Resumo do texto: Significação, Representação e Ideologia
Autor: Stuart Hall
Referência: HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Organizacao: Liv Sovik. Belo Horizonte: Editora da UFMG, Brasília: Rep. Da UNESCO no Brasil, 2003.
O texto “Significação, representação e ideologia” trata-se de um ensaio de Stuart Hall cujo objetivo é gerar reflexões gerais acerca dos ganhos teóricos propiciados pelo rompimento de Althusser com formulações marxistas clássicas sobre ideologia. Para Hall, uma revisão do pensamento sobre ideologia foi possível graças às novas perspectivas dentro do marxismo possibilitadas pelas reflexões de Althusser.
Para Althusser, Marx conceituou o conjunto de relações que compõem a sociedade de forma essencialmente complexa (estrutura complexa), cuja relação entre os níveis nesta totalidade (que inclui economia, política e ideologia) não pode ser imediata e onde não é possível reduzir um nível de prática ao outro. Althusser rompe com a concepção monística de marxismo, reconhecendo a existência de distintas tradições sociais de origens diversas, além de notar que determinadas contradições que impulsionam os processos históricos podem surgir em lugares diferentes e gerar também diferentes efeitos históricos.
Hall aponta que Althusser permite pensar a diferença de uma forma especial, o que vai influir necessariamente nas formas de pensar o Estado. Isto porque o Estado é em si uma formação contraditória, composta por diversos modelos de ação, onde práticas políticas de diversos tipos se condensam. Tendo como função unir e articular um conjunto de discursos políticos e práticas sociais em diferentes locais, o Estado vai condensar práticas sociais diversas, transformando-as em operações de controle e domínio sobre classes específicas e outros grupos sociais (HALL, 2003, p.163). Isto vai exigir o pensamento das categorias “diferença” e “unidade” de forma mais articulada, o que autores como Foucault não chegaram a fazer. Para Hall, o avanço de Althusser consiste principalmente na necessidade de se pensar a unidade com a diferença e a diferença em uma unidade complexa.
Da obra de Althusser, Hall destaca “A favor de Marx” (1969) e em especial o ensaio “Sobre a contradição e a sobredeterminação”, onde segundo ele é possível pensar sobre tipos complexos de determinação sem reducionismo a uma unidade simples. Para ele, o texto ajuda a pensar sobre diferentes níveis e tipos de determinação, permitindo teorizar sobre eventos históricos concretos, textos específicos ou formações ideológicas específicas como algo que é determinado por mais de uma estrutura (processo de sobredeterminação). Ocorre assim que a ideologia de uma classe não necessariamente corresponde (ou não corresponde) à posição que esta classe ocupa no modo capitalista de produção. Do mesmo modo, não é possível inferir a ideologia de determinada classe tendo como ponto de partida sua posição original na estrutura das relações socioeconômicas. Entretanto articulações entre essas posições são plenamente possíveis. Assim, tem-se que em lugar da “causalidade estruturalista”, a interpretação de Althusser do marxismo se aproxima mais de uma dupla articulação entre estrutura e prática, que embora seja útil em um propósito analítico, não deve ser fetichizada.
Partindo deste princípio, é possível articular grupos sociais, práticas políticas e formações ideológicas a fim de resultar em rupturas históricas ou mudanças que não cabem no modo do sistema capitalista de produção. Isto permite pensar em uma classe “por si mesma”, ou seja, uma classe onde são articuladas as diferenças em uma vontade coletiva ou gerados discursos que aproximem práticas de diversas forças sociais.
IDEOLOGIA
No que diz respeito à noção de ideologia, Althusser parte da oposição ao reducionismo de classe, assim como fez em relação às posições gerais da problemática marxista clássica. Para ele, a primeira crítica da visão marxista de mundo é que a análise histórica concreta nega a necessária identidade empírica entre classe e ideologia. A segunda crítica diz respeito a noção de “falsa consciência”, que supõe, tendo como fundamento uma relação empírica com o conhecimento, que as relações sociais fornecem o seu conhecimento sem ambiguidade aos sujeitos presentes e perceptivos e que existe uma relação transparente entre as situações em que os sujeitos estão envolvidos e o modo como as reconhecem. (HALL, 2003, p.170). A terceira crítica vai no sentido de que o conhecimento deve ser produzido como consequência de uma prática específica, e sendo ele ideológico ou científico, é produto da prática, e não o reflexo do real no discurso ou na linguagem. O significado é assim, produto do trabalho ideológico ou teórico.
Para pensar especificidades da práticas ideológicas ou sua diferença a partir de outras práticas sociais, Althusser o nível da prática ideológica a outras instâncias de formação social, propondo alternativas às concepções tradicionais de ideologia.
