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2.bem-estar. A guerra, todos aqueles que nasceram longe ou depois dela, sabem
muito bem que ela ainda não acabou. Conhecem-na enquanto possibilidade,
como uma ameaça que pode vir a ocorrer. E quando a guerra estala e queima ao
longe as infâncias dos outros, os odores da cozinha, os lençóis, todo este
conhecimento torna-se confuso. O passado abriu uma cova no presente e enterra
de novo os vivos – dizem eles, mas isto é mentira. Porque ela é, na realidade, um
dos nomes do nosso presente e não apenas uma história de dias já passados, vive
nos corpos, flui pelas instituições, atravessa as relações entre estranhos e
conhecidos, mesmo aqui, neste momento, desde há muito tempo. E quanto mais
pretendemos ser inocentes e alheios aos eventos, mais sabemos que somos
culpados. Culpados de não estarmos no sítio onde o sangue é derramado, e ainda
assim, de certo modo, estamos lá…Costumavam dizer-nos, “vocês, filhos do
bem-estar” como se dissessem “vocês, filhos da puta”, mas quem invocou e
construiu este bem-estar, fonte inesgotável da guerra? Às vezes, chegamos
mesmo a suspeitar que se a guerra está num outro lugar, então a vida também
deverá estar.
É por isso que a guerra se tornou o trabalho sujo dos outros: é isso que somos
obrigados a ignorar. Em todas as esquinas é-nos pedido para esquecermos tanto a
possibilidade como a realidade, para ficarmos surpreendidos sem sermos
cúmplices, agradecendo-nos antecipadamente a nossa vigilância. Só nos resta
escolher entre sermos os colaboradores da paz social ou os partidários do terror.
A guerra já não nos olha, nós é que a olhamos, ela não nos vê, está demasiado
próxima. A sua distância relativamente a nós é diferente da distancia entre um
espectador e um jogo de futebol, onde ainda podemos desejar a vitória de uns e a
derrota de outros. Ela reside no limbo das coisas que gostaríamos de abolir. Para
que nunca mais se tenha que tomar um partido ou acreditar que as palavras têm
um peso que se ressente no corpo, ou que a vida tem um sentido e que esse
sentido também pode causar um fim repentino.
4…e viver em guerra. Se não sabemos o que significa viver em guerra é porque
não sabemos o que significa viver em paz. Quanto mais somos governados, mais
temos medo e necessidade de que outros se armem em nosso nome e é assim que
a guerra continua. Os esforços feitos no passado para obter direitos e liberdade de
expressão não são reconhecidos por nós como uma experiência (de conflito e de
vitoria) mas sim como um resultado. Não somos mais que os herdeiros
entontecidos de uma fortuna impossível de gastar: um património arqueológico
que se desmorona dia a dia, sem qualquer valor de uso. Essas velhas vitórias não
foram adquiridas por nós, mas são coisas já perdidas, porque não sabemos
defendê-las sempre que são ameaçadas. O devir revolucionário é um processo
que parece agora excluir a nossa participação. Foi ao esquecermos a opressão do
controlo em nome da garantia de protecção que nos expulsamos a nós próprios da
nossa história. A partir daí, confundimos a luta com a guerra e deixamos que ela
tivesse sido tanto criminalizada como entregue a profissionais. Ao mesmo tempo
que a luta foi isso que surgiu da desmesura entre o que os governos exigem e o
que os governados lhes podem dar. Para a luta vai-se para encontrar aqueles que
nos acompanham e que nos reforçam, enquanto que para a guerra se vai só e dela
se regressa só (já que são sempre os outros que morrem).
7.coerências. Por vezes, nas nossas vidas ritmadas pela precariedade, entrevemos
um fio de coerência. O mesmo fio onde se transmite o conhecimento de uma
guerra que não vivemos mas cujos efeitos e afectos circularam nos nossos
corpos. O fio que liga os gestos mais comuns do nosso quotidiano daqui com os
dramas que se consomem algures – fio eléctrico, fio paratáxico, que transmite
essa ligação feita de ausência de ligações. Eichmann alinhava números sem se
torturar pelo facto destes representarem seres humanos enviados para o
matadouro. Deste hábito de participar no desastre sem ser capaz de interrogá-lo,
a arte contemporânea formou o seu princípio estruturante. Constrói superfícies de
coexistência entre elementos incompatíveis, questiona aquilo que nós não
compreendemos e contudo contribui, tanto como essas mesmas linhas, para o
funcionamento da máquina. Os meios para interromper o nosso devir ou para
transformar a nossa subjectividade já não nos parecem acessíveis. A forma da
nossa vida foi desenhada por outros: só nos resta escolher a forma dos nossos
produtos e esperar que a nossa propriedade privada nos proteja da guerra. Ainda
que a propriedade privada seja ela mesma o estado de agregação primeiro da
guerra.
Então, quanto mais somos governados ou incluídos numa disciplina, mais somos
controlados e isolados nas nossas acções e nos nossos comportamentos. O
governo olha as massas, mas não vê senão indivíduos. Ele mede a potência mas
só se concentra nos actos.
Compreende-se então como uma singularidade amada é qualquer e não
intercambiável enquanto uma singularidade produtiva está isolada e
individualizada e, contudo, é em qualquer momento substituível.
O nosso contacto com a informação geopolítica aumentou, mas é cada vez menos
íntimo e, o vocabulário, convocado para definir toda estas exterioridades, começa
a desgastar-se. Os corpos que recebem este mar de notícias da frente tornaram-se
inorganizáveis. Os olhares repousam sobre os ecrãs. Recordações-ecrãs,
imagens-ecrãs: a realidade fragmentada dá origem a novas necessidades de
diversão. As nossas percepções apenas se alinham esporadicamente: este é o
efeito mais devastador e inédito desta guerra.
Esta é também a razão pela qual não conseguiremos combater esta guerra no
terreno das imagens ou da iconoclastia (o ecrã negro não é monocromático,
porque a pintura jamais pretendeu nos informar em directo do estado do mundo).
E, contudo, nunca o espectador foi tão influente, pois ele nunca tinha sido
precisamente o nome da condição de qualquer um.
É o valor de uso ético das nossas percepções que está por negociar e estabelecer,
mas que existe já em potência, à espera dos gestos que o ponham em circulação.
Porque, em tempos de guerra, não são apenas as trocas monetárias que se
modificam, mas é a economia do desejo na sua totalidade que é tocada pela
inflação.
Claire Fontaine
Claire Fontaine é um colectivo artístico sediado em Paris, fundado em 2004 por Fulvia
Carnevale e James Thornhill. Trabalhando em néon, vídeo, escultura, pintura e texto, o seu
trabalho pode ser descrito como uma interrogação contínua da incapacidade política e da
crise da singularidade que parece definir a sociedade contemporânea.
Notas da edição
Este texto é parte integrante do Caderno \ Claire Fontaine, coordenado por Luhuna
Carvalho, Mariana Pinho e Nuno Rodrigues. Tradução de Nuno Rodrigues. Revisão de
Pedro Levi Bismarck.
Imagem
Maquete de: “Arbeit macht capital”, 2004 (Fonte: Claire Fontaine)
Ficha técnica
Data de publicação: 27 de Janeiro 2016
Etiqueta: Pensamento crítico \ Politica; Artes \ Escritas
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