Вы находитесь на странице: 1из 54
tura na qual nao podemos encontrar explicagoes raci otinico deus grego que tem a loucura como um de seus al 1 deveria ter atrafdo a atengaio dos psicologia, assim como ter assegurado AI um lugar fundamental no estudo das ent tais. Quando nos aproximarmos da imagética d nés nos encontraremos com sua natureza co! 4 de vefculo metafér' zonas de “sombra” na natureza humana. RAFAEL LOPEZ-PEDRAZA nas pais espanhéis. Viveu em Zi ‘ambos nesta mesma col filos, OMIXa ON OSINOIG = VZVHasd-Zad0T TAVAVE DIONISO NO EXILIO sobre a repressao da emogao e do corpo Rafael Lépez-Pedraza Colao AMOR E PSIQUE RAFAEL LOPEZ-PEDRAZA. + Ato — pnd eens € Pate “imc doen, Naum emits da muer, Esme! Hang * Loan oii gest, sili unguina, tconmucadeoajonade aba svave rt, erin one, + DP Baer auace doouto ig. Has © mecue = th eon aed A, red “Copan cra roe i So et oe DIONISO NO EXILIO ‘Ositoconnecimeno dinensso soci! i Sobre a repressdo da emogao e do corpo Matudadesenvahecimento + Apassapon do meio Jas Hells ‘homeo deve Sion PauLus ‘terzahomah fa’ tarat Spaceecne wl ogra oss en ell: Sobre a repesin doa eon yo cupo, Rtas L6pezPecaza ‘© Ratael Lopez-Pedraza, 2002 Vs ese Pete Lina Trad: obo Cian Revisto: ho Siam Cees Amora Pique aig por Dr. Léon Bonaventure oe te Ele! S. Barbosa Impressto e acabementa: PAULUS Dados Irtracionals de Catlagago na Publicgo (i (Cara Besorade Uva, Se ash aOR) Dioniso no sobre a repressio da amoeto dl coro / Rall Lopex-Pedaza (nadine 8 pressdo da emopio o do corpo Falaal Lipex Ped ~~ Sio Paulo Paulus 2602. (Cologao Amore psicue) ‘Titulo orginal: Dionisos en allo: Sobre i epreson dela emocién y el cusrpo ISBN 078-05-349-1910-4 1. Dioiso(Divindade crega) 2. Emogdes’, Reoressto (Pscolog} 01-5882 00-1524 ed awh ts OS Série, ° edigéo, 2002 3*reimpressao, 2015 © PAULUS - 2002 INTRODUCAO A COLEGAO AMOR E PSIQUE Na busea de sua alma e do sentido de sua vida, 0 ‘homem deseobriu novos caminhos que o levam para a sua interioridade: 0 seu préprio espago interior torna-se um lugar novo de experiéncia. Os viajantes destes caminhos nos revelam que somente o amor 6 capaz de gerar a alma, mas também 0 amor precisa de alma. Assim, em lugar de buscar causas, explicagées psicopatolégicas As nossas feridas ¢ aos nossos sofrimentos, precisamos, em primeiro Tuga, amar a nossa alma, assim coma ela 6. Deste modo 6 que poderemos reconhecer que estas feridas e estes so- frimentos nasceram de uma falta de amor, Por outro lado, revelam-nos que a alma se orienta para um centro pessoal ¢ transpessoal, para a nossa unidade e a realizagao de nossa totalidade. Assim a nossa prépria vida carrega em si um sentido, o de restaurar a nossa unidade primeira. Finalmente, nao 6 o espiritual que aparece primeiro, mas 0 psiquico, e depois o espiritual. § a partir do olhar do imo espiritual interior que a alma toma seu sentido, © que significa que a psicologia pode de novo estender a mdo para a teologia. Esta perspectiva psicolégica nova ¢ fruto do esforgo para libertar a alma da dominagao da psicopatologia, do espirito analitico e do psicologismo, para que volte a si mesma, a sua prépria originalidade. Ela nasceu de refle- xoes durante a prética psicoterspica, e estd comegandoa renovar 0 modelo e a finalidade da psicoterapia. E uma nova viséo do homem na sua existéncia cotidiana, do seu tempo, e dentro de seu contexto cultural, abrindo dimensdes diferentes de nossa existéncia para podermos reencontrar a nossa alma. Ela poderé alimentar todos aqueles que sao sensiveis A necessidade de inserir mais alma em todas as atividades humanas, Afinalidade da presente colegio é precisamente res- tituir a alma a si mesma e “ver aparecer uma geragao de sacerdotes capazes de entender novamente a linguagem da alma”, como C. G. Jung o desejava. Léon Bonaventure ESCREVER sobre Dioniso, o deus do vinho, da loucu- rae da tragédia, buscando uma reflexao psicolégica 6 como empreender uma aventura rumo ao desconhecido; uma , aventura na qual nao podemos encontrar explicagées racio- nais. Quando nos aproximarmos da imagética dionisfaca, 6s nos encontraremos com sua natureza contraditéria ¢ com sua irracionalidade; mas precisamente essa irracio- nalidade de Dioniso nos serviré de veiculo metaférico para explorar zonas de ‘sombra’ na natureza humana. Sendo assim, para empreender essa aproximagao de Dioniso, tornaremos nosso o verso de Thomas Stearns Eliot que diz: “Nao estamos aqui para explicacées” e prossigamos acompanhados das imagens e da imaginacao. Os estudiosos dos classicos tm dado énfase a nature- za contradit6ria de Dioniso. Assim, W. C. K. Guthrie, om seu livro The Greeks and Their Gods (1968, 145), destaca que “o culto a Dioniso jamais poder ser explicado em sua totalidade’ Mesmo que a afirmacéo de Guthrie seja dirigida aos estudos classicos, certamente algo similar poderia se dizer aos psicdlogos modernos, que, até onde tenho conhecimento, nao tém examinado Dioniso suficiente- mente. Isto 6 sumamente lamentavel, se considerarmos que Dioniso € 0 unico deus do panteao grego que tem a 7 loucura como um de seus atributos. Como psicoterapeuta junguiano, tenho encontrado, neste campo, antecedentes para a reflexio psicolégica sobre Dioniso. Na verdade, 0 fato de atribuir um estado de loucura a um deus deveria ter atraido a atencao dos estudantes de psicologia de hoje, assim como ter assegurado a loucura dionisiaca um lugar fundamental no estudo das enfermidades mentais. Mas, dadas essas circunstancias, no resta outro recurso senéo recorrer aos estudiosos dos classicos gregos, pois oferecem um farto e rico material sobre Dioniso. “Ao longo da narrativa sobre seu milagroso nascimen- to (de Dioniso), existem elementos raros e tinicos do mito e culto deste deus, para os quais é impossivel encontrar analogias exatas” (Ibid., 145). Certamente nao se conhe- com analogias deste tipo de culto em outras religives, como também nao existem nas semelhangas encontradas com os rituais e estados de possessao do coribantismo, um rito sumamente enigmatico para os estudiosos, Portanto, para nos aproximarmos psicologicamente de Dioniso, nao servirdio 0s métodos das religides comparadas. Apesar disso, tentarei encontrar expressdes da cultura dionisiaca no mundo de hoje. E importante destacar que os estudos sobre Dioniso tém sido realizados, basicamente, com res- paldos nas nodes que proporcionam o ritual, 0 culto e a hist6ria das religides. Ainda assim, esta tradigdo erudita proporciona os elementos bsicos para empreender um estudo mais psicolégico, para refletir sobre a importancia do deus em nosso equilfbrio psiquico, assim como para pereeber e avaliar as possibilidades que oferece a psico- logia moderna, Guthrie enumera as variadas contradigées que a natureza divina de Dioniso e seu culto contém: . Seu aspecto alegre e generoso e sua faceta repulsiva tenebrosa... o mesmo deus é aclamado como doador de inumeréveis dons e temido como devorador de carne fresca e esquartejador de homens... ele proporciona o éxtase, a comunhio espiritual e a intoxieacdo selvagem, da qual é lider, de modo que pode ser chamado o deus da loucura € do frenesi (Ibid., 145-46). No entanto, percebe-se “entre os dons que 0 deus outorga um sossego e uma quietude incomum...” (Ibid. 146). Os estudiosos tém se concentrado principalmente no aspecto frenético de Dioniso e tem esquecido esse “sossego” e essa “quietude”, apesar de serem