Вы находитесь на странице: 1из 28

A Sociologia das Profissões:

Em Torno da Legitimidade de um Objeto

Maria Ligia de Oliveira Barbosa

Tístc artigo pretende fazer uma análise dagens nas Ciências Sociais contribui a seu
crítica da produção teórica na área de Socio­ modo para a definição desle campo icórico
logia das Profissões, procurando enfatizar a que é muito vasto e às vezes contraditório.
importância dos princípios de estruturação Os autores não serão tratados como entida­
da sociedade vinculados à profissão. Busca des isoladas, cu jas obras devam ser criticadas
desenvolver uma ótica que torne evidente os como um bloco, mas como contribuições à
processos pelos quais um tipo específico de constituição de uma temática, dc uma meto­
grupo social se constitui num dos agentes es­ dologia.
senciais dc formatação de determinados pa­ O texto desenvolve-se, pois, em torno
drões de sociabilidade, de organização das de uma temática abrangente: a questão de .ve
relações sociais. Chama-se a atenção aqui e como a profissão vem a ser um princípio dc
para o caráter dc estruturação específica que constituição e hierarquização dos grupos nu­
as profissões fazem do mundo social. O obje­ ma socicdade. l-m outros termos, pode-se
tivo c mostrar que o seu poder criativo vai perguntar pelo que distingue uma profissão
além da sua capacidade de definir os proble­ enquanto grupo social, ou cm que medida sc
mas a resolver, atingindo uma dimensão pode falar de um espaço social específico ca­
mais ampla, cm que o chamado “projeto de racterizado por relações cujo fundamento c
profissionalização" c visto como projeto dc a profissão. A existência desle espaço pode
implemeniação dc princípios específicos de se evidenciar de várias formas: no peso rela­
tivo que as profissões possam ter no direcio­
organização c divisão do mundo social.
liste tema, fundanle da Sociologia clás­ dade: ou de
namento tendências estruturais da socie­
sica, vem se transformando para sc constituir sibilidades dcseu
no papel na definição das pos­
poder, ou dc posições dc mer­
num campo de estudos que incorpora contri­ cado, ou ainda dc formas
buições dos mais diversos autores. Dois eixos ou de distinção social para degrupos
diferenciação
e indiví­
principais de análise compõem o núcleo do duos.
que sc pode denominar genericamente So­
ciologia das Profissões: a delimitação e posi­
cionamento dos grupos profissionais e a coe­ Problemas de Fronteira
são ou unicidade interna das profissões. Os
dois temas articulam-se na problemática da Durkheim
Trabalho
e a Divisão do
Social
forma de constituição dos grupos sociais cm
geral e do caráter dc seu agenciamento so­ Numa França marcada por um século
bre a cstruiura da sociedade. A especificida­ dc conflitos potencialmente disruptivos da
de das profissões como grupos sociais dirige ordem social, a temática das profissões surge
o foco da nossa atenção para o ideal dc servi­ como um dos principais elementos fundado­
ço e o profissionalismo. Cada uma das abor­ res da Sociologia de Durkheim. lisie autor
Itllt. Rio de .Janeiro, n. 36. 2.” semestre 1993. pp. 3-30 3
elegeu a integração social como principal partilhava com outros autores do período
problema de investigação sociológica (Par- que, “preocupados com a moralização da vi­
sons, 1977) c atribuiu aos grupos profis­ da profissional, enfatizavam a integração éti­
sionais um papel essencial na organização in­ ca que produzia (ou deveria produzir) um
tegrada das sociedades modernas. As crises ou outro tipo de institucionalização da divi­
por que passava a sociedade francesa são são do trabalho, de forma a limitar ou fazer
atribuídas ao fato de o rápido desenvolvi­ desaparecer os conflitos dc classe” (Chapou-
mento econômico do país nos últimos dois lic, 1973, p. 91).
séculos não ter gerado o desenvolvimento
paralelo de normas morais que pudessem re­ O Funcionalismo
gulamentar o novo estado das relações so­
ciais. lista primeira abordagem da vida
"Uma regulamentação moral ou jurídica profissional gerou frutos mais alentados a
exprime essencialmente necessidades so­ partir dos estudos norte-americanos sobre o
ciais que apenas a sociedade pode co­ funcionamento e a história das associações
nhecer; assenta num estado de opinião, e profissionais, elaborados desde o início do
toda a opinião c coisa coletiva, produto de século XX. Mas e com Parsons, Merton c
uma elaboração coletiva. Para que a ano- seus discípulos que se constitui a tentativa
mia cesse, é preciso assim que exista, ou se mais completa nesta área, que se parte para
forme, um grupo onde se possa constituir o “construir os princípios de coerência do con­
sistema de normas que atualmente falta. junto de características das profissões, isto é,
Nem a sociedade política no seu conjunto,
nem o listado, podem evidentemente cum ­ uma teoria do funcionamento, senão da gé­
prir esta função; a vida econômica, porque nese, dos grupos profissionais” (Ohapoulie,
c muito especial e se especializa cada dia 1973, p. 91).
mais, escapa à sua competência e à sua Para Parsons, 'profissões são sistemas
ação. A atividade de uma profissão não po­ de solidariedade cuja identidade se baseia na
de ser regulamentada eficazmente senão competência tccnica dc seus membros, ad­
por um grupo bastante próximo desta mes­ quirida nas instituições educacionais e cientí­
ma profissão para lhe conhecer bem o fun­ ficas” (Paixão, 198<N. p. 4). lista definição nos
cionamento. para lhe sentir todas as neces­
sidades e poder seguir todas as suas varia­ aproxima do Parsons preocupado com a teo­
ções. () único que responde a estas condi­ ria da ação, mas antes disso devemos com­
ções é aquele que todos os agentes de uma preender a importância sistêmica atribuída
mesma indústria reunidos e organizados por ele ao complexo profissional.
num mesmo corpo formariam. I o que se Com o desenvolvimento das sociedades
chama a corporação ou grupo profissional" modernas, as profissões passaram a ocupar
(Durkhcim, 1984. p. 12). um lugar central no sistema ocupacionat e
Definidos a partir de uma divisão do dominaram os diversos tipos de discussão
trabalho dc caráter mais técnico ou econô­ pública. Não sendo nem capitalistas, nem
mico, os grupos profissionais ganham impor­ trabalhadores, nem administradores gover­
tância para a vida social pelas suas qualida­ namentais típicos ou burocratas, os profis­
des morais, pelas possibilidades que encer­ sionais formam grupos dc fronteiras fluidas
ram de assegurar a unidade social, pelas fun­ mas poderiam scr distinguidos por alguns
ções integrativas que possam desempenhar. critérios. São portadores de treinamento téc­
Este tipo de enfoque privilegia a função em nico formal, com validação institucional da
detrimento da delimitação dos grupos, deixa­ adequação deste treinamento e da compe­
da de lado pela tecnicidade que lhe e atribuí­ tência do indivíduo treinado. São indivíduos
da. Mas, se não se pode negar a grandeza da que possuem um domínio sobre a racionali­
obra de Durkhcim, é impossível não reco­ dade cognitiva — tomada em sentido mais
nhecer. atrás do sociólogo, os traços do re­ amplo, quase uma “cultura geral” — aplicá­
formador social. Característica, aliás, que ele vel a um campo específico. Além do domínio
4
de uma certa tradição cultural, eles desen­ Tendo chegado a este ponto, que me
volvem uma habilidade especial. Outro crité­ parece crucial para uma análise estrutural
rio distintivo relevante, segundo Parsons, se­ das profissões, Parsons faz “uma ampliação
ria o controle da profissão sobre o uso social­ significativa do ‘lado weberiano’ (e, portanto,
mente responsável dessas qualificações. voluntarista) da teoria geral, às expensas da
O ponto de partida para o entendimen­ fidelidade ao colctivismo durkheimeano —
to da situação das profissões c sua localiza­ diminui o peso explicativo de dimensões co­
ção no sistema cultural. Historicamente, a mo 'valores comuns' sobre a integração sistê­
possibilidade da profissão institucionalizar-se mica, at) mesmo tempo cm que se amplia o
significativamente, constituindo vínculos mais espaço teórico da escolha racional de alter­
estreitos no interior do sistem social, foi dada nativas comportamentais.” (Parsons, 1988,
pela ancoragem no sistema cultural, em ex­ p. 5). Esta inflexão na sua trajetória teórica
pansão constante e firme nas sociedades mo­ faz com que, mesmo mantendo a preocupa­
dernas (Parsons, 1968, p. 543). O conheci­ ção com a profissão como elemento estrutu­
mento adquire maior centralidade c as uni­ ral importante na sociedade moderna, Par­
versidades e instituições de pesquisa, mais sons detenha-se no enfrentamento do '"dile­
desenvolvidas pela expansão do sistema cul­ ma representado pela oposição entre 'racio­
tural, tornam-se o centro da estrutura insti­ nalidade’ privada e ‘interesse público’ como
tucional das profissões, de onde elas se ir­ motivações para a ação individual”. (Par­
radiam cm duas direções principais, gerando sons, 1988, p. 4). Novamente, os grupos
dois tipos de profissionais: dentro do próprio profissionais são importantes, agora por um
sistema cultural, com a institucionalização outro motivo. Pela sua distância das organi­
das disciplinas intelectuais: e na criação de zações burocráticas, a prática profissional
formas de aplicação prática dessas disciplinas tende a scr mais próxima do sistema dc guil-
no sistema social. das e portadora de um maior status. Sendo
A centralidade conferida por Parsons ao assim, os profissionais tenderiam a apresen­
conhecimento tem duas conseqüências prin­ tar dois tipos de orientação nas suas ações:
cipais. A primeira delas e dar uma importân­ um ideal de serviço que os distinguiria dos
cia desproporcional, talvez, ao ramo acadê­ negociantes orientados para o mercado, e
mico das profissões. A própria divisão entre um padrão associativo diferente daquele
ramos — acadêmico c prático —, engloban­ existente nas organizações burocráticas c da­
do neste último uma serie imensa dc tipos de quele mais orientado para o mercado (Par­
trabalho diferenciados, é sintoma da despro- sons, 1968, p. 543). A ação profissional tor­
porcionalidade. lista questão, no entanto, na-se interessante como objeto na medida
exige uma quantidade maior dc dados empí­ cm que supera a oposição entre os dois pólos
ricos para ser discutida. A segunda conse­ orientadores mencionados acima.
qüência diz respeito à lógica interna de evo­ A problemática das profissões passa a
lução dos complexos profissionais. Por origi­ girar em torno das orientações dos atores c a
narem-se de um processo de diferenciação relação médieo-paciente pode ser considera­
produzido a partir de uma matriz religiosa da um modelo do tipo de análise que vai se
primária, as disciplinas profissionais enfren­ tornando típica entre os íuncionalistas: medi­
tariam dois desafios. No plano acadêmico, a co c paciente têm seus papéis normativa-
necessidade de se diferenciarem c\ ao mes­ mente definidos e seus atributos podem ser
mo tempo, manterem prestígio e autoridade expressos em termos das variáveis-padrão.
autônomos cm relação ao campo religioso. Mas, ainda que o lado weberiano seja
No plano prático, a dificuldade de penetra­ privilegiado — "boa parte da análise da rela­
rem cm áreas anteriormente resolvidas pelo ção médico-paciente aponta para a escolha
senso comum sem a intervenção de "perso­ racional dc meios por indivíduos particulares
nagens especiais”. para obter objetivos escolhidos deliherada-
5
mente” — Rhoads chama a atenção para o modernas. Mas, além de Parsons, outros
fato de que teóricos merecem ser analisados, especial­
"Doença e psicoterapia tornam-se mecanis­ mente Davis e Moore, na medida em que
mos de controle que limitam o desvio e seu pensamento corresponde a um certo
reintegram o desviante. Elas são portanto, senso comum. O texto desses autores, “Al­
de acordo com Parsons, processos que con­ guns Princípios de Estratificação” (1971), é
tribuem para a função integraliva da socie­ um dos mais conhecidos. Nele os grupos
dade, mantendo as pessoas em seus papéis. profissionais são diferenciados pelas funções
Neste contexto, Parsons fala do 'equilíbrio que exercem e hierarquizam-se pelo grau de
motivational do sistema social' (...) Para
além da análise da perspectiva dos atores. necessidade que o sistema tem dclcs. Na ten­
Parsons identifica aspectos não planejados tativa de tornar mais acessível o modelo par-
da relação"(Rhoads, 1991, p. 100). soniano, Davis c Moore introduziram um
Segundo Rhoads, poderíamos identifi­ complicador, o conceito de necessidade num
car motivações existentes mas não-reco- sentido mais substantivo. Para o caso das
nhecidas que permitiriam atribuir à psieote- profissões, caberia perguntar sobre o modo co­
rapia funções latentes para o controle social. mo se define esta necessidade, teórica e meto­
A admissão de funções latentes pressuporia dologicamente, mas também social e historica­
assumir a sociedade como ator coletivo, dife­ mente (como faz Melvin Tumim, 1967).
rente dos seus membros, que realizariam A linha mais puramente parsoniana de
funções integrativas no interesse da própria análise das profissões foi recuperada recen­
sociedade. temente no trabalho de Andrew Abbott
Controvérsias à parte, podemos dizer (1988), The System o f Professions. Neste es­
que, reduzidas às suas características es­ tudo, o autor retoma as ideias centrais de
senciais, a teorização parsoniana atribui às Parsons, formulando uma definição das
profissões uma posição intersticial na estru­ profissões (grupos ocupacionais exclusivos
tura social, razão do tipo de orientação cole- que aplicam conhecimento mais ou menos
tivista dos profissionais. Mas, além disto, os abstratos a casos particulares) c de suas inter-
profissionais realizam a mediação entre as relações nos mesmos moldes. O conhecimento
necessidades individuais e as necessidades ocupa o mesmo lugar central na explicação.
