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Cronologia geral de Aetheria – retirada e traduzida das crônicas do antigo império,

por Theodor Writt. Atualizada, comentada e continuada pelo Irmão Rigaard


Galen, sábio de Ákila.

Nota do cronista – Assume-se, nessa cronologia, o ano zero de acordo com o calendário
pré-krathórico, iniciando com o apogeu da cidade de Kalos e ascensão de Ulther a
Megal dos Aetheri.

Nota do editor – Os eventos posteriores à morte de Writt foram inseridos totalmente por
mim, não sendo parte dos pergaminhos originais.

A Megalya

Século I
Ano 0 – Apogeu de Kalos, cidade localizada na atual ilha de Logos, com a elevação de
Ulther a Megal (“o grande”). Nesse tempo, o título de Megal ainda não tinha
implicações diretamente políticas, sendo dado a qualquer aetherius que se destacasse na
guerra. É bom recordar que todo aetherius anterior ao evento conhecido como o Grande
Entusiasmo não possui capacidades místicas, apesar de, ainda assim, possuir outras de
suas características marcantes, como a capacidade empática e o sentido essencial (os
olhos). Sendo assim, na época de Ulther, a sociedade aetheri se aproximava muito das
demais em questões sociais. Alguns relatos indicam que, desde essa época, já são feitas
menções a uma forma de prototípica do culto ao Inominável. Um dos pergaminhos na
língua rítica datados do século IV, fazem menção aos templos primitivos de Kalos em
formato de pirâmide invertida.
Dizem as lendas que Ulther, para ser o primeiro rei aetheri, convocou todos os
demais Megal para uma grande cerimônia. Grandes caravanas seguiram para Kalos, e os
Megal se reuniram no templo do Inominável. Lá, Ulther anunciou: A partir de hoje, por
desígnios secretos daquele que não deve ser nomeado, devo ser o único a ser chamado
Megal, para que todos reconheçam minha voz como poder e saibam seguir as ordens
que levaram nosso povo a possuir toda a riqueza e glória dos outros, Arkhos. (o nome é
desconhecido aos eruditos aetheri e aos demais pesquisadores. Deduz-se que se tratava
de outra raça devido ao uso do termo aalu, que optamos por traduzir como “outro”, mas
que era usado constantemente para referir-se aos territórios de outros povos, como
podemos ver em aalukhor “país dos outros”, usado para referir-se ao litoral de Luxor,
dominado nessa época pelo império astral.). Alguns Megal tomaram o dito como uma
ofensa e ergueram suas armas, mas Ulther, dizia-se, possuía a rapidez de um felino e a
força de um urso. Em poucos golpes decapitou seus oponentes, mostrando aos demais
seu poder. Os que sobraram abdicaram de seus títulos e tornaram-se servos de Ulther.

Século II
Uma das primeiras ações de Ulther após ser elevado a único Megal, foi reunir os
aetherius (o crescimento populacional de um aetherius é ínfimo se comparado ao de
outras raças, o que os levava a uma desvantagem de dez para um em qualquer embate
com outras cidades. Estima-se, assim, que Kalos, reunindo todas as tribos menores de
aetheri, não possuísse mais do que duzentos habitantes.) e começar uma expansão pelas
ilhas (conhecidas hoje como Os Olhos) escravizando os bestiais da ilha. No ano 130,
Ulther já possuía a totalidade das ilhas e um número que, ponderamos, alcançava dois
milhares de escravos bestiais. “Domesticados” os bestiais serviam de mão de obra
eficaz na extração de matéria prima e não tardou para que a metalurgia de bronze se
desenvolvesse. Insulares, os aetherius dominaram rápido o uso de embarcações e já por
essa época navegavam entre as ilhas com eficácia. A corrente entre Tharos e Luxor,
porém, era muito forte e ainda faltava tecnologia para alcançar os litorais das terras do
minguante (Pontos de orientação. Ver ilustração.). Com o aprimoramento naval iniciado
por Seleós, um famoso navegador de Velos, os barcos aetheri passaram a ter maior
estabilidade e resistência, o que levou, no ano 180, ao primeiro contato com a grande
terra, o atual continente de Luxor.

Século III
Os primeiros contatos com os nativos de Luxor se deram ainda nos anos do
primeiro século aetheri. Alguns humanos, moradores de pequenas aldeias pesqueiras
chamavam os aetheri de On’zi’Mernatm (“homens nascidos do mar”), pois não
acreditavam que houvesse terra além do litoral de Luxor. Nos primeiros anos do século
III, Ulther já havia colonizado algumas cidades menores do litoral, até que depara-se
com Ur‟zi‟Rgili, cidade comercial de porte médio, bem mais evoluída que as aldeias
próximas. A cidade tinha acordos com um forte império que, ao perceber a ameaça
vinda dos mares, desloca suas tropas para o litoral crescente de Luxor. O primeiro
contato de Ulther com outra raça civilizada acontece no ano 215. Tal relato é
encontrado no documento escrito pelo historiador aetheri Melos, no século VI, que
traduzo a fim de facilitar o acesso aos não versados em protoaetheri: “Os sentinelas
avisaram a chegada de um grande número de seres desconhecidos, parecidos a
litantropos (palavra que se assemelha a “homens feitos de pedra”, uma referência a
estátuas mitológicas aetheri) e vinham em grande número, como formigas na floresta.
Possuíam cores como as nossas, e sua pele pétrea possuía ornatos, como se fossem
jarros. Vinham armados e tinham semblantes de guerra. Da miríade de soldados, surge
um grande litantropo todo em armaduras belíssimas. Possuía detalhes em ouro e pedras
preciosas e suas placas eram tão grossas que nenhum de nós poderia jamais carregá-las.
Megal, porém, não temia e fez face ao grande guerreiro do Minguante. Ele descobriu
que podiam falar, diferente dos anantropos (termo que utiliza para se referir aos bestiais,
que na época não possuíam capacidade de fala) e que, talvez, dominassem a
manipulação de metais também. Megal sabia que não poderia fazer frente ao exército
imenso, pois, como os aetherius são seres evoluídos, não procriam como insetos,
devastando a terra e seus recursos. Nessa época, Phon Nith, junto a outros conselheiros,
recomendou uma recuada aos olhos, visto que, observara, os litantropos não pareciam
dominar os meios navais, pois eram um povo do minguante, onde dormem os sóis no
coração da terra. Mas nosso Megal era maior que o medo de seus Phonos e nunca
perdera uma batalha. Sábio, não arriscaria nosso povo numa batalha que poderia vencer
só, como antes já fizera, e, novamente, convocou o grande homem de armaduras, cuja
voz era como o som dos cornos graves. Com isso, desejava ganhar a autoridade sobre os
homens de pedra e nosso povo será soberano de todo o Minguante.” (Pergaminho de
Melos, trecho recuperado e traduzido). O relato não prossegue, o que pode dever-se ao
desfecho da situação. Nossas pesquisas deduzem que Cephal Nith pede autorização para
recuar as tropas aos Olhos enquanto os melhores guerreiros ficam como suporte e
testemunha à vitória de Megal Ulther. Nith, porém, em nada parecia-se ao Megal, um
homem cuja coragem e fé norteavam-lhe a vida. Nith, não confiava na vitória de seu
governante e já se articulava politicamente quando o duelo, aceito pelo governante
astral (os registros da torre de Soph nos indicam que se trate de „Eein Ong Nii, da
dinastia Ong, terceira família do império astral, conhecido como Imperador de Marfim,
pois apresentava a rara tonalidade branca de pele.) acontecia. Semanas depois um
guerreiro irmão de Ulther aportou em Tharos semimorto trazendo consigo a cabeça de
todos os demais guerreiros. Não era preciso falar a mesma língua para entender aquela
mensagem. Diante da morte de Ulther, houve um grande abalo na fé nos mistérios do
Inominável e uma crise política se instalou na necessidade de um novo Megal. Sem
centralização de poder, os aetherius acabaram fragmentando as colônias em grupos
menores que guerreavam entre si. Em 227, após 12 anos de conflitos, a cidade de Ather
conseguiu prevalecer e firmar um acordo político que legitimava o poder de Nith, que
foi nomeado Megal. Esse poder, porém, não era absoluto como o de Ulther, dando certa
independência aos demais Phonos, que lhe devolviam em alimento, escravos, matéria-
prima e embarcações. Até fins do século III, o reinado de Nith consistia em um
reestabelecimento da ordem e melhora na qualidade de vida. Foi sob sua liderança que
houve uma grande melhora na arquitetura e engenharia náutica, graças ao empenho
econômico em criar cidades prósperas. Os distantes sóis da noite serviam de guias para
o povo, que pode, com isso, traçar com eficácia mapas complexos dos Olhos e uma
parte do litoral minguante. Alguns humanos, nessa época, foram levados aos Olhos,
antes só habitados por aetherius e bestiais, e percebeu-se que conseguiam dominar a
língua aetheri com grande facilidade e podiam, até mesmo, entender certos grunhidos
bestiais. Os mesmos, descobriu-se, falavam, além de sua própria língua melodiosa, a
voz de cornos dos astrais. Com isso, eram comum a negociação dos aetherius com
pequenas vilas de Luxor, que trocavam servos humanos por escravos bestiais
domesticados. Essa parecer ser o primeiro contato dos bestiais com Luxor.

Século IV

Esse século ficou conhecido pelo fim do recesso do Megal Nith. Durante o começo do
século IV existem relatos que indicam que o Megal utilizou o conhecimento dos
humanos sobre o território de Luxor e explorou-o secretamente, mapeando a região do
atual reino de Selena (Dzee Len„Na em língua astral). Entrou em contato, assim, com os
Aadi, um povo de cidades comerciais no atual território de Selena. Os Aadi foram uma
influência fundamental para o desenvolvimento dos aetherius. Com eles puderam
aprender técnicas de metalurgia avançadas – e tiveram contato, por primeira vez, com a
língua escrita, desenvolvida pelos Logóticos, um povo ainda desconhecido para eles.
Em meados do século, um viajante a serviço do Megal escreve, ensaiando o que pode
ser o primeiro texto escrito por um aetherius (a tradução reflete a precariedade do texto
original, uma adaptação tosca do idioma aetheri para um sistema gráfico logótico):
“escrita ferramenta eficaz grande conhecimento passar pessoas levar líder ensinar povo
escrever.” Apesar dessa vontade expressa de transmitir a escrita para os aetherius, não
será nesse século que a sociedade aetheri permitirá a entrada dessa tecnologia. Muito
ligados ao poder da palavra – os mistérios do inominável são um reflexo disso – os
aetherius viam como uma heresia tentar desenhá-las num papel. Devido à memória
prodigiosa que possuíam, tampouco sentiam falta de transferir os saberes para o papel.
Próximo ao fim do século, um problema desestabilizou novamente a sociedade dos
Olhos: conforme os humanos serviam de patamar comunicativo entre os bestiais
escravizados e os aetherius, os antes selvagens agora apresentavam-se bem civilizados,
entendo conceitos de justiça, comércio e hierarquia. Não tardou para que, com essas
armas, montassem uma verdadeira insurreição contra os senhores aetheri que se viram
em desvantagem de dez para um com seus escravos. Megal Nith, que a muito preparava
suas tropas com as tecnologias adquiridas dos Aadi, viu a oportunidade de testar seu
poder bélico. A batalha é descrita por um cronista do século VI: “Lembro-me, ainda, da
revolta de Logos. Os selvagens, anos agrilhoados, resolviam, por influência danosa da
religião dos servos homens, aspirar ares de liberdade. Nós, que tudo lhes ensinamos,
fomos vítimas de uma brutalidade ímpar. Não tardou para que a chama da revolta
tomasse o coração dos demais e, em pouco tempo, houve guerra nos Olhos. Um
selvagem excepcionalmente domesticado, criado na casa de um arquiteto, sabia os
segredos da forja, falava a língua dos homens com boa fluência e – não acreditei até ver
– usava roupas. Era o líder deles. Andava ereto, vociferando ordens à horda terrível.
Nosso prudente Megal deixou, porém, que se alastrassem. Ordenou a reunião das vilas
menores em Kalos e Agathos. Os escravos não sabiam o que fazer na natureza.
Tentaram manter as cidades, mas falhavam em organizar-se. Alguns lutaram entre si,
outros fugiram para as florestas. Em pouco tempo não havia mais revolta, mas um
grupo de animais confusos. O Megal agiu com precisão e não matou mais do que os
fortes e mais domesticados. Tomando novamente a cidade, viu-se uma infinidade de
bestiais vindo às casas implorar segurança, comida e abrigo. Era uma vitória magnífica.
Mais tarde se tornou a marca do Megal Nith.”. O Megal Nith, porém, não era tolo e
mesmo com a vitória magnífica, proibiu o açoite aos escravos e estabeleceu regras de
alimentação e moradia que impedia os aetherius de tratá-los como animais. Tal revolta
foi o impulso necessário para que os Phónos concordassem no início do projeto do
Megal Nith de avançar novamente sobre o litoral minguante.

Século V

Também chamado de Grande Expansão, é o início da formação do império


aetheri. O Megal Nith avança sobre o litoral minguante de forma bem diferente à
tentativa frustrada de Ulther. A primeira grande diferença que pode ser mencionada é a
constituição da tropa. Enquanto Ulther marchou ao lado de seus melhores guerreiros
aetheri, não tendo mais que uma pequena e muito especializada tropa, Megal Nith
quebrou o elitismo da classe guerreira aetheri e incorporou a seu contingente bélico um
grande número de bestiais treinados e humanos. Enquanto as feras serviam de
vanguarda efetiva, atemorizando o campo de batalha com sua violência, os humanos,
mais inteligentes, trabalhavam como batedores, arqueiros e, diz-se, alguns conseguiam
postos na cavalaria. O cosmopolitismo da tropa de Megal Nith foi uma marca
perpetuada pelo posterior império aetheri, que, trabalhando a multiplicidade das raças
de Aetheria, alcançou um poder militar nunca comparado. Ao avançar para o interior do
continente de Luxor, o líder aetheri não foi, inicialmente, hostil, fazendo alianças com
muitas cidades dos reinos aadi. Cidades preocupadas com o comércio, os aadi não viam
problema em aliar-se tanto ao império astral quando aos guerreiros do mar. Os astrais,
porém, ao descobrir tal aliança fizeram pressão para que os humanos da região
escolhessem um lado. Quando o Megal descobriu, não tardou em buscar uma solução
diplomática para o problema e enviou mensageiros e presentes ao grande imperador de
pedra – „Eein Ong „Aan, filho do imperador de marfim – que, como resposta, devolveu
os corpos dos humanos preenchidos de areia. Estava declarada a primeira guerra aetheri.
Foi um século de grandes batalhas, nas quais muitos humanos se destacaram por seu
vigor, criatividade e perspicácia, entre eles o importante general Khridoros – primeiro a
receber um nome em aetheri. Podemos, na primeira metade do século V, destacar
algumas batalhas importantes da primeira guerra.
O reino de Selena encontra-se num território semiárido e boa parte dos grãos
importantes da dieta astral provinha das plantações nas vilas do litoral crescente. Foi ali
que o Megal Nith concentrou o ataque inaugural da guerra, como vemos nas crônicas do
império: “A cidade de grande muralha amarela (Ur‟Zi‟Gerkamur) amanheceu cercada
por nossas tropas. Os anantropos, há dias sem comer, ansiavam por alimentar-se. Nas
mãos de Iskhal Geneaidos, que desenvolveu nas criaturas um desenfreado gosto por
sangue, nossa vanguarda tornou-se temível aos homens. Aqueles seres, porém,
confiando na chegada dos soldados de pedra, fecharam os portões e não aceitaram a
oferta de rendição de nosso soberano. Na época, uma tecnologia de arma de sítio era
inviável, o que nos tornava impotente diante das resistentes muralhas da cidade. Fazer
cerco ali tampouco resultaria em nada, já que a cidade comportava plantações e animais.
Então, Megal Nith mandou que tropas menores arrasassem cada pequeno vilarejo das
redondezas e que os mortos fossem despedaçados e arremessados dentro da cidade. Esse
episódio ficou conhecido pelas tropas como a chuva profana. Cérebro, miúdos, línguas,
olhos e partes sexuais eram jogados na cidade incessantemente. No começo ainda se
esforçavam em limpar, mas era inútil. Com o tempo, o calor tornou a podridão
insuportável. As pestes eclodiam dentro daquele caixão de impurezas. Em uma lua a
cidade se rendera. Megal Nith mandou que todos os homens fossem queimados na praça
central para servir de exemplo às mulheres, que foram mantidas como servas e mulheres
para os soldados humanos. Os corpos carbonizados foram reunidos e enviados à
segunda cidade (Ur‟Zi‟Multars). Pouco depois, seu líder, um ancião esquálido de barba
mui alva, veio a nós com palavras doces e presentes. Nossos humanos traduziram suas
palavras sujas, que falavam sobre a glória dos homens azuis e como governariam o
mundo. Semanas depois as tropas chegavam a cidade das estátuas de pedra
(Ur‟Zi‟Perstat) Lá havia um grande número de litantropos já a nossa espera. Ofereceram
ao grande Megal um duelo, escarnecendo de Ulther, o derrotado. Nosso glorioso líder,
porém, era um homem de grande astúcia e não deixava-se abalar por tais troças. Com o
auxílio dos homens que dobravam o ferro, Megal Nith armou-nos com grandes martelos
para guerra. Com eles, e o treinamento adequado, rompíamos a dura casca dos soldados
de pedra. Os sóis correram de nascente a poente em luta. Ao fim, centenas de inimigos
arrastavam-se pelos campos secos. Nos foi ordenado que erguêssemos uma grande torre
com aquelas pedras vivas e gemedoras, e isso fizemos. Tardaram dias para morrer. Pela
noite, rezavam em vozes tenebrosas o que os humanos diziam ser o grande Deus-Dia.
Aqueles adoradores do céu secaram e racharam, viraram poeira diante da cidade das
estátuas de pedra. O litoral pertencia ao nosso glorioso Megal e as provisões do inimigo
também.” (Pergaminhos de Melos, trecho, século VI). As conquistas do Megal Nith no
litoral crescente de Luxor são inúmeras, e podemos dizer que é o primeiro passo
decisivo para a formação do império aetheri, séculos mais tarde. Ao final da primeira
metade do século V, os aetherius possuiam um território que ocupava um terço do reino
de Selena. Entraram assim num processo de consolidação no território, povoando
cidades aadi, construindo novas vilas para os aetherius, enxertando novas plantas no
campo fértil de Ur‟Zi‟Gerkamur. Nessa época temos o primeiro registro de um aetherius
entrando em contato com os logóticos, raça que, até então, só conheciam pela fama de
criadores das palavras escritas. O encontro aconteceu num pequeno vilarejo, no qual
alguns logóticos reuniam forças para um percurso em alto deserto até o coração de
Luxor. Nas palavras de Patios: “Era curiosíssimo. Um ser que muito se assemelhava a
carcaça de um humano me observava com olhos mais vivos que nunca antes vira nas
raças inferiores. Apressei em pedir que falassem muito sobre sua terra e seus costumes e
meu humano tratava de traduzir os relatos. Falavam pouco e ficavam muito
desconfortáveis com minha presença, mas sabiam que desrespeitar um Iskhal
significaria morte. Havia, em suas coisas, um sem fim de papéis amarrados, que, na
língua humana, diziam ser Lib (“livros” em aadi antigo). Eram relatos como o meu, só
que muitos tratavam das coisas gerais do mundo, não histórias. Outros, mais fascinantes
que tudo, não contavam verdades, mas ilusões escritas para parecer verdades, gostei de
uma em especial que chamavam de Lib‟Zi‟NfinPm (O livro do canto interminável.
Considera-se um dos primeiros poemas escritos no mundo. Nunca foi encontrado.). Ele
contava histórias sobre muitos Ginm (espíritos de outro mundo na cultura arzi), seres de
mentira, que vivam numa grande casa branca em forma de tronco que ia até o céu. É um
livro muito grande e de letra muito pequena, o que tirou minha vontade de ler ali. Eu
tentei levar o livro, mas não deixaram, mesmo sob ameaça. Pedi que, ao menos, me
deixassem ver o final. Havia muitas páginas em branco. Eles me disseram que aquilo
era porque o livro nunca acabava de ser escrito. Sempre que alguém terminava de ler, já
existiam versões muito maiores que aquela, e como era muito grande e ninguém se
recordava de boa parte, acabavam lendo tudo novamente. Após aquela maravilha,
deparei-me com uma ilustração deveras peculiar que muito se assemelhava ao templo
do inominável de Kalos num pergaminho bem gasto pelo tempo. Disse que ou levaria o
Lib ou o pergaminho como presente ao Megal. Eles tentaram dissuadir-me e me
ofereceram outros livros menos interessantes, mas disse que acabaria levando todos se
continuassem com aquele desrespeito. Deram-no e saíram rapidamente da cidade, sem
parar de falar aquela estranha língua de sussurros.” (Crônicas de Iskhal Patios em Luxor,
século V). O pergaminho, conhecido posteriormente como o Manuscrito de Thoth,
citado por Patios era um texto sacro para os arzi, e supomos que tais logóticos eram
responsáveis por transportar a um local mais seguro um tesouro incalculável. O
manuscrito continha informações confusas sobre pirâmides como a encontrada no
templo de Kalos. O próprio Patios, maior estudioso da língua escrita na época, traduziu
parte do manuscrito nos documentos aetheri, que conservamos até hoje:

“O escritor destas páginas sou eu, Thoth, o Escriba, Que se desloca através de muitas
realidades como mestre. Eu estou ligado à Grande Pirâmide como uma força criacional
tendo chegado aqui pelos Portais da Matriz das 12 Pirâmides. Muitos se lembrarão e
citarão meus ensinamentos em textos, pergaminhos, tabletes de pedra, chaves de
conhecimento, ou memórias genéticas codificadas a serem achadas no fim de um ciclo.
Eu confiei meus ensinamentos originais aos que eram meus sacerdotes e sacerdotisas
que devem um dia restabelecer o conhecimento em plena definição. Naquele tempo
eles encarnarão como mestres e taumaturgos de seus seculares. Estas leituras serão
achadas no fim de um ciclo que transcende o tempo e o espaço.
E eles se lembrarão.
E eu os ajudarei e os guiarei.
Se você vier a este lugar, haverá de vir ao templo que o levará às doze pirâmides de luz.
Eu estou aqui para lhe contar a história das 12 pirâmides que vieram através daquilo que
você chama o vazio escuro para entrar neste mundo físico e criar uma realidade física na
qual as almas podem experimentar.
Naquele tempo eu, Thoth, que seria um escriba e Mestre dentro da matriz, vim a este
lugar e escrevi este livro para vocês encontrá-lo neste tempo. Dentro do livro estão suas
chaves.”

Megal Nith ficou fascinado com o pergaminho e dedicou-se horas a entendê-lo.


Maravilhado com a aura emanada por tal texto, resolveu que peregrinaria com sua tropa
até os reinos arzi para estudar todos seus mistérios. Esse período foi conhecido na época
como o delírio do Megal. Próximo ao fim do século V, Megal Nith já havia deslocado
suas tropas conquistando cidades menores em direção ao positi-minguante1 de Luxor,
onde os aadi diziam ser a moradia dos arzi. No ano de 491, após um ano de
deslocamento nas estepes ressacadas do litoral crescente, o império astral marchou
sobre o domínio aetheri. As cidades conquistadas, enfraquecidas pela marcha do Megal
Nith, foram reconquistas e os aetherius restantes dizimados. Os logóticos apoiaram o
império astral nessa guerra, dando orientações de como perseguir de forma eficaz a rota
do exército do Megal. Em 393, nas planícies de Un‟aon, a tropa aetheri foi surpreendida
pelo tremor característico do batalhão astral. Nessa noite o poder de Nith ruiu e tudo que
até então conquistara foi lançado ao vento. Os poucos aetherius que restavam em Luxor
se recolheram aos Olhos. Era o fim da era Nith.

Século VI
O quinto século da nação aetheri é uma época de contrastes. Por um lado, a derrota
contra o império astral foi um golpe profundo no espírito conquistador dos aetherius,
que adotaram uma política totalmente internalizada. Com a possível morte de Megal
Nith durante a batalha de Un‟aon, entra em uma fase de poder instável, da mesma forma
que aconteceu com a morte de Ulther. Dois grandes generais concorreram pelo poder
nos Olhos: Hipon, de Logos, herdeiro do antigo legado guerreiro de Ulther, buscava
uma restauração da hegemonia aetheri, expulsando os humanos da ilha; e Nesos, de
Velos, comandante da frota naval dos aetherius, que desejava iniciar uma expansão
marítima em direção aos mares do crescente. Em Logos, com o apoio dos demais Iskhal,
iniciou-se um processo de independência da ilha, com extradição dos humanos para as

1
Nomenclatura para uma das regiões intermediárias entre os cardeais maiores. São elas: nati-crescente e
nati-minguante para as regiões intermediárias do nascente e positi-crescente e positi-minguante para as
regiões intermediárias do poente.
demais ilhas. Em Velos e Tharos elevou-se o poder de Nesos, que iniciou uma política
intensa de comércio com as cidades aadi do litoral crescente. O excedente de humanos
provenientes de Logos foi enviado a Luxor para fundar uma cidade independente sob o
domínio do império astral como forma de iniciar uma sutil penetração diplomática no
continente. A primeira metade do século prosseguiu numa consolidação de um estado
bipartido, conhecido como a Bimegalia.
Foi uma época pacífica. Sem os recursos de Velos e Tharos, o Megal Hipos não
conseguia reunir forças para iniciar uma nova invasão e opta por uma política de
desenvolvimento interno, explorando a mineração de metais, na metalurgia, na criação
de cavalos e na preparação de um exército ultratreinado. É nessa época que surgem os
Apathor, a casta guerreira dos aetheri. Os aetherius dessa classe são criados desde seu
nascimento para o combate. Aprendem combate, equitação, orientação, sobrevivência,
primeiros socorros e outras importantes técnicas para invasão e guerra. A tropa, porém,
não foi usada ao longo de todo o século. Seu auge veio apenas com a ascensão do
império aetheri mais tarde. A exploração dos recursos minerais em Logos e a alta
atividade comercial das outras ilhas criou um ambiente de fartura e estabilidade que
favoreceu a consolidação da alta arte aetheri. Falo alta arte porque já encontrávamos
pinturas decorativas, esculturas, artesanato e protonarrativas na escrita logótica. Nesse
século, porém, surgem três obras com características marcantes de uma arte que se
consolidará na cultura. A primeira é o Cântico das Profundezas, um longo poema que
fala sobre o culto ao Inominável. Diferente das protonarrativas, que falavam de temas
locais e pessoais, o Cântico é a cosmogonia aetheri, logo universal a todo seu povo.
Difere-se, também, no que tange a sua escrita. É o primeiro livro em que vemos o uso
da grafia aetheri. A segunda importante obra do período é o que denomina-se hoje como
“arte imersiva”, ou seja, um ambiente construído unicamente com fins de beleza e
prazer, para ser visto por dentro. Tal local é conhecido como o Santuário Cristalino. É
todo composto por vitrais rudimentares, placas de metais e espelhos. É arquitetado para
refletir de formas diversas a luz que passa ao longo do dia, fazendo com que, conforme
o tempo passe, o ambiente se transmute e nunca seja o mesmo. Além do ambiente
onírico criado pelo santuário (não confundam com os santuários de Cronia, que tem fins
religiosos), há, em sua parte central, altas torres com diferentes passagens de ar,
arquitetura que cria uma constante harmonia de sons conforme o vento passa por eles.
Inicialmente foi projetado para ser usado pelos pensadores aetheri, que limpavam a
mente dos problemas ali. Não tardou, porém, para que se popularizasse e inclusive os
mais jovens frequentavam o lugar. A terceira obra a formar a fundação da arte aetheri é
de um outopal (nome usado para designar os aetherius que nasceram nas colônias de
Luxor durante o século anterior). Silikos cresceu em profundo contato com as caravanas
comerciais, já que seu pai era um soldado encarregado da fiscalização de mercadoria de
uma colônia. Entre os aadi e alguns ardi, Silikos herdou muito do imaginário humano,
que lhe permitiu tornar-se o primeiro artista imaginário, ou seja, aqueles que fazem uma
arte do que não existe na natureza. Apesar de haver registros de uma intensa produção
artística, só chegou a nós um limitado número de obras, todos de uma coleção específica
conhecida como Te Onirikon. As pinturas representam figuras fantasiosas, compostas
por diversos elementos da natureza. Dentre estas está Terotan‟thon, um quadro que
representa com muita proximidade os drakons das crenças de Worr nos deuses alados.
Século VII
Os trinta primeiros anos do século VII perpetuam as mudanças da bimegalia. As
ilhas, porém, estreitam relações, alcançando uma mútua cooperação produtiva para a
civilização. Logos fornece a força de expedição e os materiais bélicos que Megal Nesos
tanto desejava, dando início a expansão naval. As embarcações dessa época já se
haviam aprimorado ao ponto de aguentar, sem dificuldade, a forte corrente próxima ao
litoral de Luxor. Os mares do crescente, porém, eram muito mais tempestuosos e o frio
também era um elemento a ser vencido. Os Apathor eram a chave para uma expedição
bem sucedida, já que, treinados contra as intempéries do mundo, teriam alta chance de
sobrevivência. Por outro lado, controlando a rede de influências criada em Luxor,
Megal Hipos iniciava o planejamento de Hiperia, uma mega cidade que permitisse o
deslocamento da capital dos aetheri para Luxor, iniciando uma penetração sólida no
continente.
Em 615 temos a primeira expedição aetheri que retorna após luas no mar
crescente. O relato por escrito é conservado até hoje: “Por muitas dias nas sobras e
brumas se viajou. Nada mais que parcas penhas e o frio nos seguiam o ritmo lento. Por
vezes, avistavam-se criaturas aladas brancas que emitiam gritos de pavor. O frio
aumentou até o insuportável. Nossas partes caíam mortas, enquanto pouco a pouco
entrávamos em decomposição. Alcançamos, porém, a rocha negra de uma ilhota, na
qual estabelemos refúgio de uma longa tempestade de neve. A comida escasseava e
muitos foram levados pela fome. Com um vento favorável, voltamos ao navio e
buscamos a terra viva. Dias depois, alcançamos outro grande continente. Um mundo de
longas montanhas geladas, morto de floras e faunas. Lá, porém, encontramos traços de
acampamentos e seguimos um rastro que nos levou a um árduo caminho pelo coração
da terra. Lá encontramos vida. Coisas próximas a humanos, mas sem civilidade.
Abatemos um grupo que portava comida, uma espécie de carne dura e amarga. A
alimentação foi suficiente para que cruzássemos o estranho caminho até uma saída,
onde nos deparamos com o pesadelo. Não há palavras para descrever o horror que
surgiam diante de nós, grotesco e absurdo. Retrocedemos, covardes. Tentamos agora
uma dura e dolorosa volta ao lar, não para merecer glórias, mas para alertar sobre a
sombra que se ergue no horizonte crescente.” (Heron, o manuscrito do horizonte
crescente, 615). Na década de 20, uma guerra civil eclode no império astral, tendo como
estopim a súbita morte das principais figuras do clã „Ong. Ergue-se, então, o conselho
dos generais para a escolha do novo herdeiro, o que, para um povo belicoso como o
astral, significava guerra.
Até meados dos anos 30, não houve poder centralizado no império, o que fez
com a região de Dzee Len„Na fizesse frente, com um apoio militarizado dos astrais, ao
antigo domínio, dando ascensão ao Reino de Einpor Daam Deret, dos aadi, aliado do
povo astral de Nesos. Nessa época houve uma contaminação linguística mútua e
trabalhos linguísticos posteriores mostram traços das formas arcaicas de ambas as
línguas umas nas outras. Dessa forma, podemos inferir que também houve certa
confluência cultural entre os reinos: os aadi do século sexto herdam claros traços da
arquitetura aetheri, como as torres e os arcos suspensos (para aqueles que nunca
estiveram numa cidade aetheri, seu projeto urbano é criado verticalmente, com pontes
que ligam os diversos espaços da cidade por cima. É uma forma que demonstrarem sua
superioridade, mantendo os escravos e trabalhadores subalternos no nível do solo.) e sua
engenharia naval; os aetherius, por sua vez, adotam instrumentos musicais e sofrem
grandes influências na literatura, com o surgimento da poesia lírica aetheri,
comprovável pelo Peren Damnon, ou livro dos espíritos2.

