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DOSSIÊ
a(s) cultura(s) popular(es) na virada do milênio e seus
mediadores simbólicos1
O objetivo do artigo é contribuir para o debate sobre o tema da “cultura popular”, abraçado na universida-
de por diferentes disciplinas como a Antropologia, a História, a Literatura, a Sociologia e outras. Trata-se
de um conceito que, apesar de sua extrema ambiguidade, quando menos se espera, volta a nos interrogar.
Considerando o ressurgimento do interesse pelas práticas relacionadas a essa noção, no final do século XX,
o texto tenta responder, em que medida elas a transformaram mais uma vez. Partindo do princípio de que
o conceito de cultura popular é formulado por intelectuais, como mediadores simbólicos entre as classes
populares e outros grupos de interesse, a metodologia adotada foi o estudo dos agentes culturais atualmente
envolvidos com a questão, a saber: os próprios folcloristas, as ONGs, gestores culturais do Estado e grupos
informais na cidade de São Paulo. Após o exame de algumas práticas e crenças dos novos intelectuais da
cultura popular, conclui-se haver mudanças relevantes em relação ao período folclorista, embora vários
traços do velho conceito resistam ao tempo e mesmo se fortaleçam com sua associação à causa da “diver-
sidade cultural”.
Palavras-chave: Cultura popular. Tradição. Cultura brasileira. Políticas culturais-intelectuais.
INTRODUÇÃO: a retomada do inte- ticas absorvidos, antes dos demais, pela música,
resse por cultura popular resultando na chamada world music, no design
de moda e de interiores apoiado no artesanato
Desde os anos 1980 do século XX, é notá- popular, na gastronomia contemporânea ins-
vel um grande reflorescimento das culturas po- pirada nas culinárias tradicionais, regionais e
pulares e tradicionais em várias partes do mun- locais – apenas para citar alguns setores da pro-
do. Sem mencionar o aspecto conflituoso do dução cultural nos quais o fato é mais evidente.
fortalecimento das tradições, que não será trata- A amplitude e a abrangência da retoma-
do aqui, verificou-se o crescimento de festivais, da de práticas consideradas como tradições é
festas, representações históricas, todo tipo de tal, que se poderia falar de um verdadeiro re-
http://dx.doi.org/10.1590/S0103-49792016000300002 427
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quando passa a ser narrada no plural, como dêmicos passa a depender também do diálogo
“culturas populares”, o conceito desloca-se sig- obtido com os movimentos sociais e o Estado.
nificativamente de seu sentido folclórico para Desde a última década do século XX, dentro e
tornar-se quase sinônimo de “diversidade cul- fora da academia, tem-se formado uma nova ca-
tural”. E isso ocorre em um momento em que a mada de intelectuais que, vinculados a artistas
crítica ao modelo de desenvolvimento capitalis- e grupos considerados tradicionais na esfera da
ta como fator de destruição do planeta já atingiu cultura popular, estão reelaborando, mais uma
o senso comum. Desde 1972, é oficial. A Confe- vez, o seu significado. Adentramos, portanto,
rência da ONU sobre o Meio Ambiente em Es- em um novo momento na história das apropria-
tocolmo associou a questão da biodiversidade à ções das práticas populares e da reformulação
da diversidade cultural (Mattelart, 2005). do conceito de cultura popular.
O discurso da diversidade cultural, nas Com a centralidade ocupada pela esfera
palavras de Armand Mattelart (2005, p. 133), da cultura no cenário contemporâneo, tanto do
“tende a se tornar uma referência maior na ponto de vista político quanto do econômico,
busca de um novo ordenamento do planeta”. A no contexto global, nacional ou local, na vida
impressão que se tem é a de que o mundo nun- pessoal ou coletiva, sob os mais diferentes as-
ca foi tão diverso. Provavelmente, antes o era pectos (Hall, 1997; Lash; Urry, 1998; Yúdice,
mais. No entanto, antes das modernas tecnolo- 2004; Zukin, 2000), aumentou o número de ins-
gias de comunicação e de transportes, a diver- tituições de caráter público e privado vincula-
sidade não podia ser percebida. As distâncias dos a ela. Nessa nova e grande esfera da cultura,
físicas as separavam umas das outras. Portanto, alargada, dentre outros fatores, pela ampliação
a diversidade de que falamos hoje explode na da própria noção, tende a se formar, em decor-
nossa percepção, na possibilidade de entrar em rência, uma nova camada de agentes culturais.