“APARELHOS IDEOLÓGICOS DO ESTADO”
No ensaio “Aparelhos ideológicos do Estado”, Althusser chega à formulação de que a ideologia, através dos aparelhos ideológicos, atua reproduzindo as relações sociais de produção (sendo aqui a reprodução encarada no sentido de reprodução da força de trabalho, sentido mais restrito que o utilizado por Marx). Ocorre que aqui, Althusser se refere ao posicionamento da classe dominante, sem problematizar a ideologia das classes dominadas, o que é um problema em seu posicionamento.
Uma segunda formulação de Althusser consiste na definição da linguagem e do comportamento enquanto locais onde se dá o registro material da ideologia, ocorrendo estes sempre em locais sociais e associados a aparelhos sociais. Isto rompe com o dilema materialista ao lidar com eventos “mentais”, além de permitir decifrar os padrões de pensamento ideológicos ali inscritos. Portanto, Hall deixa claro que para Althusser, as ideias têm existência material, nas ações do homem, inseridas em práticas inscritas na própria existência material de determinado aparelho ideológico. O pensamento tem efeitos reais e materiais: “A existência da ideologia é material, ‘pois está inscrita em práticas’” (HALL, 2003, p.174).
Hall critica a terminologia “aparelhos ideológicos do Estado” usada por Althusser, uma vez que ela remete a um pensamento funcionalista onde é necessária a vinculação entre modos de produção e funções da ideologia. Nas palavras do autor, “Sua nomenclatura não faz jus àquilo que Gramsci chamaria de imensas complexidades da sociedade nas formações sociais modernas – ‘as trincheiras e fortificações da sociedade civil’. Nem interpreta a complexidade dos processos pelos quais o capitalismo deve funcionar para ordenar e organizar uma sociedade civil que não está, tecnicamente, sob o seu controle imediato. Estas são questões relevantes ao campo da ideologia e da cultura que a formulação ‘aparelhos ideológicos do Estado’ nos encoraja a evitar” (HALL, 2003, p.176).
No mesmo texto, Althusser propõe uma terceira formulação. Para ele, toda ideologia funciona por meio da categoria de sujeito, existindo este apenas na ideologia e em função desta. Assim, para Althusser a ideologia existe apenas em virtude da categoria constitutiva de “sujeito”. Aqui, sujeito é tido como “o eu das alternativas ideológicas”, como a posição em que o sujeito é constituído (HALL, 2003, p.177).
Hall ainda promove uma crítica ao ensaio de Althusser, que segundo ele provocam uma bifurcação “desastrosa” do projeto teórico do autor. A divisão de “Aparelhos ideológicos do Estado” em duas partes (uma tratando de ideologia e reprodução; a outra estudando a constituição do sujeito e as ideologias no campo do imaginário), possibilitou a separação das temáticas onde a teoria do sujeito se desloca de elemento crítico da teoria geral da ideologia para o todo da própria teoria. Assim, mais estudos foram desenvolvidos sobre a segunda parte do ensaio, e não a primeira. “A questão da reprodução foi atribuída ao polo (masculino) marxista, enquanto a questão da subjetividade, ao polo (feminista) da psicanálise. Desde então, nunca mais se encontraram” (HALL, 2003, p.178).
A IDEOLOGIA EM FAVOR DE MARX
Partindo da ideia de que as ideologias são sistemas de representação materializados em práticas, sem querer fetichizar as práticas, Hall relembra formulações de Althusser sobre a ideologia feitas em “A favor de Marx”. Althusser define ali ideologias como sistemas de representação (conceitos, ideias, mitos ou imagens) onde os sujeitos sociais, homens e mulheres, vão viver suas relações imaginárias com reais condições de existência (HALL, 2003, p.179). Tal designação, de caráter discursivo e semiótico, diz que as ideias se materializam nas práticas sociais constituídas na interação entre significado e representação, inexistindo assim prática social fora da ideologia. Mas o fato de as práticas sociais se situarem no discurso não significa que elas vão se restringir a este campo. A ênfase sobre o discurso é assim correta na medida em que aponta para a importância do significado e da representação.
Ocorre que os sistemas de representação não são únicos e sim plurais, e a própria ideologia opera em cadeias discursivas, onde as representações ideológicas convocam umas as outras e onde a ideia de ideologia dominante e ideologia subordinada não é adequada para representar a pluralidade de discursos ideológicos nas sociedades modernas.
Hall disserta sobre a necessidade da existência de sistemas de representação para demonstrar o que o real vai denotar para nós e para os outros, num esquema onde “viver” tem um significado dentro da cultura, do significado e da representação. Se, para Althusser, os seres humanos experimentam, interpretam e dão sentido às coisas utilizando diversos sistemas de interpretação, a ideologia vai poder definir um mesmo objeto ou objetivo do mundo real de mais de uma forma, inexistindo correspondência necessária entre as formas que as relações sociais são representadas e as suas condições de existência. Ainda neste sentido, Hall faz concluir que inexiste experiência fora das categorias de reprodução e ideologia, sendo a experiência produto de nossos códigos de inteligibilidade e de nossos esquemas de interpretação. Não há, para Hall, relação direta entre condições de existência social e a forma como o ser humano experimenta, sendo assim, impossível experimentar as relações reais de uma sociedade desconsiderando as categorias ideologia e cultura.
