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I

1\ So lid ão dos Moribund os


scg 11 ir/ o de
Enve lh ecer e M o rre r

Tradu-:.10:

Plmio O~ntzicn

Rio de j3ncin1
Sumário

Título original:
Oi,t•r dic Eiusc"rmkcit da Stcrbt:rufrrl

Copyright ~.!,·) 1982, Norbcrt Elias

Coprri~ht ~') 198~ do Pt)Sf<\cio ~l cd . ing., Norbcrt Elias


C0pyri~ht da ,cdi~;Jn c:m lingua portuguesa c.u, 2001 : A solidao dos n1oribundos 7
Jorge Zahar Editor Ltda.
I
rua rvtcxico 31 sobreloja \

20031-144 Rio de Janeiro, RJ


Envelhecer e morrer:
Ld.: (21) 2108-0808/ fax: (21) 2108-0800 alguns probJ,e nlas sociológicos 79
e rnail: jze@zahar.com.br
9

site: www.zahar.com.br
Índice re1nissivo 105
Todos os direitos reservados.
A reprodução não-autorizada desta publicação, no todo
ou em parte, constitui violação de direitos autorais. {Lei 9.610/98)

Capa: Sérgio Campante


llustrnção da capa: Leonardo da. Vinci,
Estudos Anatômicos

Cl P- Brasil. C a taJogação- na- fonte


Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

F. Iias, No rbert, 1897-1990


E4 t .s A soJjdão dos moribundos, seguido de, Envelhecer e morrer I
Norbert Elias; tradução, Plínio Dentzien.- Rio de Janeiro; Jorge
Zahnr Ed .• 200 I.

Traduçào de: Über die Einsamkeit der Sterbenden


ISBN 978-85-7110-616-1

l. Morte - Aspectos sociais. 2. Envelhecimento. I. Título. H.


Título: Envelhecer e morrer.

CDD: 306
01-1049 CDU: 393
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() texto pri ndpal des te livro foi publicado pela prin1eirn vez en1 ~
•tlcmâo cn1 1982. "Envelhecer e morrer'' é uma versão revista d e
.,
lllna con f~rência apresen tadn e rn um. congresso 1nédico etn Bad
S.:l ]zufen en1 outubro d e 1983.

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r

1
'

Há várias man·eiras de lidar ~om o fato de que todas as


•. !
-
vidas, incluídas as das pessoas que amamos, têm um fim .
;
j
O fj_in da vida h uma na, que chamamos de morte, pode ser
mitologizado pela idéia de uma outra vida no Hades ou
no ValhaHa, no Inferno ou no Paraíso. Ess·a é a forma mais
antiga e comum de os humanos enfrentarem a finitude da
vida. Podemos tentar evitar a idéia da morte afastando-a
de nós tanto quanto possível encobrindo e reprimindo
a idéia ind-e sejada ou assumindo uma crença inabalá-
vel em nossa própria imortalidade ('os outros morrem,
eu não"~ Há uma forte tendência nesse sentido nas socie-
dades avançadas de nossos dias~ Finalmente, podemos
encarar a morte como um fato de nossa existência; pode-
-
mos ajustar nossas vidas, e particularmente nosso com-
"

'
portamento em r elaçao às ôutras pessoas, à duração limi-
tada de cada vida. Podemos considerar parte de nossa
tarefa fazer con1 que o fim, a despedida dos seres
,
huma-
'i.
nos, quando chegar, seja tão fácil e agradável quanto pos-
sível para os outros e para nós mesmos; e podemos nos

7
r
f
8 ~ A soHdão dos, moribundos 9
Norbert Elias I
!•
I

I..
colocar o problema de como realizar essa tarefa.. Atual:- :1 não ao·s gladiadores na arena . Se c~omp~arados .a os da An-
me.r:tte, essa é uma pergunta que só é fe.itá de ma.neira tigUidad~e, nossa identificação com outras pessoas e nosso

clara por algun.s médico~ - n~o debate mais amplo da compartilhamento de· seus sofrimentos e morte aumen,eo
sociedade, a questão raramente s~e coloca. 1
taram. Assistir a tigres e leões famintos devorand~o pe~s. .
E isso não é só~ uma questão~ do fim efetivo da vida~~ do soas vivas pedaço a pedaço, ou a gla~diador~es, por astúcia
atesta~do de ó~ bito e ~do caixão. .Muitas pessoas mo~ rrem e e·ngano,, mutuamente se frerind·o e matand.o ., dificilmen-
gradualmente; a~doe~cem, envelhecem. As últimas horas t~e constituiria uma divers.ã o para a qual nos p~ repararía­

sã~o~ importantes, é claro, Mas muitas vezes a partida co- <.


mos com o mesmo prazer ~que os senadores ou ~o povo
meça m.u ito antes. A fragilidade dessas pessoas é muitas romano. Tud~o indica que nenhum s~entimento de identi-
vezes suficiente para separar os que envelhecem ~dos vi- dade unia esses espectadorêSe-·âqueles.que,·nã arena, luta-
.. =...;-~ . - o - . . .. .... • !. - ~-

v·os . Sua decadência as isola. Podem tornar~s~e menos so- vam por suas vidas. Como gladiadores sau~ sab~mos, os

ciáveis e seus sentime.n tos menos calorosos, sem ~que s.e davam o imperador ao entrar co·m as palavras ~'Morit~uri
~extinga sua n.~ecessidade dos ~outros. Isso é o mais ~d. ifícil -=-· te salutant, ( ~Os qu~e vão morrer te saúdam) . Alguns dos
o isolamento tácito dos velho~ s e dos moribundos da co- imperadores sem dúvida se acreditavam imortais. De
munidade dos vivos, o~ gradual esfriamento de suas rela- tod·o modo, teria sido mais apropriado~ se o~ s g]adiadores
ções com pessoas a que eram atieiçoados., a separação em dissessem ccMorituri moriturum salutant''. (Os que vão
relação aos seres humanos ~em geral,, tudo que lhes ~dava. morrer saúdam aquele que vai morrer). P'orém, numa
senti~do e seguran~ça~ Os a~ ..~~ ~e ~~~c;.~4~~~~~. sã~o_ pçn~os.os so~ ciedade em que tivesse sido possível dizer isso, prova-
... ~ ._.. ..-

não· só para os que sofrem, mas também para os que são ve lment~e~ nã·O·h averia gladia~dores ou imperadores. A pos-
..•.
·a.~ados ~º~~O rato de~~~·sem ·que-na:;-aeSPec!atJ11 ~~n~ sibilidade de se diz~er isso aos dominadores alguns ~dos
çã.o,l o~ isoJamento-Pfe'Co·ce dos moribundo~s ocorra. com · quais me·smo hoje tê·m poder de, vida e morte sobre, um
~ai~lreciüência nas sociedades mais_~vançad~~- êluna.~as sem . . núm~ero d.e seus semelhantes- requer um.a desmi-
.
fraqüe'Zãs~d.essas sociedàd.es~ ·-E u.m testemunho das difi- tologização da morte mais ampla do que a. que temos
éufdades que.
muitas peSSoas têm em identitk~r-se com hoj~ e, el uma consciência m.u ito mais clara de que a espé-
os velhos e moribun~dos . cie humana é utna co~ munid.ade de mortais e de que as
I

•• I • • •' - .....

Sem dúvida, o espaço d.e identificação é ntais amplo p .e ssoas necessitadas só~ pod.e m esp.e·rar ajuda de outras
que em f?~.! f~~-ép~cas. Não mais consideramos um entre- •,',
.
pessoas. ~o problema. social da morte é especialmente
--
. ..----~---r

tenimento ~d ·e ~domingo assistir a enforcamentos, esquar-


I

_ - -- ..._.____ -

___.. _de resolver·porque ~os vivos acham cJ•.fjçilidenti-


difíci!
ficar . . se com os moribundos.
~ ~

tejamento~ s e suplícios na roda . Assistimos ao futebol, e


----~----· .....
10 Norbert Elias A solidão dos moribundos 11

A morte é um problema dos vivos. Os mortos não aprendida à vida em grupo foi revertido. Disposições
têm problemas. Entre as muitas criaturas que morrem na inatas a uma vida com os outros requerem sua ativação
Terra, a morte constitui um problema só · para os seres pelo aprendizado - a· dispos ição de falar, por exemplo,
humanos. Embora compàrtilhem o nascimento, a doen- pelo aprendizado de uma l!ng':l_~· Q~ ser:e§_h.!lmanos não
ça, a juventude, a maturidade, a velhice e a morte com só podem, como devem aprender a regular sua conduta
os animais, apenas eles, dentre todos os vivos, sabem uns em relação àos outros em term os de limitações ou
que morrerão; apenas eles podem prever se u próprio regras específicas à comunidade. Sem aprendizado, não
fim, estando cientes de que pode ocorrer a qualquer siô capaiés de funcionar como indivíduos e membros
momento e tomando precauções especiais- como indi- do grupo. Em nenhuma outra espécie essa sintonia com
víduos e como grupos- para proteger-se contra a amea- a vida coletiva teve tão profunda influência sobre a
ça da aniquilação. forma e desenvolvimento do individuo como na espécie
Durante milênios essa foi uma função centrai de humana. Não só meios de comunicação ou padrões de
grupos humanos como tribos e Estados, permanecendo coerção podem diferir de sociedade para sociedade, mas
uma função importante·· até nossos dias. No entanto, também a experiência da morte. Ela é variável e espe-
entre as maiores ameaças aos humanos figuram os pró- cífica segundo os grupos; não importa quão natural e
prios humanos. Em nome do objetivo de se proteger da imutável possa parecer aos membros de cada sociedade
destruição, grupos de pessoas ameaçam outros grupos particular: foi aprendida.
de destruição. Desde os primeiros dia~, sociedades for- Na verdade não é a morte, mas o conhecimento dá
madas por seres humanos exibem as duas faces de Janus: morte que cria problemas para os seres humanos. Não
l'~e~_dentro,3meaça para fora. Também em devemos nos enganar: a mosca presa entre os dedos de
~utras espécies a i~p7,~(Ta- da .sobre~ivência das so- uma pessoa luta tão convulsivamente quanto um ser hu-
ciedades encontrou expressão na formação de grupos e mano entre as garras de um assas'sino, como se soubesse
na adaptação dos indivíduos à vida comum como uma do perigo que corre. Mas os m_ovimentos defensivos da
característica de sua existência. Mas, nesse caso, a adap- mosca quando em perigo mortal são um dom não apren-
tação à vida do grupo se baseia em formas geneticamen- dido de sua espécie. Uma mãe macaca pode carregar sua
te predeterminadas de conduta ou, na melhor das hi- cria morta durante certo tempo antes de largá-la em al-
póteses, limita-se a pequenas variações aprendidas que gum lugar e perdê-la. Nada sabe da morte, da de sua cria
alteram o comportamento inato. No caso dos seres hu- ou de sua própria. Os seres humanos sabem, e assim a
manos, o equilibrio entre a adaptação aprendida e a não morte se torna um problema para eles.
I
i
12 Norbert Elias A solidão dos moribundos 13

