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As ilustrações utilizadas ao longo

deste dossiê foram produzidas a


partir de fotos de Cristiano Mas-
caro, as quais podem ser vistas no
último texto da seção.

JOSÉ DE SOUZA MARTINS

A ferrovia e a
modernidade
em São Paulo:
a gestação do
ser dividido
JOSÉ DE SOUZA
MARTINS é professor
aposentado do
Departamento de
Sociologia da FFLCH-USP e
autor de, entre outros,
Vergonha e Decoro na
Vida Cotidiana da
Metrópole (Hucitec).
A
do-se aos poucos nos interstícios dos cos-
tumes e repetições.
Essa lentidão foi abalada na década de
60 do século XIX quando, com surpreen-
dente rapidez, a ferrovia saindo do porto de
Santos galgou quase de supetão a serra ín-
greme do mar e inundou o planalto com seu
tempo próprio, sua velocidade, sua nova
espacialidade, a nova mentalidade que dis-
seminava, a da pressa, a do chegar logo, a
do não ter tempo, a de estar no mesmo dia
em dois lugares antes separados por dias de
cavalgada. O moderno que se arrastava
ocultamente se tornou visível, máquina a
modernidade de São Paulo vapor, equipamento, alterações no espaço,
está no emaranhado de tempos das rela- outra linguagem, outro modo de ver e ver-
ções sociais e mentalidades que se justa- se. Tornou-se de fato o que já era sem poder
põem no extenso espaço que constitui a me- ser: o tempo regulado pelo custo e pelo
trópole. Está no arrastar de pés que por esse lucro. O homem deixava de ser o condutor
espaço dissemina as contradições do mo- da tropa para ser conduzido como tropa.
derno e da sociedade moderna. Está nos Dois extremos sociológicos dessa
desencontros que expressam, dão cara e reordenação social decorrente da implan-
forma, sons e cheiros às contradições pró- tação da São Paulo Railway estão na vila
prias da sociedade constituída pelo prima- de Paranapiacaba e na Estação da Luz. Sim-
do da razão. Mas incapaz de sobreviver e bolicamente, ambas são expressões da ar-
reproduzir-se sem as persistentes sobras de quitetura do medo. Em Paranapiacaba,
relações e concepções da tradição e do porque o desenho da vila foi inspirado na
tradicionalismo que não foram anuladas concepção do panóptico (1). Isto é, na inte-
nem perderam sentido. riorização subjetiva do agente da vigilân-
O mundo moderno chegou fragmentá- cia. Cada trabalhador e cada morador car-
ria e marginalmente a São Paulo já no sécu- regavam dentro de si o capataz que não era
lo XVIII, justapôs-se aos costumes, criou apenas o capataz de seu trabalho, mas o
ilhas de racionalidade econômica e políti- capataz de sua vida pessoal e familiar. Sua
ca, conviveu com as estruturas fundamen- construção e seu funcionamento foram pre-
tais de uma economia à margem das gran- sididos pela idéia de que a disciplina do
des contas do mundo colonial. Por isso, trabalho moderno dependia da interio-
não chegou inevitavelmente nem fez senti- rização de temores, sobretudo o temor de
do para a maioria da população. Pouquíssi- ser visto fazendo o que não deveria ser fei-
mos perceberam as mudanças que chega- to. A Estação da Luz porque expressava
vam, as novas idéias, a nova maneira de outra dimensão do medo, já não mais o
produzir e negociar com base no cálculo, medo do trabalhador em relação à figura
no inconformismo da curiosidade econô- invisível do patrão e de quem manda. Mas
mica e política, na busca de formas que agora o medo que tem quem manda em
dessem contorno aos novos conteúdos que relação a quem trabalha e é mandado. Nes-
se propunham. se caso, concretamente, o telefone secreto
Não é casual que esse marginalismo da estação desde quando construída, mas
1 Cf. Marco Antonio Perrone
Santos, “Análise das Relações
tenha criado uma peculiar vida privada e acionado unicamente em 1924, por ocasião
Panópticas das Distribuições um peculiar refúgio nos casamentos intra- da Revolução e da tomada da estação pelos
Espaciais”, in João Ferreira et
alii, Paranapiacaba, Estudos familiares dos membros da pequena elite revoltosos. Foi utilizado pelo diretor inglês
e Memória, Santo André, Pre- de então. Nem é casual que tenham sido para passar secretamente sua autoridade e
feitura Municipal de Santo
André, 1990, pp. 1-41. lentas as transformações sociais, propon- suas ordens ao chefe da estação de Santos,

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que se encontrava em território sob contro- de no planalto e na cidade de São Paulo em
le das forças legalistas, para que assumisse particular. Atenho-me às demoras desse
em seu lugar a direção da ferrovia, e ao processo, ao lento desenhar de formas que
mesmo tempo para bloquear sua própria anunciam e pedem um viver diverso, um
autoridade, já que estava preso. modo de ser modificado. Penso no diálogo
Esses cuidados e controles fizeram da entre os momentos do tempo histórico, nos
ferrovia o instrumento de uma nova geo- ajustes pacientes e descompassados do
grafia. Isso vai aparecer na Revolução de costumeiro ao regulado, nas surpresas de
1924. A ferrovia se revela aí instrumento descobertas miúdas e grandes em relação
de uma nova espacialidade, que não é ape- ao estabelecido, mas não necessariamente
nas a da economia do café. É também a da percebido.