Considerando que em cada obra de Althusser há formulações úteis, embora não definitivas, que ajudam a pensar ideologia no contexto moderno, Hall passa a tentar promover algumas articulações que possibilitem refletir sobre formações ideológicas.
LENDO UM CAMPO IDEOLÓGICO
Neste ponto, Hall passa a refletir sobre ideologias de identidade, lugar, etnia e formação social em torno do termo negro, tomando por base seu exemplo pessoal. Mostrando as diversas formas que a sua identidade negra foi representada em diferentes culturas, com termos específicos (diferentes ou não) em cada uma delas, Hall considera que o termo “negro” vai operar em sistemas distintos de diferenças e equivalência, carregando portanto conotações diferentes e não fixas. O significado de “negro” vai assim, surgir na diferença entre os termos, categorias e sistemas de referencia que classificam o mundo.
O autor considera que ele não é essencialmente nenhuma daquelas formas de representar designadas por “negro” e outras expressões, embora já tenha sido em algum momento cada uma delas e ainda possa ser um pouco assim de certa forma. Das índias ocidentais, Hall também pontua o termo “imigrante” como expressão positivamente marcada que coloca o sujeito como aquele que pertence a outro lugar. Assim, “negro, “imigrante”, “coolie” vão possuir significado relacional num sistema ideológico de presenças e ausências.
No que diz respeito à ideia de Althusser que coloca que somos sujeitos “já e sempre”, Hall contesta dizendo que tal fato exigiria que as pessoas nascessem com estruturas de reconhecimento e meios de posicionamento através da linguagem de forma determinada. Conforme Hall explicita, o que ocorre é que ao invés de experimentarmos a ideologia como se fôssemos sujeitos livres, como se ela existisse espontaneamente dentro de nós, os discursos ideológicos é que falam por nós em discursos ideológicos mesmo antes de nascermos.
Hall assim desenvolve a ideia de que as categorias raciais e étnicas constituem ainda a vivência das estruturas de dominação e exploração. Na sociedade jamaicana, a exemplo, os discursos em torno destas categorias vão constituir aquele terreno como um campo de diferenças sociais que se estruturam em torno das categorias específicas cor, etnia e raça. Aqui a ideologia vai cumprir o papel de estabelecer classificações específicas da população com base em tais categorias. Tanto na Jamaica quanto na Grã-Bretanha, o campo das relações sociais, onde as contradições em torno dos termos classe, raça e gênero classificam o mundo vai gerar um modo distinto de operação com histórias e formas de dividir a sociedade diferentes. Vale lembrar aqui que as posições sociais advindas da articulação entre os três termos, são sujeitas a uma dupla determinação e são, portanto, sobredeterminadas. Por fim, é necessário lembrar que as relações sociais características de determinado momento histórico vão constituir referente em formações discursivas específicas.
A LUTA IDEOLÓGICA
Ao reconhecer a importância de vislumbrar o campo semântico onde as cadeias ideológicas adquirem significado, Hall lembra que estas “zonas semânticas” podem deixar seus traços mesmo quando deixam de existir as relações sociais que as constituíram. O autor lembra que ainda que os discursos estejam fragmentados em ideologias, tais traços podem ser reativados num futuro.
Ainda refletindo sobre o termo “negro”, Hall o utiliza como exemplo para demonstrar que uma cadeia ideológica particular pode se tornar lugar de luta, na tentativa de delimitar novos significados para o termo, com associações e rearticulações que desloquem o sentido de “negro” do negativo para o positivo. Assim, nenhum termo tem pertencimento de classe obrigatório e definitivo. “Em suma, o significado do conceito [negro] mudou como resultado da luta em torno das cadeias de conotação e das práticas sociais que possibilitam o racismo através da construção negativa dos “negros” (...) Porque ‘negro’ antes significava tudo que devia ser menos respeitado, agora pode ser afirmado como ‘lindo’, a base de nossa identidade social positiva, que requer e engendra nós. ‘Negro’, portanto, existe ideologicamente somente em relação à contestação em torno dessas cadeias de significado e às forças sociais envolvidas nessa contestação” (HALL, 2003, p.195). É válido salientar que para o autor, o campo ideológico tem seus próprios mecanismos. É relativamente autônomo em sua constituição, controle e luta social, mas ao mesmo tempo não é redutível e nem está livre de determinismos.
Por fim, tem-se que ao sugerir uma concepção não reducionista do termo negro, Hall vai demonstrar que ao contrário do que pregava Althusser, a ideologia não está apenas à serviço da reprodução das relações sociais de produção. Ela também é responsável por estabelecer limites para a reprodução tranquila e funcional da “sociedade-em-dominância”. As mudanças de ênfase na linguagem e na ideologia constituem-se enquanto processos contínuos e infinitos, o que não seria possível pensar considerando que as ideologias estão sempre inscritas e determinadas.