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COLETIVA PROJETOS CULTURAIS
Julho de 2014
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO, 3
Amanda Bonan e Lia Baron
JULIETA DE FRANÇA, 8
Ana Paula Cavalcanti Simioni
DETALHES DO ÁLBUM, 67
CRONOLOGIA, 87
INDICAÇÃO BIBLIOGRÁFICA, 98
9
APRESENTAÇÃO
Amanda Bonan e Lia Baron
Julieta de França, nascida em 1872, é uma escultora paraenseque construiu sua carreira
entre Belém, Rio de Janeiro e Paris. Apesar das singularidades de seu percurso profis-
sional, teve relativo reconhecimento público. Seu nome não figurou entre aqueles refe-
renciados pela história da arte brasileira. Felizmente, sua trajetória vai sendo revelada
pouco a pouco.
Em 2007, José Roberto Arruda França, sobrinho-bisneto da artista, doou ao Museu Pau-
lista um álbum que até entãoestava de posse de seus familiares. Trata-se de um objeto
muito especial (e de certa maneira pessoal), em que Julieta reconstrói, por meio da com-
pilação de fotografias, cartas, recortes de jornal e certificados, seu caminho percorrido
na tentativa de reconhecimento como artista, em uma época e contexto marcados pelo
protagonismo eminentemente masculino.
Ao ter conhecimento do álbum, interessou à Coletiva Projetos Culturais especialmente
a forma como Julieta cuidou de preservar sua carreira artística, coletando, recortando e
colando registros e avaliações críticas. Sua memória se constrói por meio de retalhos re-
ferentes à sua vida profissional e pública, recompostos segundo uma lógica afetiva, que
não obedece a estruturas cronológicas ou temáticas rígidas, mas que envolve o leitor/
apreciador em um fluxo de vida e de trabalho artístico pontuado por êxitos,fracassos,
tensões, reviravoltas. Para além de seu inegável valor historiográfico, o álbum se oferece
como objeto de apreciação estética e induz, na leitura, curiosidade sobre os movimentos
e ímpetos subjetivos que levaram a artista àquela particular composição.
Este livro torna públicas reproduções imagéticas do álbum, arquivos gentilmente ce-
didos pelo Museu Paulista. As fotos retratam as páginas da forma exata como elas se
oferecem à visão: certos recortes sobrepõem-se, outras peças estão dobradas. Os deta-
lhes que nos chamaram a atenção foram reproduzidos em maior escala na parte final
do livro. Todas as imagens passaram por um processo de tratamento, no intuito de
favorecer a sua visualização. Algumas páginas em branco não foram incluídas nesta pu-
blicação, assim como páginas de conteúdos similares. Este livro reproduz quase todas
as imagens do álbum de Julieta.
O original do álbum encontra-se atualmente indisponível para consulta presencial, ten-
do sido temporária e devidamente reservado pelo Museu Paulista, em razão de um
processo de reforma por que passa a instituição. Deve-se dizer que o trabalho editorial
incluiu a recomposição sequencial de imagens de páginas duplas, realizado segundo o
método de dedução, já que as folhas do álbum não foram numeradas pela artista. Re-
tratamo-nos de antemão se porventura a ordem aqui presente não obedecer à do objeto
original, mas não poderíamos perder a oportunidade de trazer a público tais fragmentos.
10 11
JULIETA DE FRANÇA
Ana Paula Cavalcanti Simioni
Julieta de França (1872-1951) foi uma artista pioneiraem seu tempo. Nasceu em Belém,
capital do Estado do Pará, em um momento em que a cidade enriquecia graças ao ciclo
da borracha e modernizava-se a partir dos exemplos parisienses. Filha do maestro Joa-
quim Pinto de França e deIdalina Pinto de França, recebeu os primeiros ensinamentos
artísticos com o pintor de origem italiana Domenico de Angelis, 1 que havia sido con-
tratado para decorar o Teatro da Paz. Em 1897, seguindo um destino tradicionalmente
reservado aos aspirantes à carreira artística no Brasil, dirigiu-se à Escola Nacional de
Belas-Artes–Enba, no Rio de Janeiro, então capital do país, a fim de completar seus
estudos.
Mas é importante lembrar que a formação naquela que era tida como a mais importante
academia nacional, se era prática comum para os homens, era então algo bastante novo,
e incomum, para as mulheres. Durante todo o período imperial (1822-1889) o “sexo
frágil”, como era então denominado, não era aceito na instituição, como ademais em
todas as escolas consideradas superiores no Brasil. Apenas em 1892, já em tempos de
República, com a lei que sancionava a abertura dos cursos superiores às mulheres é que
elas puderam passar a usufruir de uma formação equiparável à dos homens.2 Excluídas
de uma sólida formação artística e do sistema de exibições e premiações organizado
pela academia, as artistas eram tidas, então,como simples amadoras.
A ideia do amadorismo como uma condição feminina é frequente na crítica de arte de
finais do séculoXIX e inícios do séculoXX. No pioneiro livro de Félix Ferreira, Belas-ar-
tes: estudos e apreciações (1885), as artistas doperíodo foram incluídas em uma categoria
específica: a de amadoras, enquanto os homens eramdescritos como artistas ou como
alunos. O amadorismo trazia implícitas conotações negativas: aideia de refinamento
(em oposição a trabalho árduo), frivolidade (versus a arte séria dos homens), de au-
sência de profissionalismo, além de desconhecimento técnico. Vale notar que o termo
era comumenteempregado para mulheres, tendo comocontraponto a noção de artista,
conjugada sempre no masculino, com isso, trata-se de uma categoria de classificação
sexuada e relacional. 3 Vistos como naturalmente diversos e desiguais, acreditava-se que
homens e mulheres tivessem habilidades físicas e intelectuais determinadas por na-
tureza; enquanto elas eram detalhistas, sensíveis e imitativas, eles eram dotados das
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1 Domenico de Angelis, pintor originário de Roma, formado na Academia di San Luca, notabilizou-se pelas pinturas sacras. Por essa razão foi convidado por Dom Antônio de
Macedo atrabalhar na Igreja de São Sebastião. A seguir realizou as pinturas decorativas para o Teatro Amazonas. Em 1900, já doente, retornou à Itália, morrendo em seguida.
2 O decreto 1.159 de 3/12/1892 afirma: “É facultada a matrícula aos indivíduos do sexo feminino, para os quais haverá nas aulas lugar separado”. Ver: Colleções das leis da Repúbli-
ca dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1892.
