Академический Документы
Профессиональный Документы
Культура Документы
Resumo
Estranhamento, distanciamento e reflexividade passaram a freqüentar o discurso das ciências sociais como
instrumentos de combate aos “idola” modernos. Uma rápida reconstrução metateórica dessas idéias aponta
para sua origem diversa, mas convergente na chegada. A primeira, originária da atitude antropológica diante
de seu objeto, impõe-se a todos aqueles que se vêem envolvidos na problemática que desejam analisar. O
equivalente na Sociologia é a idéia de distanciamento, eleita por Elias como uma das características do
pensamento realista e, conseqüentemente, do conhecimento científico, que atualiza antigos apelos para a
objetividade científica. Por último, a idéia de reflexividade perpassa toda a discussão contemporânea em
torno da ação social e da prática sociológica. Tendo como suporte empírico uma experiência de orientação de
uma dissertação de mestrado, procuramos realizar uma análise da fecundidade e dos limites dos princípios
antes mencionados.
O conhecimento científico se faz para Bacon (1984) no combate aos idola que, na sua
formulação, não apenas impedem o acesso à verdade, como também obstaculizam a própria
instauração das ciências, quando já se tenha ultrapassado o umbral da ignorância. São eles: os
ídolos da tribo, da caverna, do foro e do teatro.
Embora sejam de todos conhecidos, farei, aqui, uma rápida incursão no sentido de
facilitar a exposição futura. Com a idéia de ídolos da tribo, o autor quer mostrar que a
percepção humana, tanto dos sentidos quanto da mente, está condicionada pela própria
natureza humana. Assim, em vez de ver o objeto que se coloca à percepção, é a natureza
humana mesma que está sendo objeto de apreciação. Os ídolos da caverna relacionam-se com
as limitações individuais, de tal forma que condicionam a visão do mundo objetivo pela
própria visão que se tem de seu mundo particular. Os dois últimos, os ídolos do foro e do
teatro, pertencem à esfera das crenças, as quais impedem o pensamento correto. Os ídolos do
foro referem-se à adesão tácita ao mundo categorial, correspondem àquilo que Durkheim
(1989; 1978) chamou de sistema de classificação de uma sociedade, sem o qual a vida social
seria impossível, mas que, para Bacon (1984), seria precisamente uma fonte de erro. Em
termos modernos, podemos definir os ídolos do teatro como sendo o plano da ideologia, que
operam não apenas no nível das doutrinas filosóficas, mas também no dos vícios da
demonstração da argumentação.
1
Comunicação a ser apresentada no Seminário Temático A Constituição de Fronteiras nas Ciências Sociais:
tensão e extensão no campo metodológico, XXVIII Encontro Anual da Anpocs, outubro de 2004. Coordenado
pelo Prof. Mário Antônio Eufrásio (USP), Profa. Sueli Kofes (UNICAMP), Prof. Jordão Horta Nunes (UFG).
2
Professor Titular de Sociologia da Universidade Federal de Goiás.
2
É longo o percurso que a busca do conhecimento percorreu desde Bacon, procurando
formular cânones lógicos, epistemológicos, ora mais rigorosos ora menos, assim como
estratégias metodológicas diversas. Alguns desses temas foram rebatizados com outros nomes
e, como corolário, outras formas de combate foram sugeridas. De maneira alguma podemos
sugerir que elas mais confundiram que esclareceram, pois, no mínimo, atualizaram os apelos
antigos para objetividade científica.
A estruturação das ciências sociais não escapou dos ditames de Bacon, embora tenham
sido, desde então, os ídolos do foro e do teatro os dilemas com que, com mais freqüência se
envolveram. Nesta medida, o debate instaurou-se ora defendendo a perspectiva de sua
incorporação ora o oposto disso. Isto não significa que tanto os ídolos da tribo quanto os da
caverna tenham deixado de ser tematizados. Ao contrário, muito cedo, percebeu-se a
dificuldade dos sociólogos de lidar com um objeto do qual faziam parte, mas diante do dilema
de “se pegar ou largar”, não tiveram dúvida, arregaçaram as mangas na empreitada insana. Da
mesma forma, os ídolos da caverna foram incorporados à atitude de pesquisa.