2
Os aetherius levaram para o resto do mundo, durante o império, a ideia de danmons, seres imateriais de
outros planos que agiriam através de sua energia sobre o nosso. A palavra espírito, inicialmente, tinha
relações com a raíz spyr “respiração”, e era considerado o elemento transcendental na matéria terrena na
Em 638, de acordo com os pergaminhos do tesouro astral, o sacerdote Gwon
(sacerdotes não possuem nome de clã) foi eleito como novo imperador para trazer paz
ao povo astral, sendo consagrado „Eein Vi‟Onen Gwon (lhe foi dado como nome de clã
“vio‟onen”, o que pertence ao deus-dia, apesar de não haver, de fato, um clã com esse
nome. Tornou-se costume dar esse nome de clã aos imperadores-sacerdotes). Sair de um
regime altamente militarizado para um regime com aspirações teocráticas foi de grande
impacto na sociedade astral. A política expansiva e conquistadora cedeu a um período
de introspecção e acordos de paz, desfazendo centenas de falanges de guerra, voltadas,
então para o fortalecimento das grandes capitais. Data dessa época o surgimento dos
primeiros “acampamentos livres”, batalhões militares que renegam o controle do
império, acatando a leis de outros povos, principalmente os Arzi do poente. Essa
rebeldia por parte do exército causou um desequilíbrio perigoso para o império, que,
para impedir o avanço dos inimigos e a rebelião das colônias, precisou criar alianças
com outras grandes forças, entre elas o próspero império aetheri. Em 652, Megal Nesos
assina o primeiro tratado de aliança político-comercial com o império astral, criando,
com isso a revolta de Logos. A bimegalia não tardou em entrar numa sangrenta guerra
civil.
A guerra durou pouco. Em 655 os Olhos já obedeciam ao comando único do
Megal Hipos e seu exército invencível. A armada de Velos e Tharos foi tomada pelos
soldados navais que o Megal Nesos havia treinado. A área continental do domínio
aetheri, porém, possuindo o apoio das tropas astrais e do reino Arzi, resistiu à investida
de sua própria armada. Nos anos seguintes, sem perspectiva de uma retomada das ilhas
(e sem tal necessidade, já que o crescente continental apresentava um terreno próspero e
estável para os aetheri) o povo aetheri do Megal Nesos abriu-se de vez ao
cosmopolitismo, recebendo populações de Arzi e do império astral e migrando para
outros reinos. Dessa forma, temos o primeiro registro, em terras distantes, do
surgimento de um aetheri, como nos cânticos de Gardnprp‟Zi‟Lunde, do litoral poente
de Luxor:

tradição aetheri. Era, inicialmente utilizada para traduzir o termo Sele dos crônios, sendo depois utilizada
também para traduzir damnon. Ganhou uma conotação negativa durante a penetração do império aetheri
no continente de Cronia. Os sacerdotes d‟Aquele-que-é-sete viam os seres de outros mundos como
reflexos de seu deus, imprevisível e perigoso. Com a expansão da fé nos Incarna e posterior extinção do
Gaarthismo, o termo se revitalizou, já que os mesmos consideravam-se seres de outro plano.
“(...) Às portas da cidade o ser
como o dia azul surgiu
Sua pele, tal qual o anil
Divinal fazia-se resplandecer

Dizia, voz profunda e forte


Mesmo que dificilmente
Os cantos de uma outra gente
De um povo novo, a sorte

Tal como veio, foi, peregrino


A outras terras levar o canto
E digam, se não foi destino

O vento nos trazer, por tanto,


Um deus em rosto de menino
Um homem com saber de santo?

A tradução e adaptação do Arzi se deu séculos depois por um literato da casa


Darena, que, tendo contato com a poesia Arzi, dedicou-se a fazer versões da mesma
para as cortes de Cronia.
Os aetherius continentais não tardaram para aculturar-se e muitos trocaram
língua, deuses e costumes em prol dos novos povos que conheciam no caminho. Essa
transição, porém, deixou marcas da civilização aetheri em diversos povos de Luxor,
como podemos ver em algumas palavras adotadas pelo arzi e pelo baasi (língua dos
Aadi), assim como influência no pensamento abstrato e nas noções de arte. Da mesma
forma, tal peregrinação foi positiva para carregar conhecimentos entre diversas terras
através dos aetherius peregrinos. Foi assim que a filosofia logótica alcançou o poente de
Luxor.
Esse período de expansão da civilização aetheri para além da região colonizada é
conhecida como marcha minguante, já que partiam do crescente, descendo em direção
minguante até o litoral. O fim do período é datado pelo documento que registra o
acolhimento de um “nobre homem de pele celeste vindo do crescente” como
conselheiro na corte de Dzee Sdar‘a (atual reino de Stara, governado, na época pelo
governador Gen Ion Anen.) no ano de 693.
Século VIII

No início do século VIII, cada importante reino de Luxor recebeu uma


mensagem bem clara: um pedaço do corpo do imperador-sacerdote ‘Eein Vi’Onen
Gwon. Estava instaurada uma nova era para o império astral, uma era sob o mando do
mais cruel dos imperadores desse povo: ‘Eein Zi’en Anon. Aproveitando-se da política
aberta, das alianças e do cosmopolitismo de Gwon, o novo líder capturou todos os não-
astrais que se encontravam em território astral, criando, da noite para o dia, uma
infinidade de escravos. A política bélica se reergueu com força total e a prosperidade da
antiga regência lhe propiciou os recursos necessários para armar o exército mais
poderoso de Luxor.
Esse feito trouxe instabilidade política para os territórios periféricos, nos quais
antigas famílias aliadas ao império astral pré-teocrático criaram alianças escondidas
com „Eein Vi‟Onen Gwon e, traindo seus governantes, subiram novamente ao poder,
reabrindo a captura e venda de escravos de tribos menores. Os logóticos, por sua vez,
entraram novamente em período de clausura, utilizando suas maravilhosas cidades-
fortalezas subterrâneas para proteger-se do domínio astral.
A maior atrocidade, porém, veio contra o pacífico povo do Megal Nesos. A
antiga rivalidade com o povo astral criada por Nith não foi esquecida: foi enviada a
ordem de que todo aetherius encontrado em território de Luxor deveria ser capturado,
amarrado em um poste ou árvore com um pequeno corte na barriga para ser devorado
por aves de rapina do deserto.
As crônicas aadi e arzi da época chegam a números impressionantes sobre as
mortes do povo aetheri. Mais de dez mil mortos da mesma morte terrível acabaram por
tocar o coração frio de Megal Hipos, que recusava-se a fornecer asilo aos aetherius do
continente. Tomando o ato com uma “afronta à todo povo aetheri”, a armada dos Olhos
aportou no litoral crescente de Luxor em 732, trazendo um exército preparado, bem
armado e com experiência em campo de batalha graças a guerra civil da bimegalia.
Em 735, os primeiros confrontos diretos aconteceram em uma pequena cidade
aetheri do litoral que estava sendo usada como porto de fuga para os aetherius caçados.
Recebendo a informação através de batedores aadi, o imperador astral mandou uma
tropa contra a cidade de Kripsaros. Superando em três vezes o número estimado da
tropa aetheri, ‘Eein Zi’en Anon calculou que teria um massacre. Não contava porém
com os Apathor, até então pouco conhecidos no continente. Megal Hipos mandou que
todos os guerreiros capturados (mais da metade do exército, pelas crônicas) tivessem
olhos e braços arrancados, sendo entregues com vida ao império astral, como aviso. A
imagem de uma tropa marchando cega em direção às portas de uma cidade astral
quebrou a moral do novo imperador. O mesmo mandou executar todos os guerreiros
devolvidos e acabou criando revolta num império acostumado à paz, que fez um levante
e retirou-o do poder, dando-o a Z’zi Dzeon, um exímio estrategista antigo conselheiro e
guarda-costas de um importante governante logótico do litoral nascente. ‘Eein Z’zi
Dzeon buscou uma forma de reestabelecer a paz com os aetherius, mas a fome do rei
dos Olhos não estava saciada. Uma série de vitórias arrasantes tomou parte do território
de Dzee Len‟Na e cada vez mais os astrais se sentiam acuados diante daquela ameaça. o
Megal Hipos, diferente do Megal Nesos, repudiava a aliança com o recente reino aadi,
tomando como escravos muitos humanos que encontrava pelo caminho. Dessa forma,
não só os aadi se viram ameaçados, como os próprios arzi pressentiram que poderiam
ser atacados, cortando relações comerciais e fechando fronteiras. Os aadi, mais incisivos,
atacaram diversas colônias aetheri e a guerra apertou contra a fatigada tropa do Megal
Hipos.
Acuado, resistiu, porém, aos diversos ataques vindos tanto do reino aadi como
dos astrais, até que recebeu uma mensagem que mudaria o rumo da guerra:
“Embarcações adornadas de pedras preciosas e com rostos assustadores aportaram em
nossas ilhas. De lá saíram centenas de furiosos guerreiros astrais, que atacaram nossas
cidades, estupraram e mataram nossos irmãos e mulheres. Não temos defesa suficiente
para aguentar um ataque em tamanha escala. Cairemos em breve.” (pergaminho de
Xantos). Os astrais haviam, durante o isolamento dos Olhos, conquistado a tecnologia
que só os aetherius criam ter, os barcos estáveis para atravessar os mares do litoral. A
tomada do lar por primeira vez na história fez com o que os generais, revoltados,
matassem o Megal Hipos pela incompetência e o povo, sem sua última esperança,
matasse o Megal Nesos pela abertura que permitiu em outros tempos.
Dessa forma, a bimegalia acabou com os dois Megal mortos, um povo dizimado
e escravizado, uma nação saqueada e a moral destruída. Os aadi tomaram as colônias
dos aetherius, e os Olhos se tornaram uma área paradisíaca utilizada pelas altas patentes
do exército astral. Nos fins do século VIII, os aetherius eram apenas uma lembrança
distante na mente da maioria, mortos pelo excesso de trabalho nas minas ou vendidos
como aberrações para terras distantes.

Século IX

O nono século da história aetheri é um divisor de água não só para esse povo
como para todo o mundo posterior a ele. O imperador astral ‘Eein Z’zi Dzeon mostrou
uma desenvoltura ímpar na expansão do império e todo o deserto central foi anexado ao
império sem o derramamento de sangue. A poente, os reinos arzi cresciam se tornando
grandes polos comerciais e artísticos. Podemos datar dessa época as Gul‟sh, estátuas
gigantescas que eram erguidas como forma de proteção mística às cidades. As mais
famosas são As Três Virgens, representando as irmãs sagradas filhas de aquele-que-
cuida-dos-homens, erguidas na cidade de Hamna, no interior do atual reino de Petran; o
Adornado, erguido em homenagem ao rei mítico de Avdra Bahti, na região árida de
Pulkran; e os Quatro Pilares da Criação do Universo, erguido no templo de Gabadera,
dos quais só possuímos as ruínas devido à região fronteiriça e estratégica em que se
encontrava o local sagrado.
Os aadi perderam seu status de reinado próprio durante a guerra civil causada
pelos traidores a favor da vassalagem astral. Em meados da segunda década do século, a
guerra pende em favor dos pró-vassalagem, culminando na destruição da coroa do
antigo rei aadi Iz‟Gi‟Kul e o assassinato de todos os membros da família real. Nessa
época já se ouvia falar, como rumores distantes de navegadores audazes que afirmavam
haver outro mundo após o mar poente, onde homens brancos como a neve e do tamanho
de astrais vestiam roupas grossas e capacetes com formato de animais.
No final da segunda década encontramos os primeiros registros que mencionam
o retorno do antigo Megal desaparecido no deserto. É importante lembrar que após o
desaparecimento de Nith, criou-se, dentre os aetherius conservadores um mito de que
Nith havia partido para encontrar-se com o Inominável e voltaria para trazer a antiga
glória dos aetherius novamente. Dessa forma, muitos rumores e histórias foram
produzidas ao longo dos séculos baseadas nesse mito. Tais histórias porém não devem
confundir-se com o documento que será citado a seguir, já que este, longe de qualquer
tradição da volta de Nith, o menciona sem ao menos saber de quem se tratava: “Minha
caravana seguia pela rota da Grande Águia há duas semanas quando encontrou o antigo
vilarejo sagrado dos anciãos da pirâmide. Durante anos passando por ali, sempre vi o
local quase abandonado, já que nós, há muito, deixamos as crenças nas divindades da
pirâmide e adotamos o Deus-de-Pedra. Havia, porém, dessa vez, um sem fim de
peregrinos acampados ao redor da obsoleta construção. Aproximando-me do local, ouvi
de um camponês a pouco chegado que um antigo deus azul havia despertado e mostrava
seus poderes milagrosos à multidão. Eu mesmo resolvi penetrar na multidão e descobrir
de que se tratava tão maravilha. Uma vez consegui uma posição próxima ao centro do
vilareja, graças ao auxílio de meus guardas, pude ver com meus próprios olhos e só
assim me sinto digno de relatá-lo nessa carta. Havia lá o que parecia ser um dos homens
de pele celeste, chamados por nossos pais de Iterus, só visto pelos circos de maravilhas
das cidades de Helan. Esse, porém, não era como aqueles que tive a oportunidade de ver
nas jaulas, mas sua pele resplandecia como os cristais de Vi‟on e olhos eram como
brasas. Pairava alguns metros acima do solo e, ao seu redor, bailava um filete de água.
Nunca antes havia visto tal prodígio, nem mesmo entre os feiticeiros negros aadi.
Quando inquirido por um governante local que fora verificar a divindade, mencionou, e
foi a primeira vez que o ouvi falar, com uma voz de trovão, que marcharia para longe,
mas voltaria e com grande fúria puniria seus inimigos, mas que lembraria para a
eternidade da sabedoria do antigo povo da pirâmide.” (Trecho do diário de viagem de
Mahdibo Korub, comerciante itinerante arzi.).
Poucas semanas depois, as notícias já se espalhavam por todo o continente. A
verdade veio no ataque a Uz Won’min, uma fortaleza de mineração do império astral
com um grande número de escravos aetherius. Os registros da fortaleza dizem que um
aetherius resplandecente tomou só toda a fortaleza armada, utilizando de “prodígios
divinos nunca antes vistos.” Deixado vivo, o governante da fortaleza ficou incumbido
de dar uma mensagem aos reinos de Luxor: nenhum aetherius deveria permanecer em
estado cativo sob pena de sofrer o mesmo que sofreram os astrais da fortaleza. Alguns,
incrédulos, não só mantiveram escravos aetherius, como executaram alguns a fim de
aplacar possíveis revoltas. Esses, conforme o aetherius resplandecente seguia seu curso
em direção aos Olhos, foram exterminados pela crescente tropa de libertos. Chama-se a
esse evento de Marcha da Libertação, levada a cabo em menos de dois anos e reunindo
a maior parte dos aetherius ainda vivos. Em 832, durante um pronunciamento oficial no
antigo porto de Nesos, em homenagem ao antigo Megal, o aetherius salvador se revelou
como sendo Nith, o perdido. Suas palavras estão eternizadas no manuscrito de Nesos3 e
até hoje causam espanto e fascínio aos que a leem. Naquela mesma tarde, Nith reclamou
seu direito ao poder, afirmando porém que não deveria mais ser chamado Megal, pois
tal posto era, agora, fruto de uma era passada. Seria Krathor Nith, o primeiro de um
grande império.
O imperador astral, pressionado pelos demais generais, se viu em necessidade de
declarar a caçada ao novo líder dos aetheri, acumulando tropas no litoral crescente.
Sábio, antes de iniciar uma ofensiva, articulou uma rede de espiões logóticos para
descobrir que tipo de sortilégios utilizava aquele novo ser. Intrigados, os próprios
senescais das terras logóticas enviaram comitivas com presentes ao Krathor. Os astrais
haviam sido atirados ao mar, um dos maiores temores dos guerreiros de pedra. Alguns
dias após a chegada do Krathor Nith nos Olhos já era possível ver o antigo brilho da
glória aetheri. Nith lia boa parte do tempo e com o que lhe restava conversava com os
generais sobre as novas tecnologias que haviam sido criadas. Gostava em especial dos
Apathor, e treinava pessoalmente os jovens que estavam destinados a tornarem-se a
próxima leva. Não demonstrava medo em utilizar seus domínios sobre a energia, o que
causava assombro aos convidados logóticos. O único relato que nos chega dessa época
vem de um dos componentes da comitiva, o filósofo T‟tksh: “Já estamos aqui há uma
volta de lua e ainda não posso desvendar que tipo de manipulação energética complexa
utiliza esse novo rei. Presenciamos, desde nossa chegada nessa terra de prodígios,
aquele que se chama Krathor fazer algumas técnicas que mesmo em nosso elevado
conhecimento alquímico não há como reproduzir. Não víamos, até a noite anterior,
qualquer perigo relevante na figura. Por mais que sua presença houvesse impactado
muitos regentes e a maior parte da população, como toda novidade, apenas
necessitaríamos esperar para que todos se acostumassem, afinal, suas conquistas
singulares se deram contra pequenas vilas mal guarnecidas e pouco conseguiria fazer
contra as defesas de uma cidade como „Eez. Porém, durante a última noite, nossas
previsões foram alteradas diante de um espetáculo que superou nossas mais alarmantes
3
O pergaminho foi queimado durante o incêndio da grande academia aetheri durante o saque de Tidel
Darena em Elisya.
expectativas. Na praça central da cidade, Krathor Nith alabou a divindade inominável e
afirmou seu encontro com as entidades do além-mundo. Disse que o dom recebido não
era apenas seu, mas que todo aetherius deveria ser possuidor do poder que lhe foi
confiado. Após seu discurso, um por um, despertou o dom em todos de seu povo, que,
impressionados, faziam os mais variados sortilégios. Se, de fato, esse dom pode ser
transmitido para todo e qualquer aetherius, temo que, em breve, o mundo há de
conhecer um novo soberano.” (Diário de T‟tksh em viagem a Logos, p. 342).
No ano de 840, o Krathor voltou ao continente ao lado de um exército
igualmente resplandecente e atemorizador. Para recebê-los, os governantes aadi fizeram
reverência no porto, como se uma divindade descesse a conquistá-los. Com informação,
também lhes esperava o exército quase completo do império astral, com armas de cerco,
acampamentos de primeiros-socorros e diversos escravos auxiliares. Por mais que o
poder dos novos aetherius fosse surpreende, a tropa era composta de ex-escravos e
guerreiros jovens demais, enquanto do outro lado erguia-se uma miríade de falanges
plenas de soldados experientes e bem treinados. Dizem que o cerco ao porto de Nesos
durou mais de cinco anos e as batalhas esporádicas eram acirradas. Ao fim desse tempo,
ambos estavam esgotados da luta e recuaram exércitos, Krathor Nith para os Olhos e
‘Eein Z’zi Dzeon para Uz Mog Dev, uma grande cidade próxima ao porto. Houve, dessa
forma, um intervalo de vinte anos em tensão de guerra, em que todas as cidades do
litoral crescente viveram sem sossego, na eminência de uma sangrenta batalha. Esta
ocorreu ao fim desse tempo, quando o Krathor finalmente havia terminado o
treinamento de uma geração nova de Apathor, agora instruídos na arte da manipulação
de energia, que já era chamada entre eles Psitekhen já nesse tempo. Devido ao nome
dessa manipulação, difundiu-se anos depois o termo que perdurou ainda em nossos
tempos para designar o exército de elite aetheri: A Tropa Psi.
Os aetherius que primeiro receberam o dom não pareciam desenvolver de forma
eficaz seu potencial, já que não faziam mais que alguns truques úteis, perfeitamente
substituíveis por alquimia e mecânica. A Tropa Psi, porém, assemelhava-se em poder ao
próprio Krathor, sendo de uma eficácia nunca antes vista em combate. Não esperaram
enfrentamento no porto, como da última vez, mais atacaram diretamente a cidade
defensiva em que se encontrava o imperador com suas tropas. Nunca antes a história
havia documentado um massacre tal, nem mesmo durante famosa batalha do próprio
Krathor muitos séculos antes em Ur‟zi‟perstat. O império astral caiu naquela mesma
noite.
Os anos seguintes serviram de consolidação do território que atualmente
corresponde a Selena, sendo que até o fim do século o Krathor já possuía cidades
também nas regiões circundantes, incluindo regiões da União Logótica, do grande
deserto aadi e dos reinos arzi. Neste último, o Krathor reestabeleceu a riqueza dos
sábios sacerdotes das pirâmides, que, ao que se indica, foram responsáveis por guiá-lo
no caminho espiritual que o levou a despertar tais dons. Uma grande pirâmide foi
erguida em sua homenagem, toda construída com tijolos de ouro4.
Muitos reis cederam seus territórios ao novo grande imperador, recebendo em
troca paz e um grande território unido sobre uma mesma língua e cultura. O Krathor
respeitava religiões, apesar de não admitir nenhuma que negasse o claro poder do
Inominável. Tampouco era aceito que não-aetherius entrassem em templos aetheri ou
adorassem seu deus, sendo punidos com a morte aqueles que tentassem. Os líderes que
optaram pelas vias bélicas não foram poupados e foi frequente nessa época a destruição
de cidades inteiras. Dessa forma, ao chegas as portas de uma cidade, mesmo que o
soberano da mesma desejasse fazer frente ao exército aetheri, o próprio povo se
revoltava, matava-o e entregava a cidade ao Krathor. O último bastião do continente de
Luxor foi o reino de Dzee Sdar‘a, no qual haviam se reunido todos os exércitos contra o
domínio do grande Krathor. Durante essa guerra, tal era a força política de Nith que não
precisou lutá-la, já que os reinos aliados a ele, desejando seus favores, marcharam com
seus homens contra o território, entregando-o a princesa de diamante, última monarca
astral da época, como despojo. Tão bela era a astral que o novo imperador ordenou que
fosse cristalizada5, sendo a primeira a sofrer o processo de forma documentada (alguns
afirmam que o processo era usado pelos próprios astrais durante o domínio do
imperador sanguinário, assassino do imperador-sacerdote.).

4
Hoje em dia, a área é tomada por uma cidade comercial do reino de Petran e todos os blocos de ouro
foram divididos como espólio entre os reis da Grande Revolta.
5
O cruel processo era comum até a época do autor, sendo condenado com tortura e morte nos anos
posteriores à queda do império. Para que fosse feito era necessário, com o astral vivo, iniciar o processo
de remoção dos órgãos pela boca e pelo ânus, preenchendo o interior com areias específicas e, depois,
levando a uma temperatura elevada por dias, para que as areias derretessem e se permeassem o interior
orgânico do astral, deixando apenas a camada pétrea intacta. Quando finalizado o processo, conseguia-se
uma estátua de perfeição ímpar.
Em menos de cem anos, os aetherius passaram de um povo escravizado ao maior
império já existente, dominando todo o continente de Luxor e as ilhas anexas.

