A inocência é ignorância No estado de inocência, o homem não está
ainda determinado como espírito, mas está-o a alma numa unidade imediata com o seu ser natural. O espírito existe ainda em sonho no homem. Esta interpretação acha-se em pleno acordo com a Bíblia que, recusando ao homem em estado de inocência o discernimento entre o bem e o mal, condena todas as imaginações meritórias do catolicismo Nesse estado há calma e repouso; mas, ao mesmo tempo, há outra coisa que, no entanto, não é perturbação e luta, pois nada existe contra que lutar Mas o que é entãoZ Nada Mas qual o efeito de tal nadaZ Ele gera a angUstia Esse é o mistério profundo da inocência, o de ser ao mesmo tempo angUstia. Sonhador o espírito projecta a sua própria realidade q-ue nada é, mas este nada vê sempre a inocência fora de si próprio A angUstia é uma determinação do espírito sonhador e, a tal título, tem o seu lugar na psicologia. A vigília põe a diferença entre mim mesmg e esse outro em mim, o sonho suspende-a, o sonho sugere-a como um vago nada A realidade do espírito apresenta-se sempre como uma figura que tenta o seu possível, mas desaparece desde que se tenta apreéndê-la, e que é um nada que só pode angustiar-nos. Ela não pode mais, enquanto nada mais faz do que se mostrar. Quase nunca se vê o conceito de angUstia tratado em psicologia: portanto, eu saliento a sua total diferença relativamente ao temor e a outros conceitos semelhantes que apelam sempre para algo de preciso, enquanto que a angUstia é a realidade da liberdade, porque é o seu possível Por isso nunca a encontraremos no animal, cuja natureza precisamente carece de determinação espiritual Se se considerar então as características dialécticas da angUstia, constatar-se-á precisamente a sua ambiguidade psicológica A angUstia é uma antipatia simpatizante e uma simpatia antipatizante. E eu não creio que haja dificuldade em ver aí uma categoria psicológica muito mais rica do que essa fa'mosa concupiscentia. A linguagem é neste caso rica em confirmações. Não se diz a doce angUstia, a doce ansiedade, ou ainda uma angUstia estranha, uma a~gUstia feroz, etc.7 A arigUstia posta na inocência não é pois primeiramente uma falta, nem depois um fardo que pesa, nem um sofriri.lento que se não harmoniza com a beatitude da inocência. Obs~rvai a infância: nela encontrareis essa angUstia com traços mais precisos, como uma procura de aventura, de monstruoso, de mistério. Que haja crianças em que ela não exista, é facto que nada prova, porque ela também não existe no animal e, quanto menos espírito há, menos angUstia existe efectivamente. Tal angUstia pertence tão essencialmente à criança que ela não pode passar sem ela; mesmo se a angUstia a inquieta, encanta-a porém pela sua doce inquietação. Eri.l todos os povos em que a a ngUstia se conserva como um sonho do espírito, a angUstia existe, e a sua intensidade serve para medir. a profundidade dos povos. Ver nisso uma desorganização não passa de prosaísmo estUpido. A angUstia tem aqui o mesmo alcance que a melancolia num estado muito posterior, no qual a liberdade, após ter percorrido as formas imperfeitas da sua história, deve recuperar-se ate às suas próprias entranhas.