Nessas ciências, o combate aos idola teria a sua maior expressão na busca incansável,
senão de um saber desinteressado à maneira de Mannheim (1968) ou à de Bourdieu (1996), ao
menos de um conhecimento que pudesse colocar-se acima dos interesses de grupos que
ocupam posição dominante na estrutura social. Ou ainda, segundo Habermas (1973), seria
preciso distinguir dentre as múltiplas formas de conhecimento os vários tipos de interesse que
as guiam. Assim sendo, o conhecimento científico, no sentido estrito, seria orientado pelo
interesse da predição e controle; o conhecimento histórico pelo do consenso e o hermenêutico
pelo interesse transcendental da emancipação humana.
O impacto da denúncia feita, na virada do século XIX para o XX, de que a ciência
tinha se tornado ideológica, foi decisivo nessa discussão e, logicamente, não foi menor nas
ciências sociais. De tal forma que, passado o deslumbramento, não só os antigos apelos
recebem uma nova nomenclatura, mas também sugerem-se novas medidas acauteladoras
contra os novos ídolos. É o que recomenda, por exemplo, o “Programa forte em sociologia da
ciência” 3(Bloor, 1976, Rabelo, 1993), quando propõe que a análise sociológica da ciência,
além de procurar estabelecer uma relação de causa e efeito entre o conhecimento e as
condições sociais que o geram princípio da causalidade , deve ser imparcial nas suas
avaliações princípio da imparcialidade ; simétrica no sentido de que as mesmas causas
podem explicar tanto as crenças verdadeiras quanto as falsas princípio da simetria e,
reflexiva, na medida que devem esses princípios ser estendidos à sociologia, constituindo-se
no princípio da reflexividade.
3
Citado apenas a título de exemplo.
3
É, neste contexto que idéias como estranhamento, distanciamento e reflexividade
passaram a freqüentar o discurso das ciências sociais como os instrumentos de combate aos
idolos atuais e, nessa perspectiva, é que proponho discutir a fecundidade e os limites desses
princípios, tendo como suporte empírico a experiência de orientação de uma dissertação de
mestrado, recentemente desenvolvida por um orientando estrangeiro, que tematizava o
pessimismo com que os brasileiros se pensam e os desdobramentos disso em termos da ação
coletiva da classe trabalhadora.
4
O fato de incentivar uma expressão simbólica, menos racional, favorece o necessário estranhamento que todo
processo de conhecimento pressupõe, ajudando a descobrir faces não aparentes da realidade investigada
(autopoiesis).
5
Assim, o tradutor do inglês dessa obra, Álvaro de Sá (1998), justifica a adoção do termo: “Talvez, os seguidores
mais ortodoxos de Norbert Elias estranhem que, no título do livro e no corpo desta tradução, o termo detachment
(tradução do distanzierung alemão para o inglês) tenha sido traduzido para o português como alienação e não
como distanciamento ou afastamento. Isso procurou melhor atender à inserção do autor no intertexto filosófico e
à projeção que deverá ganhar nos próximos anos, pela proposta que faz de uma epistemologia dinâmica e sobre as
implicações sociais dos humanos. [...] E as implicações sociais oscilam entre o envolvimento, que leva as pessoas
a se enredarem nos fatos, passando a atuar neles comprometidas pelas tensões a que foram submetidas pelas
tensões a que ficam submetidas, e a alienação, que permite às pessoas se afastarem tanto das opiniões
padronizadas e da coerção emocional dos fatos e, dentro deles, utilizar suas potencialidades, principalmente as
advindas do conhecimento, para transpor as situações dilemáticas” (p. 7).
6
Discutindo a idéia do homo faber, muito freqüente no pensamento social, afirma: Em sua forma primeva, a
fabricação de instrumentos configura-se exemplo muito elementar de autodistanciamento e de alienação. Sua
lembrança, entretanto, poder ajudar a demostrar que a capacidade de alienação é um universal humano (p. 53).