A Krathorya

Século KI6

Se o século anterior é marcante pela expansão assustadora do império aetheri, o


primeiro Kut é tido como o ano da consolidação. Apesar da campanha militar rápida e
eficaz do Krathor, os problemas não tardaram a surgir. Como antes não possuía nem um
terço da vastidão que agora era seu império, o novo líder não sabia de fato quais eram as
medidas necessárias para manter a ordem em tamanha extensão territorial. Antes mesmo
de sua chegada ao poente de Luxor, já reportavam crise de abastecimento no centro e
tentativas de anexação territorial entre os aadi e os arzi. Os Olhos, por sua vez, se viam
a tanto distantes de seu líder que muitos já começavam a murmurar que Nith havia
novamente se perdido no deserto e rumores de um novo governante já podiam ser
ouvidos. Sem uma figura real clara, os reinos se consumiam em guerras internas para
decidir a liderança, o que causava uma interrupção no comércio vital entre os reinos do
continente.
Antes da segunda década do século, o Krathor se via dono de um imenso
império ruindo diante de seus olhos e pouco sabia sobre como mudar essa situação.
Tendo em vista a fundamental estabilidade entre os reinos e já com grande experiência
em trabalhos diplomáticos, a União Logótica enviou um grupo de administradores reais
ao Krathor oferecendo-se para iniciar um processo de consolidação do poder. Nith, que
apesar de tudo nunca fora arrogante, não hesitou em utilizar-se do conhecimento
logótico para liderar suas terras. O primeiro ato foi a redação do código imperial, um
conjunto abrangente de leis que servia para regulamentar o comércio interno e externo,
os crimes, a sucessão política, os cargos governamentais, a legislação quanto a templos
e aquisição territorial. Foram necessários três anos até que uma versão final e efetiva do
código pudesse ser entregue já com suas respectivas cópias ao Krathor e cada um dos
Iskhal e dos reis-aliados. O código previa, além das leis, um sistema eficaz de

6
Após o início da krathorya convencionou-se chamar o século X de KI (ou Primeiro Kut).
distribuição territorial em regiões reais da seguinte forma: O crescente e o centro de
Luxor ficaram em mãos do reino aadi, sendo lideradas por um monarca real aliado (a
exceção das cidades nésicas da bimegalia, administradas por um Iskhal); O poente de
Luxor permaneceu sobre o domínio do reino arzi, administrado pelos sacerdotes da
pirâmide em regime teocrático; o minguante ficou sobre o domínio dos Okur, uma etnia
humana que vivia escravizada pelos astrais em Dzee Sdar’a; o nascente manteve-se
sobre o domínio da União Logótica, com o anexo da antiga ilha sagrada dos Okur ao
poente de Dzee Sdar’a. Nessa época já encontramos adaptações na grafia do nome de
alguns reinos, aproximando-se do que temos hoje, como Dzeleena para o reino de Dzee
Len‟Na, Dzdara para Dzee Sdar’a, Dzelesda para Dzee Les’Da. Também possuímos
Pedir’ran e Pulgur’ran torando-se Petiran e Pulkuran, além de Hel’ran derivando para
a forma atual Helan.
Uma vez apaziguaram-se os conflitos internos com a presença dos Iskhal nas
capitais fiscalizando o cumprimento do código imperial, iniciou-se um ambicioso
projeto de urbanização das áreas centrais, com a presença de construções aetheri que
consolidassem a presença imperial e facilitassem a instalação dos administradores, a
expansão das vias de transporte entre os reinos (formando a Teia Comercial Aetheri,
utilizada até hoje) e investimento na área da cultura, criando academias e centros de
debate que auxiliassem tanto no desenvolvimento tecnológico como servissem de
influência da cultura aetheri sobre o povo.
Em meados do século uma geração humana já havia nascido sobre as mudanças
do conselho logótico e demonstravam promissora civilidade e organização. O comércio
marítimo, graças ao compartilhamento da tecnologia naval aetheri adquiriu força e a
cabotagem tornou-se uma das principais formas de comércio entre as regiões imperiais.
Graças a essa intensificação das atividades marítimas, a tecnologia naval e a navegação
ganharam novos aportes vindos de diversas cidades litorâneas. Com isso, foi possível
compilar as rotas seguras de navegação pela costa, um verdadeiro tesouro nas mãos dos
mercadores sob ordem do império. Não tardou, porém, para que essa tecnologia
alcançasse os oportunistas, que aproveitavam-se de localizações estratégicas em áreas
ermas para emboscar e pilhar os navios mercantes. Desse tempo data o primeiro registro
sobre atividades de pirataria no continente.
Surgiram, também, grandes produções artísticas, com especial destaque para o
surgimento do teatro. Visto que, com exceção da aristocracia arzi e alguns eruditos aadi,
a literatura era uma prática incompreensível aos humanos e astrais, um poeta aetherius
desenvolveu uma forma de representar as histórias contadas com fantasias, cenários
falsos e máscaras. Em poucos anos se tornou a principal forma de entretenimento de
Luxor, sendo escrita e encenada não só por artistas aetherius como por humanos que
haviam se familiarizado com a prática. Ganham destaque, nessa época, obras como
“Onire de Nesos”, “Morte em „Eez”, “O amante da rainha de Petiran” e “Lágrima
logótica” no teatro de choro, “A tripolímia”, “Nith e a pirâmide” e “Os mares do
horizonte crescente” no teatro de assombro e “Um bêbado em Logos”, “O rei manco” e
“O guerreiro dos moinhos” no teatro de riso.
Se no começo do século o ressentimento pela recente guerra e a morte do
imperador astral haviam criado um clima desagradável entre os aetherius e os astrais, na
virada do século tal rancor já havia praticamente desaparecido (ao menos entre as
camadas populares). Membros da antiga família real astral exilados em pequenas tribos
daemon aliadas do antigo império (Nesse ponto o leitor pode estar se perguntando
porque, até então, não se havia mencionado a presença dos daemon nesse compêndio. O
fato é que tanto os daemon quanto os bestiais que nos séculos iniciais haviam migrado
para Luxor não constituíam, na época, nenhuma formação organizada digna de nota e
tampouco trouxeram aportes culturais importantes para qualquer civilização. Entre os
humanos, os daemon eram vistos como entidades guardiães da natureza e muitas tribos
tinham costume de deixar oferendas, sendo de especial valia os objetos metálicos,
espelhos e pinturas. Antes da “febre dos cristais” durante o reinado do segundo krathor,
na qual a intensa abertura de minas acabou forçando contato com as vilas subterrâneas,
não havia em Aetheria daemons impuros7. Os bestiais, por sua vez, não são bem aceitos
nas grandes cidades até hoje, como sabeis, vivendo, em sua maioria, em aldeias tribais
próprias8.) suplicaram ao Krathor o reestabelecimento de uma nação astral, que viveu
por mais de meio século peregrinando ou acampados nas cidades. Vendo nesse evento

7
Termo antigo para referir-se aos daemons que, ao habitar a superfície com outras raças, acabam por
sofrer as mutações adaptativas características da raça.
8
Após a Grande Revolta, na qual os tribais auxiliaram interrompendo caravanas na Teia Comercial, foi
concedida a livre cidadania aos bestiais, que, apesar disso, até hoje vivem marginalizados, trabalhando
apenas em áreas servis ou como mercenários e ainda não são aceitos nos ofícios do sacerdócio, em postos
militares maiores que o de recruta e, sob nenhuma hipótese, na aristocracia.
uma oportunidade de unir sobre sua influência todo o povo astral, o imperador ofereceu
o reino de Dzelesda, que até hoje é o único território remanescente do antigo império
astral a continuar existindo.

Os Olhos, durante esse período, ganharam uma atenção especial por parte do
imperador, que pouco se comunicava com uma área que, cria ele, estava a salvo de
qualquer problema. O relatório de Gnos nos mostra a situação dos olhos antes da volta
do Krathor: “Finalmente livres das mãos severas dos astraes, o povo pensou que uma
nova era surgia para os Olhos. A volta do antigo Megal trouxe esperança e calmaria. Ele,
porém, pouco depois de sua chegada, novamente partiu, e quando todos começavam a
organizar-se, um período de incerteza emergiu. Os mais velhos haviam passado anos em
cativeiro, outros haviam nascido escravos, os mais jovens, em sua maioria, foram
levados para a guerra. Três Iskhor munidos de um grande número de escravos
anantropos, para usar o termo arcaico, afirmaram-se zeladores dos Olhos na ausência do
imperador. Tais homens, o tempo nos mostrou, exilados por muito tempo como servos
aadi, haviam corrompido seus gostos e sua moral, não desejando mais que o luxo e o
sexo corrompido 9 . Abriram os portos dos Olhos a todo tipo de mercador e nossas
cidades tornaram-se centros fétidos de todo tipo de comércio. Nos primeiros anos foram
discretos e só os mais próximos a administração pública notaram as mudanças. Com o
afastamento progressivo de nosso antigo Megal e a escassez de notícias, perderam as
amarras e iniciou-se uma longa decadência das cidades. No seu auge, as ruas eram
infestadas de dejetos, já que os humanos instalados não possuíam o hábito de utilizar os
depósitos, muitos crimes aconteciam e não era incomum encontrar um corpo ao
amanhecer, fosse este humano, dos homens-bestiais ou de aetherius. O número de
humanos aumentava a cada dia já que ouviam notícias de uma terra com poucas leis e
muita prosperidade. Em pouco tempo, eram cinco para cada aetherius nas ilhas. Era
possível ver os Iskhal desfilando com escravas arzi, aadi, okur e até mesmo algumas

9
A assembleia nos trouxe uma ideia de sexualidade herdada da antiga religião crônia pré-Incarna, como a
monogamia, a união perante os deuses e o sexo apenas com pares opostos. Nos tempos anteriores ao
contato com os crônios, tal conceito nem sequer era conhecido. O sexo natural podia ser feito com
homens ou mulheres, mas nunca entre raças. Visto que a reprodução astral é muito diferente da humana,
só com a era da servidão aetheri essa prática pode florescer. As fontes mostram que foi introduzida pelos
monarcas aadi, que tomavam aetherius como escravas sexuais. Posteriormente, a parte feminina da
aristocracia aadi começou a praticar o sexo inter-racial às escondidas. O tema, chamado sexo corrompido,
pode ser visto no longo poema profano do segundo kut “O ventre celeste”.
astrais, mesmo que nossa imaginação não permita compreender que desejos deturpados
cumpriam com estas. Por mais que nunca tenha tido coragem de confirmar, as vozes na
cidade dizem que os Iskhal comerciavam mulheres aetherius para reis deturpados no
litoral crescente. Alguns anos antes do retorno do Krathor, uma epidemia venérea se
espalhou rapidamente entre humanos e aetherius, fruto claro da pornéia desenfreada que
promoviam. Quando os governantes descobriram que nosso antigo Megal retornaria à
casa, rapidamente pegaram rápidos navios e partiram a exilar-se entre os corruptos
governantes humanos. Ao ver o estado dos Olhos, Krathor passou horas limpando com
as próprias mãos o Santuário Cristalino, que havia se convertido na casa de prazeres dos
três Iskhal. Dias depois dois deles (um havia morrido durante a viagem) foram
encontrados tentando abrigo numa cidade costeira em Luxor. Três dias depois foram
executados na praça central, na qual o Krathor proferiu um discurso sobre o cuidado de
seu povo.
Nos últimos anos do século X, ouviam-se, já, rumores dos “Alvos”, um povo
diferente, humano decerto, mas com a pele branca como o sal. Navegavam nos mares
do extremo poente (relativo à Luxor), com embarcações adornadas por bestas esculpidas
em madeira negra e velas vermelhas como o sangue. Os rumores só iriam se confirmar,
porém, na primeira década do século seguinte.

KII
Com todo mal causado pela abertura dos Olhos aos comerciantes humanos, um
forte sentimento de ódio se consolidou com os aetherius das ilhas (em oposição aos
aetherius do continente, que surgiram durante a Megalia de Nesos e, após a era da
escravidão, retomaram força por todo o continente.) e os conflitos fizeram que o
Krathor optasse por fechar qualquer acesso a Logos, Tharos e Velos. Assim, os únicos
navios que aportavam na região eram autorizados e dirigidos pelos Iskhal de confiança
direta do imperador.
No continente, a política de controle criada pelos logóticos surtia efeito e,
sempre que algum conflito surgia, o próprio sistema penal resolvia, aliviando o fardo
das decisões imperiais. As estradas principais da Teia foram pavimentadas com uma
técnica de camadas criada no antigo império astral. O que, a princípio, tinha finalidade
estritamente decorativa, mostrou-se útil para criar caminhos rápidos entre as principais
cidades. Até os dias atuais, muitas dessas estradas ainda resistem ao constante uso e sua
manutenção é rápida e de baixo custo.
Por volta dos anos trinta, o império era interligado e pacífico em sua maioria. As
cidades pagavam as taxas aos Iskhal coletores, que, por sua vez, encaminhavam o lucro
a Logos, sede do Império. Desde que o Krathor optou por administrar o império em
Logos, a ilha passou por uma longa transformação. A primeira delas, talvez, tenha sido
a militar. Antes protegida pelo mar, com a evolução das técnicas navais, a ilha tornou-se
um alvo fácil, sendo necessário fortalecer seus portos e vigiar outros pontos da costa.
Iniciou-se assim um intenso período de construções em Logos, com a criação das
cidades sentinelas, construções só possíveis graças ao imenso poder e conhecimento
arquitetônico dos aetherius. Conhecidas como Koranthos, essas cidades erguiam-se na
costa de Logos, totalizando 12 pontos de proteção e observação. Eram fundamentadas
no solo rochoso e raso da costa, sempre a 300 metros de distância da terra firme. Além
disso, graças ao interesse de Nith pelos conhecimentos místicos, a ilha não tardou em
tornar-se detentora do maior acervo de livros e objetos de valor místico ou religioso.
Destacam-se, na coleção, o manuscrito de Toth, peça de valor incalculável para os
aetherius e para os arzi, um conjunto de peças totêmicas encontradas no horizonte
crescente e o caderno de Anishitam, anotações de um ermitão arzi considero, em Luxor,
pai da feitiçaria10. Por último, pode-se mencionar o investimento massivo na melhoria
da tecnologia naval, já que, tendo em vista a distância de Logos para outros centros do
império, era necessário segurança e rapidez na resolução de problemas que requisitavam
a presença do Krathor. Surgem, então, nessa época, os nerophides, embarcações
inspiradas nas lendas sobre as criaturas marinhas de mesmo nome. Tais criaturas,
representadas já no Te Onirikon, eram – e ainda são – temidas entre homens do mar. As
descrições podem variar, mas a versão mais popular indica uma criatura grotesca com
mais de dez metros, rosto de peixe e corpo de serpente. De acordo com marinheiros e
pescadores, é possível vê-la sempre pela noite, em mar fundo e dia de água fria. Os
relatos são mais comuns a crescente, rareando até sua quase inexistência no litoral

10
É bom inserir um comentário importante aqui: Apesar do dom aetheri haver revolucionado o mundo, a
magia, tal e como é praticada pelos não-aetherius e não-marcados, já existia bem antes desse advento. O
próprio caderno mencionado, que cita uma série de supostos rituais (impossíveis de serem concluídos
devido a falta de referencial dos objetos utilizados e da fonética dos cânticos) data do quarto século da
Megalia. Registros semelhantes podem ser encontrados, também, nos arquivos do império Magi e em
alguns escritos sacerdotais do Gaarthismo em Cronia.
minguante, mais próximos de narrativas fantasmagóricas. Ao escolher tal forma, os
Iskhal responsáveis pela armada procuravam não só uma forma de afugentar piratas e
outros inimigos, como também consolidar um símbolo de poder. Através da construção
dos nerophides¸ o império passava a mensagem de domínio sobre as forças do
desconhecido, sobre os próprios temores do mar. Por mais que muitos vissem tal ato
como uma afronta às entidades da natureza, os aetherius içaram velas e a primeira
esquadra de nerophides partiu no ano de 1023, estabelecendo o controle dos mares de
Luxor.
Tal expansão possibilitou o primeiro contato efetivo com os Alvos, ou seja, os
habitantes de Cronia, como descrito no diário de bordo do Thalaor Klíon. O cargo de
Thalaor corresponde ao de Iskhal no domínio marítimo, sendo, inclusive, mais próximo
ao Krathor, uma vez responde diretamente ao seu comando. Klíon não só foi o primeiro
Thalaor formado, como foi o que mais tempo permaneceu em seu posto, desaparecendo
apenas durante o domínio do segundo krathor. O encontro, em suas palavras, aconteceu:
“durante a segunda lua do estio, em águas profundas do poente. O mar, sob a
tranquilidade da noite negra, separava terra e firmamento com camada tênue e o vento
era apenas brisa fresca. Um grito do observatório indicou a presença de uma
embarcação desconhecida. Tardou alguns minutos para que se desse a efetiva
aproximação. O formato peculiar me intrigou. Nada em solo imperial assemelhava-se
àquilo. Era como uma longa caixa, sem parte aberta superior. Em seu lugar, havia uma
escura carapaça coberta de pontas, como o casco de um cágado dos Olhos. O rosto de
uma mulher estava esculpido com cuidado na parte frontal e de toda sua lateral saiam
remos como patas aos insetos. No topo, acima das quadradas velas, havia um pano
estampado11, no qual era possível reconhecer um longo machado vermelho. Mercadores
humanos que nos acompanhavam gritavam incessantemente, temendo uma besta. Nós,
porém, víamos que não era nada além de uma embarcação peculiar como a nossa. Com
o rosto feminino observando diretamente nossa embarcação, notamos que a escotilha
superior se abriu e dela alguns homem saíram. A princípio fiquei desconcertado, pois
pensei que dele saíam bestiais vestidos com armaduras. Pude, porém, um pouco depois,
perceber que se tratavam de humanos muito peludos e de longas e grossas barbas.

11
O costume dos brasões, bandeiras e emblemas era desconhecido entre os habitantes de Luxor até o
contato com Cronia. A influência foi tal que em pouco tempo todos possuíam um símbolo para
representar seu grupo, família ou território.
Poderiam, aqueles, ser crias híbridas de homens com bestiais? Um deles largou a arma e
fez sinal para que aproximassem a embarcação. O rosto de mulher, visto de perto,
possuía algo de desagradável. Exalava, de seu interior, um cheio forte. Trouxemos luz
para melhor identificar o viajante, mas a surpresa tomou a todos diante de uma criatura
cuja pele era rosada como os filhotes de gato e o pelo era como a cor do fogo. Sua
língua era bem diferente daquela falada pelos aadi ou pelos arzi. Estas possuem melodia
e são agradáveis aos ouvidos, o idioma daquele homem era ríspido como uma navalha.
Sua voz gravíssima tomava toda a noite silenciosa e nós apenas observávamos
intrigados. Inspirado pelas anteriores proezas de nosso Krathor, ordenei que Heraklon,
exímio controlador de chamas, projetasse algo que impressionasse o homem de cabelos
de fogo. Diferente dos homens que estávamos acostumados, esse estranho guerreiro
nem sequer piscou diante de nossa apresentação. Seus olhos passeavam rapidamente
entre nossos tripulantes, nossas armas, nosso navio. Depois, virou as costas e partiu para
sua embarcação. Antes que pudesse ordenar qualquer coisa a meus homens, o imenso
rosto vomitou um fogo enegrecido sobre mim e os demais tripulantes, obrigando-nos a
buscar refúgio no interior do navio. Demorou certo tempo para que pudéssemos
controlar o incêndio e não voltamos a ver a embarcação. Me dirijo, agora, de volta a
Logos, para informar pessoalmente ao Krathor que o império tem um novo opositor.”
(Diário de bordo da Nerophide Niken, 1025).
Ao saber do encontro, Nith mostrou-se muito mais curioso que irritado.
Observava ali a expansão de seu horizonte, a oportunidade de encontrar o novo. Durante
os séculos anteriores, muitos reis haviam buscado desbravar as águas profundas ao
poente de Luxor, não logrando, porém, ultrapassar a Corrente das Viúvas a menos de
mil quilômetros da costa. As novas embarcações, projetadas com auxílio dos melhores
construtores de Luxor, conseguiam cruzar, com esforço a correnteza, mas a força da
corrente impedia uma navegação segura e cálculos precisos de viagem. Ainda assim, o
Krathor, a fim de testar sua armada, mandou algumas expedições naquela direção,
sendo o incidente de Klíon o primeiro a dar frutos. Com um novo incentivo, o olhar de
Nith se voltou ao poente por completo, o que levou a construção do porto de Kandhi 12 e
a produção dos Aetherphides, embarcações colossais capazes de levar um verdadeiro
palácio dentro delas.

12
Atualmente em Platine, capital de Petran.
No ano de 1040, o Krathor parte com uma grande comitiva rumo ao mundo
desconhecido do poente. Um dos responsáveis pela documentação da viagem relata: “É
a maior maravilha já criada pelo homem. Essa embarcação é tão estável e resistente que,
muitas vezes, sinto que estou em terra, não nas águas profundas. A comida é farta e,
graças aos dons do benevolente Krathor, sempre temos alimentos frescos e água em
abundância. Quando ando pelo navio, me deparo com pessoas que nunca antes vi, tal é a
quantidade de tripulantes que se encontram aqui. Há ferreiros, construtores, artistas,
guerreiros, homens de saberes, místicos, mercadores e linguistas. Durante a noite, há
sempre uma peça de teatro para assistir. O Krathor comparece e sempre assiste com
muita seriedade. Durante as peças de riso, porém, se ausenta, deixando que nós, súditos,
nos divirtamos. A ala dos presentes é magnífica. Pude contemplá-la uma vez e nunca
esquecerei tal momento. Centenas de pilhas de ouro puro, milhares de pedras reluzentes
como os sóis, pinturas tão reais que parecem ter vida e as mais belas arzi, aadi e okur já
vistas. Há alguns dias um homem tentou deitar-se com uma delas pela noite, mas foi
surpreendido pelo Iskhal Ipseon, responsável pelo controle da tripulação. Como punição,
o homem foi entregue para ser usado com mulher por todos os outros tripulantes,
aplacando, assim, um pouco do desejo por sexo que há na embarcação. Os Okur, que
são homens sem leis, assim como os escravos, tomam homens como parceiros na falta
de mulheres. Alguns aadi depravados também seguem tais práticas. Nós, arzi, sabemos
que tais relações são amaldiçoadas e, tal como os aetherius, não praticamos esses atos.
(...) Hoje, finalmente aportamos. Após semanas de viagem descemos em terra firme. Os
Thalaor da comitiva, após um reconhecimento de costa, indicam que estamos em uma
ilha de grande proporções, tal como a grande Ilha das Almas de Luxor. Quando pus os
pés nessa terra não pude crer o que meus olhos contemplavam. Mesmo eu, viajante
acostumado com paisagens mais verdes como em Logos, diante do esplendor natural
dessa ilha, fiquei paralisado. O litoral é povoado por rochas esculpidas pelas ondas,
coloridas por musgos multicolores. Acima, o cenário se alterna entre planícies douradas
e bosques cujas árvores parecem haver sido dispostas por um arquiteto. O vento é fresco
e limpo e os sóis não esquentam mais do que o necessário. Creio que estou diante de
uma terra de sonhos. (...) Soubemos que uma comitiva de diplomatas foi enviada a uma
vila próxima. Trouxeram com eles um representante. Haviam mencionado que os
habitantes do poente eram rosados e cobertos de pelos vermelhos, além de terem fogo
na boca. O que eu via diante de mim em pouco se parecia a tal descrição. Era um
homem com pele cor de bronze, poucos pelos, assim como nós e cabelos em cachos.
Possuía, porém, olhos como esmeraldas. Os mercadores imploraram ao Krathor para
tomá-lo como escravo ou, ao menos, para levar seus olhos, mas nosso líder queria uma
boa relação com aquele homem. Os nossos sabedores de línguas foram enviados à vila
para aprender a língua estranha e ouvi dizer que estabeleceremos uma cidade aqui, com
a permissão dos habitantes da ilha. O horizonte, porém, continua intrigando nosso
imperador, que deseja conhecer o povo dos cabelos de fogo” (Registros da jornada
poente, 1040. Autor desconhecido).
A ilha encontrada pelo Krathor em sua viagem, lar da primeira construção
aetheri fora de Luxor, era Aerya, em época anterior a dominação da dinastia Darena.
Para entender um pouco da situação em que se encontrava a ilha e tendo em vista que a
próxima parte da história se refere aos fatos ocorridos em Cronia, é importante que se
faça um adendo com um breve resumo da história desse povo até o ocorrido fato.

Resumo da história de Cronia antes do contato com Luxor.

Não se sabe ao certo em que ponto da história o povo atingiu as primícias


civilizatórias que permitem separar os homens dos animais, mas podemos afirmar que
as histórias sobre os primeiros povos alcançam anteriores ao primeiro século. De acordo
com sua mitologia, o mundo havia sido criado pelos cinco seres de um mundo antigo
que, sobrevivendo ao fim do seu mundo, regiam agora uma nova existência. Eram eles:
Eledur, senhora do fogo, do amor, das relações, da luz e da prosperidade; Gul, o gigante
dourado, senhor das armas, dos líderes, da ousadia e da guerra; Vedur, a coruja alva, de
cujas asas sai o gelo e a noite, protetora dos portões da vida e da morte, rainha do
mundo selvagem, odeia a civilização, irmã mais velha de Eledur; Andil, o menino
ancião, possuí a história do mundo antigo grafada em seus cabelos infinitos, dele sai
todo conhecimento, todo progresso, toda invenção; e o Sem-nome, o devorador de
mundos, o de olhos vazios, o início e fim de toda existência. Nenhum deles pode ser
considerado bom ou mal, sendo possível identificar aspectos positivos e negativos em
cada um deles. Eledur, por exemplo, traz luz e vida, porém é considerada uma deusa
ciumenta e pune gravemente aqueles que fogem de seus preceitos. O Sem-nome, por
outro lado, mesmo sendo o portador do Leidendir – o fim de toda existência – é visto
como o criador primeiro, aquele que possibilitou a existência daquela realidade. As
histórias antigas, compiladas no Canto dos Primeiros Povos, falam sobre o surgimento
do mundo através do vazio eterno contido nos olhos do Sem-nome. De lá saiu,
inclusive, ele e seus quatro companheiros. A existência, então, era apenas possível, não
consolidada, fazendo-se necessária a intervenção dos outros seres. Vedur soprou seus
ventos, reunindo toda a matéria dispersa no nada, enquanto Gul, com seu martelo,
forjava as entranhas do mundo. Eledur assistiu tudo de longe, não querendo cansar-se
com tal trabalho. Os moldes de todas as coisas eram lidos nos cabelos de Andil, que
organizava tudo que se fazia. Uma vez o mundo estava pronto, os seres habitaram em
sua imensidão vazia e foram felizes. Eledur, porém, não suportava seus iguais, seja pela
selvageria de Vedur, a rudeza de Gul, a frieza de Andil ou o silêncio do Sem-nome.
Todos possuíam, em acordo, que nenhum podia gerar filhos, uma vez que era sua prole
a causadora de todo fim. Dessa forma, toda vida era moldada e preenchida por uma
essência nula, que sempre seria igual, os animais da terra, do ar e dos mares. Eledur,
porém, fez um dia uma grande festa, onde todos os seres beberam, cantaram e dançaram
até caírem exaustos. A senhora da chama apressou-se, então, por retirar um pouco de
cada um de seus iguais e fazer crias por todo o mundo. Dessa forma, quando
descobriram, por mais que desejassem a destruição das crias, nenhum queria abdicar da
perfeição que havia criado Eledur a cada um dos deuses. Andil, em sua toda sabedoria,
afirmou, porém, que um mundo daquela forma afundaria em eternas guerras, sendo
necessário um povo que não pertencesse a nenhum dos seres para julgar de forma neutra
qualquer caso. Eledur criou, então, uma essência quase tão fraca quanto a dos próprios
animais, mas com a potência de crescer e se tornar vigorosa por si só. Secretamente,
porém, não satisfeita com sua obra maravilhosa, moldou uma última raça, portadora de
uma centelha de cada outra delas e escondeu no fundo da terra, longe dos olhos de seus
iguais. Assim formou-se o mundo civilizado.
A história contempla a criação de cada uma das raças civilizadas de Aetheria, o
que parece ser uma anacronia, visto que os Primeiros Povos não estabeleceram contato
com aetherius, magis, astrais e logóticos até a chegada do Império. Alguns afirmaram
que reside aí o poder profético do mito, outros que foi escrito por oportunistas durante a
invasão. O primeiro descarta-se pela falta de objetividade, o segundo pelo fato de que
não há registros de magis durante as guerras crônias. Acredita-se, então, que é possível
que os Primeiros Povos tenham conseguido alcançar Luxor e Maena bem antes dos
aetheri, dando ao povo histórias que depois culminaram na escrita dessa mitologia.
Sua organização temporal se dá por regências divinas pouco precisas. Cada
divindade detém a liderança durante certo tempo enquanto as demais amparam suas
decisões. Dessa forma, no tempo dos Primeiros Povos, regia a divindade Vedur,
representando o inverno e a baixa civilização e se estenderia por mil anos antes do
primeiro século aetheri. O segundo século representaria uma etapa de transição, sendo já
o século terceiro plenamente regido por Eledur, uma era de multiplicação dos homens e
prosperidade. As lendas falam que, em seguida vem o tempo de Gul, onde a ambição
trará sofrimento ao povo e as guerras sangraram todos os homens – calcula-se que seja
esse o tempo das guerras crônias e a dominação Imperial, aos que ainda acreditam na
velha mitologia. Antes do fim, um grande período de iluminação se daria à humanidade,
onde o mundo seria povoado de grandes construções, máquinas prodigiosas e a
informação de décadas seria produzida em um único dia. Após esse período, o Sem-
nome, que acredita no fim de todas as coisas, encerraria a existência, dando a outros
seres a oportunidade de levar adiante uma nova realidade.
Registros posteriores indicam que já no século terceiro havia uma grande
quantidade de pequenas vilas, dominadas por alguns clãs. Dentro desses clãs era
possível verificar a existência de três grupos de homens: Os Primeiros Povos, dos quais
não temos nenhum registro claro; os vadar, dos quais os Alvos afirmam descender
diretamente; e os eladar, povo que daria, posteriormente, origem aos crônios em geral.
Os três povos estavam em grandes conflitos há décadas e não havia paz em Sdóryör13.
Nesse tempo, os registros mostram que surge o primeiro rei a unificar o continente sob
um único poder, o Rei-feiticeiro Alderik Luz-da-Lua. Exímio estrategista, o Rei-
feiticeiro avançou sobre seus oponentes a frente de um exército de homens com
armadura. É importante lembrar que, mesmo que os Primeiros Povos já conhecessem o
domínio do bronze, assim como os vadar, os eladar foram os primeiros a fazer uso do
metal como proteção. O antigo costume dizia que um guerreiro devia lutar apenas com
sua arma em mãos, não fazendo uso de proteções, como escudos e couraças. Tais
elementos eram permitidos apenas a mulheres e crianças que tratavam da caça e
13
Durante o anexo da cronologia de Cronia, utilizaremos a nomenclatura do continente anterior a
colonização aetheri, Sdóryör.
proteção da vila. Com o domínio eficaz da metalurgia, Alderik conseguiu desenvolver
armaduras leves e resistentes e sua tecnologia de escudos de bronze impressiona ainda
hoje. Os Primeiros Povos recusaram-se a se dobrar diante do poder de Alderik e
sucumbiram rapidamente. Diante da demonstração de poder, os vadar optaram por fazer
um acordo de terras, mantendo toda região central sob seu poder. Alderik, mais
interessado na costa, aceitou, sabendo ainda que os exércitos de Ereak, o Terrível, eram
bem mais poderosos que aqueles enfrentados anteriormente. Assim, no começo do
século IV, o poder estava dividido entre os vadar, sob o comando de Ereak, o Terrível, e
os eladar, liderados por Alderik. Os Primeiros Povos foram extintos em sua maioria e os
remanescentes foram absorvidos pela cultura dos outros povos.
Uma vez estabelecida a nova ordem do poder em Cronia, houve uma época de
paz, que não foi vivida por Alderik. O poderoso líder dos eladar contraíra uma infecção
severa proveniente de um corte em suas costas e, após semanas de febre e dor, faleceu.
Foi sucedido numa cerimônia sagrada por seu filho mais velho, Kodrik Olhos-de-lobo,
que na época tinha apenas doze anos. Aconselhado pelos melhores guerreiros de seu pai,
Kodrik não tardou em iniciar a organização do novo território herdado, viajando por
todo o continente e fechando tratos com chefes locais. Após sua morte, Huglekir Mãos-
firmes dá sequência ao seu legado, construindo estradas que conectassem as diversas
cidades que prosperavam. A ambição dos chefes, porém, levava a constantes conflitos
na área que havia sido destinada aos vadar. Os líderes alegavam que o território rico em
metal era muito extenso para uma população nômade e pouco numerosa se comparada
ao império eladar. Huglekir, porém, foi resistente a ideia de confrontos com os vadar,
prudência herdada de seu pai, que ainda pode, em primeira infância, ver sua ferocidade
em campo de batalha. Apesar de muitos culparem os chefes de traição, os registros
indicam a morte de Huglekir em uma caçada, o que fez com que sua única filha viva
fosse obrigada a casar com Deorwin Senhor-dos-lagos, filho de um importante líder. No
dia seguinte ao casamento, porém, Deorwin foi envenenado e, após um momento de
instabilidade política, elegem Sigur Domador-de-cavalos, sobrinho de Huglekir, casado
com a filha de um importante líder, para reinar. Sigur, muito mais inclinado a ideia dos
chefes, começa uma abordagem diplomática para tentar reduzir a terra dos vadar, que
desde o início se mostram hostis a ideia. A diplomacia, porém, servia apenas de tempo
para Sigur mobilizar as tropas em volta do território vadar, pressionando-os
militarmente. Durante uma de suas expedições às fronteiras, Sigur é emboscado por
bestiais selvagens e morre, dando lugar a Sindr Destro-com-espadas, que inicia uma
campanha militar contra os vadar. Salvo pequenas revoltas locais, os vadar, nessa época,
não estavam interessados demasiadamente no território continental, aproveitando a
costa poente para fazer seus primeiros passos na arte naval. Após anos de prática, a
atual Paradisya foi descoberta por eles, comprovando que havia terra após Sdóryör.
Mesmo com o sucesso na demarcação das terras, Sindr é atacado por um grupo de vadar
em uma região recém adquirida e é capturado e empalado. Bryn, filho de Sindr, ainda
vai ao poder, mas padecendo de uma doença de nascença que o fragilizava muito e não
resiste muitos anos no poder.
A queda de Bryn traz o fim à linhagem de Alderik, e a única filha viva de Sindr
casa com Aelfin Urso-negro, dos chefes do crescente. Durante o reinado de Aelfin, o
continente vive em estagnação, com exceção dos vadar que continuam seu crescimento
naval. O urso-negro era famoso por seu gosto por mulheres, vinho e jogos de azar, não
sendo, com isso, um líder muito respeitado. Nessa época, há registros de diversas
revoltas locais e boatos de um levante de alguns chefes, o que preocupava os guerreiros
mais próximos de Aelfin. Apesar de tudo, o monarca sem responsabilidade era leal e
carismático, sendo bem lembrado na “canção dos grandes chefes”. Sem que fosse
preciso nenhuma mobilização por parte dos descontentes, Aelfin morre onze anos após
assumir o poder, de um ataque fulminante durante uma orgia com mais de vinte
mulheres, fato que também consta na canção. Chega, então, o reinado de Wald Quase-
morto, o primeiro a imperar por mais de meio século. Seu mote vem das consequências
de seu ritual de puberdade14, no qual, ao tentar deitar-se com a camponesa escolhida, foi
surpreendido por um lenhador que a pouco a havia tomado como esposa. Furioso, o
lenhador espancou o futuro rei, sem saber de seu status, até que este parecesse morto.
Salvo pelos companheiros, pouco depois, Wald foi levado aos curandeiros, que
conseguiram fazer que sobrevivesse. Uma vez no trono, a primeira ação de Wald foi
tomar a camponesa como serva particular e degolou pessoalmente o lenhador diante