contato com ela e, cada vez mais, experienciá No caso da cultura popular tradicional,
-la. É provável que muito da antiga diversidade os novos agentes estão, antes de tudo, entre os
cultural tenha se perdido, o que aconteceu, sem gestores culturais vinculados a órgãos estatais
dúvida, com a construção dos estados nacionais de diferentes níveis hierárquicos, nos quais
(Anderson, 1989). Porém, na virada do milênio, foram sendo criados secretarias, departamen-
quando a “alta modernidade” (Giddens, 1991) tos ou setores de cultura, acompanhando o
acirra as características que lhe são próprias, crescimento da curva da demanda por esse
Caderno CRH, Salvador, v. 29, n. 78, p. 427-442, Set./Dez. 2016
como o desenraizamento generalizado e a ace- tipo de ação pública; são também gestores de
leração do tempo, é possível afirmar que novas empresas privadas que investem em culturas
diversidades culturais estejam surgindo. tradicionais, com seus programas de fomento,
Noções como sincretismo, hibridismo ou projetos de resgate e geração de renda, cujas
multiculturalismo, entre outras, surgiram ou campanhas publicitárias milionárias lhes de-
ressurgiram para explicar o novo cenário cultu- volvem a imagem da pureza, da limpeza e da
ral, ao mesmo tempo global e culturalmente he- ingenuidade associada, no nosso imaginário, à
terogêneo. Como demonstrou Michel Nicolau “cultura popular”. Um agente que ocupa papel
Netto (2014), o conceito de diversidade triunfou central no novo contexto da cultura popular
sobre todos os demais, inclusive o de multicul- são as ONGs. Porém esse não é um fenôme-
turalismo. O fato é que esses conceitos não são no específico. George Yúdice (2004) definiu
apenas categorias explicativas, mas informam essa tendência como “ong-ização da cultura”.
atos de gestão cultural, orientam ações afirma- O importante é saber que as ONGs se firma-
tivas por parte dos movimentos organizados, ram como via de ação política no Brasil nos
fundamentam as práticas dos agentes culturais anos 1990, assumindo o lugar ocupado pelos
em suas disputas. O sucesso dos conceitos aca- movimentos sociais (Doimo, 1995) e que al-
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e o início do XIX. De acordo com Peter Burke comicidade etc. a partir de uma nova visão, des-
(1989), a ideia de cultura popular começa a se pida do conservadorismo do século XIX. Seus
delinear a partir da valorização que os român- trabalhos revelam que havia uma rica e diversa
ticos vão fazer da volta à natureza, ao campo, produção cultural popular que convergia para a
sinônimos da simplicidade e da autenticidade festa. Lembremos, aqui, do importante trabalho
que a nascente civilização moderna começava de Mikhail Bakhtin (1987) que renovou com-
a conspurcar. Influenciados pelo romantismo, pletamente a compreensão da noção de cultura
outros intelectuais, sobretudo nos países peri- popular após sua publicação.
féricos da Europa, notadamente na Alemanha, Embora divirjam em outros pontos, há
darão acabamento ao conceito de cultura po- certo consenso entre os historiadores europeus
pular. Com a finalidade de se contrapor à cul- sobre o fato de que essa cultura festiva, cuja li-
tura das cortes francesas, imitada pelas elites beralidade era permitida em ocasiões especiais,
de seu país, um grupo de intelectuais alemães, a partir do século XVI, começa a ser reprimi-
dentre os quais se destacou Johann Herder, da por vários setores da sociedade. De acordo
cunha o conceito de cultura popular. Sob esse com Peter Burke (1989), a igreja católica passa
conceito estavam compreendidos os contos e a considerá-la herética (havia, no seu repertó-
cantos dos camponeses, suas danças e outras rio, por exemplo, missas cômicas, paródias de
formas de expressão capazes de representar a todos os textos canônicos etc.). Com a Reforma
pureza e a essência da nação. Protestante, a cultura da festa passa a ser con-
É o período da identificação entre cul- denada por ser motivo de ócio, desperdício e
tura popular e folclore. Percebendo a urbani- licenciosidade. As elites, nobreza e burguesia
zação e a industrialização como ameaça ao em ascensão, apanhadas pelo que Elias (1990)
que passaram a denominar de cultura popular, denominou “a civilização dos costumes”, se
ou seja, a cultura do mundo tradicional dos afastarão dela por sua vulgaridade e mau gos-
camponeses, os folcloristas se apressaram a to. Finalmente, o processo de Esclarecimento
coletar e classificar suas práticas, obviamente levará à condenação dessas práticas por sua
corrigindo os erros gramaticais e tudo o que irracionalidade. Um novo modo de vida será
consideraram vulgar, excessivo ou licencioso, difundido por meio do ensino público e gratui-
ou seja, impróprio para famílias e crianças, às to, ao longo do século XIX, baseado no espírito
quais eram dirigidas, por exemplo, as coleções científico. Finalmente, uma nova disciplina do
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de contos dos Irmãos Grimm. Essa construção trabalho será imposta às classes populares na
conservadora do conceito de cultura popular indústria moderna, eliminando a grande quan-
deixará marcas profundas no debate sobre o tidade de festas e feriados, ocasiões em que as
tema e mesmo na percepção do senso comum formas de expressão dessa cultura popular ti-
sobre a cultura do povo como algo ingênuo, nham lugar (Burke, 1989; Thompson, 1998).
supersticioso e ultrapassado. Durante o período áureo da cultura po-
Na segunda metade do século XX, os his- pular tradicional, os nobres transitavam entre
toriadores, sobretudo os medievalistas e aqueles o universo da cultura das elites e o da cultu-
vinculados à história das mentalidades, trazem ra popular. Quanto mais voltamos no tempo,
novos elementos para o debate. Eles redesco- mais a cultura popular teria sido a cultura de
brem a Idade Média, antes rotulada como “Ida- todos os iletrados, ou seja, do povo, de grande
de das Trevas”, e, com ela, a cultura do povo, a parte da nobreza e do baixo clero. É por essa
cultura ordinária, no campo e na cidade. Com razão que o historiador Peter Burke (1989) vai
forte viés antropológico, os historiadores pas- dizer que, no século XIX, a cultura popular foi
sam a estudar hábitos e costumes como o amor redescoberta. Ou teria sido inventada, inter-
e o casamento, as festas, as formas literárias, a roga-se o autor? Também. Porque, ainda que
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para designar o falso popular: a noção de po- qual delas as elites retiram sua legitimidade em
pularesco. De acordo com Elisabeth Travassos detrimento da cultura das classes populares.