5
seriam os homens e mulheres nos problemas de conhecimento. Ao contrário, quanto mais a
longo prazo sua perspectiva mais distanciados seriam eles. De certa forma, é a visão de tempo
também um elemento que distingue as diferentes disciplinas, ainda que não afete, por si, a
natureza do seu objeto, mas apenas o seu tratamento, considerando que o distanciamento no
tempo permitiria, primeiro, estabelecer conexões entre passado e presente e, segundo, tomá-los
como fatos. A título de ilustração, parece ser importante invocar a autoridade de Elias, neste
momento, embora, a citação seja longa. Comparando a perspectiva da sociologia com a das
ciências naturais, como a cosmologia, argumenta Elias (1998):
Os perigos das forças não-humanas que ameaçam as pessoas foram lentamente decrescendo.
Efeito não menos importante de uma abordagem mais alienada nesse campo foi aquele da
limitação dos medos, de sua prevenção, ou seja, de perceber bastante amplamente o que, de
fato, pode ser considerado ameaçador. O desamparo inicial diante das forças naturais
incompreensíveis e incontroláveis lentamente deu lugar a um sentimento de confiança,
simultâneo, pode-se dizer, ao aumento da facilitação, ao poder das pessoas para, nessa esfera,
elevar o nível geral de bem-estar e ampliar a zona de segurança mediante aplicação de pesquisa
paciente e sistemática (id. p. 116)
Talvez o melhor modo de indicar sucintamente esse aspecto das diferenças seja a construção
hipotética de um ou mais modelos que representem referenciais estruturas diversificadas dos
problemas científicos de forma mais generalizada, como enquanto unidades compostas
organizadas de acordo com a extensão da interdependência de seus constituintes ou, mais
genericamente, de acordo com seu grau de organização (id. p. 135).
Sistemas e processos altamente estruturados muitas vezes têm partes que são, também,
sistemas e processos; e esses, por sua vez, podem ter partes que sejam sistemas em
desenvolvimento, embora com menor grau de autonomia. De fato, esses sistemas dentro de
sistemas e processos dentro de processos podem consistir em muitos níveis de força e poder
controlador de relativa subordinação interligados e encadeados uns aos outros; de tal modo,
que aqueles que estão extraindo conhecimento de um deles têm necessidade de livres canais de
comunicação com quem está trabalhando nas galerias acima e abaixo e, ao mesmo tempo, de
clara noção das posições e das funções de seu próprio campo de questões e de sua própria
situação dentro do sistema como um todo (p. 140).
8
Isto garantiria, a meu ver, a coerência da sociologia que pretende fundamentar, a
sociologia dos processos, em contra-posição à sociologia que tem sido praticada e que, na sua
avaliação, seria altamente redutora dos processos.
A sociologia corrente que se exime a pôr em causa de modo radical as suas próprias operações e
os seus próprios instrumentos de pensamento, e que veria sem dúvida em tal intenção reflexiva um
vestígio da mentalidade filosófica, logo, uma sobrevivência pré-científica é inteiramente
7
Assim, argumenta Giddens em seu “Novas regras do método sociológico – uma crítica positiva das sociologias
compreensivas ” (1978[1976]): “Mas nada é mais central, e distintivo, da vida humana que a orientação reflexiva
do comportamento, que todos os membros ‘competentes’ da sociedade esperam dos outros (p. 120).
8
Desde já, adianto, que, nos dois casos, a utilização da idéia de reflexividade, sendo tributária, direta ou
indiretamente, da filosofia da linguagem, lidar com essa distinção exigiria um alto grau de refinamento, para não
dizer de difícil sustentação. Acreditando, como Bourdieu (2001), que ela é um enorme de pré-construções
naturalizadas, ficaria muito difícil ignorá-la.
9
atravessada pelo objecto que ela quer conhecer e que não se pode realmente conhecer, pelo facto
de não se conhecer a si mesma (id. p. 35).