14
Era costume dos guerreiros eladar, quando uma criança atingia a puberdade, ser levada pelo pai para a
floresta, na qual passaria, junto a outros pais com filhos em idade semelhante, uma lua na selva. Ali
aprenderia a ser homem, caçando seu próprio alimento, ganhando suas discussões através da força e tendo
que estar atento para não ser roubado pelos demais. No final desse período, os meninos vão até uma vila
distante da sua, escolhem uma camponesa e a estupram. No fim, devem dar um cordão com o nome da
vila e da família à camponesa, pois caso esta engravide, deve levar o filho até lá.
dela. Não só o início de sua vida foi marcado com sangue, mas seu reinado como um
todo foi conflituoso. Franzino, sardento e de péssimo temperamento, Wald deixava um
rastro de mortes e estupros em todas as vilas que visitava. Apesar de seu caráter, era um
exímio jogador de anaudur15 e isso se refletiu em suas estratégias políticas. Vendo que
seu poder era ameaçado constantemente pela vontade dos chefes, que não aprovavam
seu comportamento sanguinário, Wald fez um acordo que fiou conhecido com acordo
do quarto pico: foi até o território dos vadar – mais precisamente no Quarto Pico – e
ofereceu a seu líder uma série de vantagens econômicas em troca do assassinato da
linhagem dos antigos chefes. Além de técnicas muito mais avançadas de metalurgia,
agricultura e arquitetura, Wald oferecia a chance dos vadar se vingarem pela restrição
das terras. Poucas luas depois Wald se tornava senhor da única linhagem nobre dos
eladar, entregando o controle das grandes cidades a parentes próximos. O cruel
imperador viveu até os 65 anos e nunca padeceu de uma única doença, gozando todos os
prazeres da vida. Conforme dizem as lendas, porém, a vida de crimes e traições de Wald
lhe custaria sua maior conquista. Foi no fim de sua vida que se deu o maior surto da
Peste do Vento-oeste, que sufocava em sangue suas vítimas após alguns dias de
contraída. O imperador nunca contraiu a doença, mas todos os seus dezessete filhos
morreram, um por um, até os bastardos caíram. Com a morte de seu filho mais novo,
que ainda não havia nem sequer ganhado mote, Wald cai em desgosto e morre. Há
tentativa de botar dois de seus netos no poder, enquanto os generais cuidam de um
império apodrecido, mas ambos morrem em poucos anos: Cyner com 10, após três anos
de reinado, e Wigbern com 7, após 2 anos de reinado.
É já no fim do século V que se inicia o reinado de Ragnir Forjador-de-guerreiros.
Apesar de possuir a mesma resistência de seu tio Wald, Ragnir é um monarca bem
distinto. Cresceu ao lado do pai, aprendendo a lidar com os problemas de uma cidade
que havia perdido seus chefes tradicionais e desejava a cabeça de Wald e qualquer um
de seus parentes. O pai, porém, soube manejar a situação e ser bem quisto pelo povo,
fazendo com que Ragnir soubesse a importância do apoio popular. Em seu reinado
houve uma clara melhora na qualidade de vida de Sdóryör, com investimento na
produção de ferramentas e desenvolvimento de tecnologias de plantio. A explosão
econômica gerada por ele culminou na cunhagem das primeiras moedas e no surgimento
15
Jogo de tabuleiro famoso em Sdóryör, no qual cada jogador escolhe um deus e o movimento de suas
peças se baseia nas características desse deus.
das primeiras grandes cidades do continente, com mais de dez mil habitantes. Essas
cidades, hoje perdidas pelas sucessivas guerras que assolaram o continente, eram
construídas em grandes planícies e possuíam altas torres que visualizavam qualquer
inimigo há uma grande distância. Além do milagre econômico, Ragnir possibilitou a
criação de novas e eficientes estradas que conectavam essas grandes cidades,
aumentando o fluxo de pessoas e criando certa miscigenação. A partir dessa época
começou uma progressiva diferenciação entre as etnias vadar e eladar em Sdóryör. Com
a chegada da velhice, Ragnir perde a razão e é afastado do poder, dando lugar a seu
filho Kori Voz-divina. O novo regente de Sdóryör segue uma via diplomática e, mesmo
levando em conta o legado unilateral legado por seu tio-avô Wald, fortalece a
autonomia econômica das províncias, aquecendo o comércio interno e aumento as
entradas do tesouro real. Apesar de ser um bom político, a arte era sua verdadeira
paixão e com frequência partia em caravanas para apresentar-se às cidades em grandes
festividades. Foi um dos maiores patrocinadores da arte antiga, promovendo um
momento cultural ímpar, denominado posteriormente de Florescimento, que perdurou
até finais do século seguinte. Nas artes plásticas, predominou a presença do Metalismo,
movimento que gravava em relevo em grandes placas de ferro e depois pintava e
passava uma resina sobre o material. As temáticas costumavam envolver os mitos
antigos, como os primeiros povos e os deuses criadores. Na música, surge o canto
koriano, inaugurado pelo próprio rei, no qual era necessário um cantor com uma voz
muito afinada e potente, que se fazia uma melodia pautada por um coral harmônico de
trinta vozes que repetia sequenciadamente o mote da música. É nessa época, também
que se populariza uma técnica de notação econômica usada desde a cunhagem das
moedas no século anterior. A escrita surge então graças a difusão das tabelas comerciais,
pequenas placas de madeira que indicavam com um símbolo diversos bens de troca e
quanto eles equivaliam em moedas. Desse modelo, por um lado, surgem os rudimentos
da matemática, que só vai encontrar força teórica com a chegada dos cientistas de Luxor,
e a escrita, que se utilizava dos sons das matérias primas representadas para reproduzir
através de seus símbolos a fala. Dessa forma, o som F era representado pelo símbolo de
carne (Do antigo eladari Falskz). É importante ressaltar que o sistema de escrita de
Sdóryör não apresentava vogais até a entrada da cultura de Luxor no continente. A
primeira representação artística escrita é o Daghaz Bokie, uma coleção de diálogos entre
os deuses e suas primeiras criações.
O espírito nômade do rei o levou apenas doze anos após sua coroação a uma
morte prematura devido à picada de uma serpente. Deixando para trás um reino
próspero tanto econômica quanto culturalmente, seu filho Aelpher Belo-como-a-lua. O
jovem monarca assume com doze anos e sua beleza o torna um rei cobiçado por todas as
damas do continente. Seu amor, porém, direcionou-se apenas a uma mulher, sua irmã
Aelpha Luz-das-estrelas. Conseguiram esconder suas paixões secretas até que ela
engravidou ainda sem casar, e para protegê-la da morte, Aelpher assume ser pai da
futura criança. Tomados por um furor proveniente de tal heresia, o povo clama a morte
do rei e de sua irmã, mas graças ao carinho tido por esta pelos líderes locais, consegue-
se que apenas Aelpher morra. Alepha, após o parto, passa o resto de seus dias num
templo retirado e dizem que ficou viva para ver a morte de seu próprio filho. Aedel é o
primeiro rei Eledar a já nascer como tal, sendo criado por um conselho especial até que
cumprisse oito anos, quando é coroado. Um garoto brilhante e de grande beleza, o novo
rei conquista a população apesar do passado que o antecede. O passar dos anos, porém,
revelou as consequências do erro de Aelpher: Aedel, após alcançar o oitavo ano de vida,
parara de crescer. Eternamente criança, Aedel era visto por uns como a própria
reencarnação de Andil, o que lhe valeu o mote filho-de-Andil, outros, porém, o viam
como uma aberração e seu reinado uma ofensa aos deuses. Foi durante seu reinado que
uma das maiores descobertas da história antiga de Sdóryör ocorreu: Num planalto da
região atual de Prada encontrou-se um templo antigo, distinto de qualquer cultura já
vista e nele, sete estátuas menores que rodeava uma muito maior. O local era revestido
de estranhos hieróglifos, restos de vasos pintados e peculiares tumbas. A descoberta,
atraindo cada vez mais curiosos, que vinham por rumores de sorte, poderes místicos e
sabedorias além do conhecido, acabou criando uma cidade em volta dela, chamada
Gaerth. Além do local das estátuas, aos escavarem para fazer as fundações de novas
construções, os habitantes perceberam que havia uma série de construções de um velho
templo soterradas. Nessas paredes, estranhos hieróglifos foram encontrados e decifrados
das mais distintas formas por anos, até que um sacerdote ancião disse haver sonhado
com o significado dos símbolos, que escreveu no diálogo último de Eladur:
“Assim fala, pela sabedoria de Andil, no crepúsculo da era dos antigos deuses, Finnr O-
que-sabe, filho de Halfan, com os deuses antigos:

- Finnr O-que-sabe, filho de Halfan, és escolhido, dentre todos, para acolher as palavras
últimas dos imortais. Tu, que muito proferiste em nosso nome, no dia de hoje, ouvirás o
que estar por vir e de tudo serás testemunha para os povos de tua terra.

- Este que vos serve ouve e obedece.

- Eis que o mundo cresceu, e pela sabedoria de Andil e por minha prosperidade o povo
não mais vê e louva nossa obra. É chegado o tempo previsto em que minha chama se
apagará e dará lugar ao tempo de Gul, onde os homens se afastarão de suas raízes
seduzidos pela luz do ouro e do calor da guerra.

- Este que vos serve pergunta como deve proceder, benevolente criadora.

- É sabido que sob o signo de Gul os homens, como nós, criarão e, seduzidos pelo poder
divino que lhes será legado, abandonarão os deuses criadores e abraçarão a novos
deuses, seres de ouro e de guerra.

- Deve este, boa mãe, trabalhar para impedir, então, o surgimento daquele que vos
tentará destronar?

- De forma alguma, servo meu, deverás tomar o destino divino em tuas mãos. Está
escrito nos cabelos eternos de Andil o tempo em que aquele-que-é-sete se levantará e
escrito também está sua queda. O espiral cumpre, assim, mais uma volta e caminha em
direção ao tempo último, onde o Sem Nome tudo há de devorar.

- E como este que vos adora pode servir ao progresso de seu povo, então, grandiosa
divindade?

- Eis que vos será dado o dom de ler o que foi escrito pela mão de um passado que nos
até anterior e só a ti será dado o poder de dizer o que é sim e o que não. Por tua voz
muitos prosperarão e outros muitos cairão em desgraça e imperadores virão por tua
sabedoria. Aquele-que-é-sete representa o homem, que é muitos em temperamento e
inconstante em vontade. Como um mortal, não se saciará com o que lhe é levado a boca
e a tudo buscará em sua eterna sede. Será um tempo de liberdade, pois, sem a tradição, o
homem agirá por suas leis e Aquele-que-é-sete, punirá o justo e agraciará o injusto ao
seu prazer, pois, como aquele que é carne, verá sua justiça acima da justiça maior. Só tu,
sacerdote, será capaz de entender suas palavras truncadas e seus atos sem sentido. Só tu,
servo humilde, poderás dar autoridade àqueles que sob teu nome hão de ecoar as
verdades da sabedoria turva que se espalhará. E chegará o dia em que aquele-que-é-sete
voltará a ser um, quando o sangue que verte da terra escorrer em pranto profundo e tudo
que é mortal temer a morte, quando o mundo encolher e todos os povos forem um, eis
que ele será o portador do dia último, e gritará pelo Sem Nome e este o ouvirá, e haverá
neste dia pranto em toda terra, e o silêncio da morte de tudo a tomará. E a escuridão
dará lugar ao tempo além da sabedoria de Andil, a era dos homens-sem-deus,
condenados ao pesadelo de sua própria vontade.” (Diálogo último de Eladur, excerto I,
pergaminho sagrado do século VI, atualmente parte do tesouro Incarna na Câmara de
Carnatti).
Após a revelação, levando em conta a influência que Finnr possuía dentro do
enigmático sacerdócio dos deuses criadores, a cidade quase inteiramente rendeu-se
àquela mensagem. Nos anos seguintes, o local dobrou de tamanho e chegou a triplicar
de população, tornando-se, em pouco tempo, um milagre econômico que desbancou as
melhores investidas comerciais de Ragnir e Kori. As estátuas antigas, renovadas,
representavam, então, as sete faces de um deus confuso, imprevisível e caprichoso,
cujas vontades excediam qualquer capacidade mortal e que, desde seu início, já havia
condenado a humanidade à total destruição. A religião d‟Aquele-que-é-sete expandiu-se
com eficácia pelas cidades minguantes e não tardou a chegar aos ouvidos do monarca.
Filho-de-Andil, que então portava cabelos longos e negros, em representação a seu deus,
havia se tornado um devoto de fé inabalável e, diante da disseminação do que via como
a loucura de Finnr, iniciou uma campanha militar para trazer fim a Gaerth e Aquele-
que-é-sete. Contando apenas com soldados voluntários da região, o sacerdote falou que
não temessem. Ainda assim, muitos fugiram do planalto no qual a cidade se encontrava,
sendo mortos por batedores de Aedel. Após dias de marcha pesada, milhares de
soldados alcançavam os pés das colinas que levavam a Gaerth, acampando na vastidão
do que atualmente se conhece como território de Gramado. Na primeira hora da manhã
da vadarth16 os sóis encheram-se de sombra e frio e neve trouxeram a Sdóryör a maior
nevasca já registrada na antiguidade. Ainda assim, os soldados de Aedel conseguiram
alcançar Gaerth, que foi reduzida a escombros antes do fim do dia. Os relatos indicam
que, ao ver as cinzas pairando sobre a cidade, Finnr finalmente entendeu que Aquele-
que-é-sete não o protegeria do que estava por vir, e que era necessário lutar para mostrar
ao mundo que os mortais estavam, então, por conta própria.
Reduzido a um pequeno grupo de fiéis seguidores, o sacerdote do novo deus viu-
se obrigado a buscar asilo político para não ser morto pelos batedores de Aedel.

16
Chamado atualmente Vardi, equivale a um longo período do ano de frio e de seca para os crônios. É
seguido por Edardi, o tempo do calor e das chuvas.
Conseguiu abrigo numa fazenda da outrora poderosa família Egon, grandes chefes de
todo o minguante de Sdóryör nos primeiros séculos. O patriarca da família, Horen, que,
então, era um dos conselheiros de Aedel, vira naquela fé cega que o povo havia
adquirido em tão pouco tempo pela magnética figura do sacerdote iluminado uma
oportunidade de restaurar a importância de sua linhagem com um golpe certeiro nos
pilares da dinastia de Aelfin. Não se sabe como foi feito, ou se de fato foi um plano de
Horen, mas, passado alguns dias, Aedel embriagado pela vitória sobre Gaerth, intitula-
se não mais filho-de-Andil, trocando seu nome para Andil, o iluminado, e pede por
adoração. O fato movimenta a sociedade eladar, que se vê forçada a romper com as
tradições ancestrais e dobrar-se em adoração a um mortal, como bem sabiam. Diante,
porém, das pontas de lança do exército de Alderin, cada cidade assumia o rei-criança
como a encarnação de Andil. No ano seguinte, já tendo as cidades eladar em adoração,
iniciou sua jornada às terras dos vadar, clamando que também eles deveriam reconhecer
seu estatuto divino.
Durante o forte vadarth que afligia Sdóryör, os vadar iniciaram um período
intenso de exploração ultramarítima, aproveitando a escassez de ventos fortes e chuvas,
que tornavam a viagem naval quase impossível para a tecnologia da época. Durante o
sexto século, conhecido entre os vadar como a Era das Ilhas, os grandes conquistadores
(como Glakir, o cruel, e Sigur, o auroque branco) foram responsáveis pelos primeiros
contatos de Sdóryör com as ilhas nascentes, conhecidas por eles como Hgormak, a
serpente, pois criam que as ilhas eram, na verdade, parte das costas de uma grande
serpente que protegia Sdóryör. Nessas ilhas, diferente de Elisya, que era um território
desabitado, viviam homens bronzeados, ainda em estágio primitivo, dotados apenas de
lanças de madeira e arcos rudimentares. Dóceis, em sua maioria, foram levados como
tributos em tamanha quantidade que, durante a chegada dos aetherius, poucas tribos
haviam sobrevivido. Os ilhotas trabalhavam como escravos dos vadar, coletando
matéria prima, caçando, construindo e cuidados das crianças e mulheres. Sempre, porém,
que um dos escravos deitava com uma vadar, os guerreiros estupravam ambos e os
entregavam à “prova branca”17 junto com outros infratores. Os vadar, que sempre foram

17
Consistia num hábito ainda hoje presenciado em alguns pontos de Glaciar no qual os punidos são
obrigados a permanecer em um cubículo fundo escavado na neve, sem roupa ou comida. A única forma
de um deles sobreviver a matar os demais com as próprias mãos, comer sua carne e vestir a sua pele. Se
ao fim de uma semana, aqueles que estão vivos são libertos para viver nas florestas ou tentar asilo entre o
povo fraco, os eladar.
um povo pouco numeroso, com o auxílio da mão de obra abundante e de baixo custo,
prosperaram de forma ímpar, formando grandes cidades-fortes nas encostas rochas de
Glaciar. Apesar de haver pouco atrito com o território eladar, os vadar guerreavam com
frequência entre si, uma vez que o poder era estabelecido por meio da força em grandes
batalhas cerimoniais e sagradas. Tendo um excedente de matéria prima, desenvolveram
máquinas artificiosas de sítio, das quais a mais famosa é o kasteldur, uma grande
Grimmja18 esculpida em madeira e ferro, com um dispositivo que disparava grandes
jatos de óleo inflamado sobre os oponentes.
Ao ver o exército de Alderin em território vadar e descobrindo suas aspirações,
Toph, o insano, convocou seus generais e convidou Aedel para que uma cerimônia fosse
feita em sua homenagem na praia sagrada dos vadar, na costa poente de Glaciar.
Seduzido pela honraria, o rei foi levado ao local, uma praia esculpida entre grandes
paredes rochosas, cujo acesso é estreito por uma trilha montanhosa e íngreme. Uma vez
que Toph não era acompanhado por mais que seus generais e uma pequena comitiva de
guerreiros, todos seguiram sem mais precauções até a praia, onde Eadmur narra: “Ao
descer de uma escarpa escorregadia e demasiado inclinada, pudemos contemplar uma
visão digna de Eladur. O mar era formado por uma água translúcida como o gelo fino e
podíamos ver nele peixes coloridos e outros animais. O líder dos homens das montanhas
mostrou ao longe as lendárias Blomja banhando-se nuas em uma rocha. Como crer
senão vendo, a verdade indizível que se abria sob meus olhos. Como um infante, cri nas
histórias e vi que são, pois, de verdade. Parecem mulheres, mas a pele é como a madeira
clara dos castanheiros minguantes e os olhos tem a cor e o brilho das pradarias no
primeiro dia de eledarth. Há, porém, nelas uma tristeza grande no corpo, pois não se
movimentam muito e levam a cabeça sempre baixa. O cativeiro de Grimmja lhes deve
ser uma tortura. Que vontade de salvá-las dá ao homem! Mas bem sabe-se que o
primeiro a aproximar-se pode ser levado pela besta-mulher e perder seu membro viril!
(...) Os preparativos para a grande cerimônia são muitos. Ver um autêntico descendente
da linhagem dos guerreiros-reis vadar ajoelhar-se perante nosso soberano e jurar-lhe
lealdade é inacreditável. Como prometido, nenhum soldado guarda a região, que tem
apenas um grande número de servos cobertos por pelos grossos. Estranhos a presença

18
Besta do folclore vadar, a Grimmja era uma mulher gigante que cuspia fogo pela boca e devorava o
membro masculino para dar a luz às Blomja, mulheres belíssimas e eternamente jovens, que serviam de
chamariz para que Grimmja atraísse mais homens para saciar seu apetite.
de um povo minguado entre eles, sempre corpulentos, mas nos indicaram que eram
tribos mais fracas, que a vida pastoril havia corrompido o sangue nobre dos antigos.
Além de grandes animais sacrificados para a festividade, entre eles auroques, cabras-de-
montanha e até um vaengstor19 adulto. Quatro grandes estátuas foram dispostas perto da
encosta, com rostos que parecem ser de mulheres, adornadas com chapas de bronze e
panos coloridos. (...) Perdoem-me a letra, os que lerem tal relato que darei agora, mas há
pouco tempo sobrevivi de um terror que me faz tremular até agora. O rei selvagem traiu
a confiança de nosso líder, usando de feitiçaria para fazer que as estátuas ganhassem
vida e vomitassem fogo sob o rei e sua tropa. Eu tive meu braço queimado, mas fui
salvo por um dos generais desse povo bárbaro, que me manteve vivo sob o juramento de
narrar o que foi acontecido aqui. Redijo a seguir suas palavras, tal como foram ouvidas
e sem nada nelas alterar: Eu, Toph, o insano, proclamo ao povo fraco que um novo
tempo se ergue. Não mais há, entre nós, aqueles que um dia quiseram resguardar-se nas
montanhas, temendo o sangue fraco que se esconde atrás do metal duro. Somos, agora,
ferro e fogo, somos o povo que tomou o dom de Gul e reduziu seu divino regente a pó.
Escondei-vos nas casas de pedra e atrás do metal, pois os ventos de Vadur soprarão em
breve sob suas casas e tomarão a vida de seus filhos e de suas mulheres. Preparai-vos,
povo dos sóis e da fartura, pois dos picos gelados descem àqueles que sobreviveram ao
sopro da Coruja Branca e trazem o coração gelado e os olhos em chama.”
A morte do rei-criança foi o estopim para uma grande revolução no poder em
entre os eladar. Sem filhos, esposa ou irmãos, Andil deixou o trono sem um herdeiro
apropriado, fazendo com que um momento de grande instabilidade política e econômica
tomasse conta de boa parte de Sdóryör. Tendo em vista a demonstração de poder e
crueldade de Toph, os eladar não estavam dispostos a iniciar uma guerra civil em busca
do poder, deixando em suspenso a administração do reino em prol do fortalecimento do
poder local. Com o apoio financeiro e político de Horen de Egon, Finnr iniciou a
“marcha sem fim20”, na qual percorreu a pé, sem paradas, cada cidade e vilarejo de

