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Na Tentação de Lisboa, diante de Santo Antônio, senta-se uma dessas figuras nascidas da
loucura, de sua solidão, de sua penitência, de suas privações; um frágil sorriso ilumina
esse rosto sem corpo, pura presença da inquietação sob as espécies de um esgar ágil. Ora,
é exatamente esta silhueta de pesadelo que é simultaneamente o sujeito e o objeto da
tentação; é ela que fascina o olhar do asceta — permanecendo uma e outro prisioneiros
de uma espécie de interrogação no espelho, a permanecer indefinidamente sem resposta,
num silêncio habitado apenas pelo bulício imundo que os cerca61. O grylle não mais
lembra ao homem, sob uma forma satírica, sua vocação espiritual esquecida na loucura
de seu desejo. É a loucura transformada em Tentação: tudo que nele existe de impossível,
de fantástico, de inumano, tudo que nele indica a contranatureza e o formigamento de
uma presença insana ao rés-dochão, tudo isso, justamente, é que lhe atribui seu estranho
poder. A liberdade, ainda que apavorante, de seus sonhos e os fantasmas de sua loucura
têm, para o homem do século XV, mais poderes de atração que a realidade desejável da
carne (25).
***
1
História da loucura na Idade Clássica começa com a consideração de toda uma
reorganização espacial ocorrida nos leprosários europeus devido à regressão da doença
datada desde os fins da Europa medieval. Podemos afirmar que Foucault compreende esta
organização como uma espécie de grande receptáculo que se torna oco e que receberá o
futuro fenômeno da loucura nos séculos seguintes; ou, se quisermos, trata-se de ver no
decréscimo da lepra a elaboração de um valor e uma imagem da exclusão:
Foucault quer assinalar o modo como a figura do leproso foi construída para a
cultura ocidental: o leproso é, ao mesmo tempo, figura a ser sempre excluída do mundo
social visível e marca do divino. A cólera e bondade de Deus estariam unidas na doença
que, se nunca é admitida no convívio da comunidade, é mantida perenemente ao longe
como sinal do sagrado. Assim, com o decréscimo da doença, o que permanecerá é este
fundo oco que ressoa um sentido de exclusão fixado como uma exaltação inversa:
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O que pretende Foucault com esta consideração? As doenças venéreas não se
estruturaram como fenômeno de exclusão ao ocuparem simplesmente os espaços físicos
dos hospitais que tratavam os leprosos. A doença venérea, ela mesma – com um sentido
inteiramente moralizante, isto é, como doença apartada do tratamento do patológico – só
pode se constituir no bojo de um movimento de exclusão mais amplo e complexo que foi,
propriamente, o fenômeno da loucura. As doenças venéreas deixarão de ser doenças a
serem tratadas sob o imperativo exclusivo de uma terapêutica quando a prática maciça do
internamento se instaurar, a princípio, contra um contingente indiferenciado de pessoas.
Apenas aí é que a lepra, então, como modelo de exclusão1 encontrará sua herdeira
legítima que suscitará “reações de divisão, de exclusão, de purificação”. As doenças
venéreas se configurarão como espaço moral de exclusão devido à própria formulação da
loucura que depende do que Foucault denomina de grande internamento. Este tema é
analisado justamente no capítulo segundo de História da loucura.
Mas, então, por que escrever Stultifera Navis como capítulo de abertura do
colossal livro? Seriamos ingênuos o suficiente para dizer que o livro cuja origem é o
doutoramento de Foucault escolheu um prelúdio cerimonioso, mas conceitualmente
infundado? Observemos que Foucault utiliza a expressão “longo momento de latência”
para designar as experiências que a Renascença formulou “antes de a loucura ser
dominada por volta da metade do século XVII”. Em outros termos, se a lepra lança um
modelo de exclusão original no Ocidente, sua reabilitação, por assim dizer, exige uma
nova elaboração prévia antes de efetivar-se novamente como modelo de exclusão. A
grande continuidade histórica de um sentido de exclusão requer a descontinuidade como
índice histórico de sua compreensão. O que na aurora de seu pensamento Foucault chama
de longo momento de latência é a importante descoberta do nível arqueológico. Sem
delongas, é preciso dizer diretamente: para apreender a loucura como fenômeno de
exclusão que vem em linha de continuidade deixado pelos espaços ocos dos leprosários
1
Nota sobre o modelo da lepra e o modelo da peste em Os anormais 1974-1975.
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é preciso estabelecer um corte de latência: Stultifera Navis é este corte de uma latência
simbólica da loucura que vai ser elaborada como condição da divisão binária entre razão
e loucura.
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fascinum era a personificação do falo divino. Veja Plínio, o velho. Será que Foucault sabia disso?
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passagem. Contudo, Foucault salienta: Narrenschiff de fato existiu levando “sua carga
insana de uma cidadã para outra” (13). Foucault apresenta vário dados da frequência deste
hábito:
Esse costume era frequente particularmente na Alemanha: em
Nuremberg, durante a primeira metade do século XV,
registrou-se a presença de 62 loucos, 31 dos quais foram
escorraçados. Nos cinqüenta anos que se seguiram, têm-se
vestígios ainda de 21 partidas obrigatórias, tratando-se aqui
apenas de loucos detidos pelas autoridades municipais (13).
