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São Paulo
A intervenção federal na segurança pública no Rio de Janeiro é uma aposta
alta do presidente Michel Temer (MDB) em um modelo que traz mais efeitos
políticos que soluções para a violência urbana fluminense.
É o que aponta o sociólogo Michel Misse, 66, coordenador do Núcleo de
Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana da Universidade Federal do
Rio de Janeiro.
“Num momento de crise e de incapacidade das polícias de dar uma resposta
razoável para o medo da população, chamar as Forças Armadas é uma forma
politicamente eficiente de produzir, no curto prazo, uma sensação de
segurança na cidade”, avalia. “Mas, se o critério for o aumento da violência,
tem que intervir no Ceará e em tantos outros Estados com índices mais altos
que os do Rio.”
Para Misse, o emprego das Forças Armadas é velho conhecido do Rio, não
tem substância em termos de política pública nem resolve problemas que são
estruturais. “A militarização da segurança vai no sentido contrário da
modernização desejada para o sistema de Justiça Criminal, que compreende
polícias, Ministério Público, Judiciário e sistema penitenciário”, diz.
Folha - A proposta de intervenção federal na segurança pública é inédita. Quais
seus efeitos práticos e políticos?
Michel Misse - Intervenções anteriores das Forças Armadas foram solicitadas
pelo governador. O caso atual é diferente porque, na prática, [o governador
Luiz Fernando] Pezão (MDB) dividirá o poder com um general do Exército e
ficará submetido a decisões que não dependerão mais dele. Temer está
apostando alto para viabilizar sua candidatura, até aqui considerada inviável
pelas pesquisas. Por que o Rio e não outros Estados onde a violência é maior?
Se o critério adotado foi o aumento da violência, então tem de intervir no
Ceará. É falacioso o argumento de que o crime se espalhou pelo país a partir
do Rio. As dezenas de facções que existem pelo país não vieram do Rio, mas
do sistema penitenciário. Se fosse para falar em metástase do crime, o
adequado seria falar do sistema penitenciário brasileiro. A impressão é de que
se trata de uma forma de passar a ideia de que o governo está resolvendo o
problema.
A proposta responde ao aumento da violência local ou à crise fiscal no Estado?
Um pouco de cada coisa. Houve um grande investimento em segurança
pública durante os dois governos de Sérgio Cabral [MDB] e no início do
governo [Luiz Fernando] Pezão que resultaram em indicadores positivos,
principalmente nas áreas com UPPs [Unidades de Polícia Pacificadora], onde
houve queda acentuada da taxa de homicídios e nos chamados autos de
resistência [mortes em decorrência de ação policial]. A curva desses índices se
reverteu com o agravamento da crise fiscal. Então existe uma correlação direta
entre investimento e taxas de homicídio.
Como as Forças Armadas podem ajudar nisso?
O [ministro da Defesa] Raul Jungmann tem insistido que a polícia do Rio está
muito corrompida, o que acredito ser esta uma das razões da intervenção
porque a própria polícia não pode dar solução para isso. Então, o argumento é
que talvez uma intervenção federal possa fazer isso. Mas não creio que o
Exército possa resolver um problema dessa magnitude. Para intervir na
corrupção policial, tem de investigar e produzir provas que levem à demissão e
à prisão dos maus policiais.
O Estado do Rio de Janeiro já afastou 400 oficiais da PM em governos
anteriores, mas todos voltaram à corporação por decisão judicial baseada na
falta de provas contra eles. Além disso, as Forças Armadas não foram
preparados para a atividade policial.
Em missões internacionais, soldados estão autorizados a atirar num sujeito
armado. Como manter o respeito a direitos fundamentais e ao devido processo
legal em operações nacionais?
Esse é outro problema. Porque a Polícia Militar já não usa a força de maneira
adequada. As estratégias de segurança têm de levar em consideração que
existe uma interação entre o controle social e os criminosos. Se você exerce a
força de forma arbitrária, os criminosos vão responder da mesma maneira. E aí
terá um aumento do número de policiais mortos e assim por diante.
O que se pode esperar, então, dessa intervenção?
