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diferente com Para além de bem e mal. É relevante, por isso, que se distinga a
publicação efetiva do escrito das muitas intenções de fazê-lo que se alterou no curso da
feitura daquilo que se tornaria o escrito final. A análise dos escritos póstumos do
filósofo revela que a gênese de Para além de bem e mal deve ser datada antes mesmo da
que servirão a Nietzsche na composição de Para além de bem e mal. Se bem que é no
viria ser este escrito. Nietzsche nesse momento pensa uma nova versão de Humano,
Demasiado Humano (escrito com o qual Para além de bem e mal guarda grande
semelhança temática)1, projeto que acaba sendo abandonado pelo filósofo no inverno de
veio à luz a organização definitiva de Para além de bem e mal tal como seria, então,
publicado.
1
É justo ainda dizer que este pequeno histórico de Para além de bem e mal não esgota sua gênese nem
pretende ter os méritos de uma crítica genética do escrito. Nosso propósito é apenas evidenciar que
Nietzsche, entre os anos de 1885-1887, projeta um escrito que resultará no ano de 1886 na publicação de
Para além de bem e mal tal como o conhecemos. Ora, este projeto se altera enormemente no curso desses
anos, sobressaindo, como quer nos parecer, sua vinculação ao livro Assim Falava Zaratustra e Para
genealogia da moral. Alguns exemplos podem mostrar que em relação ao projeto do escrito de 1886 há
um vai-e-vem. Inclusive colocando-o como parte de outros projetos de escritos ou ainda integrando o
projeto da Vontade de Potência, Nietzsche anota na primavera de 1885 e outono de 1886 a seguinte
subsecção: “Sapientia victrix. Vorspiel zu einer Philosophie der Zukunft” Cf. VIII,1(45). Mas no mesmo
período encontramos aparentemente outro projeto para esta filosofia do futuro em que “para além de bem
e mal” aparece como parte de um escrito cujo título seria então “Gai saber”. Cf. VIII I, (121).
Gai saber.
Vorspiel einer Philosophie der Zukunft.
1. Freie Geister und andere Philosophen.
2. Welt-Auslegung, nicht Welt-Erklärung.
3. Jenseits von Gut und Böse.
4. Der Spiegel. Eine Gelegenheit zur Selbstbespiegelung
für Europäer.
5. Die Philosophie der Zukunft.
Recusado mais de uma vez pelos editores, este escrito foi publicado à custa do
próprio filósofo, como a maioria de seus trabalhos. Sem falar ainda que Nietzsche,
do escrito em nove brochuras também não lhe traria maior êxito quanto ao sucesso de
sua publicação.
Mas isso ainda não seria tudo. Às vésperas da publicação, num esboço de
Nietzsche escreve a Burckhardt: “Peço-lhe isso, leia este livro (se bem que ele diz as
mesmas coisas que meu Zaratustra, mas diferentemente, muito diferentemente - )...”.
(grifo nosso) Mais tarde, porém, quando o filósofo começa a redigir em 1887 Para uma
que parece, ao vincular Para além de bem e mal aos trabalhos antecedente e
subseqüente, Nietzsche equaciona-o de modo a torná-lo um mirante da relação entre
eles. Em face de Assim Falava Zaratustra, trata-se de uma originalidade formal com
que os mesmos temas e inovações conceituais, já por ele tratados no passado, cuidarão
Complemento e ilustração, Para uma genealogia da moral seria, por seu lado, um
É muito curioso que Nietzsche tenha assim se referido ao escrito de 1886. Ele
falaria o genealogista da moral cujo arremate final o futuro escrito viria a oferecer. É
possível explorarmos esta interessante fisionomia mirante dada por Nietzsche a seu
escrito de 1886 em relação aos dois principais escritos entre 1885-1887. Ela é a própria
então podemos decorrer que já em Para além de bem e mal, encontramos completa a
cristianismo.
aspecto, mostrando de que forma atuam decisivamente entre si, quiçá, encontrando Para
Nietzsche. Eximindo-nos certamente desta tarefa e apenas aventando para esta possível
fisionomia mirante, podemos arquitetar sob que estrutura se monta tal sugerida
escrava na moral. Judéia teria triunfado sobre Roma pela última e decisiva vez com a
acata esse apaziguamento da afamada terra em que corre leite e mel: “Então acabou? O
maior entre os conflitos de ideais foi então relegado ad acta por todos os tempos?”
