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JULIETA DE FRANÇA | LEMBRANÇA DE MINHA CARREIRA ARTÍSTICA

Organizado por Amanda Bonan


Com Lia Baron e Nara Reis

Colaborações de Ana Paula Cavalcanti Simioni e Leila Danziger

Editado por
COLETIVA PROJETOS CULTURAIS

Julho de 2014
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO, 3
Amanda Bonan e Lia Baron

JULIETA DE FRANÇA, 8
Ana Paula Cavalcanti Simioni

O ÁLBUM DE LEMBRANÇAS COMO MONUMENTO, 18


Leila Danziger

REPRODUÇÕES DO ÁLBUM “SOUVENIR DE MA CARRIÈRE ARTISTIQUE", 30

DETALHES DO ÁLBUM, 67

CRONOLOGIA, 87

INDICAÇÃO BIBLIOGRÁFICA, 98
9

APRESENTAÇÃO
Amanda Bonan e Lia Baron

Julieta de França, nascida em 1872, é uma escultora paraenseque construiu sua carreira
entre Belém, Rio de Janeiro e Paris. Apesar das singularidades de seu percurso profis-
sional, teve relativo reconhecimento público. Seu nome não figurou entre aqueles refe-
renciados pela história da arte brasileira. Felizmente, sua trajetória vai sendo revelada
pouco a pouco.
Em 2007, José Roberto Arruda França, sobrinho-bisneto da artista, doou ao Museu Pau-
lista um álbum que até entãoestava de posse de seus familiares. Trata-se de um objeto
muito especial (e de certa maneira pessoal), em que Julieta reconstrói, por meio da com-
pilação de fotografias, cartas, recortes de jornal e certificados, seu caminho percorrido
na tentativa de reconhecimento como artista, em uma época e contexto marcados pelo
protagonismo eminentemente masculino.
Ao ter conhecimento do álbum, interessou à Coletiva Projetos Culturais especialmente
a forma como Julieta cuidou de preservar sua carreira artística, coletando, recortando e
colando registros e avaliações críticas. Sua memória se constrói por meio de retalhos re-
ferentes à sua vida profissional e pública, recompostos segundo uma lógica afetiva, que
não obedece a estruturas cronológicas ou temáticas rígidas, mas que envolve o leitor/
apreciador em um fluxo de vida e de trabalho artístico pontuado por êxitos,fracassos,
tensões, reviravoltas. Para além de seu inegável valor historiográfico, o álbum se oferece
como objeto de apreciação estética e induz, na leitura, curiosidade sobre os movimentos
e ímpetos subjetivos que levaram a artista àquela particular composição.
Este livro torna públicas reproduções imagéticas do álbum, arquivos gentilmente ce-
didos pelo Museu Paulista. As fotos retratam as páginas da forma exata como elas se
oferecem à visão: certos recortes sobrepõem-se, outras peças estão dobradas. Os deta-
lhes que nos chamaram a atenção foram reproduzidos em maior escala na parte final
do livro. Todas as imagens passaram por um processo de tratamento, no intuito de
favorecer a sua visualização. Algumas páginas em branco não foram incluídas nesta pu-
blicação, assim como páginas de conteúdos similares. Este livro reproduz quase todas
as imagens do álbum de Julieta.
O original do álbum encontra-se atualmente indisponível para consulta presencial, ten-
do sido temporária e devidamente reservado pelo Museu Paulista, em razão de um
processo de reforma por que passa a instituição. Deve-se dizer que o trabalho editorial
incluiu a recomposição sequencial de imagens de páginas duplas, realizado segundo o
método de dedução, já que as folhas do álbum não foram numeradas pela artista. Re-
tratamo-nos de antemão se porventura a ordem aqui presente não obedecer à do objeto
original, mas não poderíamos perder a oportunidade de trazer a público tais fragmentos.
10 11

O leitor encontrará ainda a transcrição de certos trechos de conteúdo textual, escolhidos


por sua centralidade na compreensão da trajetória da artista. Os excertos, redigidos
originalmente segundo as normas do português de fins dos novecentos, passaram por
um trabalho de adequação às regras ortográficas atuais, permitindo maior clareza na
leitura.
No intuito de enriquecer a disponibilização do conteúdo do álbum, esta publicação
conta com duas contribuições autorais inéditas. Com agudo rigor historiográfico, Ana
Paula Cavalcanti Simioni pontua dados biográficos sobre a artista, costurados com um
trabalho de reconstituiçãodo contexto cultural de seu tempo. Seu texto nos oferece a
medida do pioneirismo de Julieta, diante das condições de produção postas naquele
período. Precursora nos estudos sobre a trajetória da artista, devemosa Ana Paula a
possibilidade de realização deste projeto, uma vez que travamos nosso primeiro contato
com o álbumpor meio de um artigo seu, intitulado “Souvenir de ma carrière artistique:
uma autobiografia de Julieta de França, escultora acadêmica brasileira”.
Leila Danziger nos abre, por sua vez, o ambiente estético a ser explorado na apreciação
do objeto. Um texto dotado de notável destreza poética nos conduza umavisada retros-
pectiva, partindo de um olhar contemporâneo: percorre imagens do trabalho de Julieta,
pondo-as em relação com apropriações e condensações críticas que vieram a permear o
discurso sobre a produção artística brasileira, sobretudo no que diz respeito à sua rela-
ção com a memória. Atualiza nossa sensibilidade diante do material aqui reproduzido.
Tivemos a sorte de trabalhar com profissionais da competência de Catalina Chlapowski,
designer; Sidnei Balbino, produtor gráfico eAndré Cossich, que realizou o tratamento
de todas as imagens. As transcrições foram feitas por Janaina Garcia e as revisões, por
Rosalina Gouveia. Nara Reis, que assina a coordenação de produção,ofereceu funda-
mentais contribuições para a organização da publicação. Sem a colaboração de José
Roberto Arruda França, este livro não seria possível. Somos imensamente gratas a todos
esses parceiros, assim como ao apoio do Museu Paulista.
Esta publicação é fruto do Prêmio Mulheres nas Artes Visuais, concedido pela Funarte,
a quem agradecemos e felicitamos pela iniciativa, reconhecendo a importância do de-
senvolvimento de políticas de gênero potencializadas por aproximações com o campo
da criação artística e estética.
É com muita alegria que apresentamos ao público o livro Julieta de França – lembrança
de minha carreira artística. Com a difusão de imagens do álbum, acompanhadas de re-
flexões contemporâneas sobre a sua composição, esperamos que a publicação colabore
para o aprofundamento da pesquisa sobre a vida ea obra desta artista,instigando tam-
bém a investigação sobre a trajetória de tantas outras.
12 13

JULIETA DE FRANÇA
Ana Paula Cavalcanti Simioni

Julieta de França (1872-1951) foi uma artista pioneiraem seu tempo. Nasceu em Belém,
capital do Estado do Pará, em um momento em que a cidade enriquecia graças ao ciclo
da borracha e modernizava-se a partir dos exemplos parisienses. Filha do maestro Joa-
quim Pinto de França e deIdalina Pinto de França, recebeu os primeiros ensinamentos
artísticos com o pintor de origem italiana Domenico de Angelis, 1 que havia sido con-
tratado para decorar o Teatro da Paz. Em 1897, seguindo um destino tradicionalmente
reservado aos aspirantes à carreira artística no Brasil, dirigiu-se à Escola Nacional de
Belas-Artes–Enba, no Rio de Janeiro, então capital do país, a fim de completar seus
estudos.
Mas é importante lembrar que a formação naquela que era tida como a mais importante
academia nacional, se era prática comum para os homens, era então algo bastante novo,
e incomum, para as mulheres. Durante todo o período imperial (1822-1889) o “sexo
frágil”, como era então denominado, não era aceito na instituição, como ademais em
todas as escolas consideradas superiores no Brasil. Apenas em 1892, já em tempos de
República, com a lei que sancionava a abertura dos cursos superiores às mulheres é que
elas puderam passar a usufruir de uma formação equiparável à dos homens.2 Excluídas
de uma sólida formação artística e do sistema de exibições e premiações organizado
pela academia, as artistas eram tidas, então,como simples amadoras.
A ideia do amadorismo como uma condição feminina é frequente na crítica de arte de
finais do séculoXIX e inícios do séculoXX. No pioneiro livro de Félix Ferreira, Belas-ar-
tes: estudos e apreciações (1885), as artistas doperíodo foram incluídas em uma categoria
específica: a de amadoras, enquanto os homens eramdescritos como artistas ou como
alunos. O amadorismo trazia implícitas conotações negativas: aideia de refinamento
(em oposição a trabalho árduo), frivolidade (versus a arte séria dos homens), de au-
sência de profissionalismo, além de desconhecimento técnico. Vale notar que o termo
era comumenteempregado para mulheres, tendo comocontraponto a noção de artista,
conjugada sempre no masculino, com isso, trata-se de uma categoria de classificação
sexuada e relacional. 3 Vistos como naturalmente diversos e desiguais, acreditava-se que
homens e mulheres tivessem habilidades físicas e intelectuais determinadas por na-
tureza; enquanto elas eram detalhistas, sensíveis e imitativas, eles eram dotados das

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1 Domenico de Angelis, pintor originário de Roma, formado na Academia di San Luca, notabilizou-se pelas pinturas sacras. Por essa razão foi convidado por Dom Antônio de
Macedo atrabalhar na Igreja de São Sebastião. A seguir realizou as pinturas decorativas para o Teatro Amazonas. Em 1900, já doente, retornou à Itália, morrendo em seguida.
2 O decreto 1.159 de 3/12/1892 afirma: “É facultada a matrícula aos indivíduos do sexo feminino, para os quais haverá nas aulas lugar separado”. Ver: Colleções das leis da Repúbli-
ca dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1892.
3
Uma discussão mais aprofundada sobre essa questão pode ser encontrada em: SIMIONI, Ana Paula C. Eternamente amadoras: artistas brasileiras sob o olhar da crítica.In:
FABRIS, Annateresa (org.). Crítica e modernidade. São Paulo: ABCA-Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. Ou uma versão mais reduzida em:SIMIONI, Ana Paula C.
“Profissão artista:mulheres, atividades artísticas e condicionantes sociais em finais do Oitocentos”. Anais do XXIV Colóquio do CBHA. Disponível em<http://www.cbha.art.br/
coloquios/2004/textos/10_ana_paula_simioni.pdf>. Acesso em 25/4/2014.
14 15