2 pulsos de seus lares e queimados às centenas. "Com ale-


gria em nossos 'corações presenciamos sua morte no
A resposta à pergunta sobre a natureza da morte muda no fogo': disse um dos vencedores. Nenhum sentimento de
-··· "
curso do desenvolvimento social, correspondendo a está- identidade entre humanos e humanos; crença e ritual os
gios. Em cada estágio, também é específica segundo os separavam. Com expulsão, prisão, tortura e fogueira, a
grupos. Idéias da morte e os rituais correspon~~n~~~ tor- Inquisição reforçava a campanha dos cruzados contra
nam-se um aspecto da socialização. Idéias e ritos comuns povos de crenças diferentes. As guerras religiosas do iní-
une'ffi pessoas;
··- ..
·· ~ ·
no caso de serem. .divergent~:S.. "separam cio da era moderna são bem conhecidas. Suas conseqüên-
grupos. Seria interessante fazer um levantamento de to- cias são senti"das ainda hoje, por exemplo na Irlanda. A
das as crenças que as pessoas mantiveram ao longo dos recente luta entre sacerdotes e governantes seculares no
séculos para habituar-se ao problema da morte e sua Irã também nos lembra a apaixonada ferocidade do sen-
ameaça incessante a suas vidas; e ao mesmo tempo mos- timento comunitário e a inimizade q~e sistemas de cren-
trar tudo o que fizeram umas às outras em nome de u.ma ças sobrenaturais foram capazes de desencadear em so-
crença que prometia que a morte não era um fim e que os ciedades medievais, porque propunham a redenção da
rituais adequados poderiam assegurar-lhes a vida ~terna. morte e a vida eterna.
Claramente não há uma noção, por mais bizarra que seja, Nas sociedades mais desenvolvidas, como disse, a
na qual as pessoas não estejam preparadas para acreditar busca de ajuda em sistemas de crenças sobrenaturais con-
com devoção profunda, desde que lhes dê um alívio da tra o perigo e a morte se tornou menos apaixonada; em
consciência de que um dia não existirão mais, desde que certa medida, transferiu sua base para sistemas seculares
lhes dê esperança numa forma de vida eterna. de crenças. A necessidade de garantias contra nossa pró-
Sem dúvida, nas sociedades avançadas os grupos não pria transitoriedade diminuiu perceptivelmente em sécu-
insistem mais tã~aixonadamente éin que apenas sua los recentes, por contraste com a Idade Média, refletindo
é'r ença ~-<?.~i~n~t~r~1.~-~f.t~is~d.e~~ga.~_:~ntir. ~ -;eus
~~~?_ros uma .v ida eterna depo is da vida terrena. Na
Idade Média, os indivíduos com crenças minoritárias
--- ---
um estágio diferente da civilização. Nos Estados-nação
..-..
mais desenvolvidos, a segurança das_.J2_gs.soas._sua prote-
çã~ '~on tra· os goÍp~s máis br~t~i;-do destino como a
eram muitas vezes perseguidos a ferro e fogo. Numa cru- doença ou a m~~te rep~nti~·a, é muit~ ~~i~r-que ante-
zada con tra os albigenses no sul da França no século XIII, ri~rmente, e talvez maior que em qualquer outro estágio
uma comunidade mais forte de cre ntes destruiu outra dÕ desenvolvimento da humanidade. Comparada com
mais fraca. Os membros desta foram estigmatizados, ex- estágios anteriores, a vw_q. ~as sociedades se tornou
.- - ---···--
:·· .

14 Norbert Elias A so lidão dos moribundos 15

mais previsível, ainda que exigindo de cada indivíduo um cessidade de poderes protetores supra-humanos. Não há
_&E.~u mais elevado de a.ntecipação e controle das paixões. dúvida de que, com o aume nto da incerteza social e com
A e"Xp..._ectat~Y~.~4i_iida relativamente
~· ' . alta dos indivíduos a diminuição da capacidade de as pessoas anteciparem e
nessas sociedades é um refle~QJ!.umento-d-a-.segUfança. - até certo ponto- controlarem seus próprios destinos
Entre os cavaleiros do século XIII, um homem de quarenta por longos períodos, essas necessidades se tornariam ou-
anos era visto quase como um velho; nas sociedades in- tra vez mais fortes.
dustriais do século XX, ele é considerado quase jovetn- A atitude em relação à morte e a imagem da morte (
com diferenças específicas de classe. A prevenção e o tra- em nossas sociedades n ão podem ser comp letamente en-~
tamento de doenças hoje estão mais bem organizados tendidas sem referência a essa segurança relativa e à pre-
que nunca, por mais inadequados que ainda sejam. A visibilidade da vida individual- e à expectativa de vid
pacificação interna da sociedade, a proteção do indivíduo correspondentemen te maior. A vida é mais longa, a mor-
contra a violência não sancionada pelo Estado, como te é adiada. O espetáculo d a morte não é m ais corriquei-
contra a fome, atingiu um nível inimaginável pelos povos ro. Ficou mais fácil esquecer a morte no curso normal da

I
d e outros tempos. vida. Diz-se às vezes que a morte é "recalcada': Um fabri-
e claro que, vista mais de perto, a situação revela cante de caixões norte-americano observou recentemen-
quão tênue ainda é a segurança d o indivíduo neste mun- te: "A atitude atual em relação à morte deixa o planeja-
do. E a tendência à guerra traz uma ameaça constante às m ento do funer al, se tanto, para muito tarde na vida." 1
vidas dos indivíduos. Só a partir de uma perspectiva de
longa duração, pela co~p_~!..~-Ç,~ com épocas passadas,
percebemos quanto ittmentou nossa seguran ça contra os 3
perigos físicos imprevisíveis e as am eaças imponderáveis
Se hoje se d.iz que a morte é "recalcada'', parece-m e que o
à nossa existência. Parece que a ad esão a crenças no outro
termo é utilizado num duplo sentido. Pode tratar-se de
mundo ue r etem proteção m etafísica cont~l­
um "recakamento" tanto no plano individual como no
pes do destino, e acima de tudo contra a transitoriedade
--- ---------------------·------egru,P9J!.
pes~l, t mais a~ix~nada naquelas classes ..
cu-
social. No primeiro caso, o termo é utilizado no mesmo
sentido de Freud. Refere-se a todo um grupo de mecanis-
jas vid~~-~-ªQ.!!!ais incertas e me:n:õS:CQR..a:gl.~iS.Mas, em
-
termos gerais, n as sociedades desenvolvidas os perigos
que ameaçam as pessoas, particularm ente o da morte, são
I B. Deborah Frazier, "Your coffin as furniture - for now", In ter-
mais previsíveis, a o mesmo tempo em que diminui a ne - national Herald Tribune, 2 out 1979.
16 Norbert Elias A solidão dos moribundos 17

mos psicológicos de defesa socialmente instilados pelos nossa própria morte. A visão de uma pessoa moribunda
quais experiências de infância excessivamente dolorosas, abala as fantasias defensivas que as pessoas constroem
sobretudo conflitos na primeira infância e a culpa e a como uma müralha contra a idéia de sua própria morte.
angústia a eles associadas, bloqueiam o acesso à memória. O amor de si sussurra que elas são imortais: o contato
De maneiras indiretas e disfarçadas, influen~iam os senti- muito próximo com moribundos ameaça o sonho aca-
mentos e o comportamento da pessoa; mas desaparece- lentado. Por trás da necessidade opressiva de acreditar em
ram da memória. nossa própria imortalidade, negando assim o conheci-
Experiências e fantasias da primeira infância tam- mento prévio de nossa própria morte, estão fortes senti-
bém desempenham papel considerável na màneira como mentos de culpa _recalcados, talvez ligados a desejos de
as pessoas enfrentam o conhecimento de sua morte pró- morte em relação ao pai, à mãe e aos irmãos, com o temor
xima. Algumas podem olhar para sua morte com sereni- de desejos análogos da parte deles. Nesse caso, a única
dade, outras com um medo intenso e constante, muitas fuga possível da culpa-angústia em torno do desejo de
vezes sem expressá-lo e até mesmo sem capacidade de morte (especialmente quando dirigido a membros da fa-
expressá-lo. Talvez estejam conscientes dele apenas como mília) e da idéia da vingança deles (o medo da punição
do medo de voar ou de espaços abertos. Uma maneira por nossa culpa) é uma crença particularmente forte em
familiar de tornar suportáveis as angústias infantis sem nossa própria imortalidade, ainda que possamos estar
ter que enfrentá-las é imaginar-se imortal. Isso assume parcialmente cientes da fragilidade dessa crença.
muitas formas. Conheço pessoas que não são capazes de A associação do medo da morte a sentimentos de
envolver-se com moribundos porque suas fan tasias com- culpa pode ser encontrada em mitos antigos. No paraiso,
pensatórias de imortalidade, que mantêm sob controle Adão e Eva eram imortais. Deus os condenou a morrer
seus terríveis medos infantis, seriam perigosamente aba- porque Adão, o homem, violou o mandamento do pai
ladas pela proximidade deles. Esse abalo poderia permitir divino. O sentimento de que a morte é uma punição
que seu grande medo da morte - da punição - pene- imposta a mulheres e homens pela figura do pai ou da
trasse sua consciência, o que seria insuportável. mãe, ou de que depois da morte serão punidos pelo gran-
Aqui encontramos, sob forma extrema, um dos pro- de pai por seus pecados, também desempenhou papel
) lemas mais gerais de nossa época - nossa incapacidade considerável no medo humano da morte por um longo
::le dar aos moribundos a ajuda e afeição de que mais que tempo. .Seria certamente possível tornar a morte mais
1unca precisam quando se despedem dos outros homens, fácil para algumas pessoas se fantasias de culpa desse tipo
~xatamente porque a morte do outro é uma lembrança de pudessem ser atenuadas ou suprimidas.
18 Norbert Bias A so lidão dos moribundos 19

Esses problemas individuais do recalcamento da ção aos moribundos segue a mesma direção. A morte é
idéia da morte andam de mãos dadas com problemas um dos grand es p erigos biossociais na vida humana.
sociais específicos. Nesse plano, o conceito de recalca- Como outros asp ectos animais, a morte, tanto como pro-
mento tem um sentido diferente. No entanto, a peculiari- cesso quanto como imagem mnemônica, é empurrada
dade do comportamento em relação à morte que prevale- f mais e mais para os bastidores da vida social durante o
ce hoje na sociedade só é percebida· se comparada à de impulso civilizador. Para os próprios moribundos, isso
épocas anteriores ou de outras sociedades. Só então se significa que eles também são empurrados para os basti-
poderá situar a mudança de comportamento em um qua- dores, são isolados.
dro teórico mais amplo, tornando-a assim acessível à ex-
plicação. Formulando a questão diretamente, a mudança
de comportamento social referida ao falarmos do "recal- 4
camento" da morte nesse sentido é um aspecto do impul-
so civilizador mais amplo que examinei com mais deta- Philippe Aries, em seu instigante e bem documentado
lhes em outro lugar. 2 Em seu curso, todos os aspectos História da morte no Ocidente, tentou apresentar a seus
elementares e animais da vida humana, que quase sem leitores um retrato vívido das mudanças no comporta-
exceção significam perigo para a vida comunitária e para mento e aútudes dos povos ocidentais diante da morte.
o próprio indivíduo, são regulados de maneira mais equi- Mas Aries entende a história puramente como descrição.
li~rada, mais inescapável e mais diferenciada que antes Acumula imagens e mais imagens e assim, em amplas
pelas regras sociais e também pela consciência. De aéordo pinceladas, mostra a mudança total. Isso é bom e estimu-
com as novas relações de poder, associam-se a sentimen- lante, mas não explica nada. A seleção de. fatos de Aries se
tos de vergonha, repugnância ou embaraço e, em certos baseia numa opinião preconcebida. Ele tenta transmitir
casos, especialmente durante o grande impulso europeu sua suposição de que antigamente as pessoas morriam
de civilização, são banidos para os bastidores ou pelo serenas e calmas. f: só no presente, postula, que as coisas
menos removidos da vida social pública. A mudança de são diferentes. Num espírito romântico, Aries olha com
longa duração no comportamento das pessoas em rela- desconfiança para o preseQte inglório em nome de um
passado melhor. Embora seu livro seja rico em evidências
históricas, sua seleção e interpretação dessas evidências
N . Elias, O processo civilizador, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2 vols., deve ser examinada com muito cuidado. f. difícil concor-
1990 e 1993. dar com ele quando apresenta os Romans de la Table Ron-
. .
~

20 Norbert Elias A solidão dos moribundos 21

de, a conduta de Isolda e do Arcebispo Turpin, como o suficiente para assegurar a todos uma morte sem dor.
evidência da calma com que os povos medievais espera- Mas avançou o suficiente para permitir um fim mais pa-
vam pela morte. Ele não qiz que esses épicos medievais cífico para muitas pessoas que outrora teriam morrido
eram idealizações da vida cortesã, imagens seletivas que em terrível agonia.
muitas vezes lançam mais luz no que o poeta e seu públi- O certo é que a morte era tema mais aberto e fre-
co julgavam que deveria ser do que no que realmente era. qüente nas conversas na Idade Média do que hoje. A lite-
O mesmo se aplica a outras fontes literárias u.tilizadas por ratura popular dá testemunho disso. Mortos, ou a Morte
Aries. Sua conclusão é característica e mostra ~ua parcia- em pessoa, .aparecem em muitos poemas. Em um deles,
lidade: três vivos passam por um túmulo aberto e os mortos lhes
dizem: "O que ':rocês são, nós fomos. O que somos, vocês
Assim [isto é, calmamente! morreram as pessoas durante
serão." Em outro, a Vida e a Morte discutem. A Vida se
séculos ou milênios ... Essa atitude antiga, para a qual a
morte era ao mesmo tempo familiar, próxima e ameniza- queixa de que .a Morte está maltratando seus filhos; a
da, indiferente, contrasta éom a nossa, em que a morte Morte ostenta seu sucesso. Em comparação com o pre-
provoca tal medo que não mais ternos coragem de chamá- sente, a morte naquela época era, para jovens e velhos,
la por seu nome. É por isso que chamo essa morte familiar menos.oculta, mais presente, mais familiar. Isso não quer
de morte domesticada. Não quero dizer que tenha sido sel- dizer que fosse mais pacífica. Além disso, o nível social do
vagem anteriormente. ... Quero dizer, ao contrário, que se
medo da morte não foi constante nos muitos séculos da
tornou selvagem hoje. 3
Idade Média, tendo·se intensificado notavelmente duran -
Se comparada à vida nos Estados-nação altamente te o século XIV. As cidades cresceram. A peste se tornou
industrializados, a vida nos Estados feudais medievais era mais renitente e varria a Europa em grandes ondas. As
- e é, onde tais Estados ainda existem no presente - pessoas temiam a morte ao seu redor. Pregadores e frades
apaixonada, violenta e, portanto, incerta, breve e selva- mendicantes· reforçavam tal medo. Em quadros e escritos
gem. Morrer pode significar tormento e dor. Antigamen- surgiu o motivo das danças da morte, as danças maca-
te as pessoas tinham menos possibilidades de aliviar o bras. Morte pacífica no.passado? Que perspectiva históri-
tormento. Nem mesmo hoje a arte da medicina avançou ca mais unilateral! Seria interessante comparar o nível
social do medo em nossos dias, no contexto da poluição
ambiental e-das armas atômicas, com o de estágios ante-
3 Philippe Aries, Studie11 zur Geschichte des Todes im Abettdland, riores da civilização, em que havia menor pacificação in-
Munique/Viena, 1976, p.25. [ Ed. fr.: Histoire d~ la mort en Occident,
Paris, Seuil, col. Points.) terna e m enor controle de epidemias e outras doenças.
22 Norbert Elias A solidão dos moribundos 23

O que às vezes reconfortava os moribundos no pecado, e também entre o fausto dos senhores e a mi -
passado era a presença de outras pessoas. Mas isso de- séria dos p.obres. O medo da punição depois da morte
pendia das atitudes. Diss~ram-nos 4 que Thomas More, e a angústia em relação à salvação da alma se apossavam
chanceler de Henrique VIII, abraçou seu pai moribundo igualmente de ricos e de pobres, sem aviso prévio. Como
no leito de morte e o beijou nos lábios - um pai que garantia, o~ príncipes sustentavam igrejas e mosteiros;
ele reverenciou e respeitou por toda a vida. Havia casos, os pobres rezavam e se arrependiam.
no entanto, em que os herdeiros em volta do leito de Tanto quanto posso ver, Aries diz pouco sobre o
morte zombavam e esca rneciam do velho moribundo. medo do inferno espalhado pela Igreja. Mas há quadros
Tudo dependia das pes.s oas. Considerada um estágio de medievais que mostram o que, de acordo com as idéias da
desenvolvimento social, a Idade Média foi um período época, esperava pelas pessoas depois da morte. Um exem-
excessivamente instável. A violência era comum; o con- plo ainda pode ser encontrado num cemitério famoso do
flito, apaixonado; a guerra, muitas vezes a regra; e a paz, final da Idade Média, em Pisa. Uma figura retrata vivida-
exceção. Epidemias varriam ·as terras da Eurásia, milha- mente os terrores que aguardavam as pessoas depois da
res. morriam atormentados e abandonados sem ajuda
morte. Mostra os anjos conduzindo as almas salvas para a
ou conforto. Más colheitas freqüentemente· faziam es-
vida sem fim no paraíso, e os horríveis demônios que
cassear o pão para os pobres. Multidões de mendigos e
atormentam os condenados ao inferno. Com tais ima-
aleijados eram uma característica normal da paisagem
gens aterrorizantes diante dos olhos, uma morte pacífica
medieval. As pessoas eram capazes tanto de grande gen-
não pode ter sido fácil.
tileza quanto de crueldade bárbara, júbilo pelo tormen-
Em resumo, a vida na sociedade medieval era mais
to dos outros e total indiferença em relação a seus
'c urta; os perigos, menos controláveis; a morte, muitas
sofrimentos. Os contrastes eram mais marcados que os
de hoje - entre a satisfação desenfreada dos apetites e vezes mais çlolorosa; o sentido da culpa e o medo da
a auto-humilhação, o ascetismo e a penitência também punição depois da morte, a doutrina oficial. Porém, em
desenfreados sob o peso de um sentido aterrorizante do todos os casos, a particip~ção dos outros na morte de um
indivíduo era muito mais co mum. Hoje sabemos como
aliviar as dores pa morte em alguns casos; angústias de
4 Willíam Roper, The Life of Sir Thomas More, Londres, 1969. Ver culpa são mais plenamente recalcadas e talvez domina-
também minhas observações críticas sobre a confiabilidade de Roper: das. Grupos religiosos são menos capazes de assegurar
"Thomas Morus Staatskrítik': in Utopieforschung, vol.2, Stuttgart,
Wilhelm Vosskamp, 1982, p.lOl-50, esp. 137-44. sua dominação pelo medo do inferno. Mas o envolvi-
24 Norbert Elias A solidão dos moribundos 25

mento dos outros na morte de um indivíduo diminuiu. gresso na luta ·c ontra a doença, particularmente o con-
Como em relação a outros aspectos do processo civiliza- trole das grandes epidemias, é parcialmente responsável
dor, não é fácil equilibrar custos e benefícios. Mas o qua- por esse processo cego, não-planejado e perigoso. Que
dro preto e branco pintado com o sentimento do "bom pensaríamos de alguém que, diante do perigo da explo-
passado, mau presente" não serve a qualquer propósito. A são demo gráfica, ansiasse por um r~torno ao "bom
questão principal é como e por que era assim, e por que se passado" com suas restrições malthusianas ao aumento
tornou diferente. Uma vez certos das respostas a essas da população- peste, guerra, abstinência, fome e mor-
perguntas, estaremos em condições de forma r um juízo te precoce?
de valor. No curso do nítido surto civilizador que teve início
há quatrocentos ou quinhentos anos, as atitudes das pes-
soas em relação à morte e a própria maneira de morrer
sofreram mudanças, junto com muitas outras coisas. Os
5
contornos e a direção dessa mudança são claros. Podem
ser demonstrad os por uns poucos exemplos, mesmo
No curso de um processo civilizador, mudam os proble-
num contexto em que não é possível fazer justiça à com-
mas enfrentados pelas pessoas. Mas não mudam de uma
plexa estrutura dessa mudança.
maneira desestruturada, caótica. Examinando de perto,
Em épocas mais antigas, morrer era uma questão
detectamos uma ordem específica mesmo na sucessão de
muito mais pública do que hoje. E não poderia ser dife-
problemas sociais humanos que acompanham o proces- rente. Primeiro porque era muito menos comum que as
;o. Esses problemas também têm formas que são específi- pessoas estivessem 'sozinhas. Freiras e monges podem ter
:as de seu estágio particular. -estado sós .em suas ·celas, mas as pessoas comuns viviam
. Assim, por exemplo, as pessoas se tornaram cons- constantemente juntas. As moradias deixavam pouca es-
:ientes das doenças causadas por vírus como um pro- colha. Nascimento e morte- como outros aspectos ani-
>lema independente apenas depois de terem obtido su- mais da vida humana -· - eram eventos mais públicos, e