“Quem neste ponto começa a refletir, a reconsiderar, como meus leitores, tão cedo não
chegará ao fim – razão para que eu mesmo chegue ao fim, supondo que há muito tenha
ficado claro o que pretendo, o que desejo com a perigosa senha inscrita na fronte do
meu último livro “Para além de bem e mal”.... Ao menos isto não significa “além do
Para além de bem e mal e não além do bom e ruim: com esta orientação final,
valor. Não se trata de prescindir da apreciação nobre de valores (bom x ruim) que, como
sabemos, advém da plena criação de valores, tampouco seria possível a esta apreciação
retornar. A perigosa senha inscrita na fronte de Para além de bem e mal - o prelúdio de
bem dos raros é radicalmente oposto ao bem da maioria, por exemplo, será preciso
determinar de que valor ambas apreciações morais partiram. Só então, é possível avaliar
sua posição na hierarquia da vida. É por isso que, antes dessa determinação hierárquica
valores eternos:
“Para os novos filósofos, não resta escolha” constata Nietzsche “para espíritos
fortes e originais o bastante para dar os primeiros impulsos a estimativas de
valor opostos e para transvalorar, inverter “valores eternos” para homens do
futuro, que atem no presente a coação e o nó que coage a vontade de milênios a
novas trilhas (JGB/BM § 203).
Que curioso se no Prólogo de Para além de bem e mal encontramos o então
Nietzsche não explicite que este pensamento seja o pensamento ocidental, é imediata tal
como tal, uma rubrica sobre a qual se pode reconhecer tudo aquilo a que se chamou até
então por filosofia. Portanto, é a idéia de verdade que se mostra aí nesse escrito como o
valor eterno a ser transvalorado, viga mestra daquela aventada concentração conceitual
anuncia sua intenção de criticar nessa obra, de uma maneira particular, a noção de
verdade. Esta que teria atravessado o curso da filosofia na medida em que, como é dito,
importante deste escrito de 1886, o tom inicial de um concerto a ser executado contra
um passado inteiro. Atestado desde o subtítulo da obra, este caráter temporal deverá ser
colocado como o horizonte a partir do qual Nietzsche pensa investir sua crítica. Mais
precisamente, o autor de Para além de bem e mal anuncia, a um só tempo, sua ruptura
de uma nova filosofia que não poderá resvalar sequer por um instante no pensamento
dogmático.
temporalmente equívoco em que a crítica se realiza. Quer dizer, ela se encontra situada
como a ruptura com o tempo histórico do dogmatismo que demanda a afirmação de uma
época vindoura para a filosofia. De saída, portanto, a crítica se vê obrigada a lidar com
uma equivocidade temporal, já que ela exigirá um tempo vindouro a partir da própria
primeira, e talvez mais importante, frase da obra. Diz Nietzsche: “Supondo que a
verdade seja uma mulher – não seria bem fundada a suspeita de que todos os filósofos,
Prólogo). Com a suposição da verdade como mulher, o filósofo logra uma dupla
maneira de apresentar a concepção de verdade que deverá estrategicamente lidar com tal
equivocidade.