geografia do poder. O quarto secreto da Luz Em boa parte, nessa história, a ferrovia
é a chave dessa outra geografia oculta. Que não é propriamente uma causa geral das
tenha existido antes de existirem os proble- mudanças. É apenas um dos episódios, mais
mas, bem indica o quanto os arquitetos da mediação do que fator. Mas mediação inci-
ferrovia sabiam que mundo estavam crian- siva porque criou necessidades sociais no-
do; sabiam que conflitividades encerrava vas, adaptação de costumes, novas regula-
e expressava a estrada de ferro como um ções da conduta, novos horizontes. Essa
dos instrumentos vitais desse mundo novo. mediação fundante foi anunciando aos
A ferrovia diluiu a dimensão local e de poucos, conforme as circunstâncias sociais,
localidade dos antagonismos sociais na di- econômicas, políticas, culturais, que mun-
mensão geopolítica dos embates sociais e do era aquele, de lógica radicalmente di-
políticos da modernidade antes que os versa, que nela assumia sua melhor confi-
embates fossem efetivos. Já não era pos- guração de sentido. O modo como se disse-
sível viver sem temer os desdobramentos minaram os efeitos dessa mediação e de
do mundo criado pelo capital moderno e outras que lhe foram correlatas não foi li-
pela máquina. near, evolutivo, como se poderia pensar.
Entre esses dois extremos, e muito rapi- Em diferentes pontos de sua espacialidade
damente, na passagem do século XIX para produziu combinações e conseqüências
o século XX, uma nova concepção do es- formalmente diversas entre si.
paço se definiu, uma nova mentalidade se É o caso da distinção entre público e
difundiu, uma nova consciência social ga- privado e da emergência dos fundamentos
nhou sentido. O mundo da ferrovia trazia do que se pode chamar propriamente de
embutidos os códigos da modernidade e, vida cotidiana. Com a riqueza esplendorosa
portanto, das contradições sociais gestadas do café, ganhou uma certa monumen-
na complicada passagem da sociedade es- talidade a separação entre público e priva-
cravista, que se exauria, para a sociedade do. Ou melhor, a vida íntima e confinada
industrial, que se anunciava. Não se tratava da elite tradicional evoluiu para a sociabi-
apenas do advento das classes sociais, mas lidade requintada da vida privada, a vida
das reinterpretações da realidade que a culta e cerimoniosa, protegida entre quatro
mudança impunha, da emergência da vida paredes. Na cidade de São Paulo, vida pri-
cotidiana e da vida privada, o novo modo vada foi a vida da elite confinada no inte-
de ser dominado pela temporalidade da re- rior dos palacetes. Vida cotidiana foi a vida
produção ampliada do capital, o novo de- da população pobre, rápida e crescente-
coro regulado pela necessidade social da mente alcançada pelos horários estritos,
aparência. pela disciplina do trabalho, pela demarca-
É no embate entre o passado persistente ção do dia, da hora e do minuto como o
nos ritmos do viver (e dos espaços a per- tempo dessa modernidade que chegava de-
correr), de um lado, e o futuro de um viver sigualmente a diferentes âmbitos da socie-
possível e relutante, de outro, que se pode dade. A vida cotidiana tomou conta dos es-
pensar a questão do advento da modernida- paços públicos e foi aí que melhor se expres-

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sou. A negação parcial da vida cotidiana, a diação. Em Paranapiacaba, vida cotidiana
resistência a ela, elegeu a vida privada dos e vida privada, em oposição a lazer e espa-
palacetes como recinto do ócio com estilo, ço público, foram implantadas e instituídas
libertou a mulher da elite do confinamento juntas. No modelo de casa popular vitoriana,
do gineceu, criou a sala de visitas e a trouxe estabeleceu-se a diferenciação funcional de
para esse espaço, fez do feminino e da mu- rua de trás e rua da frente. A parte da casa