Para tanto, sugere a objectivação participante que consistiria em romper com as aderências
mais profundas e com as adesões mais profundas e mais inconscientes (id. p. 35), que tanto
projeta a sociologia como uma arma nas lutas no interior do campo, em vez de concebê-la
como instrumento de conhecimento dessas lutas9, evitando o que ele chama em “Os usos
sociais da ciência” (2003 [1997]), o “erro do curto-circuito” (id. p. 20). Para tanto, introduz a
noção de campo. Assim, argumenta:
A noção de campo está aí para designar esse espaço relativamente autônomo, esse microcosmo
dotado de suas leis próprias. Se, como o macrocosmo, ele é submetido a leis sociais, essas não são
as mesmas. Se jamais escapa às imposições do macrocosmo, ele dispõe, com relação a este, de uma
autonomia parcial mais ou menos acentuada. E uma das grandes questões que surgirão a propósito
dos campos (ou dos subcampos) científicos será precisamente acerca do grau de autonomia que
eles usufruem (id. p. 20/21).
Ainda que, em “Lições da lição” (2001a [1982]), Bourdieu defenda que a sociologia, que
cultiva, tenha, como uma de suas propriedades fundamentais, a capacidade de aplicar todas as
proposições que enuncia, no seu métier, ao sujeito que faz a ciência (id. p. 4), limita a sua
aplicação ao sujeito cognoscente e não estende ao agente social em geral. Essa ligação só uma
leitura mais cuidadosa poderá restabelecer, visto que, tal como está colocado nos textos de
caráter metodológico, fica em suspenso.
A título de conclusão, a idéia de reflexividade, pelo menos para maior parte dos autores
colocados em discussão, por si mesma, seria capaz de cobrir todas as dimensões dos ídolos
baconianos, principalmente, a partir do momento em que todas as esferas do conhecimento
foram reduzidas ao estatuto da crença, como já foi adiantado.
Até onde vai a minha memória, eu diria que a questão que o orientando apresentou, na
sua dissertação de mestrado, já estava presente nas suas primeiras observações em sala de
aula, ainda no primeiro ano do Curso de Ciências Sociais como aluno da disciplina de
Introdução às Ciências Sociais, em 1998. Eram ainda impressões de um jovem recém-chegado
9
“Objectivar a pretensão à posição realenga que, como há pouco disse, leva a fazer da sociologia uma arma nas
lutas no interior do campo em vez de fazer dela um instrumento de conhecimento dessas lutas, portanto do
próprio sujeito cognoscente o qual, faça o que fizer, não deixa de estar nelas envolvido, é conferir a si mesmo os
10
de Cabo Verde, perplexo diante da imensidão territorial e da exuberância da paisagem
brasileira. Era evidente, ainda que as impressões fossem primeiras, que não se tratava de uma
ilha, nem mesmo de um arquipélago. Além disso, embora a vegetação do cerrado pudesse
evidenciar alguma semelhança com a aridez do território cabo-verdiano, a chegada na época
das chuvas elidia qualquer comparação.
Essa perplexidade adquiriu, com o tempo e com o contato com o pensamento social
brasileiro, feição formal. Assim afirmava, na primeira versão de sua dissertação:
Ora, é bastante curioso e muito instigante que sempre que se pergunta sobre as possibilidades
de desenvolvimento, de associação e sobretudo da afirmação político-econômica e sócio-
democrática do Brasil, as respostas são, na sua maioria, pessimistas. Respostas como essas são
freqüentes: o país é “apolítico”; há falta de “solidariedade cívica’; o “autoritarismo” é
recorrente e faz parte da nossa história política; o povo não sabe diferenciar o “público” do
“privado”, o “impessoal” do “pessoal” e que a “democracia” e a “cidadania” são práticas
sociais estranhas ao nosso povo (Pereira, 2004).
A perplexidade se torna ainda maior pelo fato de esse pessimismo animar grande parte do
trabalho acadêmico. Em seus termos: “A questão fundamental e que constitui o problema
central deste trabalho é esse pessimismo que parece estar difuso em toda sociedade brasileira e
reproduzido pelos trabalhos acadêmicos” (Pereira, 2004). A necessidade do estranhamento
colocou-se de maneira diferente, porém complementares, nos dois momentos. No primeiro, era
o olhar estrangeiro, olhando-nos. Mas não era qualquer olhar estrangeiro, era um olhar de um
estrangeiro que não nos olhava com a superioridade de um europeu ou estadunidense, mas de
um africano ou quase, que conclamava a mim, como professor, e a seus colegas brasileiros
também, a ter uma visão mais otimistas sobre nós mesmos. No segundo, tratava-se de pensar-
nos enquanto povo, o que se colocava para mim, enquanto orientador, como uma pretensão
desmedida, mas que precisava ser estranhada.