ocultos da caricatural filosofia dogmática se revelam. Isto sem dúvida trará à tona o
falseamento promovido pelo discurso dogmático mas, sobretudo, responde por que ao
olhar sobre toda a história do dogmatismo. Nesta suposição, trata de reconhecer que
verdade, não se deixando facilmente conquistar, acaba por colaborar com a frustração
da ambição dogmática. O dogmatismo, este galanteio frustrado dos filósofos, tem agora
que cruzar os braços até cair completamente, tal como o cortejador que, exausto de suas
próprio insucesso, visto que este pensamento fora inábil na sua relação com aquilo que
razões para esperar que toda dogmatização em filosofia, não importando o ar solene e
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Infindável disputa entre os filósofos, o dogmatismo carregaria em si mesmo o selo de sua frustração, a
incondicionalidade através da qual eles colocam a verdade como fim. No entanto, há quem acredite que
esta incondicionalidade é caráter da própria inteligência humana. Num lugar não muito distante de
Nietzsche, diz um filósofo francês: “O dogmatismo é o estado normal da inteligência humana, aquele para
o qual tende, por natureza, continuamente e em todos os gêneros, mesmo quando mais parece afastar-se
dele. O ceticismo é, na verdade, simplesmente um estado de crise, resultado inevitável do interregno
intelectual que sobrevém, necessariamente, todas as vezes em que o espírito humano é levado a mudar de
doutrinas. É, ao mesmo tempo, o ceticismo o meio indispensável empregado, quer pelo indivíduo, quer
pela espécie, a fim de permitir a transição de um dogmatismo para o outro, o que constitui a única
utilidade fundamental da dúvida” (COMTE, Auguste. Opúsculo de filosofia social “Considerações sobre
o poder espiritual (1826)”: Porto Alegre, Globo, São Paulo, Edusp, 1972, p. 204).
definitivo que tenha apresentado, não tenha sido mais que uma nobre infantilidade e
que insistentemente arrogou para a si toda seriedade em sua ânsia desmedida pela
galanteador cujas investidas sustentam uma seriedade tamanha que apenas o delata
dogmatismo e que este apregoou; se este filósofo fora até então um mau conquistador,
isso se deve às quimeras que postulou, às que inventara nessa sua imaginária busca:
filosofia dogmática como algo que não passou de uma longa “promessa através de
milênios” (ibid. idem - grifo nosso). Isto significa entender que a promessa desta
com tudo aquilo que se arroga uma postura grandiloqüente e que, sob esta caricatura,
pretende se apresentar:
“Parece que todas as coisas grandes, para se inscrever no coração da
humanidade com suas eternas exigências, tiveram que primeiro vagar pela terra
como figuras monstruosas e apavorantes: uma tal caricatura foi a filosofia
dogmática, a doutrina vedanta na Ásia e o platonismo na Europa, por exemplo”
(JGB/BM Prólogo).
Contudo agora, diagnostica Nietzsche, é de braços cruzados, triste, desanimado
que se encontra o caricatural dogmatismo e, talvez, esteja mesmo nas últimas ou até
segundo a qual ganharam legitimidade. Por jamais ter sido levado a cabo o
dogmática e a moral cristã para Nietzsche sempre buscaram sua cidadania num além-
3
Oswaldo Giacóia defende a posição que podemos assumir como chave de leitura da obra tardia de
Nietzsche o projeto nietzschiano da inversão ou da reversão do platonismo. Sugere, nesta medida, que
“essa dupla vertente do erro dogmático” (o espírito puro e o bem-em-si) apresentados no Prólogo de Para
além de bem e mal “serve também de princípio de organização de Para além de bem e mal, onde
Nietzsche procura desconstituir, nas primeiras seções, o erro platônico do puro espírito, da razão pura; ao
passo que as seções finais se dedicam a reversão da ética socrático-platônico-cristã do bem-em-si” (“O
Platão de Nietzsche. O Nietzsche de Platão in: Cadernos Nietzsche 3, São Paulo: Discurso Editorial,
1997). Nossa hipótese interpretativa se põe de acordo com essa proposta de leitura do escrito na medida
em que também nós articulamos o escrito, em sua vertente corrosiva, segundo o processo de conceituação
da vontade de verdade em que o platonismo é o crepúsculo da ambição dogmática.
da pergunta pelo valor dos valores, e da conseqüente investigação pela criação destes
valores, que o habitual modo opositor de pensar e de valorar passa a ser criticado,
pensamento.