faculdades criativas, simbólicas e intelectuais; nesse sentido eram eles capazes de criar dispostas a enfrentar tabus sociais bastante arraigados, com vistas a se tornarem artistas
as grandes obras do espírito, ser “geniais”, ao passo que elas estavam fadadas àcondição profissionais, naquela modalidade tida como imprópria às mulheres, a escultura.
de serem vistas como eternamente amadoras. As crenças de época não possibilitavam a
Algum tempo depois, no final de 1900, Julieta de França apresentou-se àquele que
emergência de mulheres geniais.4
era considerado o prêmio mais importante outorgado pela Academia, o Prêmio de
Ao pleitear o ingresso na Enbaem 1895, Julieta de França integrou as fileiras das pri- Viagem ao Exterior. Os alunos premiados recebiam uma bolsa para continuarem sua
meiras mulheres brasileiras a terem acesso a uma formação artística completa, capaz de formação fora do Brasil, sendo a Itália e, principalmente, a França os destinos mais
contestar o estigma do amadorismo. Inicialmente, cursou como aluna livre as discipli- procurados . 9 Assim, na condição de candidata única, a artista apresentou-se às provas
nas de pintura e escultura; mas aos poucos vai se destacando nas exibições internas da abertas para a turma de escultura, e obteve parecer favorável da comissão. 10 Com isso,
escola 5 e ganhando fama fora da instituição, chegando a expor com sucesso de público tornou-se a primeira mulher a conquistar o prestigioso prêmio de viagem no Brasil.
no salão da Mina Musical, em Belém do Pará, em 1898. 6 Nesse mesmo ano, ela se ma-
Em 1901, seguindo a indicação da comissão avaliadora, Julieta desembarcou em Paris e
triculou na aula de modelo vivo. Esse fato, aparentemente banal, merece destaque. Des-
matriculou-se na Académie Julian, uma academia privada, inaugurada durante a déca-
de a Revolução Francesa, com a reorganização do sistema acadêmico na França, tendo
da de 1870, que se consagrou internacionalmente pelos métodos de ensino, pelo grupo
à frente Jacques Louis David, 7 a pintura de história passou a ser altamente valorizada,
seleto de docentes contratados e, especialmente, por ser um espaço onde as mulheres
considerada o gênero máximo a que os artistas deveriam se dedicar. Nelas, o corpo do
poderiam acessar o modelo vivo que lhes era vetado nas instituições oficiais, e assim
herói constituía um elemento fundamental; cristalizando as virtudes morais, os dis-
se formarem como artistas competentes. 11 Em 1902, Julieta de França matricula-se
cursos políticos almejados, o ideário a ser comunicado aos espectadores. A fim de bem
também no efêmero Institut Rodin, uma escola particular voltada para a formação de
representá-lo, os pintores se dedicavam intensamente ao estudo dos modelos vivos, dos
escultores, na qual ensinavam além do mestre que emprestava seu nome, seu principal
nus. No entanto, tal práticaera vista como inadequada às mulheres; não se considerava
discípulo, Antoine Bourdelle, reputado escultor que se ocupava das turmas femininas.
aceitável que elas fossem expostas a corpos despidos. Por tal razão as academias france-
sas, e todas aquelas que seguiram seu modelo, como a brasileira, intitulada Academia A qualificação obtida em Paris logo se fez notar. Em 1903, consegue ter uma obra aceita
Imperial de Belas-Artes, fundada em 1826 pela famosa Missão Artística Francesa, não noSalon da Société Nationale de Beaux Arts, o qual ocupava então o posto de principal
aceitavam mulheres entre seus discípulos. Com isso, todas aquelas moças ansiosas por salão internacional de exposição de artistas. 12 Tal conquista se repete no ano seguinte,
tornarem-se artistas se depararam, ao longo de todo o século XIX, com a impossibili- quando exibe uma obra que chama a atenção da crítica. Uma matéria assinada por
dade de terem acesso à formação necessária para se realizarem nos gêneros máximos Henri Dac para o jornal Univers,de Paris, a destaca logo depois de mencionar as obras O
propagados pelo sistema, restando-lhes gêneros menos valorizados, como a pintura de pensador, de August Rodin;Mineur, de Constantin Meunier e, a seguir, frisa a qualidade
gênero e as naturezas-mortas.8 de O sonho do filho pródigo, feito pela escultora brasileira. 13 Esse reconhecimento por
parte da crítica francesa era tão importante que Julieta manteve a matéria em seu álbum
O caso das escultoras é ainda mais dramático. Além dos obstáculos comuns àqueles
e provavelmente enviou outra cópia para o diretor da Academia brasileira, o poderoso
com que se deparavam as colegas pintoras, deviam elas ainda lidar comos estigmas
escultor Rodolfo Bernardelli, que manteve o cargo por 25 anos, entre 1890 e 1915. 14 Sua
de época. Acreditava-se quea escultura era uma modalidade essencialmente mascu-
resposta estampa as dificuldades que ela enfrentava:
lina, por sua exigência de força física e vigor, e com isso, totalmente inadequada às
mulheres,vistas então como “naturalmente frágeis e delicadas”. Tais sentidosamplia-
[...] Tenho presente sua carta de 17 de maio pp por ella posso ver como seu espírito
vam-se no Brasil, país que muito recentemente abolira a escravidão (1888) e tendia a
estava tranquilo, bom é isso e Deus queira que isso seja por muito tempo. Recebi
ver com muito preconceito o trabalho manual.Assim, quando observadas diante desse
o jornal que cita seu nome ao pé d´aquele grande mestre Rodin, a visinhança é
contexto, a matrícula de Julieta de Françae a da escultora Nicolina Vaz de Assis, nas
perigosa e precisa tomar cuidado, lembre-se da fabula do Icaro [...]. 15
aulas de modelo vivo,adquirem uma ousadia particular. Ambas demonstravam estar

—————————————————
9 A esse respeito ler:SIMIONI,Ana Paula C. “A viagem a Paris de artistas brasileiros no final do século XIX”.Tempo Social, 17(1):343-366. São Paulo, jun. 2005 (online);VALLE,
Artur. “Pensionistas da Escola Nacional de Belas Artes na Academia Julian durante a 1ª República”. 19&20, 3. Rio de Janeiro, nov. 2006 (online). Link: http://www.dezenovevinte.
­————————————————— net/ensino_artistico/academia_julian.htm
4 A esse respeito ler: NOCHLIN, Linda. “Why there be no great women artists?” Art and Sexual Politics. 2ª ed. New York: Macmillan Publishing Co., 1973. (1971, 1a 10 A esse respeito consultar SIMIONI.Profissão artista;Op. cit.,p. 167-69.
ed.).
5 “Na sala dos produtos escolares de senhoras merece honrosa menção a senhorita Julieta de França. O seu progresso manifesta-se em pequena série de estudos largos, 11 Sobre a Académie Julian, consultar, entre outros: WEISBERG, Gabriel & Becker, Jane (orgs.). Overcoming All Obstacles: The Women of Académie Julian. New York-London:

rápidos, vivos [...]”, in: Artes e Artistas. Escola Nacional. Rio de Janeiro, 17 de dez 1896.In:DE FRANÇA, Julieta. Souvenir de ma carrière artistique. Acervo do Museu Paulista da Rutgers University Press, 2000.
12 Nesse mesmo ano envia à X Exposição Geral de Belas-Artes a escultura Cupido, com a qual obtém medalha de prata de segunda classe.
Universidade de São Paulo.
6 A esse respeito consultar: DE FRANÇA, Julieta. Souvenir de ma carrière artistique.Op.cit. 13 Documentação no álbum Souvenir de ma carrièreartistique. Univers, Paris, 14/4/1904.
7 Jacques Louis David (1748-1825), notável pintor francês, representante principal do neoclassicismo na França, foi o diretor da Academia durante a Revolução Francesa, sendo 14 Ao comentar o Salão de 1905, o importante crítico da época Gonzaga Duque explicita o poder detido por Bernardelli,diz: “[...] O Sr. Professor Bernardelli, director perpetuo e
responsável pela reorganização da instituição. Foi ainda o mais importante pintor durante o período bonapartista. Com a queda de Napoleão Bonaparte exilou-se em Bruxelas. senhor absoluto da Escola de Bellas Artes, não sei se commendador da varias ordens estrangeiras, conselheiro esthetico do governo e outras instituições, monopolisava todas as
8 Na França, a Academia só aceitará as mulheres como alunas a partir de 1897. A esse respeito ler: SAUER, Marina.L´entrée des femmes à l´École des Beaux Arts, 1880-1923. Paris: admirações e todos os trabalhos[...]”.In: Contemporâneos. Rio de Janeiro: Typ. Benedicto de Souza, 1929. (grifos meus).
15 Carta de Rodolfo Bernardelli para Julieta de França, datada de 27/06/1904.In: Souvenir de ma carrière artistique.Op. cit.
Ensba, 1990.
16 17

