PRÍAMO (DD 20 | DDM 7) — Rei de
com cornos e pés de bode. Tróia no tempo da célebre guerra.
Pai de Páris e de Heitor.
PÁRIS (ou Alexandre) (DD 20 | DM 19)
— Filho do rei de Tróia, Príamo, PRIAPO (DD 23) — Deus da fecundida-
foi o juiz, indicado por Zeus, do de, originário de Lâmpsaco, nas
353
margens do Mar Negro. Ao prin- gerado da sua união com Zeus,
cípio, representado por um falo, que a assediou sob a forma de chu-
foi-lhe posteriormente acrescenta- va. Tendo-lhe ela, um dia, pedido
do um corpo. É dado como filho que o deixasse ver em toda a sua
de Afrodite (ou de uma ninfa). Em grandeza, Zeus acedeu, mas Séme-
Roma, era o guarda das hortas, exi- le não resistiu e morreu fulminada
bindo dois temíveis apêndices: o pelo raio, com o feto dentro de si,
falo e a foice. que Zeus introduziu na própria
coxa, até perfazer o tempo de ges-
PROMETEU (DD 1) — «Aquele que pen-
tação.
sa antes», «o previdente», irmão de
Epimeteu «aquele que pensa de- Sol: v. HÉLIO
pois». Um dos Titãs, lutou ao lado
TÁRTARO (DD 19) — A região mais
de Zeus na guerra e conspiração
profunda do Inferno, onde eram
dos gigantes. Criador do homem,
lançados os maiores criminosos,
por ele modelado em barro, torna-
como Tântalo, Sísifo e outros.
-se o patrono dos oleiros. Benfeitor
da Humanidade, roubou o fogo TESEU (DD 20) — Filho de Egeu, rei de
aos deuses para o entregar aos ho- Atenas (ou de Posídon), é o herói
mens, ensinou-lhes o alfabeto e a de Atenas por excelência, come-
aritmética, a metalurgia, etc., pelo tendo feitos que o tornam quase
que foi duramente castigado por igual a Héracles. A sua maior fa-
Zeus, que ordenou que o amarras- çanha teve lugar em Creta, onde
sem num rochedo do Cáucaso... venceu o Minotauro.
354
Vénus: v. AFRODITE
Vulcano: v. HEFESTO
ZÉFIRO (DD 14 | DDM 11; 15) — Per-
sonificação do vento oeste.
ZEUS (SVL 8 | DD 1-6; 7; 8; 9; 10; 12; 13;
16; 18; 19-22; 24; 25 | DDM 1; 7;
9; 11; 12; 15 | DM 14; 16; 23; 28
| AFP 18; 40; 48) — filho de Cro-
no e de Reia. Como o pai tivesse
o costume de devorar os filhos, a
mãe, logo após o parto, na ilha de
Creta, escondeu-o no seio da gran-
de mãe Terra, onde foi criado pelas
ninfas das nascentes e alimentado
com o mel do monte Ida e o leite
da cabra Amalteia. Esta, ao brincar
com Zeus, quebrou um corno, o
qual se tornou o chamado «corno
da abundância». Ao chegar à ida-
de adulta, Zeus conspirou contra
o pai, acabando por destroná-lo e
tornando-se, assim, o deus supre-
mo. No entanto, embora guar-
dando para si o domínio dos céus,
cedeu aos irmãos, Posídon e Hades
(Plutão), respectivamente, os ma-
res e o reino dos mortos. Teve de
fazer frente a diversas conspirações,
mas de todas saiu vencedor. Casou
com Hera, a quem era permanen-
temente infiel, gerando assim uma
numerosa prole de homens e semi-
deuses, o mais famoso dos quais
é Héracles, nascido da sua união
com Alcmena, esposa de Anfitrião.
Este e outros aspectos da moral
dos deuses e do rei dos deuses e
dos homens não podia deixar de
merecer violentas críticas de um
número cada vez maior de intelec-
tuais. [V. Diálogos dos. Deuses: 1-2,
8, etc.]
355
(Página deixada propositadamente em branco)
VOLUMES PUBLICADOS NA C OLECÇÃO
AUTORES GREGOS E L ATINOS – SÉRIE TEXTOS GREGOS
LUCIANO
Colecção Autores Gregos e Latinos a trajectória de uma vida [I]
Série Textos
Amadurecido pelas viagens e pela expe
riência da vida, materialmente afortunado,
OBRA PUBLICADA
COM A COORDENAÇÃO Luciano de Samósata Luciano cedo se farta da actividade judiciá
ria, da retórica e da sofística, para se entregar
CIENTÍFICA
a uma actividade literária que, não sendo
nova, ele, no entanto, reforma de maneira
• radical: trata-se do diálogo filosófico, mas
Luciano
agora entendido e elaborado segundo prin
cípios originais. De facto, Luciano aligeira
substancialmente o majestoso diálogo filosó
fico que vinha dos tempos de Platão e acres
Luciano [I]
obras em forma de diálogo que deram fama
a Luciano. É nelas que melhor se expande
a sua crítica panfletária e corrosiva, que atin
ge, literalmente, tudo e todos: os deuses e os
heróis, a religião e as religiões, a filosofia e as
suas variadíssimas seitas, a moral convencional,
a sociedade e os seus pilares mais destaca
dos, os homens e as suas vaidades, as suas su
Luciano de
Samósata
Tradução do grego, introdução e notas perstições irracionais e o aproveitamento que
Custódio Magueijo delas fazem os espertos... enfim, podemos
dizer que em Luciano conflui o que de mais
violento havia na comédia. Um certo epicu
rismo prático e um cinismo teórico afinam e
refinam o processo.
IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
COIMBRA UNIVERSITY PRESS
Lombada: 14 mm