Com efeito, ao nos perguntarmos, de modo geral, pela rubrica que chancela o
escrito de 1886, notamos que ela pode ser obtida pelo seu próprio título. A fórmula
“Para além de bem e mal” (Jenseits von Gut und Böse), além de assinalar claramente a
empreitada corrosiva de valores que se pretende levar a cabo, mostra ainda com
precisão contra quem essa empreitada haverá de efetuar-se. Atividade crítica dos valores
bem e mal, o escrito se põe contra a maneira opositora de valorar e de filosofar. Contra
essa forma de avaliar, entendida como a marca da moral Ocidental, a fórmula pretende
situar o discurso filosófico para além das oposições morais. Os pares contrários “bem e
crítica moral à crítica do dogmatismo, declara o escrito como prelúdio de uma filosofia
do porvir, portanto, de um outro modo de pensar que se desloca para além do vigente
até então.
inaugural de Para além de bem e mal. Vemos que esse conceito faz o diagnóstico da
filosofia dogmática e da moral cristã. Por meio do que chama de vontade de verdade
“mal”, o valor “bem” nasce através do processo de inversão dos valores nobre, como
Duas referências nos são oportunas para marcarmos o sentido inaugural que a
vontade de verdade traz em Para além de bem e mal. No V Livro de Gaia Ciência,
parágrafo 344, Nietzsche quer examinar em que medida a ciência conserva no rol de
suas proposições o afã dogmático pela verdade. Ao se deter no exame da diferença entre
uma simples convicção e uma proposição aceita como verdade científica, o filósofo
27, Nietzsche quer assinalar esta mesma incondicionalidade dogmática, só que agora
que a veracidade cristã tirou uma conclusão após a outra, tira enfim sua mais forte
conclusão: aquela contra si mesma; mas isso ocorre quando coloca questão: ‘que
significa toda vontade de verdade?’ ”. Temos, assim, que tanto na Gaia Ciência como
de verdade. Note-se que não se trata de um ímpeto qualquer pela verdade e sim de um
ímpeto incondicional, tão preciso que ele não admite gradações em seu “critério” e
necessariamente deverá opor o verdadeiro ao falso, o bem ao mal. Ora, essa definição
verdade?
Inaugurando Para além de bem e mal, este conceito é visto como o problema a
dogmática, da moral cristã e dos vários discursos que irrompem na época a que
qualidade de uma devota reverência que Nietzsche, no capítulo primeiro de Para além
de bem e mal, entende a vontade de verdade: “A vontade de verdade, que ainda nos fará
correr não poucos riscos, a célebre veracidade que até agora todos os filósofos
reverenciaram: que questões essa vontade de verdade já não nos colocou!” (JGB/BM §
discurso cujo papel seria, neste caso, o de comunicar a convicção de quem o produz e
que, portanto, não poderia resultar em erro ou engano para o ouvinte. Contra qual
responde-nos o filósofo de que veracidade se trata: “ ‘ Como poderia algo nascer do seu
gênese é impossível; quem com ela sonha é um tolo ou algo pior; as coisas de valor
mais elevado devem ter uma origem que seja outra, própria - não podem desse fugaz,
enganador, sedutor, mesquinho mundo, desse turbilhão de insânia e cobiça! Devem vir
do seio do ser, do intransitório, do deus oculto, da ‘coisa em si’ - nisso, em nada mais,
deve estar a sua causa!’ “ (JGB/BM § 2). Para Nietzsche, a única veracidade comum a
todos os filósofos dogmáticos: uma crença tomada de antemão pela qual se pretende
atingir um “saber” que, ao fim, é nomeado de “verdade”. Por trás das artimanhas lógicas
do filósofo, esconde-se seu modo de pensar, sua crença mais fundamental, “a crença nas
oposições de valores”. 4
O que temos de ter em conta é “como” Nietzsche identifica este modo de pensar.
