Академический Документы
Профессиональный Документы
Культура Документы
E a professora nos apresenta, diz que vamos dar aulas pra eles, que somos
estagiários de História. Cada um fala um pouquinho de si, ficamos bem
tímidos, nos restringindo a “- Meu nome é tal, espero dar uma boa aula pra
vocês...” Quando o último a se apresentar fala isso um menino sai da sala e
comenta em voz alta: - “Se der nota alta nós vamos gostar”. (Carla2,
Relatório, 1º ano, turma 126, Instituto Estadual de Educação3, junho de
2006).
1
Doutora em História Cultural (UFSC, 2003). Professora do Departamento de História e dos Programas de Pós-
Graduação em História e em Educação da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).
2
Pseudônimo. Destaco que todos os nomes citados nesse trabalho - estudantes ou o professor e a professora das
escolas campo de estágio, bem como os estudantes do Curso, autores/as dos Relatórios de Observação - são
fictícios, usados para preservar a identidade dos sujeitos envolvidos.
3
Daqui em diante o Instituto Estadual de Educação será referenciado pela sigla IEE.
4
Daqui em diante o Colégio de Aplicação da UFSC será referenciado pela sigla CA.
5
Todos os relatórios selecionados são de junho de 2006, portanto, daqui em diante o mês e o ano não serão mais
informados nas referências das citações.
6
Fez parte de um conjunto de três disciplinas oferecidas na sequência: Metodologia e Prática de Ensino de
História I (foi oferecida no segundo semestre de 2005), II (primeiro semestre de 2006) e III (segundo semestre
de 2006). Após a reforma da matriz curricular do Curso, aprovada em 2003 e implantada a partir do segundo
semestre de 2004, as disciplinas passaram a se chamar Estágio Curricular Supervisionado I, II e III.
2
7
Estas reflexões constituem-se em recorte do projeto de ensino e de pesquisa O pensamento histórico de
crianças e adolescentes e o ensino de História na Educação Básica desenvolvido no Departamento História e
nos Programas de Pós-Graduação em História e em Educação da UDESC. O projeto está em sua segunda edição.
Na primeira edição (2008-2010) contou com apoio da CAPES/PRODOCÊNCIA e, nesta segunda edição (2011-
2013), constitui-se em subprojeto da área de História no Programa Institucional de Bolsa de Iniciação a
Docência/PIBID/CAPES/UDESC.
3
ainda como professores. São sujeitos que habitam entrelugares, posições que envolvem
desafios permeados por medos, desconfortos, afetos e sensibilidades difíceis de precisar e
organizar até mesmo numa narrativa escrita ou numa análise como a que proponho.
Em que pese essas dificuldades acredito que os relatórios de observação individuais
suscitam questões absolutamente pertinentes para serem pensadas e debatidas por professores
do Curso de História, mas também, e principalmente, pelos graduandos do Curso e pelos
professores que recebem estes estudantes como estagiários nas escolas. Claro que está que as
observações fazem parte de percursos etnográficos e, nessa condição primeira trazem
descrições que, como toda a descrição - como bem lembra Geertz (1989) – é a de quem
descreve e não a de quem é descrito. Aqui subjaz a ideia de cultura que enreda os sujeitos em
teias de significado que ele mesmo teceu aos repertórios e itinerários de produção de sentido
sobre essas teias e suas tessituras (GEERTZ, 1989, p.13-15). As descrições narradas e
apresentadas em suportes textuais como “relatórios de observações” apresentam
possibilidades de pensar e de estranhar como um estudante vê, vivencia, interpreta e cria uma
narrativa sobre a História, seu ensino e a prática docente na Educação Básica. Esse conjunto
documental possibilita explorar complexas relações do processo dinâmico de construção dos
saberes docentes e da formação histórica adicionando elementos importantes aos significados
dessas práticas.
O período de observação nas escolas campo de estágio insere-se no processo de
reconhecimento do cotidiano das aulas de História e integra o conjunto de atividades
relacionadas ao estágio docente. A então denominada disciplina de Metodologia e Prática de
Ensino de História II, em 2006, dava continuidade às discussões relativas ao ensino de
História, introduzidas na disciplina de Metodologia e Prática de Ensino de História I, e
acrescentava um novo elemento: a participação dos acadêmicos – primeiramente como
observadores - nas turmas de História em que ocorreria o estágio. O primeiro semestre de
2006 incluía, assim, oito semanas de observação, além da construção e aplicação de um
questionário na turma, e de uma proposta de trabalho para ser desenvolvida no segundo
semestre, na mesma turma observada8.
Possivelmente a prática da observação nas disciplinas de estágio constitui em certa
tradição que remonta a obrigatoriedade da “Prática de Ensino” nos currículos das licenciaturas
(Parecer CFE n°. 292/62). Relatórios de observação, planos de estágio, relatórios de estágio
etc. são documentos que historicamente fazem parte do rito simbólico relacionado ao Estágio
8
Com algumas modificações esse formato subsiste nas disciplinas de Estágio Supervisionado I, II e III, no
presente.