3
Uma discussão mais aprofundada sobre essa questão pode ser encontrada em: SIMIONI, Ana Paula C. Eternamente amadoras: artistas brasileiras sob o olhar da crítica.In:
FABRIS, Annateresa (org.). Crítica e modernidade. São Paulo: ABCA-Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. Ou uma versão mais reduzida em:SIMIONI, Ana Paula C.
“Profissão artista:mulheres, atividades artísticas e condicionantes sociais em finais do Oitocentos”. Anais do XXIV Colóquio do CBHA. Disponível em<http://www.cbha.art.br/
coloquios/2004/textos/10_ana_paula_simioni.pdf>. Acesso em 25/4/2014.
14 15
faculdades criativas, simbólicas e intelectuais; nesse sentido eram eles capazes de criar dispostas a enfrentar tabus sociais bastante arraigados, com vistas a se tornarem artistas
as grandes obras do espírito, ser “geniais”, ao passo que elas estavam fadadas àcondição profissionais, naquela modalidade tida como imprópria às mulheres, a escultura.
de serem vistas como eternamente amadoras. As crenças de época não possibilitavam a
Algum tempo depois, no final de 1900, Julieta de França apresentou-se àquele que
emergência de mulheres geniais.4
era considerado o prêmio mais importante outorgado pela Academia, o Prêmio de
Ao pleitear o ingresso na Enbaem 1895, Julieta de França integrou as fileiras das pri- Viagem ao Exterior. Os alunos premiados recebiam uma bolsa para continuarem sua
meiras mulheres brasileiras a terem acesso a uma formação artística completa, capaz de formação fora do Brasil, sendo a Itália e, principalmente, a França os destinos mais
contestar o estigma do amadorismo. Inicialmente, cursou como aluna livre as discipli- procurados . 9 Assim, na condição de candidata única, a artista apresentou-se às provas
nas de pintura e escultura; mas aos poucos vai se destacando nas exibições internas da abertas para a turma de escultura, e obteve parecer favorável da comissão. 10 Com isso,
escola 5 e ganhando fama fora da instituição, chegando a expor com sucesso de público tornou-se a primeira mulher a conquistar o prestigioso prêmio de viagem no Brasil.
no salão da Mina Musical, em Belém do Pará, em 1898. 6 Nesse mesmo ano, ela se ma-
Em 1901, seguindo a indicação da comissão avaliadora, Julieta desembarcou em Paris e
triculou na aula de modelo vivo. Esse fato, aparentemente banal, merece destaque. Des-
matriculou-se na Académie Julian, uma academia privada, inaugurada durante a déca-
de a Revolução Francesa, com a reorganização do sistema acadêmico na França, tendo
da de 1870, que se consagrou internacionalmente pelos métodos de ensino, pelo grupo
à frente Jacques Louis David, 7 a pintura de história passou a ser altamente valorizada,
seleto de docentes contratados e, especialmente, por ser um espaço onde as mulheres
considerada o gênero máximo a que os artistas deveriam se dedicar. Nelas, o corpo do
poderiam acessar o modelo vivo que lhes era vetado nas instituições oficiais, e assim
herói constituía um elemento fundamental; cristalizando as virtudes morais, os dis-
se formarem como artistas competentes. 11 Em 1902, Julieta de França matricula-se
cursos políticos almejados, o ideário a ser comunicado aos espectadores. A fim de bem
também no efêmero Institut Rodin, uma escola particular voltada para a formação de
representá-lo, os pintores se dedicavam intensamente ao estudo dos modelos vivos, dos
escultores, na qual ensinavam além do mestre que emprestava seu nome, seu principal
nus. No entanto, tal práticaera vista como inadequada às mulheres; não se considerava
discípulo, Antoine Bourdelle, reputado escultor que se ocupava das turmas femininas.
aceitável que elas fossem expostas a corpos despidos. Por tal razão as academias france-
sas, e todas aquelas que seguiram seu modelo, como a brasileira, intitulada Academia A qualificação obtida em Paris logo se fez notar. Em 1903, consegue ter uma obra aceita
Imperial de Belas-Artes, fundada em 1826 pela famosa Missão Artística Francesa, não noSalon da Société Nationale de Beaux Arts, o qual ocupava então o posto de principal
aceitavam mulheres entre seus discípulos. Com isso, todas aquelas moças ansiosas por salão internacional de exposição de artistas. 12 Tal conquista se repete no ano seguinte,
tornarem-se artistas se depararam, ao longo de todo o século XIX, com a impossibili- quando exibe uma obra que chama a atenção da crítica. Uma matéria assinada por
dade de terem acesso à formação necessária para se realizarem nos gêneros máximos Henri Dac para o jornal Univers,de Paris, a destaca logo depois de mencionar as obras O
propagados pelo sistema, restando-lhes gêneros menos valorizados, como a pintura de pensador, de August Rodin;Mineur, de Constantin Meunier e, a seguir, frisa a qualidade
gênero e as naturezas-mortas.8 de O sonho do filho pródigo, feito pela escultora brasileira. 13 Esse reconhecimento por
parte da crítica francesa era tão importante que Julieta manteve a matéria em seu álbum
O caso das escultoras é ainda mais dramático. Além dos obstáculos comuns àqueles
e provavelmente enviou outra cópia para o diretor da Academia brasileira, o poderoso
com que se deparavam as colegas pintoras, deviam elas ainda lidar comos estigmas
escultor Rodolfo Bernardelli, que manteve o cargo por 25 anos, entre 1890 e 1915. 14 Sua
de época. Acreditava-se quea escultura era uma modalidade essencialmente mascu-
resposta estampa as dificuldades que ela enfrentava:
lina, por sua exigência de força física e vigor, e com isso, totalmente inadequada às
mulheres,vistas então como “naturalmente frágeis e delicadas”. Tais sentidosamplia-
[...] Tenho presente sua carta de 17 de maio pp por ella posso ver como seu espírito
vam-se no Brasil, país que muito recentemente abolira a escravidão (1888) e tendia a
estava tranquilo, bom é isso e Deus queira que isso seja por muito tempo. Recebi
ver com muito preconceito o trabalho manual.Assim, quando observadas diante desse
o jornal que cita seu nome ao pé d´aquele grande mestre Rodin, a visinhança é
contexto, a matrícula de Julieta de Françae a da escultora Nicolina Vaz de Assis, nas
perigosa e precisa tomar cuidado, lembre-se da fabula do Icaro [...]. 15
aulas de modelo vivo,adquirem uma ousadia particular. Ambas demonstravam estar
—————————————————
9 A esse respeito ler:SIMIONI,Ana Paula C. “A viagem a Paris de artistas brasileiros no final do século XIX”.Tempo Social, 17(1):343-366. São Paulo, jun. 2005 (online);VALLE,
Artur. “Pensionistas da Escola Nacional de Belas Artes na Academia Julian durante a 1ª República”. 19&20, 3. Rio de Janeiro, nov. 2006 (online). Link: http://www.dezenovevinte.