(1997), nesse momento, em várias línguas, sur- Isso pode acontecer, muitas vezes, com a apro-
gem palavras com o mesmo significado. priação de práticas tradicionalmente referidas
No Brasil, a história do debate sobre ao universo da cultura popular tradicional (ou
cultura popular é muito semelhante. Baseia-se folclórica), quando apresentadas, por exemplo,
na mesma separação entre cultura de massa e em exposições elegantes e intelectualizadas das
cultura popular, mesmo porque os conceitos quais, no entanto, as classes populares estão to-
foram herdados da tradição europeia. Desde o talmente excluídas.
trabalho incansável de coleta e tentativa de dar
cientificidade a nosso folclore, empreendido
por Mário de Andrade até o Movimento Fol- ENTRE A BELEZA DO MORTO E A
clórico Brasileiro (Vilhena, 1997), criado por CULTURA VIVA: os mediadores da
Renato Almeida em 1947, a visão de cultura cultura popular
popular permanece ligada ao que está no cam-
po, no passado, ao que não foi maculado pela Michel de Certeau (1995) atribuiu aos
civilização urbano-industrial. estudiosos da cultura popular o gosto pela “be-
A saída para esse impasse pode estar na leza do morto”. Para o autor, a cultura popular
solução apresentada por Roger Chartier e Stuart nasceu não apenas da pena dos intelectuais,
Hall. Eles sugerem que a cultura popular não mas de atos policiais referentes a apreensões
seja entendida como um conjunto de práticas e inquéritos sobre as práticas das classes po-
ou objetos. Chartier (1995) propõe que pense- pulares proibidas e perseguidas. Grande parte
mos no popular como uma forma de apropria- do que se sabe sobre o assunto na Europa dos
ção. O autor se refere à forma como as classes séculos XVI a XIX, como informam vários his-
populares se apropriam do que produzem para toriadores, tem como fonte arquivos policiais
elas, do que proíbem que elas façam etc. Ins- ou judiciais. Para Certeau (1995), a cultura
pirado na ideia de “invenção do cotidiano” de popular foi primeiro censurada para depois
Michel de Certeau (1994), Chartier pensa na ser estudada, teve de deixar de ser perigosa
“lógica dos usos” para definir o que é popular. para poder ser nacional, antes foi morta e de-
Stuart Hall (2003) parte do mesmo raciocínio, pois cultuada. Em sua análise, o autor chama
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afirmando que o conteúdo não importa, pois a atenção para a permanência desse elemento
pode passar do lado das classes populares para mórbido constitutivo do conceito de cultura
o das elites. Para o autor, o domínio da cultura popular nas abordagens não apenas dos folclo-
popular é o de um espaço de lutas, de tensões ristas, mas também dos historiadores. Podería-
entre a cultura das elites e a cultura da periferia. mos estender essa preocupação para o cenário
No seu entender, a cultura das elites seria aque- contemporâneo. No momento em que tanto se
la valorizada pela escola, a cultura legítima no proclama a ideia de “cultura viva”, é preciso
sentido de Bourdieu (1988). Tradicionalmente, prestar muita atenção à atração exercida pela
sem dúvida. Mas podemos pensar que novas le- beleza do morto.
gitimidades são construídas pela via da cultura Cultura Viva foi o nome escolhido pelo
de massas, por meio da publicidade, das mar- Ministério da Cultura para batizar um dos
cas de luxo, do culto às celebridades às quais mais amplos programas de incentivo direto do
as elites aderem, sem dúvida. Isso significa que Estado a iniciativas culturais que, dificilmen-
o repertório da cultura de massas pode ser ora te, conseguiriam recursos pela Lei Rouanet de
popular, ora de elite. Por isso, não se trata de incentivo à cultura. O Programa Cultura Viva,
opor uma cultura à outra, mas de analisar de criado em 2005, abriu a possiblidade de múl-
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tiplos locais e atividades culturais, em senti- rico, seja com o termo cultura popular. [...] O Anto-
do amplo, conquistarem seu reconhecimento nio Nóbrega tem um espetáculo que chama Cultura
popular não é folclore que é legal porque folclore é
como “pontos de cultura”, momento a partir
um termo que realmente é o lugar do povo na cultu-
do qual passavam a receber do Estado equi- ra brasileira, o lugarzinho. Então chega lá o mês de
pamentos e recursos financeiros. Embora com agosto [...] todo mundo fala: ‘Ah! O dia do folclore’
problemas operacionais, o programa foi muito que inventaram uma palavra folk-lore em inglês [...]
bem sucedido, tendo sido o seu modelo aplica- não é o nosso caso aqui.3 (grifo nosso).
do, inclusive, em outros países.