:esso na explicação e, até certa medida, no controle das portanto mais sociáveis, que hoje; eram menos privatiza-
:randes infecções por bactérias. O ganho não foi em dos. Nada é mais característico da atitude atual em rela-
'ão, pois representou progresso, mas não foi absoluto, ção à morte que a relutância dos adultos diante da fami-
10is não encerrou a luta contra os agentes patogênicos. liarização das crianças com os fatos da morte. Isso é par-
) mesmo vale para o aumento da população. O pro- ticularmente digno de nota como sintoma de seu recalca-
26 Norbert Elias A solidão dos moribundos 27

mento nos planos individual e social. Uma vaga sensação 6


de que as crianças podem ser prejudicadas leva a se ocul-
tar delas os simples fatos.da vida que terão que vir a Nos estágios anteriores de desenvolvimento social, as pes-
conhecer e compreender. Mas o perigo para as crianças soas e_ram menos cerceadas na esfera da vida social, inclu-
não está em que saibam da finitude de cada vida humana, sive na fala, pensamento e escrita. A censura pessoal, e a
inclusive a de seu pai, de sua mãe e de sua própria; de dos companheiros, assumia forma diferente. Um poema
qualquer maneira as fantasias infantis giram em torno de período relativamente tardio - século XVII -·- pode
desse problema, e o medo e a angústia que o cercam são ajudar a ilustrar a diferença·. É do poeta silésio Christian
muitas vezes reforçados pelo poder intenso de sua imagi- Hofmann von Hofmannswaldau e leva o título de "Tran-
nação. A consciência de que normalmente terão uma lon- sitoriedade da beleza".
ga vida pela frente pode ser, em contraste com suas per-
turbadoras fantasias, realmente benéfica. A dificuldade Por fim a morte pálida com sua mão ge.Jada
está em como se fala às crianças sobre a morte, e não no Com o tempo acariciará teus seios;
que lhes é dito. Os adultos que evitam falar a seus filhos O belo coral de teus lábios empalidecerá
sobre a morte sentem, talvez não sem razão, que podem A neve de teus mornos ombros será fria areia
transmitir a eles suas próprias angústias. Sei de-casos em O doce piscar de teus olhos I o vigor de tua mão
que um dos pais morreu num acidente de automóvel. As Por quem caem I cedo desaparecerão
reações dos filhos dependem da idade e da estrutura da Teu cabelo I que agora tem o tom do ouro
personalidade, mas o efeito profundamente traumático Os anos farão cair, uma comum madeixa
que tal experiência pode ter neles me faz acreditar que Teu bem formado pé I a graça de teus movimentos
seria salutar para as crianças que tivessem f~miliaridade Serão em parte pó I em parte nada e vazio.
com o simples fato da morte, a finitude de suas próprias Então ninguém mais cultuará teu esplendor agora divino
vidas e a de todos os demais. Sem dúvida, a aversão dos Isso e mais que isso por frm terá passado
adultos de hoje a transmitir às crianças os fatos-biológicos Só teu coração todo o tempo durará
da morte é uma peculiaridade do padrão dominante da Porque de diamante o fez a Natureza.
civilização nesse estágio. Antigamente, as crianças tam-
bém estavam presentes quando as pessoas morriam. Leitores de nossos dias podem achar a metáfora da
Onde quase tudo acontece diante dos olhos dos outros, a morte pálida acariciando os seios da bem-amada com sua
morte também tem lugar diante das crianças. mão fria um tanto grosseira, talvez de mau gosto. Podem,
28 Norbert ·Elias A solidão dos m oribun dos 29

ao contrário, ver no poema uma profunda preocupação mulheres do que os poemas mais privados e individuali-
com o problema da morte. Mas talvez só possamos nos zados de nossa época. Nele, seriedade e graça se combi-
ocupar desse poema em vi~tude de um singular surto de nam de um modo sem paralelos hoje. Talvez fosse um
informatização, que começou depois de .1 918, foi forte- poema escrito para uma ocasião particular; pode ter se
mente revertido em 1933 e ganhou impulso novamente difundido nos círculos de Hofmannswaldau e causado
de 1945 em diante. Como muitos poemas barrocos, ofen- muito divert im en to a seus amigos de ambos os sexos.
de grande número de tabus vitorianos e guilherminos. Falta aqui o tom solene ou sentimental mais tarde muitas
Referir-se com tal detalhe, com tão pouco romantismo e vezes associado à lembrança da morte e da sepultura. Que
mesmo num tom um tanto jocoso à morte da amada ta l advertência seja combinada com uma brincadeira
pode, até mesmo hoje, quando prevalece um certo relaxa- mostra a diferença de atitude de maneira especialmente
m ento dos tabus vitorianos, parecer incomum. Até que clara. As pessoas np círculo do poe~a devem ter se diverti-
atentemos para as mudanças civilizatórias que encon- do com uma brincadeira que facilmente escapa a um
tram expressão no presente, e, portanto, na estrutura de leitor moderno. Hofmannswaldau d iz à sua relutante
nossa própria personalidade, ficaremos no escuro en- amada que sua beleza desaparecerá na sepultura, seus
quanto intérpretes, enquanto historiadores hermenêuti- lábios de coral, seus ombros de neve, seus olhos insinuan-
cas do passado. Interpretações arbitrárias serão a norma tes, todo seu corpo decairá - exceto seu coração: ele é
e conclusões erradas, a regra. O fato de que gerações ante- duro como diamante, pois ela não dá ouvidos a seus ape-·
riores falasse m mais abe rtamente da morte, da sepul~ ura los. No registro dos sentimentos contemporâneos dificil-.
e dos vermes será tomado como indicação de seu interes- m ente encontraremos qualquer coisa que corresponda a
se mórbido pela m orte; suas francas referências às rela- essa mistura de funéreo e irreverente, essa desc rição deta-
ções físicas entre homens e mulheres, como signos de 'lhada da decomposição· humana como manobra de se-
lascívia o u frouxidão moral. Só quando formos capazes dução.
de maior distanciamento de nós mesmos, de nosso está- Podemos talvez tomar o poema corno invenção indi-
gio de civilização, e nos tornarmos conscientes do caráter vidual do escritor. Do ponto d e vista da história da litera-
específico de nosso próprio limiar de vergonha e repug- tura, poderia facilmente ser assim interpretado. Mas, no
nância, poderem os fazer justiça às ações e obras de pes- contexto, como evidência da atitude em relação à morte
soas em outros estágios. existente num estágio diferente de civilização, o poema
Um poema como esse provavelmente aflorou de ma- ganha significação precisamente pelo fato de que seu
neira muito mais direta do intercurso social de homens e tema é tudo menos urna inven ção individual. É um tema
~:
\.
'I

30 Norbert Elias ... A solidão dos moribundos 31

comum da poesia barroca européia no sentido mais am- neira tão asséptica para os bastidores da vida social; nun-
plo, que nos diz alguma coisa sobre o modo dos jogos do ca antes os ca~áveres humanos foram enviados de manei-
amor nas sociedades patríc.ias e cortesãs do século XVII. ra tão inodora e com tal perfeição técnica do leito de
Nessas sociedades, havia num.erosos poemas . sobre o morte à sepultura.
mesmo tema. Apenas o tratamento poético era individual
e variável. O mais belo e famoso poema sobre.ele
..
é "To his
Coy Mistress" ["A sua amada recatada"], de Marvell. 7
Contém a mesma brusca lembrança do que aguarda o
belo corpo n'a sepultura, advertindo a mulher de coração Intimamente ligado . em nossos dias, à maior exclusão
duro a não fazê-lo esperar tanto. Esse poema também foi possível da morte e dos moribundos da vida social, e à
desprezado durante séculos. Hoje, alguns de seus versos ocultação dos moribundos dos outros, particularmente
são citações de antologias: das crianças, há um desconforto peculiar sentido pelos
vivos na presença dos moribundos. Muitas vezes não sa-
A sepultura é um bom lugar privado, bem o que dizer. A gama de palavras disponíveis para uso
Mas nela, creio, ninguém é amado. nessas ocasiões é relativamente exigua. O embaraço blo-
queia as palavras. Para os moribundos essa pode ser uma
Variações sobre o mesmo tema são enco ntradas em Ron- experiência amarga. Ainda vivos, já haviam s ido abando-
sard, Opitz e outros poetas da época. Representam um nados. Mas niesmo aqui o problema que a proximidade
limiar diferente do nosso de vergonha e embaraço e, por- da morte e a morte colocam para os que ficam não existe
tanto, uma estrutura diferente de personalidade, que é isoladamente. A reticência e a falta de espontaneidade na
social e não individual. Referências à morte, à sepultura e ~xpressão de sentimentos de simpatia nas situações críti-
a todos os detalhes do que acontece aos seres humanos cas de outras pessoas não se limitam à presença de al-
nessa situação n ão eram sujeitas a uma censura social guém que está morrendo ou de luto. Em nosso estágio de
estrita. A visão de corpos humanos em decomposição era civilização manifesta-se em muitas ocasiões que deman-
lugar-com um. Todos, inclusive as crianças, sabiam como dam a expressão de forte participação emocional sem
eram esses corpos; e, porque todos sabiam, podiam falar perda do autocontrole. Algo semelhante ocorre em situa-
disso com relativa liberdade, na sociedade e na poesia. ções de amor e de ternura.
Hoje as coisas são diferentes. Nunca antes na história Em todos esses casos é especialmente a geração mais
da humanidade foram os moribundos afastados de ma- jovem que, mais que em séculos anteriores, fica entregue
32 Norbert Elias A sol idão dos moribundos 33

a seus próprios recursos, a sua própria capacidade de Ternamente amada Irmã,


invenção individual, na procura das palavras certas para
seus sentimentos. A conve,nção social fornece às pessoas Recebe com carinho-os versos que te mando. Estou tão
cheio de ti, teu risco e minha gratidão, que tua imagem
umas poucas expressões estereotipadas ou formas padro-
constantemente governa minh'alma e todos os meus pen-
nizadas de comportamento que podem tornar mais fácil samentos, acordado ou sonhando, escrevendo prosa ou
enfrentar as demandas emocionais de tal situação. Frases poesia. Que o Céu atenda os votos por tua recuperação que
convencionais e rituais ainda estão em uso, porém mais diariamente lhe dirijo! Cothenius está a caminho; venerá-
pessoas do que antigamente se se ntem constrangidas em to-ei se puder preservar a pessoa que é em todo o mundo a
usá-las, porque parecem superficiais e gastas. As fórmulas mais próxima de meu coração, que estimo e honro e por
quem continuo, até o momento de devolver meu corpo aos
rituais da velha sociedade, que tornavam mais fácil en-
elementos, mais ternamente amada irmã, teu leal e devota-
frentar situações críticas como essa, soam caducas e do irmão e amigo1
pouco sinceras para muitos jovens; novos rituais que Frederico
reflitam o padrão corrente d'os sentimentos e comporta-
mentos, que poderiam tornar a tarefa mais fácil, ainda O rei não escreveu essa carta em francês, mas em
não existem. alemão, o que raramente fazia. Podemos imaginar que a
Seria falso sugerir que os problemas específicos do carta serviu de.consolo à moribunda e facilitou sua parti-

I
estágio da civilização na relação dos saudáveis com os da do mundo dos vivos- se ainda foi capaz de lê-la.
moribundos, dos vivos com os mortos, são um dado iso- A língua alemã não é particularmente rica em ex-
lado. O que surge aqui é um problema parcial, um aspec- pressões nuançadas para ligações não-sexuais entre pes-
to de um problema geral da civilização em seu estágio soas- não-sexuais, qualquer que seja sua origem. Fal-
presente. tam patavras con'espondentes à «afeição" e "afeiçoado':
Nesse caso, também, a peculiaridade da-situação pre- Zuneigungezugetan, que sugerem a idéia de "inclinação",
sente pode ser melhor delineada por referência a um não carregam a simpatia comedida do nosso termo, e são
exemplo do mesmo problema no passado. No final de ou- pouco usadas. A "rríais ternamente amada irmã" de Fre-
tubro de 1758, a margravina de Bayreuth, irmã do rei Fre- derico é, sem dúvida, expressão exata de seus sentimen -
derico li da Prússia, estava à morte. O rei nã? pôde viajar tos. Seria usada hoje? Sua ligação com sua irmã era prova-
para vê-la, mas mandou às pressas seu próprio médico velmente o mais forte laço que o prendia a qualquer mu-
Cothen·i us, caso ainda pudesse ajudá -la. Mandou também lher o u pessoa em sua vida. Podemos supor que o senti-
poemas e a seguinte carta, datada de 20 de outubro: mento verbalizado em sua carta é sincero. A afeição entre
34 Norbert Elias

irmão e irmã era recíproca. Ele claramente compreendia


que uma afirmação de sua gra nde afeição levaria confor-
I
I
t
j
Asolidão dos mo ribundos

podem mais ser usadas mecanicamente como o om mani


padme nos círculos de oração dos monges budistas. Mas
35

tornq de si a aura de antigos sistemas de dominação; não

to à moribunda. Mas a exr,ressão desses sentimentos fica


I'
I
mais fácil para ele por sua confiança implícita em certas I ao mesmo tempo a mudança que acompanha o estágio
•t presente da civilização produz em muitas pessoas uma
convenções lingüísticas de sua sociedade, que conduzem
sua pe~a. O leitor moderno, com ouvid?. afinado para indisposição e muitas vezes uma incapacidade d e expri-
detectar os clichês do passado, pode perceber "tua ima- j mir emoções fortes, tanto na vida pública como na vida
gem" que "constantemente governa rninh'alma" como ~ priyada. Elas só podem ser ventiladas, assim parece, em
convencional e ..o Céu atenda os votos" como teatral- l conflitos políticos· e sociais. No século XVII, os homens
mente barroco, particularmente na bo~a de um monarca
I podiam chorar em público; isso tornou-se hoje difícil e
que não era famoso pela piedade. De fato, Frederico utili- pouco freqüente. Só as mulheres ainda são capazes, so-
za termos convencionais para exprimir seus sentimentos. cialmente livres para fazê-lo- por quanto tempo ainda?

I
Mas é capaz de usá-los de tal maneira que sua sinceridade Na presença de pessoas que estão para morrer - e
é visível, e podemos supor que a irmã percebeu essa sin- dos que as pranteiam- vemos, portanto, com particular
ceridade. A estru tura das comunicações era tal que aque- clareza um dilema característico do presente estágio do
les a quem eram endereçadas podiam distinguir entre processo civilizador. Uma mudança em direção à infor-
usos sinceros e insinceros de expressões corteses, ao passo malidade fez com que uma série de padrões tradicionais
que nossos OU'-":idos não podem mais distinguir essas de comportamento nas grandes situações de crise da vida
nuances de civilidade. humana, incluindo o uso de frases rituais, se tornasse
lsso ilumina os contrastes com a situação presente. O suspeita· e embaraçosa para muitas pessoas. A tarefa de
breve surto de informalização 5 ainda em progresso nos encontrar a palavra e o gesto certos, portanto, sobra para
torna especialmente desconfiados em relação aos rituais o indivíduo. A preocupação de evitar rituais e frases so-
convencionais e às frases "floreadas" de gerações passa- cialmente prescritos aumenta as demandas sobre a capa-
das. Muitas fórmulas socialmente prescritas trazem em cidade de invenção e expressão individual. Essa tarefa,
porém, está muitas vezes fora do alca nce das pessoas no
estágio corre nte da civilização. A manei ra como as pes-
5 Cf. Cas Wouters, ''Informalization and the civiJizing process", in soas vivem em conjunto, que é fundamental neste estágio,
Human Figurations. Essays for Norbert Elias, org. Peter R. Gleich- exige e produz um grau relativamen te alto d e reserva na
mann, Johan Goudsblom e Hermann Korte, Amsterdã, 1977, p.437-
53. expressão de afetos fortes e espo ntâneos. Mu itas vezes, só
36 Norbert Elias
I A solidão dos moribundos 37
f
sob pressão excepcional elas são capazes de superar a fortes trava suas línguas e mãos. E os viventes podem, de
barreira que bloqueia as ações resultantes de fortes emo- maneira semiconsciente, sentir que a morte é contagiosa
ções, e também sua verbalização. Assim, a fala espontânea e ameaçadora; afastam-se involuntariamente dos mori-
com os moribundos, da q~al estes têm es ecial necessid - bundos. Mas, para os íntimos que se vão, um gesto de
de, torna-se difícil penas as rotinas institucionalizadas afeição é talvez a maior aj uda, ao lado do alívio da dor
dos hospttais dão alguma estruturação social para a situa- física, que os que ficam pode m proporcionar.
ção de morrer. Essas, no entanto, são em sua maioria
destituídas de sentimentos e acabam con tribtiindo para o
\
.iS<»am.e.n.!.o dos moribundos.._r--·- ' 8
Rituais religiosos de morte .podem provocar nos
crentes sentimentos de que as pessoas estão pessoalmente O afastamento dos vivos em relação aos moribundos e o
preocupadas com eles, o que é sem dúvida a função real silêncio que gradualmente os envolve continuam depois
desses rituais. Fora deles, morrer é no presente uma si~ua­ que chega o fim. Isso pode ser visto, por exemplo, no
ção amorfa, uma área vazia no mapa social. Os rituais tratamento dos cadáveres e no cuidado com as sepultu-
seculares foram esvaziados de sentimento e significado; ras. As duas atividades saíram das mãos da família, paren-
as formas seculares tradicionais de expressão são pouco tes e amigos e passaram para especialistas remunerados.
convincentes. Os tabus proíbem a excessiva demonstra- A memória da pessoa morta pode continuar acesa; os
ção de sentimentos fortes, embora eles possam acontecer. corpos mortos e as sepulturas perderam significação. A
E a tradicional aura de mistério que ce rca a morte, com o Pietà de Michelangelo, a mãe em prantos com o corpo de
que permanece dos gestos mágicos - abrir as janelas, seu filho, continua compreensível como obra de arte, mas
parar os relógios - , torna a morte menos tratável como dificilm ente imaginável como situação real.
problema humano e s9cial que as pessoas devem resolver Uma brochura publicada por jardineiros de cemité-
entre si e para si. No presente, aqueles que são próximos rio mostra quão distante o cuidado das sepulturas está
dos moribundos muitas vezes não têm capacidade de das familias. 6 Naturalmente, adverte contra concorrentes
apoiá-los e confortá-los com a prova de sua afeição e
ternura. Acham difícil apertar a mão de um moribundo
ou acariciá-lo, proporcionar-lhe uma sensação de prote- 6 Friedhof Grüner Raum itl der Stadt, publicado pela Zentrale
ção e pertenci mento, ainda. O crescente tabu da civiliza- Marketinggesellschaft der deutschen Agrarwirtschaft GmbH , em co-
labo ração com a Zentralverband Gartenbau e V. Bundesfachgruppe
ção em relação à expressão de sentimentos espontâneos e Friedhofsgartner.
38 Norbert Elias A solidão dos moribundos 39

e rivais que podem reduzir a quantidade de flores ador- tamente equilibrada pela menção aos dias de casamento
nando as sepulturas. Podemos supor que a agência de - quando também se requerem flores. As perigosas
marketing adaptou a bro~hura tanto quanto possível à associações de cemitério são neutralizadas apresentando-
mentalidade dos possíveis consumidores. O silêncio so- o simplesmente como um "espaço verde na cidade":
bre a significação das sepulturas como lugares onde pes-
soas mortas estão enterradas é, em função disso, quase Os jardineiros de cemitério alemães ... gostariam de dar ao
total. Compreensivelmente, referências explicitas a qual- cemitério maior relevo na consciência pública como uma
quer conexão entre a profissão de jardineiro de cemitério área cultural e tradicional, como um lugar de recolhimen-
to e como parte da área verde urbana. Pois uma consciên-
e o enterro dos cadáveres estão inteiramente ausentes.
cia pública elevada é a melhor ~arantia de que o tradicional
Essa ocultação cuidadosa, que reflete a mentalidade dos
retrato do cemitério verde e em flor não será um dia amea-
clientes potenciais, surge de maneira· especialmente clara çado por estranhos costumes de enterro, por restrições

se lembrarmos o tom dos poemas do século XVII citados ' baseadas em argumentos econômicos, por desmandos de
acima. A franqueza com que eles falam do que acontece projetos descontrolados ou pelo planejamento tecnocráti-
ao corpo na sepultura ofetece claro contraste à supressão co dos espaços fundado exclusivamente na racionalização.
higiênica de associações desagradáveis do material im-
presso e, sem dúvida, da conversação social de nosso tem- Seria proveitoso discutir em detalhe as táticas da luta
po. Que Marvell pudesse esperar ganhar os favores da contra os vários rivais comerciais, mas não aqui. De todo