19
Lagarto alado das montanhas altas de Sdóryör. Tem tronco curto e semi-ereto, seguido de uma longa
cauda. A envergadura da asa pode chegar a quatro vezes o tamanho do corpo. Possuem escamas de
diversas cores e são carnívoros, preferindo presas pequenas, como coelhos, raposas e ovelhas. No
tamanho adulto chegam a comparar-se, em corpo, a um tigre adulto.
20
Termo encontrado no primeiro rolo das escritas sagradas do gaarthismo, conhecido como Verdades.
Além deste, o livro sagrado d‟Aquele-que-é-sete inclui, por ordem: Sabedorias, Revelações, Martírios e
um livro perdido – ou nunca escrito – chamado Visões. “Marcha sem fim” segue a tradução do filólogo
Sdóryör, jornada que durou mais de trinta anos. Durante esse tempo, podemos ver uma
delineação de três grandes blocos de poder: O território dos grandes generais, região ao
crescente de Sdóryör na qual as tropas de Andil eram treinadas e, após sua morte,
passaram a dominar; O frágil território do centro-nascente, sem unidade política,
entregue tanto a pequenos ataques de bestiais e pequenos grupos vadur quanto a
extorsões de bandidos e outras vilas; e por último a região minguante, de forte
influência da família Egon e dos crescentes seguidores d‟Aquele-que-é-sete. Ao fim do
século VI, enquanto os vadar expandiam lentamente suas fronteiras, o antigo reino de
Andil havia se tornado um território recluso.
O sétimo século começa alguns anos após o fim da peregrinação de Finnr, e o
minguante, território inicial de sua caminhada, já podia ser considerado uma região
gaarthista. Imitando a disposição das estátuas originais e procurando uma arquitetura
que refletisse a tensão da nova era que se aproximava, ergueram-se templos de pedra
escura e cômodos estreitos, labirínticos, com grandes arenas subterrâneas para rituais de
martírio. A morte de Andil não significou apenas o fim da nobreza eladar, mas o próprio
fim dos deuses antigos, uma vez que – mesmo que a maioria não acreditasse em sua
divindade – o menino representava a fé em seu mais alto grau. Havia, porém,
principalmente entre as vilas do interior, um povo que não foi atingido pela tormenta
política que se deu nas grandes cidades, seguindo a vida da mesma que forma que se
fazia há mais de três séculos. Para tais pessoas, o surgimento de uma nova divindade era
não só uma imensa sandice como também uma afronta ao poder dos deuses criadores.
Os sacerdotes do interior convocaram, então, entre as vilas, homens dispostos a
defender os valores da moral e fé que fundaram os eladar, juntando, de pouco em pouco,
um verdadeiro exército. Conhecidos como “Iluminados”, pois carregavam grandes
archotes em homenagem a Eladur, esses homens se dedicavam a pregar a antiga fé,
alegando que a força dos deuses criadores poderia subjugar qualquer falsa divindade e,
para provar isso, matavam qualquer um que afirmasse a fé n‟Aquele-que-é-sete.
Inicialmente, o gaarthismo não se opunha diretamente a crença nos deuses criadores,
vendo-se como herdeiro do legado divino, porta-voz de uma nova era. Com o avanço do
extremismo dos Iluminados, foi necessário, porém, o combate a uma contra-expansão
da velha fé. Com isso, proibiu-se, nas cidades maiores, qualquer tipo de símbolo ou ato

aetheri do K3, Megadris Andrei, que grafa Athelei Porei. Na tradução crônia encontrada na biblioteca real
de Carnatti vemos menção a “Marcha ao fim”, segundo o termo em crônio antigo Iter ad finitex.
de adoração aos antigos deuses, punindo com mortes cruéis àqueles que se
desobedeciam as normas.
As crônicas não se aprofundam em motivos, porém, em meados do século VII, a
família Egon convoca uma reunião em Carnatti com o intuito de resolver a sangrenta
disputa que se travava entre os fiéis das duas religiões. Herling, filho de Horen, de Egon
é anfitrião de Wolki de Aedin e Edwil de Guden. Wolki é um ancião que serviu aos
interesses de Aedil e representa o conservadorismo no crescente, enquanto Edwil é um
oportunista de família servil que cresceu alimentando-se dos despojos deixados pela
guerra religiosa junto a um progressivo número de homens de pouco escrúpulo e muita
ambição. Conjecturamos que Herling já havia se preparado para convencer os homens
de que era crucial abandonar a velha fé, uma vez que o gaarthismo, por romper com a
tradição, possibilitava homens sem sangue real, como era tanto o caso do general Wolki
quanto do ex-ferreiro Edwil, a ascenderem à nobreza. Herling ganhava com isso a
influência de ter todo o reino sobre uma fé que fora incentivada desde o começo por sua
família. Ao fim de longos quatro dias de debate, os mensageiros foram enviados às
cidades do interior, os velhos deuses estavam mortos. Os iluminados foram cercados
numa cidade do interior minguante, enquanto repousavam de um saque a um templo
gaarthista, dizimados pela tropa pessoal de Herling, armada com ferro crescente.
A presença dos iluminados ainda perdurou por algumas décadas em movimentos
menores, só desaparecendo dos registros por volta da oitava década do século sétimo,
quando vemos os últimos altares aos deuses criadores derrubados. Oficializam-se nessa
época também os estados do reino trino, composto Egohem a minguante, Aedinshir a
crescente e Gudswur no centro-nascente. A arte teve uma queda brusca em relação aos
séculos anteriores, sendo limitada a produção dos cânticos de claustro (que eram
cantados pelos sacerdotes gaarthistas durante seus afazeres, sempre de muita variação
melódica e poucas palavras 21 ) e às esculturas com as mais diversas representações
d‟Aquele-que-é-sete. A economia, por sua vez, por mais que representasse uma melhora
em relação ao século anterior, mal conseguia manter a subsistência do povo e a fome era
um espectro constante no cotidiano da plebe.
Por mais que, de fato, Herling contasse com a influência no sacerdócio
gaarthista, não era um verdadeiro devoto na fé d‟Aquele-que-é-sete e pouco parecia
21
Um exemplo seria oh wersuh ewik, que repete o título seguido dos versos “Dzie mie oferlekin” e “un is
geunen” ao longo de uma composição com quase um quarto de hora.
saber sobre seus planos. Crendo administrar a expansão segura da nova fé, não percebeu
porém que os sacerdotes devotos mostravam-se tão imprevisíveis quanto seu deus. Nos
primeiros anos do século oitavo, após uma temporada de secas que desestabilizou o
interior e causou revoltas camponesas em diversos pontos do reino-trino, o sucessor de
Finnr e compilador dos tomos sagrados garrthistas iniciou uma campanha missionária
na região glaciar dos vadar. Mesmo lamentando a perda de uma figura com tal
influência, Herling nunca imaginaria as consequências que traria tal peregrinação.
Fragmentos dos relatos de Dorarin, herdeiro de Finnr, nas terras vadar podem ser
encontrados nas “crônicas do Refúgio de Egon” escritas no século IX por um sacerdote
anônimo: “Pela ventura d”Aquele que me permite viver, passo à letras meu trajeto pelas
terras gélidas dos vadar. Quando criança, nas cidades, aprendemos sobre montanhas
nevadas além de nossa fronteira, terra mágica de Danbeegs22, craniths23 e grimmjas.
Estando, porém, eu em tais terras, não pude ver mais do que a neve, o frio e a fome.
Andei por semanas por uma estepe desolada e já em estado malsão implorei abrigo em
vila próxima. Os homens da neve acolheram-me em primeiro momento, dando-me um
guisado espesso de uma carne escura com cerveja. Em seguida, contudo, fui atirado a
um poço fundo, no qual pude ver outros que, como eu, haviam sido aprisionados.
Apresentavam uma pele doentia, poucos dentes e muitas marcas de cortes no corpo.
Não falavam a língua humana, comunicando-se em palavras soltas e animalescas. Passei
a noite em claro, meditando nas provações que Ele me fazia passar, cativo em terra
estranha. Só soube que era dia por uma fraca luz que chegava ao fundo, junto a uma
corda. Um prisioneiro com roupas mais grossas e menos doente desceu e gritou em
língua deficiente, como as crianças fruto do incesto, para que subíssemos. Aquele-que-
é-sete reservou-me um dia de trabalhos forçados e golpes de vara. Tive dois dedos
quebrados durante o espancamento e perdi um dente. Entendi, enquanto sofria, que, para
Ele, não vale mais minha vida que a vida do mais miserável escravo, que se estive em
posições de importância, comendo da melhor carne e das melhores infusões foi puro
capricho seu, sem merecimento algum ou qualquer garantia de segurança. Trabalhei nas
piores condições até que Ele quisesse mudar meus rumos. Após uma lua em sofrimento,

22
Criaturas pequenas, curvadas e de sorriso maligno, aproveitam as noites sem lua para roubar comida e
fazer travessuras.
23
São criaturas enormes, gordas e peludas, que se alimentam de árvores inteiras., comendo copa, tronco e
raiz.
já entregue a uma profunda doença no peito, homens do rei-das-montanhas passaram
por lá e perguntaram ao homem que me aprisionou como mantinha um escravo do
povo-fraco com ele. Ouvindo, gritei que era o grande sacerdote d‟Aquele-que-é-sete,
que trazia boas novas de outras terras e que meu deus desejava mostrar a verdade ao
povo-das-montanhas. Os soldados me levaram com eles e após dias amarrado ao lombo
de um grande e resistente boi de condução, cheguei a uma vila mais populada, mesmo
que igualmente primitiva. Possuíam muros, torres e armas de guerra, mas por dentro
havia mal construídas, sem iluminação ou ventilação. Nenhuma fonte e muitos animais
passando por todos os lados. Um constante cheio de urina e fezes tomara o ar e os
homens gritavam por todas as partes. Era, porém, quente, devido às diversas fogueiras
acesas pela cidade. Lá fui recebido por Hrol, o mata-bois, herdeiro militar de Toph, o
insano. Um homem largo, cujo punho era possivelmente do tamanho de minha cabeça,
parecia mais um lenhador que um rei. O homem não acreditava em minha fé, dizia não
fazer sentido um deus que nada tem a oferecer. Eu disse, porém, que Aquele-que-é-sete
oferecia sabedoria, uma nova forma de ver e viver o mundo. Ele não acreditou. Para
provar a um homem tão rústico uma verdade tão profunda quanto a que Ele nos dá, era
preciso algo mais impactante. Disse-lhe que meu deus ensinava aos homens a serem
fortes, a ignorarem o sofrimento terreno e tirarem dele a sabedoria. Para provar, pedi um
machado e com três golpes, pois não sou guerreiro e tampouco estava em boa forma,
arranquei minha mão direita, oferecendo como tributo ao rei. Os soldados riram de mim,
mas o rei percebeu no fundo dos meus olhos que eu estava acima da dor e de perda, que
eu havia tirado minha própria mão boa como quem lança uma pedra ao rio. Ele queria
aquele poder. Dias depois iniciava a construção do primeiro templo d‟Aquele-que-é-sete
nas terras nevadas”.
A primeira metade do oitavo século é conhecida como “O último silêncio”, uma
vez que é considerado o último período de paz da história antiga de Sdóryör. Nessa
época, os reino-trino prosperou e encontrou estabilidade econômica através de uma
retomada das rotas comerciais, que foram possíveis graças a um momento de tensão no
território vadar. Mesmo que Hrol, o mata-bois, tenha aprovado a nova religião entre os
vadar, não possuía fé de um convertido, mas o interesse e a ambição de monarca
guerreiro. Diante da missão de converter o povo vadar a um deus estranho, sem
conhecer bem palavras, afundou em uma tentativa de opressão que culminou em sua
morte por consenso. Uma de suas filhas, porém, Fridniss, a vadarthur24, passou boa
parte da infância ao lado do sacerdote, tornando-se, quando mais velha uma devota fiel,
que unia a cultura guerreira dos vadar aos ideais do gaarthismo. Após a morte do pai,
requisitou um torneio com os generais que poderiam tomar o poder, saindo vitoriosa
após a perda de um olho. A história posterior a sua ascensão ao trono vadar é contada
através da Lot vardarth hothur, um poema de guerra que narra a guerra travada entre os
vadar e os eladar durante o século oitavo. Visto que a fonte mais confiável de acesso a
informações dessa época é o próprio poema, reproduziremos aqui uma de suas
traduções ao crônio, retiradas de um estudo do linguista arzi Mrkel‟Zi‟Syr durante o K3.
Tal tradução, por não ter fins artísticos, desfaz rima e métrica, mantendo apenas a
estrutura dos versos. As notas mais importantes foram mantidas para facilitar a
compreensão de alguns pontos:

A balada da rainha de vardi

Dos topos gelados do mundo


Onde reina a soberana guerreira
Eu, Annafin25, peço vossa atenção
Para cantar as proezas e glórias
Do dia em que os vadar, grandiosos,
Tomaram o mundo dos fracos
Levando o medo, o ferro e o fogo,
Até o sdorbleror26 tempestuoso.
De Nmorgun27, desde sempre,
Filha com fervor devota,
De bravura ímpar, ainda moça,
Ao ver o patriarca em derrota,

24
A terminação –ur na antiga língua vadari era utilizada para definir “aquele que faz” ou “aquele que traz”
ou ainda “aquele que porta, exibe”. Um grande guerreiro poderia receber o epíteto Hothur, que significa o
vitorioso e é usado para designar um líder ou o rei. A tradução literal, porém, viria de Hoth, cabeça, e a
terminação –ur.
25
Era comum, na poesia de guerra crônia, que o poeta identificasse a si mesmo como Annafin, ou aquele
que não possui nome, como forma de recusar glórias pela escrita em prol da glória da vitória cantada.
26
Nome dado aos mares do nascente de Sdóryör.
27
Aquele-que-é-sete na língua vadari.
Tal como ordena o-que-é-muitos,
Ergue o rosto, ao destino sorri,
E aos que a carcaça ainda quente
A carne morta disputam, feras,
Com a placidez que um lago emana,
A Hothbardak28 , destra, disputa,
E de árdua luta sai em vitória.
O preço, porém, seu deus já clama
Da dama um olho, por punhal tirado,
Aclamada, então, por todo o povo,
Segue Fridniss por sua jornada.
Cidade por cidade, vila por vila,
Todo povo presto conhece,
A rainha de vardi fala a quem ouve
Espada àquele que lhe desobedece.
Os velhos deuses, em chamas, então,
Sucumbem aos pés da vasta montanha
O povo sob as asas29 de Nmorgun, o sete
Marcham sob os cornos de um som um
E um são em vida, marcha, guerra.
Ao ver os vadar, arma em punhos,
Nas casas de pedra de escondem
E a chama, negra, alto dança,
E leva, do povo fraco, em fumo e alma
Sua frágil e inútil tranquilidade.
Dos três que um querem ser,
Eladar monarcas de um reino fadado,
Atrás dos brasões e escudos,
Os crescentes de Aedin, soldados,
Em guerra entram confiantes de si
E lutam e tentam, mas sucumbem ao fim.
28
Combate cerimonial que determina o líder de um grupo.
29
A caracterização mais aceita entre os vadar era a de um colossal vaengstor.
As cabeças dos nobres cortadas,
São mandadas a casa de Edwil,
Que, em ódio, com bandidos e putas,
Puxa caminho em busca de sangue.
Como onda já fraca nas rochas,
Gudswug quebra diante dos vadar,
E o povo gelado, já marcha,
Preparai-vos, povo minguante,
Que os olhos e peitos sedentos,
Mal podem esperar vosso sangue.

A configuração política de Sdóryör após a jornada de Fridniss havia mudado


bruscamente: com um território vadar triplicado, por primeira vez o povo das
montanhas detinha a maioria do continente. O crescente de Sdóryör, antes lar do clã
guerreiro de Aedin, mesmo com preparação militar e um exército considerável, caiu por
despreparo diante das tropas de Fridniss. A arquitetura das grandes cidades eladar
favoreciam a defesa, com grandes muralhas de pedra protegidas por arqueiros. Os vadar,
devido ao costume de escalar montanhas, utilizavam cordas e ganchos de metal para
ultrapassar sem dificuldade os muros eladar. Tendo acesso às riquezas minerais que o
crescente de Sdóryör possui, a produção de armaduras e armas de assalto triplicou, e os
barcos de escravos, em vez de dar a volta no continente para desembarcar no território
vadar, podiam agora, fazê-lo no litoral nati-crescente, o que aumentou
consideravelmente a mão de obra. Além dos escravos ilhotas, uma boa parcela da
população eladar trabalhava de bom grado para os vadar, que não interferiam muito na
vida das cidades. A maior parte da população ainda vivia no campo e a parte murada da
cidade abrigava apenas uma nobreza restrita que foi dizimada durante a invasão. Alguns
registros dos templos gaarthistas indicam que a maior dificuldade de Fridniss era
impedir os constantes estupros às camponesas eladari.
Ao ver o resultado do avanço vadar nas terras crescentes, os regentes de
Gudswur reuniram suas tropas e tentaram criar um anel de proteção nas fronteiras nati-
crescentes, pedindo o apoio do clã de Egon para impedir o avanço vadar. Egohem,
porém, optou por não envolver-se na proteção do nascente, preferindo preservar os
exércitos para uma maior resistência minguante. De fato, a proteção dos perímetros
orquestrada de forma amadora por Edwil não durou duas quinzenas. Após perder
inúmeras batalhas menores sem conseguir, ao menos, reduzir um décimo das tropas
vadar, parte do exército pediu clemência e abrigo aos vadar – sendo executados por
traição por Fridniss – e parte fugiu para o litoral. Nyall, filho de Herling, mesmo que
ainda jovem, arquitetou uma forma de atrasar o avanço de Fridniss, enviando pequenas
tropas para incendiar as plantações de Gudswur. Dessa forma, as tropas da rainha vadar,
não tendo suprimentos para avançar pelo nascente, precisaram cruzar a trilha das
montanhas de seu próprio território, ao poente, para alcançar as fronteiras de Egohem.
O resultado foi positivo para os eladar, que não só tiveram tempo de estocar
comida suficiente para enfrentar um longo período de guerra, como, reduziram as forças
do exército vadar, que marchavam sob pouca comida e muito frio. Ao alcançar as
fronteiras de Egohen, Fridniss encontrava-se severamente doente devido a uma infecção
contraída durante a marcha. Em finais do século VIII, mais de vinte anos após a tomada
da capital de Aedinshir, a vadarthur morre ainda donzela, sem, portanto, deixar
herdeiros ao maior reino que o continente já teve. Enquanto o exército avançava na
conquista de territórios, parte dos soldados cuidava da administração dos locais
ocupados e dentre essa liderança, destacam-se, ao final do século, Ing, o negro, e Inga, a
vermelha, filhos de um dos mais importantes generais de Fridniss com a filha de Ívar,
filho mais novo de Wolki. Passando boa parte da vida no território eladar, são a
primeira geração dos Gaarthar30, não mais vadar, por crescerem em um ambiente eladar
e tampouco eladar por herdarem os costumes do povo conquistador, puderam gozar do
melhor de cada reino, aprendendo artes, escrita e arquitetura ao lado das artes da guerra
e da navegação. Sabendo que os vadar nunca se dobrariam diante de uma geração
mestiça como a deles, Ing e Inga, almejando o trono de Fridniss, resolvem planejar um
ousado estratagema para tomar o minguante com um décimo do que as tropas vadar
dispunham.
No começo do século IX, as tropas vadar haviam parado os ataques ao
minguante, uma vez que não só as tropas de Nyall estavam mais preparadas que aquelas
enfrentadas nas últimas campanhas, como também não havia mais uma liderança
definida. Como nenhum general desejava perder a possibilidade de governar tal reino,
30
Como é possível notar, os crônios anteriores ao domínio aetheri nomeavam a si mesmos através do
radical de seu deus patrono (Vadur, Eladur, Gaarth) junto À terminação –ar (sufixo de proveniência)
nenhum criava a coragem de propor a hothbardak. A tensão nas fronteiras fez com que
a maior parte da atenção de Egohen estivesse à crescente da capital, deixando o litoral
pouco protegido. Ing e Inga, então, separaram três dos maiores barcos vadar e rumaram
com sua guarda até uma distância considerável, passando então, a fazer pequenas
viagens em barcos pesqueiros até desembarcar seus homens em território eladar. A
partir de então, pouco a pouco, dirigiram-se à capital como mendicantes, alegando
serem vítimas de ataques vadar. Diferente do povo das montanhas, os gaarthar eram
mais marcados pelo sotaque eladar e mesmo seu tipo físico não se diferenciava muito do
encontrado em Egohem. Dessa forma, após muitas luas de peregrinação, mais de
trezentos homens encontravam-se dentro da capital, trabalhando com pequenos ofícios
ou infiltrados na guarda.
Para o plano ser concluído, era crucial que o pai os ajudasse em uma manobra
algo suicida: deveria juntar o máximo de homens que conseguisse e tentar atacar a
guarda da fronteira, chamando a atenção de Nyall e obrigando-o a deslocar suas tropas
próximas à capital para lá. Para isso, Ing foi pessoalmente até as fronteiras e falou com
seu pai, que os chamou de homem fraco e riu de seu plano. Para um vadar, uma vitória
como a planejada pelo rapaz era inconcebível, uma demonstração de fraqueza. Ing
porém, sem deixar-se abater, pediu o perdão de seu pai e saiu. Durante a noite, ainda no
acampamento, foi até a tenda de Jarni, a voz do trovão. Jarni era o general de maior
destaque para dar continuidade ao reino, uma vez que havia se destacado em cada
campanha que participara, era o favorito dos sacerdotes e possuía certo parentesco
distante com Fridniss. Dizem as lendas que Ing encravou um punhal no peito de Jarni
enquanto ele dormia, fugindo antes mesmo que o sangue tocasse o solo. Ao amanhecer,
encontraram o corpo de Jarni e o punhal, uma peça ornamental que só um general
poderia ter, o que iniciou uma contenda grave entre os líderes vadar. Por fim, Ing
convenceu seu pai a convocar uma hothbardak para defender o nome da família. A luta
seria entre Lefr, o guerreiro do fogo, pai de Ing, e Evindr, o gume da vingança. Sabendo
que Evindr era o mais jovem e, por tanto, havia, como ele, passado boa parte de sua
vida entre os eladar – mesmo que, por seu um guerreiro, seu contato com o povo fraco
fosse muito reduzido – dava menos importância à glória da batalha do que o poder de
ser rei sobre o continente. Ofereceu-lhe, então, em troca de um posto de conselheiro de
batalha, um modo de vencer Lefr. Ing sabia por sua mãe que o pai tinha a visão muito
reduzida no lado direito, de forma que conduzia seu oponente a lutar sempre de seu lado
esquerdo.
Na manhã seguinte, antes de os sóis alcançarem a metade do dia, Lefr estava
decapitado e Ing aconselhava Evindr de investir no vale de Opanfeter. Secretamente,
porém, enviou informações ao exército de Egohem, alegando ser uma nobre de
Aedinshir cativa e utilizada como escrava sexual. Nyall enviou alguns batedores que
confirmaram o deslocamento do exército vadar pelo caminho do rio que levava a
Opanfeter, enviando assim, todas as suas tropas para dar fim à ameaça vadar. Horas
depois da saída das tropas de Egohem, começava a tomada da capital por Inga e seus
homens infiltrados.
No vale, a maior parte da tropa de Evindr foi dizimada em uma das maiores
derrotas do exército vadar desde o início das campanhas de Fridniss. Aproveitando a
moral baixa do autodenominado monarca e a tomada da capital, Ing e Inga, então,
enviam mensageiros aos postos avançados e cidades vadar anunciando que o minguante
caíra perante os novos reis do continente. Sdóryör enfim havia sido unificada.
Durante o restante do século IX, o poder de Ing e Inga se consolidou, conforme
expandiam para o interior a conquista minguante e eram aceitos pelo povo. Legitimados
como guerreiros valorosos pelos vadar e como monarcas mais sensíveis e instruídos
pelos eladar – que viam neles uma alternativa agradável comparada ao domínio dos
“selvagens das montanhas” -, os irmãos gaarthar conseguiram trazer paz e prosperidade
ao continente.
Durante o seu reinado, a expansão marítima possibilitou um mapeamento do
continente e das ilhas principais, criando rotas seguras de comércio que aqueceram a
economia estagnada pela guerra. O acesso às tecnologias de construção dos eladar
possibilitaram também que os vadar aprimorassem sua tecnologia naval, o que permitiu
a construção das famosas vatmodas, construções marítimas fortificadas que projetavam
fogo como as torres-grimmja.
Apesar de nenhum documento oficial atestar o fato, acredita-se que os gaarthar
alcançaram, nessa época, os litorais tanto a nascente, fazendo pouquíssimo contato com
os povos arzi, quanto a poente, sendo os primeiros estrangeiros a pisar o território da
atual Maena. Um relato de um sir da casa de Spatte, vassala de Carnatti, durante o
grande império, confirma a possibilidade da viagem até lá: “Não crereis os senhores nas
maravilhas que cá ando eu encontrando. Eu e meus homens, há poucos dias entramos
em contato com uma tribo. Até então, só havíamos nos deparado com alguns selvagens
dispersos. Os nativos habitam gigantescos barracos esféricos construídos com juncos,
galhos e cipós trançados. Conforme vão aumentando em número, novos barracões vão
sendo anexados, criando verdadeiras vilas cobertas. Não parecem conhecer o sentido de
posse: caçam, cozinham e comem juntos, usam armas e ferramentas comunitárias e
mesmo as mulheres e crianças parecem não pertencer a um selvagem específico. O que
mais, porém, chocou a mim e meus homens foi a falta de vergonha. Como loucos e
crianças, os nativos andam nus diante uns dos outros sem importar-se com isso. Frear o
desejo de meus homens sobre a carne descoberta das filhas deste solo está se mostrando
uma tarefa impossível. Os índios tem defesa escassa e quase nenhum senso de ameaça.
Mais curiosos que precavidos, aproximam-se de mim e de meus servos, tocam nosso
cabelo e nossa roupa e riem de nossa maneira de falar, macaqueando-nos. A luneta, de
todos meus artefatos é o que mais chamou a atenção do chefe da tribo, que ficou
maravilhado com o poder de trazer o mundo para si. Não conhecem a noção de troca ou
compra, logo ofereci-lhe de presente. Dias depois, muito contente com o objeto, trouxe-
me como presente uma pequena selvagem de não mais que doze anos. Os homens me
oferecem a alma por deflorá-la, mas tenho outros planos para a menina. Acredito que à
filha de vossa senhoria, tal ser pode servir como o mais brilhante dos animais de
estimação. É de pouco intelecto, tal como um cão bem treinado, mas parece ser capaz de
aprender o idioma e sua beleza pode encantar mais que um falcão-cabeça-dourada.
Antes de partir pretendo levar ao menos mais dois nativos para estudo, um homem e
uma olhar no começo da idade fértil. Se consigo fazê-los procriar em minha terra natal,
creio que haverei encontrado um negócio próspero. Se consigo mais, levo-lhe de regalo
ao menos um varão. As frutas, cá, são mais coloridas e variadas. Desde minha chegada
provei não menos que quinze espécies diferentes. (...) Termino a terceira lua de
convivência e a jovem já fala o básico de meu idioma. Aprendeu com a presteza de uma
crônia. Com muito esforço e o auxílio da pequena acabo de finalizar a tradução de uma
de suas principais histórias do passado. Chamam-na de Itaun Uera, uma lenda sobre
homens com pele de pedra brilhante que surgiram da água. De acordo com a lenda, os
ancestrais da tribo presenciaram, um dia, espíritos da água (Uera) aproximando-se pelo
mar. Sua chegada trouxe conflitos, por seus espírito era mal e desejavam apenas a morte.
Eram conhecidos como Itaun, pois possuíam a pele como o metal das cavernas. Durante
muitas semanas, os homens tomaram gente da tribo, forçando-os a trabalhar na
construção de grandes casas de pedra (Itawka). O Akan da tribo, o líder, retirou-se para
o fundo da floresta e pediu aos espíritos da terra (Ibera) que afastassem os espíritos
maus da água. Pouco tempo depois, os Itaum foram amaldiçoados com grandes doenças
e fugiram em suas casas flutuantes para o horizonte. Essa história confirma as teorias de
sir Rolen Mill sobre a estada dos antigos gaarthar no novo continente. (...) Antes de
partir consegui convencer Yabatan a me guiar até o lugar sagrado das moradas de pedra.
É uma praia de difícil acesso, típico local escolhido por um bom explorador gaarthar da
linhagem dos velhos vadar. Lá chegando, pude contar mais de quinze casas gaarthar
feitas com precisão. O corte da pedra, o encaixe dos telhados, o espaço da lareira, tudo
pode me confirmar que eles, de fato, pisaram este solo bem antes que nós. Que
brilhantes eram os antigos filhos de nossa pátria!” (Diário de Otavi Spatte, chefe de
expedição do reino de Carnatti, KVI).
Os irmãos imperadores Ing e Inga morreram juntos, deixando como herdeiros,
cada um primogênito homem. Seu desejo, obviamente, era que ambos reinassem de
forma conjunta, tal como haviam feito em harmonia. Os filhos, porém, não cresceram
um ao lado do outro, como seus respectivos pais. Asger, filho de Ing com a primogênita
da casa Egon, foi criado ao lado na capital e desde cedo mostrou interesse para as artes,
a música e a política. Em suas viagens, gostava de coletar histórias populares, sendo o
primeiro a compila-las em um livro chamado Um Sagewolki. Após atingir a maior idade,
casou-se com uma sacerdotisa d‟Aquele-que-é-sete e tornou-se administrador de
Graenthur, segunda maior cidade do minguante. Dagur, filho de Inga com o general
vadar Svin, foi levado com o pai, sendo criando pela disciplina militar dos antigos vadar.
Apesar das frequentes visitas a mãe, o caráter ortodoxo e imparcial do povo das
montanhas enraizou-se fundo nele. Mesmo que não fosse casado, era pai de doze
homens. As crônicas não mencionam mulheres, mas devido a certas práticas vadari,
deduz-se que Dagur, no mínimo, não as reconhecia como filhas. Foram seus filhos:
Eadur, Eadwir, Eadin e Eadri entre nobres menores do crescente; Wiggen, Wigbern e
Wigsten entre camponesas também a crescente; Erkir, Sneri e Koll de Aslag, herdeira
do clã Himn; Niall, filho de maternidade não reconhecida, mas que diziam ser filho de
sua própria irmã Hilden; e Kiner, um mestiço com sangue ilhota.
Após a morte dos imperadores, houve um impasse na escolha do líder sucessor,
uma vez que Asger possuía o apoio dos senescais, juízes e comerciantes da capital,
enquanto Dagur matinha total suporte do exército imperial. O impasse foi resolvido por
Hroden, morgun 31 da corte: Dagur tornava-se imperador de guerra, responsável por
defender e controlar as fronteiras, aumentar o império e liderar as tropas; Asger seria
imperador da corte, responsável por administrar os impostos, as leis e mediar conflitos e
acordos entre as lideranças das cidades. Dessa forma, um dependeria do outro para ser
efetivo em seu trabalho, sem que, com isso, Dagur pudesse interferir nos afazeres de
Asger e vice-versa.
O domínio de Asger voltou-se para a expansão urbana, criando novas estradas,
capazes de suportar grandes carros de ferro e construindo grandes husdor, longas
construções horizontes capazes de abrigar um grande número de plebeus sob um mesmo
teto. Tal estrutura auxiliava na proteção contra eventuais saqueadores, uma vez que a
moradia dos camponeses era na área exterior a muralha. Além disso, a economia
ganhou uma considerável complexidade, sistematizando dívidas, impostos, taxas de
comércio e até formas arcaicas de empréstimo financeiro.
Já o domínio de Dagur apontou seus olhos para o mar, fazendo incursões
ousadas no nascente. Mesmo que os registros aetheri não indiquem nenhum encontro
fora o já mencionado em nossas crônicas, tudo indica que as tropas de Dagur chegaram
a comerciar com os arzi. O elemento de maior força para corroborar tal afirmativa seria
os padrões de pintura de um escudo encontrado no tesouro pessoal de um comerciante
de Namagodi, no atual reino de Pulkram. O objeto possui a representação da Hgormak
mitológica devorando a si mesma e quando comparado a todos os demais escudos arzi
ou até mesmo aos escudos aetheri ou astrais, percebe-se a diferença. Já nos finais da
vida de Dagur, o encontro com o povo aetheri enfim ocorreu, como já foi registrado
anteriormente nessas crônicas. Existe, porém, uma versão da história registrada nas
crônicas de viagem de Herlin, general gaarthar: Deixo registrada, tendo como
testemunha de minha razão a tripulação, conforme assinam ao fim do relato, haver

31
Cargo tradicional das cortes eladar. O morgun era normalmente um homem velho e sábio, instruído na
arte do pensamento, na arte da contemplação e nos saberes do mundo, que tinha como função fornecer
previsões e conselhos para os grandes líderes.
encontrado com os mortos de Kaltehus32. Cruzavam os mares em navegações esculpidas
a imagem de Hgormak. Aproximamo-nos, incialmente, crendo ser uma serpente do mar,
mas ao ver os mortos dentro da embarcação, não pude deixar de enfrentá-los face a face.
Sua pele era fria como a terra das almas e seus olhos eram apenas luz. Tentaram iludir-
me com o fogo, crendo que não notara que eram eles os filhos do vadarth eterno. Voltei
a minha embarcação e mostrei-lhes o poder da verdadeira chama.”. Após esse primeiro
e conflituoso contato com os aetherius, somente durante a expedição do Krator o
império gaarthi volta a vê-los.
A chegada da comitiva do Krathor Nith nas ilhas a nascente já acontece sob o
comando militar de Erkir e político por parte de Vinder, sobrinho de Asger, uma vez
que ele não teve filhos. A notícia foi mandada pelo comandante local como uma carta
de emergência, era o primeiro contato entre os dois continentes.