A fala de Paulo Dias não expressa apenas
Porém Cultura Viva foi mais do que
uma convicção pessoal. Há uma recusa gene-
um programa de fomento. Foi a representação
ralizada do termo folclore por parte dos novos
em torno da qual todo um conjunto de ações
agentes da cultura popular tradicional, na ci-
e de agentes ligados à cultura popular tradi-
dade São Paulo. Porém não se trata – como se
cional puderam se agregar. Basta lembrar al-
poderia imaginar – de um percurso que leva, da
guns exemplos como: o Prêmio Capoeira Viva,
beleza do morto, à cultura viva. Parece haver por
da Fundação Gregório de Matos, a partir de
parte dos atuais atores sociais muito mais uma
2006; o Instituto África Viva, inaugurado em
tensão entre velhos e novos sentidos e usos do
São Paulo no mesmo ano; o Museu Vivo do
conceito de cultura popular. Ou, como diriam
Fandango, mantido pela Associação Cultural
certos historiadores, pode-se notar um conjun-
Caburé do Rio de Janeiro; o Museu Vivo do
to de permanências e rupturas com o passado
Garimpo, criado em Mucugê (BA), em 2006; o
do conceito no momento de sua criação, o sé-
Museu Vivo da Memória Candanga, de Brasília
culo XIX. Em outras palavras, havia e há certo
etc. Servindo como uma luva para o caso dos
preconceito com o trabalho dos folcloristas ao
museus, os exemplos poderiam se multiplicar.
se atribuir apenas a eles o culto da beleza do
Os termos “vivo”, “viva” e “vida” deram nome
morto, da mesma maneira que o rótulo “cultura
a instituições, projetos, exposições, apresenta-
viva” não os impede de cair em velhas armadi-
ções, debates e eventos sem fim.
lhas do conceito de cultura popular.
Na São Paulo da virada do milênio, como
A partir dessa perspectiva, é possível
nos quatro cantos do país, a palavra de ordem
identificar quatro tipos de mediadores atuantes
também era “cultura viva”. O folclore e os mu-
na metrópole paulistana desde a última década
seus eram considerados coisas mortas por um
do século XX. Seus discursos, projetos e realiza-
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para a capital”, o Revelando São Paulo pode ser cultura do governo estadual, superando o Festi-
descrito como uma gigantesca e modernizada val de Inverno de Campos do Jordão.
festa de folclore. Dela participam centenas de A posição oposta à de Toninho Macedo
artesãos e grupos populares tradicionais vindos pode ser encontrada em várias realizações da
de cidades do interior, da Grande São Paulo e Associação Cultural Cachuera!, cujas ativida-
da própria capital do estado. A observação do des de pesquisa sobre cultura popular tradi-
evento, por meio de pesquisa de campo entre cional tiveram início em 1988 e, desde 1997,
os anos de 2003 e 2009, permitiu perceber cla- constitui uma ONG. O Revelando São Paulo é
ramente sua estrutura. Ao longo dos nove dias percebido por esses novos agentes da cultura
de sua duração, de forma concentrada nos dois popular como exemplo da descontextualização
finais de semana em que tem início e encerra- promovida pelas festas de folclore, que reúnem
mento, apresentavam-se, no grande palco mon- as mais diferentes expressões na mesma situa-
tado em uma das extremidades da arena central ção. A realização mais representativa do novo
do Parque da Água Branca, na Zona Oeste, pró- ponto de vista é a promoção, pela Associação
Cultural Cachuera!, da Festa do Divino das Cai-
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Antonio T. Macedo. Entrevista concedida à autora, São
Paulo, Secretaria Estadual de Cultura em 8 e 16/06/ 2005. xeiras da Casa Fanti Ashanti. Na tentativa de se
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aproximar o máximo possível do seu contexto vos à cultura, tanto públicos quanto privados.
original, a Associação a escolheu como a única Por esse motivo, pode-se dizer que a Associa-
festa de caráter popular e tradicional a ser reali- ção Cachuera! representaria, no campo da cul-
zada por ano. A cerimônia acontece no Espaço tura popular, o que seria, no campo da arte,
Cachuera! e nas ruas do bairro por onde passam a ideia da “arte pela arte” (Bourdieu,1996), ou
os cortejos. Sua duração é de nove dias, tendo seja, a cultura popular pela cultura popular.
início com o levantamento do mastro e a aber- Um dos focos do trabalho da Associação
tura da tribuna e encerrando-se com os seus Cachuera! é a valorização estética da cultura
respectivos tombamento e fechamento. Duas popular tradicional. E essa é uma diferença im-
caixeiras são trazidas da Casa Fanti-Ashanti de portante em relação ao passado folclorista e na-
São Luís do Maranhão e duas vivem em São cionalista, quando se pensava que a cultura do
Paulo. Assim, são reunidas a mãe, duas filhas e povo era importante como raiz, como essência,
uma neta que, no decorrer da semana, além dos a ser processada, porém, pelos artistas cultos
rituais da festa, oferecem oficinas às mulheres para tornar-se cultura nacional. Sendo erudito
de São Paulo que queiram aprender a tocar cai- em música, pois estudou piano na França, ten-
xa e participar da festa. Dindinha, a mais velha, do sido professor do Coral da USP, Paulo Dias
é responsável pelo caráter sagrado da festa e, de tem legitimidade para afirmar a equivalência
acordo com o diretor da associação, a cada ano, estética entre a cultura erudita e a cultura popu-
introduz novos aspectos rituais, conforme cres- lar tradicional. Basta consulta-la para verificar
ce sua confiança nos participantes paulistanos. que, da programação da Associação Cachuera!,
Desse modo, foram incorporados à festa, dentre pode constar, em uma determinada data, a apre-
outros elementos, o Império, o imperador me- sentação de um quarteto de Bach e, em outra, a
nino, lugar ocupado por uma criança de São de um batuque de umbigada.