aspectos basicos. Por isso, & medida que avancamos neste estu- do, gostaria que mantivéssemos sempre presente esses dons do deus, porque sao indispensaveis para que 0 psicoterapeuta possa sentir seu préprio corpo. A arte da psicoterapia consiste em constelar uma incubacéo (C. E. Meier, 1989) em meio a esses estranhos “sossego e quietude”, tao fundamentais numa situagiio psicote- rapéutica. Nosso primeiro ponto de referéncia seré 0 mito do nascimento do deus segundo 6 relatado na literatura 6rfica e, a partir das, poderemos discutir alguns aspectos de sua psicologia, tais como: Dioniso, o deus em oposi¢ao aos titas; o deus das emogoes; o deus mais reprimido da cultura ocidental; o deus das mulheres, do vinho, da tra- gédia e o deus que possui uma forte conexio com a morte. Finalmente, estudaremos algumas imagens de uma das, tragédias de Euripedes, As Bacantes. Com estes propési- tos, tentaremos evitar as especulagdes, as amplificagdes ou a discussio em torno das divergéncias entre os estudiosos e, em seu lugar, nos limitaremos & imagem de Dioniso e do dionisiaco, objeto de nossa reflexao. EmA History of Greek Religion, antes de apresentar sua versdo resumida do mito, Martin P. Nilsson escre- “Os érficos se apropriaram de uma antiga narrativa épica e a adequaram a seus proprios fins” (1949, 215) Esta concepeao érfica do nascimento de Dioniso outorgou 9 coeréncia religiosa aos dispersos mitos tradicionais, De acordo com 0 hino érfico, Com Perséfone, arainha do mundo subterraneo, Zous tove um filho, Dioniso-Zagreu. O pai tinha a intengao de que 0 menino dominasse o mundo, mas os titas o seduziram com brineadeiras e o prenderam para esquartejé-lo e devorar seus membros. Atena, no entanto, resgatou 0 seu coragao e olevoua Zeus, que o comeu. De Zeus nasceu, entao, um novo Dioniso, o filho de Sémele. Zeus abateu os titas com seu raio vingador e os reduziu a cinzas. Destas cinzas foi formado o homem, e por isso contém em si mesmo uma parte divina proveniente de Dioniso e uma parte oposta, procedente de seus inimigos, os titas (Ibid., 217). Nilsson prossegue relatando que este mito deve ter sido obra de algum génio do religioso e isto se torna um desafio para os estudiosos de Dioniso. Trata-se de um complexo desafio, se levarmos em conta o pronunciado carter sectério do orfismo. Devemos imaginar esse génio do religioso, de quem nos fala Nilsson, como omembro de uma seita, com uma psicologia impregnada pelos tragos caracteristicos do sectarismo: virgindade, pureza, dietas raras € palavras etéreas, tragos que Euripedes retrata em sua tragédia Hipolito’. Poderiamos, portanto, afirmar que a psicologia do sectarismo esteve presente na origem do mito que her- damos: a auténoma e demencial projecao de culpabilida- de dos érficos, que caracteriza sua psicologia®, Nilsson escreve: Que os 6rficos integraram uma seita, da qual estava excluido o resto da humanidade, sem duivida, isto foi um desastre. Consideraram a si mesmos os homens melhores e mais devotos e, por isso, tinham de padever o desprez0 {Vor Euripedos, (1968). Hipdlito. 2Ver Rafael Lépez-Pedraza. 1999, “Sobre Sectarismo", Em: Ansiedad Cultural. 2 edigho, 10 ¢ 0 6dio do mundo. Mesmo assim, o que eles chegaram a sofrer aqui na Terra seria vingado na préxima vida. Nao tenho a menor diivida de que o lugar tao importante que ocupava, nos ensinamentos érficos, a deseri¢do do destino reservado aos fmpios se devia, em tiltima instdncia, a seus sentimentos de antagonismo e de inimizade para com 0 proximo nao crente (Ibid., 218), Muito antes, Nilsson afirma que o orfismo “teve lugar dentro de um povo cuja psicologia Ihe permitia reagir debilmente diante do sentimento de culpa, e estava en- volvido em uma mitologia que nao poderia deixar de ser repulsiva para os claros processos mentais desse povo” (Ibid., 217). Hoje em dia sentimos algo dessa mesma re- pulsa em relagiio ao sectarismo, Na concepedo drfica do mito, Dioniso e os titas sav os protagonistas: duas forgas personificadas — a dioni- siaca e a titanica — e em oposigéo dentro da natureza humana. Esta natureza contém uma porcao de Dioniso e outra dos titas; sao forcas que podem ser percebidas tanto nos niveis internos quanto nos externos da realidade: 0 divino Dioniso em conflito com as foreas titénicas, Esta 6 a esséncia do mito e o trago mais importante para a reflexao psicologica. Os sonhos costumam ter um nticleo de significado do mesmo modo que os mitos possuem uma “trama”, entrelagada com 0 mundo em que foram concebidos. 0 mito foi a expressio do legado religioso e mitolégico dos gregos: o grande panteao dos deuses e das deusas. Esta heranea religiosa e antropoldgica de ritos e mitos tem cha- mado a atengaio dos estudiosos porque nela encontraram 0 terreno adequado para a investigagao, a discussio e a controvérsia. Com este legado, e agregando-o a dinamica dos contos de fadas, tao apropriada para estabelecer as conexées entre os dramatis personae dos mitos, poderemos apreciar melhor o mito érfico. 1 Antes de discutir 0 conflito entre Dioniso ¢ os titas, deverfamos ter uma ideia do que eles significaram para 0s gregos e, em seguida, observar 0 modo em que se ma- nifestam no mundo contempordneo. Entao poderemos diferenciar o que os titas representam em nossa prépria natureza eo que representa Dioniso. Esté fora dos limites desse estudo adentrarmos no titanismo. Meu interesse aqui limita-se a proporcionar um retrato dessa parte da natureza humana personificada pelo tita e que, no mito, opée-se a Dioniso. Carl Kerényi disse que se a Titano- ‘maquia, 0 poema épico sobre a guerra entre Zeus ¢ 0s titas, tivesse sido conservado, saberiamos muito mais sobre 0 que os gregos quiseram significar com os titas. No poema, Zeus derrota os tités, enviando-os as profundidades do Erebo, com o poder de seu raio e seus trovoes, Em Prometheus: Arquetypal Image of Human Existen- ce, Kerényi (1963, 27) rastreia o apelativo ‘ita’, valendo-se da Teogonia de Hesiodo, fonte primordial de informagao sobre os titas. Para nossos propésitos, esta aproximacao etimol6gica nos proporciona um retrato psicolégico mais definido do que a consulta direta ao legado de Hesiod ‘Menetio é um representante exemplar do titanismo... 6 * descrito como tal e sofre o destino da maioria dos titas: Zeus, com seu raio, fulmina o hybristés ¢ 0 arremessa a0 Erebo, & obscuridade eterna do mundo subterraneo (v. 514-516) por causa de sua atasthalie e de sua exuberante virilidade (enorée hypéroplos) Kerényi prossegue dizendo que, na Antiguidade, os titdis foram considerados deuses pridpicos. Hoje em dia, é frequente esta interpretagao errénea dos titas. As com. plexidades de Priapo estao contidas dentro da sua propria configuragao arquetipica’, com seus estranhos rituais ¢ ‘Ver Rafael Lopez-Pedraza, 1999, eap.VI de Hermes e seus Filhos, 12 condutas, excelentemente descritos em Satiricon de Petro- nioe no filme que Fellini fez sobre este livro. Os titas nao tém configuragiio arquetfpica e por isso sua “exuberante virilidade” deve ser entendida como um excesso em si, carente da rica imagética da psicologia pridpica Essa exuberante virilidade titanica tem sido de- monstrada ao longo da histéria das guerras, cada vez que os combatentes possuem sexualmente a primeira mulher que pegam no campo inimigo: horror de que te- mos noticias diariamente nas guerras contempordneas, ou nos sérdidos e permanentes confrontos