Continuação da história aetheri

A grande embarcação construída para chegar em Sdóryör podia ser vista a


muitos quilômetros de distância. As tropas, preparadas pelo posto avançado instalado
por Dagur nas ilhas, haviam sido dispostas ao longo da costa. O Krathor, após ordenar a
passagem aos barcos menores, lidera seus soldados e principais diplomatas até o litoral,
como podemos acompanhar nesse breve relato de um embaixador logótico: “Era a
segunda hora da manhã quando um servo aadi me informou que o Krathor solicitava
com emergência minha presença e a de outros políticos na área de desembarque. Pela
diminuição dos ventos e o aumento potencial dos odores silvestres, imaginara que
aportaríamos antes do anoitecer. Assim, já preparara meus pertences, fizera as pinturas
cerimoniais e comera sob uma dieta rica em grãos e baixa em carnes, evitando
problemas digestivos e mal hálito. Pude, também, esconder algumas ferramentas
menores e armas, em caso de captura, optando por lâminas grandes e flechas no forro
falso de meu baú de viagens, uma lâmina menor na contra capa de um de meus livros,
uma outra dentro do manto. Separei, ainda, um suprimento considerável de água
enriquecida com sais e mel, para garantir uma correta nutrição em caso escassez em

32
Os gaarthar ainda mantinham algumas crenças locais da mitologia dos velhos deuses, entre elas a noção
de distintos mundos. Os planos eram: Sdóryör, terra dos mortais; Eldehus, terra dos deuses; Dramehus,
terra das criaturas místicas; e Kaltehus, terra dos mortos.
viagem. Por último, separei uma dose de Rkk33, ou lamento da Lua como chamam os
homens do império. Fomos, então, conduzidos a um barco menor e mais rápido, tendo a
nossa frente o grande Krathor em sua armadura cerimonial. Noto que o caráter
supostamente sublime que sua personalidade e vestimentas transmitem é capaz de
inspirar nos homens um ar de divindade. Sem remos ou velas, o barco foi levado até a
costa, uma falésia pedregosa com uma estreita faixa de areia que, pouco depois levaria a
uma garganta na pedra. Não fosse muito a se supor de um povo selvagem, creria ser o
local uma construção feita pelo homem a fim de proteger suas terras. Ao chegar à terra
firme, pude prestamente contar 113 homens, nenhum deles com o porte descrito
anteriormente pelo Thalaor que os viu. Eram, de fato, mais corpulentos que a maioria
dos arzi, mas não mais corpulentos que um bom okur guerreiro e consideravelmente
menores que os grandes soldados astrais. A roupa cobria boa parte do corpo, mas pela
sobrancelha, orelhas e pescoço, não eram, tampouco, peludos como homens-besta. Senti
pelos passos do Krathor a decepção. Primeiro houve um oferecimento de presentes. O
Krathor mandou que fossem enviadas algumas das menos dotadas mulheres do tesouro
e uma quantidade insignificante de gemas preciosas e azeites. Em troca, os homens
ofereceram uma cabra e um objeto oblongo de ferro. Falavam uma língua brusca e alta,
assustando, muitas vezes, alguns de nossos políticos. O Krathor ordenou que
avançássemos, queria conhecer a grande ilha em que nos encontrávamos. Os homens,
porém, indicaram que não podíamos passar. Acampamos ali, dando-me tempo de
analisar o objeto enviado. Era uma adaga de ferro com traços de escrita. Tudo se tornou
claro para mim. Tentavam ludibriar-nos. Haviam, de certo, recebido algum aviso de
nosso caráter e falta de informação e buscavam fazerem-se parecer um povo simplório.
De tal forma, em nossa arrogância, avançaríamos sem preparo, sendo pegos pela
surpresa. A adaga era um discurso de incompetência. Tentava aparentar simplicidade,
mas seu ferro aparentava marcas de um forno de qualidade e material de primeira. Além
disso, tolamente, puseram grafos na lâmina, olvidando-se que a escrita é uma
ferramenta muito mais avançada que o ferro. Por último, a lâmina era recém feita, sem
marcas de uso. Um povo pego de surpresa não teria tempo de forjá-la, daria algo já
usado. Indiquei ao próprio Krathor, sempre atento as palavras do meu povo. Seu poder,

33
O lamento da Lua é um veneno feito a partir de uma cominação alquímica de outros venenos e produtos
de difícil acesso. Muito concentrado e fatal, é capaz de matar um homem entrando em contato apenas
com a pele de seus dedos.
porém, lhe encheu, também, de arrogância. Desfez a adaga em sua mão e riu com voz
troante. Na manhã seguinte, sem mais nativos a vista, o acampamento prosseguiu
viagem pela garganta de pedra, formando uma fila alongada por quase quinhentos
metros. Em meados do caminho, a fila parou durante alguns minutos, prosseguindo
depois. Me era impossível ver a frente ou a retaguarda, cercado de outros corpos como
estava. Pude, porém, notar, que pouco após a parada, passei por um risco fundo no chão,
onde havia sangue em uma estaca próxima à parede. De certo uma cabeça de inimigo
presa para indicar limites territoriais. Novamente passavam-se por primitivos. Cruzamos
a tal linha e meia hora depois, desembocávamos numa planície pedregosa. Ao fundo,
uma cidade de construções peculiares, mas com clara arquitetura de povo desenvolvido,
como supunha. A nossa frente, uma tropa incontável. Ali, os homens eram como
aqueles descritos pelo Thalaor. Mas havia também máquinas de guerra e animais.
Cavaleiros, arqueiros, lanceiros. A guerra começava ali.” (Relatos para o conselho
logótico, por Rkk, KII.)
A proteção pessoal do Krathor era capaz de lidar com boa parte das investidas à
distância enviadas pelas tropas gaarthar, conseguindo escoltar o grupo através da
garganta até a volta ao mar. Nith estava maravilhado diante do progresso daquela
civilização. A arquitetura, as estratégias de guerra, a forja, tudo era um mundo de novas
informações. Os registros indicam que ele recuou até uma das atuais Nove Sereias, na
qual se firmou com intuitos de colonização. Os ilhotas, após décadas de exploração
cruel por parte dos vadar, viam na administração do Krathor uma possibilidade de fim
da escravidão e certa autonomia. O apoio foi massivo. Entre as notas de chegada às
ilhas e a chapa de metal que indica a tomada do último posto avançado do império
gaarthar na região, há menos de cinco anos de intervalo. Alguns pontos das Nove
Sereias ainda conservam as primeiras construções aetheri feitas, sendo, atualmente,
apenas ruinas.
A maior parte dos prisioneiros de guerra eram enviados como forma
demonstração de paz ao império inimigo, incluindo um dos filhos mais novos de Erkir.
O Krathor requisitou, porém, boa parte das mulheres, que foram, as nobres, dadas como
presentes aos generais e políticos da comitiva e as de menor status oferecidas aos
soldados e comerciantes menores sob a condição de casamento. Apesar de restringir
qualquer contato aetheri com a raça dos homens, o Krathor via com bons olhos a
miscigenação entre os homens de Luxor e os nativos. Dessa forma, conquistava o
território não apenas militarmente, mas também culturalmente. Em poucos anos, as
mulheres mais rebeldes, que tentaram fugir ou assassinar seus maridos, foram mortas e
as fracas estavam plenamente aculturadas nas colônias aetheri, falando arzi e baasi sem
maiores dificuldades e ensinando aos homens do velho continente sobre os costumes e a
língua de Sdóryör.
O império gaarthar, porém, não ficara observando essa colonização sem nada
fazer. Ainda no ano da chegada, a armada naval do império foi enviada a fim de dizimar
os estrangeiros. Sendo, porém, o Krathor, oriundo de uma ilha, sabia melhor que
ninguém, como prepará-la para todo tipo de ataque e, com o auxílio da vasta mão de
obra dos nativos das ilhas, rapidamente ergueu postos de observação e uma artilharia
defensiva. A principal arma contra os temidos cuspidores de fogo da marinha gaarthar
foi o megávelos, um mecanismo capaz de disparar longas e pesadas hastes de madeira,
capazes de penetrar com facilidade no casco das embarcações. Os gaarthar até então não
haviam enfrentado mais do que flechas e pedras em suas batalhas navais, fazendo que a
resistência do casco contra projéteis perfurantes não fosse um problema maior. Diante,
porém daquela arma, eram alvos frágeis.
Após algumas tentativas sem sucesso de invasão massiva, pequeno grupos foram
enviados inicialmente para infiltrar-se e tentar assassinar alguns líderes, sendo, sem
nenhuma dificuldades, detectados em questão de horas. Além de completamente alheios
a cultura na qual se inseriam, os aetheri possuíam formas sobre-humanas de identificar
seus inimigos. Novamente, o Krathor enviava parte dos capturados para casa com
mensagens de paz. Desejava não uma tomada sangrenta do território, como fizera antes
do o império astral, mas uma incursão que lhe permitisse um acesso aberto à tecnologia
e aos mistérios daquele local. Um amante do ocultismo, tinha uma curiosidade
incontrolável por conhecer mais sobre o enigmático deus dos gaarthar. Os sacerdotes
daquela terra não se alarmaram com a chegada dos estrangeiros. Não recuavam diante
de nenhuma mostra de poder, gargalhavam diante da destruição de seus templos. Depois,
caminhavam placidamente entre os mortos e feridos, até os generais, e entregavam-se,
sofrendo todo tipo de injúrias, aprendiam a língua do povo e pregavam as verdades
d‟Aquele-que-é-sete. O Krathor não conseguia visualizar como um povo poderia se
dobrar diante de tão caótica divindade, enquanto os arzi lhes ofereciam o deus-de-pedra
e mesmo os okur falavam sobre sua meia centena de deuses da natureza.
Após a estabilização do domínio das ilhas, uma coletânea de cartas nos revela
que o Krathor iniciou uma chamada de colonização das novas terras, oferecendo novas
oportunidades de vida para o povo de suas cidades. As nerophides foram adaptadas para
cruzar os mares perigosos, rotas seguras foram traçadas e em menos de dez anos as
Nove Sereias, calcula-se, contavam com mais de cinquenta mil habitantes de Luxor. A
língua falada então nas colônias havia sido adaptada para permitir uma comunicação
fluida entre cinco línguas distintas: o idioma arzi, o baasi dos aadi, o edende dos Okur, o
gaarthari ilhota e o aetheri. Data-se dessa época a formação do crônio antigo, mesmo
que anterior a renomeação do continente de Sdóryör como Cronia, feita oficialmente
após a tomada do território pelo império aetheri.
No ano de 1086, anotações das audiências privadas permitem-nos entender o que
deu início ao avanço do Krathor sobre o continente:
“Décima sétima audiência da cidade de Klíona: um mercador pede por mais
guardas na região de Fulgletum, a poente. Avisa que muitos donos de plantações estão
perdendo comida para bandos remanescentes de homens-alvos que não foram
capturados. O Iskhal não oferece mais soldados, mas permite que o homem adquira
armas e proteção por um preço reduzido no depósito da cidade, tendo recursos para
armar seus próprios homens. Ainda oferece 10 hrins34 por cada alvo capturado.
Décima oitava audiência da cidade de Klíona: uma esposa-alva indica que seu
marido vendeu-a para seis soldados aadi por 5 hrins. O marido, porém, indica que ela os
seduziu e fornicou, e pede que ela seja vendida a uma casa de mulheres e que ele receba
o dinheiro como indenização. O Iskhal lembra ao marido que mulheres-alvas não
podem ser postas em casas de mulheres e tampouco tem provas de que ela, de fato,
havia seduzido os soldados. O Iskhal adverte, ainda, que cabe ao marido o correto
controle e proteção de sua esposa. Dessa forma, é resolvido que o homem possa tomar
um dos soldados como servo, castrando-o, como forma de punição, uma vez que por
sedução ou compra, é proibido a um homem deitar-se com a esposa de outro homem.
Décima nona audiência da cidade de Klíona: Um estrangeiro é capturado
tentando entrar na cidade. Pede, utilizando a língua geral, uma audiência com o Iskhal
34
Dinheiro em circulação no continente de Sdóryör na época. Eram utilizados pequenos aros metálicos
com inscrições mínimas evitando falsificações fáceis.
Klíon35. Para que um homem das terras-de-lá, consiga falar a língua geral e saber o
nome do líder da cidade, é preciso que este tenha certo nível de influência nas ilhas, de
modo que o Iskhal resolve recebê-lo. Ele se apresenta como Egil Kronat36 e diz liderar
uma reunião de senhores da velha dinastia Eladar em busca de vingança pelo massacre
da Rainha de Gelo. Oferece cem mil homens armados ao longo de todo continente, além
de apoio em manobras políticas e uma considerável quantidade de suprimentos para as
tropas. Em troca, deseja ser, primeiro, levado a conhecer o Krathor, depois deseja levar
consigo uma “mulher da cor do mar”, “uma mulher de pedra” e três “mulheres de pele
queimada”, referência aos distintos povos do acampamento. Por último, caso a investida
seja bem sucedida, deseja poder administrar sua própria terra, da mesma forma que os
demais senhores que representa, em nome do Krathor. O Iskhal ouve atento e lhe
oferece marcar uma reunião com o Krathor, que muito feliz receberá um estrangeiro da
nobreza, conhecedor de artes e ciências. Dos presentes, manda que lhes sejam trazidas
cinco escravas entre as servas dos homens, astrais não serão enviados até que o povo
mostre-se instruído em não cometer interracialidades e que aetherius são um povo
superior e qualquer pedido semelhante será tomado como um insulto seguido de
execução. Os termos da administração do território serão discutidos com o próprio
Krathor, mas o Iskhar se permite dizer que as cidades sob o império aetheri são
administradas sempre por seus próprios povos, sob a supervisão das leis e Iskhals. O
estrangeiro foi enviado junto a uma mensagem selada à Nekrathea37”. (Audiências de
Klíona, KII).
Alguns diários indicam a felicidade do Krathor em receber o nobre gaarthar.
Após seis dias de festas, nas quais eram feitas apresentações artísticas das mais diversas
partes de Luxor, incluindo a montagem mais rebuscada já feita de “Onire de Nesos”,
que levou o estrangeiro, que nunca havia tido contato com o teatro, a lágrimas sinceras.
Além de uma longa conversa sobre história, cultura e religião, Egil deu informações

35
Klíon foi transferido do posto de Thalaor ao de Iskhal, como passou a muitos membros da marinha
aetheri na época. O fato ocorreu devido à necessidade de maior domínio sobre as vilas com a presença
aetheri.
36
A partir da ascensão do império gaarthar, as antigas alcunhas eladar e vadar foram substituídas, nos
centros urbanos, pelos nomes de clã, herança da organização militarista vadar fundido a tradição de
consanguinidade eladar. Eram comum a construção dos nomes de clã a partir da fusão do local de
domínio de um senhor com a partícula –at.
37
Capital das colônias e morada de Nith.
cruciais sobre as defesas da cidade, estratégias e recursos, permitindo ao
Krathor preparar um eficaz plano de invasão.
Na décima segunda lua de 1087 as nerophides partem das colônias em direção a
Sdóryör, iniciando assim a conquista do novo continente.

KIII

O terceiro século da Kratória começa em plena guerra luxocrônia. As tropas do


Krathor conseguem no final do século anterior uma invasão efetiva à antiga Gudswur,
área menos protegida pelos gaarthar. A tropa Psi, elite do exército aetheri, mostrava
uma grande vantagem em pequenos combates, reduzindo as baixas aliadas para números
insignificantes. O número reduzido, porém, fazia que, em guerra aberta, representassem
uma diferença mínima. Os mercenários astrais faziam frente aos guerreiros do antigo
povo vadar, mas ainda eram minoria se comparados à massa das tropas do Krathor,
constituídas de soldados okur, aadi e arzi. Nenhum dos homens de Luxor se equiparava
em combate à ferocidade, estratégia e preparo dos guerreiros-alvos, o que, junto ao
conhecimento e adaptação ao terreno, balanceava a guerra.
Inicialmente, conforme haviam concordado, as tropas secretas de Egil
permaneceriam sem agir, deixando-as preparadas para surgir no momento de maior
efetividade. Enquanto as batalhas campais se mantinham, quase sempre, em empates,
com muitas mortes de ambos os lados, os pequenos vilarejos eram tomados pelas tropas
psi, que agiam de forma furtiva em áreas pouco guarnecidas. Em adição à conquista
bélica, os servos de Egil espalhavam boatos sobre a força e benevolência do império
aetheri, fortalecendo os pilares de lealdade do povo gaarthar.
Uma das maiores resistências na aceitação de domínio estava na semelhança dos
aetherius com as criaturas do mundo dos mortos nas lendas de Sdóryör. Uma vez
percebido esse fato, o Krathor rapidamente mudou de tática, recrutando um sem número
de esposas das ilhas para auxiliar no domínio das cidades de Gudswur. Quando uma
cidade aceitava a conquista aetheri, passavam a enviar, primeiramente, outras etnias
humanas, e, após certo processo de adaptação à diferença, o envio de astrais e logóticos,
até, finalmente, a presença discreta de um Iskhal com um pequeno número de soldados
psi.
Durante a guerra, os poderes do imperador político perderam credibilidade e
utilidade e parte dos políticos, influenciados por Egil, apoiaram um golpe de estado de
Erkir, fechando o poder político local, aumentando taxas de impostos e recrutando
soldados até entre os nobres menores. Não só uma medida ineficaz, visto que os
soldados não tinham o preparo da tropa dos antigos vadar, como prejudicial para os
ânimos de um povo em processo de conquista, a ação do novo imperador geral de
Sdóryör o levava ao abismo.
No ano de 1123, a última cidade dentro das fronteiras naturais de Gudswur38,
Figblom, se rende pacificamente após a retirada das tropas de defesa para Aedelshire. A
partir de então, as informações transmitidas por Egil indicam que o império está em
plena crise, tanto de econômica quanto de valores, uma vez que o domínio dos vadar
sobre os eladar e a expansão a novos mares levou o império invasor a causar tudo aquilo.
Uma carta do porta-voz do Krathor, relíquia guardada nos cofres da assembleia,
indica os planos que Nith tomaria para tomar o continente a partir da situação em que se
encontrava: “Essa guerra pode ser vencida sem mais derramamento de sangue, Ele diz.
Os povos já muito sofreram a perda de seus irmãos e é necessário paz para contentar o
povo. Será decretada a trégua dos cinquenta anos. Durante cinquenta colheitas o grande
poder aetheri se preocupará com a comida de seu povo, plantará e prosperará. Crianças
surgirão e envelhecerão antes que mundo veja novamente sangue. Esse é o tempo que
os sanguinários opressores do povo-alvo terá para render-se à benevolência do grande
Krathor. Após cinquenta anos de paz, haverá guerra. Uma geração inteira sob a
prosperidade aetheri se erguerá contra um povo faminto e fraco, explorado pelo tirano
Erkir. Durante esse tempo e até lá, todo aquele que desejar migrar a Gudswur será
aceito de bom grado, alimentado e cuidado, como nosso beneplácito monarca propõe.
Aqueles, porém, que se mantiveram ao lado dos cruéis dominadores de um povo livre
quando a paz acabar sofrerão a fúria e o poder que já provamos ter.”
O Krathor sabia que a estratégia era arriscada, uma vez que dava aos oponentes a
possibilidade de se reerguer financeiramente e preparar mais tropas. Acreditava, porém,
que sob o domínio de um guerreiro tão tolo quanto Erkir, estava mais em vantagem
política que bélica e era preferível vencê-lo sem esforços.

38
o planalto de Gul, ao crescente, o colossal Ridarin, o rio que cavalga ao minguante e a cordilheira de
Vardarthalt.
Como prometido na carta, foi promulgada a paz de cinquenta anos, sendo
festejada pelo povo de Gudswur. Cópias da mensagem traduzidas ao idioma gaarthar
foram enviadas a diversas cidades através dos servos secretos de Egil e pouco a pouco
os boatos corriam entre as cidades do império em ruína. Pouco a pouco, iniciava-se uma
forte migração dos servos a mando de Egil, que acabava por influenciar os indecisos.
Estima-se que mais de 30% da população restante de Sdóryör deslocou-se para essa
região durante a paz.
Conhecedores de técnicas agrícolas avançadas, os aetheri não tiveram
dificuldades em fazer crescer colheitas abundantes mesmo em épocas de seca e o até
então infrutífero feudo de Gudswur tornava-se, então, a maior força econômica do
continente. O outro lado da guerra, porém, enfrentando os maus tempos e tendo boa
parte de sua mão de obra reduzida, afundava em fome, perdendo ainda mais população.
Apesar de a guerra haver parado, as tropas psi não deixaram de agir sob o
continente, assolando plantações pela noite, destruindo carregamentos de metal e
espalhando venenos e doenças nas grandes cidades. Diante de tal situação, os
camponeses, sob condições já inaceitáveis de vida, rebelavam-se contra um envelhecido
Erkir que abdica do trono em prol de um ainda mais desesperado líder: Asger Akisen39.
Asger era um general proveniente das fileiras baixas do exército que havia subido de
cargo muito rápido com a morte dos superiores, tornando-o em pouco tempo, uma
escolha plausível para um cargo antes nunca pensado para alguém de sua proveniência.
Sem a educação, o carisma ou o preparo político de um verdadeiro monarca, o novo
imperador não pensou duas vezes em atacar as fronteiras de Gudswur com todas as suas
forças, levando inclusive crianças e idosos para os campos de batalha.
Os batedores avisaram com semanas de antecedência o espalhafatoso
movimento das tropas de Asger, dando ao Krathor tempo de preparar uma defesa
cuidadosa. Ao chegar em campo de batalha, o novo imperador se deparou com armas de
sítio, torres de combate, paliçadas e cornos de guerra. Alguns soldados tentaram, ainda,
em desespero, correr até o campo de batalha inimigo pedindo clemência, mas foram

39
Os gaarthar sem um nome de clã mas que ainda se muniam de certo prestígio na sociedade,
normalmente de famílias sacerdotais, comerciantes que haviam enriquecido a pouco tempo ou ligado a
um morgun de prestígio costumam utilizar o nome do pai seguido da partícula –sen. Como exemplo, o
filho de um homem de certo prestígio chamado Wolki poderia ter como nome de clã Wolkisen.
alvejados pela tropa de Asger antes do décimo passo. Antes da luta, o próprio Krathor
anunciou, em voz sublime e aterrorizante, o fim do império gaarthar no continente.
O “festival do sangue”, como ficou conhecido o episódio da história do império,
foi um dos momentos mais marcantes da guerra, não apenas pelo aniquilamento de
milhares de homens despreparados em campo de batalha, como por um ato que, por
muito tempo, se proibiu falar sob o domínio aetheri. Asger, de sangue camponês,
nenhum preparo, impulsivo e responsável pela morte de boa parte de seu povo, era,
porém, um dos melhores combatentes que já pisou o solo Sdóryör. Durante a luta,
perdeu-se entre a carnificina de seus homens, abandonando o cavalo e caminhando entre
a vanguarda apenas para poder aproximar-se do Krathor. Este, a alguns metros do
combate, protegido por quatro soldados psi, apenas observava o combate com pesar no
coração. Asger conseguiu acertar uma flecha incendiada na tenda do Krathor, causando
uma distração que o permitiu a proximidade necessária para matar os dois soldados e
acertar uma adaga do olho de Nith, proferindo a frase que ficou gravada no
conhecimento popular e gerou o perigoso ditado “mesmo os mortos choram sangue”,
que é usado para provar que mesmo aqueles que parecem mais inatingíveis podem ser
alvos do menor dos males.