funcionais, contribuindo assim para a regula­ "Minhas questões de fundo dizem respeito
ção c o controle que permitiriam o melhor à evolução e às inter-relações entre as
funcionamento possível do sistema. Como profissões e, mais generalizadamente, às
mostra Chapoulte (1973), este tipo de abor­ formas pelas quais os grupos ocupacionais
dagem leva ao estudo dos grupos profis­ controlam o saber e a qualificação. A evo­
sionais neles mesmos, sem qualquer referên­ lução das profissões resulta das suas inter-
cia à sua posição na estrutura social c às suas relações, que são determinadas pelo modo
relações com outros grupos. Parece-me, en­ como esses grupos controlam saber e quali­
ficação" (Abbott, 1988, p. 8).
tretanto, que Parsons chega bem perto de
uma análise que incorpora esse tipo de ques­ Para Abbott, a principal característica
tão quando coloca os problemas enfrentados distintiva das profissões seria o grau dc abs­
pelas diversas profissões devido à origem dis­ tração do conhecimento que elas controlam.
ciplinar comum (filosofia religiosa). Resta É através da abstração que sc pode diferen­
saber por que não foi além. ciar a competição intcrprofissional daquela
Não há dúvidas, do ponto de vista do que se realiza entre as ocupações em geral.
funcionalismo, quanto às possibilidades de O fator que habilitaria uma profissão a so­
que a profissão seja princípio definidor c hie­ breviver no sistema seria o grau de abstração
rarquizados dos grupos sociais. Na realidade, dos conhecimentos que ela monopoliza, mas
é o grande princípio fundador de todas as di­ este grau c variável no tempo e no esp.iço.
ferenças, eixo organizador das sociedades “O que importa é abstração efetiva o su 11-
6
cicntc para competir num contexto histórico do as práticas cotidianas dc diversas ocupa­
e social particular” (Abbott, 1988, p. 9). ções, acabou levando a uma crítica severa
Da mesma forma que seu antecessor, dos pressupostos contidos no modelo parso-
Abbott tem na prática medica o modelo da niano. Trabalhos como os dc Bccker (1952),
profissão: o trabalho profissional consistiria sobre professores, dc Hall (1948), sobre mé­
cm diagnosticar, teorizar e curar o problema dicos, ou dc Rueschemeyer (1965), sobre
(Abbott, 1988, p. 40). Como Parsons, para advogados, ofereceram uma base sólida para
cie a evolução das disciplinas c o fundamen­ o questionamento da adequação do modelo
to das mudanças no sistema profissional. Ab­ funcionalista para analisar outras profissões
bott, no entanlo, introduz o conceito de ju ­ além da Medicina.
risdição, que me parece representar um De modo geral, estes estudos mostra­
avanço substantivo. Jurisdição seria o laço ram que “as demandas e as características
que sc estabelece entre o grupo profissional sociais dos consumidores dos serviços produ­
e a área dc conhecimento sob seu controle. zidos pelos profissionais condicionam o ,s-ta­
Cria-se, assim, um vinculo conceituai mais tus social e a realização das tarefas por estes
social que técnico dentro do sistema profis­ mesmos profissionais” (Chapoulie, 1973, p.
sional c abrem-se possibilidades para a com­ 94). Cai por terra a idéia, tão ccntral para
preensão do processo conflituoso, dc luta Parsons, da neutralidade afetiva das profis­
mesmo, pela monopolização dos espaços sões devido à sua posição intersticial.
profissionais. Dois limites, contudo, devem Se a crítica da etnometodologia c do in-
ser apontados nesta abordagem. Km primei­ teracionísmo foi útil no sentido dc mostrar,
ro lugar, a divisão cnlre as diversas jurisdi­ através de farto material empírico, a realidade
ções é feita a partir dc critérios puramente das práticas profissionais, devc-sc apontar, no
técnicos, vinculados à lógica da evolução da entanto, os limites desta abordagem que
disciplina correspondente, criando dificulda­ '(...) tende a colocar a questão dos sistemas
des para uma incorporação adequada e simbólicos cm termos de mera comunica­
abrangente deste conceito. Além disto, há ção, como se os agentes sociais lossem se­
uma pressuposição tácita de que a divisão nhores dos significados que eles mesmos
social do trabalho refere-se a um conjunto produzem e mobilizam no processo de inte­
dc tarefas definidas que podem mudar de ração. Ao se dispor a enxergar a realidade
mãos mas não podem ser criadas, dc que o do ponto de pista do ator, privilegiando as­
sim a questão do significado das ações so­
conjunto/sistema não se expande. Perde-se ciais, este trajeto minimiza os aspectos
aqui um ponto essencial, que é o da criação macrossociológicos em favor das estraté­
dc necessidades sociais a partir da própria gias de interpretação, tipificação e rotula-
atuação dos agentes. ção a que o ator recorre nos processos inte­
Um dos elementos centrais nos proces­ rativos com que se defronta" (Miceli, 1987,
sos dc monopolização das áreas de saber e p, IX).
dc utilização deste monopólio como recurso Certamente, a questão do ator estará
de negociação na sociedade c o poder, con- cm pauta mais adiante, mas é preciso antes
ceito-chave entre os teóricos de linha webe- estruturar o seu campo dc ação. O próximo
riana, que analisaremos mais adiante. Antes tópico retoma o problema da posição das
disto, é importante conhecer a crítica feno- profissões na estrutura social, agora não em
mcnológica, que inclui os funcionalistas de termos dc sua função, mas das relações dc
modo geral. poder que se constrocm em torno delas.
A Crítica Fenomenológica Poder e Saber
do Funcionalismo Mercado e Monopólio
O desenvolvimento acelerado da pes­ A necessidade de discutir o poder real
quisa empírica sobre as profissões, abordan­ das profissões na estrutura social foi de­
7
monstrada pelos trabalhos da cinometodolo- elementos da dimensão cognitiva ou institu­
gia mas foi teorizada pelos autores de forma­ cional estão presentes em todos os autores.
ção weberiana. Nesta abordagem, que c
muito ampla e, provavelmente, a mais co­ Larson e a Constituição
nhecida e utilizada, a incorporação da divisão do Mercado
social do trabalho como fundamento da exis­ Magali Sarfati Larson e Hliot Lreidson
tência dos grupos profissionais c mediatizada formam o núcleo do setor mais substancialis-
pela categoria poder. R difícil fazer generali­ ta do modelo cm questão. Para esses dois
zações sobre os estudos produzidos nesta autores, o controle sobre uma determinada
perspectiva — mesmo porque o próprio con­ área do saber c o elemento essencial para a
ceito de poder c construído de forma distinta organização de um grupo profissional. Há
em cada autor —, mas é evidente, entre cies, uma grande proximidade entre os dois e o
um maior grau de “historicidade” quando seu enfoque tem sido a base para boa parte
comparados aos funcionalistas. O núcleo das da Sociologia, das Profissões produzida no
análises, neste caso, c a profissionalização, is­ Brasil.
to é, o processo pelo qual certas áreas de Larson (1977) analisa o processo histó­
competência, delimitadas pela divisão do rico de ascensão do profissionalismo enquan­
trabalho, são monopolizadas por determina­ to forma distinta dc organização social. Se­
das categorias dc trabalhadores. A luta pelo gundo esta autora, com o fortalecimento das
monopólio, pela constituição de um mercado profissões inaugura-se uma nova forma de
razoavelmente fechado c protegido, é a mar­ desigualdade estrutural. Tendo como refe­
ca distintiva das profissões enquanto grupos rencial o livro dc Karl Polanyi, A Cirande
Transformação, Larson mostra que as mu­
sociais. danças por que passou a sociedade moderna
A abordagem weberiana acentua uma fizeram com que o mercado se tornasse a
tcndcncia da Sociologia das Profissões: a instância fundamental nesta sociedade. Para­
passagem do estudo do papel apropriado de lelamente a isso. há também uma mudança
cada profissão (marca do modelo funciona- na forma dc estruturação do conhecimento e
lista) à análise da profissionalização como fe­ dc sua relação com as outras instâncias,
nômeno pertencente à dimensão da desi­ transformando-se o saber, a possessão de
gualdade social como relação de poder, para uma qualificação qualquer, cm uma proprie­
a qual o conceito de stalus c essencial. Hm dade tipicamente moderna. A partir dessas
conseqüência, o processo de profissionali­ duas definições mais gerais, vincula-se o es­
zação c visto como luta/usurpação da honra, tudo das profissões à compreensão dos me­
prestígio etc., e as guildas medievais tornam- canismos dc funcionamento da sociedade e,
se um parâmetro, mesmo que de caráter ne­ cm especial, à problemática dos intelectuais
gativo, para a caracterização dos grupos c sua posição na estrutura social.
profissionais. quando consideramos sociedades de
As categorias centrais nesta abordagem classe, o desenvolvimento de papéis e fun­
— poder, mercado, monopólio —, de inspi­ ções especializadas é amplamente determ i­
ração nitidamente weberiana, definem um nado pela estrutura de desigualdade da
qual é inseparável: dependente da distribui­
campo analítico em que se destacam dois pó­ ção desigual de riqueza, poder e co­
los. Num deles temos uma ênfase na dimen­ nhecimento, a institucionalização das fun­
são cognitiva, como e o caso de Lreidson ou ções especializadas contribui, ela mesma,
Larson. No ouiro pólo, a ênfase é dada à di­ para a distribuição desigual de com petên­
mensão organizacional ou institucional do cias e recompensas" (Larson. 1977, p. 2).
processo de profissionalização, como no Nas sociedades de classe, todo conjunto
trabalho de Starr. Hsta polarização existe dc conhecimentos e práticas, bem como os
apenas como ênfase diferenciada, pois os frutos dc sua aplicação, c potencialmente
s
m onopolized pelos seus criadores-pos- rente e mais extensa: a pretensão de contro­
suidores. Desde a época dos grandes impé­ le exclusivo sobre uma expertise superior.
rios, na Antigüidade, há uma íntima as­ A partir deste quadro, Larson define o
sociação entre as pequenas elites letradas c o profissionalismo como um projeto coletivo
consumo dc serviços especializados. No caso de mobilidade social articulado em torno de
dos serviços médicos, universalmente neces­ um determinado tipo dc conhecimento, cujo
sários, há uma nítida separação entre os “es­ mòhopólio permite controlar um mercado
pecialistas para a elite” c os “práticos”, para definido. Trata-se de um processo que busca
clientelas mais populares, lista distinção tor­ um duplo monopólio: da expertise no merca­
na-se clara com o surgimento das universida­ do e do staíns no sistema dc estratificação,
des medievais: a associação com a Igreja aju­ liste projeto pode ser entendido como uma
dou a construir a aura de mistério em torno “tentativa de traduzir uma ordem de recur­
do conhecimento esotérico das profissões e o sos escassos — conhecimentos especiais e
uso do latim inscreve este ensino no círculo qualificação — em outra — recompensas
das elites. Do seu lado, os “práticos” apare­ econômicas e sociais” (Larson, 1977, p.
cem organizados em guildas de ofício, forta­ XVII).
lecendo suas organizações com o desenvolvi­
mento dos centros urbanos e. diferentemen­ Os Diferentes
te dos ramos mais elevados da sua especiali­ Papéis do Saber
dade, aluando primariamente para um mer­
cado de serviços, com uma orientação forte­ O ponto de partida da análise de Freid-
mente comercial. son ( l‘AS6) é a relação entre criação,
A rigidez das formas de estratificação transmissão e aplicação do conhecimento
vigentes nas sociedades pre-industriais não formal e o poder. Para superar a dualidade
permitiu que se unificassem regiões da divi­ entre democracia e tecnocracia a que esta
são social do trabalho que, sendo tecnica­ relação acaba conduzindo (quando analisada
mente próximas, estavam socialmente muito de uma perspectiva que vincula a aplicação e
distantes, como é o caso dos cirurgiões (da criação
to dos
do conhecimento ao desenvolvimen­
processos dc burocratização e racio­
guilda dos barbeiros e açougueiros) e dos clí­ nalização), Freidson procura entender o pa­
nicos (que, na Inglaterra, eram cavalheiros pel do saber institucionalizado no mundo a
com certificado concedido pela autoridade partir dos seus agentes e portadores:
real). Com o surgimento do capitalismo in­
dustrial c sua posterior evolução para a for­ : "('cimo pode o conhecimento estabelecer
ma corporativa, as profissões foram compeli­ uma relação conseqüente com o mundo co­
das a se organizar em torno do princípio ge­ tidiano? Para ler algum impacto sohre o
ral do capitalismo — o mercado. A dis­ mundo natural ou social o conhecimento
precisa dispor de agentes ou portadores hu­
solução das formas de legitimidade particula- manos e o impacto que ele tem é influen­
ristas — como das profissões educadas do ciado, em parte, pelas características desses
período anterior — obrigou a que se agentes. Assim, não se pode entender o pa­
organizassem ou se reconstruíssem merca­ pel do conhecimento formal no nosso mundo
dos profissionais competitivos: as profissões sem entender as características daqueles que o
deveriam unificar as áreas corrcspondentes criam e aplicam" (I "reidson. 1986, p. 9).