mulher amada advertindo-a de que os vermes ameaça- modo, os clientes potenciais são protegidos, tanto quanto
riam sua "tão preservada virgindade" e de que sua "singu- humanamente possível, da lembrança da morte e de tudo
lar honra se tornaria pó" na sepultura dá uma indicação relativo a ela. Para a possível clientela, a morte se tornou
do quanto avançou o limiar de repugnância desde então, · de mau gosto. Mas a atitude evasiva e encobridora, por
no curso de um processo civilizador não planejado. Lá, sua vez, tem um efeito algo desagradável.
mesmo os poetas falam com desembaraço dos vermes da Seria muito bom se o lugar de recordação dos mortos
sepultura; aqui, mesmo os jardineiros do cemitério evi- fosse realmente planejado como um parque para os vivos.
tam qualquer coisa que possa lembrar a conexão entre Essa é a imagem que os jardineiros do cemitério gosta-
sepultura e morte. A mera palavra "morte" é evitada sem- riam de transmiti.r - "uma ilha silenciosa, verde e em
pre que possível; aparece só uma vez na brochura - flor em meio ao ruído frenético da vida cotidiana': Se
quando são mencionadas as datas comemorativas dos fossem realmente parques para os vivos, onde os adultos
mortos; e a má impressão causada pela palavra é imedia- pudessem comer seus sanduíches e as crianças, brincar!
40 Norbert Elias A solidão dos moribundos 41

Talvez isso tenha sido possível outrora, mas é impossível porém, não existem. Ou só existem na memória dos vi-
hoje em função da tendência à solenidade, à idéia de que vos, presentes e futuros. É especialmente para as desco-
a graça e o riso são inadeq_uados na vizinhança dos mor- nhecidas gerações futuras que aqueles que estão agora
tos -sintomas da tentativa semiconsciente dos vivos de vivos se voltam com tudo o que é significativo em suas
distanciar-se dos mortos e de empurrar esse aspecto em- realizações e criações. Mas nem sempre se dão conta dis-
baraçoso da animalidade humana para tão longe quanto so. O medo de morrer é s_e m dúvida também um medo de
possível atrás das cenas da vida normaL Crianças que perda e destruição daquilo que os próprios moribundos
tentem brincar alegremente entre os túmulos serão ad- consideram significativo. Mas só o tribunal daqueles que
vertidas pelos guardiães da grama bem apúada e dos ainda não nasceram pode decidir se o que parece signifi-
canteiros por sua falta de reverência e respeito aos mor- cativo para as gerações anteriores será também significa-
tos. Mas quando as pessoas morrem, nada sabem da reve- tivo, para além de suas vidas, para as outras pessoas. Mes-
rência com que são ou não tratadas. E a solenidade com mo as lápides, em sua simplicidade, dirigem-se a esse
que funerais e túmulos são cercados, a idéia de que deve tribunal- talvez um passante venha a ler na pedra, jul-
haver silêncio em torno dêles, de que se deve falar em voz gada imperecível,. que ali estão enterrados tais pais, tais
abafada nos cemitérios para evitar perturbar a paz dos avós, tais filhos. o que está escrito na pedra é uma mensa-
mortos- tudo isso são realmente formas de distanciar gem muda dos mortos para quem quer que esteja vivo-
os vivos dos mortos, meios de manter à distância uma um símbolo de um sentimento talvez ainda não articula-
sensação de ameaça. São os vivos que exigem reverência do de que a única maneira pela qual uma pessoa morta
pelos mortos, e têm suas razões. Essas incluem seu medo vive é na memória dos vivos. Quando a cadeia da recor-
da morte e dos mortos; mas muitas vezes também servem dação é rompida, quando a continuidade de uma socie-
como meio de aumentar o poder dos vivos. dade particular ou da própria sociedade humana termi-
na, então o sentido de tudo que seu povo fez durante
milênios e de tudo o que era significativo para ele tam-
9 bém se extingue.
Hoje ainda é um tanto difícil dar uma idéia da di-
Até o modo como é utilizada a expressão "os mortos" é mensão da dependência das pessoas em relação às outras.
curioso e revelador. Dá a impressão de que as pessoas Que o sentido de tudo o que uma pessoa faz esteja no que
mortas em certo sentido ainda existem não só na memó- ela significa para os outros, não apenas para os que agora
ria dos vivos, mas independentemente deles. Os mortos, estão vivos, mas também para as gerações futuras, que ela
42 Norbert Elias A solidão dos moribundos 43

seja, portanto, dependente da continuidade da sociedade provavelmente uma reação tão antiga quanto a consciên-
humana por gerações, é certamente uma das mais funda- cia dessa fmitude, quanto o pressentimento da própria
mentais das mútuas dependências humanas, daqueles do morte. No curso da evolução biológica, podemos supor,
futuro em relação aos do passado, daqueles do passado desenvolveu-se nos seres humanos uma espécie de enten-
em relação aos do futuro. Mas uma compreensão dessa dimento que lhes permitiu relacionar o fim que conhe-
dependência é particularmente impedida hoje pela recu- ciam no caso de outras criaturas - algumas das quais
sa de enfrentar a finitude da vida individual, inclusive a lhes serviam de alimento - a si mesmos. Graças a um
nossa própria, e a dissolução próxima de nossa própria poder de imaginação exclusivo entre as criaturas vivas,
pessoa, e de incluir esse conhecimento na maneira como . vieram gradualmente a conhecer de antemão o fim como
vivemos nossa vida - em nosso trabalho, em nosso pra- conclusão inevitável de t,o da vida humana. Mas junto
zer e, acima de tudo, em nosso comportamento em rela- com essa previsão do próprio fim provavelmente ocor-
ção aos outros. reu, desde o início, uma tentativa de suprimir esse conhe-
Muitas vezes, as pessoas hoje se vêem como indiví- cimento indesejado e encobri-lo com noções mais satis-
duos isolados, totalmente independentes dos outros. Per- fatórias. E aí a singular capacidade humana de imagina-
seguir os próprios interesses- vistos isoladamente - ção veio ~m sua ajuda. O conhecimento indesejado e as
parece então a coisa mais sensata e gratificante que uma fantasias encobridoras são, portanto, provavelmente fru-
pessoa poderia fazer. Nesse caso, a tarefa mais importante to do mesmo estágio de evolução. Hoje, com imenso acú-
da vida parece ser a busca de sentido apenas para si mes- mulo de experiência, não podemos mais deixar de per-
mo, independente das outras pessoas. Não é de surpreen- guntar-nos se esses sonhos complacentes não têm, a lon-
der que as pessoas que procuram essa espécie de sentido go prazo,conseqüências bem mais indesejáveis e perigo-
achem absurdas suas vidas. Raramente, e com dificulda- sas para os seres humanos em sua vida comunal que o
de, as pessoas podem ver a si mesmas, em sua dependên- conhecimento bruto e sem retoques.
cia dos qutros - uma dependência que pode ser mútua O encobrimento e o recalcamento da morte, isto é,
- , como elos limitados na cadeia das gerações, como da "finitude irreparável de cada existência humana, na
quem carrega uma tocha numa corrida de revezamento, e consciência humana, são muito antigos. Mas o modo do
que por fim a passará ao seguinte. encobrimento mudou de maneira específica com o correr
No entanto, o recalcamento e o encobrimento da do tempo. Em períodos anteriores, fantasias coletivas
finitude da vida humana individual certamente não é, eram o meio predominante de lidar com a noção de mor-
como às vezes se diz, uma peculiaridade do século XX. É te. Ainda hoje, é claro, desempenham um importante
44 Norbert Elias A solidão dos moribundos 45

papel. O medo de nossa própria transitoriedade é ameni- Freud sustentava que a instância psicológica que cha-
zado com ajuda de uma fantasia coletiva de vida eterna mava de "isso", a camada mais animal da psiquê, mais
em outro lugar. Como a ad!l·linistração dos m ~ dos huma- próxima do estado natural primitivo, que tratava quase
nos é uma das mais importantes fontes de poder das corno uma pequena pessoa, se acredita imortal. Mas não
pessoas sobre as outras, uma profusão de domínios se penso que possamos aceitar tal afirmação. No âmbito do
estabeleceu e continua a se manter sobre essa base. Com a isso uma pessoa não tem capacidade de prever e, portan-
grande escalada da individualização em tempos recentes, to, não tem nenhuma noção antecipada sobre sua própria
fantasias pessoais e relativamente privadas de imortalida- mortalidade. Sem esse conhecimento, a idéia compensa-
de destacam-se mais freqüentemente da matriz coletiva e tória da imortalidade pessoal não pode ser explicada: não
vêm para o primeiro plano. 7 teria função. Freud atribui aos impulsos do isso, que estão
inteiramente voltados para o aqui e agora, um ·nível de
reflexão que não podem atingir. ·
7 Tenho a sensação de que Aries, a despeito de uma admirável
Muitas outras fantasias descobertas por Freud se
erudição que se estende às fantasias de imortalidade contemporân'eas,
não faz justiça à estrutura da ·J1mdança de que nos ocupamos - agrupam em torno da imagem da morte. Já me referi aos
·outra vez porque lhe faltam os modelos teóricos dos processos de sentimentos de culpa, à noção da morte como punição
longa duração e, assim, o conceito de um impulso à individualização.
Escreve com patente desprezo, quase aversão, sobre. as fantasias de por más ações cometidas. É uma questão aberta a ajuda
imortalidade dos contemporâneos, contrastando-as cruamente com que se pode dar aos moribundos aliviando angústias pro-
o que acredita tenha sido a atitude tradicional de calma espera pela
fundas referentes a punições por ofensas imaginárias-
morte. Cita com aprovação, fazendo uma critica velada aos contem-
porâneos, o Pavilhão dos cancerosos, de Solzhenitsyn: "Eles não se muitas vezes infantis. A instituição eclesiástica do perdão
rebelaram, nem resistiram, nem afirmaram que nunca morreriam·:
escreve sobre as pessoas de concepções tradicionais (Studien zur
Gesthichte, p.25). Realmente não sei se os contemporâneos se rebelam
mais. A maioria das pessoas com fantasias de imortalidade que impulso de Grescente individualização, não são dogmas. Com seu
conheço está ciente de que são fantasias. De todo modo, o que está auxílio n ão é preciso, e nem possível, violar os dados observáveis.
em questão aqui tem uma estrutura claramente discernível. Em Tais modelos podem ser mudados, dogmas como substitutos de teoria
tempos passados, fantasias coletivas institucionalizadas que garantiam são inflexíveis. Não se pode deixar de lamentar, dada a grande riqueza
a imortalidade individual tinham a primazia, e o peso que recebiam do conheci mento de Ariês. Seria muito bom se ele pudesse se
da institucionalização e das crença coletiva tornava quase impossível convencer de que dogmas preconcebidos tornam os pesquisadores
reconhecer essas noções como fantasias. Hoje, o poder dessas idéias cegos mesmo em relação a estruturas que são quase palpavelmente
coletivas sobre as mentes das pessoas diminuiu, de tal forma que óbvias, como a da transição das fantasias de imortalidade de um
fantasias individuais de imortalidade, às vezes reconhecidas como estágio em que predominam as fantasias coletivas altamente institu-
tais, tendem a surgir em primeiro plano. Modelos teóricos de pro- cionalizadas para outro, em que fantasias individuais e relativamente
cessos de longa duração, tais como os expressos no conceito de um privadas surgem com mais força .
46 Norbert Elias A solidão dos moribundos 47

e da absolvição mostra uma compreensão intuitiva da guir de maneira apropriada entre o desejo de agir e o ato
freqüência com que angústias de culpa se associam ao realizado, entre a fantasia e a realidade. O surgimento
processo da morte, e Freud .foi o primeiro a oferecer uma espontâneo do ódio e dos desejos de morte têm para eles
explicação científica para elas. poder mágico; o desejo de matar mata. As crianças em
Não pode ser minha tarefa aqui abordar todos os nossa sociedade às vezes ainda são capazes de exprimir
vários motivos fantasísticos associados à idéia de nossa tais desejos abertamente. "Então colocaremos o papai na
própria morte e ao processo de morrer. Mas não se pode lata de lixo", disse o filhinho de um am igo com evidente
subestimar o fato de que, tanto no mundo mágico de prazer, "e fecharemos a tampa." Provavelmente se sentiria
fantasias dos povos mais simples, quanto nas correspon- culpado se seu-pai realmente tivesse se ido. A filhinha de
dentes fantasias individuais de nossos dias, a imagem da outro amigo assegurava a todos os que .se dispusessem a
mórte está intimamente ligada à de matar. Poyos mais ouvir que não era culpa dela o fato de sua mãe estar tão
simples experimentam as mortes de pessoas socialmente doente e ter que "ser operada".
poderosas, pelo menos, como alguma coisa que alguém Encontramos aqui um componente adicional da
fez a elas, como uma espécie de assassinato. Os sentimen- particular aversão que hoje muitas vezes afeta as pessoas
tos dos sobreviventes estão envolvidos. Não colocam a na presença de um moribundo, ou - é preciso acrescen-
questão mais distante da causa impessoal da morte. tar - da especial atraÇão que moribundos, sepulturas e
Como é sempre o caso quando fortes emoções estão en- cemitérios exercem sobre algumas pessoas. As fantasias
volvidas, procura-se um culpado. Só quando sabem destas últimas poderiam ser resumidas aproximadamen-
quem ele é podem esperar vingar-se e descarregar as pai- te com as palavras: "Eu não os matei!" Por outro lado, a
xões despertadas pela morte. Não podem vingar-se de proximidade de moribundos ou sepulturas às vezes des-
uma causa impessoal. Impulsos desse tipo, que em socie- perta nas pessoas não apenas o medo d a própria morte,
dades mais simples guiam diretamente as ações e pensa- mas desejo~ .de morte e angústias de culpa suprimidos,
mentos das pessoas, também desempenham um papel resumidos na pergunta "Poderia eu ser culpado de sua
indiscutível no comportamento dos adultos em socieda- morte? Desejei eu vê-los mortos por odiá-los?'~
des mais desenvolvidas. Mas nesse caso não têm controle Mesmo adultos em sociedades industriais mais de-
direto sobre o comportamento. É o caso ainda com as senvolvidas têm níveis mágicos de experiência que se
crianças pequenas, mas sua fraqueza física normalmente opõem a explicações impessoais e objetivas de doenças e
oculta dos adultos a intensidade de seus impulsos afeti- mortes. A força do choque que a morte de um dos pais
vos. Além disso, as crianças pequenas não podem distin- produz nos adultos é um sinal disso. Pode ser parcial-
48 Norbert Elias A solidão dos moribundos 49

mente conectada à profunda identificação entre filhos e vel da existência humana, especialmente das crianças,
pais; ou entre outras pessoas com laços emocionais pró- pelo uso de idéias coletivas acalentadoras, e a assegurar o
ximos: isto é, pode ser conectada à experiência de outras encobrimento por uma rígida censura social estrita.
pessoas como parte ou extensão de nós mesmos. O senti-
mento de que um companhei_ro perdido era «parte de
mim" é encontrado em relações dos tipos mais diferentes 10
-entre pessoas casadas há muito tempo, amigos, filhos e
filhas. Mas nestes últimos, a morte de um pai ou de uma Numa área sociobiológica diferente, mas também isolada
mãe muitas vezes desperta desejos de morte enterrados e por uma complexa estrutura de normas sociais- a área
esquecidos, associados a sentimentos de culpa e, em al- das relaç<?es sexuais - , uma mudança perceptível teve
guns casos, ao medo da punição. A aguda intensificação lugar nos últimos anos. Nessa esfera, um bom número de
desses sentimentos pode enfraquecer as fantasias com- barreiras civilizadoras que eram previamente ~onsidera­
pensatórias de imortalidade p~ssoal. das evidentes e indispensáveis foi desmontado. A aceita-
Tais fantasias, como já__ disse, tornaram-se mais fre- ção social de comportamentos previamente sob tabu ab-
qüentes em conjunção com a individualização mais acen-
soluto se tornou possível. Problemas sexuais podem ser
tuada dos tempos recentes. Entretanto, fantasias coletivas
discutidos publicamente num novo patamar de franque-
de imortalidade altamente institucionalizadas conti-
za mesmo com crianças. O segredo sobre as práticas se-
nuam a existir com vigor apenas ligeiramente menor em
xuais e muitas proibições em torno delas, que serviam a
nossas sociedades. Um manual escolar perfeitamente
instituições estatais e clericais como instrumentos de do-
sensato descreve o que as pessoas dizem às crianças quan-
minação, deram lugar, num grau inimaginável na era vi-
do uma pessoa morre:
'toriana, a maneiras mais abertas e pragmáticas de com-
"Seu avô está no céu agora"- "Sua mamãe olha para você portamento_e fala. A maior exposição nessa área levou a
lá do céu" - "Sua irmãzinha agora é um anjo". 8 novos problemas e a um p eríodo de experimentação com
novas soluções, tanto na prática social quanto na pesqui-
exemplo mostra quão firmemente arraigada está em
::::>
sa empírica e teórica. Isso talvez venha a definir com
n.ossa sociedade a tendência a ocultar a finitude irrevogá-
maior exatidão as fun ções das regras sociais na esfera
sexual - tanto em relação ao desenvolvimen to indivi-
dual quanto à vida comunitária. Mas já está claro que
Religio11, Bilder wtd WOrter, org. Hans-Dieter Bastian, Hana Raus-
:henberger, Dieter Stoodt e Klaus Wegenast, Düsseldorf, 1974, p.l21. uma série inteira de regras sexuais tradicionais, que se
50 Norbert Elias A solidão dos moribundos 51

formaram durante o avanço não planejado do processo requeria a estrutura normativa deixaram os indivíduos
civilizador, tinha função apenas para a certos grupos he- por algum "tempo sozinhos com os desejos freqüente-
gemônicos, para relações de poder específicas, co mo mente selvagens e apaixonados de sua idade - o que
aquelas entre monarca e súdito, homens e mulheres ou levou a essa forma de puberdade prolongada assolada
pais e filhos. Apareceram como mandamentos morais permanentemen te pela crise, que era vista na época como
eternos enquanto um grupo esteve firmemente estabele- algo determinado pela natureza. Hoje ela aparece cada
cido como dominante, e perderam muito de sua função e vez mais claramente como uma forma de puberdade pro-
plausibilidade quando surgiu uma distribuição ligeira- duzida por um código transitório de moralidade.
m ente menos desigual do poder. Isso tornou possível ex- Nesse meio tempo, o segredo que cercava a esfera
perimentar outros padrões de comportamento no campo sexual diminuiu. Para pais e professores tornou-se pos-
sexual, e assim também outros padrões de autocontrole sível, em certa medida dependendo da idade, falar co m
compat íveis com um modo mais equilibrado de vida em as crianças sobre problemas sexuais sem quebrar tabus
comum, permitindo uma relação menos frustrante en~re sociais ou ter que enfrentar barreiras de vergonha pes-
o controle dos instintos e sua realização. soal e embaraço. Não é mais preciso proteger as crianças
O relaxamento dos tabus sexuais já sem função ficou com vagas alusões.. ou pequenas m entiras quando per-
particularmente perceptível na educação dos adolescen- guntam de onde vêm os bebês. Em suma, nessa área de
tes e no comportamento dos adultos em relação a eles. No risco da v.i.da social humana - a sexualidade - os
começo do século XX, o muro de silêncio entre adultos e padrões de controle social, a prática social e a consciên-
crianças sobre essa questão era quase intransponível. cia pessoal mudaram co nsideravelmente em conjunto
Relações sexuais entre adolescentes, caso descobertas, durante o século XX. Uma estratégia de encobrimento e
eram muitas vezes punidas severamente. A sexualidade recalcamento, particularmente na relação entre grupos
era uma esfera de segredo sobre a qual as crianças podiam de certa posição soc~al e poder e as gerações emergentes,
falar, no máximo, entre si, mas raramente com os adultos, estratégia que parecia àqueles comprometidos com ela
especialmente os pais, e de maneira alguma com os pro- auto-evidente e necessária para a sobrevivência da so-
fessores. A severidade da compulsão social à ocultação, a ciedade humana, isto é, como moral per se, mostrou-se
pesada pressão social sobre os impulsos sexuais de rapa- na prática um elo funcio nal dentro de uma sociedade
z.es e moças solteiros e os riscos sociais aos quais eles e, fundada sobre estruturas de poder específicas. Quando
:laro, também os adultos se expunham de todos os. lados essas estruturas fo ram subs tituídas por uma distribui-