marginais que ocorrem no mundo de hoje. No entanto, este enfoque po- deria nos levar a reduzir a virilidade titénica ao Ambito da sexualidade, quando, na realidade, trata-se de uma energia desproporcional desenfreada, que se manifesta de diversas formas: na religiao, na politica, nos negécios, na tecnologia, nas comunicagdes, na arte, O excesso dos titas, como foi percebido pelos gregos, pode ser observado em acdo no titanismo de hoje. Kerényi nos ajuda a diagnosticar a natureza tita- nica e sua retorica: “Hybristés e atasthalie sao palavras de dificil tradugao, embora seu significado seja claro... Elas designam a insoléncia agressiva e sem limites que caracteriza aos titas”. Numa outra passagem, escreve: “Hybris e atasthalte, orgulho desmedido e violéncia. (Ibid., 27-28). Neste livro nos ocuparemos desses dois aspectos do titanismo. Ampliando o tema da natureza dos titas, Kerényi (Ibid., 37) prossegue: Sua maneira de pensar (a do tita) j4 estd deserita no ape- lativo atribuido ao tita Cronos, que, assim como Menetio, € inteligente 6 na aparéncia e sera derrotado por Zeus, Ambos os titas stio ankylometai, astutos (ankylos)... uma mentalidade que deve ser qualificada, inquestionavelmen- te, como ‘titanica’. Implica toda classe de estratagemas, 13 desde a mentira até a elaboracdo das mais habeis inven- goes; inclusive estas invencdes sempre pressupdem alguma deficiéncia na maneira de viver de um traquina, Tal falha relaciona os tités com 0 homem e suas limitagoes, pois demonstra suas raizes na realidade humana. Menetio, aquele que é designado por Hesiodo como um dos irmaos de Prometeu, esta caracterizado na Teogonia nao apenas pela violéneia propria dos titas e dos gigan- tes, nascidos da terra. Segundo a etiologia de seu nome, que significa ‘o que tem reservado um destino mortal, um itos’, pode ter sido o ‘primeiro mortal’ e, como filho de Japeto, deveria sofrer condenacao idéntica a de seu pai. Na Teogonia (v. 514-16) podemos ler: “... por seu orgulho desmedido e sua insensata arrogancia, Zeus, 0 de olhar amplo, alcancando-lhe com seu fulminante raio, 0 fez descer ao Erebo”. Para os gregos, 0 significado do nome ‘tita’ nao era evidente nem 6bvio. Os titas nao tinham ritos nem culto, por isso ficaram & margem da vida cultural grega tanto em imagens quanto em formas. Para nés, hoje em dia, sua psicologia continua sendo obscura e, para aleancar alguma clareza, podemos apenas consultar os estudiosos. Walter Otto, em The Homeric Gods (1954, 33), escreve: “Existem muitos indicios de que (o nome tita) havia ad- quirido a conotagéo de ‘selvagem’, ‘rebelde’ e inclusive ‘astuto’, em oposigao aos olimpicos, diante de quem os titas sucumbiram, nao sem antes combaté-los. A mitologia pode nos ajudar a diferenciar entre os olimpicos, com suas miltiplas formas de vida, e os titds, carentes de formas, de imagens e de limites”. Sabemos que para os gregos o maior ‘pecado’ foi o de hybris. Poderiamos traduzir a imagem de Zeus confinando com seu raio os titas ao Erebo, como uma imagem que impée formas e limites, como a ago que coloca sob con- trole aquilo que representa a violéncia desmedida e sem limites, isto é, um excesso, A consciéncia que tiveram os gregos da necessidade de manter os tits, cheios de hybris, 4 orgulho e violéncia, nos limites do Erebo, o equivalente pagéo do inferno, foi substitufda no cristianismo por um outro tipo de repressao. Como veremos depois, 0 cristia- nismo se interessou fundamentalmente em reprimir os deuses cténicos as emogdes que eles constelavam. No Ambito das imagens, a repressio se concentrou no grande deus Pa, que personificou o Satands cristao. Isto significou que os titas, que haviam personificado a maldade para os gregos, por assim dizer, puderam continuar desenfreados, e quanto eles representam na natureza humana nao foi refletido e, a0 longo da cultura ocidental, tem permanecido fora de todo controle. Através da cultura ocidental tem sido dificil reco- nhecer 0 titanismo, inclusive hoje em dia, quando sua presenga é tao opressiva. Para Plato os titds cram um’ enigma, pois nao eram nem deuses nem homens e, para nés, 0 que poderiamos chamar de natureza titfénica tam- bém continua sendo um enigma e continua sendo dificil detectar sua presenga em nés mesmos. Neste sentido, Ernst Junger (1993) contribui com a visao profética do século XXI como o século em que 0 coletivo sera gover- nado pelo titanismo. No mundo atual existem suficientes sintomas reveladores, onde predominam a tecnologia cientifica titanica, as comunicagdes globais, a politica ea criminalidade por toda parte, para se acreditar na profecia de Junger. Portanto, sera cada vez maior 0 de- safio que o titnico coletivo apresenta para a consciéncia individual. Da trilogia de Esquilo sobre Prometeu, s6 se con- servou uma tragédia completa, Prometeu Acorrentado, na qual, com a consciéncia tragica da idade madura, 0 poeta retrata claramente a psicologia dos titas, onde a converso de Prometeu é um de seus aspectos. Prometeu adere 4 causa de Zeus, mas continua sendo, em esséncia, um tita. Com sua conversao, Prometeu da mostras da 15 psicologia do oportunista: aceita com facilidade as condi- s0es daquele que é seu inimigo e trata de mimetizé-las, mesmo que, psicologicamente, se mantenha dentro de seu inato titanismo*. A primeira cena de Prometeu Acorrentado apresenta de maneira comovente 0 sofrimento de Hefesto quando acorrenta Prometeu em um penhasco com a ajuda de Forea e Violéncia, $6 com sua ajuda pode acometer se- melhante tarefa, e enti diz: “... Com o coragao tao ferido como o teu, hei de te sujeitar/ com faixas de bronze a esta desolada rocha...” (Aeschylus, 1961, 21). Imagino Hefes- to como o chefe de policia que prende um delinquente muito perigoso, mas que, ao fazé-lo, sofre porque sente que esté aprisionando uma parte de si mesmo. Hefesto diz: “Odeio meu oficio, odeio a destreza de minhas pré- prias méos!” (Ibid., 22). Acorrentar o tita, provavelmente com a ajuda de “Ferga e Violéncia”, equivale a refletir sobre nossa natureza titanica. Nao se trata de uma ta- refa que deva ser realizada de uma vez por todas, pois acorrentar 0 tita 6 necessidade permanente. S6 este trabalho permite submeter essa parte aceleradamente titénica de nossa natureza, parte essa quase impossivel de trazer para a refiexao°. Como psicoterapeuta, minha preocupacao imediata ¢ de refletir sobre o meu proprio titanismo, que pode aparecer em teorias preconcebidas, atitudes missiondrias, técnicas, fantasias de manipula- so, estratégias astutas e na destrutividade tao comum a natureza humana. E demais dizer que tenho que avaliar mesmo assim a carga de titanismo que traz 0 paciente que senta A minha frente. ‘Sao Paulo 6 0 exemple histérico mais conhecido de conversao religiosa; sen caso incorporou ao cristianismo muitos tragos do judaismo, tais como culpa e a ropressso, ‘Ver C. G. Jung. 1960. The Struture and Dynamics of the Peyche, Vol. 8, pardgrafo 242, onde apresenta a reflextio como um instinto, 16 Na ultima cena da tragédia de Esquilo, Hermes aproxima-se de Prometeu acorrentado, tal qual um tera- peuta aproxima-se de um doente mental recluso em um hospital psiquiatrico. Através do didlogo que se trava, Esquilo apresenta um retrato extraordinariamente cego em suas proprias ideias. No final do didlogo, Hermes se rende diante de um caso tao desesperado e diz: “E evi- dente que tua deméncia tem