lher as referências das suavidades requinta- voltada para a rua, lugar de entrada da vi-
das da contrapartida do negócio e daquilo sita e do social, e a parte da casa voltada
em que se apoiava, o trabalho. para a viela traseira, para o trabalho e as
Esse foi o ajuste entre os padrões e re- matérias-primas da vida doméstica. Essa
ferências do passado escravista que desa- distinção funcional trouxe consigo o ele-
parecia e o alargamento das formas de con- mento de civilidade que a lógica da empre-
duta possibilitado pelo dinheiro do café. sa pedia e necessitava. De certo modo, o
Essa possibilidade criou o cenário e as con- novo trabalhador exigido pela empresa
dições de invenção social de um novo modo moderna implicava a imposição de uma
de vida, mesmo que muito se insista e até se pedagogia do trabalho, na indissociação
demonstre, ainda que precariamente, que entre trabalhar, habitar e ser, uma revolu-
houve cópia e importação de padrões euro- ção nas mentalidades, uma reordenação dos
peus. Mesmo a cópia teve que ser reinventada costumes, a invenção de um modo de vida.
na circunstância de uma sociedade que A arquitetura de Paranapiacaba acarre-
mudava e persistia ao mesmo tempo. tou a difusão da mentalidade da vida inte-
As transformações não foram privilé- rior e privada como resíduo da necessidade
gio da elite. O tempo e o espaço da ferrovia, de constituir um espaço de ostentação, uma
a disciplina industrial que a regulava, im- espacialidade que distinguisse bastidor e
punham também a necessidade de inventar palco. Essa foi a forma de estender a con-
a sociedade dos trabalhadores. Porque o cepção burguesa de decoro à classe traba-
Brasil de meados do século XIX era um lhadora. De certo modo, os hierarcas da
Brasil que sabia que a escravidão ia acabar. empresa transformaram-se em missioná-
A cessação do tráfico negreiro dizia isso e rios da civilização. Foi na ferrovia, embora
a Lei de Terras criava um regime fundiário não só nela, que a empresa também se pro-
que pressupunha isso. Mas o escravo con- pôs como missão civilizadora, como ex-
tinuava ali, como necessidade econômica e pressão de um projeto maior de domina-
como força de trabalho dominante. O tra- ção, mais amplo do que a mera extração da
balhador livre ia sendo gestado nos desen- riqueza.
contros entre a economia e a política, nos Não foi apenas nas questões cotidianas
debates políticos sobre o fim do cativeiro, do viver e do sobreviver que a modernida-
na invenção de um trabalhador rural carac- de se difundiu. Ela se revestiu de amenida-
teristicamente brasileiro, sujeito a um regi- des imaginárias referidas a uma nova
me de trabalho, o colonato, que seria o gran- espacialidade. A ferrovia adotou um traje-
de responsável pela contraditória combi- to que de algum modo reorientava o senti-
nação de trabalho camponês com acumu- do de direção dos velhos caminhos do mar,
lação não-capitalista de capital. do contato dos paulistas com o mundo. O
Foi em Paranapiacaba, no Alto da Ser- mais antigo dos caminhos, do século XVI,
ra, que uma verdadeira engenharia social dirigia-se de São Paulo para leste, no cam-
estabeleceu as condições em que a lógica po, e no limite do campo e da mata quebra-
da empresa e a disciplina do trabalho de va à direita em direção ao sul, para entrar na
que necessitava se materializaram numa mata em direção ao leste. De modo geral,
espacialidade habitacional peculiar, bem os caminhos antigos que o sucederam até o
diversa daquela que se difundia nos bairros século XIX procuraram consertar esse des-
da elite paulistana. Diferenças contrárias e vio para endireitá-lo, o que afinal só foi
contraditórias no resultado da mesma me- feito pela ferrovia. A ferrovia mudou defi-

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nitivamente o sentido de direção das via- dade pessoal, do homem, é bom que se diga.