————————————————— net/ensino_artistico/academia_julian.htm
4 A esse respeito ler: NOCHLIN, Linda. “Why there be no great women artists?” Art and Sexual Politics. 2ª ed. New York: Macmillan Publishing Co., 1973. (1971, 1a 10 A esse respeito consultar SIMIONI.Profissão artista;Op. cit.,p. 167-69.
ed.).
5 “Na sala dos produtos escolares de senhoras merece honrosa menção a senhorita Julieta de França. O seu progresso manifesta-se em pequena série de estudos largos, 11 Sobre a Académie Julian, consultar, entre outros: WEISBERG, Gabriel & Becker, Jane (orgs.). Overcoming All Obstacles: The Women of Académie Julian. New York-London:
rápidos, vivos [...]”, in: Artes e Artistas. Escola Nacional. Rio de Janeiro, 17 de dez 1896.In:DE FRANÇA, Julieta. Souvenir de ma carrière artistique. Acervo do Museu Paulista da Rutgers University Press, 2000.
12 Nesse mesmo ano envia à X Exposição Geral de Belas-Artes a escultura Cupido, com a qual obtém medalha de prata de segunda classe.
Universidade de São Paulo.
6 A esse respeito consultar: DE FRANÇA, Julieta. Souvenir de ma carrière artistique.Op.cit. 13 Documentação no álbum Souvenir de ma carrièreartistique. Univers, Paris, 14/4/1904.
7 Jacques Louis David (1748-1825), notável pintor francês, representante principal do neoclassicismo na França, foi o diretor da Academia durante a Revolução Francesa, sendo 14 Ao comentar o Salão de 1905, o importante crítico da época Gonzaga Duque explicita o poder detido por Bernardelli,diz: “[...] O Sr. Professor Bernardelli, director perpetuo e
responsável pela reorganização da instituição. Foi ainda o mais importante pintor durante o período bonapartista. Com a queda de Napoleão Bonaparte exilou-se em Bruxelas. senhor absoluto da Escola de Bellas Artes, não sei se commendador da varias ordens estrangeiras, conselheiro esthetico do governo e outras instituições, monopolisava todas as
8 Na França, a Academia só aceitará as mulheres como alunas a partir de 1897. A esse respeito ler: SAUER, Marina.L´entrée des femmes à l´École des Beaux Arts, 1880-1923. Paris: admirações e todos os trabalhos[...]”.In: Contemporâneos. Rio de Janeiro: Typ. Benedicto de Souza, 1929. (grifos meus).
15 Carta de Rodolfo Bernardelli para Julieta de França, datada de 27/06/1904.In: Souvenir de ma carrière artistique.Op. cit.
Ensba, 1990.
16 17
Bernardelli não a elogia ou parabeniza, mas alerta-a de que talvez, como na fábula de Uma matéria de jornal, publicada pela Fon Fon em 1908, cuidadosamente preserva-
Ícaro, pretendesse voar mais alto do que era capaz e com isso sua queda seria ainda da pela artista em seu álbum permite-nos compreender o ocorrido. 19 Ela nos conta
maior. Esse desestímulo por parte do antigo mestre e diretor da Enbafoi constante du- quedepois de retornar de seu estágio no exterior, Julieta de França candidatara-se ao
rante sua estada na França. No álbum Souvenir de ma carrière artistique encontram-se concurso que escolheria o monumento comemorativo à Proclamação da República bra-
diversas cartas trocadas entre professor e aluna que estampam uma relação bastante sileira. Provavelmente trata-se da maquete mencionada, em tom elogioso por Gonzaga
tensa. De um lado, Julieta de França reclamava das condições precárias em que ela, bem Duque na crítica citada anteriormente. No entanto, a obra apresentada pela artista foi
como outros alunos brasileiros viviam no exterior, graças aos valores exíguos pagos aos desclassificada pelo júri. Ao saber do resultado, não se resigna. Julieta de França retorna
bolsistas, aos recorrentes atrasos nos pagamentos, à falta de subsídios para fundirem à Europa com sua maquete e solicita avaliações de seus antigos professores, mestres
suas obras ou transportarem-nas ao Brasil; tais queixas se transformavam nas letras de consagrados mundialmente. Após receber julgamento favorável de 57 grandes nomes,
Julieta em ameaças de desistência do estágio. 16 Em resposta, o diretor, em tom pater- retorna ao Brasil e exige uma retratação por parte da comissão nacional. Tal evento sig-
nalista e autoritário, rechaçava as ameaças da estudante, lembrava-a de seus deveres nificava, para qualquer artista, independentemente do gênero, uma afronta para com o
como pensionista e artista, ao mesmo tempo em que a apontava como mulher nervosa, júri local, presidido pelo mais importante escultor patrício e, também, o todo-poderoso
ameaçadora, traidora, sutilmente deixando entrever os riscos ao seu futuro como artista diretor da Academia até 1915, Rodolfo Bernardelli, com quem ela já havia tido muitas
caso levasse adiante o escândalo prometido. 17 rusgas durante seu estágio em Paris. Julieta de França não apenas recusou seu veredito
como quis, ao levar um livro assinado por outros artistas, questionar sua legitimidade
Em 1906, Julieta de França retorna ao Brasil, depois de uma temporada de muito apren-
no campo acadêmico brasileiro e internacional, ao trazer textos rubricados, entre ou-
dizado e relativo reconhecimento naquela que era então tida como a “capital artística do
tros, por Auguste Rodin.