aumentado” (Ibid., 48). Logo pronuncia uma frase que, para mim, tem valor profético: “Bem, se tivesses liberdade e poder, serias insuportavel (Ibid., 49). Quando Hermes diz: “Minhas palavras condu- zem apenas a mais palavras, sem nenhum efeito” (Ibid, 50), fica evidente que Esquilo conhecia a psicologia dos titas. Este 6 o tipo de situacao lamentavel em que a gente tropeca em psicoterapia; aquela na qual se produz uma ” suposta conversa terapéutica com um tita e em que ocorre um didlogo sem reflexao, um blablablé que nao conduz a parte alguma. Prometeu persiste em sua atitude desa- fiante com palavras tipo: Que o selvagem estrondo das ondas do mar confunda 0 curso dos astros celestes; Que (Zeus) levante meu corpo e o precipite no negro Tértaro até as cruéis torrentes de um destino inelutavel: Eu sou aquele a quem ele ndo poder aniquilar. (ibid., 51). Depois dessas palavras, Hermes renuncia a possibi- lidade de negociar com Prometeu, ao dizer-Ihe: Pensamentos e palayras como essas so as que costumamos ouvir de um lunético. Sua stiplica mostra todos os sinais do delirio: e nao vejo sinal algum de melhora, (Idem). Vivemos num mundo governado por um impulso futurista. Prometeu se vangloria: “Em seus coragoes eu v7 semeei a cega esperanga’ (Ibid., 28); frase que, escrita uns Vinte e cinco séculos antes, parecia estar respaldando a profecia de Junger sobre o futuro titénico. Esse impulso futurista reprime a esséncia dionisiaca do homem num grau inimaginével. A expectativa futurista nos arranca do aqui-e-agora e, desse modo, de nosso corpo, Em outras palavras, nos arranca do tempo e do espaco de Dioniso. A eterna promessa de um futuro feliz parece ser a cenoura atrés da qual corre o asno humano do titanismo. Para mim, o titanismo abarca um espectro que vai da figura do diabélico Menetio até a de Prometeu com sua promessa de uma vida melhor no futuro: duas figuras sem formas. E comum observar esse espectro no mundo de hoje: fantasias futuristas sobre a felicidade que brindaré © tiltimo desenvolvimento tecnolégico, acompanhadas pela mais destrutiva maldade. Trata-se de uma visdo carente de interioridade, na qual o homem 6 se mobiliza por impulsos aparentemente surgidos do nada e que se expressam através de um mimetismo superficial. Creio que a tarefa daqueles que nao desejam ver-se arrastados pelo titanismo coletivo de hoje consiste em pensar cons- tantemente no titanismo e aprender dele; tentar tornar-se consciente dele e, o mais dificil de tudo, refleti-lo, Apartir do complexo de Fidipo freudiano e dos arqué- tipos de Carl Gustav Jung, a psicologia tem encontrado na mitologia uma fonte de analogias para a natureza do homem. No entanto, existe hoje a possibilidade de encon- trar, nos estudos sobre a evolugao do homem, intuigses afins que podem ampliar e respaldar 0 material mitolé- gico. Hesiodo, Esquilo eo mito érfico tem proporcionado analogias para uma sombra in vivo, que ndo tem outra imagem nem configuragéo sendo a do excesso. Mas, na atualidade, este excesso pode estar associado aos impulsos biolgicos que se desenvolveram, tempos atrés, durante a evoluedo da raca humana, 18 Hoje em dia realizamos um elogiavel esforco para nos conectarmos imaginativamente com nossas origens. Os estudos sobre a evolugao e a pré-histéria, gracas a ajuda de novos recursos cientificos, inimaginaveis uns tantos anos atrés, tém muito o que dizer a respeito de nossa biologia e sua relagao com nossas complexidades psiquicas e conduta. Com a mesma necessidade de re- criar a origem do homem, esses estudos tém produzido resultados muito préximos da imagética grega sobre os titas. Colin Tudge (1995, 198), por exemplo, em seu fascinante livro The Day Before Yesterday, oferece-nos um retrato dos ancestrais do homem, que considero re- levante se tratarmos de aprofundar nossas percepcoes da natureza titénica: Os australopitecos nao eram, geralmente, ‘agressivos’ isto 6, nao mais agressivos do que costuma ser um leao ou um gato doméstico. Mas, assim como os ledes ou os gatos caseiros, podiam utilizar a agressividade como técnica necesséria para obter seus alimentos. No entanto, diver- samente dos ledes e de outros felinos que executam suas tarefas com a cautela prépria de um profissional, o método dos australopitecos assemelhou-se ao do chimpanzé: dar lugar & confuusao, ao dilaceramento e mutilacao; o método daqueles que andam em grupos. O professor Bernard Wood, da Universidade de Liverpool, tem assinalado que osnomes dados as primeiras espécies de Homo, de maneira geral, tem o propésito de sugerir que nossos ancestrais eram gente de temperamento reflexivo, talvez com o olhar colocado em seu glorioso futuro. Assim, foram denomina- dos como Homo habilis — o homem artesao-, ou melhor, Homo ergaster — o homem trabalhador. No entanto, eu concordo com Bernard que o apelativo Australopitecus hooliganensis teria sido mais acertado. Provavelmente nossos primeiros ancestrais homin{deos tiveram éxito, muitas vezes ao demonstrarem condutas sumamente desagradaveis, que 6 podem ser comparadas com as que hoje adotam os chimpanzés modernos, em relagao a outros animais. 19 PF la Shea ee a Ae hes ee) aero ee ae tamer ie Ao clucidar a fantasia historica sobre o Homo habilis e 0 Homo ergaster, Tudge descobre a sombra de muitas projegdes criacionistas. Segundo a imagética dos evolucio- nistas, ohomem tornou-se humano ao obedecer a impulsos biolégicos, en&o como consequéncia de um projeto de cria- a0 bem organizado. A evolugao do homem teve um senti- do oportunista. Se o Australopitecus hooliganensis tivesse sido um habil cacador como 0 ledo ou 0 gato doméstico, a humanidade nao teria evolufdo, Foi essa versatilidade quase ilimitada, cuja caracteristica era a espantosa im- provisaeao do hooligan, que abriu caminho para a huma- nidade. Sem estes impulsos, a raca humana teria ficado Presa na especializagao; mas o oportunismo lhe permitiu evoluir e sobreviver. A imagética érfica sobre um homem criado a partir das cinzas dos tit~is nao se distancia muito, psicologicamente falando, desta perspectiva evolucionista, A partir desse enfoque, podemos considerar como milagres da natureza humana o Australopitecus hooliganensis —o oportunista, semelhante ao tita, a quem podemos atribuir nosso desenvolvimento como humanos — e Dioniso, 0 deus do frenesi, a quem atribuimos o vinho, a tragédia e a cultura, Estamos, pois, na presenca de dois opostos na natureza humana, dois tipos diferentes de loucura, que participam constantemente em nossas vidas. Talvez fosse mais titil confrontar um termo psi- quiatrico como ‘inferioridade psicopética’ com esta visio que nos proporcionam os neodarwinistas, mais do que com outras fontes’. Para a sombra da psicopatia, nao "Blogio 0 modo como os gregos da época eldssica — Hesfodo, Kequilo e os “rficos — souberam detectar as condutas exeéntricas; neste sentido, Homero comeya A Tliada deserevendo o estranho comportamento de Agamenon para com Aquiles, seu até, como era chamado. Este estranho eomportamento € similar ao que, na psiquiatria moderna, denomina-se psicopatia, Se aeresoen: tarmos a estes fatos o enfooue evolucionista sobre o oportunismo da homent, Pferemos empliar nossa compreensio de wma das mais perigosas sombras ‘nos complexos humanos, 20 existem analogias no que a antropologia cultural tem denominado ‘sociedades primitivas’, pela simples razio de que a imagem que temos dela, na