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Baleia é a mãe!
Domingos Fraga

Está)á no Aurélio: preconceito - conceito ou opinião for-

mados antecipadamente, sem maior ponderação ou conheci-
mento dos fatos; idéia preconcebida. Há outras definições, mas
estas nos bastam, por enquanto. Parece claro, portanto, que vou
falar aqui de preconceito. Eu sei que você, caro leitor, ou leitora,
depois de passar por textos de tão nobres colegas e de terlido o
livro até aqui, comesse título tão esclarecedor,já suspeitava que
este fosse o tema do meu artigo. Mas isso é um preconceito, um
conceito anterior. Eu poderia escrever sobre quadrinhos, quem
sabe arriscar um palpite sobre a final da Copa do Mundo de 2002,
ou sobre o fim do mundo em 2000, ou di vagar sobre a influência
niilista do elemento afro-brasileiro na conceituação da arte mini-
malista. Enfim, poderia escrever qualquer bobagem. Mas, pode
ficar sossegado. Eu, como você já sabia desde que começou a ler
este livro, vou escrever sobre preconceito. E o seu conceito, mes-
mo preconcebido, era correto. Não é deste preconceito que vai se
tratar aqui. Afinal, você tinha conhecimento dos fatos.
O preconceito que me interessa é aquele que é cometido
quase de forma involuntária, que permeia todas as relações da
sociedade, e que, em maior ou menor grau, com maior ou menor
crueldade, todos nós estamos sujeitos, às vezes algozes, às vezes
vítima. Então, vamos ao que importa.
Antes de mais nada, vou me apresentar. Nasci com quase
quatro quilos. Segundo o testemunho insuspeito da minha mãe,
eu era um bebê tão fofo, que já nasci com papinha e as dobrinhas
da minha peminha (se é que se pode chamar assim) eram o máxi-
mo. Aprendi a andar, antes de engatinhar. Minha mãe diz que eu
sempre fui muito precoce. Meu tio, um tanto quanto canalha,

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levanta a possibilidade que eu não consegu~a dobrar ~s pernas
para engatinhar. Depois emagreci, engordei, emagreCI: engor-
dei, emagreci, engordei, e quase virei um~ sanfona. ,!l0J.e.'se e~
disser que tenho 115 quilos e um metro e OItenta, voce VaIll?a~I-
nar que eu sou prejudicado esteticame?t.e, que.o m~u perfil nao
pode ser considerado como tal. Um sujeito aSSIm SImplesmente
não tem perfil.
Você também há de pensar: "o cara deve parecer uma rolha de
poço". É um daqueles indivíduos que quando entram n~ma chur-
rascaria do tipo rodízio, o dono começa a re.zar. Os amI~O~,mes-
mo aqueles mais chegados, fazem c~ra f~Ia quando ~hvIdem a
conta. Na fila do bolo, empurra até criancinhas e velhinhas para
ser sempre o primeiro. E, definitivamente, não consegue acompa-
nhar a última moda de sapatos, simplesmente porque só usa sapa-
tos de cadarço e, mesmo assim, nem sabe ao certo como são.'já q~e
é a mulher que tem de amarrá-los. A m~lher, deve ser u.ma infeliz,
coitadinha, que judiação (êpa, esbarrei num preconc~Ito). Certa-
mente é obrigada a conhecer todos os restaurantes da CIdade e g?r-
do desse jeito, só deve dar prazer quando começa e ~u~ndo ~ermllla
o ato de amar. (Não preciso contar melhor essa piadinha infame,
você já deve ter ouvido, apesar da sua po~c~ ~d~d~~.São i.m~res-
sões preconcebidas, mas você, exceto a última idéia da piadinha
infame, obviamente, estará absolutamente certo. . gem. Não precisa ser herói, ninguém incomum, simplesmente
Esse artigo está parecendo meio enrolado, pergunto e~. O
cara que tem essas idéias pré-elaboradas sobre os gordos, afinal,
é preconceituoso ou não, perguntaria você. Para entendermos
melhor onde este lengalenga todo quer chegar, vam~s voltar a.o
dicionário e pegar uma outra definição para preconceito: suspei-
ta, intolerância, ódio irracional ou aversão a outras raças, credos,
religiões, etc. É aí que mora o perigo. _ bra coisa de hippie. Tem muita gente que não gosta desse pessoal.