gens de São Paulo a Santos e de Santos a De tal modo, que mulher embriagada tor-
São Paulo. nou-se símbolo por excelência da perda da
Modificou de fato a geografia imaginá- condição feminina.
ria de referência da cidade de São Paulo e O vinho, que perderia essa disputa, apon-
seu subúrbio. Com a ferrovia a viagem tava mais na direção de uma sociabilidade
passou a ser direta, de oeste para leste na de família, de uma bebida de mesa. A cerve-
direção do mar. O novo trânsito abandonou ja, que o venceu, indicava uma sociabilida-
o trajeto do campo para entrar o mais de- de de balcão, masculina, de espaços públi-
pressa possível no trajeto da mata. Uma cos. Coisa que não existia antes, a não ser a
natureza exuberante e intocada invade o cachaça, bebida de escravo, na polarização
imaginário da cidade de São Paulo, torna- com a aguardente do reino, tão rara e tão
se mais próxima. A natureza da São Paulo cara que, no século XVIII, era vendida como
colonial fora o campo; com a ferrovia pas- remédio pelos boticários. Só como remédio
sa a ser a mata e a desvalorização do campo tinham os pobres acesso a ela.
em relação à mata. O debate entre os defensores do vinho e
Um certo triunfalismo da conquista da os da cerveja dizia respeito a uma demo-
natureza pelo homem é reforçado nessa cracia do comer e do beber, de um novo
reorientação, um proposital contraste do direito, o direito da bebida que comple-
novo e monumental urbano com a natureza menta e acompanha o comer. Mas também
intocada. Os passos dessa conquista são à afirmação de um comer com estilo, uma
valorizados, como em A Carne, de Júlio certa chegada de hábitos da nobreza a par-
Ribeiro, em que ganha foros de persona- celas do povo. O imaginário fazia associa-
gem o deslumbramento da horta-jardim, do ções entre a ferrovia, a agricultura de jardi-
garden inglês, em face do tipo de domes- nagem, a comida e a bebida. O país se
ticação da natureza que o imigrante italia- europeizava. Mas não era qualquer euro-
no dos núcleos coloniais do subúrbio, peísmo e sim o da “verdadeira” Europa, a
plantador de videiras, estabelece em torno Europa da nobreza, o que restava da devas-
da simbologia da vide e do vinho (2). tação da Revolução Francesa.
Na segunda metade do século XIX, há É contraditório em Júlio Ribeiro o des-
em São Paulo uma curiosa disputa entre o lumbramento pelos vinhedos de São Cae-
vinho e a cerveja, propostos como novas tano, quando por eles passava o trem em
bebidas populares de grande consumo, uma que viajava seu personagem, pois preconi-
disputa pelo padrão de civilidade. Até en- zava o republicanismo contra a monarquia,
tão as classes populares da cidade não dis- os Estados Unidos como referência e mo-
punham de uma bebida cotidiana nem de delo. Mas aqui o modelo seria alterado,
uma bebida de cerimônia. Nessa disputa o invertido, em que a ordem se sobreporia ao
que esteve em jogo foi o padrão de civili- progresso e lhe daria sentido. A ferrovia de
dade dos trabalhadores e dos pobres que Júlio Ribeiro era, no fundo, a expressão da
passaria a existir com a urbanização e a ordem e do progresso: a ferrovia era repu-
industrialização e também que tipo de so- blicana. Quando da revolta dos colonos em
ciabilidade os agregaria. Pela primeira vez 1878, no Núcleo Colonial de São Caetano,
passaria a existir uma bebida popular não ela agilizou a ordem contra o progresso das
estigmatizada, como acontecia com a ca- justas reivindicações sociais do homem li-
chaça, que era bebida calmante de cativo, vre, transportou as tropas da repressão, que
da gente servil, mesmo, liberta, com fun- rapidamente foram levadas para a proxi-
ções bem diferentes dessas outras duas midade da colônia, reduziu o tempo da
bebidas. O trabalho livre, que despontava, desordem e suas implicações, abreviou o
propunha o consumidor na figura do ho- alcance das demandas sociais, circunscre- 2 Júlio Ribeiro, A Carne, apre-
mem livre; propunha bebidas que fossem veu o descontentamento. Em poucos dias sentação e notas de Marcelo
Bulhões, Cotia, Ateliê Editori-
simbolicamente fortes indicadores da liber- os descontentes foram mandados de trem al, 2002, passim.