4
Privilégio, esta foi uma palavra que escutei diversas vezes durante a
observação no Colégio de Aplicação (...) os professores diziam que eram
privilegiados por trabalharem lá e tentavam passar aos alunos a impressão de
que eles eram privilegiados por estudarem lá. Com o passar do tempo,
observando as aulas no CA e conversando com colegas que já estagiaram ou
estavam realizando a observação em outras escolas, percebi que talvez eu
também fosse privilegiada por estagiar ali (Carol, 1º ano C, CA).
9
Apenas para ilustrar, cito alguns exemplos: NADAI, 1984; VILLALTA, 1992/1993; MESQUITA; FONSECA,
2007; CAINELLI, 2009.
10
O colégio foi criado em 1961, sob a denominação de Ginásio de Aplicação e com o objetivo de servir de
campo de estágio dos cursos de Didática (Geral e específica) da Faculdade Catarinense de Filosofia. Em 1970
passa ser denominado Colégio de Aplicação. Atualmente o CA encontra-se inserido no Centro de Ciências da
Educação da Universidade Federal de Santa Catarina. Atende o Ensino Fundamental e Médio e funciona em
prédio próprio, no Campus Universitário, localizado no Bairro da Trindade, Florianópolis/SC. A partir da
Resolução n°13/CEPE/92 ficou estabelecido que o número de três turmas por séries, com 25 alunos cada uma. O
ingresso de alunos no Colégio passa a ocorrer via sorteio aberto à comunidade. Disponível em:
http://www.ca.ufsc.br/historico-do-ca/. Acesso em: 07 maio 2012.
5
11
Escola tradicional de Santa Catarina, o atual Instituto Estadual de Educação foi criado pelo então governador
do Estado, Tenente Manoel Joaquim Machado, em 1892 com o nome de Escola Normal Catarinense. Em 1926 a
Escola Normal Catarinense inaugura sua sede própria localizada na Rua Saldanha Marinho. Em 1947 recebe a
denominação de Instituto de Educação Dias Velho. Em 1964 o Colégio Estadual Dias Velho denominação
recebida em 1949, deixava o prédio da Rua Saldanha Marinho para transferir-se para o novo e definitivo prédio
na Avenida Mauro Ramos. Apenas em 1969 passou a chamar-se definitivamente Instituto Estadual de Educação.
Atualmente o IEE atende o Ensino Fundamental e Médio, além de oferecer o Magistério - Educação Infantil e
Séries Iniciais. Disponível: http://www.iee.sed.sc.gov.br/. Acesso em: 07 maio 2012.
6
muitas vezes palavras como desânimo e desesperança, para qualificar suas impressões. Como
Alfredo, que destaca o pessimismo da professora turma “A professora é sempre pessimista em
relação aos alunos, ela nos disse que alguns são semialfabetizados, mas a impressão que fica é
que ela desistiu deles” (1º ano, turma 126, IEE). Claudia observou o desânimo da professora
em relação ao resultado das avaliações feita com a turma “Ela mostrou-se muito desanimada
diante das respostas ou da falta delas nas avaliações entregues” (1º ano, turma 125, IEE).
Sobre o resultado das avaliações numa outra turma são os estudantes os observados por Carla
“Os alunos parecem tristes e humilhados” (1º ano, turma 126, IEE). Outro tom, mas nessa
mesma direção é assumido como preocupação e aparecem em diferentes narrativas:
Quero deixar registrada minha preocupação com a qualidade do ensino
público e muito mais ainda, com o ensino público noturno, feito, nesse caso,
em estabelecimentos com instalações amplas, com salas ambientes para
aulas mais enriquecedoras e que possui materiais modernos a disposição dos
professores, mas que apresenta tanta dificuldade para manter a frequência
dos alunos (Claudia, 1º ano, turma 125, IEE).
Entendo que o ambiente da sala de aula é um espaço singular e complexo, não apenas
porque se destina ao ensino-aprendizagem formal e contribui para a formação de valores,
identidades. Mas também porque reúne expectativas diversas que nem sempre se relacionam
estritamente com o ensino-aprendizagem formal. A sala de aula é um espaço caracterizado
especialmente por interações e relações sociais que, não raro, evidenciam tensões, hierarquias,
preconceitos diversos, embates regidos por regras que estabelecem e fixam posições de
sujeito (professor, aluno, estagiário etc.). Os estagiários são alertados dessas situações, textos
são estudados e discutidos, sobretudo e especialmente em relação ao cuidado em não apenas
julgar a prática docente ou as situações presenciadas na sala de aula. Contudo ao organizar
suas narrativas os estudantes também escrevem sobre si, também confrontam suas
expectativas. Isso fica bem claro quando escrevem sobre os docentes.
A professora é muito conteudista, trabalha em cima do livro didático do
autor Gilberto Cotrim (História para o ensino médio – Geral e do Brasil,
Editora Saraiva 3º edição) passa esquemas e resumos no quadro negro
(Sandro, 1º ano, turma 125, IEE).