aspira realmente à “verdade”? - De fato, por longo tempo nos detivemos ante a questão
da origem dessa vontade - até afinal parar completamente ante uma questão mais
fundamental. Nós questionamos o valor dessa vontade” (JGB/BM § 1). Com isto, já
filósofos, se define segundo a pergunta pelo seu valor. Isso equivale a fazer o próprio
quem produz o valor verdadeiro, Nietzsche define a vontade de verdade como um valor
seja mesmo se referindo diretamente aos conceitos dos diversos sistemas filosóficos,
Nietzsche põe em ação o pensar metafísico e, com isso, consegue extrair o prejuízo que
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Verdade ou veracidade: o sentido que Nietzsche emprega ao termo quando se detém a examinar a
filosofia dogmática é mais precisamente o que chama, no Anticristo, de “certeza-de-verdade”. O
dogmático confere à sua convicção este valor nomeando-o de verdade. O tradutor brasileiro Rubens
Rodrigues Filho nos oferece um comentário precioso ao traduzir o termo Für-wahr-halten que, embora
não apareça no parágrafo acima em discussão, nele cabe muito bem, já que se refere à compreensão de
Nietzsche sobre a relação entre verdade e convicção. Diz a nota do tradutor: “o termo “literalmente, “Ter-
por-verdadeiro”, traduz-se, em sentido técnico-lógico, por “assentimento”. Escreve-se também, em uma
palavra só, Fürwahrhalten, e designa o genérico da postura subjetiva diante da proposição, englobando os
vários modos de assentimento: crença, convicção, certeza. Aqui importava sublinhar a relação coma
“verdade” ou veracidade no enunciado da convicção” ( AC/ AC §53 – nota do tradutor retirada do volume
Nietzsche, Coleção Os Pensadores, 2ª edição São Paulo: Abril Cultural, 1978).
oposição de valores. Essa maneira de questionar o dogmatismo constitui uma operação
suficiente para expor aquilo mesmo que intitula o capítulo primeiro da obra, os
através dessa espécie de crítica imanente. São os próprios gestos sutis e trapaciosos dos
filósofos, uma vez questionados em seu valor, que fazem enxergar uma ambiciosa
vontade de verdade. É o próprio pensar metafísico que questionado em seu valor passa a
toda a parte da Europa é hoje abordado o problema “do mundo real e do mundo
aparente” , leva a pensar e a espreitar; e quem aqui nada ouve no fundo, a não ser uma
nosso).
escravos, podemos perceber que são os valores cunhados por esta moral que fornecem a
morais, Nietzsche se depara com traços regulares que “retornam juntos e ligados entre
si”, revelando “dois tipos básicos, e uma diferença fundamental” entre as morais.
prejudicial é prejudicial em si’, sabe-se como o único que empresta honra às coisas, cria
valores” (JGB/BM § 260). Nessa medida, Nietzsche entende que a oposição entre
“bom” (“gut”) e ruim (“schlecht”), para a moral de senhores, quer dizer “nobre”
entre valores, mas quer significar um modo tal de valorar próprio do senhor, o que crê
dos valores “bom” e “ruim”, desconfia do sentido do valor “bom” cunhado pelo senhor.
O escravo, ao moralizar, torna seu olhar “desfavorável às virtudes do poderoso: ele tem
existência dos que sofrem” são salientadas em sua valoração. Trata-se da compaixão
Nele “bom” (“gut”) e “mau” (“böse”) são definitivamente opostos, quer dizer, no valor
“mau” não há lugar para atitude de desprezo, e sim para a do medo, pressentido pelo
Nietzsche, por fim, entende que o auge da oposição entre “bom” e “mal” se
bom deve ser também o “homem não-perigoso: ele é bondoso, fácil de enganar, um
desse modo de valorar, a saber, a da desconfiança que inverte os valores criados para,
as diferenciações morais de valor, ou seja, colocou a perguntar pelo valor dos valores
que um dia foram criados. A partir desse questionamento, foi a moral de escravos que se
revelou como uma apreciação antitética de valores em que fica patente a absoluta
orienta a crítica da filosofia dogmática que, por sua vez, já houve de questionar o solo
valorativo do qual parte a interpretação cristã. Como dissemos, inaugurando Para além
de bem e mal, o conceito é visto como o problema a ser operado: faz o diagnóstico da
conceito criado por Nietzsche abarca dois mecanismos operatórios. De um lado, ela se
5
Vemos um viés comum nessas investidas. E em sendo elas um operar a partir dos processos de
formação do pensamento dogmático, é a análise da linguagem que Nietzsche privilegiará na estruturação
dessa sua crítica. Ela parte dos processos de linguagem, cujo maior expoente lhe parece a noção de
sujeito, mas não a única. É o que vemos acontecer quando Nietzsche se dedica a desfazer a necessidade
lógica entre pensamento e sujeito expresso pela proposição do cogito cartesiano. Mas essa necessidade
não se pôs apenas para o sujeito cartesiano. Segundo Nietzsche, ela se deve a um hábito gramatical
petrificado há milênios (JGB/BM 20). A apreensão de um objeto da experiência como conhecimento e o
seu conseqüente limite pela coisa-em-si, o papel da causa sui na constituição da doutrina do livre-arbítrio
e mesmo a vontade imediatamente conhecida, em que não se distinguem o sujeito cognoscente do sujeito
do querer, são antes de tudo, para Nietzsche, um processo lingüístico, segundo o qual camufladamente se
dá uma “contradictio in adjeto” (JGB/BM 16). Desta maneira, a validação destes termos que envolvem
uma contradição no adjetivo significa, para o filósofo alemão, o falseamento da efetividade (JGB/BM 17).