Vivemos intervenções no Rio em 1992, depois em 1994, além de sucessivas
operações. Portanto, não existe novidade. O efeito é sempre o mesmo:
primeiro há um apaziguamento, depois a intervenção começa a se banalizar e,
finalmente, ela acaba e tudo volta ao que era antes. Pode-se entender a
intervenção como um paliativo com efeito político publicitário. Não tem
substância de política pública.
Quais os riscos envolvidos?
O Exército não tem competência para esta atividade de policiamento ostensivo
ou de operações de ocupação, e isso expõe soldados ao mesmo padrão de
propina a que foram expostas as polícias. Isso é um perigo. Uma coisa é um
caso como o da ocupação do Complexo do Alemão, em 2010, que foi pontual.
Outra coisa é ficar meses com ocupação militar em todo Rio de Janeiro.
A Força Nacional de Segurança Pública não seria mais adequada para a
intervenção?
A Força Nacional é formada por policiais militares trazidos de vários Estados e
funciona como uma espécie de polícia militar nacional. Ela tem como função
auxiliar as polícias locais ou desbaratar a corrupção nessas polícias. Mas seu
volume é pequeno. Ela não tem expressão numérica capaz de atender às
demandas dos vários Estados. No caso do Rio de Janeiro, ela foi chamada
para várias operações junto com as Forças Armadas. São paliativos, que não
solucionam os problemas a médio e longo prazo.
Como a violência no Estado voltou a subir?
Em quase todos os casos de mortes de civis, havia um confronto entre policiais
e bandidos e balas perdidas. Tem um dado curioso: se não há intervenção
policial, não há o mesmo volume de mortes.
As UPPs diminuíram esses índices porque os policiais ficavam no local, e as
operações e invasões desses territórios pararam. Quando a UPP entrou em
debacle, voltaram as operações policiais no mesmo padrão anterior e, com
elas, as mortes de policiais e de civis, não importa se bandidos ou não, o que
inclui a morte de crianças por balas perdidas. O atraso dos salários do policiais,
a crise política do país e a crise econômica também ajudaram a diminuir a
confiança nas políticas. O efeito disso é que os criminosos se sentem mais à
vontade para agir e mostrar seu poder de força, o que gera novas operações.
Qual é a dinâmica entre policiais e traficantes?
Os traficantes varejistas se instalaram em comunidades carentes, onde
controlam pontos de vendas com armas para evitar sua tomada por facções
rivais. Vários estudos já demonstraram que a relação do tráfico com a polícia é,
em geral, de propina. Algo que eu chamo de mercadoria política e que surgiu
na repressão ao jogo do bicho. O que o policial oferece ao traficante é proteção
e informação sobre operações na sua área. E, quanto mais repressão, maior o
preço da mercadoria política [da propina].
Essas operações são eficientes para reduzir a criminalidade?
Não. Todos os especialistas têm insistido nisso. As operações têm de ser
realizadas após um trabalho de inteligência e investigação para que tenham um
objetivo muito claro e sejam pontuais e cirúrgicas. Não é o que acontece. Em
um dos casos, por exemplo, policiais fizeram uma operação de vingança de um
suposto sequestro de outros policiais pelos traficantes. Depois, verificou-se que
esse sequestro não havia ocorrido. Então, a situação é de uma polícia sem
controle.
Como solucionar o problema?
Não é preciso criar um ministério, mas modernizar todas as instituições ligadas
a essa área, que seguem as mesmas de antes da redemocratização. A política
militar, por exemplo, era aquartelada, chamada como força auxiliar em
circunstâncias específica. Ela virou uma força de policiamento ostensivo
durante o regime militar. E isso criou uma primeira situação esquizofrênica que
são duas polícias que não têm autoridade uma sobre a outra.
A polícia civil investiga, a militar faz policiamento ostensivo. Elas tem de ser
integradas, se não institucionalmente, ao menos operacionalmente. E o
Ministério Público tem de estar vinculado ao trabalho policial para melhorarmos
as investigações. Quando você não tem capacidade de investigar crimes e
levar criminosos a julgamento, a força e a lógica da guerra se instauram como
forma de combate ao crime. É um ciclo vicioso.
O que se sabe sobre a intervenção federal no RJ
e quem é quem no comando militar
por: EL PAÍS - leia na íntegra