da divisão do trabalho em torno de princí­ Para identificar esses agentes — chama­
pios que só seriam homogêneos se fossem dos intelectuais, técnicos, profissionais, ex-
universais e autônomos, isto é, definidos por perts ou inielligentsia —, Freidson analisa os
critérios profissionais e independentes da meios de obter os recursos materiais que
caução, externa e tradicional, do status. A permitem a algumas pessoas tornarem-se
credibilidade c a legitimidade das profissões agentes do conhecimento. Nas sociedades
fundam-se numa base monopolistica dife- modernas, este procedimento faz com que
9
esses agentes sejam identificados com os um conjunto sistemático dc smalr/açfio dc
membros das profissões. Sendo assim, mercado que sirva de base para credenciar
“permanece n problema de delinear a posi­ instituições de ensino superior e seus alunos,
ção das profissões que lhes dá acesso ao liste processo de sinalização produz lambém
poder, o complexo institucional que cria e uma estrutura dc empregos que, além dc re­
sustenta esta posição e as atividades pelas servar aos profissionais as diversas formas de
quais se pode dizer que os profissionais trabalho cotidiano que lhes são tecnicamente
exercem o poder" (,ideni. p. 16).
atribuídas, destina também a eles as posições
Segundo Freidson, as profissões podem gerenciais e de supervisão.
scr definidas pelo fato de que seus membros A partir do sistema dc credenciamento
são submetidos, cm graus variados, à educa­ institucional, cuja base é a criação c
ção superior e ao conhecimento formal que transmissão do conhecimento formal, Freid­
ela transmite. Considerando a relação das son discute toda uma série dc questões que
profissões com o exercício do poder, deve-se compõem a pauta principal da Sociologia da
acrescentar que elas são ocupações nas quais Profissões: o declínio do profissionalismo,
a educação é pré-requisito para o emprego pelo assalariamento dos profissionais; a au­
em determinadas posições. listamos aqui tonomia técnica c o controle sobre o traba­
diante dc um sistema de credenciamento lho; gestão e controle burocráticos; as for­
que funciona como mecanismo de exclusão, mas dc organização dos grupos profissionais;
criando um nicho do mercado de trabalho representatividade c diferenciação interna.
exclusivo dos membros da profissão. Sendo Tudo isto será referido à relação da profis­
assim, o sistema de produção de credenciais são com o conhecimento que ela monopoliza
é o elemento central para a análise das con­ e aos efeitos que a transformação nesse co­
dições institucionais que permitem às profis­ nhecimento formal tem sobre o seu modo dc
sões exercer o poder. existir. O saber institucionalizado, fonte dc
A análise do sistema dc ensino superior
corno produtor dc credenciais c feita a partir poder nas sociedades modernas, é o eixo cm
da obra de Collins (1979). Mas Freidson torno do qual giram as explicações para a po­
adianta que as credenciais, por si só, não são sição dos grupos profissionais na estrutura
suficientes c que é necessário controlar o social, os mecanismos de monopolização do
mercado também pelo lado da demanda: os mercado, as formas de organização interna e
profissionais são vistos como gatekeepers. De a atuação do grupo.
alguma forma, mas principalmente através A análise de Freidson constrói-se cm
da ação do listado, cria-se a obrigatoriedade torno da importância do conhecimento for­
de se utilizar o trabalho de um profissional mal e do papel legitimador que a ciência as­
para que se tenha acesso a um bem ou servi­ sume nas sociedades modernas. O elemento
ço no mercado. O autor assinala ainda que a essencial de mediação entre a divisão das ta­
imagem do profissional liberal clássico, reias e a existência dc um grupo profissional
atuando independentemente no mercado, é o sistema de credenciamento. Deste ponto
não c mais representativo da realidade. A de vista, o autor estabelece diferenças e ex­
imensa maioria dos profissionais precisa de plica as relações dc conflito no interior da
empregos e passa a depender, portanto, de profissão. Ás diferentes formas dc aces­
um mercado interno de organizações que so/controle do saber produzem três catego­
possam atrair clientes. Diante disto, para rias: pesquisadores/professores, técnicos
controlar o seu mercado, esses profissionais (rank and file) e administradores. Freidson
necessitam intervir ou influenciar as políticas esclarece também a posição de poder do
da organização, e isto pode ser feito através profissional cm relação ao leigo. Mas não é
do sistema dc credenciamento institucional. possível estender esta análise para com­
R este sistema que vincula o mercado e a preender as diferenças entre as diversas
educação. Sua principal função é estabelecer profissões, para explicar um padrão de desi­
10
gualdade estrutural que identifique as espe- p. 14) — e, de outro, a eliminação de concor­
cificidades de cada profissão, l emos apenas rentes fora deste padrão estabelecido, o que
a explicação para o posicionamento, na estru­ c feito em bases legais, com o auxílio do Es­
tura social, do sistema profissional como todo. tado. Finalmente, a criação do mercado e a
padronização da mercadoria estão vincula­
O Saber Unificado dos a uma outra questão que e a da busca de
como Mercadoria garantias para o investimento e o sacrifício
implicados na educação do produtor. O mer­
O loco no mercado profissional conduz, cado se produz também pela instituição de
no estudo de Larson, à explicação das pos­ padrões de recompensas adequados aos di­
sibilidades diferenciadas de cada tipo dc co­ versos grupos.
nhecimento, dc sua tnarkeíability, enfatizan­ Lm todas as fases da criação e mono­
do o papel do sistema de ensino na produção polização do mercado, a dimensão cognitiva
dc um saber unificado, condição essencial teve um papel crucial:
para a fundação do mercado. Se para Frcid- "(...) criar mercados profissionais exigiu,
son o saber c fundamento para a diferencia­ como em qualquer outro caso, estabelecer
ção no interior da profissão, para Larson. os credibilidade social ou. parafraseando
diversos tipos de saber produzem diferenças Durkheim, criar as bases não-contratuais
entre as profissões, pois o tipo dc co­ do contrato, Lm razão da competição pree­
nhecimento que cada profissão detem deter­ xistente, esta tarefa demandou a criação de
mina possibilidades diferenciais no processo dispositivos protetores fortes e semi-mo-
dc unificação do campo profissional e no uso nopolistas. Devido à natureza única dos
de recursos organizacionais. Como já se dis­ produtos e ao fato de que o seu valor de
se anteriormente, esta autora analisa a mo­ uso para o público era incerto, pois era um
nopolização do mercado como projeto cole­ produto novo. o controle tinha que ser es­
tabelecido. inicialmente, no ‘ponto de pro­
tivo dc mobilidade social. Neste processo, a dução': os provedores de serviços tinham
base cognitiva — o seu conteúdo mesmo — que ser controlados de modo que se pudes­
é essencial porque, segundo a autora, “o se padronizar e, assim, identificar a 'm erca­
mercado tem de ser produzido”. Isso signifi­ doria' que eles ofereciam. Para isso, a base
ca que os próprios produtores têm dc ser cognitiva foi crucial, O tipo de conheci­
produzidos, pois sua mercadoria é intangível mento que cada profissão poderia reivindi­
e eles têm de ser adequadamente treinados e car como distintivamente seu foi, portanto,
socializados de modo a poderem oferecer um fator estratégico de variação no seu es­
serviços no mercado. Como os mercados an­ forço organizacional" (Larson, 1977, p. 15).
teriores eram inexistentes ou não unificados, O monopólio ou a exclusividade cogniti­
ou ainda instáveis, c necessário definir pa­ va sobre determinada área foi negociado,
drões comuns para essa mercadoria c para primeiro, pelas associações profissionais e,
as necessidades que ela atende. Cada tipo dc mais tarde, pelas instituições de ensino, atra­
conhecimento específico oferece chances de­ vés dc instrumentos como o licenciamento, o
siguais aos seus portadores. exame de qualificação, o diploma e, final­
Lste outro lado do mercado, a definição mente, o treinamento determinado por um
de padrões para as necessidades que as currículo formal unificado.
profissões atendem, implica uma dupla tare­ O processo dc unificação do campo
fa para os grupos profissionais: de um lado. o cognitivo ocorre paralelamente e o co­
“convencimento ideológico” — a autora não nhecimento passa pelas mesmas etapas por
trabalha a fundo esta questão, indicando que passam as disciplinas científicas no mo­
apenas que “(...) a persuasão ideológica de­ delo de Kuhn (1978): a formalização do pa­
pende, cm última instância, de um desloca­ radigma permite que se definam os contor­
mento mais geral cia sociedade cm direção a nos do grupo pela exclusão dos que não pra­
um novo universo simbólico” (Larson, 1977, ticam o modelo puro desse saber. A unifica­
11
ção da Medicina americana c exemplar, se­ formas organizacionais. Neste núcleo pode-
gundo a autora. No período pré-paradigmá­ se destacar Paul Starr, que, no seu estudo
tico, antes que se estabelecesse um modelo sobre a história da Medicina nos lilJA, colo­
oficial de saber profissional, a dialética entre ca cm evidência o processo conflituoso dc
indeterminação c codificação do conheci­ construção da autoridade cultural dos médi­
mento expressava os conflitos internos pelo cos. lista última é definida como uma forma
controle do projeto organizacional e do mer­ dc autoridade que sc refere
cado profissional. Ao sc produzirem critérios "(...) à probabilidade de que definições par­
comuns de validação e credibilidade, expres­ ticulares de realidades e julgamentos de
sos neste modelo, há um avanço substantivo significado e valor devam prevalecer como
na direção dc um mercado unificado. Alem válidas e verdadeiras" (Starr, 1982, p. 13).
disto, a produção de uma base científica co­ O autor diferencia autoridade cultural
mum cria um princípio dc legitimidade du­ dc autoridade social e mostra o processo his­
plamente eficaz: qualifica a profissão a rei­ tórico através do qual os médicos sc organi­
vindicar filiação ao principal sistema de vali­ zam para se constituírem como portadores
dação c legitimação no mundo moderno, de um certo tipo dc legitimidade. Nesta
que é a ciência, e permite criar um critério abordagem, relcga-sc a dimensão cognitiva a
de exclusão dos concorrentes que se mostra um plano subordinado à dimensão social,
objetivo e imparcial, pois científico.
Todas as dimensões envolvidas na cria­ desnaturalizando
“naturalização”
as relações profissionais. A
feita pelo funcionalismo e
ção c organização do mercado são depen­ mesmo por alguns outros autores weberia­
dentes do tipo dc conhecimento com que li­ nos dissimula as variações possíveis na forma
da a profissão. K o conteúdo desse conhe­ dc divisão social do trabalho no interior de
cimento que define a marketability, a neces­ uma mesma formação social, ignorando a di­
sidade que o mercado tem da profissão. H versidade de princípios definidores dos ofí­
este o critério fundamental para definir a po­ cios, produto dessas variações da base da di­
sição dc mercado de cada grupo e, portanto, visão do trabalho e dos diferentes mecanis­
a sua posição nas relações dc poder.
lista capacidade reguladora atribuída mos de constituição das identidades sociais.
ao saber e à racionalidade científica, que Diante da multiplicidade de categorias jurídi­
percorreria toda a sociedade a partir da lis- cas, administrativas e até "de fato” as­
cola Superior, merece uma discussão mais sociadas às atividades exercidas pelos grupos
aprofundada. Tanto funcionalistas quanto profissionais, nas abordagens anteriores dei-
weberianos transformam o título universitá­ xa-se de lado a questão dos elementos que se
rio em medida suprema de todas as hierar­ interpõem entre a divisão técnica das tarefas
quias sociais, liste c o sonho de toda profis­ e a institucionalização dos grupos sociais co­
são, com seus ideais mcritocráticos c de nhecidos como profissões (ver Chapoulie,
competência, mas tanto o lugar central da 1973).
ciência no mundo moderno quanto a pos­ Para explicar como um determinado
sibilidade dc os grupos profissionais estrutu­ grupo profissional conseguiu estabelecer ele­
rarem as relações sociais têm sido objeto de vados níveis de poder econômico e influência
controvérsia entre cientistas sociais, como política, Starr define o seu argumento a par­
veremos mais à frente. tir dc três premissas fundamentais: ( 1 ) a
construção da soberania profissional dos mé­
0 Saber como
dicos é processo histórico-estrutural; ( 2 ) a
Autoridade Cultural organização dos serviços médicos, como de
qualquer instituição, dá-se num contexto em
lintre os autores weberianos existe um que se cruzam determinações das instâncias
outro núcleo dc análise que procura enten­ política, econômica e social: e (3) o problema
der o fenômeno profissional pelo ângulo das da soberania profissional exige uma aborda­
12
gem que inclua tanto as questões organiza­ por autoridade cultural é o mesmo que es­
cionais quanto culturais. Por isto, o estudo truturar padrões sociais dc necessidades?)
procura entender o desenvolvimento da au­ I oda a argumentação até aqui, cm que
toridade cultural da profissão médica e a os autores citados procuram delimitar fron­
conversão desta autoridade cm controle de teiras que separem as profissões dos outros
mercados, organizações profissionais c políti­ grupos sociais ou que definam critérios para
cas governamentais. diferenciar grupos profissionais uns dos ou­
Nesta abordagem, como na de í.arson tros, teve como pressuposto a idéia de uma
ou Frcidson, a existcncia da comunidade certa homogeneidade interna das profissões.
profissional baseia-se na possibilidade de Na próxima seção procurarei mostrar como
compartilhar um certo saber. Mas, diferente­ se estabelece este conceito e o questiona­
mente do funcionalismo, as análises weberia- mento dc que foi objeto.