O preconceito tem como uma de suas bases de su~ten~aça? a
suspeita, a intolerância, o ódio irracional ou a aversao nao .so a
outras raças, credos e religiões. Esses são apenas os seus tIpOS
rriais agudos. Eu, você, a vizinha fuxiqueira, o professor moder-
ninho o bonitão da novela ou a garota sarada somos todos pre-
conceituosos quando não aprendemos a respeitar a dive:sidade
do mundo em que vivemos. Em outras palavras: quando nao tole-
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.ramos os desiguais, quando a partir desta intolerância prejutgarJi
mos negativamente o outro. Um bom exemplo: saiu-na impr~B!:::!
sa tempos atrás que um gordo foi demitido do funcionalisráo
público porque o seu chefe entendeu que ele, por ser gordo';;nã<ii
teria condições de acompanhar os seus colegas no trabalho.Ele
recorreu à Justiça e esta determinou a sua recontrataçãor Este é
um caso grave, mas o preconceito tem formas mais sutis. Na
maioria dos casos, o indivíduo que se sente discriminado nem
reage porque o preconceito quase sempre vem revestido de uma
simples "brincadeira" ou uma piada maldosa. São modos "civi-
Iizados" que a sociedade adota para mostrar o seu desconforto
com os que são apenas diferentes. Aqueles que por vários moti-
vos não pensam como a gente, não se vestem como a gente, não
andam como a gente, não comem como a gente et cetera e tal.
O cantor Cazuza dizia que só as mães são felizes. Algumas
pessoas acham que só os gordos são felizes. (Você já reparou
como eles riem. Os mais avantajados, então, gargalham. Às
vezes, tem-se a impressão que estão prestes a explodir. Essa últi-
ma observação parece meio preconceituosa.). Outro dia me con-
taram uma história que dá pistas sobre a razão pela qual os gordos
(melhor seria dizer nós gordos) parecem tão felizes. Vamos rein-
ventá-Ia. Como toda boa história, preciso de um bom persona-
uma pessoa normal, como você. É melhor que seja uma mulher.
Estamos falando de um mundo sem qualquer discriminação.
Vamos chamá-Ia de Raquel. É melhor não. Esse nome é muito
comum entre os judeus. E a nossa heroína não pode sofrer
nenhum tipo de preconceito. Será Lamia. Também não. Talvez
Maria. É comum demais. Quem sabe, Luaê. É bonito, mas lem-
Vamos esquecer esse também. Que tal Helga? Não. Já sei. Vamos
chamá-Ia de X. Assim, ela não sofrerá nenhuma discriminação.
Agora, vamos escolher um lugar para ela. X é gaúcha, de Santa
Maria. Os gaúchos têm a imagem de pessoas sérias, batalhado-
ras, que viveram peleando para o crescimento do país. Gaúcha
vai ser legal. É melhor não. Tem gente que diz que essa gaucha-
da é estranha. Tomam aquela erva amarga como se tivessem
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bebendo champanhe. Andam com umas calças largonas. Con-
sideram o Rio Grande do Sul um país. X pode vir a ser discrimi-
nada. Então, ela é carioca. Nasceu sob os auspícios do Cristo
Redentor, banhada pelo mar de Ipanema e vitaminada com a
brisa da Lagoa Rodrigo de Freitas. Não, carioca não. Vão
chamá-Ia de folgada. Que só vive na praia. Essssperta demais.
Carioca nem pensar. Ela vai ser de Botucatu. Botucatu parece
bom. Vai ser uma pessoa simples, com os valores da gente traba-
lhadora do interior, e do interior de São Paulo, o estado mais rico
do país. Não, também não serve. Dizem que os paulistas são arro-
gantes, só pensam em ganhar dinheiro e acham que carregam o
resto do país nas costas. Além disso, ela seria caipira. Tem gente
que se arrepia todo quando ouve aquele .sotaque ~rrrrrrast~do.
Muita gente iria discriminar a nossa quenda ~. ~te os pauhs~a-
nos. Pronto, X nasceu na Bahia. Berço da brasilidade. Terra lin-
da. Terra de Jorge Amado, de Caetano, de Betânia, de Gal, de Gil,
de Ivete, de Daniela, de Carla, desse povo todo de alto astral. Mas
X também não pode ser baiana. O que para muitos é uma gente
festeira, para outros é uma gente preguiçosa. X vai nascer em Y.
Você se lembra que ela só está aqui porque eu precisava de um
personagem que revelasse o mistério de haver tantos gordos riso-
nhos. Mas, algumas pessoas garantem que já cruzaram com X
pelas ruas. Para quem não teve esse prazer, vamos apr~sentá-l~. X
é uma garota gorda. Quase uma bola. Para ressaltar aI~da.m~s a
sua forma arredondada, ela tem 88 quilos fartamente distribuídos
em acanhadíssimos um metro e 48 centímetros (menor até do que
um amigo meu, que ganha a vida como segurança de festa infan-
til, emAmparo, em São Paulo, e que passou os seus 42 anos sendo
discriminado porque não consegue apoiar os pés no chão quando
senta, mas aíjá é outro tipo de preconceito). Eu ainda não falei, mas
X tem apenas 16anos. Ela só é X para nós. Seus colegas a tratam de
várias maneiras. Ela já foi "sereia" (metade mulher, metade
baleia), ''jarrão'', "porpeta". Em casa atende pelo nome de "Gor-
da". É praticamente um título. Até o seu irmão, um pirralho que
vive atormentando a vizinhança, a trata por "Go". Eu também ain-
da não falei, mas X é uma personalidade em Y.Foi escolhida a ad~-
lescente mais bonita do país. Como você pode notar, Y é um pais
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meio esquisitão. É que lá a obesidade é o melhor sinal de beleza.