Bernardelli não a elogia ou parabeniza, mas alerta-a de que talvez, como na fábula de Uma matéria de jornal, publicada pela Fon Fon em 1908, cuidadosamente preserva-
Ícaro, pretendesse voar mais alto do que era capaz e com isso sua queda seria ainda da pela artista em seu álbum permite-nos compreender o ocorrido. 19 Ela nos conta
maior. Esse desestímulo por parte do antigo mestre e diretor da Enbafoi constante du- quedepois de retornar de seu estágio no exterior, Julieta de França candidatara-se ao
rante sua estada na França. No álbum Souvenir de ma carrière artistique encontram-se concurso que escolheria o monumento comemorativo à Proclamação da República bra-
diversas cartas trocadas entre professor e aluna que estampam uma relação bastante sileira. Provavelmente trata-se da maquete mencionada, em tom elogioso por Gonzaga
tensa. De um lado, Julieta de França reclamava das condições precárias em que ela, bem Duque na crítica citada anteriormente. No entanto, a obra apresentada pela artista foi
como outros alunos brasileiros viviam no exterior, graças aos valores exíguos pagos aos desclassificada pelo júri. Ao saber do resultado, não se resigna. Julieta de França retorna
bolsistas, aos recorrentes atrasos nos pagamentos, à falta de subsídios para fundirem à Europa com sua maquete e solicita avaliações de seus antigos professores, mestres
suas obras ou transportarem-nas ao Brasil; tais queixas se transformavam nas letras de consagrados mundialmente. Após receber julgamento favorável de 57 grandes nomes,
Julieta em ameaças de desistência do estágio. 16 Em resposta, o diretor, em tom pater- retorna ao Brasil e exige uma retratação por parte da comissão nacional. Tal evento sig-
nalista e autoritário, rechaçava as ameaças da estudante, lembrava-a de seus deveres nificava, para qualquer artista, independentemente do gênero, uma afronta para com o
como pensionista e artista, ao mesmo tempo em que a apontava como mulher nervosa, júri local, presidido pelo mais importante escultor patrício e, também, o todo-poderoso
ameaçadora, traidora, sutilmente deixando entrever os riscos ao seu futuro como artista diretor da Academia até 1915, Rodolfo Bernardelli, com quem ela já havia tido muitas
caso levasse adiante o escândalo prometido. 17 rusgas durante seu estágio em Paris. Julieta de França não apenas recusou seu veredito
como quis, ao levar um livro assinado por outros artistas, questionar sua legitimidade
Em 1906, Julieta de França retorna ao Brasil, depois de uma temporada de muito apren-
no campo acadêmico brasileiro e internacional, ao trazer textos rubricados, entre ou-
dizado e relativo reconhecimento naquela que era então tida como a “capital artística do
tros, por Auguste Rodin.
mundo”. Participa da XIII Exposição Anual de Belas-Artes, com um conjunto de sete
obras, alguns bustos (os quais eram reveladores de que aos poucos conquistava uma O caso na época teve grande repercussão, sendo frequentemente noticiado pela im-
clientela particular), gessos, maquetes e a obra final de seu estágio na França, intitulada prensa. 20 O episódio repercutira tanto porque reverberava uma série de ousadias: pri-
Rapte eternel, um casal em bronze fundido claramente inspirado em O beijo, de Rodin. meiramente, desafiavam-se a autoridade e a competência de professores e do diretor
Sua participação foi detalhadamente comentada por Gonzaga Duque, o mais importan- da Academia, o que era ainda mais atordoante por ter sido levado adiante por um ex-
te crítico de então, realçando suas qualidades e apontando os defeitos: -aluno premiado. A isso se acrescenta o fato de exibir atestados de afamados artistas
internacionais, venerados pela academia brasileira, certamente subsidiária da francesa,
O que penso? Com franqueza, inclino-me synmpathicamente para a obra dessa
referência ainda absoluta acerca da “grande arte”. Por fim, tal árdua batalha fora travada
esculptora, a sua predileção pela nudez é uma prova de sua applicação. A grande
por uma mulher que, expondo publicamente as mazelas da academia pela imprensa,
esculptura é o nu. Mas, a Sra Julieta, não sei porque, não se dá ao trabalho de
rompia com o esperado recato feminino. Tantas transgressões trouxeram consequên-
amadurecer as suas concepções, parece que tem a soffreguidão de produzir. [...]
cias claras para a artista: desde então ela não mais figurou nos salões nacionais; desapa-
A inspiração fica na primeira maquette. Se o gênio a bafeja, essa maquette será
receu, simplesmente, da vida artística centralizada no Rio de Janeiro. Pode-se dizer que
extraordinária, mas se a ideia apenas resultar de uma especial disposição de tem-
Julieta de França foi expulsa da história da arte brasileira, tornando-se mais uma lacuna
peramento, é preciso pensar muito, fazer e refazer, estudar pacientemente para
do que uma presença na nossa memória coletiva.
encontrar a sua expressão exacta. 18
Desde esse momento, a escultora passou a trilhar uma trajetória marginal. Suas parti-
A atenção da crítica somada à obtenção da medalha de prata são termômetros de sua cipações como artistas serão doravante esporádicas e ligadas especialmente ao circuito
plena inserção nos meios artísticos oficiais. Mas, curiosamente, é justamente após esse artístico de Belém do Pará, sua terra natal. Lá, estava longe da rede de influências da
ponto de sucesso que, segundo a documentação oficial, sua trajetória se esgota. A partir Academia sediada no Rio de Janeiro, tutelada por Rodolfo Bernardelli; além disso, em
de então nunca mais Julieta de França figurará nas exposições organizadas pela aca- Belém, contava com o apoio do irmão, o deputado, Artur França, bem como com a sim-
demia nacional. O que poderia ter ocorrido para que uma artista em notável ascensão patia da crítica de arte local. Assim, em 1912, esculpe o busto do Barão do Rio Branco,
tenha simplesmente desaparecido do cenário artístico de seu tempo? o qual será patrocinado pela Prefeitura de Belém. Julieta de França finalmente obtinha
uma capa de jornal, capaz de eternizar sua imagem. 21 Durante a década de 1920, foi
aprovada em concurso como professora de modelagem no Instituto de Surdos e Mu-
dos, no Rio de Janeiro,o que consistirá doravante em seu ganha-pão principal, mas
—————————————————
16 Pode-se acompanhar essas questões por meio das matérias de jornais assinadas por Joafnas que constam no referido álbum.JOAFNAS, “Cartas de longe”. Paris, 14 de
—————————————————
jun.1902, s. ed..In: Souvenir de ma carrière artistique. Op. cit.Segundo uma matéria publicada por Joafnas, a pensão da artista ameaçara despencar de 500 para 100 francos por
19 “Uma artista brazileira”.Fon Fon, 14(11), 11/07/1908.In: Souvenir de ma carrière artistique. Op. cit.
mês, valor suficiente apenas para o pagamento de um único modelo. Segundo o autor, por essa razão a artista teria ameaçado retornar ao Brasil, descumprindo suas obrigações
como pensionista. JOAFNAS. “O sonho do filho pródigo”. Folha do Norte, 14 de agosto de 1904. In: Souvenir de ma carrière artistique.Op. cit. 20 Relatos sobre a contenda entre a escultora e o júri do concurso podem ser encontrados em: “Uma artista brasileira”.Fon Fon!11/07/1908; “O monumento da República”.Jornal
17 Consultar correspondência no álbum Souvenir de ma carrière artistique.Rodolfo Bernardelli, 10 de julho de 1901. do Commercio. Juiz de Fora, 16/07/1908.
18 Gonzaga Duque Estrada. Contemporâneos. Op. cit., p. 145-146. 21 Trata-se da capa de O Estado do Pará, c.1910. Encontrada em Souvenir de ma carrière artistique.Op. cit.
18 19

não era algo capaz de fazer seu nome repercutir nos meios artísticos.Em 1921, volta a como objeto, impondo-se um desafio, o de narrar a própria história, por meio de ele-
se destacar propriamente como escultora, novamente na imprensa do Pará, afinal ela mentos selecionados e reagrupados segundo uma lógica compreensiva prévia.
conquistara um antigo sonho: obteve o primeiro lugar no concurso público lançado
Nesse álbum, Julieta propôs um sentido à sua biografia, ao seu passado, recomposto
pelo Estado para o monumento em homenagem ao marechal Floriano Peixoto.Esses
por meio de fontes escritas, sobretudo artigos de jornais rubricados por terceiros, ou
acontecimentos que marcaram sua biografia podem ser tomados como exemplares das
ainda fotos de suas obras, bem como algumas cartas íntimas. Embora o álbum seja um
dificuldades e possibilidades com que as artistas mulheres de sua geração se defronta-
conjunto de discursos (escritos e visuais), escolhidos, colecionados, colocados em uma
ram. Diferindo da maior parte delas, que foram excluídas de nossa memória coletiva,
ordem por aquela que o organizou, não há uma única linha por ela escrita. Não é um
o álbum elaborado por Julieta de França, diligentemente preservado por sua família e
livro de memórias, muito menos de confissões, e nem uma autobiografia convencional,
pelo Museu Paulista da USP, nos permite reconstituir, por meio dos ricos fragmentos
naquelas em que narrador e herói espelham-se uns nos outros. É interessante frisar que
deixados, quais eram as possibilidades de realização e os muitos impasses enfrentados
a artista não “escreve” ou “descreve” sua vida no álbum, mas na maneira com que sele-
pelas artistas daquele tempo. 22
ciona conscientemente determinados materiais, os guarda e os arranja, ela termina por
“inscrever” um sentido à sua vida. E esse sentido parece ser o de narrar uma trajetória
de artista que almeja um reconhecimento público.
Souvenir de ma carrière artistique: uma autobiografia muito particular
O álbum não está organizado a partir de um princípio cronológico linear. Antes, o prin-
Em meu doutorado defendido em 2005, a pesquisa sobre Julieta de França se encerrava
cípio de estruturação parece ser mais temático do que temporal. Inicia-se com diplomas
no episódio envolvendo o concurso comemorativo à maquete da República de 1908.
e cartas dos períodos iniciais de sua formação, em Belém e depois no Rio de Janeiro;
Isso porque até aquele momento eu estava trabalhando com a documentação “oficial”
ao que se seguem documentos concernentes à obtenção do Prêmio de Viagem ao Ex-
disponível, aquela produzida pela Escola Nacional de Belas-Artes e pela imprensa que
terior.Logo, a narrativa se quebra, há notícias sobre os prêmios obtidos como aluna da
a orbitava, centralizada no Rio de Janeiro. Para esse corpus documental, a artista havia
Enba entre 1897 e 1898 e, a seguir, uma longa série de ricas matérias de jornais, cartas,
sido “sepultada” dos meios artísticos locais depois da contenda, e com isso desapare-
críticas e fotografias relacionadas ao período de cinco anos em que ficou em Paris. A
cera sem deixar registros. Só algum tempo depois tive a grande sorte de conhecer um
partir desse momento, há uma nova quebra de linearidade na narrativa. A artista parece
de seus descendentes, o professor José Roberto de França, o qual, muito amavelmente,
passar a organizar os recortes de jornais a partir de um novo tema, o das encomendas
localizou entre os parentes o precioso álbum intitulado Souvenir de ma carrière artisti-
públicas recebidas. Inicia com o busto do Barão do Rio Branco (1912), a seguir o mo-
que. Sem dúvida trata-se de uma fonte única de informações sobre a artista, sobre seu
numento em homenagem ao marechal Floriano (1920/21), para depois retornar a uma
meio cultural, sobre os impasses que os artistas e especialmente as mulheres artistas
série de matérias de jornais acerca do famigerado processo em torno da sua desclassifi-
enfrentaram em seu tempo.
cação no concurso para o monumento em comemoração à República (1908). Julieta de
Souvenir de ma carrière artistique consiste em um álbum de dimensões médias (25 x França parece ter cuidadosamente selecionado e preservado as matérias veiculadas pela
30cm), em elegante capa de couro e tecido. Em seu interior há aproximadamente 100 imprensa que foram favoráveis a seus pleitos. 24
folhas, muitas delas vazias; as demais são ocupadas por 76 recortes de jornais, todos
Ainda que tal material tenha permanecido por muito tempo em um circuito íntimo e
versando sobre a carreira da artista (exposições, crítica obras, encomendas públicas re-
privado, ele parece ter sido destinado a cumprir uma função específica: a de criar uma
cebidas, etc.). Além disso, pode-se encontrar ainda 18 cartas, algumas privadas e outras
versão pública de sua vida. Mesmo contendo algumas cartas pessoais esparsas em seu
trocadas com figuras públicas; 20 fotografias, sendo a maior parte de obras suas e três
interior, o conjunto é composto centralmente por documentos selecionados, colados
de pessoas intimamente ligadas à artista; nove diplomas e programas escolares e, final-
e dispostos de sorte a narrar os êxitos da trajetória da artista. Nesse âmbito, pode-se
mente, seis certificados.
vislumbrar um sentido estratégico em sua feitura, pois, ao escrever sua trajetória a
Acredito que estejamos diante de um tipo muito particular de autobiografia. Sucin- partir das falas e textos de críticos e jornalistas, Julieta de França parecia conferir mais
tamente pode-se definir esse gênero como “a biografia de uma pessoa escrita por si “objetividade” aos fatos que permearam sua carreira.Caso as palavras fossem as suas, o
mesma”. 23 Diferindo da biografia, que constitui uma narrativa global e exterior, na qual álbum poderia ser tomado por um documento subjetivo, uma confissão de uma artista
o historiador encontra-se distante de seu modelo, a autobiografia implica uma grande incompreendida em busca de consideração. Já as notícias de jornais aparentam uma
transformação. Nesta, artista e modelo coincidem, isto é, o biógrafo toma-se a si próprio