A necessidade do estranhamento não se colocou apenas nestes planos mais gerais; fez-se
presente também na linguagem, quando me defrontava com termos e construções idiomáticas
que não eram comuns ao português escrito ou falado no Brasil e, ainda, diante das críticas aos
estudiosos brasileiros como a que passo a destacar. Afirma: “A persistência em representar a
classe trabalhadora brasileira como um ‘corpo’ ou uma ‘categoria’, deve-se ao apego que os
intelectuais brasileiros têm a perspectiva de análise que têm dificuldades de enxergar o lado
humano do trabalho” (Pereira, 2004).
meios de reintroduzir na análise a consciência dos pressupostos e preconceitos, associados ao ponto de vista local
e localizado daquele que constrói o espaço dos pontos de vista” (2001b, p. 52).
11
A busca do lado humano do trabalho levou o orientando a incorporar, na sua
dissertação, a discussão das mudanças no mundo do trabalho, privilegiando a dimensão
subjetiva (bem-estar individual, convivência social e criatividade), em detrimento da objetiva
(salário, por exemplo e execução de tarefas mecânicas), em termos mais sociológicos,
colocava-se a distinção entre ação com sentido e ação instrumental ou estratégica. Em si
mesma, a incorporação dessa discussão não me parecia descabida, considerando que o arsenal
de reflexões e de pesquisa empírica já desenvolvido pelos sociólogos brasileiros apontava na
mesma direção. O que me parecia estranho era a associação que fazia entre essas mudanças e o
caráter brasileiro, indicando que a heteronomia da nossa experiência de modernidade dava
lugar a uma experiência pós-moderna exemplar. Enfim, em tom de brincadeira, dizia a ele, que
a sua dissertação indicava-me que nós brasileiros éramos pós-modernos avant la lettre.
É, neste momento, que se colocava para o orientador a necessidade de estranhar o
estranhado. Não se tratava apenas de buscar elementos empíricos para referendar esta ou
aquela afirmação. Tratava-se de colocar-se num plano diferente do que o orientando se
situava, ou seja, no plano metateórico, para que o distanciamento pudesse operar de maneira
inequívoca. Enfim, com que categorias o pesquisador queria pensar o Brasil senão com
aquelas com que os pesquisadores brasileiros de Sérgio Buarque de Holanda a Maria Célia
Paoli se colocavam? Categorias que, embora fossem cuidadosamente examinadas, eram
tributárias de uma representação de mundo estranha à nossa experiência. Da mesma forma,
que a tentativa de repensar o Brasil se dava na mesma direção. No entanto, não era bem isso o
que ocorria, já que a experiência estava envolta numa espessa camada de envolvimento.
Nesse sentido, parece importante registrar o fato de que quando anunciava essas idéias, em
primeira mão, no seu exame de sua qualificação, alguém do público reclamou de que o
orientando já era brasileiro, chamando a atenção para a perda de sotaque e para a sua completa
integração na sociedade goianiense.
De certa forma, era o mesmo sentimento que, certamente, animara os estudiosos nativos,
que, instalando-se nas grandes metrópoles coloniais, colocavam em questionamento o caráter
genuíno de sua cultura, a partir de padrões europeus ou dos Estados Unidos da América do
Norte. Enfim, a diáspora tinha que ser compartilhada e, nessa medida, construiu-se uma
abordagem internalista e externalista, resolvendo no plano categorial (multiculturalismo,
hibridismo e différance10), quando não político, o dilema antropológico de origem (Hall,
2003).
10
Termo emprestado de Derrida (apud Hall, 2003).