mundo”. Participa da XIII Exposição Anual de Belas-Artes, com um conjunto de sete
obras, alguns bustos (os quais eram reveladores de que aos poucos conquistava uma O caso na época teve grande repercussão, sendo frequentemente noticiado pela im-
clientela particular), gessos, maquetes e a obra final de seu estágio na França, intitulada prensa. 20 O episódio repercutira tanto porque reverberava uma série de ousadias: pri-
Rapte eternel, um casal em bronze fundido claramente inspirado em O beijo, de Rodin. meiramente, desafiavam-se a autoridade e a competência de professores e do diretor
Sua participação foi detalhadamente comentada por Gonzaga Duque, o mais importan- da Academia, o que era ainda mais atordoante por ter sido levado adiante por um ex-
te crítico de então, realçando suas qualidades e apontando os defeitos: -aluno premiado. A isso se acrescenta o fato de exibir atestados de afamados artistas
internacionais, venerados pela academia brasileira, certamente subsidiária da francesa,
O que penso? Com franqueza, inclino-me synmpathicamente para a obra dessa
referência ainda absoluta acerca da “grande arte”. Por fim, tal árdua batalha fora travada
esculptora, a sua predileção pela nudez é uma prova de sua applicação. A grande
por uma mulher que, expondo publicamente as mazelas da academia pela imprensa,
esculptura é o nu. Mas, a Sra Julieta, não sei porque, não se dá ao trabalho de
rompia com o esperado recato feminino. Tantas transgressões trouxeram consequên-
amadurecer as suas concepções, parece que tem a soffreguidão de produzir. [...]
cias claras para a artista: desde então ela não mais figurou nos salões nacionais; desapa-
A inspiração fica na primeira maquette. Se o gênio a bafeja, essa maquette será
receu, simplesmente, da vida artística centralizada no Rio de Janeiro. Pode-se dizer que
extraordinária, mas se a ideia apenas resultar de uma especial disposição de tem-
Julieta de França foi expulsa da história da arte brasileira, tornando-se mais uma lacuna
peramento, é preciso pensar muito, fazer e refazer, estudar pacientemente para
do que uma presença na nossa memória coletiva.
encontrar a sua expressão exacta. 18
Desde esse momento, a escultora passou a trilhar uma trajetória marginal. Suas parti-
A atenção da crítica somada à obtenção da medalha de prata são termômetros de sua cipações como artistas serão doravante esporádicas e ligadas especialmente ao circuito
plena inserção nos meios artísticos oficiais. Mas, curiosamente, é justamente após esse artístico de Belém do Pará, sua terra natal. Lá, estava longe da rede de influências da
ponto de sucesso que, segundo a documentação oficial, sua trajetória se esgota. A partir Academia sediada no Rio de Janeiro, tutelada por Rodolfo Bernardelli; além disso, em
de então nunca mais Julieta de França figurará nas exposições organizadas pela aca- Belém, contava com o apoio do irmão, o deputado, Artur França, bem como com a sim-
demia nacional. O que poderia ter ocorrido para que uma artista em notável ascensão patia da crítica de arte local. Assim, em 1912, esculpe o busto do Barão do Rio Branco,
tenha simplesmente desaparecido do cenário artístico de seu tempo? o qual será patrocinado pela Prefeitura de Belém. Julieta de França finalmente obtinha
uma capa de jornal, capaz de eternizar sua imagem. 21 Durante a década de 1920, foi
aprovada em concurso como professora de modelagem no Instituto de Surdos e Mu-
dos, no Rio de Janeiro,o que consistirá doravante em seu ganha-pão principal, mas
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16 Pode-se acompanhar essas questões por meio das matérias de jornais assinadas por Joafnas que constam no referido álbum.JOAFNAS, “Cartas de longe”. Paris, 14 de
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jun.1902, s. ed..In: Souvenir de ma carrière artistique. Op. cit.Segundo uma matéria publicada por Joafnas, a pensão da artista ameaçara despencar de 500 para 100 francos por
19 “Uma artista brazileira”.Fon Fon, 14(11), 11/07/1908.In: Souvenir de ma carrière artistique. Op. cit.
mês, valor suficiente apenas para o pagamento de um único modelo. Segundo o autor, por essa razão a artista teria ameaçado retornar ao Brasil, descumprindo suas obrigações
como pensionista. JOAFNAS. “O sonho do filho pródigo”. Folha do Norte, 14 de agosto de 1904. In: Souvenir de ma carrière artistique.Op. cit. 20 Relatos sobre a contenda entre a escultora e o júri do concurso podem ser encontrados em: “Uma artista brasileira”.Fon Fon!11/07/1908; “O monumento da República”.Jornal
17 Consultar correspondência no álbum Souvenir de ma carrière artistique.Rodolfo Bernardelli, 10 de julho de 1901. do Commercio. Juiz de Fora, 16/07/1908.
18 Gonzaga Duque Estrada. Contemporâneos. Op. cit., p. 145-146. 21 Trata-se da capa de O Estado do Pará, c.1910. Encontrada em Souvenir de ma carrière artistique.Op. cit.
18 19
não era algo capaz de fazer seu nome repercutir nos meios artísticos.Em 1921, volta a como objeto, impondo-se um desafio, o de narrar a própria história, por meio de ele-
se destacar propriamente como escultora, novamente na imprensa do Pará, afinal ela mentos selecionados e reagrupados segundo uma lógica compreensiva prévia.
conquistara um antigo sonho: obteve o primeiro lugar no concurso público lançado
Nesse álbum, Julieta propôs um sentido à sua biografia, ao seu passado, recomposto
pelo Estado para o monumento em homenagem ao marechal Floriano Peixoto.Esses
por meio de fontes escritas, sobretudo artigos de jornais rubricados por terceiros, ou
acontecimentos que marcaram sua biografia podem ser tomados como exemplares das
ainda fotos de suas obras, bem como algumas cartas íntimas. Embora o álbum seja um
dificuldades e possibilidades com que as artistas mulheres de sua geração se defronta-
conjunto de discursos (escritos e visuais), escolhidos, colecionados, colocados em uma
ram. Diferindo da maior parte delas, que foram excluídas de nossa memória coletiva,
ordem por aquela que o organizou, não há uma única linha por ela escrita. Não é um
o álbum elaborado por Julieta de França, diligentemente preservado por sua família e
livro de memórias, muito menos de confissões, e nem uma autobiografia convencional,
pelo Museu Paulista da USP, nos permite reconstituir, por meio dos ricos fragmentos
naquelas em que narrador e herói espelham-se uns nos outros. É interessante frisar que
deixados, quais eram as possibilidades de realização e os muitos impasses enfrentados
a artista não “escreve” ou “descreve” sua vida no álbum, mas na maneira com que sele-
pelas artistas daquele tempo. 22
ciona conscientemente determinados materiais, os guarda e os arranja, ela termina por
“inscrever” um sentido à sua vida. E esse sentido parece ser o de narrar uma trajetória
de artista que almeja um reconhecimento público.