atualidade, 6 a de sociedades bem organizadas e ecologicamente contidas por formas. A vida que observamos nas grandes cidades modernas ocidentais e a imagem do homem empreen- dedor que faz a si mesmo, como modelo heroico, um tit desacorrentado e dominado pela soberba, ajustam-se mais ao comportamento do Homo hooliganensis do que ao do homem primitivo. O MITO ORFICO relata que Dioniso nasceu do uniao de Zeus, o senhor do Olimpo, deus da luz, criador de imagens, pai jubiloso e tolerante, com sua filha Perséfon arainha do mundo subterraneo, a de tornozelos bonitos, que personifica as escuras {orcas do invisivel reino dos mortos. De modo que podemos imaginar que Dioniso é 0 produto de opostos sumamente complexos. Continuando com esta imagética érfica, considera- mos a sedug3o e desmembramento do menino Dioniso, pelas maos dos titas, como uma imagem arquetfpica. O desmembramento é uma imagem de horror e uma meté- fora conhecida da loucura: na linguagem da psiquiatria, entende-se como uma psique partida em peda¢os, cindida, E importante entender que, diante dos mitos de ou- tros deuses do pantedo grego, os de Dioniso nos movem de maneira diferente. Com Dioniso nossa imaginagao se conecta imediatamente com os complexos mais arcai- cos da humanidade. Em outras palavras, com ele nos adentramos em niveis mais profundos da psique. A tao "Ver Rafiel Lopea-Pedraza, 1998, p12, para uma visao mais atual sobre 2 inferioridade psicopatica, O enfoque de Jung encontra-se em “Depois da eatastrofe", Em: Jung, 1964, Vo.10, 21 conhecida ideia dos gregos de ser 0 povo mais arcaico dos civilizados e 0 mais civilizado dos arcaicos encontra sua méxima significagao em Dioniso. Em As Bacantes, como veremos mais adiante, Euri- pedes nos fornece as mais cruéis ¢ espantosas imagens de desmembramento, na cena em que Agave despedaca seu filho Penteu. Fornece-nos também a descric¢éo que previamente fez 0 mensageiro sobre as ménades que se encontram nas montanhas, esquartejando animais ¢ devorando sua carne fresca; relato que nos mostra uma extraordindria descri¢ao do ritual dionisiaco, tal e qual ocorria num lugar afastado da geografia grega: » € 0 nosso gado estava ali, pastando na erva fresca, quando as mulheres o atacaram com suas ‘mfos nuas, Terias visto uma das mulheres pegar uma vaquinha que mugia, de tiberes cheios, para levanté-la pelas patas traseiras com seus dois bragos abertos. Outras pegavam nossas vacas e as dilaceravam de uma extremidade a outra, Terias visto algumas costelas, ou uma pata saltar pelo ar € pedagos de carne pendurados nos ramos dos pinheiros, pingando sangue, (Eurfpedes, 1954, 217). Os estudiosos modernos tém transmitido a ideia de que 0 orgidstico ritual dionisiaco do esquartejamento de animais era uma representacdo do desmembramento do menino Dioniso pelos titais*. O mito também é entendido 0 ritual de desmembramento foi representado de maneiras muito mais simbélicas do que com o rito eru¢ literal que se descreve em As Bacantes: por exemplo, como sacrificio ¢o devoramenta de uma erianga. Podemos afirmar que algumas emosSes dionisfacas, como rasgar a roupa depois de uma pega tragica ‘Ou a emogao prépria do duende, estao relacionadas com o desmembramento, ‘Vor “Reflexoes sobre o Duende”, Em: Rafael Lépez-Pedraca, 1997, 22 como uma descrigao antropolégica de canibalismo; neste caso, do devoramento de um deus, um tema que tem sido exaustivamente discutido pelos estudiosos das religides. O mistério cristo da Eucaristia vem ao caso, pois nos conecta, simbolicamente, com 0 nivel mais arcaico da psique. Assim, na imagem do desmembramento e inges- tao de Dioniso, temos o encontro do mito com a religido. E provavel que nesta imagem, que mescla religiao e canibalismo, esteja sendo expressa uma necessidade muito intima de humanidade. A imagem reveste-se de importancia primordial, porque toca um nivel que sempre estard presente na natureza humana. Em minha propria experiéncia como psicoterapeuta, © canibalismo se apresenta, geralmente, em sonhos de pacientes com cancer ou que tém histérias patologicas muito estranhas. Estes sonhos tém como caracteristi- ca que o sonhador come carne humana. Permitam-me ilustrar isto, de maneira indireta, com 0 exemplo de um paciente que sonhou que havia cura para o cancer, que consistia em comer carne humana. A “carne humana” que o paciente estava comendo tinha a aparéncia de um filé de pescado, que, de fato, ele havia comido essa noite. Ento uma voz lhe disse que as pessoas conheciam esta cura, mas que costumavam reprimi-la e, ao fazé-lo, ‘es- colhiam’ adoecer. 0 sonhador sentiu que escolher entre © canibalismo ou adoecer era uma escolha do ego, por isso deixou 0 assunto nas maos dos deuses. Aqui pode- -se especular sobre 0 movimento ps{quico que revela um complexo oculto no inconsciente coletivo mais arcaico, na noite dos tempos, quando o canibalismo fazia parte da sobrevivéncia humana: Olhar por tras da seguranga Da historia consagrada nos textos, dar meia volta E olhar por sobre o ombro até o primitivo terror. (®. S. Eliot, 1991, 51). 23 No livro Homo Nekans, cuja primeira parte é dedi- cada a recriar a pré-historia, Walter Burkert (1983) estuda a caga, a matanga, o canibalismo ¢ os rituais de sacrificio como componentes dos complexos que se forma- ram na aurora da histéria, e a isso podem ser atribuidas as origens da culpa primitiva’. No contexto da evolugao e pré-historia do homem, podemos perceber que esses complexos esto arraigados na natureza humana e que 0 sonho, que antes citamos, pode ser visto como um movi- mento de sobrevivéncia, gracas a uma regressao psiquica que conecta o sonhador com complexos primérios. Vejo 0 choque do divino menino Dioniso com as forcas titanicas como uma primeira iniciagao no processo dioni- sfaco da vida, como uma teletai dionisiaca’®, Se adotamos essa perspectiva arquetipica e de iniciagéio, a imagem presente no mito ser4 entendida como um drama inevi- tavel que tem lugar na infancia, no meio de todo 0 seu horror. Permite-nos ver e comegar a aceitar 0 chamado trauma infantil como a aparigdo dos tits com o propésito de despedacar e devorar o menino Dioniso. De qualquer maneira, nao posso imaginar uma in- fancia sem trauma, desde o ponto de vista arquetfpico que estou tratando de apresentar aqui, Recordemos que nossa visdo de infaincia esta impregnada tanto pela adoracao do menino da Sagrada Familia, quanto pelo paraiso moderno da Disneylandia, e isso ¢ a concepgaio da infincia como um perfodo unilateralmente puro, inocente e feliz. Portanto, Ver “Sacrifice, Hunting and Funerary Rituals", Em: Walter Burket, 1988. "Wer Walter Burket, 1987, p. 8. Neste livro Burket explora a etimologia de teletai, como segue: “Uma familia de palavras que, frequentemente, mistura-se eom mysteria 6 telein, ‘consumar’,‘celebrar, ‘iniciar’, etelesterion “o portal da iniciaeso’ © assim sucessivamente... No entanto, o fermo torna-se mais espectfi quando éusado para nomear um objeto pessoal, junto ao nome do deus em caso dative: realizar um ritual, destinado a um deus em particula ‘omesmo que ‘iniciar’ essa pessoa; a dionysoitelesthenai nos mistérios de Dioniso’™ 24, um enfoque arquetipico sobre o trauma infantil se opée a esta imagética tradicional e & tendéncia predominante, hoje em dia, de personalizar e literalizar essa mesma imagética. Se existisse uma infincia sem trauma, teriamos de imaginar algo de