1uando deixavam de co ntrolar os impulsos sexuais como ção de poder menos desigual - entre dom inadores e
52 Norbert Elias A solidão dos moribundos 53

dominados, entre os sexos e as gerações - , também abertamente, numa relação mais descontraída com os
mudou a estratégia de repressão. A ordem não cedeu ao moribundos, é mais forte que no caso da sexualidade.
caos quando o alto patall)ar vitoriano de vergonha e Pode-se supor que diferenças no grau de risco envol-
embaraço em torno da vida sexual se reduziu, e o se- vido desempenhem um pa~el nessa questão. O perigo que
gredo forma li zado deu lugar a um comportamento e a sexualidade irrestrita ou super-restrita representa é,
um discurso mais abertos. pode-se dizer, um perigo parcial. Estupradores ou indiví-
duos sexualmente frustrados podem representar uma
ameaça para os outros e para si mesmos, mas, via de regra,
11 não morrem disso- a vida continua. Comparada a essa
ameaça, a da morte é total. A morte é o fim absoluto da
Em relação à morte, a tendência a isolá-la e ocultá-la pessoa. Assim, a maior resistência a sua desmitologização
tornando-a uma área especial dificilmente terá diminuí- talvez corresponda à dimensão do temor experimentado.
do desde o século XIX, tendo 'possivelmente aumentado. Mas ao refletír soqre tais questões não podemos ig-
Talvez só comparando as d iferentes zonas de risco biosso- norar o fato de que não é a própria morte que desperta
cial em diferentes estágios de desenvolvimento social se temor e terror, mas a imagem antecipada da morte. Se eu
perceba a desigualdade na ascensão e queda dos tabus, da caísse morto aqui e agora sem qualquer dor; isso não seria
formalização e informalização nessas diferentes áreas da minimamente assustador para mim. Não estaria mais
vida social, embora na experiência das pessoas o.s perigos aqui, e, conseqüentem.ente, não sentiria o terror. O terror
derivados da morte e dos instintos possam estar intima- e o temor são despertados somente pela imagem da mor-
mente ligados. As atitudes defensivas e o embaraço com te na consciência dos vivos. Para os mortos não há temor
que, hoje, as pessoas muitas vezes reagem a encontros nem alegria.
com moribundos e com a morte são comparáveis às rea- Há, portanto, uma ligação fundame ntal entre os dois
ções das pessoas a encontros abertos com aspectos da aspectos da vida discutidos antes. E ela pode ser facilmen-
vida sexual na era vitoriana. Em relação à vida sexual, um te ignorada. Tanto a sexualidade como a morte são fatos
relaxamen to limitado, mas perceptível, se instalou; o biológicos moldados pela experiência e pelo comporta-
constrangimento social e talvez individual não é mais tão mento de maneira socialmente específica, isto é, de acor-
·rígido e maciço como costumava ser. Mas em relação à do com o estágio alcançado pelo desenvolvimento da hu-
agonia e à morte, a repressão e o embaraço possivelmente manidade, e da civilização como um aspecto desse desen-
aumentaram. Claramente, a resistência a tratar a morte volvimento. Cada indivíduo assume os padrões sociais
54 Norbert Elias A solidão dos moribundos 55
.,
comuns à sua própria maneira. Se percebemos que o de- çadas, um petigo objetivo de morte está sempre present~•.
terminante na relação das pessoas com a morte não é como deve ser para todas ~s coisas vivas. Mas pode ser
simplesmente o processo biológico desta;mas a idéia, em esquecido. Para parte consi.d eráveJ dessas sociedades, a
'
constante evolução e específica do estágio da civilização, morte ainda está bem distante. No outro caso, em socie-
que se tem dela e a atitude associada a isso, o problema dades menos desenvolvidas com uma expectativa de vida
sociológico da morte aparece com contornos mais claros. mais curta, a incerteza é maior. A vida é mais curta, a
Torna-se mais fácil perceber pelo menos algumas das ca- ameaça da morte é trazida mais insistentemente à cons-
racterísticas específicas das sociedades conte·mporâneas, . ciência, a idéia da morte é mais presente, e práticas mági-
e das estruturas de personalidade associadas a elas, que cas para lidar com essa angústia maior, embora oculta,
são responsáveis pela peculiaridade da imagem ~a morte, pela integridade da vida e do corpo, práticas que andam
e, portanto, pela natureza e pelo grau de recalcamento da de mãos dadas com a maior insegurança, são amplamen-
morte em sociedades mais desenvo lvidas. te difundidas.
A segunda característica específica das sociedades
con temporâneas aqui relevante é a experiência da morte
12 como estágio final de um processo natural, experiência
que ganhou significação pelo progresso na ciência médi-
Essas características específicas incluem, em primeiro "lu- ca e em medidas práticas para elevar o padrão de higiene.
gar, a extensão da vida individual nessas sociedades, A idéia de um processo natural ordenado é característica
como já foi dito. Numa sociedade com uma expectativa de um estágio .específico no desenvolvimento do conheci-
de vida de 75 anos, a ~ para uma pessoa de 20 ou mento e da sociedade. Essa concepç~o da natureza está
mesmo 30 anos é consideravelmente mais remota que 'tão estabelecida em sociedades mais d esenvolvidas que
numa sociedade com uma expectativa de vida de 40. t dificilmente. tomamos con sciência do quanto nossa con-
fácil compreender que, na primeira, uma pessoa seja ca- fiança nas inabaláveis leis da natureza contribui para a
paz de manter a idéia da morte à distância durante um sensação de segurança diante dos fatos naturais, caracte-
período maior de sua vida. 9 Mesmo em sociedades avan- rística das pessoas em sociedades que vivem sob o signo
da ciência. Como tomam por certa essa segurança, e tal-
vez a imaginem como emanando da racionalidade huma-
na, em geral não compreendem a incerteza muito maior
9 Mas talvez houvesse menos acidentes de estrada nessas sociedades
se as pessoas não a m antivessem a tal distância. que as pessoas em sociedades pré-científicas sentem
56 Norbert Elias A solidão dos moribundos 57

:iiante do que nós - mas não elas- experimentamos mente alto de pacificação interna nessas sociedades. Liga-
:orno um nexo impessoal de eventos naturais. ·A imagem do a isso está o fato de que as pessoas que formam essas
:ia morte que prevalece nas .sociedades mais desenvolvi- sociedades normalmente visualizam a morte de maneira
ias é fortemente influenciada por esse conhecimento re- bem específica. Quando tentam rmaginar o processo,
:onfortante. As pessoas bem sabem que a morte chegará; provavelmente pensam primeiro numa morte pacífica na
mas saber que ela é o fim de um processo natural ajuda a cama, resultado de doença ou do enfraquecimento causa-
1liviar a angústia. O conhecimento da implacabilidade do pela velhice. Esse retrato da morte que dá ênfase ao
:los processos naturais é aliviado pelo conhecimento de caráter natural do processo aparece como normal, ao
=JUe, dentro de certos limites, eles são controláveis. Mais passo que a morte violenta, particularmente pelas mãos
:lo que nunca, podemos hoje esperar- com a habilidade de outra pessoaj aparece como exc·epcional e criminosa.
:los médicos, a dieta e os remédios - o adiamento da O fato de que essa segurança física contra a violência dos
morte. Nunca antes na história da humanidade os méto- outros não seja tão grande em todas as sociedades como
:ios mais ou menos científicos de prolongar a vida foram na nossa não é tao claramente percebido.
:iiscutidos de maneira tão incessante em toda a sociedade É, portanto, necessário dizer que o grau relativa-
:orno em nossos dias. O sonho do elixir da vida e da fonte mente alto de proteção contra a violência causada por
:la juventude é muito antigo, mas só assumiu uma forma terceiros, de que gozam os membros das sociedades
:ientífica - ou pseudocientífica - em nossos dias. A mais desenvolvidas, e o tra tam en to da morte violenta
:onstatação de que a morte é inevitável está encoberta como algo excepcional e criminoso não surgem da visão
?elo empenho em adiá-la mais e mais com ajuda da me- pessoal das pessoas envolvidas, mas de uma organização
:licina e da previdência, e pela esperança de que isso tal- muito específica da sociedade - um monopólio relati-
vez funcione. vamente eficaz da violência física. Tal monopólio não
pode ser alcanç.ado de um dia para outro; resulta de um
longo e, em larga· medida, não planejado desenvolvi-
13 mento. Em sociedades desse tipo ati ngiu-se um ponto
em que os dirigentes permitem o uso da violência ape-
Profundamente ligada a essas características da estrutura nas a grupos espeçíficos controlados por eles. Em mui-
~da experiência das sociedades contemporâneas, há uma tos casos somente eles - a polícia e as forças armadas
:erceira que é responsável por traços comuns da imagem - são autorizados a portar armas sem risco de punição
ia morte e da atitude em relação a ela- o grau relativa- e, mesmo, a usá-las em certas si tuações. Em termos
8 Norbert Elias A solidão dos moribundos 59

erais, foi só nos últimos duzentos ou trezentos anos O desenvolvimento da estrutura da personalidade
ue a organização dos Estados europeus e de seus des- toma, nessas sociedades, uma direção diferente daquele
endentes atingiu o grau e P.adrão de monopólio efetivo das sociedades industriais altamente organizadas. A
o controle da violência que tornou possível o relativo pron tidão para o ataque e a defesa no combate físico, pelo
.omínio das paixões e a relativa exclusão da violênCia menos entre os homens, é maior, a expectativa de morte_
as relações humanas, hoje tida como assegurada nas em co nfronto sangrento com outros está constantemente
ociedades mais desenvolvidas, e aos quais as relações presente, a expectatiya de morrer pacificamente na cama
umanas implícitas na produção e distribuição de bens é excepcional. Aqui também vemos em que medida estru-
evem seu caráter específico como relações econômicas. turas de personalidade e concepções a elas relacionadas,
·ois onde a coerção direta por meio da violência física inclusive à imagem da morte, concepções que em nos·sa
.etermina a produção e distribuição de bens, ~as formas própria sociedade tendemos a tomar como certas e talvez
e rapina, guerra e escravidão, esses processos não têm a imaginar como características humanas universais, são
ealmente o caráter propriamente econômico; são difi- na realidade influenciadas por peculiaridades da estrutu-
ilmente calculáveis e lhes faltam as regularidades re- ra social que se cristalizaram gradualmente no curso de
orrentes e quantifi c~ve is, fundamento da ciência da um lo ngo processo social.
conomia, e inerentes à "economia" não violenta como De todo modo, mesmo em sociedades que estão in -
sfera especial da sociedade. ternamente pacificadas, a expectativa de morrer na cama
Em sociedades que carecem de tais instituições alta- é mais enganosa do que parece à primeira vista. Afora os
lente especializad as de monopólio da violência física, e números bastante elevados de acidentes e homicídios,
..
articularmente em sociedades guerreiras, ataques físicos conflitos grupais que .tendem à solução violenta aumen-
e pessoas umas contra as outras pessoas são um aspecto tam em nossos dias, conflitos cujos participantes acredi-
mito mais normal da vida social. Se não todos, pelo tam que só podem ser resolvidos pela morte de seus ini-
1enos os membros do estrato mais alto nessas socieda- migos e pelo sacrifício dos membros do próprio grupo, e
es portam armas como apêndice indispensável em sua que são em geral planejados, mesmo em tempos de paz,
1teração com os outros. Pessoas fisicamente fracas ou · como lutas violentas de vida e morte.
1capacitadas, velhos, mulheres e crianças permanecem Entre os problemas de nossa época que talvez m ere-
m geral confmados à casa ou ao castelo, vilarejo o u quar- çam maior atenção, portanto, figura o da transformação
!irão urbano habitado por seu próprio povo; só podem psicológica sofrida por pessoas que fazem a transição de
venturar-se fora com proteção especial. uma situação em que o assassinato de outras pessoas é
iO Norbert Elias A solidão dos moribundos 61

~stritamente proibido e rigorosamente punido para uma com o propósito de evitar tais acontecimentos, a primeira
ituação em que a morte dos outros, seja pelo Estado, questão, mais factual, é de importância capital. A resposta
)elo partido ou outro grupo, não só é socialmente permi- estereotipada "Eu obedecia ordens" mostra em que medi-
ida como explicitamente demandada. da a estrutura da consciência individual ainda dependia
Se falamos de um processo civilizador em cujo de- do mecanÍSJl10 externo de coerção do Estado.
orrer os moribundos e a morte são resolutamente bani-
los para os bastidores da vida social e cercados por senti-
nentos relativamente intensos de constrangimento e ta- 14
•us verbais relativamente rígidos, devemos qualificar a
firmação acrescentando que as experiências das duas A quarta característica específica das sociedades desen-
:randes guerras européias, e talvez ainda mais a dos cam- volvidas que merece menção como pré-condição da pe-
•os de concentração, mostram a fragilidade da consciên- culiaridade de sua imagem da morte é o alto grau e
ia que proíbe matar e por isso insiste na segregação dqs padrão específico de individualização. A imagem da
noribundos e dos mortos, tanto quanto possível; da vida morte na memória de unia pessoa está muito próxima
ocial normal. Os mecanismos de autocoerção envolvi- de sua imagem de si mesma e dos seres humanos preva-
os na repressão da morte em nossas sociedades clara- lecente em sua sociedade. Em sociedades mais desenvol-
lente se desintegram de modo relativamente rápido vidas as pessoas em geral se vêem como seres individuais
uando o mecanismo externo de coerção imposto pelo fundamentalmente independentes, como mônadas sem
stado- ou por seitas ou grupos de combate- . , funda- janelas, como "sujeitos" isolados, em relação aos quais o
o em doutrinas e crenças coletivas respeitadas, muda mundo inteiro, incluindo todas as outras pessoas, re-
iolentamente de rota e ordena matar outras pessoas. Nas presenta o "mundo externo". Seu "mundo interno", apa-
uas guerras mundiais, a sensibilidade em relação a ma- rentemente, _é separado desse "mundo externo>: e por-
tr, em relação aos moribundos e à morte se evaporou tanto das outras _pessoas, como que por um muro invi-
1pidamente para a maioria das pessoas. Como a equipe sível.
os campos de concentração se ajustou psicologicamente Esse modo específlco de experimentar a si mesmo, a
Js assassinatos em massa diários é uma questão aberta auto-imagem do horiw clausus característica de um está-
ue mereceria investigação cuidadosa. Essa questão é gio recente da civilização, está intimamente ligado a um
mitas vezes obscurecida pela questão de quem é o culpa- modo igualmente específico de experimentar, como ante-
o por tais acontecimentos. Mas, para a prática social, e cipação de nossa própria inorte e provavelmente na si-
;z Norbert Elias A solidão dos moribundos 63

:uação real, nosso próprio ato de morrer. Mas a pesquisa pela imagem do homo clausus. O fato peculiar de que, pela
;obre a morte - por razõ.es que não são independentes mediação da linguagem, dados de todos os tipos, inclusi-
la repressão social - ainda está num estado incipiente. ve nossa própria vida, podem ter sentido para as pessoas
-lá ainda muito a fazer para uma melhor compreensão da foi durante um bom tempo objeto de copiosas reflexões
:xp~riência e das necessidades dos moribundos e da co- filosóficas. Mas, com poucas exceções, essas meditações
texão entre tal experiência e tais necessidades, de um tentam obter acesso ao problema do sentido postulando
ado, e o modo de vida e auto-imagem, de outro. De como "sujeito" deste- à maneira tradicionalmente filo-
orma velada, com a ajuda de conceitos como"mistério" sófica- um indivíduo humano num vácuo, uma môna-
· "nada", escritos existencialistas às vezes projetam uma d a isolada, um "eu" enclausurado, e então talvez, num
magem quase solipsista de um ser humano em ago nia. O nível mais alto de generalidade, o ser humano isolado ou,
nesmo pode ser dito do "teatro do absurdo'~ Seus ex- se for o caso, a consciência como um universal. De manei-
•oentes também partem implicitamente - e às vezes ra expressa ou não, espera-se então que cada pessoa por si
xplicitamente - da suposição de que a vida de um.a mesma, precisamente como mônada isolada, deva ter um
•essoa, como a vêem - isto é, a vida de um ser funda- sentido, e a falta de sentido da existência humana é la-
nentalm.e nte isolado e herm eticamente segregado do mentada quando ele não é descoberto.
nundo -,deve ter um sentido, e talvez mesmo um sen- Mas o conceito de sentido não pode ser compreendi-
ido predeterminado, apenas em si mesma e para si mes- do por referência a um ser humano isolado ou a um
1a. Sua busca pelo sentido é uma busca pelo sentido de universal derivado dele. O que chamamos de "sentido" é
.ma pessoa individual em isolamento. Quando deixam constituído por pessoas em grupos mutuamente d epen-
e encontrar essa espécie de sentido, a existência humana dentes de uma forma ou de outra, e que podem comuni-
1es parece sem sentido; sentem-se desiludidos; e o vazio car-se entre si. o "sentido" é uma categoria social; o sujei-
e sentido assim estabelecido para a vida human a geral- to que lhe corresponde é uma pluralidade de pessoas
lente encontra a seus olhos sua expressão suprem a na interconectadas. Em suas relações, sinais que t ro cam
onstatação de que cada ser humano deve morrer. entre si - que podem ser diferentes para cada grupo
É fácil compreender que uma pessoa que acredite -assum em um se ntido, um sentido comunal, para co-
iver como um ser sem sentido morra da mesma forma. meçar.
1as essa co mpreensão do conceito de se ntido é tão enga- Grupos humanos qu'e fala m uma lingua comum po-
adora quanto a imagem do ser humano a que corres- dem servir como modelo básico, ponto de partida para
onde. A categoria do "sentido" também é aqui marcada qualquer discussão sobre problemas d e sentido. A comu-
64 Norbert Elias A solidão dos moribundos · 65

nicação por meio de lingua·s é uma caracte.rístka exclusi- Cada pessoa pode- dentro de certos limi tes- variá-lo
vamente humana, tanto quanto a exigência de sentido. individualmente; mas se for longe demais acaba por se
Nenhuma outra coisa viva se co munica dessa maneira; privar- no presente ou no futuro - da comunicabílida-
nenhuma outra atribui se~ tidos aprendidos e específicos de do conhecimento e também de seu sentido.
do grupo a padrões sensoriais igualmente aprendidos e O sentido das palavras e o da vida de uma pessoa
também específicos do grupo, utilizados como meios de têm em comum o fato de que o se ntido associado a elas
comunicação dominantes. Em todos os outros casos, si- por essa pessoa não pode ser separado do associado a
nais não aprendidos e específicos da espécie dominam a elas por outras. A tentativa de descobrir na vida de
comunicação. Certamente, entre os humanos, padrões alguém um sentido independente do que essa vida sig-
sonoros produzidos por uma pessoa podem ter um "sen- nifica para as outras pessoas é inútil. Na práxis da vida
tido" para as outras. Mas só têm um sentido se - e social a conexão entre os sentimentos de uma pessoa e
porque- o emissor e o receptor aprenderam a· associar a consciência de que eles são significativos para outros
aos conjuntos específicos de padrões sonoros as mesmas seres humanos, e de que os outros são sig nificativos para
imagens mn emônicas, ou, em outras palavras, o mesmo essa vida, é fácil de descobrir. Nesse plano, normalmente
sentido. Nesta forma, a mais elementar, de "sentido': seu compreendemos sem dificuldade que expressões como
caráter social se mostra claramente. Assim, uma pessoa "significativo" e "insignificante", referidas a urna vida
d~ língua inglesa pode esperar que, ao emitir o padrão humana, estão in~imamente ligadas ao que significa para
sonoro "Que horas são?': outr~ pessoa de língua inglesa os outros o que essa pessoa é ou faz. Mas, nas reflexões
associará a esse padrão sonoro à mesma imagem mne- que a pessoa faz sob re si mesma, essa compreensão
.-
mônica que o emissor e responderá com um.apropriado desaparece com facilidade. Aí, o sentimento amplamen-
padrão sonoro, portador de imagens, como "Precisamen- te difundido nas sociedades mais desenvolvidas com