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para o Rio de Janeiro e dali para Santa forto. Como na revolta dos escravos da
Catarina. Instituía-se o tempo da ordem e Fazenda de São Caetano, em 1863, no
se abreviava o tempo da desordem. A mu- mesmo momento em que a ferrovia estava
dança possível era a do progresso regulado sendo implantada, seus trilhos correndo
pela ordem, bem diversa do que seria pró- praticamente ao lado, a poucos metros, da
prio da república imaginada. secular casa-grande e das senzalas. A fa-
A ferrovia produziu novos cenários uti- zenda era uma fazenda industrial, produzia
lizando-se da velha natureza. A ferrovia louça, telhas, tijolos consumidos em São
produziu a dimensão cinematográfica do Paulo. Os cativos eram escravos-operários.
cenário, o cenário como sucessão de ima- Não queriam mais trabalhar na fábrica dos
gens, como contradição entre o que passa e monges de São Bento. Preferiam a roça, a
o que fica, como junção de opostos. A na- lavoura.
tureza que permanece, porém vencida pelo A ferrovia anunciava e realizava o novo,
trem que se move. Isso apareceu no relato ao mesmo tempo em que nele inseria o velho
de Rudyard Kipling sobre sua visita ao e tradicional. Era como se descosturasse a
Brasil e sua viagem pela São Paulo Railway, trama das velhas relações sem destruí-las
em 1927, na identificação e distinção de inteiramente, recosturando-as no sistema
cheiros industriais e cheiros da natureza (3). de significados e funções do primado do
Mas apareceu, também, nas cartas de capital e de sua reprodução ampliada. Não
Capistrano de Abreu, que se hospedou al- atuava apenas no âmbito da economia, mas
gumas vezes na casa de Martim Francisco, também no do reajustamento e refuncio-
sobrinho-neto do patriarca da Independên- nalização das relações sociais, dos valores,
cia, em Santo André, quando vinha a São das concepções. Juntava e separava as clas-
Paulo: sentia-se longe e perto ao mesmo ses sociais, os passageiros da primeira classe
tempo, no rural e no urbano, quando ia a e os passageiros da segunda classe. Rees-
São Paulo passar longas horas de conver- tamentalizava o novo transporte de massa
sação culta no escritório de Paulo Prado. ao pôr em circulação os moderníssimos,
Ao invés da polarização de rural e urbano, luxuosos, caros e segregadores trens a die-
da antiga distância enorme e demorada para sel, o Cometa, o Estrela e o Planeta, nos anos
ir à fazenda em Jundiaí ou Campinas, ou 20. A nova ordem – a ordem das separações
para ir a Santos, a ferrovia juntava os opos- que se juntavam sem se dissolver – legiti-
tos, dava dimensão visual a aspectos das mava as diferenças, os que tinham estilo e
contradições sociais, conciliava as tempo- os que não o tinham. O carro de primeira
ralidades contrárias, ordenava os desarran- classe com o recosto de cabeça do banco
jos e descontinuidades, como pressupunha estofado, revestido de pano de linho bran-
o republicanismo nascente, já eivado de co, trocado ao fim de cada viagem, e a se-
princípios do absolutismo e da monarquia. gunda classe do banco de madeira. O re-
A ferrovia fazia imaginar, como sugere costo de linho limpo e substituível como
Júlio Ribeiro. Estabelecia o marco desse atenuação simbólica e real da promiscui-
imaginário, que não era dela. Imaginário dade inevitável.
que vinha das transformações no mundo da Para se compreender as transformações
fazenda, que rompiam e redefiniam a pola- ocorridas com a implantação da ferrovia é
rização de senhores e escravos, de ca- necessário considerar a conjugação de ru-
sa-grande e senzala, para dar lugar à nova ral e urbano, de agrícola e industrial, de
polarização de fazendeiros e colonos, de antigo e novo. A ferrovia era organizada
sede e colônia. De certo modo, a mediação segundo a lógica da indústria mais moder-
reordenadora da ferrovia e do que ela re- na, que era a lógica da engenharia e da
presentava com sua nova lógica do traba- mecânica. Mas também segundo a prudên-
3 Cf. Rudyard Kipling, Cenas Bra- lho livre e da reprodução ampliada do ca- cia mais antiga, própria de uma empresa
sileiras, trad. de Pinheiro de pital se expressou em episódios de insur- que envolvia também a tecnologia social
Lemos e Geir Campos, Rio de
Janeiro, Record, s/d. gência, de descontentamento, de descon- da ordem apoiada nos valores da tradição.