A prática, porém, se habitual, era bastante ambígua em seu sentido. Por vezes, os locais
onde desembarcavam os loucos convertiam-se em espaços de peregrinação, para onde
outras navegações chegariam para aí deixá-los, mas este não era o único sentido destas
navegações. Foucault indica que outras cidades simplesmente recebiam e prendiam os
loucos que chegavam (15), o que leva o pensador a considerar que tipo de gesto é este
que expulsa da cidade, mas também mantém o louco sob certa regulação que Foucault
chama, nesta passagem, de exílio de ritual. Foucault atesta:
A igreja aplica sanções contra um sacerdote que se torna
insano; mas em Nuremberg, em 1421, um padre louco é
expulso com uma particular solenidade, como se a impureza se
acentuasse pelo caráter sacro da personagem, e a cidade retira
de seu orçamento o dinheiro que devia servir-lhe de viático
(16).
Daí Foucault concluir que a navegação dos loucos tem tanto uma utilidade social de
impedir que os loucos vagassem sem fim pelas cidades (sob um exílio ritual que prende
o louco em sua própria partida), quanto a relação com a água movimenta motivos
imemoriais:
ela leva embora, mas faz mais que isso, ela purifica. Além do mais, a
navegação entrega o homem à incerteza da sorte: nela, cada um é
confiado a seu próprio destino, todo embarque é, potencialmente, o
último. É para o outro mundo que parte o louco em sua barca louca; é
do outro mundo que ele chega quando desembarca. Esta navegação do
louco é simultaneamente a divisão rigorosa e a Passagem absoluta. Num
certo sentido, ela não faz mais que desenvolver, ao longo de uma
geografia semi-real, semi-imaginária, a situação liminar do louco no
horizonte das preocupações do homem medieval — situação simbólica
e realizada ao mesmo tempo pelo privilégio que se dá ao louco de ser
fechado às portas da cidade: sua exclusão deve encerrá-lo; se ele não
pode e não deve ter outra prisão que o próprio limiar, seguram-no no
lugar de passagem. Ele é colocado no interior do exterior, e
inversamente. Postura altamente simbólica e que permanecerá sem
dúvida a sua até nossos dias, se admitirmos que aquilo que outrora foi
5
fortaleza visível da ordem tornou-se agora castelo de nossa consciência
(16).
Por que, afinal, a renascença reabilita esta prisão que é a da passagem? Esta prisão interior
do exterior? Porque ao homem ocidental a loucura e o louco soerguem-se como
ambíguos: desatino e ridículo. Trata-se de uma inquietude em relação à loucura pela
forma que ela assume no personagem social louco. Foucault confirma esta sua percepção
por meio da análise da literatura de contas e moralidades na qual se organiza uma crítica
social e moral; na literatura Erudita em que razão e verdade se enfrentam, nos jogos
acadêmicos, entre eles, os trabalhos do humanistas como layder e Erasmo, em que a
loucura aparece no como mola da própria racionalidade; numa “dinastia de imagens”
representada por Bosch, Brueghel.
Nesta loucura que navega, ela é percebida também como um substituto do
medo da morte. Tema da morte impera sozinho até a segunda metade do século XV.
Depois, a inquietude da morte gira sobre si mesma e produz o desatino da loucura. A
loucura é a forma cotidiana e dominada da morte. Ela é transmutada em loucura, isto é,
desarma-se o medo da morte por meio de uma contemplação de uma morte já-aqui, um
absoluto vazio que é a loucura apanhada na vida, no vício, nos defeitos e no ridículo (p.
20-21).
A loucura vira consciência do nada que a morte já carregava para o espírito medieval. A
loucura vira a necessidade de pensar o fim, o limite, o nada como consciência do homem.