Paulo, os dons do Divino, personificados tam- Entre esses dois extremos, os grupos aos
bém por crianças, os bolos de que elas gostam e, quais denominamos “recriadores” assumem po-
finalmente, na festa de 2005, “apareceu um Erê sições intermediárias. Surgidos no mesmo pe-
que ficou e queria comer bolo”.6 ríodo, de meados dos anos 1990 à metade dos
Além do grande evento no Parque, o Re- 2000, trata-se de coletivos interessados em cul-
velando chegou a promover três cortejos pela tura popular tradicional que não podem mais
metrópole, um deles vindo do Largo do Pais- ser classificados nem como tradicionais ou fol-
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por meio do encontro com as chamadas “comu- direito na criação da Associação Cachuera!, se
nidades”, ou seja, os grupos de artistas popula- politizaram. Começaram a participar de con-
res por eles (re) descobertos, a tradição e o espí- ferências municipais de cultura na gestão do
rito comunitário. Ao longo dos anos 2000, pas- PT e decidiram criar sua própria frente de luta,
saram a fazer apresentações e a performatizar gerando o que viria a ser o autodenominado
a tradição. Alguns grupos alcançaram um nível Movimento das Culturas Populares.
de profissionalização precária, outros continu- No ano de 2002, inspirado no “Movi-
aram a encarar a cultura popular tradicional mento Arte contra a Barbárie”, que havia con-
como vivência lúdica ou comunitária. quistado subsídios para o teatro paulistano,
Como os demais agentes recém-chegados Marcelo Manzatti reuniu-se a outros ativistas
ao campo, os membros dos grupos recriadores para dar início ao Fórum Permanente para as
adotam as novas ideias sobre cultura popular: Culturas Populares de São Paulo. O objetivo
“não é folclore”, “é cultura viva”, “tem todo um era agregar todos os grupos e instituições in-
contexto ritual, religioso, sagrado que é preci- teressados em cultura popular tradicional para
so respeitar”. Os jovens integrantes dos grupos obter investimentos públicos para o setor. Os
recriadores se interessam pelas tradições popu- fóruns, de acordo com Maria da Glória Gohn
lares justamente por essas características que (2010), são a principal forma de organização
buscam vivenciar. Mas não é nada desprezível dos novos movimentos sociais. Uma de suas
a importância de seu potencial lúdico em ter- características, segundo a autora, seria a de
mos de música, dança e percussão, tanto para promover ações de maior alcance, por exem-
sua própria diversão, quanto para sua transfor- plo, encontros nacionais em larga escala, ge-
mação em espetáculo (Mira, 2009). O apego às rando grandes diagnósticos dos problemas so-
tradições por eles demonstrado não os impede ciais, bem como definindo metas e objetivos
de fazerem apresentações pagas, darem aulas e estratégicos para solucioná-los (Gohn, 2010).
cursos, enfim, comercializar a “cultura popu- No caso do emergente Movimento das
lar”. O pequeno nicho de mercado aberto pela Culturas Populares, a proposta do Fórum Per-
retomada do interesse por essas práticas, na ci- manente de São Paulo para o Ministério da
dade de São Paulo, tornou-se, combinado com Cultura foi a de realização de um seminário
outras atividades, uma de suas formas de sobre- nacional sobre o tema das políticas culturais
vivência. A outra, que foi se tornando, ao longo para as culturas populares. Isso se tornou pos-
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do novo século, cada vez mais promissora, foi sível porque Gilberto Gil, tendo assumido o
a de obter financiamento por meio das novas Ministério da Cultura do governo do presiden-
políticas públicas para as “culturas populares”. te Luís Inácio Lula da Silva, no início de 2003,
Se, até a década de 1990, o interesse por já começara a implantar diretrizes para a cul-
cultura popular era muito pequeno, não havia, tura no Brasil, em consonância com os intuitos
como constatou Marcelo,8 legislação alguma do Movimento. Basta lembrar que, em seu dis-
que dotasse recursos para essas práticas, a não curso de posse, o Ministro Gil, por assim dizer,
ser as migalhas recolhidas pelas comissões oficializou a recusa do termo folclore:
estaduais de folclore. Alguns integrantes de Do mesmo modo, ninguém aqui vai me ouvir pro-
grupos recriadores da cidade, dentre eles Mar- nunciar a palavra ‘folclore’. Os vínculos entre o con-
celo Manzatti, formado em Ciências Sociais ceito erudito de ‘folclore’ e a discriminação cultural
pela USP, ex-aluno de Paulo Dias e seu braço são mais do que estreitos. São íntimos. ‘Folclore’
é tudo aquilo que – não se enquadrando, por sua
ligado a migrantes maranhenses. Porém sua criação se deu antiguidade, no panorama da cultura de massa – é
por iniciativa dos alunos do curso de danças brasileiras
ministrado por seu líder, Tião Carvalho (MIRA, 2016). produzido por gente inculta, por ‘primitivos con-
8
Marcelo Manzatti, entrevista concedida à autora, São temporâneos’, como uma espécie de enclave sim-
Paulo, escritório da autora, em 01/10/2010.