Digamos assim: não importa que você tenha os olhos da Cameron
.Diaz, a boca da Julia Roberts , a bunda da Tiazinha ou as pernas da
Cláudia Raia, se você não for gorda. De preferência, muito gorda.
O concurso que X ganhou é mais badalado do que a escolha da
loura do Tchan. Daí hoje ela ser a pessoa mais famosa do país. Mas,
chegar lá não foi fácil. Desde bebezinho, sua mãe preparou-a para
isso. Como a maioria das mães, a de X viu na filha uma forma de
compensar a sua frustração por ter ficado de fora da final desse
mesmo ooncurso 30 anos atrás quando era uma bela adolescente,
com olhos e sorriso que fizeram fama em Y, mas magra para os
padrões locais. Perdeu por várias polegadas a menos. Daí todo o
empenho para que X crescesse de maneira exuberante.
Ela ainda não tinha completado um mês e já comia uma papa
muito interessante de farinha de mandioca, batata, feijão, arroz,
macarrão e pão. Aos 6 anos, pesava 36 quilos e 837 gramas (os
gramas em Y fazem muito sentido) e já dava mostras de que tinha
vindo ao mundo para brilhar ao ganhar um concurso de quem
comia mais cheeseburger em menor tempo. Ela devorou dez em
apenas cinco minutos. Isso deu prestígio e fama a X. Ganhou
muito dinheiro fazendo comercial de pipoca e guaraná. Foi uma
criança feliz. Um pouco perversa. Sua melhor amiga, dez quilos
mais magra, era chamada por ela de "fio dental". Pelo peso que X
sempre teve, vê-se logo o tamanho do exagero. Mas nem tudo foi
um mar de rosas na sua vida. Pressionada pela mãe e pelos
padrões de beleza, ela aos 11 anos passou a ter compulsão por
comida. Nunca estava gorda na medida certa. Queria estar sem-
pre mais e mais obesa. Foi nessa época que se viciou em batata fri-
ta. Até a sua mãe sentiu peso na consciência (a expressão aqui cai
muito bem) quando X foi presa às duas da madrugada tentando
arrombar um McDonald's, onde a batata frita nem era lá essas coi-
sas. Mas, essa fase ruim, graças a Deus, durou pouco e, aos 15
anos, X entrou para um "quarto de engorda", onde iria aprimorar
os atributos que a natureza e o amido lhe deram para vencer o con-
curso de beleza mais disputado de Y.Passou seis meses sendo tra-
tada a pão-de-Ió, ou melhor, a pão-de-Ió, sonho, brigadeiro,
pudim de leite, torta de limão, feijoada, rabada, bobó de camarão,
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lasanha, e tudo mais que não mata mas engorda. Nesse período, o
único exercício de X era levantar simetricamente as sobrance-
lhas, para ter um olhar mais enigmático, sensual, outra rica tradi-
ção de seu país. Entrevistada no programa do Faustão local,
depois da vitória, X disse uma frase que virou slogan nacional: "a
beleza está no peso".
Além dos 500 quilos de picanha e do convite para posar nua
(quando fizer 18 anos) numa revista masculina, X ganhou tam-
bém uma viagem ao Brasil. Um país que os ypisiloneiros (não
tem no Aurélio, más esse é o gentílico dos nascidos ém Y) acham
meio exótico . Um país que festej a a sua miscigenação racial, mas
aonde os negros, sem falar dos índios, estão bem abaixo na esca-
la social. Um país de riquezas fantásticas e misérias vergonho-
sas. Um país que alardeia a cordialidade da sua gente e, no
entanto, vê as classes mais favorecidas se trancando em cidade-
las. Enfim, um país de grandes contrastes, que pode até achar que
X é apenas uma adolescente gorda e que de bela não tem nada.
Por falar em X, ela já chegou ao Brasil e gostou de ler no jornal
O Estado de São Paulo, em um domingo qualquer, num outubro
qualquer: "Quarto de engorda é salão de beleza para mulheres
nigerianas."
No sudeste da Nigéria, comunidades prezam a obesidade
como sinal de boa saúde, prosperidade e charme. Moral da histó-
ria: vamos todos para a Nigéria ou baleia é a mãe.

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