verdadeiramente espantoso; isto 6, uma alma nao vacinada, sem defesas, carente de terceira dimensao e sem emoctes; condi¢do que nos levaria a pensar em termos de hebefrenia ou de psicopatia, Por exemplo, em psicoterapia nés enfrentamos casos em que os pais ccultaram de seus filhos tudo o que se relacionava com a tragédia e a morte em suas familias. Portanto, por nao ter familiaridade com as emogées sérias e tragicas, aparece como consequéncia uma inelinacdo as mais peculiares e inimaginaveis sindromes, inclusive a estranhas depresses © a tendéncia a converter-se em uma personalidade sem ° formas. Isto nos conduz a considerar que esta crianca su- perprotegida que protagoniza o cendrio do mundo de hoje acaba se convertendo, invariavelmente, em um psicopata presungoso e brilhante, vazio de emogdes, Gostaria de insistir no enfoque arquetipico do trauma infantil. Para isso é necessério reconhecer que a unilateralidade de um enfoque pessoal, causalista e literalizado, tem impedido, no melhor do casos, a visdo arquetipica e historica que poderia possibilitar uma aproximagao da infincia em termos de iniciagéio. O menino Dioniso sendo dilacerado e devorado pelos titas pode ser visto como um modelo mitico da ini- ciagdo individual, iniciagao a que est sujeitoo ser humano © a qual deve softer em seus primeiros anos da vida. A visao distorcida da psicologia moderna, que consi- dera toda personalidade em fungao de sua infancia, tem colocado uma énfase excessiva nesta etapa. O complexo de Edipo, introduzido por Freud no comeco do século, em vez de ter sido uma metéfora excelente, foi literalizado e deu lugar a um escdndalo histérico. A desvalorizacao des- ta metéfora poderia ser vista como 0 inicio da distoreao. 25 Estamos seguindo Dioniso como deus de uma ieletai, de uma iniciacao; um deus que permite ver a infancia a partir de uma perspectiva tragica, Dentro desses termos, é meu interesse proporcionar um pouco de reflexio em um campo da psicologia moderna in- festado de projecdes inconscientes e de teorias sobre essa ctapa da vida. De modo que tem-se negado ou reprimido o enfoque arquetipico dionisiaco da infancia, com suas caracteristicas de iniciaco, e isso traz como consequéncia sua manifestacdo sob outros disfarces. Nao é dificil notar como trauma infantil tem obcecado a psicologia moderna ao longo deste século e tem dado origem a teorias reducionistas e esquematicas, Nao foram abertas novas perspectivas. Nos tltimos anos, © tema do trauma infantil tem sido apresentado com nome de ‘abuso infantil’, o que revela claramente uma manifestagao histérica coletiva, sinal de auséncia de qualquer perspectiva psicolégica. Neste ponto vale a pena dar uma olhada em outra classe de desmembramento: o que aparece no mito de Actéon, um primo de Dioniso, especialmente na manei- ra em que é referido em As Bacantes e por Kerényi. Na cultura ocidental, este mito sempre atraiu a atencdo, segundo testemunho de sua ampla e impressionante ico nografia. Muitos conhecem a histéria de Actéon, filho de Aristeu e Auténoe e sobrinho de Sémele, a mae de Dioniso. E uma historia trégica que foi relatada de diversas formas. A versio mais conhecida diz que Actéon, a quem Quiron havia educado para que fosse um cagador, surpreendeu Artemis enquanto esta se banhava. A deusa o castigou, convertendo-o em cervo, seu animal favorito que, nesta ccasido, seria também sua vitima. Os cinquenta caes de caca de Actéon destrogaram seu metamorfoseado amo, ¢ para Auténoe sobrou a atroz tarefa de reunir os ossos de seu filho (Kerényi, 1997, 146). Ao surpreender Artemis enquanto se banhava nua, Actéon transgrediu os limites arquetipicos da deusa virgem. O desmembramento posterior de Actéon ocorre ao nivel dos instintos: seus préprios c&es nao puderam reconhecé-lo. Auténoe, sua mae, recolhendo seus oss0s para junté-los, converte-se numa imagem que eu consi- dero uma metéfora perfeita para a psiquiatria: a recons- trugao da psique despedacada, por assim dizer, com a ajuda do arquétipo da mae. 0 mito de Actéon oferece-nos uma perspectiva diversa do desmembramento de Dioni- so e uma metéfora da loucura. E importante destacar que a histéria de Actéon no se converteu num ritual de desmembramento de caréter inicidtico, como ocorreu com a de Dioniso. Na Iiada, 0 grande poema, fonte da cultura ociden- ° tal, Homero se dirige a uma classe de guerreiros aristo- craticos, imbuidos de uma atitude heroica em relacdo a vida, pélo oposto a cultura dionisfaca, na qual nao existe nenhum interesse pelos heréis. No entanto, Homero nar- ra.a histéria de Licurgo de um modo que torna patente a forga psiquica do mito de Dioniso. Da a impressio de que este mito tem de ser narrado, apesar do interesse do ptblico de Homero em Dioniso. Diomedes nos conta a histéria como parte de uma reflexao sobre a luta contra 0s deuses. Comega seu relato dizendo: ... Nao sou o homem chamado para lutar contra os deuses do céu, Por conta de que haveria de ser! Nem sequer o po- deroso Licurgo, filho de Dryas, sobreviveu & sua longa luta contra os deuses do céu! Perseguiu as amas do frenético Dioniso através da montanha sagrada de Nisa; de suas méos, uma por uma, ia deixando cair no chao os sagrados implementos (tirsos), enquanto o assassino Licurgo as abatia com sua aguilhada de boi. Dioniso fugiu até en- contrar refiigio sob as ondas do mar salgado, onde Tétis 0 acolheu em seu seio, tremendo e totalmente acovardado pela perseguigao do homem (Homero, 1950, 120). 27 Nesta primeira aparigéo de Dioniso na literatura grega, ainda sem a contaminacio da elaboracao do cardter religioso do mito érfico ou pela descrig&o que Buripedes faz de Penteu, ao personificar a repressio de Dioniso mediante um governo titanico, podemos observar claramente as forgas cegas que querem destrui-lo. No relato homérico, temos a imagem de um grande deus, fugindo das foreas da destruigdo e refugiando-se em suas proprias emogdes, Esta narrac&o pode servir como modelo a considerar na infancia: 0 menino Dioniso vé como os titdis matam suas amas, como se fossem animais; muito cedo 0 menino tem uma experiéncia de terror onde vé a destruicao do Ambito feminino que o contém Seu tnico recurso é buscar reftigio no seio da Grande Mae, no fundo do mar ou, em outras palavras, mover-se regressivamente até o inconsciente. Nao existe descricao mais viva do trauma arquetipico na infncia do que este rolato de Homero. O menino Dio- niso, chorando de terror, é uma imagem de sua ‘proeza’ como menino divino: a expresso das emogdes na tenra idade. O pranto do menino Dioniso me recorda o que um escritor catélico francés, Leén Bloy, escreveu de como © pranto das criangas mantém o mundo em equilibrio; do modo como uma cosmologia, uma ordem do mundo nasce a partir dese pranto. Bloy acrescenta que este pranto pertence aos mistérios das conflagragées da luz, um “big-bang”, que eria e coloca em movimento todo o cosmo psicolégico. A visdo postica de Bloy deixa fora as explicagdes causalistas ¢ nos permite ver a crianca que chora como um fator de equilibrio para o Self. Mais adiante, no relato de Homero, Licurgo foi casti- gado com a loucura. Acreditando que estava podando uma vinha, matou seu préprio filho ao mutilar seus membros. Assim, mesmo que nao possamos observar nenhum trago heroico no comportamento de Dioniso, é evidente que 0 28 deus pode levar a cabo uma terrivel vinganca. Albert Heinrichs (1993, 