te quatro e quinze". Emitido nas ruas de Paris, o padrão seus membros altamente individualizados - de que
sonoro "Que horas são?" em inglês pode não obter res- cada um existe apenas para si mesmo, independente de
po"sta alguma ou provocar um olhar de estranhamente. outros seres humanos e de todo o "mundo externo"-
Os sons careceriam de sentido num contexto social dife- em geral acaba prevalecendo, e com ele a idéia de que
rente. Todo ser humano se torna vinculado aos outros uma pessoa deve ter um sentido exclusivamente seu. O
desde a mais tenra idade ap rendendo a usar, como meio modo tradicional de filosofar que vem junto com esse
de emitir e receber mensagens, um código de símbolos • modo de pensar, e é ao mesmo tempo uma de suas
específicos do grupo, ou, em outras palavras, uma língua.
l principais manifestações, mui tas vezes obstrui a indu-
66 Norbert Elias A solidão dos moribundos 67

são daquilo que é imediatamente eviden te na prática- sos espontâneos na direção de· outras pessoas e coisas,
a participação da pessoa num mundo de outras pessoas afastando-as como conseqüê ncia.
e "objetos" em reflexões ~e nível mais alto: Até aqui, o problema da solidão dos moribun dos foi
Todo ser humano vive de plantas e animais "exter- co nsiderado acima de tudo em relação às atitudes dos
nos': respira ar "externo" e tem olhos para luzes e cores vivos. Mas isso precisa se r complementado. Nessas socie-
"externas': Nasce de pais "externos" e ama ou odeia, faz dades, compreensivelmente, tendências a sentimentos de
amigos ou inimigos de pessoas "externas". No nível da solidão e isolamento muitas vezes fazem parte da estrutu-
práxis social as pessoas sabem disso. Numa reflexão mais ra da personalidade dos próprios moribundos. Sempre
distanciada essa expe riência é muitas vezes recalcada. há, é claro, diferenças relacionados a classe, sexo e gera-
Membros de sociedades complexas então têm frequente- ção. Pode-se supor que essas tendências são particular-
mente a experiência de si mesmos como seres cujo "self mente desenvolvidas em círculos acadêmicos, mais geral-
íntimo" é total mente sepa rado do «mundo externo': Uma mente nas classes médias que nas classes operárias, talvez
poderosa tradição filosófica parece ter legitimado essa mais entre os homens do que entre as mulheres. Mas isso
dicotomia ilusória. Discussões sobre o sentido foram é, por ora, mera adivinhação, que tem por objetivo cha-
profun~amente afetadas por isso. O "sentido" é em geral
mar a atenção para problemas que raramente são tocados
e dizer que não foram esquecidos.
tratado como mensageiro do "mundo íntimo" de um in-
De todo modo, nessas sociedades uniform emente
divíduo enclausu rado.
pacificadas em que a vida comunitária demanda um con-
O resultado, a distorcida auto-imagem de uma pes-
trole completo e uniforme de todos os impulsos instinti-
soa como ser tota lmen te autônomo, pode refletir senti- vos vulcânicos, um arrefecimento permanente das emo-
men tos muito rea is de solidão e isolamento emocional. ções violentas, há certas características comuns da estru-
Tendências desse tipo são bastante carac~erísticas da es- tura da personalidade que transcendem a classe e outras
trutura de personalidade específica das pessoas de nossa diferenças de grupo. E elas emergem claramente apenas
época em sociedades altamente desenvolvidas e do tipo pela comparação com sociedades em d iferente estágio de
particular de individualização que nelas prevalece. O per- civilização. Essas características comuns incluem o alto
manente autocontrole, nesse caso, está muitas vezes tão grau de individualização, a ampla e constante contenção
firmemente embutido nas pessoas que crescem nessas de todos os impulsos instintivos e em ocionais fortes e
r
sociedades qu e é experimentado como uma muralha um a tendência ao isolamen to, que se dão paralelamen te a
realmente existente, que bloqueia o afeto e outros impul- essas estruturas da personalidade até agora.
68 Norbert Elias A sol'idão .dos moribundos 69

Essa tendência também pode ser percebida nos mo- Alegrarei meus amigos
. d a que morra sozm
Am . h o. 10
ribundos. Podem resignar-se a ela ou, precisamente por-
que estão para morrer, ten~ar urna última oportunidade Esse "sozinho': a idéia de que se pode estar alegre com
de transpor a muralha. Corno quer que seja, ~necessitam os outros mas se deve morrer só, pode parecer tão auto-
mais que nunca da sensação de que não deixaram de ter evidente hoje que nos inclinamos a ver nele uma experiên-
sentido para outras pessoas- dentro de certos limites: a cia de todas as pessoas em todos os tempos e lugares. Mas
excessiva expressão de simpatia pode ser tão intolerável essa idéia não é encontrada em todos os estágios do desen-
para eles como a falta dessa expressão. Seria incorreto volvimento humano ..É muito menos universal que as ten-
falar de rejeição e reserva, induzidas pela civilização, tativas das pessoas de encontrarem um~ explicação de por
dos vivos em relação aos moribundos em sociedades que devem morrer. E desempenha um papel importante
como a nossa se m indicar ao mesmo temp o o possível na mais antiga versão do épico sumério de Gilgamesh que
embaraço e reserva dos próprios moribundos em rela- possuímos, datado do começo do segundo século antes de
ção aos vivos. Cristo. Por contraste, a idéia de ter que morrer só é caracte-
rística de um estágio comparativamente tardio da indivi-
dualização e da autoconsciência.
Esse "sozinho" aponta para um complexo de senti-
15
dos inter-relacionados. Pode referir-se à expectativa de
que não é possível compartilhar o processo d e morrer
A natureza especial da morte e de sua experiência em com ninguém. Pode expressar o sentimento de que com
sociedades avançadas não pode ser entendida de maneira · nossa morte o pequeno mundo de nossa própria pessoa,
aprop riada sem referência ao poderoso impulso à indivi- com su~s ~emórias exclusivas e sentimentos e experiên-
dualização que se estabeleceu com o Renascimento e que, cias. só conhecidos por nós mesmos, com seus próprios
com muitas flutuações, continua até hoje. Nas fases ini- conhecimento e sonhos, desaparecerá para sempre. Pode
ciais enco ntra expressão na idéia do contraste entre a vida referir-se ao sentimento de que, ao morrer, somos deixa-
sociável e a morte solitária - por exemplo, nas linhas de dos sós por todas as pessoas a que nos sentimos ligados.
Opitz:

Tenho pouco para legar


Mas tenho um nobre vinho; 10 Martin Opitz, Weltliche Poemata 1644. Oden odcr Gesange XVIII.
70 Norbert Elias A solidão dos moribundos 71

Como quer que seja visto, esse motivo do morrer isolado comerciante num vilarejo não muito distante. A neve fica
ocorre mais freqüentemente no período moderno que mais pesada durante a jornada. Perdem a trilha e final-
em qualquer anterior. É uma das formas recorrentes da mente, durante a noite, atolam numa ravina e são lenta-
.
experiência das pessoas num período em que a auto-ima- mente engolidos pela neve. Conseguem erguer, como é
gem de alguém como um ser totalmente autônomo, não habitual, uma espécie de bandeira numa vara comprida
apenas diferente de todos os outros, mas separado deles, para que possam ser socorridos no dia seguinte. Quase até
existindo inteiramente independente deles, torna-se cada o fim, o comerciante continua ativo o quanto pode. Sonha
vez mais marcada. A ênfase especial assumida no período co m tudo o que alcanço u, e com o que _ain~a tem pela
moderno pela idéia de que se morre em isolamento equi- frente, levanta-se quando percebe que o empregado está
vale à ênfase, nesse período, do sentimento de que se vive morrendo congelado, deita-se sobre ele com seu grosso
só. Sob esse ponto de vista também a imagem de nossa casaco de pele para mantê-lo aquecido, cai lentamente no
própria morte está intimamente ligada à imagem de nós sono e congela até morrer. Nikita, seu empregado campo-
mesmos, de nossa própria vida, e da natureza dessa vida. nês, entregà-se à morte pacientemente e sem resistir:
N!lma novela curta e não muito transparente, O se-
A idéia da morte, a qual- provavelmente o levaria nesta
nhor e o homem, Tolstoi contrasta a morte de um comer-
mesma noite, cresceu dentro dele, mas não tinha nada de
ciante de origem camponesa com a de seu empregado dolorosa ou terrível. Isso porque ele tivera muito poucos
campo nês. O comerciante venceu na vida - por sua ener- dias felizes e de festa em sua vida, mas muitas semanas
gia, sua atividade constante, sempre em busca de bons amargas, e estava cansado do trabalho incessante.
negócios, sempre e m conflito com concorrentes .que que-
riam derrubá-lo. Nikita, o empregado, que ele sustenta e a Tolstoi descreve a habitual subserviência do trabalha-
1uem vez ou outra trapaceia no pagamento do salário, ·dor a seu senhor terreno - devoção só superada pela do
Jbedece às suas ordens. Aceita o bem e o mal como se leal cavalo -_- e, assim, também ao Senhor no Céu. Tenta,
1presen tam, pois não tem escolha. Para ele não há como portanto, deixar bem explicitada a conexão entre a manei-
:leixar essa vida, não há escapatória- exceto a vodca. As ra como uma pessoa vive e a maneira co mo morre. 11
1ezes fica bêbado de cair. Torna-se então selvagem e peri-
~oso. Sóbrio, é paciente, obediente, amigável e devotado a
;eu senhor. Vi~jam juntos numa nevasca com um cavalo l i P:~ra complementar o q ue diz Aries da serenidade do camponês
russo moribundo como apa rece na literatura, essa citação pode ser
orte puxando o trenó. Um negócio, a compra de madeira
interessante. Mostra muito claramente a conexão entre o modo de
>ara não deixar que um concorrente a adquira, aguarda o viver e o modo de mor rer, que Aries até certo ponto negligencia.
72 Norbert Elias A solidão dos moribundos 73

Para o senhor, o comerciante lutando para vencer, a formulação, mas totalmente diferente no sentido. Se que-
vida, e portanto a sobrevivência, tem alto grau de sentido remos dizer que alguém se ocupa de algo totalmente inú-
e de valor. Ele continua ativo e tenta manter seu emprega- til, podemos dizer por exemplo que de ou ela está refle-
'
do e ajudante vivo, até que o frio o derrota. O empregado,
• tindo sobre o sentido da vida. A inutilidade nesse caso
a quem a vida custa muito trabalho, esforço e opressão, deriva do fato de que se está procurando um sentido
mas raramente supõe uma tarefa ou objetivo próprios, metafísico para a vida humana, um sentido que é, por
sonha pacientemente com a morte, e s(> escapa dela - assim dizer, ditado para o indivíduo, seja por poderes
como quer Tolstoi -pela proteção do corpo e do casaco supra-humanos, seja pela natureza. Mas tal sentido meta-
quente de seu senhor. físico pode, na melhor das hipóteses, ser objeto de espe-
culação filosófica; pode~os dar rédeas soltas a nossos
O modo como uma pessoa morre depende em boa
desejos e fantasias n'a busca desse tipo de sentido- as
medida de que ela ~enha sido capaz de formular objetivos
respostas não P<?derão ser mais que invenções arbitrárias.
e alcançá-los, de imaginar tarefas e realizá-las. Depende
Seu conteúdo não pode ser nem comprovado nem rejei-
do quanto a pessoa sente que sua vida foi realizada e
tado.
significativa- ou frustrada e sem sentido. As razões des-
Mas o sentido em discussão aqui é de espécie dife-
ses sentimentos nem sempre são claras - -essa também é
rente. As pessoas experimentam os eventos que lhes
uma área ainda aberta à pesquisa. Mas quaisquer que
acontecem como sendo significativos ou não, como ten-
sejam as razões, podemos talvez supor que morrer é mais
do ou não sentido. É esse sentido experimentado que
fácil para aqueles que acreditam terem feito a sua parte, está em questão. Se um homem de trinta anos, pai de
mais difícil para os que sentem terem fracassado na bus- duas crianças pequenas e casado com uma mulher que
:a de seus objetivos, e especialmente difícil para aque- 'ama e que também o ama, envolve-se num acidente de
les que, por mais que sua vida possa ter sido bem suce- estrada com um motorista que vinha na contra-mão e
:iida, sentem que sua maneira de morrer é em si mesma mor~e, dizemos que é uma morte sem sentido. Não
;em sentido. porque o morto tenha deixado irrealizado um sentido
Morte significativa, morrer sem sentido - esses con- extra-humano, mas porque uma vida que não tinha
:eitos também abrem a porta para problemas que, pode- qualquer relação com a da família afetada, a vida do
;e imaginar, recebem muito pouca consideração pública. outro motorista, de um. só golpe, como que vindo de
Em certa medida, isso bem pode ser porque são facilmen- fora e por acaso, destruiu a vida, os objetivos e planos,
:e confundidos com outro problema, quase idêntico na os sentimentos firmemente enraizados de um ser hu-
74 Norbert Elias A solidão dos moribundos 75

mano, e, portanto, algo que tinha todo o sentido para para morrer que eles não perderam seu significado para
essa familia. Não foram destruídas só as expectativas, os outros.
esperanças e alegrias do morto, mas também as dos Se isso acontece, se uma pessoa sentir quando está
sobreviventes, sua mulher' e filhos. Para as pessoas que morrendo que, embora ainda viva, deixou de ter signifi-
constituíam essa familia, tal arranjo social, tal grupo cado para os outros, essa pessoa está verdadeiramente só.
humano, tinha um a função investida de valores alta- É precisamente dessa forma de solidão que há exemplos
m e nte positivos. Se alguma co isa tem tal função para a de sobra em nossos dias, alguns corriqueiros, outros ex-
vida de alguém e um acontecimento a reforça, dizemos · traordinários e extremos. O conceito de solidão tem um
que tem sentido para essa pessoa. Inversamente, quando amplo espectro. Pode referir-se a pessoas cujo desejo de
alguma coisa tem tal função para uma pessoa ou um amor em relação aos outros foi muito cedo tão ferido e
grupo e deixa de existir, torna-se irrealizável ou é des- perturbado que mais tarde dificilmente podem reviver a
truída, falamos de uma perda de sentido. experiência sem sentir os golpes anteriormente recebi-
O pouco que fo i possível dizer sobre a natureza do dos, sem sentir a dor a que esse desejo as expôs em outros
sentido e, portanto, sobre o "sentido de uma vida': pode tempos. Involuntariamente, pessoas assim afetadas ocul-
não ser inteiramente destituído de valor para entender tam seus sentimentos em relação aos outros. É uma for-
um problema específico dos moribundos. A realização do ma de solidão. Outra forma de solidão, que é social no
sentido para um indivíduo, como vimos, está intima- sentido mais estrito, ocorre quando as pessoas vivem
m ente relacionada ao significado que se adq-u ire, ao longo num lugar ou têm uma posição que não lhes permite
da vida, para as outras pessoas, seja através de sua própria encontrar outras pessoas da espécie que sentem precisar.
pessoa, de seu comportamento ou de seu trabalho. Hoje Neste, e em mui tos casos afins, o conceito de solidão
as pessoas tentam ajudar os moribundos acima de tudo refere-se a uma pessoa que por essa ou aquela razão é
aliviando sua dor e cuidando na medida do possível de deixada só. Tais pessoas podem viver entre as outras, mas
seu conforto físico. Com esses esforços, mostram que não não têm significado ,afetivo para elas.
d eixaram de respeitá-los enquanto seres humanos. Mas Isso, porém, não é tudo. O conceito de solidão inclui
em hospitais atarefados, isso muitas vezes acontece, e também uma pessoa em meio a muitas outras para as
compreensivelmente, de modo um tanto mecânico e im- quais não tem significado, para as quais n ão faz diferença
pessoal. Mesmo as famílias às vezes ficam sem as palavras sua existência, e que romperam qualquer laço de senti-
certas nessa situação pouco familiar de tentar ajudar um mentos com ela. Pertencem a esse grupo alguns pedintes
moribundo. Nem sempre é fáci l mostrar aos que estão e os bêbados que sentam nas soleiras e n em são percebi-
76 Norbert Elias A 'Solidão dos moribundos 77

dos pelos passantes. As prisões e câmaras de tortura dos ração. Aplacar esses terrores, opor-lhes a simples realida-
ditadores são exemplos dessa espécie de solidão. O cami- de de uma vida finita, é uma tarefa que ainda temos pela
nho para as câmaras de gás é outro. Ali, crianças e mulhe- frente. É terrível quando pessoas morrem jovens, antes
res, jovens e velhos, eram levados nus para sua: morte por que tenham sido capazes de dar um sentido às suas vidas
outros que se haviam livrado de todo sentimento de iden- e de experimentar suas alegrias. É também terrível quan-
tidade e simpatia. Como, além disso, os que eram levados do _homens, mulheres e crianças erram famintas pela ter-
para a morte eram reunidos ao acaso e eram desconheci- ra estéril onde a morte não tem pressa. Há muitos 'terro-
dos entre si, cada um deles, em meio a várias pessoas, res que cercam a morte. O que as pessoas podem fazer
estava sozinho e solitário no mais alto grau. para assegurar urnas às outras maneiras fáceis e pacíficas
Esse exemplo extremo pode nos mostrar quão fun- de morrer ainda está por se'r descoberto: A amizade dos
damental e incomparável é o significado das pessoas para e
que continuam vivendo o sentimento dos moribundos
as outras. Também dá uma indicação do que significa de que não causam embaraço aos vivos são certamente
para os moribundos se sentirem-_ainda em vida - um meio. E o constrangimento social, o véu de descon-
excluídos da comunidade dos viventes. forto que freqüentemente cerca a esfera da morte em
nossos dias é de pouca ajuda. Talvez devêssemos falar
mais aberta e claramente sobre a morte, mesmo que seja
16 deixando de apresentá-la como um mistério. A morte
não tem segredos. Não abre portas. É o fim de uma pes-
A morte não é terrível. Passa-se ao sono e o mundo desa- soa. O que sobrevive é o que ela ou ele deram às outras
parece- se tudo correr bem. Terrível pode ser a dor dos pessoas, o que permanece nas memórias alheias. Se a hu-
moribundos, terrível. também a perd~ sofrida pelos vivos . manidade desaparecer, tudo o que qualquer ser humano
quando morre uma pessoa amada. Não há cura conheci- tenha feito,· tudo aquilo pelo qual as pessoas viveram e
da. Somos parte uns dos outros. Fantasias individuais e lutaram, incluídos todos os sistemas de crenças seculares
coletivas em torno da morte são freqüentemente assusta- e sobrenaturais , torna-se sem se ntido.
doras. Como resultado, muitas pessoas, especialmente ao
envelhecerem, vivem secreta ou abertamente em cons-
tante terror da morte. O sofrimento causado por essas
fantasias e pelo medo da morte que engendram pode ser
tão intenso quanto a dor física de um corpo em deterio-
Envelhecer e Morrer:
A lgu n s Problemas Socio lógico s

Uma exper iê ncia de juventude ass umiu ce rta sígníficaç5o


pa ra rnim ago ra q ue so u mr1i s ve lho. t\ ss isti a urn a co nCc··
rê ncia ele um íísico muito co nh ec ido em Cambridgc. Ele
en trou deva ga r, a rr;lstanclo os pé<;, um homem ll111Íio vt
lho. Eu m e surpreendi pcn s~1nd(J: '' Po r q ue ele a rr asta os
pés nss im? Por que não pock cam inhar co mo um se r
humano norma l?" N;1 hora, m e corrigi: "Não pode evitar,
é' lliUltOVC
. 11l O.))
M inh a espontftnea reação juvenil a visão de um velho
é típ ica da espécie d e se n tim entos que a visão el os velh os
susc ita hoj e, e ta lvez a inda mais em te m pos passados, em
pessoas saudcíveis nos g rupos de "idade normal". Elas sa-
bem que os velhos, m es m o qu a ndo saudáveis, muitas ve-
zes tên.1 diGculdad e em mover-se da 1ncsnw maneira que
pessoas sau dáveis de o utra faixa etária, exceto as crianças
p equenas. Sabem disso, mas de manei ra remota. Não p o-
d em imaginar a situação em que su as próprias pernas e
l
'
tronco deixam de obedecer à sua vontade, como seria
normal.
·-·
Uso d eliberadamente a palavra "normal". Que as pes-
soas se tornem diferentes qua ndo envelhecem é muitas
vezes visto, embora involuntariamente, corno um desvio

79
80 Norbcrt Eli . s 81

d~.l no 1"111 il ~\l ~ ia L ~ )s l) u t n)S ~ )~ ~ru pos d(.· idadt: 11 o rilli.l


u r: 1~.--; .~a rc.t,isténcia, '\ .l· priJ L I'"l•l(l d(· r· altan1enr(J, é, por
n1uit~1~ v ·ze" lt'ln dit]"-·ukLldl cn1 se colocar no lug . tr dos razoes as <JLI~d'l rctornan.: r, ~ n,·.. .~·. · t·!n cnl(· llli JÍ " evidente:
n1~11." v ·l ht ~ 11.1 ~.::-...pl..'ri0n'-ia lh.' envelhecer -- o que L' (Otn na~ .'-.oc..icd i:J(h:.\ de~el1VíJl vjdJ"l 'ttrt· r .1 . 11 :nu. des.c n 'tJlt·i-
}"' ft'L'Jl.~ i Vl' I. Pn i~ ,1 111,1 i o ri a das pessoas rna i~ j l)\'lTl~ na o d tlS. Agord que l'\lfJU vcJilo r., ·j _ I ( ,1 . .J ,'d . • j' /. ·t ·r, J1L'lo () Hr()