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bólico, historicamente atrasado, no mundo atual. Música, a Dança, o Teatro, a Literatura, as Ar-
Os ensinamentos de Lina Bo Bardi me preveniram tes Cênicas, o Audiovisual etc. Valendo-se da
definitivamente contra essa armadilha. Não existe
Rede das Culturas Populares e Tradicionais –
‘folclore’ – o que existe é cultura (Gil, 2003).
organização que reunia os 27 fóruns estaduais,
Ao mesmo tempo em que aproximava o então já existentes, criada em 2006 –, obteve
Ministério da Cultura do Movimento das Cul- êxito. Em 2009, o Movimento conseguiu im-
turas Populares, a visão ampliada de Gilberto plantar dois novos colegiados no Conselho Na-
Gil fazia coro com o discurso da Unesco, que cional de Políticas Culturais, em funcionamen-
se apoiava, cada vez mais, do conceito antro- to desde 2007: o de Culturas Populares e, em
pológico de cultura (Pitombo, 2011). seguida, o de Culturas Indígenas. Mais tarde,
Essa convergência de percepções e in- viriam as Culturas Afro-Brasileiras, também
teresses permitiu a realização do I Seminário integradas ao atual Fórum para as Culturas Po-
Nacional de Políticas Públicas para as Cultu- pulares e Tradicionais. Em 2010, as “culturas
ras Populares, em Brasília, no ano de 2005, populares” foram institucionalizadas como se-
fato inédito na história do país. O seminário tor das políticas públicas de cultura, ocupando
foi organizado pela Secretaria da Identidade e lugar de destaque no Plano Nacional de Cultu-
Diversidade Cultural, o Fórum de São Paulo e ra, aprovado nos últimos dias do governo do
o Fórum Permanente para as Culturas Popula- presidente Lula.
res e o Patrimônio Imaterial do Rio de Janeiro,
criado em 2003 e vinculado ao Centro Nacio-
nal de Folclore e Cultura Popular. No ano se- CULTURAS POPULARES, IDENTI-
guinte, foi realizado o segundo e último semi- DADES E DIVERSIDADE CULTURAL
nário. Mudanças no interior do MinC levaram
à sua interrupção. No entanto, considerando O novo ordenamento mundial, como o
que, sob o rótulo de folclore, não era possível nomeou Armand Mattelart, (2005) funda-se
senão pedir o amparo do Estado para uma pro- na consideração da diversidade cultural como
dução cultural que tendia ao desaparecimento, um valor em si mesma. Em um mundo majo-
houve uma significativa mudança. ritariamente dominado pela crença no acha-
Reunindo todas as expressões popula- tamento das diferenças pessoais e coletivas
res e tradicionais em uma nova denominação pela globalização, o diferente é bem vindo em
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ENTRE A BELEZA DO MORTO E A CULTURA VIVA ...
símbolo. Os outros sambas ficaram fora dessa o universo do que coloquialmente se chama de
construção e dos holofotes da nascente cultura “dança-afro” e outras práticas relacionadas à cul-
de massas no Brasil, que levou o Samba com S tura e à arte negras na metrópole paulistana. Em-
maiúsculo para o rádio e, posteriormente, para bora os terreiros de candomblé, xangô, tambor
a televisão. Esses meios confirmaram o samba de mina, jurema, umbanda ou outras denomi-
carioca, ao lado do futebol, como símbolo de nações sempre estivessem ligados à maioria das
brasilidade, no mundo todo. práticas culturais tradicionais populares, não o
O outro lado da supervalorização da brasi- eram de forma assumida. Ao contrário, muitas
lidade era, obviamente, a anulação da possibili- vezes, as atividades profanas serviam de fachada
dade concreta de construção de outras identida- para ocultar a devoção proibida por lei e perse-
des. O samba, cuja matriz cultural é negra, teve guida pela polícia. Essa é a diferença no cená-
de embranquecer. O samba deixou de ser negro rio contemporâneo. O aspecto afrodescendente
para ser brasileiro. Com o processo mundial de é realçado com orgulho. Pode-se afirmar, com
reconstrução das identidades afrodescendentes, segurança, que a cultura brasileira, na virada do
a reafricanização da música negra no Brasil, o milênio, é mais negra do que nunca.
