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4/22/2018 Folha de S.Paulo - Três visões de Canudos - 6/11/1995
predominantemente messiânica, já que a comunidade oferecia
melhores condições de vida do que outras regiões do sertão
nordestino. Villa é ainda mais ousado e original ao negar que se
tratasse de uma comunidade messiânica ou milenarista. O fim do
mundo teria sido, para ele, apenas um elemento do discurso religioso,
mas não o principal fator na organização da vila, que manteve
ligações com a economia regional.
"Canudos, o Povo da Terra", de Marco Villa é mais preciso e sintético
do que o livro de Levine. Villa destaca-se, como historiador, pela
pesquisa rigorosa, ainda que seja pouco cauteloso quanto à
possibilidade de difusão de crenças sebastianistas e milenaristas entre
os seguidores do Conselheiro. É bem verdade que os oficiais e
jornalistas da época recorreram ao fanatismo religioso, para explicar a
resistência dos conselheiristas e a derrota de três expedições militares
contra a vila. Mas a hipótese de circulação de idéias milenaristas,
descartada por Villa, permite dar conta de aspectos do conflito, como
a intensa migração para Canudos em pleno acirramento da guerra e a
luta heróica e quase suicida dos conselheiristas contra o Exército.
Na edição brasileira de "O Sertão Prometido", os textos citados por
Levine foram traduzidos, com exceção de "Os Sertões", da versão
norte-americana, o que prejudica o caráter documental do livro. Mais
grave porém são os erros factuais que o autor comete, inadmissíveis
em uma obra histórica. A ação militar contra Canudos não durou
quase dois anos, mas pouco menos de um ano. O ataque aos jornais
monárquicos no Rio e em São Paulo, após a notícia da derrota da
terceira expedição, não ocorreu em fevereiro de 1897, mas no mês de
março. Canudos não se rendeu, pois lutaram até a morte os
conselheiristas que não optaram pela fuga ou rendição.
São ainda maiores os erros de Levine a respeito de Euclides. Este não
tinha "aparência amulatada", sendo descabido compará-lo a escritores
negros ou mulatos, como Machado de Assis, Lima Barreto e Nina
Rodrigues. Foi seu pai, e não o futuro sogro, o general Solon Ribeiro,
quem interveio para abrandar sua punição ao ser desligado da Escola
Militar em 1888, por ato de protesto contra a monarquia.
Depois, foi o futuro sogro, e não Benjamin Constant, quem o ajudou a
regressar ao Exército após a proclamação da República. "Os Sertões"
foi publicado a partir de 1911 pela Livraria Francisco Alves, e não
pela Laemmert, que havia lançado apenas as três primeiras edições.
Villa e sobretudo Levine interpretam "Os Sertões" de forma muito
esquemática, com base em uma suposta oposição entre litoral e
sertão, entre civilização e barbárie. Preocupados em apontar os
equívocos de Euclides, não perceberam a ambiguidade de sua
narrativa histórica, que transita entre a literatura e a ciência.
Não deram tampouco a devida importância ao seu impacto literário e
cultural, com uma extraordinária recepção, reedições sucessivas e
inúmeros estudos. Outras obras até mais fidedignas, como "O Rei dos
Jagunços", de Manoel Benicio, não tiveram a mesma repercussão.
Levine chega a reconhecer a ambivalência de Euclides no retrato do
sertanejo como raça retrógrada e combatente corajoso. Mas enquadra,
de forma errônea, Euclides no que chama de "visão do litoral",
própria às elites urbanas que importavam técnicas e idéias da Europa
e desprezavam a vida rural como rústica e primitiva, tomando
Canudos como símbolo do choque entre racionalidade urbana e atraso
rural.
Euclides criticou justamente tal racionalidade urbana e suas
pretensões civilizatórias, ao denunciar o massacre cometido pelo
Exército, em nome da ordem e do progresso. A partir da cobertura ao
vivo dos momentos finais da guerra, ganhou distância crítica frente ao
ideário republicano e percebeu a ausência de intuito político dos
seguidores do Conselheiro, cujo monarquismo era, antes de tudo,
mítico e religioso.
Adotou, em "Os Sertões", um modo historiográfico ousado, ao dar um
arranjo poético-científico aos fatos selecionados. Sua narrativa oscila
entre a perspectiva científica, do determinismo do meio e da raça, e a
construção literária marcada pelo fatalismo trágico, que vê inscrito na
própria natureza. Recorreu a formas de ficção, como a tragédia e a
epopéia, para dar conta do horror da guerra. A epopéia gloriosa da
República, pela qual combatera na juventude, adquiriu caráter trágico
no violento massacre de que foi testemunha em Canudos.
Euclides mostrou a multiplicidade de tempos históricos e culturais e
traçou paralelos entre os dois lados do conflito, entre o soldado e o
jagunço, entre a República e Canudos, mergulhados no mesmo
fanatismo. Revelou, com pessimismo irônico, as ilusões dos ideais de
progresso que pregavam a reprodução da experiência européia. Ao
construir uma ampla interpretação do Brasil, inseriu a história da
guerra em um enredo capaz de ultrapassar a significação dos fatos que
lhe deram origem.
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