12
Na experiência da orientação, como bem notou um dos examinadores11, permanecia sem
solução o descompasso entre uma abordagem internalista e externalista, pois, considerando
que o problema estava bem formulado, isto é, se as considerações que o orientando fazia a
respeito do caráter brasileiro eram fruto de uma abordagem externalista, a resposta deveria
exigir uma abordagem internalista, orientando-se quer pelas análises e reflexões do
pensamento social brasileiro nos termos de Bourdieu (2004, p. 32): capital coletivamente
acumulado no e pelo campo quer pela pesquisa empírica, em detrimento de uma abordagem
externalista. Estas colocações (reparos e sugestões) traziam, para a pauta da discussão, a
questão da heteronomia12. De antemão, entendíamos (orientando e orientador) que o
descompasso entre abordagem internalista e externalista existiria apenas e na medida que a
articulação de uma e outra se desse de forma inconsistente. Não havia uma sociologia regional
ou nacional e nem era por essa via que queríamos caminhar, pois significava invocar um
veredicto fora do campo.
Tornavam-se evidentes os limites desses princípios metodológicos diante de situações
liminares como esta, e ainda que a saída apontada passasse pelo nível metateórico, como me
referi antes, dever-se-ia acrescentar a eterna vigilância, que a reconstrução metodológica
(Oliveira Filho, 1976) proporcionaria, a qual poderia levar ao reconhecimento, que, em última
instância, norteia a produção de conhecimento.
4. Referências:
11
Participaram do exame de qualificação os professores: Profa. Dra. Nei Clara de Lima e Prof. Dr. Jordão Horta
Nunes.
12
A idéia de heteronomia é pensada diferentemente por Bourdieu (2004) e Elias (1998). Enquanto para o
primeiro heteronomia relaciona-se com a presença de critérios, argumentos e demonstrações de um outro campo
social no campo científico; para Elias, ela se deve, notamente, à questão do envolvimento. Aqui, estou referindo-
me ao descompasso existente entre as abordagens externalista e internalista, que é tributária das duas concepções.
13
GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro, Zahar, 1978.
GEERTZ, Clifford. Anti-anti relativismo. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo,
v.3, n. 8, p. 5-19, out.1988.
GEERTZ, Clifford. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro, Zahar, 2001.
GIDDENS, Anthony. A constituição da sociedade. 2ª ed. São Paulo, Martins Fontes, 2003.
GIDDENS, Anthony. Novas regras do método sociológico – uma crítica positiva das
sociologias compreensivas. Rio de Janeiro, Zahar, 1978[1976].
HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e interesse. Rio de Janeiro, Zahar, 1973.
HALL, Stuart. Pensando a diáspora – reflexões sobre a terra no exterior. In: — . Da diáspora:
identidades e mediações culturais. Belo Horizonte (MG), Editora UFMG; Brasília,
Representação da UNESCO no Brasil, 2003.
HASSEN, Maria Nazareth Agra. Metodologia, Etnografia: noções que ajudam o diálogo entre
antropologia e educação. Disponível em html: www.ufrgs.br/fotoetnografia/Metodologia.
Acesso em 30/08/2004.
MALINOWSKI, Bronislaw. Uma teoria científica da cultura. Rio de Janeiro, Zahar, 1962.
MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. Rio de Janeiro, Zahar, 1968.
OLIVEIRA FILHO, José Jeremias de. Reconstruções metodológicas de processos de
investigação social. Revista de História. São Paulo, n.107, 1995, p. 109-117.
OLIVEIRA, Roberto Cardoso. O trabalho antropológico. São Paulo, UNESP, 2000.
PEREIRA, Alírio Mendes. Culturas de trabalho e ação coletiva: caminhos para se pensar a
classe trabalhadora no Brasil. Programa de Mestrado em Sociologia.(Exame de qualificação).
Universidade Federal de Goiás, 2004.
PEIRANO, Mariza. A favor da etnografia. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1995.
RABELO, Francisco Chagas E. O “Programa forte em sociologia da ciência” – um estudo de
caso. Tese de doutorado. Universidade de São Paulo, 1993.
SÁ, Álvaro de. Nota do tradutor. In: ELIAS, Nobert. Envolvimento e alienação. Rio de
Janeiro, Bertrand Brasil, 1998.