Souvenir de ma carrière artistique: uma autobiografia muito particular
O álbum não está organizado a partir de um princípio cronológico linear. Antes, o prin-
Em meu doutorado defendido em 2005, a pesquisa sobre Julieta de França se encerrava
cípio de estruturação parece ser mais temático do que temporal. Inicia-se com diplomas
no episódio envolvendo o concurso comemorativo à maquete da República de 1908.
e cartas dos períodos iniciais de sua formação, em Belém e depois no Rio de Janeiro;
Isso porque até aquele momento eu estava trabalhando com a documentação “oficial”
ao que se seguem documentos concernentes à obtenção do Prêmio de Viagem ao Ex-
disponível, aquela produzida pela Escola Nacional de Belas-Artes e pela imprensa que
terior.Logo, a narrativa se quebra, há notícias sobre os prêmios obtidos como aluna da
a orbitava, centralizada no Rio de Janeiro. Para esse corpus documental, a artista havia
Enba entre 1897 e 1898 e, a seguir, uma longa série de ricas matérias de jornais, cartas,
sido “sepultada” dos meios artísticos locais depois da contenda, e com isso desapare-
críticas e fotografias relacionadas ao período de cinco anos em que ficou em Paris. A
cera sem deixar registros. Só algum tempo depois tive a grande sorte de conhecer um
partir desse momento, há uma nova quebra de linearidade na narrativa. A artista parece
de seus descendentes, o professor José Roberto de França, o qual, muito amavelmente,
passar a organizar os recortes de jornais a partir de um novo tema, o das encomendas
localizou entre os parentes o precioso álbum intitulado Souvenir de ma carrière artisti-
públicas recebidas. Inicia com o busto do Barão do Rio Branco (1912), a seguir o mo-
que. Sem dúvida trata-se de uma fonte única de informações sobre a artista, sobre seu
numento em homenagem ao marechal Floriano (1920/21), para depois retornar a uma
meio cultural, sobre os impasses que os artistas e especialmente as mulheres artistas
série de matérias de jornais acerca do famigerado processo em torno da sua desclassifi-
enfrentaram em seu tempo.
cação no concurso para o monumento em comemoração à República (1908). Julieta de
Souvenir de ma carrière artistique consiste em um álbum de dimensões médias (25 x França parece ter cuidadosamente selecionado e preservado as matérias veiculadas pela
30cm), em elegante capa de couro e tecido. Em seu interior há aproximadamente 100 imprensa que foram favoráveis a seus pleitos. 24
folhas, muitas delas vazias; as demais são ocupadas por 76 recortes de jornais, todos
Ainda que tal material tenha permanecido por muito tempo em um circuito íntimo e
versando sobre a carreira da artista (exposições, crítica obras, encomendas públicas re-
privado, ele parece ter sido destinado a cumprir uma função específica: a de criar uma
cebidas, etc.). Além disso, pode-se encontrar ainda 18 cartas, algumas privadas e outras
versão pública de sua vida. Mesmo contendo algumas cartas pessoais esparsas em seu
trocadas com figuras públicas; 20 fotografias, sendo a maior parte de obras suas e três
interior, o conjunto é composto centralmente por documentos selecionados, colados
de pessoas intimamente ligadas à artista; nove diplomas e programas escolares e, final-
e dispostos de sorte a narrar os êxitos da trajetória da artista. Nesse âmbito, pode-se
mente, seis certificados.
vislumbrar um sentido estratégico em sua feitura, pois, ao escrever sua trajetória a
Acredito que estejamos diante de um tipo muito particular de autobiografia. Sucin- partir das falas e textos de críticos e jornalistas, Julieta de França parecia conferir mais
tamente pode-se definir esse gênero como “a biografia de uma pessoa escrita por si “objetividade” aos fatos que permearam sua carreira.Caso as palavras fossem as suas, o
mesma”. 23 Diferindo da biografia, que constitui uma narrativa global e exterior, na qual álbum poderia ser tomado por um documento subjetivo, uma confissão de uma artista
o historiador encontra-se distante de seu modelo, a autobiografia implica uma grande incompreendida em busca de consideração. Já as notícias de jornais aparentam uma
transformação. Nesta, artista e modelo coincidem, isto é, o biógrafo toma-se a si próprio
—————————————————
24 Depois das matérias dedicadas à disputa iniciada em 1906, o caderno segue com os seguintes tópicos: O monumento a Laguna, esboçado pela artista, desclassificado no
concurso levado a cabo em 1921. Tal ano constitui o marco final, em termos temporais da série. Mas o álbum traz, ainda, outro percurso temático que continua após o marco
————————————————— cronológico: a realização de uma maquete que concorreu ao concurso para o mausoléu de Afonso Pena (1910) e dois exemplos de medalhas comemorativas realizadas pela
22 Alguns dados daí constantes puderam ser incorporados no livro, já citado. Para uma análise mais pormenorizada do álbum ver: SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. Souvenir de artista. A passagem por Paris e os documentos sobre o Sonho do filho pródigo (anteriormente referidos neste artigo); matérias sobre o sucesso da artista quando aluna da Escola
Nacional de Belas-Artes, em 1899; e uma série de documentos avulsos, cartas íntimas, fotos de sua casa no Rio de Janeiro, fotos de sua filha, pequenos cartões enviados pelo
ma carrière artistique. Uma autobiografia de Julieta de França, escultora acadêmica brasileira.São Paulo, Anais do Museu Paulista, vol. 15, n.1,jan/jun. 2007, p. 249-278. presidente Hermes da Fonseca, em 1914, convidando-a para festas em seu palácio, dado que Julieta de França era professora de escultura de sua esposa, a caricaturista Nair de
23 STAROBINSKI, Jean. “The Style of Autobiography”.In:OLNEY, James (org.).Autobiography. Essays Theoretical and Critical. New Jersey: Princeton University Press, 1980, p. 14. Teffé e ainda certificados de cursos e participações em salões esparsos.