nas ressaltam o caráter de luta pela monopo­
lização deste saber como fator estruturante A Comunidade
da profissão, estabelecendo o poder como Profissional
mediação fundamental entre lugares na divi­ A idéia de que as profissões sejam gru­
são do trabalho e a existência de grupos so­ pos homogêneos é pressuposto essencial da
ciais. No seu setor mais substancialista, no sociologia durkheimiana. Cabe ao grupo
entanto, há uma tendência a enfatizar o pa­ profissional a tarefa dc socializar os seus
pel do conhecimento na definição dos gru­ membros, incutindo neles os valores da cons­
pos. A dimensão cognitiva, como já se as­ ciência coletiva de caráter essencialmente
sinalou, acaba assumindo um peso muito moral, li sc a sociedade foi fragmeniada pela
grande, principalmente no que diz respeito divisão social do trabalho, as profissões pas­
às possibilidades de legitimação do lugar so­ sam a existir como comunidades morais. To­
cial e da ação desses grupos. mando como modelo as corporações medie­
Ao centrar sua atenção nos processos vais, Durkhcim inclui num mesmo grupo
dc monopolização c unificação dc áreas dis­ profissional os patrões e empregados de um
tintas da divisão do trabalho pelas profissões, mesmo ramo, destacando que este consti­
alguns autores deixam de lado o papel criati­ tuiu, historicamente, um meio ambiente mo­
vo ou limitativo que os grupos organizados ral para os seus membros:
exercem sobre o conhecimento, sobre estas regras precisas lixavam, para cada ofí­
mesmas áreas. Sobre este ponto, o estudo de cio, os deveres respeclivos de patrões e
Slarr c fundamental, pois mostra como, ao operários, assim como os deveres dos pa­
criar seu monopólio, os profissionais podem trões uns para com os outros. (...) todos
direcionar a produção do saber nesta área, eles são inspirados pela preocupação, não
tanto no seu conteúdo quanto nas metodolo­ de uns ou outros interesses individuais, mas
gias, definindo inclusive outras clientelas pa­ do interesse corporativo. Ora. a subordina­
ra os seus serviços. Neste caso, inverte-se o ção da utilidade privada à utilidade comum,
qualquer que ela seja, tem sempre um cará­
argumento, pois procura-se conhecer os efei­ ter moral, pois que implica neces­
tos da institucionalização do grupo sobre o sariamente algum espírito de sacrifício e
conhecimento monopolizado por ele. Do abnegação. Aliás, muitas dessas prescrições
ponto de vista de Starr, as diferentes marke- derivavam de sentimentos morais que são ain­
Kibilities das profissões (Larson) seriam pro­ da os nossos" (Durkhcim, 1984, pp. 20-1).
duzidas pelo fato de que certos grupos se­ A subordinação do interesse comum do
riam mais capazes que outros de estabelecer grupo fundamentava sua unidade bem como
ou impor suas posições no quadro das neces­ o seu papel socializador.
sidades sociais, ou, nos termos do autor, dc As análises funcionalistas enfatizam o
impor sua autoridade cultural, (lista as­ caráter comunitário dos grupos profissionais,
similação é problemática mas volto a ela: im­ a começar pelo próprio Parsons, que os com-
13
prcendia como sistemas de solidariedade centros de treinamento profissional, vincula­
fundados na partilha de elementos educacio­ dos a padrões de conhecimento unificados,
nais comuns. Para Goode, o que caracteriza dota os membros da profissão de um certo
toda profissão é o fato de ela scr uma comu­ sentido de superioridade cognitiva, bem co­
nidade, e c esta a aspiração de toda ocupa­ mo provê o grupo de membros médios so­
ção que pretenda se profissionalizar. IJma cializados. Isto significa prover a profissão de
comunidade caracterizada pelos seguintes indivíduos que aceitam os modelos de car­
traços: reira existentes, uma vez que seu sucesso
"1) Seus membros estão ligados por um depende da sua adesão a eles.
sentido de identidade. 2) IJma vez nela, Aqui aparece uma outra característica
poucos a deixam, de modo que é um status importante das comunidades profissionais e
terminal para a maioria. 3) Seus membros que acaba por se tornar objeto de intensa
partilham valores comuns. 4) As definições polêmica: as carreiras. Boa parte dos autores
de papéis de membros e não-membros são vê na existência das carreiras um mecanismo
objeto de acordo e são as mesmas para to­
dos os membros. 5) Nas áreas de ação co­ de identificação com o grupo: cias seriam
mum há uma linguagem comum, que é mudanças nas formas de participação institu­
compreendida apenas parcialmente pelos cional, seqüências típicas do movimento dos
de fora. 6) A comunidade tem poder sobre indivíduos na profissão, que dependeriam de
seus membros. 7) Seus limites são razoavel­ avaliação do grupo (Beckcr e Carper, 1956).
mente claros, apesar de serem sociais e não Desta perspectiva, o engajamento numa tra­
físicos c h i geográficos. 8 ) Apesar de não jetória profissional implicaria a legitimação
produzir a próxima geração biologicamen­
te, ela o faz socialmente pelo controle so­ das hierarquias profissionais existentes, vistas
bre a seleção de professores e pelos proces­ como organizações adequadas das diferenças
sos de treinamento ela socializa seus recru­ entre momentos da vida profissional (Larson,
tas" (Goode. 1967, p. 194). 1977).
Diversas abordagens, e não apenas o Uma outra forma de analisar as diferen­
funcionalismo, tratam o grupo profissional ças dentro de uma profissão é sugerida por
como uma comunidade homogênea, e a base Lrcidson. Segundo este autor, os padrões de
principal dessa homogeneidade c o longo pe­ credenciamento compõem um “sistema que
ríodo de treinamento ao qual os seus mem­ produz, no interior mesmo das profissões,
bros são submetidos. O que varia e o signifi­ uma classe de conhecimento c uma classe
cado atribuído ao processo de homogeiniza- administrativa, que devem scr distinguidas
ção: a aquisição de conhecimentos profis­ da classe trabalhadora de profissionais que
sionais fundamenta uma prestação adequa­ atuam cotidianamente” (Lreidson, 1986, p.
da de serviços, um desempenho correto das 82). A criação de um grupo de profissionais
tarefas (essenciais à vida, segurança bem-es­ dedicado em tempo integral às atividades de
tar dos membros da sociedade) atribuídas ao ensino e pesquisa é, ati mesmo tempo, fonte
grupo (ver Gyarmati, 1974). Mas pode tam­ de divisões internas e elemento essencial pa­
bém assegurar a própria subsistência das ra o controle do corpo de conhecimentos e,
profissões no mundo moderno. Para serem portanto, para a preservação da profissão. A
autônomos em relação aos critérios particu- classe administrativa e formada pelos profis­
laristas de atribuição de status e tornarem-se sionais que, partilhando uma certa formação
parte constituinte da sociedade mercantiliza- básica com seus colegas, assumem postos ad-
da, os grupos profissionais deveriam produ­ ministrativo-gerenciais e assim passam a ter
zir uma mercadoria específica, e para isto de­ interesses e poderes diferenciados. O traba­
veriam unificar "as áreas correspondentes da lho desses profissionais administradores re­
divisão social do trabalho em torno de garan­ veste-se de importância pelo controle que
tias homogêneas de competência” (Larson. eles podem exercer sobre as atividades dos
1977, p. 13). Para esta autora, a formação de seus pares. Lreidson chama atenção ainda
14
para o fato de que, mesmo sendo diferencia­ elemento fundamental na mediação entre a
dos pela qualificação, a divisão entre acadê­ divisão do trabalho c a formação dos grupos
micos, práticos e administradores c hierar- profissionais. O grau dc autonomia ou dc
quizante e fonte de tensão e ressentimento poder dc determinação concedido a critérios
entre eles. dc posicionamento social que não sejam o de
A dimensão cognitiva torna-se. no caso propriedade ou não-propriedade dos meios
da análise dc Freidson, o fundamento das di­ de produção define dois pólos na vertente
visões internas, o critério principal de estrati­ marxista: as análises de Noble, Wright ou
ficação entre os profissionais. Mas, no pólo Poulantzas concedem-lhes pouquíssima au­
que chamei de “organizacional”, as coisas tonomia, enquanto Johnson (este, com
sao um pouco mais complicadas. No traba­ maior ênfase), Bravcrman c Carchcdi subes­
lho de Paul Starr fica muito bem fundamen­ timam a subordinação aos critérios mencio­
tada a existência dc vínculos entre a estrutu­ nados.
ra da sociedade e a ação do grupo profis­ Normalmente, a temática das profissões
sional. mas não se mostra que relação pode é tratada pelos marxistas como parte do es­
haver entre esta estrutura c a organização in- tudo das classes médias, dando margem a al­
terna da profissão. Na primeira parte do livro gumas indagações interessantes. A primeira
mostram-se as diferenças no interior do gru­ delas diz respeito à instância dc determina­
po e o resultado dessas diferenças cm termos ção da existência das classes médias e está di­
dc posturas e práticas. Mas, a partir do mo­ retamente relacionada aos fundamentos da
mento em que se estabelece o monopólio existência das profissões. Nos escritos do
profissional, a Associação Médica America­ próprio Marx há vários níveis de tratamento
na assume poderes em todo o território na­ das classes: se as diferenças sociológicas apa­
cional, a profissão é tratada como conjunto recem mais nitidamente no Dezoito Brumá­
indiferenciado, como comunidade, c, mesmo rio, em () ('apitai a determinação é funda­
quando aparecem posições políticas diferen­ mentalmente econômica. Fm tempos mais
tes, cias não são explicadas. recentes, estas diferenças produziram um
O modo como esta questão é tratada debate, principalmente cm torno do trabalho
pelos diversos autores, oscilando entre uma de Poulantzas (1975), sobre as camadas mé­
explicação mais substancialista c uma com­ dias, sua identificação, seu caráter dc classe,
pleta ausência de problematização. explicita suas posições políticas. Distinguindo níveis
a dificuldade do tema. A necessidade de econômico, político e ideológico dc determi­
construir uma explicação coerente, que in­ nação estrutural das classes sociais, este au­
clua divisões c diferenças internas c externas,
remete à questão dos próprios princípios de tor define uma separação entre pequena
divisão social do trabalho. Isto fica mais evi­ burguesia tradicional e a nova pequena bur­
dente no tipo dc tratamento dado pelos mar­ guesia, constituída dc assalariados. Como a
xistas à problemática das profissões. primeira tende a extinguir-se, é a nova pe­
quena burguesia que sc constitui como pro­
blema.
-AAbordagem Marxista: No nível das relações econômicas, a dis­
Profissão e Classe tinção fundamental a se realizar é entre a
Ao contrário de Durkheim c dos outros elasse operária e a nova pequena burguesia.
autores analisados até aqui, os marxistas, Uma vez que os dois grupos são constituídos
partindo do conceito de divisão do trabalho por assalariados e não-proprietários dos
de Marx, dão pouca ou nenhuma importân­ meios de produção, o critério distintivo utili­
cia à dimensão cognitiva ou técnica para a zado é o de trabalho produtivo. Entretanto,
definição dos grupos sociais. Entre estes au­ o próprio Poulantzas afirma que a determi­
tores, as profissões aparecem como objeto nação estrutural desta classe não se resume
subordinado às classes sociais, que seriam o à sua posição nas relações econômicas, mas
15
estende-se também às relações políticas e vimento do capitalismo americano. Os enge­
ideológicas, sendo o critério do trabalho pro­ nheiros têm um papel crucial neste processo
dutivo insuficiente para demarcar precisa­ por constituírem o elo mediador entre a ins­
mente as fronteiras de classe entre os as­ tância técnico-científica e o mundo social. A
salariados. tecnologia é vista como produto social, não
As relações políticas estão diretamente apenas técnico, e o engenheiro é o expert em
ligadas à dominação: o trabalho de direção e ciência aplicada e no gerenciamento/direção
supervisão capitalista reproduz, no processo das relações sociais. Em cada etapa do capi­
produtivo, as relações políticas entre a classe talismo, a posição dos engenheiros no siste­
capitalista e a classe operária. Sendo assim, a ma produtivo assume um significado especí­
determinação de classe dos agentes que re­ fico, mas o sentido maior da sua atuação c
alizam o trabalho de direção e supervisão é sempre o de desempenhar as funções de do­
marcada pela dominância das relações políti­ minação para o capital. No período de 1890
cas. Supervisores, contramestres e “outros a 1920, com a formação das grandes corpo­
subollciais da produção” não pertencem à rações e a criação de uma indústria baseada
classe operária na medida em que sua fun­ na ciência, cria-se o mercado principal para
ção é principalmente extrair mais-valia. Se­ os engenheiros, que passam a ver o progres­
riam, no entanto, dominados pelo capital, so da ciência como fruto da ação das grandes
executantes subalternos c igualmente explo­ empresas industriais, lista inclinação tem pe­
rados. so decisivo nos conflitos internos à categoria,
No plano ideológico, a separação funda­ pois tanto nos debates sobre educação quan­
mental é entre trabalho intelectual c manual. to nas formas de hierarquização interna pre­
O lugar de classe dos portadores do trabalho valece a influência das corporações. Com o
intelectual gera uma contradição no próprio passar do tempo, as tendências gerenciais e
seio do trabalho produtivo; ao mesmo tempo anti-sindicais c o apelo à cientificidade da
em que fazem parte do trabalhador coletivo Engenharia alienam-se como os mecanismos
produtivo, tendem, pela sua posição na divi­ principais de distinção dos engenheiros. Na
são social do trabalho, a realizar as opera­ construção do aparato institucional que re­
ções políticas, ideológicas e técnicas de su­ força a posição da profissão, novamente é a
bordinação da classe operária ao capital. grande indústria que desempenha o papel
Dessa forma, engenheiros, técnicos etc. tam­ mais importante, criando um espaço de rela­
bém não fazem parte da classe operária, ain­ ções (associações, escolas, governo, funda­
da que sejam representantes de instâncias ções e até escritórios particulares de consul­
subalternas. toria) cm que seus agentes assumem posi­
Neste quadro, a existência das profis­ ções dominantes.