movimento negro brasileiro, o surgimento de No cenário cultural contemporâneo, uma
uma série de entidades ligadas à cultura e arte prática vinculada à cultura popular tradicional,
negra, o sentimento de pertencimento cresceu e como a congada, por exemplo, pode se apresen-
a afirmação da identidade negra passou a preva- tar como cultura brasileira, cultura negra, cul-
lecer em alguns gêneros musicais como o axé, o tura popular, ou ainda como cultura afro-bra-
funk, o hip hop e outros. O samba, além de res- sileira, entre outras possíveis construções. A
gatar sua negritude, se multiplicou em diversos porosidade das fronteiras identitárias, pessoais
outros, obscurecidos por várias décadas: o sam- ou coletivas, permite e, ao mesmo tempo, exige
ba de roda, o jongo, o batuque de umbigada, o uma pluralidade de construções. Num contexto
tambor de crioula, o samba rural paulista, entre social “pós-identitário”, os atores sociais apren-
outros. Não é coincidência que essas expres- deram a “jogar o jogo das tradições” (Hall, 1997),
sões, caídas no esquecimento, sejam exatamente a teatralizar suas memórias, a representar suas
aquelas pelas quais se interessam os atuais re- identidades de acordo com suas crenças e in-
criadores da cultura popular. teresses, sejam eles econômicos ou simbólicos
A ênfase no caráter afrodescendente da (Bourdieu, 1997). Entre eles, estão os recursos
Caderno CRH, Salvador, v. 29, n. 78, p. 427-442, Set./Dez. 2016
cultura brasileira representa uma ruptura signi- financeiros disponibilizados pelo Estado, em
ficativa com o passado. Não parece casual que a particular pelo governo federal, a partir da ges-
Associação Cultural Cachuera! tenha tido início tão do presidente Lula. Na primeira metade dos
justamente no ano de 1988, a partir de uma pes- anos 2000, havia a possibilidade de os grupos
quisa de seu diretor sobre o candomblé. O ano populares se candidatarem a diferentes modali-
marcou a comemoração do centenário da aboli- dades de incentivos do Programa Cultura Viva,
ção e o surgimento de novas instituições volta- ao Prêmio Culturas Populares, aos da Funda-
das para a afirmação e a divulgação da cultura e ção Palmares, no caso dessa última destinados
da arte negras. O candomblé bem como a cultura apenas às culturas de matriz africana. Podiam
e a arte negras não foram a porta de entrada para ainda obter financiamentos ao se identificarem
essa nova visão da cultura popular apenas para como “populações tradicionais”, “quilombo-
a Associação Cachuera!, mas para outros grupos las”, “griôs”, “povos de terreiro” etc.9 Para tanto,
recriadores no mesmo período. Vários líderes e bastava realçar as características simbólicas que
participantes de grupos recriadores também en- os aproximavam mais de um ou de outro refe-
traram em contato com o repertório da cultura 9
Essas eram algumas denominações observáveis nos debates
popular tradicional por sua proximidade com da Rede das Culturas Populares no período de 2006 a 2013.
438
Maria Celeste Mira
rente (Poutignat; Streiff-Fernat, 1998). recantos do país foi objeto de viagens, repor-
Por outro lado, é importante notar que tagens, publicações, projetos de todo tipo. Um
a ideia de identidade afro-brasileira constitui deles, na área do audiovisual, já teve cinco edi-
uma nova síntese (Ortiz, 1980) na história das ções bem sucedidas. Seu nome representa bem
versões da cultura brasileira. Em primeiro lugar, o momento: Revelando os Brasis (Revelando os
ela incorpora e, portanto, reconhece a impor- Brasis, 2016). Outro exemplo é o Pavilhão das
tância da matriz africana e passa a legitimá-la Culturas Brasileiras, construído em São Paulo,
nos círculos onde for empregada. Em segundo em 2010, para abrigar o que havia restado do
lugar, a identidade afro-brasileira constitui uma Museu do Folclore de São Paulo. Nesse caso,
nova síntese em que a matriz africana é enfati- a pluralidade da noção permitiu abrigar, além
zada, mas a brasilidade é mantida. Esse fato é desse acervo, fruto do trabalho de Rossini Ta-
importante porque não se perde a nacionalida- vares de Lima, a arte indígena, a arte verna-
de como referente para a construção identitária. cular, a cultura da periferia etc. Abriu espaço
O vínculo com a nacionalidade, no caso, também para estetizações das culturas popula-
com a cultura brasileira, é outro traço muito re- res e tradicionais por artistas e estilistas liga-
sistente do conceito de cultura popular. Mesmo dos a esse universo. De qualquer modo, obser-
sendo escrita no plural, como “culturas popu- va-se que cresce, entre os agentes culturais, a
lares”, a noção não se desprende da sua rela- percepção de que a cultura brasileira é plural.
ção com o nacional. Porém a maneira como a
nação é construída, na “alta modernidade” (Gi-
ddens,1991), muda de perspectiva. Se, no perí- CONCLUSÃO: o inclassificável popular
odo áureo do nacionalismo dos Estados-Nação,
no caso brasileiro, as décadas de 1930 e 1940 do O atual interesse pelas culturas populares
século XX, falava-se em unidade nacional, na não representa apenas um apelo nostálgico ao
fusão das raças e culturas no mesmo território, passado. Sua retomada se insere, como vimos,
agora se exalta a diversidade étnica e cultural no quadro mundial de revival das tradições, com
que constitui a nação. A construção da nacio- vistas à preservação da diversidade cultural, por
nalidade tende a enfatizar não a sua unidade, sua vez, considerada necessária à manutenção
mas a “diversidade cultural” contida no seu in- da biodiversidade. Enquanto os folcloristas pre-
terior. E as “culturas populares” têm sido consi- servavam o passado para que ele não desapare-
439
ENTRE A BELEZA DO MORTO E A CULTURA VIVA ...