Do mesmo modo que a. relação da angUstia com o seu objecto, com
qualquer coisa que nada é (a linguagem diz também, significativamente, angustiar-se de nada) é rica de equívocos, assim a passagem que pode fazer-se aqui da inocência à falta será precisament~ tão dialéctica que demonstrará ser a explicação aquilo que deve ser. psicológica. Decerto que o salto qualtitativo se mantém semprê isen. to de qualquer duplicidade, mas o homem, cuja angUstia torna culpável, é inocente (porque não era ele próprio, mas a angUstia. um poder estranho que se apoderou dele. um poder que ele não amava mas o inquietava); mas. por outro lado. ele é também bem culpado. tendo-se perdido na angUstia. a qual amava incontestavelmente mesmo quando a temia. Existirá maior ambiguidade no mundo7 Eis o motivo por que esta expliCação é a Unica de c~rácter psicológico, embora evite, repito, gabar-se de ser a explicação do salto qualitativo. Imaginar que a própria proibição nos tentou. ou que o sedutor nos enganou, coristitui sempre uma interpretação cuja duplicidade só serve a uma observação superficial. Com efeito, ela falseia a éti~a, não produz mais do que uma determinação quantitativa e, por meio da psicologia. procura fazer um cumprimento ao homem à custa da ética. polidez que todos aqueles que têm um mínimo de educação moral declinarão como nova sedução ainda mais cautelosa. O próprIo surgimento da angUstia é o centro de todo o problema. O homem é uma síntese de alma e de corpo. Mas tal síntese é inimaginável. se os dois elementos se não unirem num terceiro. 0 terceiro é o espírito. No estado de inocência. o homem não é apenas um simples animal, como, aliás, se o fosse em qualquer momento da sua vida. nunca se tornaria num homem. 0 espírito está pois presente. mas no estado de imediaticidade. de sonho. Mas. na medida da sua presença. ele é de algum modo um poder inimigo. porque perturba sempre a relação entre a alma e o corpo que decerto subsiste sem no entanto subsistir pois não ganha subsistência senão por meio do espírito. Por outro lado. o espírito é um poder amigo. precisamente desejoso de constituir esta r~lação. Oual é então a relação do homem com esse poder equívoco7 Oual. a do espírito consigo mesmo e com a sua condição7 Tal rel~ção é a angUstia. Libertar-se de si próprio é a 1go de que o espírito não é capaz; mas também não é capaz de se apreender já que possui o seu eu fora de si mesmo; afundar-se na vida vegetativa. também não é possível para o homem. estando determinado como espírito; não pode fugir da angUstia. porque a ama; amá-la verdadeiramente. muito menos. porque lhe foge. A inocência atinge neste ~ moment~ o auge. Ela é ignorância. mas nao animalidade de besta; é uma ignorância que determina o espírito. mas que deriva precisamente da angUstia, porque a sua ignorância incide sõbre o nada. Não há aqui saber do bem e do mal, etc . Toda a realidade do saber se projecta na angUstia como o imenso nada da ignorância. 0 homem ainda neste momento está na inocência. mas basta uma palavra para que a ignorância se concentre de imediato. Palavra natural- mente incompreensível para a inocência. mas a angUstia como que recebeu a sua primeira presa; em vez de nada possuiu uma palavra enigmática. Assim. quando nos Génesis Deus diz a Adão «mas tu não comerás dos frutos da árvore do bem e do mal », é evidente que. no fundo, Adão não compreendia estas palavras. Pois como compreenderia ele a diferença do bem e do mal. já que a distinção só se operou com o respectivo usufruto7 No caso de se admitir que a proibição desperta o desejo. tem-se então. em vez da ignorância, um saber. pois se impõe neste caso que Adão haja tido um conhecimento da liberdade. sendo o seu desejo servir-se dela. Eis uma explicação imediata. A proibição inquieta Adão. porque desperta nele a possibilidade da liberdade Aquilo que se oferecia à inocência como o nada da angUs~ia entrou agora em si próprio. e aqui ainda se conserva um nada. a angustiosa possibilidade de poder. Ouanto ao que pode. não tem ele qualquer ideia; doutro modo. com efeito. tal equivaleria -como vulgarmente sucede - a pressupor o seguimento. quer dizer. a diferença entre o bem e o mal. Não existe em Adão mais do que a possibilidade de poder, como uma forma superior de ignorância. como uma expressão superior de angústia, pois assim, neste grau mais elevado, ela é e não é, ele ama-a e foge-lhe. Após as palavras da proibição vêm as do juízo: <~ tu mqrrerás certamente». O que significa morrer, Adão naturalmente não o compreen- de, se bem que nada impeça, no caso de se admitir que estas palavras a ele se dirigem, que ele haja construído uma ideia do seu horror Mesmo o animal pode a tal respeito compreender a expressão mím ica e o movimento de uma YOZ que lhe fala, sem compreender a palavra. Se a proibição faz nascer o desejo, impõe-se também que as palavras do castigo façam nascer uma ideia de terror. Mas eis o que desorienta. O medo aqui só pode provir da angústia; porque o que foi pronunciado, Adão não o compreendeu, e aqui de novo nós não temos, portanto, ma is do que o equívoco da angústia. A possibilidade infinita de poder despertada pela proibição, cresceu na medida em que essa possibilidade evoca outra como sua consequência.
Soeren Kierkegaard, Le Concept de l'Angol~~e, Paris,