sões e totalmente subordinada às relações de O texto de Noble tem o mérito de mos­
classe. O trabalho de Noble (1979) é exem­ trar o papel que desempenharam os enge­
plar no uso de um esquema teórico marxista nheiros em dois campos importantes: o da
para analisar uma profissão. I;. interessante técnica e o da administração, ambos consti­
observar que se os médicos são o alvo prefe­ tuindo-se cm fundamentos da dominação do
rencial dos funcionalistas, os engenheiros são capital. Além disto, boa parte da sua análise
o objeto predileto dos marxistas, talvez por­ é perpassada pela questão da representação:
que, do ponto de vista destes autores, a posi­ os engenheiros vão construindo, ao longo da
ção dos engenheiros seja essencial para o de­ sua história, uma imagem da profissão e do
senvolvimento do capitalismo e a tecnologia profissional que tem a dupla função de dizer
seja um dos seus grandes fetiches. socialmente e fazer ver internamente quem é
Noble procura estudar o desenvolvi­ engenheiro. Mas Noble apenas descreve este
mento da profissão Engenharia nos Estados movimento, incluído na lógica de desenvolvi­
Unidos como parte do processo de desenvol­ mento do capital que vai englobando a
16
profissão. Da leitura do seu texto ficam ou- dos grupos sociais. Surge então uma pers­
11 as questões relevantes para o argumento pectiva que procura definir outras categorias
aqui desenvolvido. Por exemplo, em que me­ de análise, de modo a captar melhor as dife­
dida esta análise pode ser estendida a outras renças que possam dar origem às profissões.
profissões? Num nível mais abstrato, cabe De um ponto de vista ainda bastante econo-
perguntar pelas relações entre profissão e micista, o trabalho de Johnson (1977) procu­
classe: em que medida profissão poderia ra mostrar que o processo de diferenciação
constituir uma classe? Em que medida os da propriedade e do trabalho que ocorre na
conflitos amplos de classe poderiam dividir esfera da produção estende-se à esfera da re­
lima profissão, impedindo de caracterizá-la produção. Com isto o autor pretende cha­
como grupo social com uma identidade reco­ mar a atenção para o fato de que se alarga­
nhecível? Poderia uma profissão vir a ser um ram as bases sobre as quais o capital cria
ator coletivo, um agente responsável por de­ seus mecanismos de reprodução, surgindo
finições nas formas de organização social? daí todo um conjunto dc trabalhadores que
Nas diversas correntes que formam o nada produz além de formas de controle as­
marxismo, o principal impedimento a se con­ sociadas à reprodução ampliada do capital.
siderar as profissões como um grupo social Johnson refere-se principalmente ao Estado
específico seria a existência de cortes de clas­ e ao setor de serviços e adota como grupos
se, de diferentes posições de classe dentro de ocupacionais exemplares de cada uma dessas
uma mesma profissão. Deste ponto de vista, esferas os assistentes sociais c os contadores,
inexiste qualquer coisa parecida com uma respectivamente. O essencial a reter na posi­
comunidade. Seguindo, pelo menos em par­ ção de Johnson é que
te, a orientação definida nos trabalhos de “(...) a nova pequena burguesia é caracteri­
Poulantzas, os estudos marxistas sobre zada por posições na divisão social do
profissões destacam a transformação do trabalho (tal como é estruturada pelo
profissional liberal clássico em trabalhador processo de realização) que operacionali-
assalariado. Este processo é abordado a par­ zam a função do capital mas o fazem como
tir das relações de classe e da organização do parte de um processo de trabalho crescen­
trabalho e sua análise toca em temas comuns temente fragmentado e rotinizado. É então
a outras vertentes, como a queda de statiis na própria ambigüidade da sua posição
dos profissionais, a submissão à lógica da econômica no processo de realização que
empresa, a mudança dos códigos de ética, o as relações ideológicas tornam-se condição
estabelecimento de novas relações entre co­ emergente c potente de sua determinação
de classe” (1977, p. 218-9).
nhecimento, profissão e poder. Apesar da
ênfase dos marxistas no caráter social da Reconhecendo as possibilidades de au­
produção e na utilização do conhecimento, tonomia e de ação dc associações profis­
estes autores, pela focalizaçâo exclusiva nas sionais, Johnson questiona os determinismos
relações de classe, perdem a especificidade de classe no nível político e ideológico e abre
da existência e atuação dos grupos profis­ espaço para a análise (nos limites do marxis­
sionais, do papel desempenhado por eles na mo) de problemas relativos às origens dos
estruturação das relações de produção. grupos profissionais, à relação entre conteú­
As diversas críticas surgidas dentro do do técnico das ocupações e seu papel na so­
próprio marxismo, como a historiografia in­ ciedade dominada pelo capital, ao papel do
glesa, ou advindas de concepções weberia- Estado capitalista como elemento essencial
nas, como é o caso de Claus Offe (1989), na delimitação da autonomia e inde­
John Urry e Scott Lash (1987) ou Frank pendência das profissões, como mediador
Parkin (1983), colocaram cm questão uma das relações cliente-profissional. Recebe tra­
série de pressupostos e definições, sobretudo tamento especial a questão da integração en­
os princípios de determinação da existência tre poder estatal e privilégio profissional, de
17
grandes conseqüências para os destinos so­ trata de diferenças de situação c não de mo­
ciais das profissões: tivação. A autoridade profissional constitui-
“Em suma, aquelas ocupações que chama­ se como uma estrutura sociológica peculiar,
mos ‘profissões' são heterogêneas do ponto baseada na competência técnica superior, e
de vista das classes, não só como resultado se exerce sobre uma esfera particular tecni­
das suas funções distintas no processo de camente definida. Como os outros elemen­
apropriação direta, realização e reprodução tos da pauta profissional, caracteriza-se pela
do trabalho, mas também porque elas exi­ especificidade da função, uma das marcas es­
bem diferenças de função, poder e privilé­
gio como resultado das conseqüências dife- senciais dos modernos sistemas sociais, que
renciadoras de cada um desses processos. cada vez mais se distinguem pela racionalida­
Não podemos identificar esses processos de institucional presente em suas pautas nor­
por referências ao processo totalizador de mativas. Tanto a esfera profissional quanto a
reprodução em geral nem em termos de su­ comercial estariam marcadas pela especifici­
pervisão e controle no nível das relações de dade funcional e pelo predomínio de pa­
produção" (Johnson, 1977, p. 231-2).
drões e critérios universalistas, em detrimen­
Mesmo mantendo-se nos limites da de­ to dos particularisias, e isto fortalece a im­
terminação de classe, Johnson mostra pos­ portância da profissão como estrutura pecu­
sibilidades de diferenciação estrutural que liar dentro da sociedade mas ampla.
poderiam estar na origem dos diversos gru­ Mas a racionalidade, a especificidade
pos profissionais. Elas apareceriam nas ins­ funcional e o universalismo predominante
tâncias política, ideológica e econômica e nas nas sociedades modernas carregam consigo
formas de organização que vão se criando também uma certa relação com o desinteres­
nas sociedades capitalistas. O ponto crítico se: a pauta institucional que as governa não
da sua obra, a meu ver, é a discussão da es­ sanciona a busca do interesse próprio e, sem­
pecificidade dos modos de existência dos pre de acordo com Parsons, o predomínio
grupos profissionais, que nos remete ao ter­ deste talvez tenha sido exagerado. Isso signi­
ceiro item da minha argumentação. fica que as metas, as motivações são as mes­
mas no mundo dos negócios e nos trabalhos
A Especificidade das profissionais. “A diferença radica na diversi­
Profissões como dade do caminho para chegar a metas seme­
Grupos Sociais lhantes, determinada pelas diferenças entre
Em sua querela permanente com os uti- as respectivas situações ocupacionais” (Par­
litaristas e economistas, Durkheim encon­ sons, 1967, p. 42). Não estaríamos diante de
trou nas corporações profissionais o grande uma oposição entre egoísmo e altruísmo,
exemplo da predominância de valores outros mas de pautas institucionais definidas por
que não o puro interesse econômico. O ele­ bases funcionais que definem situações dis­
mento distintivo das profissões na estrutura tintas.
social seria justamente o fundamento moral Independente da explicação (a própria
de sua existência comunitária, criando assim natureza do grupo ou as diferentes situações
bases possíveis para a recuperação de uma ocupacionais), o “ideal de serviço” aparece
consciência coletiva anômica que se instalara nas análises funcionalistas como o grande
nas modernas sociedades industriais. traço diferenciador das profissões, ao lado da
Esta abordagem gerou um tipo de estu­ autonomia na realização do trabalho. De
do que procurava demonstrar as diferenças acordo com Gyarmati (1974, p. 632), os
entre o mundo dos negócios, com sua lógica profissionais não só são preparados para
utilitarista, e o mundo profissional, voltado desempenhar adequadamente suas tarefas
para o atendimento das necessidades coleti­ através de um longo treinamento especializa­
vas. Parsons (1967) procura demonstrar a do, como também colocam os interesses
incorreção desta análise enfatizando que se (econômicos ou de qualquer outro tipo) dos
18
seus clientes à Tronic dos seus próprios. Da­ das suas práticas cotidianas, as diferenças dc
do que somente os membros da profissão atendimento segundo o tipo de clientela
combinam “conhecimento profissional” e (contra a ideia parsoniana do universalismo
“orientação ou ideal de serviço”, eles adqui­ ligado à orientação do serviço) ou a fraqueza
rem uma prerrogativa especial: a profissão é dos controles éticos c técnicos das atividades
livro para definir e satisfazer as ncccssidadcs profissionais, os quais segundo o modelo
do seus clientes e de sua clientela. Com isto, funcionalista, consistiriam na base da auto­
o.s grupos profissionais estariam protegidos nomia. Mas as abordagens weberianas vão
do intervenção externa de qualquer tipo, tor­ além: conceber a existência das profissões
nando-se eles mesmos seus próprios contro­ como parte da esfera do poder e integrante
ladores. dos princípios dc hierarquização social signi­
Este tipo de análise vai scr questionado fica relativizar o problematizar a autonomia
por diversas correntes, mas antes de passar a c abrir possibilidades de teorizar sobre o sig­
olas é preciso tratar da sua mais importante nificado do “ideal de serviço”.
conseqüência teórica: a problematização dos
processos cie transformação pelos quais gru­ O Profissionalismo como
pos profissionais passam a scr incluídos em Projeto de Mobilidade
grandes burocracias. A visão das profissões As profissões modernas, ao contrário de
como grupos sociais autônomos não só pro­ suas antecessoras, abandonaram o apoio das
duz uma espécie dc insulamcnto, que faz elites c procuraram um critério dc legitima­
com que elas sejam sempre tratadas dc for­ ção mais amplo, mais homogêneo e mais de-
ma independente, dc uma perspectiva inter­ mocratizante, que é dado pela universaliza­
na — traduzida numa temática cujo centro c ção do mercado. O trabalho dc Magali Lar-
sempre a relação profissional/cliente —, co­ son, mencionado anteriormente, mostra que,
mo faz com que profissionais assalariados definidas certas condições dc mercado, é
(isto c, aqueles que fogem do modelo de necessário compreender outra dimensão das
trabalho autônomo) sejam sempre incluídos relações de poder: a luta por status. No caso
num capítulo à parte, onde se põe cm dúvida das profissões, ela se traduz na constituição
o caráter verdadeiramente profissional de dc um projeto coletivo dc mobilidade social.
sua existência social. Burocratização c prole- Pelo seu caráter coletivo, o projeto profis­
tarizaçâo seriam fenômenos que contrariam sional está vinculado aos processos mais am­
a natureza da corporação profissional e, des­ plos de estratificação social, produzidos a
se modo, não poderiam scr incluídas como partir da “grande transformação”. Os meios
processos constitutivos da sua existência. Es­ utilizados para a consecução deste projeto
te me parece ser o limite mais sério da análi­ são os mesmos já usados para a formação
se funcionalista, e por ironia, c justamente o dos mercados profissionais. Sob esta ótica,
ponto a partir do qual os marxistas se no entanto, eles assumem um caráter dife­
interessam pelas profissões, para mostrar a rente, e as fontes dc prestígio que são incor­
submissão das mesmas ao determinismo dc poradas como meio dc mobilidade social são
classe. Conjugando as dificuldades encontra­ analisadas segundo três dimensões princi­
das pelas duas vertentes, reforça-se a neces­ pais: o grau dc independência cm relação à
sidade dc adoção de um instrumental teórico estrutura do mercado; o grau de modernida­
que dê conta da especificidade desses grupos de ou de distância das fontes tradicionais; o
mas que também possa compreendê-los na grau dc autonomia ou o peso maior ou me­
totalidade das suas formas dc manifestação. nor da própria profissão na definição dessas
As análises de cunho fenomenológico fontes.