tcn ha.'l t" de: expcriênLÍ,t pn'>pria paLl in1aginar n quç 1a do, q lrH' d i fí c íl t: par 1 a . . p · \ ' "' ;_p , H/. c n , . J L d ~.: nJ ·i a -
( Lt>rre qu\1ndo o tl'c ídn 111uscular L'ndurccc Pradualnll'll - i da de c n te n t1 e r a si t u a ç c1 t ' c a c. :F ·r i(: :~ . 1; ! ' ·. .·c 11 HJ s . \r1 u i-
t e, trL a n d o ·i ~ v L" z L'~ fl ~í c i do, q u a n do as juntas · n r i j c (e xn L' tos de tncus conhecido, nlt: dL~t·n1 d ! ;J'.T.l ': • ~ ·r ti " ·c,nlo:
. 1 renl vaçdo ta~ · L"Iula~ se torna n1ai!-i lenta. )s ~ roccssos u In 1 p r c~ si o na n t c: (~ o m o 'l' J c;. -q n -.. t · g :.. · ~ . · L-: •;. : ·r . 1 u L1 ~
i

fi iol c)~ico :\ sao ben1 conheci dos pe1 a ciéncia e p(.lrc ial- vcl? Na sua idade! JI ou (-\~oce 1:J:dc H rl 1a? (.) · :ndrJ. _·i hcJ~ . ,
111 c n te c o n1 p r e e n d i dos. f-I á ex t c n s a Ii te r atura s b r c o Sinto- rne um equílíbr i ta, fa mi ·ar · z\"1d' u1. r .., n \CO~ 1c:
-4

tcn1a. ~vluit n1cnos con1precndida, e Inenos abordada na seu rnodo de\ ida e razo v ·hnentt: ~t: t _ de c _ ~ ncard
I

litcraturd, ~. a própria experiéncia do envelh cimento. É a escada na outra ponta da c rd~1. \'C·· rando J.O (h: .r
u1n tópico pouco discutido. Não deixa de ser importante tranqüilan1ente a seu devido ternp >. ~\Ll .'\ a~ pessoa~
para o tr, tan1cnto dos velhos por aqueles que não o são que assis tcn1 a iss de bJ ix s..1 t:n: t..]U e e Ie p ode c ir 1
-ou ainda não o são , e não apenas para o tratan1cnto qualquer momento e o (On ten1pian1 ~xci tJda ~ e urn
tanto assustadas.
n1édico, ter uma cornpreensao maior e mais detalhada da
Lcrnbro outra experien(:ia que rode servir como
experiência do envelhecin1ento, e também da morte. Mas
excn1plo da .PàoAidentifica\âO dos n1ais jovens com os
claramente, como já disse, há dificuldades especiais que
v~lhos. Era professor visitante numa universidade alemã
impedem a e1npatia. Não é fácil imaginar que nosso pró-
c fui convidado para jantar p 'r um cole·ga que estava no
prio corpo, tão cheio de frescor e muitas vezes de sensa-
auge de sua vida. St;;rYill-nlt:' un1 aperiti,·o antes do jantar
ções agradáveis, pode ficar vagaroso, cansado e desajeita-
e n1c (Onvidou a sentar ntn11a n1oderna poltrona de lona,
9.o. Não podemos imaginá-lo e, no fundo, nao o quere- n1uito baixa. Sua n1ulher nos chamou para a mesa. Le-
mos. Dito de outra maneira, a identificação com os ve- vantei, c ele n1e lançou um olhar de surpresa, talvez um
lhos e com os moribundos compreensivelmente coloca tanto decepcionado: "Puxa, voce está em muito boa for-
dificuldad.es especiais para as pessoas de outras faixas nla,,, disse . uNão faz muito tempo, o velho Plessner jantou
etárias . Consciente ou inconscientemente, elas resistem. à conosco. Sentou na poltrona baixa con1o voce, mas não
idéia de seu próprio envelhecimento e m.o rte tanto quan- conseguiu se levantar, por mais esforç·o que fizesse. Voce
to possíveL precisava ver. No fin1, tivem.os que ajudá -lo." E ria que ria:
Norbert Elias
Envelhecer e morrer 83

·1-:fahahal1a! Não conseguia levantar!, Meu anfitrião se


I
física ou uma fuga inconsciente da crescente fragilídade
sacudia de rir. E\ridentemente, também nesse caso, a iden- {
desses idosos em direção aos padrões de comportamento
tificação entre os não-velhos e os velhos causava dificul- da primeira infância. De todo modo, tatnbém representa
dades. u.m a adaptação a uma situação de dependência total que
A sensação "talvez eu fique velho um dia" pode estar tem seti sofrimento, mas também suas vantagens. Há pes-
inteiramente ausente. Tudo o que sobra é<? go~9 espontâ- I
soas em muitos asilos hoje que têm que ser alimentadas,
neo de nossa própria superioridade, e do poder dos j~­ postas no vaso sanitário e limpas como crianças peque-
vens em relação aos velhos. A crueldade que se expressa nas. Também enfrentam o poder corno crianças. Uma
na zombaria dos velhos desvalidos, e também da feiúra de enfermeira noturna que os trata um pouco bruscamente
t
alguns velhos e velhas, era provavelmente maior antiga- '
pode ser chamada de hora em hora durante a noite intei-
mente do que hoje. Mas decerto não desapareceu. Está ra. Este é apenas um do s muitos exempJos de como~
i 11 timamente relacionada a uma mudança muito caracte- experiência das pes oas que cnvelhccern nãrJ pode 1)er
rística nas relações i11terpessoais, que tem lugar quando I
entendida a menos que percebamos que o proces"o de enve-
as pessoas envelhecem ou estao no leito de morte: quan- lhecer produz uma mudança fundamental na posição de
do envelhecem ficam potencial ou realmente menos for- .uma pessoa na sociedade, e, portanto~ em todas as suas

tes em relação aos mais jovens. Ficam visivelmente mais relações com os outros. O poder e o status das pessoas
I
dependentes dos outros. A maneira como as pessoas dão mudam, rápida.ou lentamente, mais cedo ou mais .tarde,
co.n ta, quando envelhecem, de sua maior depe~dência guando elas chegam aos sessenta, aos setenta, oitenta ou
dos o~tros, da diminuição de sua força potencial, difere noventa
-. anos .
amplamente de uma para outra. Depende de todo o curso
'
de suas vidas e, porta11to, da estrutura de sua personalida- I

_de. 1'v1as talYe.z seja útil len1brar que algumas das coisas. 2
que os velhos fazen1) en1 particular as coisas est1·anhas,
t: ·t à"' rcla~i\.-.,nadas a seu n1edo de perder a força e a inçle- O mesmo vale para o aspecto afetivo das relações das
pcndencia, t: l"Spt'cialnlcnt de perder o controle de _.si (
pessoas que envelhecen1 e, especialmente, das que estão
111~~ll10S.
prestes a morrer co.m os outros. Nle-u tema e o tempo
Lh11a das fL rn1as de adaptação a essa situação é a dispo.n ível me obrigam a lin1itar-me a u1n aspecto dessa
Tcgressao ao on1portan1ento infantil. Não tentarei deci-
1

mudança, o..isQl'l!lle~to dos que envelhecem e.dos ~ori­


Jir "e isso é sin1plesmente um sintoma de degeneração r
~undos que freqüentemente ocorre em nossa sociedade.
f
Envelhecer e m ~orrer 85
84 Norbert Elias

Como disse de início, ocupo-me nao com o diagnóstico que nas sociedades industriais altamente urbanizadas,
dos sintomas físicos do envelhecimento e da rnorte - sendo ambos os processos formalizados por tradições so-
que ,às vezes, de n1aneira pouco apropriada, são chama- ciais específicas. O fato de que tudo ocorre de modo majs
dos · Ie si n ton1 as objetivos , 1nas c n1 ex a 111 i na r o q uc a~ públi co dentr<J do dorninjo da família exicn·)a, ern alguns
p t' s so' l ~ q u · e n vc Ihc: ct• n 1 e a~ ll 1o r i b un d 'í s ex p ·r i n 1~ n t a n 1 ca',(} ~} jJJ cltJiJJd() ()'> ,jzirdJ(J ~Jj nau 1
Ji;~nj{jr;a nr~rJ·',',aríarnr:J ­
" .~ u h j t ·t i v ;n l H •11I ( ,t '. <) u l • r ' , c o 111 p 1t • 111e n t a r o d i a p, H {, ~.. 1 ~ <" o I<· rpj(• a·} pt: ·~ ~~fJ;I'I tfllt~ (~ JI/l ~ u,,.,,~.JJ f• ()', n,r,rj jlJ1 drJ~, ;, ) t:

Jllt~di to lradi< ionaJ roul tlln di41gut'n.tÍlo ~)oriol<')gi< <,, t l'tJ JJ;t ~,. t·t.p(•fÍJnt•JJI;un ll.lfJ lr:tl íHt Jt't (tJ ;JIJJ:Í 'It:J. ,' ;;jt) r: Ílt' 'J

1rddo 110 pt·rigo do j: ·oJiiJll 'lllo il qllt' o : ~ vc·llto s (• Jnori • •


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IJilndo s l'.;tao c·xpo .o. , lo .'.. 1rílff' JJJ;JJ íl fltt~Í', '/f•JJJ;jJ ;t•, '!f•·zl·', ;d t~ r fJIJJ r. l'li ·I ·Jd;HJf•. i• :ar1 f;,z
Po d ·1n o ;~ n o t a r a l:: sc r -. ·p ·i I o ~ ' n 1a rc a Ia d if e r ·n c, a pari c da :~ l~1 n.:fa·~ d(' 1·/ ,t ~uI rJ in JÍ 'J.. ' J j r ·.r~ IJ( f/~'.: ~. ;~'/,f Jn f rJ',,
entre a posiçüo Jo~ JUe enveJhect:J-. e dos 1 oribundo~ JJoje, rnt!, 'J(J<jtdade', indu }tríalj:~;ada'J r1 1:·7 ar/r, prrJtC-
nas sociedades indu~trjais de hoje e 11a~ pré-industriais, ge fJ idoso ou o moribundfJ crJrnrJ q a fJUe r (JUtro cjda-
isto é, nas sociedades n1edicvais ou do início da industria- . dão, da vio1éncía física óbvia. :v1as ao me m~ o tempü as
li~_ação. ~ as sociedades pré-industriais, em que a maioria pessoas, quando envelhecem e ficam .m ais fracas, são mais
da população -vive em vilarejos e se ocupa do cultivo da e mais isoladas da sociedade e, portanto, do círculo da
'" erra e da criaç.ao de gado, ou seja, em que camponeses e família e dos conhecidos. Há um número crescente de
~,1,Tadores ;armam o maior grupo ocupacional, quem instituições em que apenas pessoas velhas que não se co-
:iàa com os que Yao enYelhecendo e com os moribundos nheceram na juventude vivem juntas. !\'fesmo com o alto
~-ª~ª-mil·a. ss.o pode ser feito de maneira amável ou grau de individualizaçao que prevalec_e,. a maioria das
hru a mas há tambem características estruturais que pe_ssoas em nÇ>ssa sociedade forma, antes da aposentado-
(
distinguem o envelhecimento e a morte nessas sociedades
'-
ria, laços afetivos não só com a família, mas com um
dos mesmos fenômenos nas sociedades industriais mais . 5:irculo maior ou menor de amigos e conhecidos. O enve-·
avançadas. Atenho-me a duas dessas diferenças. Qs_ye.- lhecimento geralmente é acompanhado pelo esgarça-
Ihos que vao ficando fisicamente mais fracos em geral _m.ento desses laços que ultrapassam o círculo familiar
(

permanecem dentro do espaço de vida da família, ainda ' mais estr~ito. Exceto quando se trata de casais velhos, a
que as vezes após um enfrentamento com os membros admissão em um asilo normalmente significa não só a
n1ais jovens, e em geral :também morrem dentro desse ruptura definitiva dos velhos laços afetivos, mas também
espaço. Por isso mesmo, tudo o q~e diz respeito ao env~- a vida comunitária com pessoas com quem o idoso nunca
(
1hecin1ento e à morte acontece. muito. mais. pubJiça_m~n~e I
I
teve relaçoes afetivas. O atendimento físico dos médicos e

I
f
·orben: Elias

. ; ; -~ ·-<~ ';.fJal de
fermagE:m podem ser excelentes. Mas ao
t
("eus herdeiros. éJ .;I pobres prJdtrn ter t--:cad0 e'Sttr c.· dr;s
:r t;' mr; ternprJ a separação dos ídosos da vida ·n ormal e sobre sua sujeira e passado fome. Pode-se dizer que antes
sua reunião com estranhos significa solidão para o indiví- do século XX, ou talvez do XIX, a maioria das pessoas
duo. Não estou pensando apenas nas necessidades se- morria na presença de outras apenas porque estavam me-
xuais, que podem ser muito ativas na extrema velhice, .ns:>~ é).costumadas a viver e estar sós. Não havia muitos
particularmente entre homens, mas também na proxi- cômodos onde uma pessoa pudesse ficar só. Os moribun-
midade emocional entre pessoas que gostam ·d e estar dos e os mortos não eram tão flagrantemente isolados da
juntas, que têm um certo envolvimento mútuo. Rela- vida comunitária como é geralmente o caso nas socieda-
ções desse tipo em geral também diminuem com a des avançadas. As sociedades como tais eratn 1nais pobres
transferência para um asilo e raramente encontram aí antigamente; não eram tão organizadas em tertnos de
uma substituição. Muitos asilos são, portanto, desertos. higiene como as sociedades posteriores. As grandes epi-
de_solidão. demias assolavam freqüentemente os países europeus;

4
I
pelo men.o s desde o século XIII, ian1 e vinham em geral
l'
' diversas vezes em cada século at~ o século XX, quando as
3 pessoas finalmente aprenderam a lidar com elas ..

A natureza ·e special da morte nas sociedades industriais


.

I
•• desenvolvidas, com o isolamento emocional como uma 4
das características preemine11tes, surge de modo particu-
1arn1ente claro se con1pararmos os procedimentos e ati- Geralmente é difícil para as pessoas de épocas recentes
tudes relativos a morte nas sociedades em estágios mais colocar-se no lugar de outras que viveram em períodos
avançados aos dos países menos desenvolvidos. Todos anteriores; assim, as pessoas de hoje não podem entender
estamos familiarizados com pinturas de períodos ante- de maneira apropriada sua própria situação, ou a si mes-
riores, que retratam famílias inteiras mulheres, ho- mas. A situação é que simplesmente o estoque social de
rnens e crianças · cn1 torno do leito da matriarca ou do .. con.h ecimentos relativos à doenças e suas causas era, em
1 atria rca mCJribundo. Pode ser uma ideaHzação românti- sociedades antigas, a medieval, por exemplo, não só mui-
ca . Fa1nílias nessa si tuação podem ter sido muitas vezes
to mais limitado, mas também muito menos seguro do
nc:gJ igcn te..,, hru t·ds c frirts. CJuem sabe os ricos nem sem- que hoje. Quando as pessoas carecem de um. conheci-
I
prr· rn( rreran1 dt: ·1 naneira suficientemente rápida para mento seguro da realidade, tarnbém ficam menos segu-
88 Norbert Elias 89
Envelhecer e morrer

ras; exaltan1-se con1 maior facilidade, entram mais rapi- fórmula emotiva de Max ~~b~r, esse "~esenca~tamento
dan1ente e1n pâ11ico; preencl1em as lacunas de seu conhe-
do mundo': de processo de racionalização. Como quer
cimento realista com conhecimet1tos fantasiosos e bus-
que 0 termo seja utilizado, ele sugere gue·_Q__que n1udou
cain aplacar o medo de ameaças inexplicáveis por meios
afinal foi a ((razão" humana; parece implicar que as pes-
igualn1ente fantasiosos ..Assin1, as pessoas de outrora ten-
soas se tornaram mais ((racionais" ou) em linguagem siln-
t.f}.yam_enfrentar ~1s epidemias recorrentes por m~io de
ples, mais sensatas que em tempos anteriores. É u1na au-
amuletos) sacrifícios, acusaçoes contra envenenadQres,
tovaloração que dificilmente faz jus aos fatos. Só se coine-
_bruxas e sua própria natureza pecamii1osa, como ma:-
ça a entender a.mudança referida pelo conceito _de _racio-
neira de apaziguar seus sentidos alarmados.
~lalizaç.ao. guando se reconhece que uma das mudanças
!viesmo hoje pode acontecer de pessoas atingidas por
p_9r ele acarretadas é o aumento do conhecimento social
uma doença incurável, ou que por outras razoes se en-
qrientado pgra os fatos, conhecitnento capaz de confe1:ir
contrem às portas da morte, escutarem uma voz interior
~ma sensaçao de segurança.. A expansão.do conhecin1en-
sussurrando que é culpa de seus parentes ou punição por
to real e a correspondente retraçao do conhecitne~to fan-
seus próprios pecados. Ivias hoje tais fantasias privadas
tasioso andam de rnaos dadas com o aumento do contro-
tendem a nao se confundir com conhecimento público
le efetivo dos acontecimentos que podem ser úteis às pes-
factual; são normalmente percebidas como fantasias pri-
soas, ou dos perigos que podem ameaçá-las. A idade e a
Yadas. O conhecimento das causas das doenças, do enve-
morte estão entre estes últimos. Encontramos uma situa-
lhecimento e da morte tornou-se mais seguro e abran- ção curiosa ao tentar compreender o que o avanço do
gente. O controle das grandes epidemias fatais é apenas conhecimento mais realista nessas áreas significa em ter-
um dos muitos exemplos de como a expansão do conhe- mos das possibilidades de seu controle pela ht1n1anidade.
cimento congruente com a realidade desempenhou um O estoqt1e de conhecin1entos da sociedade em rela:-
papel na n1udança dos sentimentos e comportamentos ção aos aspectos biológicos do envelhecin1ento e da mor-
humanos. te aumentou muito nos dois últimos séculos. O próprio
.conhecimento nessas áreas se tornou mais bem funda-
mentado e mais realista. E_nossa capacidade de control~
5 ~umentou co1n o conhecimento. Nlas nesse nível biológi-
co parecemos nos aproximar de uma barreira intranspo-
Talvez seja um tanto equivocado chamar esse recuo das nível quando tentamos estender ainda n1ais o controle
l
explicações emotivas pela via da fantasia ou, para usar a •
humano sobre os processos de envelhecimento e morte.

,

i
Norbert Elias
Envelhecer e morrer 91

()que nos faz lembrar que aqui e al· . _ .d-


• 3 • . a capaci ade dos
1
-~ao controle das pessoas sobre seus próprios afazeres,
-~.ei~S humanos em relação ao universo natural tem se
lnn1tes. · us embora não sejam de maneira nenhuma intransponíveis.
Pr_im~iro, há a escala de valores vistos comumente corno
O progresso no conheci~_ento biológico tornou - -
auto-evidentes, pela qual a ('Natureza): isto é, os aconteci-
, l ·1 ... - pos-
Slve e evar consideravelmente a e:nectativa. d-e _. ~d-- -·d
. d. , - r
!' ... ..a. o v_~ mentos naturais pré-humanos, compreende uma esfera
lll lVtduo. Mas por mais que tentemos, com o auxílio do mui to mais valorizada que a ''cu] tu r a', e a "sociedade,, a
p~ogress? rr:édico e a capacidade crescente de prolongar a área formada e criada pelos próprios seres humanos. A
v1da do 1nd1víduo e aliviar as dores do envelhecimento e ordem eterna da "natureza)' é contrastada favoravelmente
da agonia, a morte é um d.o s.fatos_.quç ip.4ica que 0 CÇ)p- à desordem e mutabilidade do mundo humano. Muitas
~role humano sobre a natureza tem limites. Sem dúvida a pessoas adultas continuam a procurar por alguém que as
abrangência desse controle é em muitas áreas extrema- leve pela mão como a uma criança, uma figura rnaterna
mente grande. O que não significa que não existam limi- ou paterna que lhes aponte o caminho a seguir. A ''Natu-
tes ao que é realizável pelos seres humanos em relação aos reza>, é uma dessas figuras. Supoe-se que tudo o que ela
fatos da natureza. faz, tudo o que é c'natural',, deva ser bom e salutar para os
Tanto quanto se pode ver, isso não se aplica ao hom.ens. A harmoniosa regularidade da descriçao da
plano social da vida humana. Aqui, nao há limites ab- "Natureza, de Ne\-vton encontrou expressao na admira-
solutos ao que pode ser feito, e é pouco provável que çao de I<ant pelas leis eternas do céu estrelado que nos
sejam encontrados. Mas, ao ampliar a esfera de seu cobre, a lei moral dentro de nós mesmos. Mas a bela
conhecimento e controle, as pessoas certamente encon- imagem da "Natureza" de Newton ficou para trás. Esque-
tram obstáculos difíceis, barreiras que podem atrasá-las cemos facilmente que o conceito de " atureza,, é agora
por séculos ou mesmo milênios., embora não sejam sinônimo do que os cosmólogos concebem como a evo-
ii1vencíveis pelo controJe humano~ Barreiras absolutas luçao do universo, com sua expansao sem propósito, a
existem nos níveis pré-humanos do cosmo, que chama- produção e destruição de sóis e galáxias incontáveis, e dos
mos de ''Natureza,; mas nos níveis sociais humanos, "buracos negros" que devoram a luz. Não faz diferença
referidos por palavras como ('sociedade', e "indivíduo': que descrevamos o processo como ((ordem',, ''acaso" ou
(( ,,
existem apenas na medida em que também contêm e caos.
fazem parte dos níveis da natureza. Nem faz m.u ito sentido dizer que os fatos naturais são
Mencionarei de passagem duas das barreiras_queofe- bons para as pessoas, ou tampouco maus . f,.. ''Natureza~'
•'

recem atualmente sérios obstáculos a orientação humana não tem intenções; não tem objetivos; não tem propósi-
92 Envelhecer e morrer 93
Norbert Elias

tos. As.únicas criaturas neste universo que poden1 estabe-: extra-hun1anos sao incapazes de aprendizado._A_prq12rja
l_ecer Qbjetivo_s, _que p_odem criar e dar sentido, são os s_oçiedade humana é urn estágio no desenvolvimento da
próprios seres hun1anos. Mas sem dúvida -é- ainda insu- natureza. Mas distingue-se de todos os estágios anterio-
- --
portável para n1trita gente im_agii~~r q_u~ lhes compc:te ~ res pelo fato de que os seres h u1nano , poden1 mudar seu
-~-~refa de decidir os run1os que a humanidade deve segui.r comportarnento e sentin1entos con1o result ado de expe-
~-- J)S _planos e açoes que têm sentido para os hon1ens. riências coinuns e pessoais, isto é, de processos de apren-
Buscan1 constantemente alguén1 que as alivie desse pes~, dizado, nur11a n1edida n1uito n1aior, e de nl '"tneira dife-
alguétn que dite as regras pelas quais deven1 viver e for- rente, que as outras criaturas. Essa capac...idade de n1udar
rnule os objetiYos para que suas vidas sejan1 dignas de pode ser de valor extraordin~irio para os hon1cns. Mas
seren1. viYidas. (.)que esperan1 é um sentido pré-detern1i= seu desejo de in1ortal.idadt:: constanten1ente os lev(.l a
nado vindo de fora~ o qu~ é possíYel é un1 sentido criado atribuir a sinais de inlutabilidadt.~ por exernplo~ ú
por t"'las n1esmas e, en1 últii11a análise, pelos ho1nens en1 Hnatureza" in1aginada CCH110 algo que n'1o rnuda un1
con.J unto, g uc de direção às suas ,~idas. valor n1tlito n1ais alto do q uc a si nles n1n.s~ an d esenvo l-
Q__ an1adurecin1ento da hun1anidade é un1 processo vin1en to de sua própria. vida Cl1 n1 uni t ~i ri'"1 c :1 ~1111 pli t ud c
diiicil. O período de aprendizado _é. _longo, erros graves e ao padrão c·1n1biante de seu controle SL brç ..1 (' nature -