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De certo modo, a São Paulo Railway era bólicos da ferrovia e por meio dela se di-
vitoriana. Não por acaso suas estações com- fundindo para outras relações sociais, para
binaram o tijolo e o ferro, nos adornos de o modo de vida da população afetada por
uma sociedade que, de fato, conservadora- ela. Estou falando das conseqüências so-
mente, resistia às simplificações da linha ciais e políticas desses dois elementos de
reta. Com ela chegam elementos de preci- engenharia e das técnicas sociais neles
são nos horários, mas também na tecnolo- embutidas, técnicas que permitiam a mani-
gia do transporte, no encurtamento real das pulação social e a manipulação política.
distâncias pelo encurtamento do tempo A ferrovia, por meio dessas inovações
necessário para percorrê-las. Mas são reva- técnicas e sociais, e de outras, teve uma
lorizados e adaptados modos e rituais de importância grande na mudança social em
deferência dos tempos das viagens a cava- São Paulo. Nós estávamos de fato saindo
lo. O que importa é ressaltar que essa ino- de uma sociedade escravista e entrando com
vação tecnológica rearranjou as relações relutância na sociedade baseada no traba-
sociais, os ritos de proximidade e afasta- lho livre e na contratualidade das relações
mento, o modo de vida, as mentalidades. sociais. As duas inovações arquitetônicas a
Longe de promover uma ruptura súbita e que me refiro, a Luz e Paranapiacaba, são,
radical, fez mudanças e rearranjos, promo- justamente, componentes dessa nova men-
veu adaptações e condutas adaptativas. talidade, uma nova concepção da socieda-
Rudyard Kipling, na viagem que fez pela de e das relações sociais.
São Paulo Railway, de São Paulo a Santos, A sociedade escravista era uma socie-
nos anos 20, destaca em suas notas de via- dade baseada no uso de instrumentos físi-
gem os cheiros e destaca o tempo. Nota a cos de coerção do trabalhador. As pessoas
incrível eficiência e rapidez na substitui- estavam subjugadas, fossem escravos ou
ção do motor de tração dos carros da ferro- não, pelo fato de que havia uma disciplina
via, os tempos curtos de minutos. Mas nota social basicamente implantada pelo chico-
também a demorada dedicação dos passa- te. Para se sujeitar à disciplina do trabalho,
geiros às despedidas, indício de cultura o escravo precisava de coerção física, ex-
aristocrática, de quem tem tempo para os terna, precisava do lembrete permanente
rituais da sociabilidade. Percebeu esses do castigo no tronco.
desencontros de tempo: o tempo aristocrá- Com acerto, dizia Joaquim Nabuco que
tico abundante do ócio e o tempo curto e os senhores e os escravos eram profunda-
empresarial do negócio, na ferrovia. Sen- mente iguais. O senhor era tão vítima da
tiu os cheiros da ferrovia: de combustível, escravidão quanto o escravo. Era a vítima
de tinta, embora não tivesse notado os chei- oposta, evidentemente, uma vez que ele
ros da natureza – cafezais, bananais. Sua batia, tinha o monopólio da violência e da
atenção se agudiza, por estranha, quando coação física do trabalhador cativo. Mas
passa da natureza à indústria. É um estra- era o cativo e o cativeiro que moldavam
nhamento cultural e de condição social. Sua sua personalidade, sua visão de mundo, seu
classe e sua identificação aristocrática pro- autoritarismo, sua mentalidade. Era víti-
duzem significados que definem uma iden- ma, ao mesmo tempo, dessa relação social
tidade social estratificada. O racional e fundante, que contaminava todas as outras
próprio da temporalidade da indústria e da relações sociais, de cativos e de senhores.
empresa é estranhado; o natural da nature- Sua mentalidade expressava esse modo de
za (bananeiras, vitórias-régias, que confir- ser e de pensar da sociedade de então.