—————————————————
24 Depois das matérias dedicadas à disputa iniciada em 1906, o caderno segue com os seguintes tópicos: O monumento a Laguna, esboçado pela artista, desclassificado no
concurso levado a cabo em 1921. Tal ano constitui o marco final, em termos temporais da série. Mas o álbum traz, ainda, outro percurso temático que continua após o marco
————————————————— cronológico: a realização de uma maquete que concorreu ao concurso para o mausoléu de Afonso Pena (1910) e dois exemplos de medalhas comemorativas realizadas pela
22 Alguns dados daí constantes puderam ser incorporados no livro, já citado. Para uma análise mais pormenorizada do álbum ver: SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. Souvenir de artista. A passagem por Paris e os documentos sobre o Sonho do filho pródigo (anteriormente referidos neste artigo); matérias sobre o sucesso da artista quando aluna da Escola
Nacional de Belas-Artes, em 1899; e uma série de documentos avulsos, cartas íntimas, fotos de sua casa no Rio de Janeiro, fotos de sua filha, pequenos cartões enviados pelo
ma carrière artistique. Uma autobiografia de Julieta de França, escultora acadêmica brasileira.São Paulo, Anais do Museu Paulista, vol. 15, n.1,jan/jun. 2007, p. 249-278. presidente Hermes da Fonseca, em 1914, convidando-a para festas em seu palácio, dado que Julieta de França era professora de escultura de sua esposa, a caricaturista Nair de
23 STAROBINSKI, Jean. “The Style of Autobiography”.In:OLNEY, James (org.).Autobiography. Essays Theoretical and Critical. New Jersey: Princeton University Press, 1980, p. 14. Teffé e ainda certificados de cursos e participações em salões esparsos.
20 21

suposta imparcialidade, além de uma dimensão de reconhecimento público, por ela tão
almejada.
Dessa forma, Souvenir de ma carrière artistiqueconstitui uma autobiografia muito parti-
cular. Ele difere das modalidades autobiográficas praticadas pelas mulheres de seu tem-
po. Segundo a historiadora Michelle Perrot, os relatos escritos por mulheres do passado
incidem preferencialmente sobre o domínio do privado, “o lugar de felicidade imóvel,
cujo palco é a casa, os atores, os membros da família, e as mulheres, as testemunhas e
as cronistas”. 25 Dado que as autoras foram secularmente excluídas dos espaços públi-
cos, dos fóruns de decisão política na ordem burguesa e assim confinadas aos espaços
privados e domésticos, tenderam a descrever os lugares sociais que podiam frequentar,
o que se traduziu por uma atenção aos acontecimentos íntimos de suas vidas.
Souvenir de ma carrière artistique distancia-se por completo dessas modalidades de auto-
biografias “femininas”. Sua vida é narrada de um modo muito diverso: opta por destacar
sua atuação como artista, dedicada à vida pública. A artista seleciona documentação con-
cernente à sua participação em salões, em exposições e em concursos de monumentos
públicos. As poucas cartas coladas propositadamente no álbum são justamente as me-
nos privadas, aquelas trocadas com o professor Rodolfo Bernardelli durante seu está-
gio como pensionista no exterior. Assim, o álbum parece responder a uma motivação
fundamental: o desejo de ser reconhecida como uma artista de mérito, profissional, que
não obteve o lugar público almejado em função de questões alheias à qualidade de sua
obra. Os fragmentos cuidadosamente selecionados, alinhavados e encaixados possibi-
litam ao leitor compor uma imagem complexa ao final, um autorretrato da artista que
permite ultrapassar uma história até então silenciada, esquecida, minimizada, como
talvez seja a de tantas outras mulheres artistas que ainda hoje desconhecemos. A publi-
cação oportuna desse valioso conjunto documental permite que as memórias de Julieta
de França, artista paradigmática de seu tempo, transformem-se em história.

—————————————————
25 PERROT, Michele. As mulheres e os silêncios da história.Bauru: Edusc, 2005.
22 23

O ALBUM DE LEMBRANÇAS COMO MONUMENTO


Leila Danziger

Sugiro um lugar para a leitura deste livro. Vá ao Jardim Botânico no Rio de Janeiro e
siga por entre as palmeiras imperiais da aleia principal. Passe pelo Chafariz das Mu-
sas, pela gigantesamaúmae, quase ao fim, quando os ruídos trazem de volta o entorno
da cidade, você encontrará um portal ladeado de bambuzais.Atravesse-o e observe sua
grandiosidade pelo avesso. Creio que os fundos do portal abrigam esperanças extra-
viadas de nossa história da arte anterior ao modernismo.À sombra dessa construção,
marco da presença tão contraditória do neoclassicismo no Brasil, as lembranças de Ju-
lieta de França encontram espacialidade privilegiada. Quantas vezes elao terá atraves-
sado acreditando que o futuro – pessoal e coletivo – estaria à altura de suas ambições?
Embora comprometida com os ideais da República, a produção artística de Julieta surge
da instituição que fez erguer aquele portalem 1826 no centro do Rio de Janeiro – a
Academia Imperial de Belas-Artes, transformada em Escola Nacional de Belas-Artes
com a Proclamação da República, mudança que não implicou uma renovação artística
efetiva.A presença desse elemento arquitetônico desterrado no Jardim Botânicoé um
dos signos mais eloquentes da existência desde sempre precáriada instituição, cuja
função seria transmitir e traçar rumos para a arte no país. Aquela ruína é o que resta
da construção projetada por Grandjean de Montigny edemolida112 anos depois de sua
inauguração,semjamais alcançar destacada projeçãosimbólica ecompletude física.
Folhear o álbum de Julieta de França desperta uma emoção semelhante à de percorrer
ruínas; nosso olhar contemporâneo, marcado pela valorização da memória a partir das
últimas décadas do século passado, encanta-se com a nova configuração dos documen-
tos produzida pelo tempo e pelo acaso. Em belo texto sobre os Carceri, de Piranesi,
Andreas Huyssen sugere que “temos nostalgia das ruínas da modernidade porque elas
ainda parecem manter uma promessa que desapareceu em nossa época: a promessa de
um futuro alternativo”. 1 Embora fosse preciso refletir em que medida a arte e a cultura
brasileira se inscrevem nesse pronome coletivo da frase de Huyssen, certo é que a arte
moderna no Brasil se instaura sem relação ou nostalgia da produção artística do século
XIX, aparentemente incapaz de nos acenar algum futuro, mas apenas nos reter em um
passado obsoleto. A inteligência estratégica de nossos modernistas prescreveu que o
modernismoignorasse a produção acadêmica e ouvisse os apelos da arte colonial, sobre-
tudo Aleijadinho, que para Mário de Andrade nos atualizava com “toda uma história”.
Segundo o crítico paulista, Aleijadinho “evoca os primitivos itálicos, bosqueja a Rena-
scença, se afunda no gótico, quase francês por vezes, muito germânico quase sempre,

—————————————————
1 Huyssen, Andreas. A nostalgia das ruínas.In: Culturas do passado presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória.Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto-
Museu de Arte do Rio, 2014, p. 93.
24 25

espanhol no realismo místico”.Da produção acadêmica do século XIX, apenas Almeida Décio Villares e Eduardo de Sá foram artistas politicamente militantes naqueles anos,
Júnior parece-lhe capaz de nos acenar algum futuro e “profetizar para a nacionalidade ambos comprometidos com o positivismo, como sabemos, uma das correntes que dis-
um gênio plástico”. É inegável que os academicismos que se sucederam ao longo do putou a definição do regime republicano.
século XIX apresentam obras tímidas, problemáticas sob os mais diversos aspectos,
Mas não me parece exagerado afirmar que o fracasso do monumento de Julieta de
mas quenos constituemjustamente em sua fragilidade, expondo carências e impasses
França não é maior do que o fracassode grande parte dos monumentos efetivamente
ainda hoje insolúveis. Recentemente, aarte oitocentista brasileiravem suscitando reav-
construídos em nossas cidades. De que modo fruímos a presençade tantos Florianos
aliações e provocando talvez certa “nostalgia reflexiva”, para usar ainda a expressão de
e Deodoros erguidos sobre pedestais em nossas praças senão como formas que ao sol
Huyssen, aquela capaz derevelar“que o pensamento crítico e a saudade não são opos-
da tarde nos projetam as sombras de um passado vago? Talvez apenas a figura de Tira-
tos, da mesma forma que as memórias afetivas não desobrigam alguém de compaixão,
dentes tenha se firmado(mais por obra de pintores do que de escultores)como símbolo
discernimento ou reflexão crítica”. Não se trata de sonhar com uma suposta grandeza
de comunhão nacional – esquartejado e ambíguo, entre herói e santo –, atuando sobre
perdida, pois essa nunca aconteceu, mas de resgatar promessas e ideais não realizados,
nosso sempre tão frágil civismo republicano. Julieta de França ainda não era capaz de
ouviras esperanças extraviadas daqueles tempos.
perceber odeclínio da prática dos monumentos, seu acentuado desprestígio, detectado
com humor e ironia por Robert Musil, em 1932,quando o escritor austríaco afirmounão
haver nada mais invisível do que os monumentos públicos. Musilse referia aos mon-
Não sei se no melhor de seus sonhos, Julieta de França imaginou que o álbum Souvenir
umentos tradicionais, produzidos pela cultura histórica do século XIX, essa mesma
de ma carrière artistique seria publicado um dia, mais de cem anos depois dos mo-
tradição a qual a República brasileira recorria na tentativa de dar visibilidade a valores
mentos mais intensos e conturbados de sua vida artística. Embora sua aspiração fosse
que “formassem a alma” do povo.Há tempos sabemos que a permanência física dos
enquadrar-se no precário sistema da arte acadêmica nacional, em vigência ainda nas
monumentos não os impedem de se tornarem opacos e hieroglíficos. A perda do sen-
primeiras décadas do século XX, o embate enfrentado pela artista para legitimar um de
tido original de sua fundação acarreta sua transmutação em forma, marco visual capaz
seus projetos artísticostemaspectos marcadamente atuais. Ao desafiar a soberania do
de agir na construção mental que fazemos da cidade, construção esta que nos permite
júri que em 1906 recusou sua maquete para um monumento à República, Julieta de
a orientação espacial, mas é incapaz de gerar sentido histórico. A perda de sentido dos
França lança luz sobre os intricados processos de legitimação da arte e suas condições
monumentos orienta um dos mais belos fragmentos de Walter Benjamin, que em “Rua
de produção naqueles anos.
de mão única” nos fala sobre o aspecto indecifrável do obelisco de Luxor deslocado na
A narrativa construída em seu álbum, a partir de documentos cuidadosamente selecio- década de 1830 do Cairo para a Place de la Concorde, em Paris. “Nenhum dentre dez
nados, não demonstra sua implicação no debate político travado em seu tempo. Tudo mil que passam por aqui se detém; nenhum entre os dez mil que se detém pode ler a
parece se dar no campo artístico, onde sabemos que o engajamento político talvez fosse inscrição”. Seria preciso diferenciar o esquecimento produzido pelo excesso de história,
decisivo para a aceitação ou não da obra proposta. Em seu monumento, Julieta faz uso que percebemos nas cidades europeias, daquele que é fruto de sua ausência, como
da alegoria feminina, que domina a simbologia cívica francesa da Primeira à Terceira acontece entre nós, mas assim sobrecarregaríamos o álbum de Julieta de sentidos de-
República.Embora seja difícil avaliar os detalhes do monumento a partir das fotografias masiados. É preciso respeitar as lacunas, apagamentos e vazios que se inscreveram em
presentes no álbum, o endereçamento genérico à República era bem pouco capaz de seu livro; respeitar sua obra é dimensioná-la em sua justa modéstia.
servir aos interesses de qualquer uma das correntes que se debatiam tentando firmar-se
Os documentos que integram o álbum são escritos em uma língua queembora com-
como fundadoras da República brasileira. A jovem nação precisava de elementos que
preensívelnão é mais a nossa, produzindo certa estranheza e esforço de decifração. A
buscassem afastar claramente o imaginário monarquista, povoando-o com valores e
caligrafia presente em vários papéis guarda a memória de gestos realizados por corpos
heróis republicanos. Por outro lado, como artista mulher, a situação de Julieta de Fran-
versados em disciplinas da qual nos afastamos. Avançar entre as páginas deste álbum é
ça era especialmente audaciosa. Como poderia ela firmar-se como escultora de monu-
percorrer um espaço esquecido, situado entre o público e o privado,e que subitamente é
mentos, sempre intrinsecamente ideológicos, quando o direito ao voto foi concedido às
aberto à visitação. Sua leitura é um esforço semelhante ao de quem retira os lençóis que
mulheres em nosso país apenas em 1932? Vale lembrar que a opacidade política não
recobrem os móveis de uma sala que, em vão, aspirou à grandeza. Não sabemos bem o
era uma singularidade da atuação de Julieta. Segundo José Murilo de Carvalho, apenas
que protegem e talvez jamais saibamos ao certo. Os objetos perderam a forma. Como
no portal da Academia Imperial de Belas-Artes, a entropia chegou antes do auge. Uma
pátina vigorosa depositou-se sobre tudo euma camadade distância recobre agora as im-
agens de suas esculturas. Subtraídasdo contexto da arte acadêmica em sua frágilrelação
————————————————— com o imaginário republicano, asfotosno álbum se aproximam estranhamente das es-
2 Andrade, Mário. Aleijadinho.In: Aspectos das artes plásticas no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1984, p. 42.
culturas produzidas por Cy Twombly, artista americano, cujas obras ativam memórias
3 Idem, p. 41.
4 Huyssen, Andreas. Op. cit., p. 93.
inacessíveis, que jamais se entregam, escapando com sabedoria a cada que vez que
5 Carvalho, José Murilo. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 84.
26 27