insistem em mostrar o caráter problemático Analisando rigorosamente o processo
do ideal do serviço e da autonomia das de transformação da sociedade americana
profissões, explicitando, através de estudos que deu origem, na virada do século XX, a
19
uma nova forma de estratificação social, a ciência superior para lidar com problemas
novas formas de organização política e eco­ de larga escala. Burocracia parece ser a for­
nômica, a autora mostra como as profissões ma estrutural sob a qual a reorganização da
estabelecidas e emergentes souberam apro­ produção de mercadorias pelo capital mo­
nopolista é ‘transmitida’ ideologicamente
veitar os recursos organizacionais disponíveis por todo o corpo social. No desenvolvimen­
e construir o seu lugar social. Neste momen­ to histórico particular dos Estados Unidos,
to da análise, Larson deixa num segundo pla­ instituições centrais de abrangência nacio­
no a dimensão cognitiva para realçar os nal foram estabelecidas quase que contem­
processos sociais que determinam a posição poraneamente nas esferas econômica e po­
e a trajetória das profissões. A comparação lítica e, se incluirmos as universidades na­
com a sociedade britânica vai mais longe ao cionais, na esfera da educação superior
ressaltar o caráter de usurpação de toda luta também. Esta reorganização paralela refle­
te-se, no nível da ideologia, nos temas uni­
por status. No caso dos Estados Unidos, a formes da eficiência, regulação e ‘experti­
construção de critérios de prestígio e de va­ se’. Foi durante esta fase de transição para
lor a partir da dimensão cognitiva parece o capitalismo corporativo que as profissões
mais evidente, pois não estavam sendo des­ americanas consolidaram sua posição nas
truídos critérios validados pela sociedade an­ hierarquias social e ocupacional” (Larson,
teriormente. Simplesmente estavam sendo 1977, pp. 143-4).
estabelecidos alguns princípios de posiciona­ O vínculo que se estabelece entre
mento numa sociedade livre. profissões e a organização das hierarquias
O estudo das profissões americanas vol­ sociais explica por que não há incompatibili­
ta-se especialmente para a compreensão do dade entre burocratização e profis­
modo pelo qual foram utilizados os recursos sionalização. Muito pelo contrário, os dois
organizacionais e sociais para a realização do processos reforçam-se mutuamente. Tanto
projeto de mobilidade coletiva, isto é, para a as organizações burocráticas quanto o traba­
instalação de princípios de hierarquização lho profissional guiam-se pelos princípios de
social que permitissem aos grupos profis­ racionalidade funcional e pela aplicação da
sionais conseguir posições privilegiadas na ciência, “transformando poder em autorida­
nova estrutura ocupacional/social que se for­ de ao invocar a legitimidade da expertise”. A
mou nos Estados Unidos a partir do século especificidade dos grupos profissionais é vis­
passado. O processo de centralização política ta aqui não como uma diferenciação ou al­
e econômica, acompanhado da necessária gum tipo de isolamento em relação ao resto
burocratização, é a base que fornece os re­ da sociedade, mas como utilização de recur­
cursos para a constituição do novo tipo do­ sos específicos (s...ber e racionalidade) na
minante de profissional: as profissões organi­ constituição mesmo dos vínculos com os ou­
zacionais. No Estado, atuando em nível na­ tros grupos sociais.
cional, na grande corporação e nas universi­ Para analisar a questão da autonomia
dades desenvolve-se este novo tipo profis­ profissional, que neste caso não pode mais
sional que, na realidade, não se opõe ao mo­ ser vista como fruto do insulamento das
delo clássico mas apenas reforça algumas profissões, Larson critica as definições socio­
tendências que já estavam presentes nele. lógicas que incorporam elementos ideológi­
Ao vincular a criação deste tipo profissional cos (o ideal de serviço, o estabelecimento de
aos princípios fundamentais de localização diferenças radicais entre trabalho assalariado
social nas sociedades modernas — grande ao capital e trabalho profissional) e procura
corporação, Estado e universidade —, Lar­ mostrar as circunstâncias históricas do apa­
son ressalta a proximidade entre o trabalho recimento dos grupos profissionais para esta­
profissional e as grandes burocracias. belecer as condições do desenvolvimento da
“O mais im portante princípio de legitima­ autonomia e do ideal de serviço, vistos então
ção da burocracia é, para Weber, sua efi­ como elementos constitutivos de uma ideo-
20
h 'j’.i. i Segundo esta autora, as primeiras as­ “proteção à sociedade” x “proteção do mer­
sociações profissionais constituíram-se não cado”, ou ainda valores extrínsecos x valores
|i,na lutar contra o mercado, mas antes para intrínsecos do trabalho) que acabaram por
. «instituir e controlar um mercado. Desta confundir alguns sociólogos.
huma, constroem uma estrutura corporativa No caso das profissões modernas, per­
<|in- lhes permite um certo isolamento da so- manecem ainda alguns destes traços, mas
( icdade mais ampla (razão da sua autono­ surgem novas formas de legitimação do po­
mia), podendo inclusive manter certos traços der com a emergência de uma concepção de
•la sua representação de mundo, especial­ autoridade que apela à racionalidade da
mente os princípios antimercado. ciência. Os profissionais promovem a racio­
Explica-se, assim, a ilusão de autonomia nalização no modelo corporativo transfor­
< de uma existência radicalmente diferente, mando a experlise científica em princípio
cm termos da sua organização, das profis- transcendente e base da sua autonomia.
sOfs. Mais ainda: “do ponto de vista do mer- Além disto, o momento de consolidação das
cado, o surgimento das profissões aparece profissões na estrutura social americana cor­
como mais uma fase da racionalização capi- responde à transformação da universidade,
lali.sta” (Larson, 1977, p. 56), incluindo-se da corporação e do Estado nas principais ins­
definitivamente na esfera das relações de tituições definidoras de status. Novamente, o
classe nestas sociedades. A ideologia de um vínculo se faz através da ideologia, pois os te­
setor da classe emergente — os grupos mas da eficiência, da regulação burocrática e
profissionais em ascensão — subsume-se à da experlise espalham-se, a partir destas insti­
ideologia dominante. Isto porque o vínculo tuições, para toda a sociedade. As relações
com a estrutura de classes passa pela ideologia: entre profissão e classe estabelecem-se pela
“Pelo fato de que a ascensão das profissões via da ideologia dominante, sendo a primeira
dependia tão amplamente do estabeleci­ responsável pela difusão de valores c práticas
mento de credibilidade social, elas tiveram da classe dominante (individualismo e preo­
que apelar para estruturas ideológicas ge­
rais. Uma delas foi o próprio princípio de cupação com status, além das características
racionalização, incorporado no ethos cientí­ já citadas do profissionalismo). Neste proces­
fico e na autoridade racional da expertise so, a Escola desempenha papel justificador,
técnica” (Larson, 1977, p. 56). atuando como instituição que certifica um
Na época do seu desenvolvimento, no novo tipo de propriedade — o saber — e
entanto, este tipo de apelo ideológico ainda fundamenta hierarquias meritocráticas que
não poderia fornecer uma base geral de legi­ recompensam o esforço individual. No senti­
timação para as profissões, que buscam no do inverso, a ideologia burguesa é fonte de
passado, na ordem social anterior ao século coesão interna no campo profissional (atra­
XIX, os fundamentos, mais éticos que cientí­ vés da idéia dc vocação, das expectativas de
ficos, da autoridade profissional. Orientação carreira e da socialização profissional) e da
para a comunidade, função civilizadora, sa­ legitimação do lugar das profissões na estru­
tisfação com o trabalho e mesmo alguns tura social.
princípios antimercado ou anticapitalismo Se para Larson a ideologia do profis­
“loram incorporados na tarefa de organizar sionalismo define a especificidade da existên­
os mercados profissionais porque estes eram cia social das proftssõess, podemos dizer que
elementos que davam suporte à credibilida­ Paul Starr propõe uma perspectiva mais
de sociel e à crença do público no caráter éti­ abrangente ao identificar na produção da au­
co das profissões” (Larson, 1977, p. 63). Esta toridade cultural o fundamento desta especi­
c a história original do profissionalismo, que ficidade. Estudando a Medicina americana,
acaba se transformando numa ideologia que este autor estabelece os princípios a partir
reúne elementos antitéticos (“função civiliza­ dos quais os médicos se configuram como
dora” x “orientação para o mercado”, ou portadores de autoridade legítima. Cada um
21
desses princípios corresponde tios atributos dicionais sobre estratificação social, Bour­
definidores de uma profissão: o princípio da dicu mantem a ideia de possessão dc capital
colegialidade, o princípio cognitivo e o princí­ como elemento definidor de posição social,
pio moral. Em outros termos: credenciais, mas diferencia este capital segundo espccie,
conhecimento e código de ética. Se estes são volume e estrutura, instituindo, assim, cam­
os traços característicos normalmente reivin­ pos sociais com lógicas específicas e eviden­
dicados pelos profissionais e, em geral, atri­ ciando as múltiplas determinações do real.
buídos pelos sociólogos às profissões, Starr “Na realidade, o espaço social é um espaço
tenta mostrar que eles estão referenciados à multidimensional, conjunto aberto dc cam­
questão do controle ocupacional, e que é es­ pos relativamente autônomos, quer dizer,
sencial que se perceba o profissionalismo co­ subordinados quanto ao seu funcionamento
mo algo mais, como um tipo de solidarieda­ e às suas transformações, de modo mais ou
de, uma fonte de significado, um sistema de menos firme e mais ou menos direto, ao
regulação de crenças na sociedade moderna. campo dc produção econômica” (Bourdicu,
Tanto Larson quanto Starr apontam 1989a, p. 153).
para o problema central cia especificidade Esta multiplicidade dc dimensões acaba
dos grupos profissionais, seja como elemen­ definindo o que poderíamos chamar de me­
tos constitutivos das hierarquias, seja como diações entre a determinação puramente
criadores dos sistemas de regulação de cren­ econômica c a existência social dos grupos.
ças nas nossas sociedades. O que nos traba­ "Pelo fato de que os diferentes fatores que
lhos citados fica implícito poderia ser explici­ entram no sistema de determinações cons­
tado num esquema analítico que partisse de titutivas da condição de classe, e que (io­
uma teoria geral da formação e hierarquiza­ dem funcionar como princípios de divisão
ção dos grupos sociais e permitisse incluir as real entre grupos objetivamente separados
profissões no processo geral de formação das ou atualmente mobilizados, possuem pesos
estruturas sociais sem perder os fundamen­ funcionais diferentes e detêm, por isso.
tos da sua especificidade. uma eficácia estrutural muito desigual, os
princípios de divisão são. eles mesmos, hie­
rarquizados" (Bourdicu, 1979. p. 118).
Para uma Teoria da
Formação dos Grupos Sociais Produto da diferenciação progressiva
do espaço social, a existência dc diferentes
A crítica à teoria marxista das classes so­ espécies dc capital (social, econômico, cultu­
ciais elaborada por Pierre Bourdicu (1989a) ral) define campos estruturados em torno dc
sistematiza e aprofunda elementos que já vi­ certos princípios de causalidade cuja eficácia
nham aparecendo nos trabalhos de Johnson c diferenciada c hierarquizada dc acordo
e permite incorporar as contribuições dos com a correlação de forças vigente num de­
autores weberianos que se discutiu anterior­ terminado momento numa sociedade, sen­
mente. Em primeiro lugar, aparece o proble­ do, portanto, objeto de lutas. Os diversos
ma da definição dos princípios de divisão dos campos passam por um contínuo processo
grupos sociais que possam dar conta da deli­ de autonomização, pelo qual os elementos
mitação entre os diversos trabalhos sem es­ mais universais — capital, investimento, ga­
quecer o caráter social das fronteiras que se nho — assumem formas específicas, definin­
estabelecem e considerando a natureza vir­ do relações objetivas, tornando obrigatória a
tualmente hierarquizante dessas divisões. As análise histórica dos processos de constitui­
insuficiências da análise marxista são produ­ ção e transformação de cada campo.
to, segundo o autor francês, da redução do “Sendo o capital uma relação social, isto 6,
mundo social ao campo das relações econô­ uma energia social que só existe e produz
micas, o que acaba levando à utilização de seus efeitos no campo onde ela se produz c
critérios puramente econômicos para definir reproduz, cada uma das propriedades atri­
posição social. Na sua crítica aos estudos tra­ buídas à classe recebe seu valor e sua eficá-
22
cia das leis específicas de cada campo" em certas épocas e alguns lugares do mundo
(Bourdieu, 1979, p. 127). social.