Tendo em vista o problema da vontade de verdade na deconstituição do pensamento dogmático,
Nietzsche parece proceder à sua análise da linguagem em Para além de bem e mal através do binômio
denúncia da linguagem/efetividade falseada. Sobre a efetividade recorramos a nota de FW/GC 58 da
tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho (Nietzsche, Coleção Os Pensadores, 2ª edição São Paulo:
Abril Cultural, 1978). Ele aponta uma derivação que Nietzsche faz do termo alemão para realidade:
“Wirklichkeit”. Derivado do verbo “wirken”, que significa fazer efeito, “em linguagem filosófica designa,
especificamente, a atuação da causa (eficiente) na produção do efeito (Wirkung)”. No entanto, devemos
moral que a vontade de verdade vem a oferecer: revelando-se uma “vontade de engano”
até às últimas conseqüências, ela requer que nos perguntemos a respeito de seu valor,
incondicionalmente.
desvelado desde o solo dogmático. O ceticismo antigo talvez já nos tenha adiantado
essa concepção de verdade. Para o cético, a história da filosofia bem poderia ser a
enquanto esta afirmação precipitada que diz tê-la encontrado. Ainda vemos outro ponto
de contato com o ceticismo. Entender que os filósofos foram todos dogmáticos demanda
que Nietzsche prove a sua suposição, a verdade como mulher, isto é, que ela
efetivamente resistira às investidas de todos eles. Ora, o ceticismo crê que o conflito das
certifica de que a vida comum é a melhor saída. Embora Nietzsche se afaste da epokhé
antidogmatismo, mas sim numa zombaria “filosófica”, uma crise em que se encontraria
idéia de conflito das filosofias donde o ceticismo ter optado pela suspensão mental.
sempre considerar que nosso trabalho não pretende ser um estudo exaustivo de Para além de bem e mal
de maneira que das investidas de Nietzsche contra conceitos particulares da filosofia dogmática nem
todas poderão ser inventariadas.
Nietzsche constata a crise pela qual o dogmatismo atravessa, ressaltando sua crescente
perda de eficiência: “(...) e hoje toda espécie de dogmatismo está de braços cruzados,
triste e sem ânimo. Se é que ainda está em pé! Pois há os zombadores que afirmam que
caiu, que todo dogmatismo está no chão, ou mesmo que está nas últimas.”(JGB/BM
Prólogo).
mas isso está longe de significar que tenha de fato caído. Ao fazê-lo sob a rubrica do
deixou facilmente conquistar, sobretudo, porque não foi conquistada por nenhum desses
filósofos. Atesta-nos isso a negação perene efetuada entre eles. Negando-se uns aos
outros, não ao nível da polêmica, mas sim da retomada constante de um pseudo novo
todavia, que o teatro das disputas infindáveis assim posto por Nietzsche exigirá mais
que uma crítica da razão. Pouco a pouco, aqueles filósofos dogmáticos se tornam sob o
texto nietzschiano filósofos do passado. Filósofos que se revelam com suas eternas
querelas quiméricas deixando, com isso, o campo aberto aos novos conquistadores da
verdade.