acreditamos tê-las apreendido. Seguem recobertas por uma espécie de matéria que as
torna especialmente resistentes às legendas dóceis.
No álbum de Julieta, afotografiadeseu monumento dedicado à Retirada da Laguna solic-
ita especial atenção.A foto é tão vaga quanto a marca desse acontecimento histórico em
nossa memória coletiva. Em sua condição de imagem, o monumento perde detalhes,
e o pedestal, cuja função é elevar a obra inserindo-a em um espaço simbólico distinto,
torna-se corpo, silhueta, parte da escultura. Essa indiferenciação dos elementos e o si-
lenciamento da narrativa tornam a imagem da obra mais próxima de experiências sen-
síveis que realizamos desde a arte moderna. Esse foi também um projeto não realizado,
que respondia a uma iniciativa lançada por ocasião do centenário da Independência.
Como imagem, o monumento de Julieta assombra aquele efetivamente construído ao
pé do Pão de Açúcar, na Praia vermelha, com o qual convivemos sob o signo da para-
doxal invisibilidade apontada por Musil. Pois acredito que os monumentos – voltados
de maneira falaciosa para a eternidade – não existem apenas quando permanecem fisi-
camente na cidade. Para existirem, ou seja, para operarem no campo da memória, da
história e da cultura, não é imprescindível nem mesmo que tenham, de verdade, sido
construídos. Cumprem essas funções, com intensidades muito distintas, é certo, como
projeto, maquete ou registro fotográfico. Algumas vezes, como no urbanismo utópico
do século XVIII, não pretendiam de fato realizar-se. É o caso também dos desenhos de
monumentos imaginários de Claes Oldenburg, que projetou, entre outros, um con-
junto de cemitérios verticais espalhados pela cidade de São Paulo em forma de colossais
parafusos. Creio que com a publicação do álbum de Julieta, seus projetos passam a inte-
grar a imensa coleção de monumentos não construídos (como o de Morales de Los Rios
ao Almirante Barroso) ou depostos ao longo dos séculos,infinitamente mais numeroso
do que os que se erguem. Seu álbum nos ajuda a compreender os últimos instantes
da produção de arte acadêmica no Brasil, o longo século XIX, e se atualiza como ruína
delicada dos primeiros anos de nossa república.

—————————————————
6 Benjamin, Walter. Rua de mão única. In: Obras Escolhidas II. Trad. de Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos M. Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 36.
7 Trata-se do Monumento aos heróis de Laguna e Dourados, de Antonino Pinto de Matos, situado na praça General Tibúrcio, na Praia vermelha, Rio de Janeiro, que embora tenha
sido selecionado em concurso público de 1921, foi construído de fato apenas em 1938.
8 Ramos, Renato Menezes. “História, herói e imortalidade: o projeto não executado de monumento ao Almirante Barroso”, monografia apresentada como trabalho final de
graduação, Instituto de Artes da Uerj, 2013.
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DETALHES DO ALBUM
104 105

(detalhe da página 35)


106 107

Feito este reparo, que tem por fim pre-


venir desde já qualquer omissão injusta,
entremos na seção de escultura.
D. Julieta França, que acaba de regres-
sar da Europa, onde esteve como pensio-
nista da Escola, tem talento, extraordi-
nária força de vontade e perseverança,
mas falta-lhe o sentimento delicado de
Artista.
“Confidence”, além de alguns defeitos de
modelado, é de concepção pouco elevada.
Sabemos como toda a gente o sabe hoje –
que a Arte é a Natureza… sim, mas a
Natureza refratada no espírito.
Copiar na tela ou modelar no mármore uma
cena grosseira da vida, é, quando não
envergonhar ao próprio homem, pelo menos
alienar as suas simpatias.
“Confidence” parece-nos uma aberração
do sentimento estético e nem sequer tem
o mérito de ser o que a Artista quis
representar.
A artista imaginou uma mulher nua senta-
da nos joelhos de um homem também nu,
que lhe diz confidências ao ouvido; mas
fê-lo sem expressão, sem cobrir a reali-
dade com o véu da fantasia, que é o
traço subjetivo do artista.
Holz definiu algebricamente a Arte na
fórmula – Arte = Natureza - x. Ora, é
justamente esse xa incógnitaque ao
artista cabe descobrir. A Natureza é
para ele o que a luz solar é para o fotó-
grafo: um elemento essencial, mas que
não lhe dá nem tira mérito. O x é apenas
um fugitivo momento, um trecho da Natu-
reza, a que o artista imprime o cunhodo
seu temperamento.
Esse momento pode ser heroico ou
ridículo, simples ou solene, mas deverá
ser sempre alguma coisa de mais ou de
menos do que a Natureza: nunca, porém, a
Natureza mesmo.
[...]
(transcrição da imagem da página 40)
108 109

ARTES E LETRAS pelo ilustre jesuíta padre no gabinete onde tem de


Antônio Vieira. produzir as provas, acom-
JULIETA FRANÇA panhado por um professor
São três as provas a que e[...].
se submete o concorrente,
Em 1896 matriculava-se na a saber: Resta-nos falar da última
Escola de Belas-Artes a prova.
1ª –Fazer uma prova elimi-
nossa distinta conterrânea natória, em quatro horas, A academia, que denota
Julieta França. A escola de desenho copiado de rigorosa observação do
fora remodelada pela modelo vivo. modelo e no acabamento
reforma de Benjamin Cons- muito cuidado, qualidade
tant e poucos alunos Esta prova chama-se eli- que aconselhamos à jovem
encorajaram-se para minatória, porque sendo a artista não perca, ao
vencê-la. A nossa talento- primeira a apresentar, ouvir todos os dias,
sa patrícia fez com dis- põem logo o candidato fora junto de si, mormente na
tinção notável os prepara- de concurso se não repro- grande capital francesa,
tórios e matriculou-se. duzir todos os caracteres os novos como ela, fala-
apresentados pelo modelo. rem de independência de
A sua perseverança auxi-
liou o seu talento; a sua 2ª–Admitida a primeira escolas, de fantasias
constância nos estudos prova fazer, em 30 ses- sobre a verdade e de
chamou a atenção dos mes- sões, em barro, uma cópia outras coisas muito ruins
tres e condiscípulos e em de modelo vivo (uma acade- e muito prejudiciais para
breve a nossa conterrânea mia), em baixo-relevo, a Divina Arte, só bela,
figurava como o primeiro reduzida aproximadamente à quando for, como até ao
aluno da escola. metade do tamanho natural. presente tem sido compre-
endido por todos os gran-
No primeiro ano de frequ- 3ª–Modelar uma cabeça de des mestres, isto é,
ência obteve logo o expressão, tirada à quando bem reproduz a
2ºlugar na aula de pintu- sorte, entrando 7 pontos Natureza, o sempre novo e
ra e na de modelo vivo na urna. eternamente formoso
teve, desde que a assis- modelo, com o que se
O ponto é tirado na oca-
tiu o lugar na primeira aprende a escrever boa
sião em que o candidato
turma, posto que conser- prosa, a compor epopeias
entra no recinto da
vou até ao fim do curso. como os Lusíadas, fazer
escola, sendo a prova
feita, sem modelo, em 8 músicas arrebatadoras, a
Com três magníficos tra-
horas. pintar quadros admirá-
balhos de escultura que
veis e a arrancar do
apresentou à escola con-
Servem para os membros da barro vultos com formas
seguiu o 1ºlugar, em con-
seção ajuizaremacerca da eexpressão humanas –a
corrência, o que lhe deu
imaginação e conhecimen- especialidade dificílima
então inscrição ao con-
tos anatômicos do candi- a que se dedicou a senho-
curso do premio de viagem.
dato. rita Julieta França.
Feito o curso completo de
Feita esta última prova, França!
pintura requereu concurso
fica, com as outras duas,
de desenho figurado, Aqui está um prenúncio de
durante 8 dias, exposta ao
prova só extensiva aos bom agouro. Leva com o
público, sendo julgadas
professores. nome do batismo e do
todas no último dia pela
seção respectiva (de grande país, para o qual
A futura escultora fez
escultura), que fará rela- se dirige, aonde vai
mais todos os preparató-
tório do seu julgamento ao receber a consagração
rios e o curso completo da
conselho escolar. universal, todas as gran-
especialidade a que se
des manifestações do pro-
dedica, na nossa Escola de
Sancionado por este, o gresso humano.
Belas-Artes, merecendo as
relatório sobe, acompa-
melhores notas, pela sua Será feliz.
nhado do competente pare-
grande aplicação, assídua
cer, à aprovação do minis- Rapim.
frequência e decidida
tro do Interior.
disposição para a difícil (transcrição da imagem
arte, tão bem definida O candidato entra e sabe da página 47)
110 111