20 21
suposta imparcialidade, além de uma dimensão de reconhecimento público, por ela tão
almejada.
Dessa forma, Souvenir de ma carrière artistiqueconstitui uma autobiografia muito parti-
cular. Ele difere das modalidades autobiográficas praticadas pelas mulheres de seu tem-
po. Segundo a historiadora Michelle Perrot, os relatos escritos por mulheres do passado
incidem preferencialmente sobre o domínio do privado, “o lugar de felicidade imóvel,
cujo palco é a casa, os atores, os membros da família, e as mulheres, as testemunhas e
as cronistas”. 25 Dado que as autoras foram secularmente excluídas dos espaços públi-
cos, dos fóruns de decisão política na ordem burguesa e assim confinadas aos espaços
privados e domésticos, tenderam a descrever os lugares sociais que podiam frequentar,
o que se traduziu por uma atenção aos acontecimentos íntimos de suas vidas.
Souvenir de ma carrière artistique distancia-se por completo dessas modalidades de auto-
biografias “femininas”. Sua vida é narrada de um modo muito diverso: opta por destacar
sua atuação como artista, dedicada à vida pública. A artista seleciona documentação con-
cernente à sua participação em salões, em exposições e em concursos de monumentos
públicos. As poucas cartas coladas propositadamente no álbum são justamente as me-
nos privadas, aquelas trocadas com o professor Rodolfo Bernardelli durante seu está-
gio como pensionista no exterior. Assim, o álbum parece responder a uma motivação
fundamental: o desejo de ser reconhecida como uma artista de mérito, profissional, que
não obteve o lugar público almejado em função de questões alheias à qualidade de sua
obra. Os fragmentos cuidadosamente selecionados, alinhavados e encaixados possibi-
litam ao leitor compor uma imagem complexa ao final, um autorretrato da artista que
permite ultrapassar uma história até então silenciada, esquecida, minimizada, como
talvez seja a de tantas outras mulheres artistas que ainda hoje desconhecemos. A publi-
cação oportuna desse valioso conjunto documental permite que as memórias de Julieta
de França, artista paradigmática de seu tempo, transformem-se em história.
—————————————————
25 PERROT, Michele. As mulheres e os silêncios da história.Bauru: Edusc, 2005.
22 23
Sugiro um lugar para a leitura deste livro. Vá ao Jardim Botânico no Rio de Janeiro e
siga por entre as palmeiras imperiais da aleia principal. Passe pelo Chafariz das Mu-
sas, pela gigantesamaúmae, quase ao fim, quando os ruídos trazem de volta o entorno
da cidade, você encontrará um portal ladeado de bambuzais.Atravesse-o e observe sua
grandiosidade pelo avesso. Creio que os fundos do portal abrigam esperanças extra-
viadas de nossa história da arte anterior ao modernismo.À sombra dessa construção,
marco da presença tão contraditória do neoclassicismo no Brasil, as lembranças de Ju-
lieta de França encontram espacialidade privilegiada. Quantas vezes elao terá atraves-
sado acreditando que o futuro – pessoal e coletivo – estaria à altura de suas ambições?
Embora comprometida com os ideais da República, a produção artística de Julieta surge
da instituição que fez erguer aquele portalem 1826 no centro do Rio de Janeiro – a
Academia Imperial de Belas-Artes, transformada em Escola Nacional de Belas-Artes
com a Proclamação da República, mudança que não implicou uma renovação artística
efetiva.A presença desse elemento arquitetônico desterrado no Jardim Botânicoé um
dos signos mais eloquentes da existência desde sempre precáriada instituição, cuja
função seria transmitir e traçar rumos para a arte no país. Aquela ruína é o que resta
da construção projetada por Grandjean de Montigny edemolida112 anos depois de sua
inauguração,semjamais alcançar destacada projeçãosimbólica ecompletude física.
Folhear o álbum de Julieta de França desperta uma emoção semelhante à de percorrer
ruínas; nosso olhar contemporâneo, marcado pela valorização da memória a partir das
últimas décadas do século passado, encanta-se com a nova configuração dos documen-
tos produzida pelo tempo e pelo acaso. Em belo texto sobre os Carceri, de Piranesi,
Andreas Huyssen sugere que “temos nostalgia das ruínas da modernidade porque elas
ainda parecem manter uma promessa que desapareceu em nossa época: a promessa de
um futuro alternativo”. 1 Embora fosse preciso refletir em que medida a arte e a cultura
brasileira se inscrevem nesse pronome coletivo da frase de Huyssen, certo é que a arte
moderna no Brasil se instaura sem relação ou nostalgia da produção artística do século
XIX, aparentemente incapaz de nos acenar algum futuro, mas apenas nos reter em um
passado obsoleto. A inteligência estratégica de nossos modernistas prescreveu que o
modernismoignorasse a produção acadêmica e ouvisse os apelos da arte colonial, sobre-
tudo Aleijadinho, que para Mário de Andrade nos atualizava com “toda uma história”.
Segundo o crítico paulista, Aleijadinho “evoca os primitivos itálicos, bosqueja a Rena-
scença, se afunda no gótico, quase francês por vezes, muito germânico quase sempre,
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1 Huyssen, Andreas. A nostalgia das ruínas.In: Culturas do passado presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória.Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto-
Museu de Arte do Rio, 2014, p. 93.
24 25
espanhol no realismo místico”.Da produção acadêmica do século XIX, apenas Almeida Décio Villares e Eduardo de Sá foram artistas politicamente militantes naqueles anos,
Júnior parece-lhe capaz de nos acenar algum futuro e “profetizar para a nacionalidade ambos comprometidos com o positivismo, como sabemos, uma das correntes que dis-
um gênio plástico”. É inegável que os academicismos que se sucederam ao longo do putou a definição do regime republicano.