Em face dessa idéia, de que a verdade fora uma mulher intocada sinônimo da
segunda concepção de verdade presente em Para além de bem e mal. Que melhor figura
Para além de bem e mal? Figura historicamente de exceção, a mulher como verdade é o
é um feliz paradoxo inventado pelo dogmático.6 Esta figura ex-põe, em sentido amplo,
garantida a idéia de que a mulher ainda não se efetivou em toda sua plenitude. Isto
dogmático que requer uma crítica absolutamente nova, e assim, uma relação mais
6
Certamente quando Nietzsche supõe a verdade como mulher não pretende analisar a determinação
histórica da condição feminina, trata-se claramente de tomar a imagem da mulher, ou um certo discurso
que sobre ela se estabilizou, a fim de extrair a problemática que lhe interessa. Nesta medida, devemos
supor que Nietzsche tem em mente que foi um alter-referente o constituidor da imagem da mulher, a
saber, o referente do predomínio masculino em que a mulher idealizada se constitui à revelia de sua
condição. Com isso, trata-se de uma falsa auto-imagem gerada em um nível discursivo externo à mulher,
assim como a verdade para o dogmático é um valor incondicional por ele criado, situado aquém de uma
investigação propriamente dita.
7
Muller-Lauter “Uma filosofia para ruminar” (fragmento do texto do autor intitulado Sobre o trato com
Nietzsche) in: Caderno Mais p. 7 Folha de São Paulo 09/10/1994. Neste trabalho, o autor nos fornece uma
leitura exemplar do Prólogo de Para além de bem e mal. Destacamos a “metáfora da mulher” que ali é
tratada de maneira a nos fornecer valiosas pistas a respeito da interpretação deste tema em Nietzsche. O
autor diz: “Talvez devêssemos perguntar pela concepção do feminino segundo Nietzsche para saber o que
ele entende por verdade. Com isso, deixamos para as feministas ou pós-feministas a questão: em que
sentido e em que medida Nietzsche foi um ‘inimigo das mulheres’ ”. Levantando aparentemente uma
questão da ordem do gênero no bojo da problematização da verdade em Nietzsche, Muller-Lauter quer
alertar para a necessidade de evitar certas interpretações tendenciosas, afastando a riqueza interpretativa
da metáfora nietzschiana. Com Derrida então, ele passa a polemizar. Este teria, no trabalho Éperons
(1974), recorrido “a abertura de Para além de bem e mal ‘para tratar’ dos ‘estilos’ de Nietzsche e da
diferença entre os sexos”. Muller-Lauter parece entrever que Derrida chega a uma conclusão tendenciosa,
que recria um Nietzsche à imagem da interpretação intentada pelo autor francês. Depois de relacionar a
metáfora de abertura do escrito a “inúmeras outras declarações de Nietzsche sobre a mulher”, Derrida
teria lançado mão de “modelos psicanalíticos de interpretação” para chegar a grande conclusão de que
esta questão, nos aforismos que lhe dizem respeito, não encontraria em Nietzsche nenhum “denominador
comum”. Acertadamente, parece-nos, Muller-Lauter frisa na imagem da mulher “o caráter metafórico do
discurso” de Nietzsche que Derrida perdera de vista já que sendo ele recriado segundo o projeto deste
comentador, então “a pergunta pela verdade, no sentido de Nietzsche, se atrofia numa construção
caracteristicamente formada a partir de maneiras de pensar de Freud e Heidegger”. Em que pese essa
aguda crítica, vale mais a interpretação sobre o tema sugerida por Muller-Lauter. Em primeiro lugar,
considera que a suposição da mulher explicita a inversão dogmática pretendida por Nietzsche. Se o
dogmatismo assentou seu pensar na construção de “sublimes e incondicionais edifícios filosóficos”,
arrogando-se com eles “uma justificada pretensão à estabilidade universal”, basta supormos uma inversão
dogmática (“nada de universalmente válido”) para que obtenhamos um resultado que vai além de
“contrapor o mutável à instabilidade”:
“Face à interpretação de um simples escoar, a metáfora da mulher permite, de certa maneira, olhar
na “profundidade” dos processos, ela permite, pois, tornar visível a “terceira dimensão” dos
processos da mudança da verdade. Com a metáfora, Nietzsche joga com atração e dissimulação,
sedução e recolhimento, mostrar-se e velar-se. Quem “entende mal” disso, como os dogmáticos, a
este a verdade permanece inacessível. Mas é, finalmente, da verdade que se fala em tudo isso? Ela
O segundo sentido de verdade nasce, portanto, pelo contraste da suposição da
dogmáticos teriam provado com isso sua incompetência. Ela é resultado de um filosofar
aquilo que, para Nietzsche, faz da investigação filosófica algo interessante, uma busca
ambição dogmática, a verdade como mulher adquire, pois, um sentido ativo, ela é a
abertura para uma nova filosofia que se insinua por contraste mesmo à inabilidade
manifesta do dogmatismo.