CARTAS DE LONGE conquistar, malgrado a sua qualidade de


estrangeira, excelentes notas nos
Paris, 14 de junho de 1902. cursos da Academia Julian, com as melho-
res referências de professores tais como
Antes que se abrissem os dois salons de o célebre Rodin –são a melhor e mais
pintura, o da Sociedade Nacional de positiva recomendação para ela, e que
Belas-Artes e o da Sociedade dos Artis- seria injustiça recusar-lhe.
tas franceses, ambos instalados nas Nos trabalhos que tem sucessivamente
vastas dependências do Grand Palais, um enviado para a Academia do Rio, como
com entrada pela avenida d’Antin e o provas da sua aplicação ao estudo, é
outro recebendo seus hóspedes pelo lado evidente o seu progresso sob o influxo
da avenida Nicolan2 com dois vizinhos deste empório da Arte que é Paris; e de
arrufados, que moram no mesmo prédio, um para outro como me foi dado ver, o
mas não seservem da mesma porta; antes seu aperfeiçoamento ressalta inegável.
que serealizasse essa solenidade genui-
namente parisiense, que se chama o ver- Se não lhe falharem os elementos indis-
nissage, isto é, a inauguração, que nada pensáveis à realização do monumento, com
mais é do que um pretexto para a gente que ela conta dar uma demonstração deci-
chic exibir toilettes ricas, contemplar siva dos seus esforços, monumento cuja
celebridades artísticas, saturar-se de maquetteapreciei, e que representará um
poeira e falar da vida alheia, não lhe acontecimento notável da nossa história
restando, por isso, tempo para dar aten- contemporânea, penso que esse bastará
ção às obras expostas; antes dessa data, para conferir-lhe o título de artista
marcada no calendário da elegância como consumada, cuja glória refletirá no seu
dia santo, ao lado da do Gand-Prix e da país natal.
Festa das flores, numerosas outras expo- Infelizmente a estudiosa paraense ainda
sições de pintura, escultura, gravura e não conseguiu, por falta de recursos,
objetos d’arte sucederam-se em diversos levar a efeito o sonho que mais afaga,
pontos de Paris, mais ou menos concorri- que é o de fundir em bronze algumas das
das e apreciadas. suas obras, até aqui executadas em
[...] gesso, sujeitas, por conseguinte, pela
fragilidade da matéria, a todas as con-
Verdade seja que uma parte considerável tingências. Compreende-se que com a sim-
dessas obras, a não ser num certo círcu- ples mesada servida pela Academia do
lo de amadores, tão desequilibrados de Rio, e que nada mais é que o estritone-
espírito como os que os fizeram [...] cessário para manter-se, ela jamais
outros preparam-se para desenvolver por poderá pôr de lado a quantia precisa
meio do estudo e da perseverança as para uma operação, que não custa pouco
naturais disposições da nossa raça para dinheiro.
o belo, como o sr. Fiuza e o sr. Braga.
Seria fora de propósito aventurar a
Mas o que mais diretamente deve interes- lembrança de um auxílio do Estado do Pará
sar ao Pará é saber notícias do que mais a uma artista que o está honrando no
de perto lhe toca, e para isso tive o estrangeiro, a uma vocação que não
cuidado de indagá-las bem minuciosas da oferece mais dúvidas sobre o seu positivo
jovem escultora Julieta França que aqui valor, e que não carece senão de ser
se acha como pensionista da Academia de amparada para desenvolver e frutificar.
Belas-Artes do Rio, e que teve a genti-
leza de permitir-me uma visita ao seu Talvez se oponham a isso quaisquer razões
atelier da rua Falguère. de Estado, entre elas a economia em tempo
de crise. Quer-me parecer, todavia, se
O caminho percorrido pela nossa inteli- esta ideia pode merecer consideração
gente patrícia desde que, partindo sozi- junto aos que zelam pelas coisas
nha e desprotegida para o Rio de Janei- públicas, que não será essa pequena verba
ro, entregou-se ao cultivo da arte para de natureza a tornar o Estado mais pobre,
que tinha decidida vocação, até obter o tanto mais quando ninguém empobrece por
melhor galardão que se pode ambicionar fazer uma despesa produtiva.
na nossa academia que é a bolsa de
viagem; a sua tenacidade aqui, através JOAFNAS
de mil dificuldades e aborrecimentos, em
(transcrição da imagem da página 51)
112 113

NOTAS DE ARTE glória do Brasil na Europa e honra da


Escola Nacional de Belas-Artes, do Rio
de Janeiro, que a laureou, –tomamos a
Ao sr. senador Antonio Lemos, inten- liberdade de apontar-lhe o escolho do
dente de Belém, oficiou de Paris a classicismo, pedindo-lhe que, fugindo
senhorita Julieta França, aplaudida às teorias das cátedras mais ou menos
escultora paraense, propondo-lhe a rotineiras de Paris, busque de prefe-
venda de alguns de seus últimos traba- rência inspirar-se na sua própria con-
lhos artísticos. cepção, à luz de uma ilustração digna
de nossos tempos. Se lhe merecêssemos
A essa proposta acompanham fotografias a honra de uma ponderação, recomenda-
dos esboços das referidas esculturas, ríamos à operosa artista paraense a
que têm de ser cinzeladas em mármore e, leitura do livro Les trois crises de
quase todas, reveladoras do belo l’art actuel, de Camille Mauclair, uma
talento da senhorita Julieta França. das mais profundas e oportunas obras de
crítica artística estampadas em fins
Eis a discriminação, com as alturas e
do ano passado.
preços dos trabalhos oferecidos ao
chefe do executivo municipal: – Ignoramos que solução dará o
Grupos: a República e o Gênio esclarecido intendente da Capital à
paraense,3m,95, por 21 contos de réis; proposta da senhorita Julieta França,
Sonho do filho pródigo, 2m,60, por nem estas simples linhas correntes são
17:000$;Confidencia[...], por 15:000$. traçadas com intuitos sugestivos: qui-
– Estátuas:Amorcaçador, semos apenas dar a lume a notícia, sem
Faceira,Orgulhosa, O Echo, A História desprezar o ensejo de aduzir conside-
de Lindoya, medindo 1m,70, por 7 contos rações invaliosas, porém porventura
de réis cada uma. – Busto: Mocidade em não de todo inúteis para uma verdadeira
flor, 4:000$. artista que não somente sabe ver, mas
também sabe observar e refletir.
Conquanto seja bem relativo o juízo que
se pode formar de uma escultura através Paraense de Belém.
de simples fotografias do esboço em
gesso, destacaremos, todavia, a está- (transcrição da imagem da página 53)
tua Orgulhosa, pela nobreza da atitude
e, principalmente, o busto Mocidade em
flor, deveras digno dos aplausos que à
sua autora tem conquistado em várias
exposições. É este um delicadíssimo
produto artístico, do qual ressalta
intensa a expressão do semblante da
mulher jovem que o cinzel de Julieta
França perpetuou entre eglantinas e
folhagens viridantes. Agrada-nos,
sobretudo, este busto, por ser mais
pessoal que todos os outros trabalhos,
mais independente, menos adstritoàs
regras acadêmicas, à preocupação clás-
sica. D’esta voluntária escravidão de
Julieta França às fórmulas oficiais da
escultura são, principalmente, teste-
munhos lamentáveis o Amor caçador e A
História: a feitura pode ser correta,
a concepção é banal, vista em milhares
d’outras esculturas de qualquer época,
desde o primeiro ciclo helênico até
nossos dias, sem esquecermos o Renas-
cimento. Por termos em grande conta o
dúctil espírito artístico da festejada
paraense, cuja laboriosa tenacidade é
servida por um talento de primor, para
114 115

[...]

Sintetizaremos as
nossas apreciações, dando os
mais sinceros parabénsà
aproveitável paraense, cujo
trabalho de um ano de
academia denota boa soma de
talento artístico e grande
força de vontade.

Seus desenhos ocupam o


primeiro plano; seu pulso
hesita, ainda, no
delineamento das figuras das
telas a óleo; o colorido nem
sempre é natural; carecem às
vezes de vida os personagens;
as esculturas são ainda
imperfeitas; mas é bastante;
já é muito, já é admirável o
que nos dá Julieta França, ao
cabo do seu primeiro ano de
tirocínio acadêmico.

Ou muito nos enganamos, ou o


Brasil artístico alguma coisa
deverá, no futuro, a esta
esperançosa filha da
Amazônia.