Os registros escritos dos estudantes são tomados como apropriações do presente, como
tensões entre efeitos de sentido e efeitos de presença. Estas questões estão presentes na
configuração de narrativas que acabam por refigurar a experiência vivida, sentida. A
narrativa, no sentido atribuído por Ricoeur (2010), seria como um desenho da experiência
humana no tempo que realiza uma “síntese do heterogêneo” uma “nova congruência no
agenciamento dos incidentes”. Partindo da ideia central de que é a narrativa que torna
acessível a experiência humana do tempo, o tempo só se torna humano através da narrativa,
Paul Ricoeur desenvolve a ideia de uma tripla dimensão da narrativa histórica descrita como
um tempo vivido e ainda não configurado; um tempo narrado, ou um mundo como um texto;
e o tempo refigurado, ou o mundo do leitor. Há uma dimensão da vida vivida, e não narrada,
que passa pela trama e chega ao mundo final do leitor seja pelas intenções do autor, pelos
sentidos da obra ou as percepções do leitor. A efetivação do texto na sua leitura seria uma
condição para que se revelem as suas possibilidades semânticas e se opere o trabalho de
refiguração da experiência; compreender a apropriação do texto uma mediação necessária à
constituição e à compreensão de si mesmo. A narrativa se dá como articulação temporal da
ação (RICOEUR, 2010).
Ricoeur também transpõe um limiar no qual o aparente conflito entre explicação e
compreensão é ampliado (2007) e assim contribui sobremaneira para a inteligibilidade dos
Relatórios de Observação. É como dimensão da experiência que se explicam os campos da
confrontação e negociação e se dá a primeira ancoragem para as narrativas públicas e oficiais
e as narrativas e memórias pessoais e autobiográficas. Para Ricoeur os graus de convergência,
ou não, entre a memória coletiva e as memórias autobiográficas indicam níveis de
identificação pessoal e os significados elevados, ou não, de símbolos como bandeiras e hinos.
É como uma “narrativa autobiográfica autenticada de um acontecimento passado” e à medida
que o narrador está implicado na cena narrada/vivida gera uma suposta confiabilidade e uma
suspeita sobre o que ele diz. (RICOEUR, 2007, p.172).
9
Inspirada em Foucault (2000) acredito que a tela “Las meninas” (1656) do pintor
espanhol Diego Velásquez é capaz expressar esse quadro traçado por Débora em sua
narrativa. Na tela aparecem o pintor Velásquez, a enfanta Margarida e suas irmãs, uma dama
de companhia, entre vários outros elementos. Mas a tela apresenta o olhar do Rei e da Rainha
que só aparecem na tela refletidos em um espelho muito pequeno, porém estão na frente. A
tela mostra o olhar deles sobre aquele momento e aquela pintura. Assim nestes relatórios,
como na tela, aparecem o professor e seus alunos e alunas, os estagiários seriam reflexos?
São eles que produzem as narrativas, para um leitor mais desatento, os estagiários poderiam
ser invisíveis nesse espaço cultural que é a sala de aula? Seu olhar seria o do pintor ou de
quem o pintor observa do quadro? São dispersões os quais os estudantes buscam organizar em
suas narrativas, fragmentos, mas também são presenças de repertórios que fazem parte do
cotidiano das aulas de História que eles acompanharam.
Ao discutir sobre a produção da presença, Gumbrecht (2010) sugere um repertório de
análise cultural que busca discernir sobre os efeitos de presença e os efeitos de sentido. Ele
distingue uma “cultura de presença” de uma “cultura de sentido”. O que diferencia uma da
outra é o papel do sujeito, ou subjetividade. Esse papel precisa de maior atenção, no processo
formativo dos futuros professores.
Acredito que a experiência da observação evidencia a própria formação histórica dos
estudantes, pois incide sobre a produção de um conhecimento experiencial a ser mobilizado
no exercício da docência. Além disso, destaco que ao organizar as observações em narrativas
escritas os estudantes acabam por atribuir sentido a sua identidade de estudantes de História,
na condição de futuros professores e historiadores e, por que não, a modos de existir e habitar
no mundo. Retomo aqui a ideia de que a narrativa torna acessível a experiência humana do
tempo de Ricoeur (2010), mas sem esquecer a importância do espaço na configuração dessa
experiência. Esse entendimento possui algumas aproximações com o sentido de formação
histórica no sentido que lhe atribui Rüsen (2007) como capacidade de constituição de uma
10
narrativa de sentido, a partir da apropriação histórica do presente, que exige que o sujeito
passe de uma a outra experiência com a estudante que ao analisar uma determinada situação
da sala de aula reflete sobre suas próprias expectativas em relação à futura profissão:
A professora entrega as provas corrigidas. Diz que 90% da sala deixaram as
questões discursivas (subjetivas?) em branco. Todos os alunos começam a
comentar das notas baixas. A professora dá as respostas da avaliação em voz
alta. E intercala com falas do tipo: “O pessoal não estuda, não abre o
caderno”. Ela manda todos refazerem a prova. (...) No ponto li a prova dela.
Achei tão difícil. Não conseguiria responder algumas questões. Será que
posso ser uma professora? (Carla, 1º ano, turma 126, IEE).
saberes e sentidos sobre a História, seu ensino de História, práticas pedagógicas e suas
existências e identificações com as questões e problemas que lhe são inerentes.
REFERÊNCIAS