18-9) diz: “Em suas epifanias miticas, ele exerce um poder destrutivo a partir dessa condigéo de aparente debilidade e inferioridade, como exemplifica 0 episédio sobre Lieurgo que aparece no Canto VI de A Ifada, no hino homérico a Dioniso e em As Bacantes”. A vinganga de Dioniso ocorre em muitos relatos, mas o terror que os tits provocam em Dioniso é tinico, Muitos autores tém recriado esse mito. Esquilo escreveu uma trilogia sobre Licurgo, na qual Dioniso é retratado como um intruso afeminado, e Nono recriou a hist6ria de uma forma mais elaborada”. BE conhecido um outro relato, em que Dioniso anda- va por um caminho quando, repentinamente, um grupo de titas apareceu na sua frente. Imediatamente os titas’ atacaram o deus e tentaram destrui-lo, mas Dioniso transformou-se em uma serpente e conseguiu escapar pelo matagal. No relato érfico e nas narragées homéricas, Dioniso, contudo, é um menino; mas nessa nova narragéio pode ser imaginado como um jovem, talvez com a aparén- cia andrégina atribuida por Euripedes em As Bacantes, mas capaz de proteger a si mesmo dos titas. Em vez de enfrenté-los, converte-se em uma serpente e se torna invi- sivel a seus olhos. Deste modo ele demonstra abertamente sua afinidade com Hermes. Este relato é 0 modelo que respalda minha ideia a respeito da obrigagao que temos de proteger nosso aparato psicossomatico por qualquer meio que tenhamos & nossa disposigao. Eu chamaria de ‘euidar da alma’, Dioniso cuidando de sua prdpria alma dionisiaca. Na terminologia da psicologia moderna, isto se expressaria fazendo referéncia a uma personalidade Ver Aeschylus, Edoni, frag. 61 (TeGF3). Michael Jameson. (1993) “TI ‘Asoxulity of Dionysus” En: Carpenter 2 and ©. Faraone, eds p45, 0.2 nos (1962). Dionysiaca. ‘Trad. W. H. D. Rouse. Loeb Classical Library. Tondo: Wiliam, Hotsemsann Le 29 introvertida, capaz de retirar-se rapidamente para sua propria natureza dionisfaca, a fim de encontrar ali a pro- tegao diante da destruigao titdnica. WALTER OTTO, em seu livro Dyonisus: Myth and Cult (1965), nos diz. que Dioniso é 0 mais psiquiatrico dos deuses gregos. Até onde temos avancado neste estudo sobre Dioniso, poderfamos dizer que essa afirmagao esta relacionada com a riqueza de imagens proporcionada por esse deus para refletir sobre os complexos mais demen- ciais. O nascimento de Dioniso oferece uma imagem do que poderiamos chamar ‘o trauma do nascimento’. Sua mae morrera durante o sexto més de gestacao e assim seu pai, Zeus, pegou o menino, que ainda nao estava formado, e 0 escondeu em sua coxa, de onde Dioniso nasceu depois. Uma lenda relata que Zeus deu o menino para a irma de sua mée, Ino, que, segundo as historias & respeito dela, tinha uma personalidade sumamente instavel. Outras narrativas falam de Hermes pegando © recém-nascido para entregé-lo as ninfas e a Sileno, que se converteu em seu tutor e o instruiu sobre sua propria natureza dionistaca, em Nisa, Walter Otto (Ibid., 61 © gravura 7) atribui ao nome Dioniso o significado de “deus de Nisa” Dioniso, filho de Zeus, é portador de loucura. Vere- mos mais adiante que Dioniso é, em si mesmo, causa e libertacdo da loucu: a dupla natureza de Dioniso, segundo Pausanias: Dioniso bakkheios, aquele que enlou. quece os sores humanos, ¢ Dioniso /unios, aquele que os liberta desta loucura”!”, Poderiamos dizer que esta dupla natureza est no corago de rituais dionisiacos, como os "Ver Walter Burket (1985) “Bachie hla, Ems Corpentey, Faraone, eds., p. 73. nee 30 das ménades. Este Dioniso, que enlouquece as pessoas € que as liberta da loucura, pode ser pereebido como uma dindmica psiquica que s6 se torna evidente quando for expressa por uma imagem extrema, Mas pode ser também a expresso natural do ritmo dionisfaco da psique. Ruth Padel, em seu livro Whom Gods Destroy (1995, 101), diz que “a loucura é, em geral, uma invasao temporal”, Sua obra, em especial este livro, nos familiariza com a lou- cura através da extraordindria arte postica da tragédia grega, Valorizo especialmente sua contribuigéo nesse aspecto porque minha propria tese fundamenta-se em nos familiarizarmos com as complexidades da loucura e as possibilidades psiquicas de Dioniso. Esta possibilidade de experimentar a loucura e livrar-se dela pode ser consi- derada como outro tipo de iniciagao dionisiaca. Segundo’ Platao, a loucura dionisfaca era um dos quatro estados de possessao divina e era considerada uma béngao. No didlogo platonico Fedro, Sécrates afirma: “... conhecemos dois tipos de loucura; uma que deriva dos males humanos e outra quando o eéu nos liberta das convengoes estabeleci- das” (Platdo, 1978, § 265). Esta tiltima se refere a loucura telestética dionisiaca. Esta distingao explica claramente a loucura dionisiaca de iniciagao. No meu modo de ver, as iniciagdes dionisiacas ocorrem ao longo de toda uma vida, a fim de propiciar, constantemente, o movimento psiquico. Nao posso imagi- nar que a psique se mova sem que o trauma que produz abandone o estado prévio em que se encontrava. Penso que a iniciagdo comega na infancia, como na analogia mitica do desmembramento de Dioniso nas maos dos titas, e continua através da puberdade, da adolescéncia, juventude, maturidade e velhice, finalizando com a inicia- do A morte. Em outras palavras, para dar uma resposta mais adequada a cada nova etapa da vida. Fracassar no prosseguimento desse projeto pode significar doenca ou 31 paralisia psiquica. Sabemos entao que a satide psicosso- mética depende do fato de viver-se cada etapa da vida, psiquicamente, ‘Muito se tem especulado sobre a loucura em relacéo a criatividade. Muitas vezes, descreve-se 0 ato criador emergindo do caos, como em muitos mitos de criacao', Isto pode ser considerado como uma regressao ao caos do qual provém tudo o que é criado, Na loucura dionisfaca, observam-se semelhancas com este processo, embora nao esteja presente a fantasia do mito de criacéio que culmina num mundo ordenado. A loucura dionisiaca nao é uma criacéio mitica; trata-se de uma experiéncia vital, a partir da qual se produz um renascimento ps{quico. Em outro sentido, nao é exagerado especular que a necessidade a energia que as sociedades primitivas investiram na elaboragao de seus mitos de criagao, inclusive o do Géne- sis — mesmo que provavelmente estes tenham sido obra de uma psique coletiva —, sdo produtos de um estado psiquico semelhante ao da loucura dionistaca. Pode ser interessante confrontar a experiéncia da loucura dioni- siaca, que costuma proporcionar uma nova consciéncia, com a Joucura que dé lugar a um mito de criacdo, na qual ‘uma tribo encontra suas origens ¢ identificacdo. As vivéncias e intuigées que temos apresentado a respeito de Dioniso como causa e libertagao da loucura nos conduzem diretamente ao ambito das emogées. E. R. Dodds (1960, xvii), em sua introdugao a edic&o inglesa de As Bacantes, descreve as conflitivas emogdes presentes na experiéncia dionisiaca: . uma mistura de exaltagio e de repulsa supremas; 20 mesmo tempo sagrada e horrivel, de plenitude e de im- Para estudar a psicologia dos mitos de criagdo, veja-se Marie-Louise von Frans 2972 Bm mulios dos mits de avago tvlgaon pola antropolog, odemos cbservar a psigue husmana tratando de criar, com wrgencia, tea ordem a partir do caos, Sig 32 pureza, um sacramento e uma profanagéio — um conflito violento de atitudes emocionais, similar ao que se observa em todo o texto de As