Cada campo, possuindo sua lógica pró­ É esta luta entre princípios clas-
pria de funcionamento, coexiste com outros sificatórios que dá o significado dos conflitos
no espaço social em que os agentes lutam pela Escola, especialmente pela Universida­
por valorizar e melhorar sua posição (no de, e pela definição dc políticas globais de
próprio campo e no espaço social em geral), ensino. Nestes conflitos, o que está cm jogo
levando sempre a configurações de equilí­ é a distribuição do capital cultural certifica­
brio instável em que uma das espécies de ca­ do: o valor do diploma em confronto com
pital é dominante mas interage com as de­ outras fontes dc legitimação de posições no
mais na mobilização diferencial de recursos mercado c na sociedade. Fica aqui, então, o
que os agentes introduzem nesta luta. Com problema de definir o lugar e o papel do sis­
isto quer-se dizer que o processo de aprofun­ tema dc ensino, que nas análises funcionalis-
damento da divisão do trabalho, característi­ tas e weberianas é o locus principal de estru­
co das sociedades ocidentais modernas, pro­ turação da vida profissional, ou ainda dc es­
duz ao mesmo tempo uma diferenciação en­ tabelecer todo o complexo dc mediações que
tre os campos no espaço social, inclusive a vincula o título cscolar c o posto dc trabalho.
criação de novos campos, c uma autonomi­ Do mesmo modo, a utilização da ciên­
zação dos princípios dc divisão do mundo so­ cia como fundamento legitimador constitui
cial. As conseqüências no plano histórico po­ uma vitória do pensamento científico sobre
dem ser vistas, entre outras coisas, na exten­ as sabedorias populares e outros saberes
são do processo de profissionalização e na também desclassificados, colocados na vala
instalação concomitante de outros critérios comum do esotérico, estranho, por funciona­
dc estratificação além da propriedade e da rem em outros parâmetros que não o méto­
origem familiar. No plano teórico, coloca-se a do científico, qualquer que seja o conteúdo
necessidade de compreender as múltiplas de­ que sc esconda atrás desse rótulo. Como di­
terminações da existência dos grupos sociais. zia Wcbcr, “a crença no valor da verdade
Como princípio dc hierarquização científica e produto de determinadas cultu­
concorrente, as diversas formas de capital ras e não um dado da natureza”. A questão
cultural têm sua eficácia classificatória defi­ aqui é entender como este pensamento se
nida pela sua relação com a espécie de capi­ torna o parâmetro dc todos os saberes e se
tal dominante — no caso das sociedades mo­ as profissões tiveram ou têm algum papel
dernas, fundamentalmente o econômico. !’o- neste processo, c qual seria este papel.
Considerando-se que há inúmeras for­
de-se dizer assim que a classe, na acepção mas dc recursos ou capitais desigualmente
marxista, concorre com profissão como prin­ distribuídos, a partir dos quais e pelos quais
cípio dc organização das hierarquias sociais. os agentes lutam para estruturar o mundo, c
Isto significa que estamos diante de uma luta que portanto o mundo social pode ser dito c
pelo estabelecimento de princípios hegemô- construído dc diferentes modos, segundo di­
nicos de divisão e hierarquização do espaço ferentes princípios dc visão e de divisão, os
social, uma luta entre princípios de regula­ agrupamentos, os cortes construídos a partir
ção. O título universitário, fundado no saber da distribuição de capital são aqueles que
científico, é um desses princípios, e dos mais têm maiores probabilidades dc serem está­
caros às classes médias e aos profissionais em veis, permanentemente significativos. Sendo
geral. Mas ele concorre com outros, como o assim, conhecendo-sc o modo dc funciona­
título nobiliárquico ou títulos dc proprieda­ mento do espaço de posições,
de. Nesse sentido, as profissões não configu­ “(...) podemos recortar c/asses no sentido
ram o padrão de desigualdade, como quer lógico do termo, quer dizer, conjuntos de
Larson, mas um padrão de desigualdade, em agenies que ocupam posições semelhantes
confronto com outros e, talvez, hegemônico e que, colocados em condições semelhantes
23
e sujeitos a condicionamentos semelhantes, mente inscrita no universo objetivado da téc­
têm, com toda probabilidade, atitudes e nica, só se realiza na ordem propriamente
interesses semelhantes, logo práticas e to­ social através da mediação de sistemas sim­
madas de posição sem elhantes” (Bourdieu, bólicos, onde se exprimem de forma explícita
1989a, p. 136).
as divisões entre grupos, e classes” (Boltans-
As profissões seriam, então, grupos ou ki, 1982, p. 50).
classes sociais que se caracterizam pela for­ Tratando a chamada dimensão cogniti­
ma diferenciada de apropriação e mobiliza­ va de forma mais abrangente, é possível in­
ção de um tipo de capital, o cultural, consi­ cluir na análise outras formas de co­
derado aqui como princípio de hierarquiza­ nhecimento que não o científico como base
ção oposto mas dialeticamente integrado ao de articulação do grupo profissional — dos
capital econômico e ao capital social. saberes gerenciais/administrativos aos co­
É uma forma diferenciada de apropria­ nhecimentos mágicos ou advinhatórios. O
ção do capital cultural na medida em que de­ entendimento do modo de produção e fun­
fine certas regras próprias, como a exigência cionamento do capital cultural permite expli­
de um grau mínimo de institucionalização car, inclusive, o lugar ocupado pelo co­
deste capital, principalmente através da pro­ nhecimento científico nas sociedades moder­
dução de certificados, ou a relação — pro­ nas e sua relação com as profissões. Do
blemática — com o chamado conhecimento mesmo modo, é possível estabelecer pa­
científico. A lógica do capital cultural, princi­ drões, ao mesmo tempo mais gerais e mais
pal eixo de estruturação do campo das flexíveis, para separar profissões e ocupa­
profissões, define as condições de produção ções, uma vez que serão diferenciadas não
(através da escola), de distribuição (através pelo conteúdo objetivo do seu saber, mas pe­
da atuação organizada no mercado) e de la correlação de forças sociais vigentes que
controle (através das diversas formas de hie­ define o arco de possibilidades de cada uma
rarquização, organização e representação) delas.
dos profissionais. Em todas estas instâncias, Mas se fica claro o uso do capital cultu­
o capital cultural integra-se às outras espé­ ral como fundamento da distinção, é preciso
cies de capital para produzir efeitos específi­ ainda explicar os mecanismos de delimitação
cos, distinguindo agentes e grupos por suas de fronteiras entre os grupos. Para isto, o
posições e disposições. conceito de campo é essencial. Espaço social
Definir o elemento estruturador das de relações objetivas e específicas, o campo é
profissões como capital cultural permite su­ visto por Pierre Bourdieu como meio de ex­
perar alguns dos problemas apontados ante­ plicar a forma concreta das interações dos
riormente na sociologia dos grupos profis­ agentes:
sionais. Inicialmente, esta concepção afasta “Compreender a gênese social de um cam­
possíveis tendências à substancialização con­ po é apreender aquilo que faz a neces­
tidas tanto nas análises funcionalistas quanto sidade específica da crença que o sustenta,
nas weberianas, na medida em que capital do jogo de linguagem que nele se joga, das
cultural significa bem mais que um certo coisas materiais e simbólicas em jogo que
montante de conhecimento: é uma relação nele se geram, é explicar, tomar necessário,
social que inclui, além do saber, o próprio subtrair ao absurdo do arbitrário e do não-
nome da profissão, a sua representação (que motivado os atos dos produtores e das
ajuda a entender também o problema da obras por eles produzidas’' (Bourdieu, 1989
ideologia das profissões), as disposições dos e p. 69).
agentes. Concebido como objeto de luta, a Dois pontos mostram-se particularmen­
posse e a valorização diferenciada deste capi­ te importantes aqui. Primeiro, a pos­
tal explicam os conflitos interprofissionais sibilidade de existência de espaços sociais on­
pela delimitação de monopólios, explicitando de vigoram princípios de estruturação razoa­
que “(...) a divisão do trabalho, potencial­ velmente autônomos, mesmo se vinculados
24
aos processos mais gerais em andamento na terna que combinam as diferenças numa for­
sociedade. O segundo diz respeito ao lugar ma específica de coesão do grupo. Se a vida
dos agentes. social é luta perpétua, como quer Weber, se
A autonomia relativa do campo é uma as fronteiras entre os grupos são fluidas, a
noção que permite superar o economicismo coesão interna assegura-se pelo trabalho de
das explicações marxistas sobre as profissões instituição, de representação do grupo e do
e o substancialismo ou realismo das análises mundo social, e é contingente das histórias
durkheimianas: O social se explicaria pelo de cada sociedade, de cada agrupamento,
social e as hierarquias entre e dentro dos vinculando-se, portanto, às idéias de agente e
grupos, bem como as fronteiras entre eles, de projeto.
constituem-se a partir do trabalho de insti­ Ao considerar os grupos profissionais
tuição realizado pelos agentes. Concebendo como produto de um trabalho social de insti­
a sociedade como espaço estruturado — a tuição, como grupos construídos a partir de
partir do princípio dominante da posse do uma lógica definida, num quadro de luta so­
capital econômico — mas fluido — dada a cial pela dominação, esta abordagem avança
luta constante dos agentes pela imposição de cm relação às análises weberianas que, mes­
suas próprias representações domundo so­ mo propondo a idéia de grupos construídos
cial —, esta vertente analítica procura mos­ (especialmente em Stark), não dão coerência
trar ainda que a autonomização dos campos ou não percebem os fundamentos c as con­
é um processo de depuração pelo qual cada seqüências da luta por sua construção cm to­
obra, cada produtor/agente e a sua própria das as instâncias da vida social, de forma sis­
lógica interna vão se orientando para aquilo temática. A partir daí cabcria perguntar cm
que o distingue e o define de modo exclusivo. que medida a luta pela constituição dos gru­
A depuração do campo profissional sig­ pos profissionais e pela afirmação de sua po­
nificou a preponderância do diploma univer­ sição define tendências estruturais na socie­
sitário como fundamento de distinção. Mas, dade, ou ainda, define formas de regulação
comõ não poderia deixar de ser, os campos da vida social, transferindo sua autoridade
ligam-se aos processos estruturais mais am­ para fora da sua área estrita de ação. Formu­
plos e sua autonomia relativiza-se pelo repi­ lando como questão a ideia de ‘Stark (1990),
que interno dos princípios dominantes na so­ o problema é saber se e como “os profis­
ciedade. Assim, pelas homologias estrutu­ sionais de classe média tiveram papel ativo
rais, o campo profissional organiza-se em na criação c formulação de suas posições,
torno de pólos que se distinguem um do ou­ através da elaboração de um projeto profis­
tro, produzindo efeitos semelhantes aos da sional que lhes abriu um novo espaço de
distinção entre burguesia e classe operária,
mas sempre mediados pelas regras específi­ classe” (Stark, 1990, p. 11).
cas do campo: Esse papel criativo dos grupos profis­
sionais no mundo social pode rctraduzir para
“as lutas que tem lugar no campo intelec­ as relações sociais, para a ação dos grupos, o
tual têm o poder simbólico como coisa em
jogo, quer dizer, o que nelas está em jogo é papel regulador (ou as tentativas de regula­
o poder sobre um uso particular de uma ca­ ção) atribuído à racionalidade científica. Este
tegoria particular de sinais e, deste modo, problema já surge em Farson (1977, p. 38)
sobre a visão e o sentido do mundo natural de forma mais restrita, na sua análise dos
e social" (Bourdieu, 1989c, p. 72). modos pelos quais a profissão muda a defini­
É a partir deste conceito que podemos ção e a forma dos problemas experimenta­
entender como a profissão pode se tornar dos e interpretados pelos leigos. Estamos
fundamento de distinção, de posicionamento diante da questão de como as profissões se
nas hierarquias sociais, compreendendo os organizam em torno de um saber, constrocm
processos pelos quais se delimitam fronteiras projetos e procuram reorganizar as relações
e se instituem princípios de organização in­ sociais de maneira que lhes seja conveniente.
25
Evidentemente, não está em jogo uma cons­ imagem do grupo localizada socialmente.
ciência e uma capacidade total e exclusiva de Aqui retoma-se a questão do ator que, do
planejamento e realização. A discussão das ponto de vista interno ao grupo, significa luta
necessidades atendidas pelos profissionais, pelo monopólio dos meios de representação
vistas como produto do jogo cie forças sociais social e política da categoria, luta na qual os
e desta ação criativa dos grupos sociais, tam ­ diversos agentes procuram constituir-se co­
bém pode ter aí um bom princípio de expli­ mo o mais/o melhor profissional dos profis­
cação. sionais. Do ponto de vista externo, a repre­
Ao introduzir a idéia de que o capital sentação faz parte do domínio da política, do
cultural é também um princípio de estratifi­ sindicalismo, expressando, através de organi­
cação concorrente com o capital econômico, zações que se constituem em representante
a perspectiva bourdieusiana aponta o funda­ ou porta-voz, imagens individualizadas do
mento último das lutas pela constituição dos grupo e de suas relações na estrutura social.
grupos profissionais, de sua representação, São dois problemas estreitamente vinculados
bem como permite reivindicar para estes e que podem ser resumidos como o proble­
uma lógica própria de existência. Dessa for­ ma da identidade do grupo: o que faz com
ma, pode-se perceber a especificidade da que, mesmo diante dessas e de outras dife­
profissão como fundamento de distinção, na renças, exista uma coesão que permita cha­
medida em que são incorporadas as caracte­ mar uma determinada profissão de grupo
rísticas diferenciais de comportamento dos social?
agentes e dos grupos, que não poderiam ser Aqui, ao contrário das perspectivas que
atribuídas simplesmente à classe social, no consideram que o plano social das identida­
sentido marxista do termo. No caso, a idéia des é sempre o plano das características ads­
de divisão entre proprietários e não-proprie- critas, ficando a ação, a racionalidade e a in­
tários é utilizada como homologia, a partir tencionalidade para a dimensão política (ver
da qual constroem-se núcleos de sentido co­ Reis, 1988), a produção das identidades so­
mo nos outros campos, mas que assumem ciais é tratada globalmente: atores coletivos
em cada um deles formas e organização es­ que vão se constituindo, lutando pelas repre­
pecíficas, determinadas pelos princípios pró­ sentações, pelas suas formas de visão e divi­
prios de cada campo. são do mundo social. Nem só os partidos são
Ao estabelecer vínculos entre profissão capazes de agir socialmente na definição de
e hierarquização social, Larson mostra como identidades: ocupações, seitas, igrejas, gru­
a ideologia do profissionalismo é estreita­ pos intelectuais ou artísticos fazem isto coti-
mente dependente de um projeto coletivo de dianamente.