(transcrição da imagem da
página 53)
116 117

(detalhe da página 60)


118 119

Em torno do projetado monumento


ao marechal Floriano nesta
capital

RIO, 18 — É concebida nos seguintes


termos a carta que a viúvado general Joa-
quim Ignacio dirigiu à escultora Julieta
França.
“Minha senhora e prezada compatriotaes-
cultorad. Julieta França –Afetuosas sau-
dações –Ontem somente tive conhecimento
através da sua entrevista no vespertino O
Globo, do modo por que, ao que informam
telegramas do Pará, se referiram alguns
órgãos da imprensa daquela adiantada
capital a iniciativa do meu saudoso
marido marechal Joaquim Ignacio para per-
petuar no bronze a figura gloriosa do
inolvidávelFloriano, em uma das praças de
Belém. O esclarecimento que a sua grande
alma de patriota e o seu acatado nome de
artista trouxeram a publicidade, num
nobre gesto de acentuada elevação moral e
cívica, é tão cabal que desnecessário se
tornaria a deduzir qualquer detalhe que
por ventura pudesse trazer. Foi na reali-
dade, a vida do meu falecido marido, tão
ilibada que o seu nome é assaz conhecido
em todo o nosso querido Brasil. Pelo seu
altruísmo, abnegação e probidade, em
quase cinquenta anos de vida pública,
desveladamente dedicada ao trabalho cons-
tante, em prol das causas que recomendam
o homem na sociedade, bem mereceu as
homenagens sinceras das enérgicas pala-
vras de sua entrevista, que encerram como
que uma justa advertência a qualquer obs-
cura intenção que as entrelinhas do
comentário acaso pudessem insinuar.
Queira, portanto, aceitar em meu nomee no
dos meus filhos, a nossa eterna gratidão
por sua espontânea, posto que esperada,
franca e digna atitude que tanto nos sen-
sibilizou e bastante nos obriga.
Desejo ainda dar-lhe ciênciade que um dos
meus filhos nesta semana e na primeira
oportunidade providenciará seja conhecida
em Belém a repercussão, que aqui teve o
que lá foi publicado sem a indispensável
perquisição.
Subscrevo-me com estima, e admiração –
Amiga muito grata (a) Leonidia Fernandes
Cardoso”. (F.)
(transcrição da imagem da página 62)
120 121

Monumento a Floriano claro que não podia ela com 8:000$000


erigi-lo e que isto mesmo ficou
esclarecido quando foi receber o
prêmio no Pará, tendo acordado com os
A ESCULTORA PARAENSE JULIETA FRANÇA
interessados que aqui esperaria, como
DEFENDE A MEMÓRIA DO GENERAL JOAQUIM está esperando, poder continuar a
IGNACIO execução do seu projeto já começado e
RIO, 9 – A escultora paraense Julieta não continuado por falta absoluta de
França tendo lido nos jornais telegra- dinheiro.
mas daí sobre o monumento a Floriano
Conclui dona Julieta França com as
Peixoto, procurou o diretor deO Globo,
seguintes palavras: “Procurei no
fazendo importantes declarações sobre
leito, já moribundo, o general Joaquim
o assunto.
Ignacio, mostrando-lhe o tópico dum
Começou dizendo que através dos comen- jornal paraense, aqui transcrito,
tários da imprensa paraense vê-se a ondeointerpelavam sobre o destino
oposição ou a política malsã do Pará, desse dinheiro. O general, num digno
que quer manchar a reputação dum mili- esforço de hombridade, assentou-se no
tar dos mais dignos do Exército, calu- leito de morte e sobre os joelhos,
niando sem escrúpulo a honestidade por escreveu de próprio punho, um protesto
demais conhecida do bravo general Joa- e retificação a tal lamentável inci-
quim Ignacio. dente. Não tinha ainda terminado,
quando forte crise o acometeu, não lhe
Sente-se, assim, no dever de esclare- consentindo prosseguisse, ao que se
cer o caso, em que é parte, estando opôs o bravo general, dizendo: “Mesmo
empenhada em que se faça luz sobre a morrendo, preciso cumprir um dever.” E
verdade e declara que obteve no concur- pegando de novo a pena concluiu sua
so o primeiro lugar entre as maquetes defesa, que remeti para o Pará.
apresentadas para a ereçãodo monumen-
to. Tive profundo pesar em trazer ao leito
de um moribundo dos mais ilustres e
O produto total da subscrição atingiu dignos, e que tanto honrou a pátria,
17:000$000 e deduzidas as despesas servindo-a em vários atentados contra
correspondentes aos prêmios de ela, um caso desses. (F)
adaptação da exposição das maquettes,
ficaram 8:000$000 para iniciar a (transcrição da imagem da página 63)
construção do monumento, cujo
orçamento é de 250:000$000.

Adianta mais que, ao receber o prêmio


de 5:000$000, assinou um contrato, o
qual poderá divulgar em qualquer
tempo, para patentear quão baixa é a
intenção do politiqueiro que fornece
notas tão deprimentes e ultrajantes à
memória dum militar que foi
honestíssimo, tendo morrido pobre.

Lembra que os 40:000$000 a que aludiram


jornais mal informados não são produto
apenas da subscrição paraense, pois os
Estados do Amazonas e Alagoas votaram
créditos, respectivamente de
10:000$000 e 20:000$000, os quais
ainda não foram entregues à comissão do
monumento, perfazendo tudo a
importância dos 47:000$000.

Explica ainda que, sendo a execução do


monumento orçada em 250:000$000, é
122 123

Julieta França, a nossa


ilustre
conterrânea, discípula lau
reada da
Escola Nacional de Belas-Art
es, que
lhe conferiu o prêmio de
viagem à
Europa, da seção de escult
ura, con-
sagração do alto mérito e
do supe-
rior talento de que deu
provas
sobejas em 24 exames e
concursos
durante o período acadêmico
de seus
estudos, uma vez terminado
s estes,
seguiu para Paris, a aperfe
içoar--
se. E fê-lo com tanto bri
lhantismo
e real aproveitamento, que
, seguin-
do na Académie Julien o
curso de
Verlet, o estatuário insign
e, que é
uma fulgente glória da
moderna
França artística, aí foi van
tajosa-
mente classificada em vár
ios con-
cursos, com menções que lhe
deram
honrosa posição entre os mai
s notá-
veis de seus colegas, art
istas já
feitos e de nome presti
gioso no
meio acadêmico parisiense.
Emancipada do tirocínio
escolar,
terminado este após as mai
s conclu-
dentes provas de mestria
técnica,
era justo que tentasse por
si só a
produção profissional art
ística,
entre os diversos esboços
de gran-
des obras escultóricas que
concebeu
com arrojo e largueza,
como com
independência e originalidade,
marcados com o selo do bom
gosto e
da harmonia plástica,
a todos
sobrelevou, pelo grandioso
da ideia
e a oportunidade do ass
unto, o
monumento glorificador da
Repúbli-
ca brasileira, interpretado
expressamente para comemo
rar o
evento político de 15 de
novembro
de 1889.
Inspirada da nobre audáci
a que é
característica do seu tem
peramento
impulsivo, com um subjetivi
smo ima-
ginoso muito seu, a artist
a, insub-
missa por índole, pessoalís
sima e
plena senhora de si, interp
retou o
magno acontecimento da imp
lantação
da democracia em nosso paí
s em ima-
gens e linhas de grande
poder
sugestivo, compondo-as com
acentu-
ada vibração e aplicando-as
sobre
massa arquitetônica de
agradável
efeito e equilíbrio, produz
indo um
conjunto ao qual não falta
majesta-
de, imponência, beleza est
ética e
significação[...]
(transcrição da imagem da pág
ina 66))
124 125

Da Fon-Fon de 11 de julho 1908 tal na feição humanística de Fon-Fon.


Quem terá razão, o arquiteto Augusto
UMA ARTISTA BRASILEIRA Vianna ou Rodin? O Sr. Zeferino Costa
ou Teixeira Lopes?

Não é desconhecido nem privado de Como decidirá o Congresso este caso, no


mérito o nome de Julieta de França. qual está em jogo o mérito de uma
distinta Escultora?
Discípula da nossa Academia de
Belas-Artes, conquistou, em concurso, Damos a seguir a fotografia do
o prêmio de viagem à Europa. Era, monumento de Julieta de França.
portanto, uma discípula distinta na
nossa incompreensível Academia.
Legenda da imagem:
No velho mundo Julieta de França
dedicou-se seriamente à sua Arte, Projeto de um monumento à República do
frequentou os principais mestres, Brasil por Julieta de França.
conseguiu vários prêmios honrosos.
(transcrição da imagem da página 67)
De volta ao Brasil, a distinta
escultora propôs-se vender ao Governo
o seu monumento à “Glória da República
do Brasil” e dirigiu-se para isso ao
Congresso, que, acertadamente mandou
ouvir a nossa douta academia, A
comissão, composta dos Srs. Rodolfo
Bernardelli, Girardet, Zeferino Costa
e Araújo Vianna, foi de parecer que o
projeto de Julieta de França “não
satisfazia”, o que quer dizer que a
ciência solene da Academia reprovava o
trabalho da discípula, que pouco tempo
antes lhe havia merecido a distinção de
um prêmio.
D. Julieta de França partiu de novo
para a Europa e submeteu seu trabalho
à opinião de Grandes Mestres da
Escultura.
Estas opiniões reuniu ela em livro, do
qual nos ofereceu um exemplar. São
firmadas pela competência de Verlet,
Rodin, Teixeira Lopes, Maignan,
Carolus Duran, Injalbert e muitíssimos
outros, que atestam o valor do
monumento, contendo também o mesmo
livro opiniões do Mestre querido e
notável que é Rodolfo Amoedo, do
magistral artista do pincel, que é
Eliseu Visconti, e outros nomes
consagrados.
A citada comissão da Academia de
Belas-Artes nega valor ao trabalho de
Julieta de França, ao passo que um
grande número de Artistas, cuja fama
não se limita às salas e corredores
danossa Academia, afirmam-lhe a
superioridade. E agora?
Chega a ser uma coisa pilhérica e como
126 127

Jornal do Brasil
12-11-1910

O monumento ao
Dr. Affonso Penna
Escrevem-nos:
“O nome de Julieta de França, [...] corajosa
artista brasileira que na nossa Escola de
Belas-Artes conquistou a golpes de talento o
prêmio de viagem à Europa, é bastante conhe-
cido dos que no nosso meio se interessam
pelas coisas de arte, para que seja necessá-
rio preconizá-lo.
Julieta de França apresenta-se concorrente à
execução do mausoléu do Dr. Affonso Penna, e,
a ser tomado em consideração o nome desta[...]
artista, a ela parece deve ser, por gratidão
dos brasileiros,confiada essa missão.
A maquetteque vimos figurar na exposição da
Escola é um documento formal, indiscutível,
bem palpável de que esta moça, de real talen-
to, não perdeu tempo na Europa.
É de um modo singularmente característico que
Julieta de França tratouo assunto daquela
ordem,reunindo em um conjunto simpático toda
a vida de um homem da envergadura do Dr.
Affonso Penna.[Na]maquette reúnem-seas três
mais elevadas virtudes do Exmo. Presidente,
as quais ele próprio no estertor da morte
balbuciou e foram elas –Deus, Pátria, Família.
Para a sua característica fé católica Julieta
de França representouno alto e face do mauso-
léu, como que dominando aquela estátua rígida
coberta pela bandeira até ao peito, o
Christo,cuja serenaatitudeatirasobre si o
primeiro golpe de vista, e ele descepelos
braços distendidosdaquela imagem sagradaaté
fixar-se na estátua do ilustre morto que a
bandeira da República Brasileira amortalha
orgulhosamente.
A Pátria, a inspirada artista expressa-a pela
República, que, à direita do morto, envolta
em denso crepe e reverente, vem oferecer-lhe
a palma.
A Família, esta é de modo tão elevadamente
representada por uma mulher curva de dor e
conchegadoa si o filhinho, que bastava este
grupo para elevar a maquette de Julieta de
França ao primeiro lugar.
Na arquitetura, as armas da República e duas-
belas águias que se harmonizam perfeitamente,
dando a esse ensemble a maior simplicidade
monumental, vê-se e pode-se dizer com certa
vaidade que temos nascida entre nós a arte
moderna, a arte sentimental.”
(transcrição da imagem da página 68)
128 129

(detalhe da página 69)


130 131

(detalhe da página 77)


132 133

(detalhe da página 82)


134 135

(detalhe da página 83)