mam o visto em livros) e suas formas não As mudanças que a ferrovia trouxe fo-
são estranhados. São duas modalidades ram mudanças que substituíram a chibata, o
distintas e opostas de admiração. feitor de escravos por uma outra coisa, que
Estou falando do moderno e da moder- é o medo difuso, a interiorização da coação
nidade, inscritos na estrutura e no funcio- física como coação psicológica. A ferrovia
namento daqueles já citados dois pólos sim- trouxe uma disciplina nas relações de traba-

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lho e nas relações sociais em geral que é poema que se chama “Alto da Serra de
baseada na premissa do medo. As pessoas Paranapiacaba” (4). Escrito na época de
devem ter medo para que se cumpra a fun- conclusão das obras da ferrovia, prova-
cionalidade da sociedade moderna. É assim velmente antes de a ferrovia começar a
que esta sociedade funciona até hoje. funcionar, documenta de maneira vibran-
Como mostrou Michel Foucault, a efi- te o imaginário das lonjuras, gerado pela
cácia do panóptico, cuja arquitetura foi ado- nostalgia do mar e pela fratura que a serra
tada em Paranapiacaba, como concepção da instituía em mentes e sentimentos. A mente
moderna forma de controle social, consistia de Varela privilegiava o interior, o sertão,
em que a pessoa não podia se esconder. Tudo o modo de vida e o modo de pensar que
podia ser visto a partir da residência do en- viviam seus últimos momentos. Em se-
genheiro-chefe, hoje chamada de “casteli- gundo lugar, Júlio Ribeiro, que em seu
nho”. Era exatamente o oposto do conceito romance A Carne num certo momento tra-
de ocultamento, que foi próprio da masmor- ta a ferrovia como personagem, transfor-
ra pré-moderna. Era a idéia de que a pessoa madora de cenários, modos de vida, agen-
se sentisse tão visível que nada lhe restava a te não só do moderno, mas de modernas
não ser ter medo dessa visibilidade e suas relações sociais e políticas. A ferrovia ti-
conseqüências. Nessa intensa visibilidade nha virtudes republicanas e europeizava
das pessoas, o feitor que houve na sociedade São Paulo. Seu destino era o mar. Em
escravista foi interiorizado na personalida- Ribeiro, a espacialidade da busca é oposta
de de cada um. Cada um se tornou o seu à da busca de Varela.
próprio feitor, cada um passou a ter medo de São dois pólos das mentalidades da
não estar de acordo com a disciplina própria transição, as mentalidades que se anula-
do processo produtivo. vam reciprocamente. Fagundes Varela,
No caso da Estação da Luz, é o mesmo profundamente abalado pela morte de um
medo, mas o medo ao contrário, quer dizer, filho muito pequeno, perambulava, sobre-
o senhor que tem medo do escravo, o pa- tudo à noite, por cemitérios, pelas fazen-
trão que tem medo do empregado, o estran- das dos beneditinos em São Caetano e São
geiro que tem medo do nativo. Então ele Bernardo, pelos recantos do subúrbio. O
cria uma máquina invisível para se prote- Diário de Lázaro, quando se refere a
ger contra a possibilidade de rebelião da Paranapiacaba, é indicativo de que aquela
massa dos nativos perigosos, como eram era uma região do seu perambular. Na pers-
concebidas as populações subalternas, ou pectiva desses fragmentos tem sentido
as classes perigosas, como as batizaram os pensar o romantismo como uma forma de
historiadores franceses. consciência social da sociedade que esta-
Esta é apenas uma informação prelimi- va terminando. Uma certa modernidade
nar, o preâmbulo de um trabalho mais ex- se anunciava, uma antecipada nostalgia do
tenso que estou desenvolvendo. É uma que acabava, uma consciência de um ser
análise em que pretendo trabalhar questões no limite de um tempo. É o preâmbulo
teóricas propostas por esses espaços histó- dramático da modernidade que se propu-
ricos. Do mesmo modo que tomei como nha e que já podia ser pressentida. O tes-
referência Paranapiacaba e a Luz para re- tamento de um tempo, o oposto do que
fletir sobre o medo que presidiu o reorde- vinte anos depois diria Júlio Ribeiro na
namento das relações sociais, com a crise sua visão já cativa do moderno e do via-
da sociedade escravista e com a moderni- jante, do que não é tocado pela herança do
zação técnica e industrial de que a ferrovia passado, pelo que morria.