“mídia” e (ou) o mercado. A Associação Cultu- cultura de massas. Desta vez, a grande ameaça,
ral Cachuera!, por exemplo, aceita a existência no imaginário dos artistas e dos intérpretes das
de um popular tradicional e de um popular ur- culturas populares, é a globalização. Mais do
bano. Mas, ao examinar-se um projeto como o que a cultura de massas, a indústria cultural
Cachuera! de Música, realizado em 2005, perce- ou a mídia, a globalização é percebida como a
be-se que o máximo que ele incorpora ao status invasão da nação por uma cultura americana
de cultura popular urbana é o samba das esco- ou americanizada de forma tão avassaladora,
las de samba. Por sua vez, na Rede das Culturas que destruirá as diversas culturas populares e
Populares e Tradicionais, uma grande frente po- regionais.
lítica, cuja tendência é incluir todos que se au- O fato é que, a cada momento em que
toproclamem populares, a única manifestação se apresenta uma ameaça ao conceito de cul-
de cultura popular, urbana e moderna, cujas tura popular, refaz-se a aliança entre intelec-
mensagens circulam é o hip hop. Como se sabe, tuais, acadêmicos ou não, produtores, agentes
o rap, sua linguagem musical, se contrapõe à e gestores culturais para salvar a(s) cultura(s)
mídia e ao mercado de música gravada. Mas as popular(es). A cada nova onda de “resgate”, no
concessões não vão muito além. Os recortes e entanto, eles se refugiam em torno de um con-
440
Maria Celeste Mira
ceito de cultura popular cada vez mais restri- LASH, S.; URRY, J. Economias de signos y espacio: sobre
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ENTRE A BELEZA DO MORTO E A CULTURA VIVA ...
Between the beauty of the dead and Entre la beauté du mort et la culture
the living culture: the popular culture(s) vivante: la(les) culture(s) populaire(s) au
in the turn of the millennium and its symbolic passage du millénaire et ses (leurs) médiateurs
mediators symboliques
The objective of this article is to contribute with L’objectif de cet article est d’apporter une
the debate about the subject of “popular culture”, contribution au débat concernant le thème de la
studied in the Academia by different disciplines “culture populaire”, thème adopté à l’université par
such as Anthropology, History, Literature, différentes disciplines telles que l’anthropologie,
Sociology, among others. It is a concept that, l’histoire, la littérature, la sociologie et d’autres
besides its extreme ambiguity, when least expected encore. Il s’agit d’un concept qui, malgré son énorme
makes us question ourselves again. Considering the ambiguïté, nous remet en question au moment où
resurgence of the interest in practices related to this on s’y attend le moins. Compte tenu de la résurgence
concept by the end of the 20th century, this text d’un intérêt pour les pratiques liées à cette notion
aims to answer in which measure this concept was à la fin du XXe siècle, le texte essaie de dire dans
once again transformed. Starting at the principle quelle mesure elles l’ont à nouveau transformée.
that the concept of popular culture is formulated En partant du principe selon lequel le concept de
by intellectuals, the methodology used was the culture populaire est formulé par des intellectuels
study of cultural agents involved with this question jouant le rôle de médiateurs symboliques entre les
which include folklorists, NGOs, State cultural classes populaires et les autres groupes d’intérêt,
managers and informal groups of the city of São la méthodologie adoptée fut d’étudier les agents
Paulo. After the examination of some practices and culturels actuellement concernés par cette
believes of the new intellectuals of the popular question, à savoir: les folkloristes eux-mêmes, les
culture, it is concluded that relevant changes have ONG’s, les gestionnaires culturels de l’état et les
occurred since the folklorist period, although some groupes informels de Sao Paulo. Suite à l’analyse
traces of the old concept resist the passing of time de certaines pratiques et croyances des nouveaux
and get stronger with the association with “cultural intellectuels de la culture populaire, on en conclut
diversity”. qu’il y a eu des changements importants par
rapport à la période folkloriste, même si plusieurs
caractéristiques de l’ancien concept résistent au
temps, ou encore se fortifient par leur association à
la cause de la “diversité culturelle”.
Keywords: Popular culture. Tradition. Brazilian Mots-clés: Culture populaire. Tradition. Culture
culture. Cultural politics. Intellectuals. brésilienne. Politiques culturelles-intellectuelles.
Caderno CRH, Salvador, v. 29, n. 78, p. 427-442, Set./Dez. 2016
Maria Celeste Mira – Livre-docente em Antropologia e Sociologia da Cultura pela PUC/SP. Professor(a)
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo. Líder do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas, desenvolvendo pesquisas na
área de Antropologia Urbana e Sociologia da Cultura. Publicações recentes: Entre a beleza do morto e
a cultura viva: mediadores da cultura popular na cidade de São Paulo. Intermeios/ Fapesp, 2016; Faces
contemporâneas da cultura popular (org. com Edson Farias). Paco Editorial, 2014.
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