136 137

26 DE OUTUBRO DE 1921
A comemoração do Centenário

Nesse sentido foi aberto [...] redação, aquela concor-


um curso de maquettes O edital de concorrên- rente, transmitimo-la a
tendo concorrido vários cia, na sua cláusula 9ª, quem de direito, tanto
artistas, em número de prescreve: “Tendo-se em mais quanto se trata de
dezoito, cujos trabalhos conta o isolamento do assunto que diz respeito
[foram] expostos no Monumento, no extremo de à celebração do Centená-
salão do 5ºandar do edi- um cabo, fronteiro à rio e, só por isso,
fício do “Jornal do Com- barra, o concorrente deverá ser apreciado com
mercio” e julgados por procurará reunir à sua muito apuro e elevação de
uma comissão especial- perfeição artística tudo vistas, para que possa
mente nomeada. O julga- o que de grandioso e haver o estímulo que é um
mento, porém, ao que nos impressionante for pos- dos principais elementos
informam, não obedeceuao sível, já pela concep- para que todos nós con-
princípio de justiça. É ção, já pelo conjunto”. corramos para o êxito da
assim que foi classifi- comemoração da grande
cado em primeiro lugarum Ora, disse-nos aquela data histórica.
trabalho que não preen- escultora patrícia que o
chia a condição princi- trabalho classificado (transcrição da imagem
pal do edital de concor- não consistia essa cláu- da página 83)
rência. sula na[...] Entretanto,
atendendo à reclamação
que nos fez, em nossa
138 139

Pátria 26 outubro 1921

O SR. CALÓGERAS NA PRESIDÊNCIA


DE UM JÚRI DE ARTE

Entrevista com a escultora


Julieta França

Estão em exposição, no A exclusão desse trabalho


salão do “Jornal do Com- é tanto mais injusta
mercio”, as maquettes dos quando é ele o único que
artistas que apresentaram corresponde à exigência
trabalhos ao concurso do do edital que para tal fim
monumento dos heróis de foi publicado. Ele deter-
Laguna e Dourados. minava o seguinte:
“Tendo-se em conta o iso-
A comissão julgadora dos lamento do monumento, no
trabalhos já se reuniu, extremo de um cabo, fron-
sob a presidência do teiro à barra o concor-
sr.Calógeras, e como nos rente procurará reunir à
constava que o julgamento sua perfeição artística
proferido não tomara em tudo que de grandioso [e]
consideração nem o valor impressionante for possí-
artístico das maquettes vel”.
concorrentes, nem as pró-
prias condições estabele- Pois bem o monumento por
cidas para a fatura do nós concebido era o único
monumento, aproveitamos a que correspondia a essa
oportunidade de falar exigência: tendo 33
àescultora Julieta França metros de altura e à
para solicitar-lhe infor- extremidade um grande
mações mais precisas. farol era visível de dia
ou de noite à grande dis-
A distinta escultora bra- tância. Era em suma um
sileira, cujos trabalhos monumento próprio ao
já a consagraram como uma local, onde deveria ser
grande artista, assim instalado. Não dizemos
respondeu às nossas per- que entre os demais 17
guntas: trabalhos apresentados
–Apresentei um trabalho a não existiam trabalhos de
esse concurso, juntamente arte; somente não são
com o arquiteto sr. José aplicáveis ao local apon-
Fraduan e com grande sur- tado, uma ponta dum cabo,
presa o vimos excluído em frente à barra…
pela decisão da comissão Por esses motivos, o que
julgadora. tenho a dizer sobre este
Eu quis realizar um tra- assunto não é senão um
balho de arte para o cen- protesto contra a decisão
tenário da nossa indepen- da comissão julgadora, a
dência, pondo o meu qual, presidida pelo sr.
esforço nesse intuito, e Calógeras, só tinha um
creio tê-lo feito, e o técnico, o sr. Corrêa
que fiz poderá ser apre- Lima. Os outros membros
ciado no salão do “Jornal eram engenheiros, um
do Commercio”. senador...

Lá está a maquette que (transcrição da imagem da


apresentamos. página 85)
140 141
143

CRONOLOGIA

1872 Nasce Julieta de França, em Belém, Pará, filha do maestro Joaquim Pinto de
França e de Idalina Pinto de França.
Em Belém, inicia seus estudos artísticos com Domenico de Angelis.

1897 Inscreve-se na Escola Nacional de Belas-Artes, no Rio de Janeiro.

1898 Expõe no Salão da Mina Musical, em Belém, Pará.


Matricula-se na aula de modelo vivo do ENBA.

1899 Recebe o Prêmio de Viagem ao Exterior pela ENBA.

1900 Desembarca em Paris e matricula-se na Académie Julian. Mora em Paris, como


Pensionista da União, pelos próximos cinco anos.

1902 Matricula-se no Institut Rodin.

1903 Medalha de prata na X Exposição Geral de Belas-Artes, da ENBA.

1905 Exibe obra no Salon da Société Nationale de Beaux Arts, de Paris.

1906 A obra O sonho do filho pródigo é aceita no Salon da Société Nationale de Beaux
Arts, de Paris. Recebe crítica positiva, assinada por Henri Dac para o jornal Univers, de
Paris. Retorna ao Brasil. Participa da XIII Exposição Anual de Belas-Artes e recebe a
medalha de prata. Candidata-se ao concurso que escolheria o monumento
comemorativo à Proclamação da República brasileira. É desclassificada pelo júri.
Retorna à Europa com sua maquete e solicita avaliações de seus antigos professores,
inclusive Auguste Rodin. Após receber julgamento favorável de 57 nomes, retorna ao
Brasil e questiona sua desclassificação pelo júri brasileiro.

1909 Apresenta-se pela última vez no Salão da ENBA.

1912 Esculpe o busto do Barão do Rio Branco, patrocinado pela Prefeitura de Belém, Pará.

Década de 1920 Aprovada em concurso como professora de modelagem no Instituto


de Surdos e Mudos, Rio de Janeiro.

1921 Primeiro lugar no concurso público lançado pelo Estado do Pará para esculpir o
monumento em homenagem ao marechal Floriano Peixoto.

1951 Falece no Rio de Janeiro.


144 145

Referências bibliográficas SOBRE OS AUTORES Lia Baron Doutoranda em DESIGN GRÁFICO


Literatura, Cultura e Contempo- Catalina Chlapowski
Cavalcanti, Ana. Souvenir de ma carrière artistique. Uma autobiografia de Julieta de Amanda Bonan Historiadora da raneidade pela PUC-Rio. Fez o
França, escultora acadêmica brasileira. Anais do Museu Paulista (Impresso), v. 15, p. arte e sócia diretora da Coletiva mestrado Crossways in PRODUÇÃO GRÁFICA
249-278, 2007. Projetos Culturais, onde European Humanities – Sidnei Balbino
desenvolve projetos de pesquisa Erasmus Mundus (2009), com
______. Profissão artista: pintoras e escultoras brasileiras, 1884-1922. 1ª ed. São Paulo: e curadoria em artes visuais e bolsa da União Europeia. TRATAMENTO DE IMAGENS
Edusp-Fapesp, 2008, v. 1. 336p. cinema. Mestre em História e Graduou-se em Comunicação André Cossich
Crítica da Arte na Uerj. Tem Social pela Universidade Federal
Cavalcanti, Ana; Valle, Arthur; Dazzi, Camila (orgs.). Oitocentos. Arte brasileira do graduação em Produção Fluminense (2005). É sócia TRANSCRIÇÕES
Império à Primeira República. 1ª ed. Rio de Janeiro: Escola de Belas Artes/UFRJ, 2008, v. Cultural pela UFF. E-mail: diretora da Coletiva Projetos Janaina Garcia
1, amanda.bonan@coletiva.art.br Culturais. Atua nas áreas de
Comunicação e Produção REVISÃO DE TEXTO
Danziger, Leila. Diários públicos: memória e esquecimento. In: Revista do Programa de Ana Paula Cavalcanti Simioni Cultural (especialmente em Rosalina Gouveia
Pós-Graduação em Cultura Visual, Mestrado da Universidade Federal de Goiás, 5(2), Docente do Instituto de Estudos gestão pública de cultura). 
julho/dezembro de 2007; publicado também em Visualidades (UFG), 5:79-91, março de Brasileiros/USP. Doutora em E-mail: lia.baron@coletiva.art.br CRÉDITOS FOTOGRÁFICOS DA
2009. Sociologia pela USP. Autora de REPRODUÇÃO DO ÁLBUM
Profissão artista: pintoras e José Rosael
Danziger, Leila; Costa, L. C.; Seligmann-Silva, M.; Cabo, S.; Lins, Vera. Diários públicos: escultoras acadêmicas AGRADECIMENTOS
sobre memória e mídia. 1ª ed. Rio de Janeiro: Contracapa-Faperj, 2013, v. 1. 224p. brasileiras, 1884-1922 (São
Paulo: Edusp-Fapesp, 2008). Ana Paula Santos (Centro de As imagens do álbum são
E-mail: anapcs@usp.br. Artes Visuais da Funarte) propriedade do Acervo do
Gracie, Reila (org.). Julieta e Nicolina – duas escultoras Brasileiras. Textos de Paulo Ernandes Evaristo Lopes
Sérgio Duarte e Noemi Ribeiro. Rio de Janeiro: Prestígio, 2009, 132p. Museu Paulista da Universidade
(Museu Paulista/USP)
Leila Danziger Artista plástica, Flávia Urzua (Museu de São Paulo.
Fabris, Annateresa (org.). Crítica e modernidade. 1ª ed. São Paulo: ABCA-Imesp, 2006, pesquisadora e professora do Paulista/USP)
v. 1. Instituto de Artes da Universida- Geraldo Marcolini Este projeto foi contemplado
de do Estado do Rio de Janeiro. José Roberto de França Arruda pelo Edital Prêmio Funarte
Graduou-se em artes pelo Tomás Bonan Marcolini Mulheres nas Artes Visuais, em
Bueno, Maria Lúcia (org.). Sociologia das artes visuais no Brasil. 1ª ed. São Paulo: Senac,
2012, v. 1. Institut d’Arts Visuels d’Orleans, 2013/2014.
França. É doutora em história da
arte pela Puc-Rio, com IDEALIZAÇÃO © Todos os direitos reservados.
pós-doutorado pela Bezalel Amanda Bonan
Academy of Arts and Design Distribuição gratuita, proibida a
Jerusalem, Israel. Publicou  ORGANIZAÇÃO venda.
Diários públicos (Contra Amanda Bonan
Capa-Faperj, 2013), Todos os com Lia Baron e Nara Reis
nomes da melancholia (Apicuri,
2012) e Três ensaios de fala COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO
[poesia] (7Letras, 2012).  Nara Reis
E-mail: leiladanziger@gmail.com
FICHA CATALOGRAFICA

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22240-003 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil
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1.000 exemplares.
Impresso no Rio de Janeiro, 2014. COLETIVA
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