verdade é uma importante idéia que se agrega à noção de verdade, isto é, a idéia de uma
habilidade filosófica sugerida por Nietzsche há uma idéia ativa de verdade, quer dizer,
uma habilidade que é uma atividade exigida na investigação filosófica, habilidade esta
que jamais possuíram os filósofos todos. Entendemos, desse modo, que Nietzsche
Talvez seja neste sentido que declare: “A verdade é este tipo de erro sem o qual
uma certa espécie de seres viventes não poderia viver” (34 [253] do inverno de 1884-
1885). Moral e filosofia formam uma equação cuja ambição dogmática pelo verdadeiro
deve ser Verdade, na qual a efetividade se espelha, ou a que a efetividade pertence. Então a
verdade seria mulher porque a Vida é mulher (...)”
A equivocidade temporal por nós descrita e em que acreditamos situar-se a crítica do escrito em questão
não se filiaria a este tornar visível a “terceira dimensão” dos processos de mudança da verdade ? Não
seria a equivocidade temporal o próprio jogo entre o mostrar-se e o velar-se do processo que estabelece a
relação do novo filósofo com a verdade, num novo tempo da filosofia, também ele mostrando-se e
ocultando-se, por isso tornado sempre vindouro?!
testemunho de quem ele é – isto é, da hierarquia em se dispõem os impulsos mais
permite uma primeira relativização dos papéis de bem e mal, verdade e falsidade cuja
revelaria ele mesmo como a estratégia que estabelece manifestamente um vácuo entre o
uma vivência no gelo e nas altas montanhas? Quem suportaria o intenso frio e o ar de
altitude desta “vida voluntária” nas geleiras e nas mais altas montanhas? Alguém se
escritos de Nietzsche. “Ser feito para eles”, como afirma nosso autor, não é a máxima
do filósofo que crê num mistério que se revela gradualmente para alguns, tampouco um
proibido, o autor traz à tona o que foi longamente silenciado pela moral, pela filosofia.
Contudo, importa a Nietzsche menos discorrer sobre isto que foi silenciado do que
para eles é preciso ser feito) porque trata-se aqui do próprio operar do “quantum” de
verdade que poderá ousar um espírito. Este seu tensor da “verdade” é um operador hábil
experimentá-la uma vez mais, mas diferentemente. Aliás, é dessa ordem a idéia de
começo que aparece na primeira seção de Para além de bem e mal. A propósito da
sua própria admiração face à longa história da verdade, pergunta-se: “não é como se
apenas tudo começasse?”. Tudo recomeça, mas não de um fora: o raio de Heráclito é o
súbito em que o começo nada mais é que o sobressalto, o princípio abrupto de uma nova
amarão suas verdades” (JGB/BM § 43). Confirmamos isso ainda no Crepúsculo dos
instante da mais curta sombra; fim do mais longo erro; ponto alto da humanidade;
ZARATUSTRA. Porém, esse começo é o ponto mais alto porque dúvidas e perguntas
las é Para além de bem e mal. Não mais sob o ditame de uma incondicional vontade de
verdade, mas sim com a liberdade do estado dionisíaco face à existência, o filosofar de
Nietzsche não se deterá numa vontade de não: “Uma filosofia experimental tal qual esta
que não quer dizer que ela fique em um 'não', em uma negação, em uma vontade de
profunda, aquele que nega para fazer nascer outra vez o pensar. Uma filosofia
experimental é mesmo a atitude antidogmática, mas nem por isso reduzida a uma
manter uma nova relação. Transvalorar o valor verdadeiro é mesmo experimentar outra
porque a esta figura não se agregou nenhuma experiência histórica que se impôs