sao ineYitáveis e o perigo da autodestruição, da aniqui- za,, sobre a hsociedade,, e sobre suas proprias pesso1s.
laçao de nossas próprias condiçoes de vida, no curso Talvez até n1esn1o ao lern1os isso sintan1os un1 residuo
9esse processo de aprendizado, é grande. Mas esse pe- da resistência à reavaliação exigida por essa exploraçao.
rigo só tende a crescer, se as pessoas se n1antiveren1 na Esse é un1 dos obst~ículos a que n1e referi.
.
atitude de crianças para as quais alguéxn mais faz tudo O s~gundo obstáculo que apresento con1o exen1plo
--- ...- ~

o que só elas podem fazer. A idéia de que a natureza, se está ligaclo ..à presente_incapacidade das pessoas de reco-
deixada por conta própria, fará o que é certo para os Qhecer que, dentro da esfera da realidade que forman1
homens, inclusive para sua vida em comum, é um exem- junto con1 as outras) JllUcdançp.s .d.~ longa çi1:1raç.ã9 e_não
~ plo. E mostra como decisoes que só os seres humanos .fllane.j,f1d_a~} .n.1a_
s_q1J.~ tê_m _UJ~la estrutura e direção espe-
f
podem tomar, e a responsabilidade que vem com elas, ' cíficas, estão acontecendo, e que esses processos, con1:o
são delegadas a uma figura materna imaginária) a "Na- pro~essos ~.a.J:u(ais incontroláveis, as empurram . invo-
tureza". Mas, entregue a si mesma, a natureza é cheia de luntariamente para um lado e para o outro. Como nao
perigos. Certa1nente, a exploração humana da natureza reconhecen1 esses processos sociais não planejados e,
ta1nbém implica grandes ameaças. Processos naturais portanto, não sabem como explicá-los, nao tên1 meios
Norbert Elias
Envelhecer e morrer 95
.IJ'"(ll-~riad~s l~~H'a influenciá-los ou controlá-los. Exem-
plo dtsso e a 111capacidade de as pessoas _ _-h· ~esticada e fundamentaln1ente transfor1nada pelos hu-
· . recon ecerem
os pr~ocessos não-planejados pelos quais são levadas manos. é que ela começou a parecer para populações que
repettdamente à guerra. 1 Vários Estados atingiram . um _1{iviam geralm_~nte nas cidades como bela e benigna para
a _humanidade. Na realidade, os processos naturais se-
estágio de civilização em que matar os outros não dá a
guem seu curso distribuindo cegamente coisas boas e
seus membros um pr~zer especiaL-nem _su_a pró.pri~
más, as alegrias da saúde e as terriveis dores da doença,
morte na guerra é considerada particularmente honro-
aos seres humanos. As únicas criaturas que, quando ne-
sa. Mas as pessoas hoje encontratn-se tão expostas ao
cessário, podem dominar até certo ponto o curso sem
perigo da guerra con1o aqt1elas em estágios a11teriores sentido da natureza e ajudar-se mutuamente são os pró-
de desenvolvimento estavam. sujeitas às cheias incon- prios seres humanos.
troláveis dos grandes rios, ou às grandes epiden1ias in - Os médicos podem fazé-lo; ou pelo menos podem
fec iosas que às vezes tnatavatn parte considerável da tcn tar. Mas talvez mesmo el e ~) ainda sejan1 e1n parte in-
popttlação do país. fluenciados pela idéia de que u s proce. so s naturai s sao
Já falei da COI1Ceittlalização da relação da natureza tudo o que importa em seus pacientes. Pode . er, em al-
extra-hun1ana cotn esses processos sociais humanos em guns casos. Mas nem sempre. Doutrinas rígidas nã.o aju-
tern1os d.e opostos coino (( natureza )) e (( cu lt ura,, com uma dam muito aqui. O que é decisivo é o conhecimento não-
valorizaçao decididan1ente mais alta da primeira . .Nem dogmático do que é benigno e do que é maligno na natu-
setnpre é fácil convencer as pessoas do final do século XX reza. No presente, o conhecimento médico é em geral
de que a "natttreza" e1n estado bruto não é particular- tomado como conhecimento biológico. :tvlas é possível
mente adequada as necessidades humanas. Só depois que imaginar que, no futuro, o conhecimento da pessoa hu-
as florestas primevas foram abertas, quando os lobos, 1 mana, das relações .das pessoas entre si, de seus laços

onças, cobras venenosas, escorpiões ·em suma, todas as , mútuos e das pressões e limitações que exercem entre si
outras criaturas que poderiam ameaçar os homens - · (aça parte do conhecimento médico.
foram exterminados, só depois que a "natureza~~ .foi ~do_- É a esse ramo do conhecime11to que pertencem os
(
problen1as que estou discutindo~ Ê possível que o aspec-
to social das vidas das pessoas) suas relações con1 as
I Apenas menciono de passagem que a dinâmica figurativa da livre •
outras, tenha importância especial para as que envelhe-
competição entre Estados, a qual discuti em termos de um "nleca- cem e para as que estão para morrer simplesmente
nismo monopolístico)' no segundo volume de meu Processo civiliza-
dor, desempenha um papel decisivo nesse curso para a guerra. porque processos naturais cegos e incontroláveis ganha-
96 Envelhecer e morrer 97
N orbert EI i as

ram poder sobre elas. !vias a consciência de que as pes- 6


soas atingiran1 o lin1ite de seu controle sobre os proces -
sos naturais freqüen tcn1 c nte engendra, nos rnédicos c 'Talvez tudo i s .~ o dejxc claro q ue a ati t Jd r.. ,, q u(·• hrJje pr · ~
tal\'ez nos conhecidos c an1igos das pessoas que cnvc - valecen1 crTJ n.:Jaçao ao ~ OlfJrJlJu r do i) e a rnu rt e nà(J ).1HJ

lhcct:n1 c .se aproxin1an1 da n1orte, tu11a atitth.lc que eslil inaltenívej s ncn1 ac identais . .SarJ p ·c uJi a rj da dc'l d · '.o cic
en1 con tradiçào con1 as necessidades SOLiais dessas úll i- dadcs ntnn estágio particul ar d e , J e~e r vn lvirneJ to ·, po r
n1as . .As p~ss~Jas parecen1 se dizer que não hú nada q ut tanto, con1 un1a estrutura partj c uJ ar. ()~ J;. aj ~. ntssa!l s ic-
possan1 fazer, d;Jo de on1bros e s~gucn1 seu can1i nho dadcs ~ao frcq üen ten1en t ~ Jnai .~ r e ti c··n t c.~ c 1 1 fa 1ar co n1
con1 pesar. ()s I1lt dicas t'I11 particular, cuja tarefa con- seus filhos sobre a 111orte e o rn o rrcr. As cri a nças podc1n
siste en1 adquirir COiltrolt: sobre as forças destrutivas e crescer sen1 nunca tere n1 vis to un1 Ladú\'er. L n1 t.sLigi ns
cegas da na tu reza , parecen1 n1uitas vezes observar estar- anteriores de desenvolvin1ento t:sp e t..ícu lu d L" ca d á\ercs
recidos cotno tais forcas quebram a auto-regulacão
) '- . nor- era n1uito xnais con1urn. Desde entao, o a u n1en to da ex -
mal do organismo dos doentes e dos rnoribundos e pectativa de vida tornou a n1orte n1a is dista nte dos jo\ ens
aYançam sem controle na destruição do próprio orga- e dos vivos em geral. Obviamente ~ nun1a sociedade corn

lllSffiO.
uma expectativa de vida de trinta e sete ou quarenta anos ,
Obviamente não é fácil testemunhar esse processo de a idéia de n1orte se apresenta muito n1ais irnediatarnente,
decadência com equanimidade. Mas talvez as pessoas n1esn1o para os jovens, que numa sociedade LOm. un1a
nessa situação tenham uma necessidade especial de ou- expectativa de vida próxima dos setenta. É bem possível
tras pessoas. Sinais de que os laços ainda nao foram cor.- que o cornpreensível horror da guerra atôn1ica seja refor-
tados, de que aqueles que estao deixando o círculo huma- çado pelo fato de que os jovens em nossa sociedade po-
no ainda são 'alorizados dentro dele, sa.o especialmente denl norn1aln1e11te esperar u.ma vida mais longa que nun-
importantes, dado que agora estao fracos e talvez não ca. Senti isso de perto quando un1 jorn·liista de vinte anos
p assem de uma son1bra do que foram. Mas, para alguns que n1e entrevistava, franzindo o cenho) perguntou sobre
moribundos, a solidao talvez seja um benefíc_io. Talvez n1eu livro a respeito da <csolidão dos n1oribundos,,: "O
se jam c apazes de sonhar e não queiram ser perturbados. que o levou a escrever sobre tema tão curioso?,
Devemos sentir do que eles precisam. lv!orrer ficou mais Tudo isso contribui para empurrar a agonia e a mor-
jnformal em nossos dias e a gama de necessidades indivi- te n1ais que nunca para longe do olhar dos vivos e para os
duais quando conhecidas, se ampliou. bastidores da vida normal nas sociedades mais desenvol-
I 'I o roert EI ias

\ · id~ls . .Nunca antes as pess . Envefh ecer e morrer


. . . oas morreram t- . ·1 - . 99
lJJgzenican1e11 te conlo h . ao. SI enciosa __e
, . - . OJe nessas sociedade - . didos sempre que , 1 Gl
LOHdlÇOes tao propíc·l'a ' - r·d- S, e nunca em_ , possive . aser e Strauss observam
. - s a so 1 ao. no mesmo contexto (p· · 152) . algumas reg1oes
.
- que, em
menos desenvolvidas, pessoas próxiinas oferecen1 con-
f~rto e aten~ão aos moribundos por força da tradição.
7 Liberam assim a equipe de enfertnagem para outras
tarefas. E também assumem os cui···d- ado~s r ot'1ne1ros
· d.e

Num livro bem conhecido de B G Gl pac1entes em. recuperação. A equipe então está acostu-
T. . · · aser e A.L. Strauss
. 11-:'e for Dymg (Chicago, 1968), os autores fazem a se~ mada à sua presença. Os próprios parentes> que preci-
gu1nte observação: sam de consolo, se ajudam mutuamente. Isso é um claro
contraste com o que, segundo Glaser e Strauss, acontece
nos hospitais em países mais desenvolvidos, onde a
A maioria dos pacientes pertence a uma família. Se paren-
equipe gasta parte de seu tempo confortando os paren-
tes ficam ao pé do leito de um membro moribundo da
tes aflitos.
família durante os últimos dias, sua presença pode ocasio-
nar pro ble1nas sérios para os médicos e a equipe de enfer- _O quadro dessa diferença é nítido. De um ladoJ o tipo
magem do hospital, reduzindo inclusive a eficácia dos cui- antigo: os membros da família se retinem em torno da
dados com o paciente (p.l51). pessoa doente, trazem comida, dao os remédios, limpam
e lavam o paciente e talvez, trazendo sujeira das ruas para
Essa breve afirmaçao aponta para um grave conflito o leito do paciente, ct1idam dele sem lavar as mãos. Possi-
não-resolvido na institucionalização ostensivamente ra"'"" velmente apressam o fim, pois nada disso é muito higiê-
cio_:r:tal da morte pelo m .enos nos hospitais norte-ame- nico. Possivelmente sua presença adia a morte, pois pode
ricanos, a que as observações de Glaser e Strauss certa- ser uma das grandes alegrias dos n1oribundos estarem
rnente se referem em primeiro lugar. O moribundo cercados por parentes e amigos · última prova de an1or,
recebe o tratamento médico mais avançado e cientifi- últüno sinal de que significan1 alguma coisa para os ou-
catnente recomendado disponível. .Mas os _contatos CO I? tros. É um grande apoio · encontrar eco dos seus senti-
as pessoas a que está ligado, e cuja presença pode pr.o- mentos nos outros que se ama e a quem se está apegado, e
porcionar o maior conforto para aquele que parte, fre~ cuja presença faz surgir um sentimento terno de perten-
qüentemente são considerados inconvenientes para o cer à família humana. Essa afirmação mútua das pessoas
tratamento racional do paciente e para a rotína do através de seus sentimentos, o eco dos sentimentos entre
pessoaL E assim esses contatos são reduzidos ou impe- duas ou mais pessoas, desempenha um papel central na
- nvclhecer e morrer· 1 o1
100

,ttribui~\10 de signif'iL"itdo L' ~t~nti. do dl' rl'alizaçito para Jan1cnto dos rnoribundos c1n nos~o .) dias. A n1aior pacifi-
u 111a vid l h tu na na -- ~l fci~· ao rccí pro c a, por as si 111 dizer, cação interna dos Estados indu striais desenvolvidos e o
até o fn11. expressivo au1ncnto do lin1iar do c1nharaço face à violên-
Nã<. d~.;v~n1os
nos i) udir: ·1s fan1í1ias en1 Estados nlc- cia fazc1n surgir nessas sociedade.) u1na antipatia muda,
n s desenvolvido~ sao n1 ui tas vezes tudo, 111enos harn1o- n1as perceptíveL dos viventes em relação ao rnoríbundos
niosas. Freqüente1nente apresenta1n maior de~gil_ilJ.dade - utna antipatia que muitos membros dessas sociedades
de. poder entre hotnens e 1nulheres e entre jovens e velhos. nao conseguem superar mesmo quando não a aprova1n.
Seus membros podem amar-se ou odiar-·se, talvez as duas Morrer, como quer que seja visto) é um ato de \ ioléncia.
coisas ao mesmo tempo. Pode haver relaçoes de ciúme e Se as pessoas sao as responsáveis ou se é o curso cego da
desprezo. Só uma coisa é rara nesse nível de desenvolvi- natureza que traz a decadência repentina ou gradual de
mento social, especialmente nos ,c asos em que as mulhe- um ser humano em última análise nao tem muita impor-
res, as mães , -ormam o núcleo integrador afetivo da fami- tância para a pessoa afetada~ Assim> um nível mais alto de
. ia: !}ão há neutralidade emocional IJ.O qua~o d~ família pacificação interna também contribui para a aversão à
e~ensa. De certa maneira, isso ajuda os moribundos. morte, ou, mais precisamente aos moribundos. E assin1
Despedem-se do mundo publicamente, num círculo de também um nível mais alto de contenção civilizada.. ão

pessoas cuja maioria tem grande valor emocional para os faltam exemplos. A demorada morte de Freuq em decor-
moribundos, e para os quais estes têm o mesmo valor. rência de un1 câncer na laringe é um dos mais significati-
i\1orrem menos higienicamente,. mas não só~. Na unidade vos. O avanço da doença gerava um mau cheiro cada vez
de terapia intensiva de um .ho.s.pital mo_dexnq, os mori- pior. Mesmo o cão fiel se recu~ava a aproxin1ar-se do
bundos podem ser tratados de acordo com o mais recente doente. Apenas Anna Freud, forte e inflexível en1 seu
conhecimento biofísica especializado, mas n1uitas vezes an1or pelo pai n1oribundo, o ajudou nessas ultin1as sema-
de maneira 11eutra em tern1os de sentimentos: podep1 nas, ilnpedindo que se sentisse abandonado. Silnone de
n1orrer e1n total isolame11to. Beauvoir descreveu con1 assustadora exatidão os últin1os
n1est:s de seu con1panheiro Sartre . qu nao ~ra n1ais apaz
de l'tH1trolar o t1uxo urinário e era fot\ ~h1o a andar con1
4

S;.h:os phisth:os an1~\ITados '' St'U corp() c os s·1co.s us


\c..'Zt.'S transbord;.tvan1. Adcc"tdcth.'i'' Jt) t1rg~rnisnH.l hunl,\ -
lll1, l) pt\)l:~ssn a que ~ hanlallltls tnorn.'r, ""lll,\sL' St't11pn.' ...~
.-\ · cr:1 ~.~ : '~ . ... I" i..'~- : ) i ~~ .i\."' t~(n i\.- "l dl1 prl1h.1n~an1t nto t..tt' ida
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Envelhecer e morrer 103


,dl'idas inculcam em seus membros uma gra:Q.de sensibi-
lidade aos cheiros fortes. -·--- · refas que tenho em mente fican1 ocultas se a pessoa indi-
Todos esses são em realidade apenas exemplos de vidual é considerada e tratada con1o se existisse apenas
.co1no falhamos ao enf:r;entar os problemas dos moribun- para si mesma, independente de todas as outras. Não
dos nas sociedades desenvolvidas. O que eu diss~-~q~i- é estou seguro deJJt~-~qJ!_~ p_gnt_o os próprios 1nédico$ sab~n1
que as relações de uma pessoa co1n as outras tê1n un1a
apenas uma pequena contribuiçao para o diagnóstico de
influ-ência co - detern1inantc tanto na genese dos sin to1nas
problemas que ainda precisam ser resolvidos. Esse diag-
patológicos quanto no curso ton1ado pela doenç·:t. Levan-
nóstico, me parece, de\re ser desen\'Olvido. Em termos
tei aqui o problen1a da relação das pessoas co1n os n1ori-
amplos, ainda não estamos plenamente conscientes de
bundos. \ssun1e . L"on1o 'in1os, un1a for1na especial nas
que m ,o rrer nas sociedade .. n1ais descn\ ol,;das e acompa- · _--o~icd'-ldcs n1ais d~senYol,·idas, porque nelas o processo
.... - -. .
nhado de problen1as :~.spc( ; fi~os qtlc deYenl ser enfrenta- de n1orrcr estú isolado da Yida sücial norn1~ll nun1a n1c:!di-

_ - .
~s come t..11s .. d"1 n1~Ii0r "-1Lle antigan1ent~. l"'n1 resultado d~sse isolan1en-
0:; F!'( · ~n1~1.5 ~ ·e eY..ill . e i "ao, con1o se pode Ycr, to e 1..1t c ~1 experienci·1 de en\-elhecer c agonizar, que nas
'[':"L
- ~cn1as de soei o~( a m~dica. ~, precauçoe" n1édicas
~ sociedades antigas era orgar1izada Dl r 1nstitui~oes e fan-
"" '-' ..L
~c ho_" e dizem respe.t'"1 · rincipalmente a aspectos indi,i- tasias públicas tradicionais, tende a ser ofus'-3.da pelo
duais, do fun -ionamento fisiológico de uma pessoa o constrangimento nas sociedades posteriores. TalYez . ao
coracão, a bexiga, as artérias e assim por diante ; quan- apontar para a solidão dos moribundos, fique mais facil
t a a isso) a técnica médica para preservar e prolongar a reconhecer, nas sociedades desen\·olYidas, um núcleo de
Yida está sem du' ida mais avançada que nunca.lVIas con- tarefas que continuam por fazer.
centrar-se em corrigir medicamente órgãos isolados que Estou ciente de que os médicos têm pouco tempo.
funcionam cada vez pior só vale a pena em benefício da Também sei que as pessoas e seu circulo de relaçoes rece-
pessoa dentro da qual esses componentes estão integra- bem deles mais atenção hoje do que antes. O que fazer se
dos. E se os problemas dos componentes individuais nos sabemos que uma pessoa preferiria morrer em casa a
levam a esquecer os da pessoa que os integra, realmente morrer no hospital) e se também sabemos que em casa ela
desvalorizamos o que fazemos para os próprios campo . . morrerá mais rapidamente? Mas talvez seja exatamente
nentes. Hoje a decadência das pessoas, a que chamamos isso o que ela quer.. Talvez não seja supérfluo dizer ,q u,e o
de envelhecimento e morte, coloca para os outros seres cuidado com as pessoas às vezes fica muito defasado em
humanos, aí incluídos os médicos, certo número de tare- relação ao cuidado com seus órgãos .
fas não-realizadas e geralmente não-reconhecidas. As ta-
I
rnd ice remissivo

Aries, Philippe, 19-20, 23, 44n, culpa, 17, 23-4, 45-6; e desejo
7ln de morte, 17-8, 47-8
asilos para idosos, 85-6
assassinato, morte como, 46-7
atitudes em relação à morte, dependência mútua, 41-2
mudanças nas, 24-31, 43-4, desejo de rnorte vet culpa
52-4,96 dor, 23, 76-7; controle médico
da,20-1,37)74,89-90

Beauvoir, SiJ.none de, 1O1


envelhecimento, não -identifi-
cação com o, 8-9, 79-83
cadáveres, tratamento dos, 23- Estado como protetor dos ido-
4, 37-8 sos e moribundos, 85-6
comportamento infantil dos estágios específicos, idéias da
idosos, 82-3 morte segundo, 12, 28-32,
comportamento sexual, elimi- 53-5
na,ção de tabus sobre o, 49- expectativa de vida, 14-5, 54-5,
5.3 90,97
conhecimento: da própria expressão dos sentimentos, 31-
m.orte, 11, 16, 43, 46; maior 7,60-·1,68
da realidade, 55-6, 87-8, 95-
6
constrangimento: dos mori- família, envolvimento da, 37-8,
bundos, 68; em presença 74,84-5,98-100
dos moribundos, 31-2,. 35- Frederico li da Prússia, 32-4
6,60-1,77 Freud, Anna, 1O1
crenças: seculares, 13, 77; so- Freud, Sigmund, 15-61 45-6,
brenaturais, 12-5, 44n, 77 101
crianças: e o dese}o de morte,
46-7; e fatos da morte, 25-6,
30,97 Gilgamesh, 69

105
..

<;laser, B.G. e Strauss A. L., 98-9 .


n1orte serena, 19- 22 33 lndice remissivo
77 , . ) 57 , 59 )
107
Sartre, Jean-Paul, 101
Hofmannswaldau, Christian Tolstoi, L.. 70-2
segurança relativa da vida, 13-4
Hofmann von, 27-9 túmulos, cuidado com os, 37-40
sentido: para os moribundos,
hospitais, rotinas instituciona- natureza pública da morte no
68, 72-3, 74, 76, 99} 102-3;
lizadas dos, 36, i4-S) 98-9, passado, 23-4, 25-6, 84-5, da vida individual) 41-2, 62-
102-3 86-7, 100
3,64-7,71-7,91-2;natureza vida após a morte, idéias de, 7,
social do, 63-6
solidão, conceito de,. 6 7) 7 '1 -6,
~ .
1"-3 43-4 .

violência ., 1norte por, 57-61,


1d~i ~1s de 1'11t''~t·te p..1r~1 ~ru püs cs ~ ss. 103 10 1
J'<.'L'i tl(~..)~, l 1- ~. Solzhcnitsyn~ A., 14
ir h'rt,l id~hil' . f,lnt.tsias '-il\ ~~
l <.'- - , ., -
'~t,' - '""~.
r-
"1
' )"'
~. (..

pa1. nh..1rtt' do~ ! i- 8 tabus sobre a tnorte, 2H, 3h, S1- \'\ (:bcr, iviax, 89
tn ~..ii"idu lti:·.ht.lt._'. ,~ · l. <' l - 3, t'f\ - pc...rdo.t, scntirnentns de, · c, ·t, C10 \r\ ouLcrs, Casl 34n
~ l\ $_5-t,
l"("'d~r, distribu i\·~1o de: c.' a t it u -
in fL'n1L\ rne'-·k) dl.", ~ J des <."ll1 r~ Iação ao idoso, 8J -
in f'-) r rn a Hza 't-,ll.), _ S, ~" ·l -5 , 5 2 9 b s~ e n1onopolizaç~1~ da 'iL -
isolan1t'·ntc : da n1ortc: t?- do rno- 1ência, 58; e tubus sexuais,
ribundo\t S, 1q' 2~"\, 30-1,37- 51-2; e tabus sobre a n1orte,
8,52\60.67-8,70,83-6,97- 18-9,52-4
8, 101, 102-3; dos\ ivos, 42, problema social, n1orte como,
61 -3, 66-8, 70 8-11, 18,35-7
processo na tura1, morte como
fim do, 55-6, 57, 95-6
linguagen1; in1propriedade da, puniçao: depois da morte,
31-4; e sentido, 63-5 idéia de, 23; idéia da morte
como, 16-8, 45-6, 88

Marvell, Andre\v, 30, 38


recalcamento da idéia de mor-
n1edicina, 95-6; e adiamento da
te,?,IS-6,37-43,47-9
morte, 55-6, 100-3
recalcamento: do envelheci-
medo da n1orte) 16-7, 41, 76-7;
nlento, 80-2; da morte, 7,
na Idade Média, 19-23
15-9,23,26,42-3,52-4,60-
rnen1ória, rnortos vivendo da, 1,77,97,103
40-1, 77
rituais: necessidade de, 32, 34-
1nitologização da morte. 7, 17
5; religiosos, 12-3, 36; secu-
1v1ore, Thomas, 22
lares, 36

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