Tanto é assim que a Narrentanz atravessa a cultura, ou seja, tem um nível bastante amplo
como discurso social:
Sob suas formas diversas — plásticas ou literárias — esta
experiência do insensato parece de extrema coerência. Pintura e
texto remetem eternamente um ao outro: aqui, comentário, e lá
6
ilustração. A Narrentanz é um único e mesmo tema que se
encontra e se torna a encontrar nas festas populares, nas
representações teatrais, nas gravuras, e toda a última parte do
Elogio da Loucura é feita sobre o modelo de uma longa dança de
loucos em que cada profissão e cada estado desfila por sua vez a
fim de formar a grande ronda do desatino. É provável que, na
Tentação de Lisboa, muitas figuras da fauna fantástica que invade
a tela sejam tomadas de empréstimo às máscaras tradicionais;
algumas talvez sejam transpostas do Malleus56. Quanto à famosa
Nau dos Loucos, não foi ela traduzida diretamente da
Narrenschiff de Brant, cujo título ostenta e cujo canto XXVII ela
parece ilustrar de uma maneira bem precisa, canto destinado,
também ele, a estigmatizar os potatores et edaces? Chegou-se
mesmo a supor que o quadro de Bosch fazia parte de toda uma
série de pinturas ilustrando os principais cantos do poema de
Brant
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organizada de modo fazer corresponder no Novo Testamento os eventos no Antigo
Testamento que ali estariam prefigurados Fartamente ilustrado, o escrito parecia servir a
um propósito praticado para a educação do povo comum. Dentro do seu argumento,
Foucault ressalta que o escrito realizava, além das correspondências, uma “equivalência
imaginária” (23), ou seja, um onirismo próprio da imagem: por exemplo “A Paixão de
Cristo não é prefigurada apenas pelo sacrifício de Abraão: ela convoca ao seu redor todos
os prestígios do suplício e seus inúmeros sonhos” (23). Apresenta ainda a simbologia
medieval da sabedoria do Gutemensch (24) e a imagem do grylle (Tentação de Santo
Antão do Bosch)
Que fascínio este constato na proliferação da imagem sem palavra, de uma espaço novo
de auto-referenciação vazia da loucura? A relação com a animalidade que não mais
representam o valor da humanidade iniciada com Adão: a animalidade da fábula e da
ilustração moral adquire seu próprio caráter de fantástico (25). É o polo do fascínio de
uma animalidade impossível, monstruosa ameaçadora do humano, por isso mesmo,
inquietante em sua densidade imaginária, em sua “natureza de trevas”(26). De outro lado,
ela também fascina porque a absurda animalidade deve remeter-se a um saber
esotérico. Pólo do saber da loucura, um fascínio pela curiosidade de um saber inscrito
na loucura desse mundo mergulhado no desarrozoado, ou seja, para Foucault a loucura é,
na Nau dos louco, um saber do pecado que oferece na travessia “espécie de Paraíso
renovado, uma vez que nela o homem não mais conhece nem o sofrimento nem a
necessidade. No entanto, ele não recobrou sua inocência. Essa falsa felicidade é o triunfo
diabólico do Anticristo, é o Fim, já bem próximo” (26). “Sabá da natureza” (26).
Psicomaquia a partir do século XIII passa a incluir a loucura. A loucura nestes campos
tem um valor de julgamento sobre o mal e sobre o bem porque todo conhecimento
humano, excessivo nas falsas ciências, desaguam na loucura “punição cômica do saber e
de sua presunção ignorante” (29).
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O primeiro canto do poema de Brant é dedicado aos livros e aos sábios;
e na gravura que ilustra essa passagem, na edição latina de 1497, vê-se
imponente, em sua cátedra eriçada de livros, o Mestre que ostenta por
trás de seu chapéu de doutor o capuz dos loucos cheio de guizos.
Erasmo reserva aos homens do saber um bom lugar em sua ronda dos
loucos: depois os Gramáticos, os Poetas, os Retóricos e os Escritores;
depois os Jurisconsultos; em seguida, caminham os "Filósofos
respeitáveis por sua barba e seu manto"; finalmente a tropa apressada e
inumerável dos Teólogos (29)
Bosch x Erasmo/Brant:
Brant descreve tipos morais: “são os avaros, os’delatores, os bêbados. São os que se
entregam à desordem e à’devassidão; os que interpretam mal as Escrituras, os que
praticam o’adultério”. Loucura e irregularidade de conduta.
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Experiência cósmica (proximidade das formas fascinantes) e experiência crítica da
loucura (distância instransponível da ironia). Embora elas se entrecruzem (31-32),
Foucault, esta clivagem vai continuar se aprofundando.
De um lado, haverá uma Nau dos Loucos cheia de rostos furiosos que
aospoucos mergulha na noite do mundo, entre paisagens que falam da
estranha alquimia dos saberes, das surdas ameaças da bestialidade e do
fim dos tempos. Do outro lado, haverá uma Nau dos Loucos que
constitui, para os prudentes, a Odisséia exemplar e didática dos defeitos
humanos (33)
Privilégio de um dos polos (34) que a Renascença atribui a esse sistema: “àquele que fazia
da loucura uma experiência no campo da linguagem, uma experiência onde o homem era
confrontado com sua verdade moral, com as regras próprias à sua natureza e à sua
verdade” ou ainda “a experiência trágica e cósmica da loucura viu-se mascarada pelos
privilégios exclusivos de uma consciência crítica” (34).
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loucura do justo castigo (44)
loucura da paixão desesperada (44)
A loucura se instrumentaliza na crítica moral principalmente no teatro do século
XVII como Scudéry.
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Então, o corpo do louco é um corpo que, ao mesmo tempo que parte daquele equivoco
que a todos interna, ele começa a se associar as formas modernas de exclusão três formas
bastantes conhecidas por nós:
a. Corpo do miserável a ser assistido
b. Corpo ético do trabalhador produtivo
c. Corpo da moralidade e da legalidade
Aula
Politizar o tempo do conceito: arqueologia das ciências humanas como arqueologia
do conceito de homem
FOUCAULT. M As palavras e as coisas. Tradução de Salma Tannus Muchail. 8a. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999
[Capítulo VII – Os limites da representação
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