século XIX apresentam obras tímidas, problemáticas sob os mais diversos aspectos,
Mas não me parece exagerado afirmar que o fracasso do monumento de Julieta de
mas quenos constituemjustamente em sua fragilidade, expondo carências e impasses
França não é maior do que o fracassode grande parte dos monumentos efetivamente
ainda hoje insolúveis. Recentemente, aarte oitocentista brasileiravem suscitando reav-
construídos em nossas cidades. De que modo fruímos a presençade tantos Florianos
aliações e provocando talvez certa “nostalgia reflexiva”, para usar ainda a expressão de
e Deodoros erguidos sobre pedestais em nossas praças senão como formas que ao sol
Huyssen, aquela capaz derevelar“que o pensamento crítico e a saudade não são opos-
da tarde nos projetam as sombras de um passado vago? Talvez apenas a figura de Tira-
tos, da mesma forma que as memórias afetivas não desobrigam alguém de compaixão,
dentes tenha se firmado(mais por obra de pintores do que de escultores)como símbolo
discernimento ou reflexão crítica”. Não se trata de sonhar com uma suposta grandeza
de comunhão nacional – esquartejado e ambíguo, entre herói e santo –, atuando sobre
perdida, pois essa nunca aconteceu, mas de resgatar promessas e ideais não realizados,
nosso sempre tão frágil civismo republicano. Julieta de França ainda não era capaz de
ouviras esperanças extraviadas daqueles tempos.
perceber odeclínio da prática dos monumentos, seu acentuado desprestígio, detectado
com humor e ironia por Robert Musil, em 1932,quando o escritor austríaco afirmounão
haver nada mais invisível do que os monumentos públicos. Musilse referia aos mon-
Não sei se no melhor de seus sonhos, Julieta de França imaginou que o álbum Souvenir
umentos tradicionais, produzidos pela cultura histórica do século XIX, essa mesma
de ma carrière artistique seria publicado um dia, mais de cem anos depois dos mo-
tradição a qual a República brasileira recorria na tentativa de dar visibilidade a valores
mentos mais intensos e conturbados de sua vida artística. Embora sua aspiração fosse
que “formassem a alma” do povo.Há tempos sabemos que a permanência física dos
enquadrar-se no precário sistema da arte acadêmica nacional, em vigência ainda nas
monumentos não os impedem de se tornarem opacos e hieroglíficos. A perda do sen-
primeiras décadas do século XX, o embate enfrentado pela artista para legitimar um de
tido original de sua fundação acarreta sua transmutação em forma, marco visual capaz
seus projetos artísticostemaspectos marcadamente atuais. Ao desafiar a soberania do
de agir na construção mental que fazemos da cidade, construção esta que nos permite
júri que em 1906 recusou sua maquete para um monumento à República, Julieta de
a orientação espacial, mas é incapaz de gerar sentido histórico. A perda de sentido dos
França lança luz sobre os intricados processos de legitimação da arte e suas condições
monumentos orienta um dos mais belos fragmentos de Walter Benjamin, que em “Rua
de produção naqueles anos.
de mão única” nos fala sobre o aspecto indecifrável do obelisco de Luxor deslocado na
A narrativa construída em seu álbum, a partir de documentos cuidadosamente selecio- década de 1830 do Cairo para a Place de la Concorde, em Paris. “Nenhum dentre dez
nados, não demonstra sua implicação no debate político travado em seu tempo. Tudo mil que passam por aqui se detém; nenhum entre os dez mil que se detém pode ler a
parece se dar no campo artístico, onde sabemos que o engajamento político talvez fosse inscrição”. Seria preciso diferenciar o esquecimento produzido pelo excesso de história,
decisivo para a aceitação ou não da obra proposta. Em seu monumento, Julieta faz uso que percebemos nas cidades europeias, daquele que é fruto de sua ausência, como
da alegoria feminina, que domina a simbologia cívica francesa da Primeira à Terceira acontece entre nós, mas assim sobrecarregaríamos o álbum de Julieta de sentidos de-
República.Embora seja difícil avaliar os detalhes do monumento a partir das fotografias masiados. É preciso respeitar as lacunas, apagamentos e vazios que se inscreveram em
presentes no álbum, o endereçamento genérico à República era bem pouco capaz de seu livro; respeitar sua obra é dimensioná-la em sua justa modéstia.
servir aos interesses de qualquer uma das correntes que se debatiam tentando firmar-se
Os documentos que integram o álbum são escritos em uma língua queembora com-
como fundadoras da República brasileira. A jovem nação precisava de elementos que
preensívelnão é mais a nossa, produzindo certa estranheza e esforço de decifração. A
buscassem afastar claramente o imaginário monarquista, povoando-o com valores e
caligrafia presente em vários papéis guarda a memória de gestos realizados por corpos
heróis republicanos. Por outro lado, como artista mulher, a situação de Julieta de Fran-
versados em disciplinas da qual nos afastamos. Avançar entre as páginas deste álbum é
ça era especialmente audaciosa. Como poderia ela firmar-se como escultora de monu-
percorrer um espaço esquecido, situado entre o público e o privado,e que subitamente é
mentos, sempre intrinsecamente ideológicos, quando o direito ao voto foi concedido às
aberto à visitação. Sua leitura é um esforço semelhante ao de quem retira os lençóis que
mulheres em nosso país apenas em 1932? Vale lembrar que a opacidade política não
recobrem os móveis de uma sala que, em vão, aspirou à grandeza. Não sabemos bem o
era uma singularidade da atuação de Julieta. Segundo José Murilo de Carvalho, apenas
que protegem e talvez jamais saibamos ao certo. Os objetos perderam a forma. Como
no portal da Academia Imperial de Belas-Artes, a entropia chegou antes do auge. Uma
pátina vigorosa depositou-se sobre tudo euma camadade distância recobre agora as im-
agens de suas esculturas. Subtraídasdo contexto da arte acadêmica em sua frágilrelação
————————————————— com o imaginário republicano, asfotosno álbum se aproximam estranhamente das es-
2 Andrade, Mário. Aleijadinho.In: Aspectos das artes plásticas no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1984, p. 42.
culturas produzidas por Cy Twombly, artista americano, cujas obras ativam memórias
3 Idem, p. 41.
4 Huyssen, Andreas. Op. cit., p. 93.
inacessíveis, que jamais se entregam, escapando com sabedoria a cada que vez que
5 Carvalho, José Murilo. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 84.
26 27
acreditamos tê-las apreendido. Seguem recobertas por uma espécie de matéria que as
torna especialmente resistentes às legendas dóceis.
No álbum de Julieta, afotografiadeseu monumento dedicado à Retirada da Laguna solic-
ita especial atenção.A foto é tão vaga quanto a marca desse acontecimento histórico em
nossa memória coletiva. Em sua condição de imagem, o monumento perde detalhes,
e o pedestal, cuja função é elevar a obra inserindo-a em um espaço simbólico distinto,
torna-se corpo, silhueta, parte da escultura. Essa indiferenciação dos elementos e o si-
lenciamento da narrativa tornam a imagem da obra mais próxima de experiências sen-
síveis que realizamos desde a arte moderna. Esse foi também um projeto não realizado,
que respondia a uma iniciativa lançada por ocasião do centenário da Independência.