KIV

O massacre causado por Asger foi, por um lado o ponto necessário para que o
continente se rendesse ao domínio aetheri e, por outro, responsável pelo início do
declínio da deificação de Nith. Por mais que possuísse poder para regenerar pequenos
ferimentos e eliminar impurezas do corpo, não podia trazer de volta o olho perdido, um
estandarte de sua limitação. Dessa forma, alguns Iskhal entravam em desacordo e
mesmo contestavam o poder do Krathor, mesmo que morressem após isso. Com o
tempo, mesmo os políticos de outras raças não mantinham a mesma reverência diante de
sua presença.
O novo território, em compensação, começa a prosperar após a ação rápida e
bem calculada dos engenheiros aetheri no reparo das colheiras e na procriação de
animais para alimento. Sem a necessidade de pagar impostos inicialmente, os
camponeses foram capazes de se estabilizar e mesmo a taxa de natalidade aumentou
potencialmente.
Conforme prometido, Egil tornou-se administrador imperial de Egohem,
mudando o nome do território para Kronati, em homenagem ao seu clã. Aedelshire, em
mãos novamente de um descendente dos Aedel, mantém seu nome. O antigo território
de Gudswur torna-se, sob o domínio do povo mestiço que se formava, Marine, primeiro
território nomeado em crônio antigo. Por último, o novo continente perdia o nome de
Sdóryön, cuja tradução já não condizia com as verdades conhecidas, e passa a ser a terra
de Necronia40.
As rotas marítimas entre Luxor e Cronia foram melhor calculadas e os navios se
tornaram, então, capazes de atravessar os continentes, desde que ao menos um Talaor
fosse capaz de controlar as embarcações. Cruzar os mares com tal eficácia, sem o
auxílio de um aetherius só poderia ser feito séculos mais tarde, com a criação das
caravelas modernas. As navegações pelo minguante revelaram-se infrutíferas, uma vez
que os mares as marés eram demasiado fortes e as tempestades muito violentas. A
poente, porém, o mar mostrou-se mais receptivo, permitindo uma navegação segura.
Nunca foram encontradas anotações específicas sobre as técnicas que permitiram
aos vadar cruzar um mar tão perigoso quanto o do nascente ou poente. Dessa forma,
todo mapeamento dos mares a poente precisou ser feito pelos Thalaor. Mesmo sendo
capitães experientes e auxiliados pelos dons aetheri, o mar a poente mostrou-se muito
mais extenso e uma navegação tão longa quanto a tomada de Luxor até Cronia não
revelou mais do que mares perigosos.
A arte de Cronia começa, nessa época, a florescer, distinguindo-se tanto da arte
dos homens de Luxor quanto daquela feita até então no novo continente. O teatro,
inovador para o povo, foi rapidamente adaptado para as temáticas e costumes dos
crônios. Surge, assim, a ópera, aliando a milenar tradição dos cantos eladari com a
intensidade dramática do teatro de Luxor. As primeiras peças são obras populares,
apresentadas de forma improvisada em antigos galpões de armas e é categorizado como

40
É importante ressaltar que o continente, originalmente não se chamada Cronia, mas Necronia, palavra
criada a partir do prefixo Ne- (novo) e a palavra Kronis (tempo, era). O nome, porém, passou a soar
próximo a palavra Necros (do crônio antigo “morte”), causando uma impressão negativa do continente.
Dessa forma, o povo optou, com o tempo a abandonar o prefixo, chamando a terra apenas de Kronia. Por
questões de praticidade, nos referiremos a Necronia como Cronia mesmo em momentos anteriores a sua
nomenclatura.
teatro wopen. As obras que chegam até nós vem por dois autores: Hinri Olevsen, um
filho de morgun criado na própria corte do Krathor como tradutor de documentos; e
Dirai Citrakai, de uma família arzi de pintores de vasos .
Olevsen é o maior representante do wopen de sombras, feito ao anoitecer e
iluminado apenas por trás dos atores. Nele se usavam as flautas duplas e os pratos
metálicos, além do canto de fundo, feito por um coral masculino. Todos os atores eram
mulheres e portavam roupas de tecido fino, que tremulava no ar enquanto elas faziam
seus movimentos e cantavam. Destacam-se as peças “O veneno de Hegga” e “Os ventos
sopram contra o mar”.
O teatro de Citrakai, por sua vez, é feito pelo dia e o ritmo inclui a batida de
palmas dos arzi do deserto. Os instrumentos utilizados são o violão de oito cordas e um
tambor tradicional okur chamado okam. Não há coral, mas os personagens que não
estão em cena fazem uma voz de fundo. Há atores mulheres e homens, todos
mascarados de forma que não se reconhece o sexo de cada um.
Além da arte, as ciências progrediram bastante com o contato entre os
engenheiros aetheri, os sábios arzi e os morgun. Dessa união surgem as primeiras
escolas de saberes e os primeiros livros de ensino são escritos já na língua geral, o
crônio antigo.
KV

Ainda durante a oitava década do século anterior, o Krathor resolve retornar a


Luxor para reafirmar seu poder imperial, dando, assim, tempo para que o povo de
Cronia olvidasse de sua fraqueza em batalha. Lá, não só teve oportunidade de fortalecer
seu poder imperial, como partiu em peregrinação espiritual, deixando sua administração
sob os cuidados de seu herdeiro político, Ilios. A paternidade entre os aetherius é um
fenômeno raro e visto como uma graça do destino. Nith, dizem as lendas populares
havia tentado engravidar centenas de mulheres aetherius e dezenas de mulheres de
outras raças, não conseguindo sem bem sucedido em nenhuma tentativa. Outros
afirmavam que Ilios era um filho não assumido de Nith para que sucessão não fosse
vista por uma questão de consanguinidade, mas de mérito. Um terceiro e reduzido grupo
ainda afirma que Ilios era o próprio Nith que havia trocado de corpo com um jovem
apathor e o Krathor que então circulava era apenas um chamariz para o povo.
A saída da autoridade imperial de Cronia fez com que se revelassem forças
ocultas que agiam em silêncio no novo continente. Parte da realeza gaarthar havia se
reunido na esquecida ilha de Paradisya durante a guerra e orquestrou por gerações uma
retomada do poder em Cronia. Mandaram agentes para calcular contatos e conseguiram
não só apoio de grandes comerciantes e nobres menores como o importante e
inesperado apoio do Iskhal Klíon. Convencendo boa parte de sua tropa psi de que o
antigo Krathor havia perdido seu dom e fugido para Luxor em busca de poder, Klíon
conseguiu a força militar necessária para subjugar o poder de outros Ikhals menores.
O povo, mesmo sem entender, viu-se envolvido numa guerra civil sem motivo
aparente, na qual suas fronteiras eram atacadas por seus outrora irmãos. Com proposta
semelhante a feita por Egil, Klíon tinha o apoio dos decendentes da antiga realeza
gaarthar.
A guerra da reconquista começa no ano de 1328 com a tomada simbólica da
capital, já sob o controle de Klíon. O crescente, mais ligado a velha tradição, aderiu em
grande parte à causa. A minguante o interior aderia, mas as grandes cidades ainda viam
maior vantagem econômica em manter o Krathor no poder. Marina, por sua vez,
apoiava integralmente o domínio de Nith e as montanhas dos vadar, chamadas então de
Glaciar no crônio antigo, estavam preparadas para atacar qualquer estrangeiro que
houvesse em seu território.
Apesar de ser chamada guerra, não aconteceram, de fato, muitas batalhas, sendo
mais um momento de tensão política. Enquanto o Krathor tentava reorganizar Luxor, o
povo não via iniciativa para iniciar uma retomada e, por outro lado, Klíon não se sentia
seguro em atacar Marina e as capitais minguantes arriscando um momento de fome que
quebrasse a economia de suas cidades.
Em Luxor, o Krathor finaliza, após anos afastado do poder, sua peregrinação
espiritual, sentindo-se restaurado. Seu olho havia retornado, mas sem o brilho hipnótico
dos olhos aetheri. Era um olho de branco amarelado e opaco, mal encaixado na órbida
algo deformada pelo espaço vazio. Algumas veias avermelhadas enraizavam por seu
rosto e a voz havia perdido a firmeza de outros tempos. Ao saber dos planos de Klíon
foi imediatamente a Cronia, deixando Ilios sob o comando completo de Luxor.
Com a volta triunfante do Krathor a Cronia, o povo festejava a paz. Nith, porém,
ignorando seus famosos costumes de festas e reuniões com os Iskhal, montou um cavalo
e cruzou território desacompanhado até as portas da capital. A partir desse ponto cito o
ocorrido pelo testemunho de um dos netos de Egil, prisioneiro político na cidade: “É
difícil, de longe, diferenciar o semblante dos aetherius e julgava apenas ser mais um
soldado psi ou Iskhal pronto para se aliar com eles. Ao chegar à porta, porém, percebi
que se tratava de Nith em pessoa, assim como os soldados também haviam notado. As
tropas prestamente tentavam entrar em formação de batalha quando o próprio Iskhar se
aproximava. O céu, nesse momento, ficava escuro e turbulento, pronto para tempestade.
Antes que Klíon pudesse, da muralha, proferir uma palavra a Nith, um raio magnífico
cruzou o céu e transformou o Iskhal em um resto de carne ensanguentada. Veio, então,
uma névoa densa, que tomara toda a cidade. O resto não consigo descrever com essa
pena, um pesadelo sem fim que até hoje ecoa em minha memória.” (Albo Karnat, diário
pessoal, KV).
A notícia se espalhou com velocidade e antes do fim do século, a descendência
da família real gaarthar se ajoelhou perante o imperador. O Krathor, porém, não mais se
mostrava benevolente, ordenando a morte de todos os envolvidos que haviam se
entregado. O medo inspirado pela soma dos atos trouxe um ponto final a qualquer
insurgência em Cronia durante seu domínio.
O esforço tomado pelo Krathor em sua demonstração de poder havia exaurido
suas forças, fazendo que com que se tornasse recluso e relapso na liderança do império.
Enquanto passava boa parte de seu tempo sozinho na biblioteca de sua corte e na
pirâmide invertida que havia montado em Cronia, o continente seguia seu rumo e a
expansão do império apontava para uma nova fronteira, as misteriosas terras a poente.
A primeira nerophide a retornar de uma viagem segura até as terras do poente
trouxe consigo a figura que mudaria o rumo do mundo: Anamanithe IV, príncipe do
reino milenar dos Draoi, primeiro magi a ter contato com um habitante de outro
continente.

KVI

Após a definitiva tomada do território crônio, o continente enfim parecia mostrar


sinais de uma colonização duradoura. A antiga arquitetura dos gaarthar cedeu lugar a
novas construções, que mesclavam a técnica dos arcos de Luxor com as estátuas do
gaarthismo e das máquinas de guerra vadar. Surgem nesse tempo grandes construções
que permanecem até os dias de hoje em pleno funcionamento como: o Templo das Setes
Faces, em Kaelya, capital do reino de Karnat; o anfiteatro de Flora, no reino de
Gramado; o Aqueduto de Krathor, que fornece água corrente para a antiga capital do
império gaarthar, Frida; e a Arena de Beldun41 em Partiris, na atual Argena.
O idioma, por sua vez, passava, já, da língua intermediária utilizada nas
primeiras ilhas colonizadas para o Crônio antigo, forma já encontrada em livros da
época, como o Per phisiken, do acadêmico crônio Lukeos Épides. Apesar de o livro ser
escrito em sua maior parte na língua aetheri, certos trechos são citados de livros
populares hoje perdidos, nos mostrando exemplos arcaicos da língua crônia. Apesar da
aparente uniformidade de regras que podemos encontrar nos registros acadêmicos, as
tradições orais compiladas no coder populun do século seguinte nos mostra que os
dialetos já deviam estar se formando ao longo do KVI. Dessa forma, o termo Kastrun
(casa de pedra), variava em Kástren a crescente, pela influência mais duradoura do
gaarthari na língua, em Kastil em Marina, por influência da pronúncia arzi e em Kastel
seguido de Kastelun na região minguante, fenômeno explicado pelo código de etiqueta
da corte, que achava vulgar o uso de palavras ainda oriundas do gaarthari e, assim,
adicionando –un ao final da maioria das palavras que não possuíssem o final. A palavra
Kastrun ainda existia no dialeto minguante quando a entrada de Kastel por influência de
Marina aconteceu. Porém, Kastel possuía, então, não mais o sentido original de casa de
pedra (já que toda casa era feita de pedra, passaram a utilizar apenas Domun, “lar”) mas
de grandes fortificações.
Nessa época surgem, também, as primeiras menções aos bestiais como seres
diferentes de simples animais. Até então, os vadar e eladar não mantinham maiores
relações como os homens-besta que possuíam com os simples animais, caçando-os,
comendo-os e utilizando suas peles e ossos. Os aetheri, porém, que há mais de um
milênio utilizavam a mão de obra bestial, mostraram que os mesmos, ainda que
possuíssem um intelecto reduzido, eram capazes de serem adestrados. Em Cronia,
porém, essa mudança de perspectiva se inseriu num quadro cultural totalmente distinto.

41
Beldun é o nome dado aos jogos de guerra que surgiram em Cronia durante essa época. Teve influência
tanto das guerras cerimonias vadar quanto das gladiaturas astrais. No Beldun, porém, evitava-se
derramamento de sangue e o objetivo era simplesmente romper as bandeiras que os soldados hasteavam
nas costas. As bandeiras serviam para identificar os times à distância e influenciaram o uso de bandeiras
pelos reis e imperadores posteriores.
O século KVI é marcado pelo Civismo, movimento sociocultural caracterizado pela
preocupação filosófica com moral, ética, metafísica, política e sociedade. Até então,
pensadores individuais haviam feito progressos nessas áreas de forma isolada, mas
somente no Civismo foi possível que o conhecimento circulasse com uma dinâmica
capaz de caracterizar uma escola de pensamento. Dessa forma, autores como Tatiun,
levaram em consideração a capacidade dos bestiais de aprendizado afirmado que “se
não houvessem sido esmagados pelos grandes reis no início, poderiam evoluir para
homens civilizados antes, ou não fomos nós, no tempo dos primeiros povos, também
selvagens?”. Apesar dessa perspectiva de igualdade, a mão de obra bestial continua
sendo utilizada até os dias de hoje, com exceção para os acampamentos bestiais
clandestinos de Luxor, as aldeias independentes em Cronia, os bestiais das tribos
selvagens e os poucos que conseguiram ser elevados ao posto de cidadão honorável por
algum reino de Cronia.
É ainda no KVI que chegam as primeiras ondas missionárias Vi’on. Os
sacerdotes que haviam chegado ao novo continente nas primeiras viagens haviam visto
n‟Aquele-que-é-sete um grande mal, devido a sua proximidade com o caos, a
inevitabilidade da morte e a falta de restrições morais. Com isso, planejaram uma
grande migração de astrais para Cronia a fim de tentar oferecer a seu povo a luz de sua
divindade. O medo às raças diferentes num continente onde os humanos até então eram
absolutos ainda pairava sobre as gerações mais modernas e a vida no interior era
impossível para um astral ou logótico. Dessa forma, a maior parte dos missionários
astrais de radicavam nas grandes cidades a minguante, como Kaelya, Sorer e Lakonan.
Os astrais, porém, viam as grandes cidades como centros de escuridão e desvio, uma
vez que as práticas sexuais, a mentira e a corrupção eram comuns nesses locais.
Optavam, então, pela construção de acampamentos na periferia da cidade, prática que
sobrevive até os dias de hoje entre os astrais fundamentalistas.
Enquanto Cronia prosperava, atrás das pesadas muralhas da corte aetheri, o
Krathor isolava-se por completo aos conhecimentos da civilização ancestral dos Draoi.
As primeiras expedições chegaram às terras poentes no começo da segunda metade do
século e as primeiras rotas comerciais foram traçadas por volta de 1480. As relações
comerciais entre os continentes logo se tornaram fortes, havendo uma constante troca de
metais, relíquias e livros do império aetheri por uma grande variedade de produtos draoi.
Datam-se dessa época a entrada dos amuletos de sorte na cultura do nascente, na forma
de pequenos cristais, trançados de bronze e ossos de animais. Há, também, a introdução
do vinho e do açúcar na gastronomia nascente, produtos que só os mais ricos podiam
adquirir.
Em 1495, ocorre a primeira viagem do Krathor ao império draoi. A terra era
chamada entre os nativos de Meanë42, ou terra dos comuns, em oposição a Ardë, terra
dos superiores e a Iseelë, a terra dos inferiores. Diferente da chegada a Cronia, Nith,
debilitado, prefere uma viagem rápida e com pouca tripulação, levando apenas a elite de
seus soldados e alguns servos. Ao deparar-se com a grandiosidade dos palácios de
Tenereon, o Krathor sentiu, por primeira vez, que a magnitude de seu império não era
absoluta. As cerimônias eram majestuosas e artisticamente completas, contando com
declamações de poemas, cantos, música, teatro, dança, lutas cerimoniais, pinturas,
narração de histórias antigas e reflexões filosóficas. O imperador dos draoi,
Anmorghrien II, pai de Anamanithe IV, era uma entidade intocável, nunca vista senão
por trás de véus e sob pouca iluminação. Para dar suas mensagens, convocava a sua
presença uma de suas Lamhe, mulheres selecionadas cuidadosamente para passar o resto
de suas vidas ao serviço pessoal do imperador, as únicas mortais que podiam vê-lo por
trás dos véus. Eram elas, também, que levariam seus filhos. Nem era permitido que
falassem por conta própria, sob pena de morte e nunca podiam afasta-se demasiado dos
véus, tendo, muitas vezes, que aguentar suas necessidades ao longo de todo o dia, até
que fossem aos banhos com o imperador. O Krathor percebeu durante a viagem que
tampouco os draoi envelheciam, apesar de que morressem por causas naturais ao fim de
algumas centenas de anos, diferente de seu povo. Nith volta revigorado ao continente ao
lado de seu inseparável amigo, Anamanithe, por volta de 1499 e inicia, de imediato,
uma série de reformas na corte e nas cidades, dando início ao período poentista da
arquitetura crônia.

KVII

A forma mais esclarecedora de abrir os escritos sobre o KVII é fazê-lo através


do testemunho de Kalifenos, da escolta imperial: “Narro diante do julgamento daqueles

42
O nome “Maena” é fruto da pronúncia adaptada ao únio durante o KIX.
que não devem ser nomeados apenas as verdades de meus sentidos e não mais do que
isso, conforme diz a tradição da verdade e da palavra. Eu, Kalifenos, aetherius, nascido
para a felicidade de Vounos, meu pai, durante o nono centenar de meu nobre povo, na
gloriosa Velos, criado como membro dos apathor e instruído na psitekhen do grandioso
Krathor, dou, assim, testemunho ao tribunal do império. Durante o retorno das terras
poentes, meu Krathor e seu companheiro draoi passaram a maior parte do tempo na sala
de reuniões, trancados. O que os fascinava era um antigo tomo compilado em língua
desconhecida como pude ver durante meus períodos de guarda pessoal. Tratava-se de
um manuscrito em couro com páginas antigas porém resistentes. Seu conteúdo parecia,
pelos comentários do Krathor, ser composto por uma complexa mescla de ciência
matemática, comentários sobre a biologia dos seres cientes, histórias sobre povos
imaginários e um longo apêndice com planos detalhados de construção. Conseguiam a
duras penas a transposição de certos trechos, utilizando como base outra dezena de
livros antigos, vasos de porcelana grafados, runas ritualísticas e joias com inscrições.
Chamavam o tomo de Per rens te Pneman kae Psikhen43. O trabalho se estendeu mesmo
após a volta do Krathor, que deixou o comando em mãos de seus Iskhals mais próximos
para poder concentrar-se completamente na tradução. Durante esse tempo, frequentava
diversas vezes o templo do inominável, espaço no qual eu não possuía permissão de
entrar. Durante esse tempo, o príncipe Anamanithe não se afastava dele em nenhum
momento. Não confiava no príncipe desde o incidente na corte draoi, onde pude
presenciar a forma que os líderes do povo poente se alimentam: bebem a alma de
homens e mulheres, deixando apenas o corpo vazio para trás. Sei que muitos não crerão
em minhas palavras, mas diante do inominável, meu testemunho é sincero. Na noite de
ontem, cumprindo minha guarda, acompanhei o Krathor e o príncipe até a entrada do
templo. Apesar da crescente debilidade física, a doença negra44 parecia consumi-lo cada
vez mais, estava muito animado com a possibilidade de haver encontrado uma forma de
curar-se. A mancha em seu rosto, incialmente imperceptível, agora se estendia ao longo
de toda sua face em forma de um grande arco negro de pele ressecada e rachada. Nessa
ocasião, Anamanithe, que normalmente mantinha uma postura elegante e altiva,

43
Pode-se considerar como uma tradução inexata “Sobre a natureza do que envolve alma e espírito”.
44
Não há muitos registros sobre a doença que parecia atingir Nith naquele momento. Entre os
documentos que auxiliam o caso está uma carta de seu porta-voz a Ilios, indicando que “um grande erro
havia sido cometido” e que necessitava “reparar o mal que causara” e “livrar-se do estigma que lhe
corroía a alma”.
apresentava-se com ares de desespero, frequentemente elevando a voz e mencionando
repetidas vezes o livro. Após a entrada de ambos no templo, fiquei bem atento ao que se
passava no interior através de minhas técnicas, percebendo, em certo momento, um
estranho desequilíbrio no fluxo de energias do interior. Ao entrar, vi o corpo do Krathor
no chão, sem a resplandecência que nos é comum, sem vida, sem alma. Em pé, os olhos
de Anamanithe brilhavam como nunca antes vira. Depois senti um profundo impacto
em meu peito e desmaiei, só acordando horas depois. O corpo do Krathor ainda estava
sem vida estendido aos pés da grande pirâmide. Só então pude ver que uma pequena
parte dos textos ainda oculto por trás de seus mantos. Em seguida os demais soldados
apareceram.” (Testemunho de Kalifenos ao tribunal da morte de Nith, Kaelya, KVII).
Kalifenos foi condenado a uma longa e dolorosa pena de tortura e interrogatórios
que lhe extraíram tudo que algum dia já pudera ver. Em seguida, foi executado por
empalhamento na praça pública de Kaelya. Apesar da punição, cartas pessoais da época
revelam que poucos Iskhal realmente acreditavam que era possível a um mero soldado
da escolta imperial o assassinato de um aetheri milenar e imensuravelmente poderoso.
Em questão de semanas, acusaram o príncipe desaparecido de conspiração contra o
império e assassinato, enviando tropas de investigação às terras do poente. Enviaram,
como resposta, um grande baú com os crânios dos soldados pintados em esmalte fino e
uma carta na qual acusavam o império aetheri de conspiração contra a corte do poente e
assassinato de um membro da linhagem real draoi. Começava a Guerra Poente.
Até então, as guerras enfrentadas pelos aetherius se concentravam em território
terrestre. A guerra poente, porém, teve inúmeros embates marítimos, impulsionando a
construção dos primeiros navios modernos de guerra. Enquanto o império aetheri havia
adaptado as nerophides com a tecnologia das vatmodas criando eficazes e rápidas
fortalezas marítimas capazes de expelir fogo contra embarcações inimigas, o império
draoi utilizava os eagesciathan, embarcações com seis grandes velas, duas delas
centrais e duas de cada lado, formando a silhueta de um terrível deus-alado das lendas
do continente poente. Em terra, ambos os exércitos falharam em uma invasão bem
sucedida: o mar rochoso e incerto do litoral minguante de Meanë não permitia que
navios de águas profundas conseguissem desembarcar no litoral e qualquer aproximação
com embarcações menores era facilmente repelida pelas catapultas terrestres e pelos
arqueiros; por outro lado, os draoi não possuíam um exército grande o suficiente para
enfrentar o populoso continente de Cronia, conseguindo ganhar território apenas em
algumas de suas ilhas.
A notícia da morte de Nith causou um grande impacto mesmo do outro lado do
império. Um processo que havia começado com o intercâmbio cultural com o
continente crônio e a disseminação das academias de artes e ciências no território arzi
teve como ápice o evento histórico que ficou conhecido como “A recusa de Akaj”.
Diante de uma das maiores secas já enfrentadas em Luxor, os impostos requisitados
para a guerra de Cronia, atual sede imperial quase fictícia para um povo que mal
conhecia as fronteiras de sua terra, afundavam até as cidades mais preparadas em grande
fome. As crônicas da época indicam que, no interior, dezenas de vilas foram
abandonadas e as cidades explodiam de miseráveis pedindo abrigo. Em muitos lugares o
quadro era pior e os famintos invadiam a casa dos nobres, matando e devorando o que
encontravam em seu caminho. O Mahan45 da cidade de Prakásila no litoral positi-
crescente, Akaj, decidiu desafiar a administração imperial deixando de pagar as taxas
cobradas a cada líder. Após diversas luas de pressão imperial, foi expedida a ordem de
desapropriação da cidade. Em ocasiões normais como esta, os demais membros da
administração imperial ou o próprio exército costumam desfazer-se de seu líder,
esperando, em troca, uma posição melhor na hierarquia da cidade. O caso de Akaj,
porém, diferenciava-se dos demais. Tendo recusado preencher os cofres distantes de um
imperador já esquecido pelo povo, Akaj optou por alimentar seu próprio povo e todos
aqueles que se encontravam necessitados em sua região. Com isso, um exército de
camponeses pegou em armas em seu nome e juraram matar qualquer soldado que
ousasse cruzar as fronteiras de Prakásila. Com os recursos estrangulados pela guerra, os
Iskhal da região não tiveram outra opção senão esperar que a situação fosse mais
favorável para investir contra a cidade. Não tardou para que cada cidade em Luxor
fizesse o mesmo tipo de pressão, vendo que o império dominava uma região maior do
que podia controlar. O povo não mais aceitava o domínio arbitrário de um imperador.
Cronia, porém, diante de um maior controle imperial, mesmo que ainda não
houvesse um herdeiro direto ao trono, conseguia manter-se estável. A guerra disputada
nos mares distantes em pouco afetava a vida das grandes cidades e a necessidade de
preparação e construção de materiais para a guerra aquecia a economia. Enquanto a

45
Cargo equivalente a líder de uma cidade entre os povos arzi da Krathoria.
armada aetheri lidava com as incursões bélicas, um clã de comerciantes mestiços aadi-
gaarthari havia prosperado ao ponto de construir sua própria armada. Com a permissão
imperial, Iuliun Darena, convoca homens de toda Marina para iniciar a conquista do
poente. Dois anos depois, começam as incursões na maior área extracontinental ao
poente, denominada pelo capitão com o nome de sua primeira esposa, Penya. Diferente
do continente, a colossal ilha de Penya era pouco habitada e as tribos existentes eram
compostas por grupos pacíficos, pouco afeitos a guerra. A chegada dos crônios lhes
trouxe mais curiosidade que medo. Os relatos dos sacerdotes de vi’on que
acompanharam a incursão, porém, mostram que a civilização pagou um alto preço:
“Após meses de viagem é compreensível que esses seres de carne se comportem de
forma selvagem, porém o que meus olhos testemunharam é o fruto dos piores desvios.
Não há compaixão entre os doentes que servem o deturpado capitão Darena. A maioria
dizima um povo de olhar inocente como quem abate gado. Riem do sofrimento e agem
de forma sádica, desmembrando lentamente os sobreviventes. Os poucos guerreiros do
local tem a sorte dessa morte. As mulheres são presas a grossas correntes e estupradas
diariamente das piores formas possíveis. Nem as meninas mais jovens são poupadas.
Invoco a cada noite o nome do grande Dia para que ilumine o coração dessas almas
deturpadas ou que livre o mundo desse mal” (Diário de Gwan‟ezz, sacerdote de vi‟on,
Penya, KVII).
A riqueza mineral da ilha era indescritível. Muitos nativos caminhavam com
enormes placas de ouro tratando-as como se trata uma flor bonita. Em pouco tempo,
com o envio de gratificações a corte aetheri, Darena conseguia comprar a autonomia
interna de seu povo. Não mais administrados pelo império, todos ganhavam. O império
reduzia os custos de manutenção e aumentava os impostos e Darena estava livre para
transformar sua terra em uma potência ultramarina.
Suas tentativas, porém, de incursão no continente foram frustradas. Os nativos
do litoral crescente mostravam-se mais preparados para a guerra e inclusive portavam
armas de bronze, mostrando que certo grau de civilização já havia sido alcançado.
Alguns passos dentro da densa floresta e os homens de Darena deixavam de ser os
cruéis guerreiros para se tornarem amedrontadas presas na mão dos conhecedores da
terra. Ensaiando pequenas incursões ao longo de todo litoral nascente do continente,
acabaram por encontrar um arquipélago de magnitude semelhante à Penya, recebendo,
desta vez, o nome de uma das filhas do capitão, Iulya. O povo das pequenas ilhas era,
em sua maioria, pescador, e vivia em maior civilidade que os nativos do crescente.
Eram capazes de forjar espadas de ferro e lanças, mas suas armas eram ineficazes contra
as armaduras crônias. Alguns conseguiram fugir em barcos de pesca, mas a maioria
morreu antes do fim de três luas. O espaço serviu de base para o acumulo de tropas
aetheri que, com isso, encontraram um ponto estratégico para entrar em território draoi.
Antes, porém, de invadir Meanë era necessário um novo rosto para o império,
um novo e poderoso Krathor. Ilios, administrador experiente e braço direito do Krathor
a séculos era a escolha mais indicada, como cartas do próprio Nith corroboram. Os
Iskhal de Karnat, porém, viam com maus olhos o poder na mão de um aetheri criado em
Luxor, sem nenhuma noção da vida política da nova capital do Império. Dessa forma,
optou-se por apoiar a ascensão de Iskhros, da própria linhagem de Nith, filho de um de
seus sobrinhos. O novo Krathor era um jovem com menos de um século de vida e pouco
entendia sobre política ou guerra, mas a consanguinidade fortaleceria os laços entre seu
governo e o anterior, ao menos aos olhos dos crônios, que acreditavam na
hereditariedade do poder.
A figura que deveria ser um fantoche dos políticos mais experientes, era, porém,
mais sagaz do que esperavam os anciões. Criado entre os corredores de Karnat,
conhecia bem como funcionava o jogo do poder e entendia o que significava o apoio
daqueles homens. Mandou-os todos como diplomatas na maior ameaça feita ao império
draoi. Ao fim do ano, recebia de volta os crânios decorados para adornar seu novo trono.
A grande dádiva de tornar-se Krathor era, também, seu maior problema. Herdara um
império em plena decadência do nascente e em guerra no poente, tendo, ainda, inimigos
dentro da própria corte onde vivia. Para mudar o quadro percebeu que era necessário
entender cada passo e cada erro de Nith. Em pouco tempo havia se tornado obcecado
pelo antigo Krathor. Conversava com cada homem que foi próximo a ele, lia seus
diários e vestia suas roupas. Em sua biblioteca particular, porém, encontrou o que
poderia ser o trunfo de seu império. Dezenas de manuscritos draoi, com anotações em
aetheri, abriam os segredos dos misteriosos habitantes do poente. Suas artes refinadas
estavam além do conhecimento mortal, da forja e a matemática. Eram saberes ocultos,
que lidavam com a essência dos mundos.
O Krathor convocou, então, as maiores mentes que havia em seu vasto império
para auxiliá-lo nos caminhos daquelas saberes. Reunidos em no próprio templo do
inominável, sábios arzi, filósofos logóticos e cientistas crônios trabalhavam na
reprodução de tudo que era possível fazer a partir das anotações de Nith sobre a
sabedoria draoi. Por mais de dez anos, mantendo em suspenso a guerra poente e
deixando que Luxor proliferasse sua onda de independência, o Krathor apenas dedicou-
se ao domínio dos mistérios que seu antecessor deixara. Se, por um lado, os rituais
reproduzidos não pareciam apresentar nada que não fosse possível através do dom
aetheri, as demais raças pareciam gozar de um poder bem maior em mãos e não tardou
para que as primeiras sociedades secretas começassem a se formar, aprimorando e
transmitindo os conhecimentos de Nith. Rumores não confirmáveis nos indicam que os
Acólitos das Cinzas, A irmandade de Toth e a Suprema Ordem dos Cavaleiros das doze
pirâmides afirmam ter suas origens nesse momento histórico.
Para concluir seu caminho pelos segredos do antigo Krathor foi necessário que
Iskhros acompanhasse um antigo sacerdote arzi até as entranhas do deserto de Luxor,
onde, de acordo com os registros posteriores de um templo local, ainda residiam os
descendentes dos primeiros sábios que guiaram Nith no caminho de seu poder. Levado
ao coração do mundo, Iskhros teve a iluminação, havia descoberto a chave que levaria o
império aetheri à inigualável poder.
Inicia-se, então uma peregrinação que dura até os primeiros anos do século
seguinte, no qual o Krathor visita as maiores cidades aetheri de seu império, incluindo
as ilhas originais, onde nunca havia estado antes, algumas cidades do crescente de
Luxor e sua própria corte em Cronia. Pouco tempo depois, o plano ganhava claridade:
milhares de mulheres aetheri estavam grávidas, um surto demográfico sem precedente
em toda a história daquele povo.