foi expressão, pretendo usar dois escritores Ao redor de 1900, várias modificações e
4 Cf. Miécio Táti e E. Carrera brasileiros cuja obra documenta essa tran- atualizações importantes ocorrem ao longo
Guerra (orgs.), Poesias Comple-
tas de L. N. Fagundes Varela, sição no plano do imaginário. da ferrovia, da São Paulo Railway. As má-
São Paulo, Companhia Editora Em primeiro lugar, o poeta Fagundes quinas de tração do equipamento rodante
Nacional, 1957, esp. pp. 381
e segs. Varela que, no Diário de Lázaro, tem um são substituídas por equipamento moderno,

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há um novo traçado da linha entre a serra e vão, lenha, as coisas sujas, a matéria-prima
Santos, uma nova Estação da Luz. A Esta- da vida cotidiana, e a parte da frente estava
ção da Luz se torna uma estação monumen- reservada para receber as visitas, o excep-
tal, imponente e solene. Em boa parte para cional, o não-cotidiano.
atender as demandas de uma sociedade de Esses são valores da modernidade que
elite, com claras distinções estamentais. Os estão chegando com a ferrovia: o moderno
estamentos não são classes sociais, são ca- da máquina, do racional, e o imoderno da
madas sociais nas quais as pessoas estão espacialidade estamental. Mas com base
situadas por direito de nascimento. Isso foi numa outra realidade: o moderno inevitá-
muito próprio da Europa medieval, um sis- vel e o tradicional necessário. Nas casas de
tema de classificação social que se prolon- Paranapiacaba, o moderno chega através
gou residualmente por muito tempo e de que da racionalidade própria da atribuição das
ainda há evidências fortes nos dias atuais. funções subalternas dos serviços e do tra-
O modo estamental de classificação so- balho doméstico ao fundo da casa, modo
cial das pessoas chegou ao Brasil com o estamental também de esconder-lhe a visi-
descobrimento. À estrutura estamental se bilidade. Constitui-se, portanto, a distin-
acoplou a estrutura social escravista, que é ção entre frente e fundo, de que nos fala
outro sistema de classificação social. Am- Erving Goffman em suas análises socioló-
bos os sistemas se combinaram e operaram gicas, que é a distinção entre público e pri-
conjuntamente na definição de identidades vado, necessidade estamental de diferençar
e direitos. A elite e o povo ainda conservam internamente o lugar de viver, preservando
traços estamentais muito fortes. Quando o decoro do visível e ocultando o que é
alguém diz “Você sabe com quem está fa- propriamente o íntimo. Portanto, esses
lando?”, é alguém que se acha nobre ou mecanismos foram formas combinadas de
que, mesmo não o sendo, invoca critérios disseminar nas classes subalternas, entre
estamentais para distinguir-se do outro não os próprios trabalhadores, valores da clas-
pela igualdade, mas pela desigualdade de se dominante, constituindo no interior da
direitos. vida familiar a vida privada. Foi também
A Estação da Luz foi construída de acor- forma de estabelecer a contradição do não-
do com esses valores estamentais. Por cotidiano da fachada nas próprias vias de
exemplo, havia a sala para damas de pri- fluência da vida cotidiana que se dissemina
meira classe, já que quem não era da pri- com a ferrovia e seus ritmos baseados na
meira classe não era dama. Um reconheci- concepção linear do tempo, o tempo quan-
mento da desigualdade, com base em crité- titativo da eficiência e da reprodução am-
rios de qualidade social. pliada do capital.
Em Paranapiacaba, que a meu ver é o A modernidade se torna emblemática
caso mais interessante, há um traço vitoria- nessas polarizações, na medida em que
no na arquitetura das casas, com a distin- nelas se juntam os tempos históricos do
ção de frente e fundo, o que também proce- romantismo pré-moderno e da racionalida-
de da cultura estamental. Numa parte da de industrial moderna. Nelas a própria ar-
vila há duas ruas, a que passa na frente das quitetura cria a distinção do que deve ser
casas e a que passa no fundo das casas. Isso ocultado e do que deve ser mostrado. Ins-
é muito característico da arquitetura titui-se, portanto, a necessidade social de
vitoriana do século XIX. A distinção entre fingir, de representar, de simular, de viver
frente e fundo teve por objetivo introduzir a vida como um desempenho teatral, que
uma inovação social de enorme importân- no entanto tem suas ocultações, seus espa-
cia, que foi a distinção entre público e pri- ços de autenticidade escondida. Nessa du-
vado. O que deve ser mostrado aos outros pla orientação, o medo do visível se instala
e o que deve ser escondido. A área da apa- e a lógica da aparência se impõe. Os seres
rência e a área do serviço. Em Parana- humanos se cindem e se dividem na unida-
piacaba o fundo é por onde entrava o car- de de autêntico e inautêntico.

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