Como imagem, o monumento de Julieta assombra aquele efetivamente construído ao
pé do Pão de Açúcar, na Praia vermelha, com o qual convivemos sob o signo da para-
doxal invisibilidade apontada por Musil. Pois acredito que os monumentos – voltados
de maneira falaciosa para a eternidade – não existem apenas quando permanecem fisi-
camente na cidade. Para existirem, ou seja, para operarem no campo da memória, da
história e da cultura, não é imprescindível nem mesmo que tenham, de verdade, sido
construídos. Cumprem essas funções, com intensidades muito distintas, é certo, como
projeto, maquete ou registro fotográfico. Algumas vezes, como no urbanismo utópico
do século XVIII, não pretendiam de fato realizar-se. É o caso também dos desenhos de
monumentos imaginários de Claes Oldenburg, que projetou, entre outros, um con-
junto de cemitérios verticais espalhados pela cidade de São Paulo em forma de colossais
parafusos. Creio que com a publicação do álbum de Julieta, seus projetos passam a inte-
grar a imensa coleção de monumentos não construídos (como o de Morales de Los Rios
ao Almirante Barroso) ou depostos ao longo dos séculos,infinitamente mais numeroso
do que os que se erguem. Seu álbum nos ajuda a compreender os últimos instantes
da produção de arte acadêmica no Brasil, o longo século XIX, e se atualiza como ruína
delicada dos primeiros anos de nossa república.
—————————————————
6 Benjamin, Walter. Rua de mão única. In: Obras Escolhidas II. Trad. de Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos M. Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 36.
7 Trata-se do Monumento aos heróis de Laguna e Dourados, de Antonino Pinto de Matos, situado na praça General Tibúrcio, na Praia vermelha, Rio de Janeiro, que embora tenha
sido selecionado em concurso público de 1921, foi construído de fato apenas em 1938.
8 Ramos, Renato Menezes. “História, herói e imortalidade: o projeto não executado de monumento ao Almirante Barroso”, monografia apresentada como trabalho final de
graduação, Instituto de Artes da Uerj, 2013.
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DETALHES DO ALBUM
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[...]
Sintetizaremos as
nossas apreciações, dando os
mais sinceros parabénsà
aproveitável paraense, cujo
trabalho de um ano de
academia denota boa soma de
talento artístico e grande
força de vontade.
(transcrição da imagem da
página 53)
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Jornal do Brasil
12-11-1910
O monumento ao
Dr. Affonso Penna
Escrevem-nos:
“O nome de Julieta de França, [...] corajosa
artista brasileira que na nossa Escola de
Belas-Artes conquistou a golpes de talento o
prêmio de viagem à Europa, é bastante conhe-
cido dos que no nosso meio se interessam
pelas coisas de arte, para que seja necessá-
rio preconizá-lo.
Julieta de França apresenta-se concorrente à
execução do mausoléu do Dr. Affonso Penna, e,
a ser tomado em consideração o nome desta[...]
artista, a ela parece deve ser, por gratidão
dos brasileiros,confiada essa missão.
A maquetteque vimos figurar na exposição da
Escola é um documento formal, indiscutível,
bem palpável de que esta moça, de real talen-
to, não perdeu tempo na Europa.
É de um modo singularmente característico que
Julieta de França tratouo assunto daquela
ordem,reunindo em um conjunto simpático toda
a vida de um homem da envergadura do Dr.
Affonso Penna.[Na]maquette reúnem-seas três
mais elevadas virtudes do Exmo. Presidente,
as quais ele próprio no estertor da morte
balbuciou e foram elas –Deus, Pátria, Família.
Para a sua característica fé católica Julieta
de França representouno alto e face do mauso-
léu, como que dominando aquela estátua rígida
coberta pela bandeira até ao peito, o
Christo,cuja serenaatitudeatirasobre si o
primeiro golpe de vista, e ele descepelos
braços distendidosdaquela imagem sagradaaté
fixar-se na estátua do ilustre morto que a
bandeira da República Brasileira amortalha
orgulhosamente.
A Pátria, a inspirada artista expressa-a pela
República, que, à direita do morto, envolta
em denso crepe e reverente, vem oferecer-lhe
a palma.
A Família, esta é de modo tão elevadamente
representada por uma mulher curva de dor e
conchegadoa si o filhinho, que bastava este
grupo para elevar a maquette de Julieta de
França ao primeiro lugar.
Na arquitetura, as armas da República e duas-
belas águias que se harmonizam perfeitamente,
dando a esse ensemble a maior simplicidade
monumental, vê-se e pode-se dizer com certa
vaidade que temos nascida entre nós a arte
moderna, a arte sentimental.”
(transcrição da imagem da página 68)
128 129
26 DE OUTUBRO DE 1921
A comemoração do Centenário
CRONOLOGIA
1872 Nasce Julieta de França, em Belém, Pará, filha do maestro Joaquim Pinto de
França e de Idalina Pinto de França.
Em Belém, inicia seus estudos artísticos com Domenico de Angelis.
1906 A obra O sonho do filho pródigo é aceita no Salon da Société Nationale de Beaux
Arts, de Paris. Recebe crítica positiva, assinada por Henri Dac para o jornal Univers, de
Paris. Retorna ao Brasil. Participa da XIII Exposição Anual de Belas-Artes e recebe a
medalha de prata. Candidata-se ao concurso que escolheria o monumento
comemorativo à Proclamação da República brasileira. É desclassificada pelo júri.
Retorna à Europa com sua maquete e solicita avaliações de seus antigos professores,
inclusive Auguste Rodin. Após receber julgamento favorável de 57 nomes, retorna ao
Brasil e questiona sua desclassificação pelo júri brasileiro.
1912 Esculpe o busto do Barão do Rio Branco, patrocinado pela Prefeitura de Belém, Pará.
1921 Primeiro lugar no concurso público lançado pelo Estado do Pará para esculpir o
monumento em homenagem ao marechal Floriano Peixoto.
1.000 exemplares.
Impresso no Rio de Janeiro, 2014. COLETIVA
Papel polen bold LD 90 g/m2, papel silprint fosco 90 g/m2 e papel jornal LD 56 g/m2