KVIII

“Decreto imperial de urgência bélica: o grande Krathor Iskhros, herdeiro do


poderoso império de Nith, o senhor da vida, o porta-voz da fertilidade e pai do povo
aetheri requisita que todos os aetherius nascidos nos últimos cinco anos sejam levados
imediatamente aos portos da mais próxima cidade imperial. Os jovens serão levados ao
próprio Krathor, em Caelya, capital do império, sendo instruídos no dom que trará ao
império paz e prosperidade.” (Trecho do Decreto da Prole Aetheri, KVIII).
Em 1607 fundava-se a academia de formação militar e cívica aetheri, preparando
não mais apathor, como a tradição pregava, mas soldados instruídos em artes, ciência e
filosofia. A cada ano novos recrutas chegavam e em cinco anos estavam formados para
a servir ao novo Krathor. A fertilidade gerada por Iskhros não extinguiu-se na primeira
gravidez, fazendo que a cada ano novas crianças fossem enviadas até Cronia. Para que o
povo não se sentisse desmotivado a manter uma gravidez apenas para perder o filho em
nome do império, o Krathor havia decretado que após cinquenta anos de serviço, os
soldados eram realocados a cargos administrativos ou patrulhas próximas a suas
famílias, fazendo com que os aetherius prosperassem como nunca antes se havia visto.
Em 1630 mais de vinte mil Nefantros, como ficaram sendo conhecidos após sua
formação, já estavam alocados em Iulya a espera de ordens de ataque. Um ano depois a
ordem foi enfim expedida. Em questão de dias milhares de barcos atravessaram o litoral
minguante de Meanë e sitiaram a cidade de Tenereon. Diante disso, uma das Lamhe do
imperador draoi foi enviada para transmitir uma mensagem. Conduzida gentilmente
pelo próprio Krathor, foi levada até a praia próxima à corte, onde lhe foi ordenado que
narrasse ao imperador a vista: De uma ponta a outra do horizonte, navios de guerra
estavam a postos para enviar mais tropas até Iulia e de lá ao continente. Mesmo que
conseguissem se defender e matassem toda a tropa que havia sitiado a cidade, dez vezes
mais nefantros estavam a postos para guerrear.
A rendição foi pacífica. Como acordo, punição, foi proibido que o imperador
mantivesse seu posto, sendo imediatamente rebaixado a rei a serviço dos aetheri. Dessa
forma, lhe foi também proibida a prática dos véus de anonimato. Fazendo que este
revelasse diante de todo o povo seu rosto. Humilhado, o imperador Anmorghrien II
assumia sua derrota.
Apesar da anexação de Meanë ao império aetheri ter sido fruto de uma longa
guerra, sua conclusão foi a menos sangrenta da história. Após incontáveis luas de
negociação, arte que os draoi dominavam com maestria, o reino poente havia
conseguido uma série de benefícios comerciais em troca do apoio incondicional à
colonização do crescente selvagem. Dessa forma, cidades de porte médio a crescente da
corte ganharam força com a constante presença de embarcações, soldados e matéria
prima para guerra, magnificando a economia local até transformá-los em potências
comerciais. Com a morte do rei draoi na oitava década do século, seus filhos optaram
por dividir a administração entre si, uma vez que, retirando Anamanithe, só restavam
três deles.
Dessa forma, o centro das tradições draoi ficou sobre controle do primogênito
do rei, Scathgheinridh, o primeiro de seu nome, recebendo o nome de Tinereon46. A
cidade a crescente foi usada como principal porto de entrada dos estrangeiros no
continente devido a seu litoral menos perigoso. Deu origem, assim, ao cosmopolita
reino de Daraneann, cujo líder era a única filha do antigo rei, Princesa Daranean. Por
último, o mais jovem dos filhos herdou a última terra antes do início da impenetrável
selva, o príncipe Mordangraín, que denominou seu reino Eren, a terra da fertilidade,
devido à riqueza vegetal e bom clima.
Com o auxílio dos draoi, chamados pelos crônios de Magi47, foi possível iniciar
colônias em pontos mais vulneráveis do continente, dando origem aos territórios de
Akwan e Agran. Para povoar as regiões, o império ofereceu aos Darena de Penya, já
acostumados ao clima e à língua local, a concessão das terra em troca de uma
porcentagem da extração de minerais preciosos. As mais preciosas mercadorias
exportadas pelos mercadores das novas colônias eram, porém, as nativas. Os
comerciantes capturavam enquanto ainda eram novas e ensinavam a ela a língua e os
costumes crônios, assim como as introduziam nas artes sexuais, sem que, com isso,
tirassem sua virgindade. Depois, eram tratadas por artistas magi contratadas pala
potencia a beleza natural dos corpos e rostos e, por último, vestidas com roupas exóticas
e enviadas em embarcações para o prazer de nobres e ricos comerciantes em busca de
prazeres novos. A prática persistiu até a criação da assembleia que, graças a uma
representação mínima de líderes tribais da região crescente de Meanë.
Por volta do fim do século, os magi começam, lentamente, a emigrar para outros
continentes. A primeira cidade a possuir magis nativos foi Caelya, seguida de outras
capitais de Cronia. Enquanto astrais e logóticos, mesmo nativos, vivam em bairros

46
O nome, antes dado apenas ao palácio, vem da língua draoi “tine” (fogo) e “reo” (gelo), acrescido do
sufixo –n utilizado para nomear locais. Era assim chamado devido a decoração original, que confrontava
peças e pinturas de cores fortes e traços caóticos com a geometria e as cores frias.
47
O nome é a corruptela do termo Magikun, utilizado para designar sacerdotes dotados de habilidades de
cura e maldição. A raiz é do verbo baasi Mguz (Poder, ter poder para). O termo magi era utilizado
amplamente para descrever qualquer um que tivesse laços com as ordens de ciências ocultas
impulsionadas por Iskhros.
raciais e evitam mesclar-se culturalmente aos hábitos crônios, os magi preferiam
envolver-se na cultura local e, devido a sua natureza carismática, em pouco tempo eram
figuras bem quistas e mesmo admiradas.
Não tardou, assim, para que os magi se envolvessem na política, ganhando a
possibilidade de assumir cargos imperiais menores na virada do século. A cidade de
Stagnya foi a primeira a ser plenamente liderada por um Magi. Em Luxor, porém, a
entrada dos Magi foi mais tímida e mesmo nos séculos posteriores poucos, de fato,
conseguiram ascender politicamente. A exceção virá no último K, com a fundação dos
reinos independentes logóticos e a criação do reino misto de Temp‟t.

KIX

O século de ouro do império aetheri. Enfim o sonho de Nith se concretizava,


todos os impérios do mundo conhecido sobre o comando de seu povo, unidos e em paz.
Essa era, ao menos, a visão idealizada do império erguido por Iskhros. Após o fim da
guerra com Meanë, o Krathor volta seus olhos para o melhor controle e manutenção do
poder que havia conquistado. É um século de dura opressão para as mentes
revolucionárias, uma vez que a presença dos nefantros agia de forma efetiva contra
qualquer foco de rebelião. Prosperam nessa época os métodos de aproximar a figura do
Krathor de seu povo de forma divinizada, com a criação de monumentos em sua
homenagem, escrita de obras sobre suas façanhas e academias dedicadas e ensinar a
história do império sob a ótica vitoriosa dos aetherius.
O comércio entre os continentes funcionava com eficácia, controlado, porém,
pela casa Darena, detentora dos direitos de controle marítimo do império. Dessa forma,
apenas os maiores comerciantes conseguiam atravessar suas mercadorias pelo mar, o
que criou, com o tempo, o monopólio de certas famílias. O fluxo, quase sempre, era do
continente de Cronia, capital do império, para o resto das terras conhecidas,
favorecendo o enriquecimento do continente. As maiores famílias compravam seus
direitos de autonomia, como já haviam conquistado os reis de Marina da casa Darena e
os reis de Carnatti da casa de mesmo nome. Dessa forma surge Argena, de uma
linhagem de nobres com sangue eladar, no antigo território de Aedelshire, dominado
pela família Castle. Surge, também, na grande zona fértil de Cronia, o reino de Prada,
sob o comando da casa Moulen.
Mesmo diante de tal estruturação dos territórios crônios, a região primordial dos
vadar ainda permanecia quase intocada. Pequenas vilas nas montanhas, de difícil acesso
e ínfimas riquezas naturais, as zonas habitadas das montanhas eram ignoradas no
movimento de urbanização do império. Os crônios que lá moravam eram conhecidos no
resto do continente como Glácios e vistos como um povo rústico e condenado a uma
extinção lenta e triste.
Da mesma forma que no início da colonização de Cronia foi necessária a
elaboração de uma interlíngua que possibilitasse comunicação entre os diversos povos
que entraram em contato, era, então, necessário um novo esforço nesse sentido. As
diversas variantes do crônio antigo derivaram em línguas próprias nas distintas regiões
do continente, dando origem ao: Adlis, falado em Argena; Marino, falado em Marina;
crônio moderno de Carnatti; o Prairiais, de Prado; o Quamarino em Penya, Aquan e
Agran; e, por último, o Crônio iulês de Iulia. Além de tais idiomas, o império ainda
necessitava lidar com: o arzi antigo, utilizado apenas em arte e textos eruditos dos
reinos de Petran, Pulkran e Helan; o baasi imperial, língua geral assumida pelos falantes
das etnias arzi, aadi e okur, graças a proximidade e contato de Selena, terra primordial
da língua baasi, com os Olhos, capital do império em Luxor; o astral, falado pelos
astrais de Celesta apenas; o Laktsh, idioma da Federação Logótica; o aetheri; e o
draoish falado pelos Magi e pelos Faerdaonar48; fora as inúmeras línguas locais não
contabilizadas pelo império. Para dar conta do problema comunicativo, os filólogos de
Cronia desenvolveram uma língua geral capaz de atender às demandas comunicativas
do império como um todo, adaptando-se a fonética de distintos povos. Mesmo que tenha
sido idealizada como uma língua eficaz para qualquer região, o idioma se tornou
claramente uma interlíngua dos povos crônios com simplificações fonéticas para outras
raças locais. Dessa forma, o Únio, mesmo que tenha sido imposto como língua oficial
do império, só alcançou pleno uso em Cronia. A língua, porém, serviu para normatizar a
grafia do nome dos reinos utilizada até os dias de hoje.
Muitos aventureiros, tendo financiamento de lordes de Cronia e Luxor,
arriscaram a expansão das fronteiras aos chamados “horizontes”, os limites físicos que o

48
Povo da raça dos homens nativo do minguante de Maena.
mundo impunha aos navegantes. Ao crescente, as terras geladas denominadas Netherya,
impediam qualquer avanço significativo de exploradores. A maioria dos que arriscavam
perdiam suas embarcações nas costas rochosas ou sua tripulação pelo frio. Mesmo os
aetheri não conseguiam atravessar as perigosas montanhas nevadas. Tanto para nascente
quanto para poente, os mares tornavam-se demasiado tempestuosos acompanhados de
terríveis tempestades elétricas e escassa vida marinha, tornando impossível a
sobrevivência. O horizonte minguante é mistério ainda maior: coberto por forte e
permanente névoa, os navios simplesmente se perdem nele, rumando até a morte de
seus tripulantes.
A estabilidade econômica e política do período permitiu a expansão das grandes
academias de pensar, que, mesmo dirigidas por aetherius, não conseguia frear o
constante questionamento dos estudantes sobre o direito de governança do Krathor.
Reprimidos severamente, muitos estudantes abandonavam as grandes academias,
reunindo-se em pequenos grupos clandestinos anti-imperais. Anos mais tarde, as células
anti-imperiais haviam se espalhado pela elite intelectual de Luxor e mesmo em Cronia,
os nobres buscavam independência das altas taxas imperiais.
A arte, no período, era famosa por refletir os anseios da elite em relação a sua
independência através de metáforas complexas. Vemos a ascensão do onirismo na
pintura, preocupado em distorcer a realidade em desejos, medos e fantasias; a expansão
da arquitetura astral através dos salões amplos e bem iluminados, em oposição a
arquitetura claustrofóbica da era gaarhar; na literatura destacam-se o lirismo fingidor,
cujos poemas eram dedicados a uma amada mas serviam de metáfora a ideais de
liberdade e as novelas de cavalaria, que reinventavam o passado dos gaarthar na figura
de um rei mítico que liberta o povo de um tirano opressor.
A ciência, diante da estabilidade de vida, perde o incentivo econômico e muitos
consideram o KIX como o século da ignorância. Enquanto debatia-se política, filosofia,
artes e línguas nas academias, a engenharia, a alquimia e a matemática foram deixadas
até mesmo de serem transmitidas nesses locais. A instrução nessas áreas era feita, então,
nas guildas de produção, fragmentando e estagnando a produção científica.
O império estava em seu ápice quando teve início o evento que marca a
trajetória de sua derrocada. Em 1777, um segundo eclipse solar49 paira sobre o mundo,

49
O primeiro ocorreu no século VI e é considerado início do Gaarthismo.
causando espanto e temor. Os sacerdotes de vi’on criam ser o fim dos tempos, enquanto
os astrônomos de Cronia perdiam-se em cálculos e teorias. Os camponeses esconderam-
se em suas casas e os selvagens entregaram sacrifícios à noite. Os registros Incarna
indicam ser este o dia do despertar da grande Incarna, a dama da Lua Negra. Verdade ou
mito, muitos sacerdotes viram o eclipse como um sinal do fechamento de um ciclo e
criam que os tempos posteriores seriam os precursores do fim.
Algumas luas após o fim do eclipse, uma epidemia se espalhou pelo continente
de Cronia. Uma doença que causava uma lenta e progressiva necrose dos membros se
difundia com incrível velocidade entre a população camponesa. Os nobres, para
protegerem-se, expulsavam as camadas baixas da cidade, deixando-os ao lado de fora da
muralha para morrer de fome. Não tardou para que as revoltas populares iniciassem,
trazendo a morte de diversos nobres e a pilhagem de cidades.
Vendo que não conseguiria lidar com a epidemia, o Krathor opta por reconvocar
a cúpula de cientistas, sábios e místicos das ordens secretas para buscar uma solução.
Os experimentos realizados nos porões da corte aetheri foram apagados de qualquer
registro, mas cartas de membros menores da corte relatam os gritos durante as
madrugadas, seguidos de sons cuja origem era impossível determinar. Após seis luas
encerrado com as maiores mentes do império, nada, todavia, podia ser feito para
impedir o avanço da doença, que já havia levado mais de um terço da população de
Cronia. Veio, então, o incidente. Os dados são retirados do testemunho dado por um
sobrevivente a um escrivão magi, que guardou o registro fora do alcance do império:
“Há muito eu vinha escutando os gritos, meu senhor, há muito. Todos lá escutam
súplicas e berros de agonia, sem nada poder fazer, mal conseguimos dormir. As áreas
próximas ao templo estão carregadas de angústia. É possível ouvir sussurros distantes
vindos dos salões vazios da grande pirâmide. Dizem que o Krathor invocava seu deus
maligno para alimentá-lo de poder. Eu e muitos servos pedimos transferência, mesmo
para as colônias de Maena, mas não nos foi permitido abandonar a corte. Veio, então, o
dia em que foram requisitadas cem mulheres sadias de diversas raças, enviadas
diretamente às portas do templo. Aquela noite nunca sairá da minha cabeça. As coisas
que eu escutei não podem ser repetidas. Depois, ainda na cama, senti que o chão tremia
como o estômago de um ruminante. O tremor aumentou até criar pequenas rachaduras
nas paredes. Pouco a pouco uma poeira forte foi tomando conta de tudo, era difícil
respirar. Corremos para fora do palácio, até as ruas, mas elas também estavam cobertas
de uma poeira espessa. Foi então que algo urrou nas profundezas. Um urro diferente do
que qualquer animal já produziu. Pouco depois ouvimos paredes quebrando, pessoas
correndo. Vi gente morta no chão. Silhuetas estranhas atravessavam as vielas da cidade.
Atrás de mim, uma das torres do castelo desabou. Algo colossal se movia pelas sombras,
pareciam tentáculos sem fim envolvendo toda a cidade. Eu pude ver um olho, dentro
dele, o vazio e o silêncio. Depois desmaiei. Acordei há meia jornada da cidade,
carregado por dos guardas que também havia se salvado. Ele, porém, estava
profundamente ferido e morreu antes do fim do dia. Eu consegui chegar até aqui.” (O
nome foi apagado por segurança, deixando claro apenas a data do registro e o local onde
foi registrado).
Na manhã seguinte ao incidente, Caelya, capital do império, havia sido tragada
para as entranhas da terra, deixando somente uma grande cratera no local. O impacto foi
imediato: os gaarthistas viam o evento como diretamente relacionado com o eclipse e
anunciaram o fim da existência; os astrais imediatamente viram o ocorrido como um
claro sinal do envolvimento dos aetherius com Zi‟on; Os arzi e os aadi afirmavam que
era um claro sinal do deus-de-pedra que, puxando a capital do império para destruição,
desejava o seu fim; os Magi viram o ocorrido como a prova de que o império estava
usando seus saberes ancestrais de forma irresponsável e mexendo com forças que eles
desconheciam; mesmo os logóticos não conseguiam deixar de sentir certa apreensão
diante daquilo.
Pouco tempo após o incidente, já era notável a efetividade da pregação da Dama
da Lua Negra. O eclipse marcara o abandono d‟Aquele-que-é-sete do mundo, assim
como marcou sua chegada. Os tempos que viriam eram os últimos antes de um fim
tenebroso e os homens estavam entregues a si mesmos. Para protegê-los, porém, Eladur
havia descido ao plano dos homens e abdicado de sua imortalidade, tornando-se a Dama
da Lua Negra. Ela indicava que após sua chegada, os demais deuses se compadeceriam
do povo e também desceriam, um a um para salvá-los. Só os mais valorosos, porém,
conseguiriam vencer as provações e mereceriam um lugar na Cidade de Prata. Enquanto
os demais estariam condenados a sofrer eternamente nas Terras da Perdição. Capaz de
curar a peste, foi procurada por milhares de crônios, fazendo uma longa peregrinação
semelhante a dos primeiros gaarthistas, conquistando legiões por onde passava.
Não se sabe se o incidente foi a causa ou apenas o empurrão final, mas em
poucas luas iniciavam-se as primeiras reuniões clandestina dos opositores ao império. A
Assembleia dos Livres, como ficou conhecida posteriormente, reunia monarcas de todo
o império em um plano para derrubar o poder aetheri. Os logóticos organizaram um
esquema de infiltração nas principais instituições imperiais utilizando as falhas de um
sistema que há muito era corrupto. Para impedir traições, foram escolhidos parentes
leais, com dívidas com as famílias nobres ou servos obstinados, sem informar-lhes nada
sobre o plano. Para todos os efeitos, levá-los a um cargo imperial era apenas um favor.
A seguinte fase preparatória planeja pelos logóticos era deslocar os scath50 de Maena
sem chamar a atenção do império. Para isso, foram utilizados os navios de escravos da
casa Darena, cujos capitães a muito já conheciam rotas não fiscalizadas para efetuar
seus contrabandos. Por último, era necessário preparar um lugar para aprisionar os
aetherius mais poderosos. O dom possuído por eles era um fenômeno a ser estudo e
matá-los acabaria com essa possibilidade. Dessa forma, os Magi ofereceram seu
santuário sagrado, uma ilha secreta, cercada por um labirinto de formações rochosas,
cuja localização só a família real conhece e é passado de geração em geração.
A construção das instalações da ilha-prisão levou mais de dez anos. Era
necessário levar materiais e trabalhadores por um percurso perigoso e de lento avanço
utilizando, para isso, poucas embarcações a fim de não levantar suspeitas. Uma vez
terminada foi, ainda, necessário o treinamento de soldados que cuidassem da prisão e
políticos que a administrassem. Ao total foram recrutados mais de dois mil homens,
entre trabalhadores, soldados, mulheres e os cientistas que conduziriam as pesquisas.
Em 1795, após todos os preparativos estarem corretamente acertados, teve início
“A grande revolta”. Para começá-la, os nobres de Luxor e Cronia contrataram
secretamente trovadores, nobres decadentes e políticos falidos para incitarem revoltas
locais. O surto revolucionário que o império já estava sofrendo favorecia o plano,
facilitando a revolta dos camponeses e não levanto suspeitas. Não tardaram para que as
notícias chegassem aos Iskhal regentes que tentavam contornar a situação de forma
diplomática, uma vez que a multiplicidade de focos de manifestação impedia uma

50
A tropa das sombras, um grupo de elite do império magi treinado nas mais secretas artes letais do
continente. Eram utilizados pelos antigos imperadores para matar opositores poderosos sem entrar em
guerras. Especialistas em infiltração, combates corpo-a-corpo, venenos, disfarces e artes místicas, são os
únicos magi com o direito de alimentar-se da alma de outro ser consciente.
coerção direta e efetiva. Para tal, trataram rapidamente de elevar um novo Krathor ao
poder. Agon, diferente dos últimos Krathor não era oriundo dos grupos militares, mas
um sábio alquimista do século V que dedicava-se, principalmente, ao estudo das artes,
da ciência e das sociedades. Foi sob seu comando que iniciei essa pesquisa, que só
concluo agora, mais de trinta anos após sua ordem. Perdoem-me, nesse momento, se
abandono minha postura neutra de historiador para dedicar um espaço dessa cronologia
aos meus próprios pensamentos. Eu cresci na academia regida por Agon. Era, na época,
um homem que gostava de ler, principalmente fantasias, e conversava com cada
estudante como se o mundo não tivesse pressa. Nunca interessou-se por imbuir-se do
dom oferecido por Nith, fazendo com que tivesse uma perspectiva próxima da humana
sobre os poderes dominados por seu povo. Era quase um de nós. A maior parte dos
aetherius que conheci ao longo da vida estavam envolvidos numa aura de mistério e
poder, como divindades intocáveis conhecedoras dos segredos do universo. Agon
desfazia essa perspectiva. Mesmo que trabalhasse para o império, fazia questão de
mostrar como que a longevidade aetheri não trazia tantos benefícios como supúnhamos
nós, mortais. Sempre que encontrava um recém ingressado, contava a mesma anedota
com seu cachimbo entre os dentes: “Pode parecer estranho, meu caro aluno, mas um dia
eu fui jovem como tu e, um dia, tive uma impressão próxima a que tens agora de mim e
de meu povo. Eu, amante dos saberes como sempre fui, imaginava-me com mil anos,
dotado de todo o conhecimento já produzido pelo homem, pronto para guiar a
civilização por novos caminhos. Foram necessários séculos para lidar com a desilusão.
Esquecia-me. Cinquenta, cem anos depois aprender cálculos, mal lembrava como grafar
os números. Aprendia todos os poemas arzi apenas para, trinta anos depois mal
recordar-me de dois ou três. Lembras da tua infância, meu jovem? Só alguns momentos,
não? Imagens soltas, frases, cheiros, um evento marcante. Assim foi minha vida, uma
sucessão de centenas de infâncias, cada vez mais perdidas nas névoas do tempo. Dessa
forma, aprendi que a melhor forma de viver é ser sempre jovem e redescobrir o mundo a
cada dia.”. Não fosse o momento de pré-rebelião, nunca haveria ele ascendido ao trono,
sei, mas, não fosse a rebelião tirá-lo do poder, ele haveria sido o melhor Krathor que o
império poderia esperar.
Sua primeira medida no poder foi negociar com os Iskhal poderosos a redução
das taxas, sem que, com isso houvesse insatisfação ao ponto de tirarem-no do poder.
Depois, ordenou a recuada das tropas e o envio de diplomatas crônios que lidassem com
os anseios da população, organizando grupos de reivindicação popular. A ordem, porém,
nunca chegou, de fato, a ser dada. Em vez dela, foram emitidas mensagens de guerra
declarada aos camponeses pelos infiltrados imperiais, dividindo a tropa aetheri em
tantos focos de ação que pouco mais de duzentos soldados partiam para cada região.
Para fortalecer os grupos, os líderes das tropas convocaram o auxílio do exército de
Marina, Argena, Prada e Carnatti, em Cronia, e de Stara, Celesta, Petran, Pulkran e
Helan em Lxuor, todos já preparados para o golpe. Durante a noite, os soldados
executaram os aetherius enquanto dormiam, acabando, em uma única noite com a maior
parte do exército – e da própria população – aetheri. O evento ficou conhecido como “A
última noite do império” mesmo que ainda não fosse o momento de sua queda.

O último K, ou I N.A.51

No início do último K, os aetherius remanescentes já haviam fugido para os


Olhos, única terra onde eram maioria e de fácil defesa territorial. Agon, porém, optou
por deixar-se capturar por Tiaro, rei de Carnatti, em troca da possibilidade de negociar
em nome de seu povo. Inicialmente, o Krathor imaginou que diante da dificuldade de
assaltar o antigo território aetheri, a maior parte dos políticos perdesse o interesse em
finalizar o trabalho e os deixasse continuar a viver em sua terra natal. Scathgeinridh,
porém, mandou que trouxessem a sala de reunião o menino. Era um rapaz de idade
próxima a minha, de traços camponeses. Foi-lhe ordenado que fizesse a demonstração.
Não posso expressar a perplexidade que me tomou quando o menino estendeu uma de
suas mãos, que possuía a marca de uma lua negra, e fez a mesa levitar sobre a sala,
pondo-a, em seguida, novamente em seu lugar. Antes que Agon pudesse digerir as
informações, outros dez entraram na sala. Dois magis, quatro crônios, um ilhota das
Sereias52, um logótico e dois astrais. Todos estavam marcados por essa estranha
tatuagem e eram capazes de fazer os mais diversos prodígios. Agon percebera naquele
momento que os mortais havia sido mordidos pela mesma ambição que condenou o seu

51
Século primeiro da Nova Aurora.
52
Nome pelo qual que popularizaram as colônias das ilhas a nascente de Cronia que passaram à
administração da casa Darena como parte dos acordos comerciais.
povo a quase dois milênios de guerra. Haviam cavado fundo e descoberto o que nunca
deveria chegar às mãos do homem. Era o fim.
Agon aceitou negociar a rendição de seu povo, que seria realocado na ilha-prisão,
onde poderia viver para sempre longe dos mortais. Em troca, deveria ficar e colaborar a
Assembleia a formar-se e auxiliar na caçada dos aetherius dissidentes, servindo, ainda,
de figura diplomática aos grupos que não aceitassem soberania outra que não viesse
pelo “povo celeste”.
Me despedi de Agon no dia em que partiu para a ilha que abrigaria a sede da
assembleia. Pediu naquele dia que eu não deixasse de concluir o trabalho que ele havia
me confiado. Hoje, a Assembleia reina soberana, os aetherius moram em ilha perdida
em algum lugar desse mundo, os marcados são responsáveis pela caçada dos aetherius
restantes, os Incarna são a fé predominante e o mundo se tornou um lugar livre, mesmo
que ninguém tenha notado a diferença.

Dedico esse livro a meu tutor, amigo e Krathor, Agon. Que sirva de guia para
as gerações futuras. Que saibam o que realmente aconteceu com o mundo e tenham a
sabedoria de guiá-lo para um lugar melhor do que hoje eu vejo.

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