mobilidade social produzido e dirigido por "lim a classe não pode jamais ser definida
uma elite profissional que visava ganhos pes­ apenas por sua situação e por sua posição
soais na sua efetivação. Introduzem-se aqui na estrutura social, isto e, pelas relações
duas questões cruciais para o estudo das que mantém objetivamente com as outras
profissões. Primeiro, a existência de diferen­ classes sociais. Inúmeras propriedades de
ças internas, de uma hierarquia entre os uma classe social provem do fato de que
seus membros se envolvem deliberada ou
membros da comunidade profissional, que objetivamente em relações simbólicas com
se mostraria então como espaço estruturado, os indivíduos das outras classes, e com isso
e talvez não tão comunitário como sugerem exprimem diferenças de situação e de posi­
as análises mais clássicas. A estrutura deste ção segundo uma lógica sistemática, ten­
campo se expressaria nos mecanismos de dis­ dendo a transmutá-las em distinções signifi-
tribuição do capital ou nos seus princípios de cantes" (Bourdieu, 1987, p. 14).
divisão. Segundo, a questão da repre­ Aparece aqui o papel instituidor, criati­
sentação do grupo, nos dois sentidos do ter­ vo, que os agentes têm na constituição do
mo: de delegação e de construção de uma campo profissional, seja para delimitá-lo ou
26
para organizá-lo, mas principalmente para deixando as suas marcas na organização e
produzir representações do próprio grupo e representação da divisão social do trabalho,
do mundo social. Na natureza dessas repre­ na criação de hierarquias entre esses traba­
sentações e das formas organizacionais e de lhos e entre os grupos que os realizam, na
ação coletiva encontra-se a especificidade instituição de modelos de profissionalização,
das identidades sociais. na definição de formas legítimas de ação co­
Uma qualificação é necessária neste letiva, nas concepções de mundo.
momento, pois deve-se ter em mente que
nem todas as classes têm condições sociais Nota Final
e/ou econômicas de transmutação simbólica
das diferenças materiais. 12 aí já se pode no­ Da perspectiva aqui discutida, torna-se
tar que os diversos subcampos do campo questão da maior relevância aquela das rela­
profissional diferenciam-se entre si quanto a ções entre os modelos sociológicos de análise
essas possibilidades. Mas também é impor­ dos grupos profissionais c a trajetória dos
tante ressaltar que este campo institui-se mesmos. De modo mais enfático, o papel
junto ao pólo dominante da sociedade, habi­ instituidor que sociólogos podem ter no mo­
litando-se os seus agentes a praticar o jogo mento cm que definem regras de estrutura­
das distinções simbólicas dentro dos limites ção do mundo social não é apenas um pro­
definidos pelas diversas formas de coerção blema epistcmológico. A temática dos mode­
econômica. Isto significa que o campo profis­ los de profissionalização evidencia o caráter
sional c espaço de privilegiados, lugar de luta conflituoso da formação dos grupos profis­
pela dominação, pelo menos virtualmente. sionais mas permite compreender o lugar
Se o campo profissional desenvolve-se dos trabalhos sociológicos. O modelo dc
como lugar da instituição de novos padrões profissão que procura filiar seu saber à ciên­
de desigualdade social, como quer Larson, a cia é hegemônico e ate os grupos mais dis­
própria lógica da existência dos agentes si­ tantes dele procuram adaptar-se. Seria im­
portante entender as relações entre as repre­
tuados neste campo faz com que eles procu­ sentações do modelo de profissionalização c
rem estender os princípios vigentes no seu as representações do próprio grupo, bem co­
espaço para o conjunto das relações sociais. mo as representações que o grupo tem do
É este propósito que Larson analisa: a campo profissional como todo, de suas hie­
profissionalização extensa da sociedade co­ rarquias.
mo projeto coletivo de mobilidade social. A No interior do campo profissional repe­
perspectiva que se adota aqui permite ir tir-se-ia, com outras armas e argumentos, o
além, no sentido de mostrar que não se trata conflito pela sua divisão e hierarquização e o
apenas de mobilidade, mas de um projeto- modelo de profissionalização seria um trunfo
representação do mundo social. Mais do que nesta luta. Aí entram a Sociologia e os soció­
impor autoridade cultural (Slarr), os grupos logos, como recurso e como agentes, respec­
profissionais constroem representações espe­ tivamente, nesta luta pela definição de mo­
cíficas sobre o modo como a sociedade se es­ delos, dc tipos ideais. Os modelos profis­
trutura (ou deve se estruturar) e do lugar de sionais dc médicos produzidos pelo funcio­
cada grupo aí dentro. Sendo assim, o papel nalismo serviram de base para a organização
instituidor do trabalho profissional assume e para reivindicações de uma série de ocupa­
dimensões bem mais amplas, podendo abar­ ções que pretendiam se profissionalizar. O
car todo o conjunto das relações sociais, de­ modelo dc profissão ou a ideologia do profis­
pendendo das condições materiais a que me sionalismo é uma arma poderosa, um com­
referi anteriormente. A importância das ponente do capital de que dispõe um grupo
profissões, pressentida por Parsons e explici­ para situar-se no campo profissional. Deste
tada de alguma forma por Larson e Starr, ponto de vista, pode-se incorporar a crítica
pode mostrar-se assim em toda sua extensão. de Abbott aos teóricos que mostram a
27
profissionalização como um processo unidi- das classes sociais e que se distinguem con­
recional, com etapas definidas e semelhante forme as suas classificações envolvem mais
em todos os casos. A organização do campo ou menos o Estado, detentor do monopólio
profissional depende, em cada momento, da na nomeação oficial, da boa classificação,
correlação de forças sociais que definiria os da boa ordem ” (Bourdieu, 1989a, p. 149).
modos possíveis de profissionalização. O que O crescimento do número de sociólogos
significa que a trajetória dos diversos grupos atuando junto às diversas entidades profis­
é variável, alguns tendo maior destaque que sionais pode dar a medida desse papel, mas
outros em determinados períodos. Mais do ainda chama a atenção a pouca significação
que o problema do título e do posto, trata-se da sociologia brasileira das profissões. Ao
aqui de uma confrontação entre os diversos contrário dos Estados Unidos, onde houve
títulos e as formas de estabelecimento do um forte processo de profissionalização, ins­
seu valor. Neste processo, o conhecimento tituindo espaços expressivos de validação dos
dos modelos e a eleição de um deles como princípios hierarquizadores correspondentes,
objetivamente correspondendo à definição países como o Brasil ou a França tiveram
dc trabalho profissional pode ser um recurso seus grupos profissionais longa e fortemente
considerável, remetendo portanto ao papel
da Sociologia como produtora de um modo subsumidos nas categorias sociais dominan­
dc percepção legítimo: tes, atenuando-se ou pelo menos obnubilan-
“Isto quer dizer que não se pode fazer uma do-se o seu papel criador. Assim, um pouco
ciência das classificações sem se fazer uma além da lógica interna da evolução da teoria
ciência da luta dessas classificações e sem e pesquisa sociológicas americanas, francesas
se tom arem linha de conta a posição que, ou brasileiras, a trajetória das classes sociais
nesta luta pelo poder de conhecimento, pe­ nesses países pode conter elementos explica­
lo poder por meio do conhecimento, pelo tivos importantes para a situação da Sociolo­
monopólio da violência simbólica legítima,
ocupa cada um dos agentes ou grupos de gia das Profissões em cada um deles.
agentes que nela se acham envolvidos, quer
se trate de simples particulares, condena­
dos aos acasos da luta simbólica quotidia­
na. quer se trate de profissionais autoriza­
dos (e a tempo inteiro) — e entre eles to­ (Recebido para publicação
dos os que falam ou escrevem a respeito em novembro de 1993)

Bibliografia

Abbott, Andrew
1988 The System o f Professions: An Essay on the Division o f Expert Labour. Ehe Univer­
sity of Chicago Press.
Becker, Howard
1952 “Social-Class Variation in the Teacher-Pupil Relationship”. Journal, o f Educational
Sociology, n. 25.
Bccker, Howard e Carper, James
1956 “The Development of Identification with an Occupation”.American Journal o f So­
ciology, vol. LXI, n. 4, pp. 289-98.
Boltanski, Luc
1982 Les Cadres. Paris, Minuit.
28
Bourdieu, Pierre
1979 La Distinction: Critique Sociale du Jugement. Paris, Minuit.
1987 “Condição de Classe e Posição de Classe”. In Sergio Miceli (org.),yl Economia das
Trocas Simbólicas, São Paulo, Perspectiva.
1989a “Espaço Social e Gênese das Classes”. In P. Bourdieu, O Poder Simbólico, Lisboa,
Difel-Bertran Brasil.
1989b “A Força do Direito”. In idem.
1989c “A Gênese dos Conceitos de Habitus e de Campo”. In idem.
Braverman, Harry
1980 Trabalho e Capital Monopolista. A Degradação do Trabalho no Século XX. Rio de
Janeiro, Zahar Editores.
Carchedi, G.
1975 “On the Economic Identification of the New Middle Class”. Economy and Society,
vol. 4, n. 1, pp. 1-86.
Chapoulie, Jean Michel
1973 “Sur PAnalyse Sociologique des Groupes Professionnels”. Revue Française de So-
ciologie, vol. XIV, pp. 86-114.
Collins, Randall
2979 ]}xe Credential Society. New York, Academic Press.
Davis, Kingsley e Moore, Wilbert
1971 “Alguns Princípios de Estratificação”. In O. G. Velho, M. Palmeira e A.R.
Bertelli (orgs.), Estrutura de Classe e Estratificação Social, Rio de Janeiro, Z a­
har Editores.
Durkheim, Emile
1984 A Divisão do Trabalho Social. Porto, Editorial Presença.
Freidson, Eliot
1986 Professional Powers. University of Chicago Press.
Goode, William J.
1967 “Community within a Community: The Professions”. American Journal, o f Socio­
logy, vol. 72, n. 4, pp. 194-200.
Gyarmati, K., Gabriel
1974 “The Doctrine of the Professions: Basis of a Power Structure”. International So­
cial Science Journal, vol. XXVII, n. 4, pp. 629-54.
Hall, O.
1948 “The Stages of a Medical Career”. American Journal o f Sociology, vol. 53, n. 5.
Johnson, Terry
1977 “What is to Be Know? The Structural Determination of Social Class”. Economy
and Society, vol. 6, n. 2, pp. 194-233.
Kuhn, Thomas
1978 A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo, Perspectiva.
Larson, Magali Sari'ati
1977 The Rise o f Professionalism. University of California Press.
Miceli, Sergio
1987 “Introdução: A Força do Sentido”. In S. Miceli (org.), A Economia das Trocas
Simbólicas, São Paulo, Perspectiva.
29
Noble, David
1979 America by Design. Oxford University Press.
Offe, Claus
1989 Trabalho e Sociedade: Problemas Estruturais e Perspectivas para o Futuro da So­
ciedade do Trabalho. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro.
Paixão, Antonio Luiz
1988 “A Teoria Geral da Ação c a Arte da Controvérsia”. Textos de Sociologia e Antro­
pologia, IJFMG, n. 24.
Parkin, Frank
1983 Marxism and Classe lheoty: A Bourgeois Critique. Londres, Tavstock.
Parsons, Talcott
1967 “Las Profesiones y la Estrutura Social”. In T. Parsons, Ensayos de Teoria Socioló­
gica, Buenos Aires, Paidós.
1968 Verbete “Professions”. In David Sills (ed.), International Encyclopaedya o f Social
Sciences, The MacMillan Company & The Free Press, vol. XIF
1977 “Durkhcim e a Teoria da Integração dos Sistemas Sociais.” In Gabriel Cohn
(org.), Para Ler os Clássicos, Rio de Janeiro, Livros Técnicos e Científicos Editora
S.A.
Poulantzas, Nicos
1975 As Classes Sociais no Capitalismo de Hoje. Rio dc Janeiro, Zahar Hditores.
Reis, Fabio Wanderlcy
1988 “Identidade Política e a Teoria da Escolha Racional”. Revista Brasileira de Ciên­
cias Sociais, São Paulo, Anpocs/Vértice, n. 6, vol. 3.
Rhoads, John K.
1991 Critical Issues in Social Theoiy. Pennsylvania State University Press.
Rueschemeyer, D.
1965 “Doctors and Lawyers: A Comment on the Theory of the Professions”. Canadian
Review o f Sociology and Anthropology, n. 1.
Starr, Paul
1982 The Social Transformation o f American Medicine, New York, Basic Books.
Stark, David
1990 “Forçando as Grades da Jaula de Ferro: Burocratização c In formalização no Capi­
talismo e no Socialismo”. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, An-
pocs/Vértice, n. 13.
Tumim, Melvin
1967 Social Stratification. The Forms and Functions of Inequality. New Jersey, Prentice
Hall/Englewood Cliffs.
IJrry, John e Lash, Scott
1987 The End o f Organized Capitalisme. Lancaster, Polity Press.
Wright, Erik O.
1985 Classes. Londres, Verso Editions.

30

Вам также может понравиться