Bacantes e que se encontra na raiz de qualquer religiao do tipo dionisfaco', Esta passagem 6, em si mesma, uma li¢ao psiquid- trica, Como ninguém, Dodds mostra o conflito dionisiaco na ambivaléncia das emogoes, corroborando assim a afirmagao de Walter Otto sobre Dioniso como o mais psiquidtrico dos deuses. Foi Eugene Bleuber quem des- creveu a ambivaléncia como o sintoma secundario da esquizofrenia, Na psicologia junguiana, muitas vezes, explica-se a ambivaléncia fazendo analogia com o conto de fada Hansel ¢ Gretel, no qual duas criangas se dao conta de que estao perdidas no bosque. Caem nas gar- ras da bruxa, que os atraiu até sua casa, feita de pao de gengibre e chocolate, Muitas das interpretagdes desta hist6ria tendem a reduzi-la ao complexo materno; isto 6, aos sentimentos ambivalentes criados pela mae, como ‘um componente nas enfermidades mentais. No entanto, com a passagem de Dodds, podemos ver uma imagem que retine, intimamente, a ambivaléncia eo desmembramento e que nos permite imaginar 0 desmembramento interno da pessoa que apresenta ambivaléncia, como sintoma de uma patologia severa, Aristételes concebeu a tragédia como uma catarse — uma purgacdo das emogées. Em nossa época, William B. Stanfor, em sua obra Greek Tragedy and the Emotions (1983), expée que a arte dos grandes poetas tragicos con- sistiu em transmitir emogdes para a audiéncia®*, Parece que esquecemos que o termo ‘emocao’ deriva, originalmen- te, da palavra pathos (Dodds 1980, 177), por sua vez raiz ‘Bm Dodds (1980) pode-seconsultar uma passagem com otitulede“Apén. dice sobre ol Menadismo" Vor “The Centrality of Emotionalism’”. Em: W. S. Stanford, 1988, cap. 1. 33 do termo ‘patologia’. O enfoque cientificista da medicina moderna tem excluido a possibilidade de considerar que a emogao torna-se patoldgica e, portanto, pode ser a origem de uma enfermidade, E esta exclusio nao ocorre apenas na medicina; na psicoterapia moderna, 0 excesso de teo- rias, conceitos, redugdes e técnicas terapéuticas constitui um obstaculo para que a pratica se centre na emocdio. O interesse primordial na prética psicoterapéutica é, preci- samente, a patologia, mesmo quando nao seja facil ver os problemas psicolégicos em fungiio das emogées. Stanford (1983, 1-2) lamenta, ao referir-se aos estudos sobre a tra- gédia grega —a arte das emocdes —, que se careca de um catdlogo idéneo das diferentes emogoes. Mas a queixa de Stanford também ¢ valida para a psicoterapia moderna. Necessitamos saber mais a respeito das emogdes e como diferencié-las. Apesar disso, nao existe um livro onde possamos aprender sobre as emogées, pois apenas nossa prépria experiéncia pode nos ensinar. Stanford nos proporcionou uma sintese retrospec- tiva do processo de repressiio das emogées pelo cristia- nismo: 0 modo como os padres da Igreja reprimiram a emogao, ao centrar sua censura na tragédia. Por exemplo, Tertuliano condenou “o despertar da raiva, da dor, do frenesi e de outras emogées violentas similares” (Ibid., 5). O cristianismo edificou-se sobre esta repressao, ainda que, ao mesmo tempo, devamos compreender que nao foi uma prerrogativa do cristianismo. Ja no século V a.C., percebe-se uma brecha importante, por assim dizer, entre o racionalismo grego — sem mencionar 0 platonismo pitagorico — e a poesia tragica. Psicologi- camente falando, a repressao é inerente & dinamica da configuracéio arquetipica prépria de Dioniso. Por alguma razéio, Dioniso é o deus mais reprimido. Parece que re- presenta uma forga cuja repressao é inevitavel. Mesmo que a repressao hist6rica de Dioniso tenha sido coletiva, 34 6a experiéncia individual ¢ a reflexdo sobre esta expe- riéncia que proporciona uma consciéncia da repressao em sua configuragéo arquetipica. Paradoxalmente, a consciéncia sobre Dioniso s6 6 possivel através da re- pressio, que atua como um ritual propiciatério do deus. ‘Um exemplo evidente é 0 do aficionado ao vinho que, a fim de usufruir os beneficios do vinho, deve dispor das ovasides apropriadas para bebé-lo, porque, do contrario, se transformardé num alcoélatra. Através da repressao, pode-se conectar e domar as forcas dionisfacas. EXISTE uma passagem magnifica na Introducéo de Dodds (1960, xii) em As Bacantes que eu gostaria de considerar em seguida: ¥ Foram os alexandrinos e sobretudo 0s romanos — com seu pratico funcionalismo e sua alegre torpeza em todos 08 assuntos do espirito — quem ‘compartimentalizaram’ Dioniso como ‘o alegre Baco’, o deus do vinho que se faz acompanhar por um grupo de ninfas e satiros libertinos. Como tal, foi adotado dos romanos pelos pintores e poetas do Renascimento e foram eles que, por sua vez, modela- ram a imagom com a qual o mundo moderno o deserove. Se queremos entender As Bacantes, nosso primeiro passo dove ser o de desprezar tudo isso: esquecer as pinturas de Ticiano e de Rubens, esquecer Keats e seu ‘deus das tagas bebidas sem respirar e da alegria vivaz’, para recordar que o que hoje chamamos orgias nao sao orgias, mas atos de devorao... e que, ser possufdo por Dioniso néo é uma ‘celebragio’, mas um tipo particular de experiéncia reli- giosa, a experiéneia de entrar em comunhio com Deus. Obviamente Dodds teve um profundo interesse pelo aspecto mfstico da experiéncia dionisfaca. Mesmo que, de uma maneira ou de outra, este aspecto mistico tenha sido reconhecido por outros estudiosos, Dodds, no entanto, dé a ele uma énfase especial. Sentimos que ele estava 35 muito preocupado com a forma como a historia distoreeu e arrebatou de Dioniso sua significacdo religiosa. Em sua biografia intitulada Missing Persons, Dodds (1977) transmite seu interesse pelas experiéncias irracionais; obviamente refletiu muito sobre a experiéncia da “comu- nhao com Deus”®, Até onde tenho conhecimento, a epifania de Dioniso proporciona o que se pode chamar de uma experiéncia mistica, embora bastante diferente da tradicao mistica na vida religiosa ocidental. No caso dos misticos da tradi¢ao crista, a experiéncia suprema se apresenta, para dizer de forma geral, como uma luz. que emerge do nada, como uma iluminacao ou revelagao, que provém de uma atitude unilateral. Alguns estudiosos chamaram essa atitude de antitese de Deus. Através da ascese, o mistico tinha a possibilidade de esperar até que a visio Dei se apresen- tasse; o seguidor de Dioniso, pelo contrério, parece cair num estado repentino de possesso pelo deus, Tratava-se de uma experiéncia emocional, vivida no corpo. Dodds enriquece nossa visio da experiéncia dioni- siaca ao abordé-la de um ponto de vista religioso, como “uma comunhéo com deus”, uma religido vital e sentida por seus adeptos, como pudemos ver em As Bacantes de Eurfpedes. No entanto, Dioniso faz sua epifania nao s6 nesses estados extremos de possessio, em meio a uma orgia béquica. Na minha forma de ver, as epifanias de Dioniso séo arquetipicas e, portanto, incomensuraveis. Podemos detecté-las de muitas formas quando intervém na vida de uma pessoa, seja para enriquecé-la, seja para destrui-la. Inumeraveis experiéncias dionisiacas podem sueeder dentro dos limites arquet{picos de Dioniso. Concordo com a reacao de Dodds diante da maneira pela qual a histéria tem distorcido esse aspecto mistico e "Ver *Universal Question Mark", Em: Dodds, 197, 91 e ss. 36 religioso de Dioniso, aspecto em que podemos encontrar seu mais profundo significado e onde encontramos um modelo de possessdo causada pelo deus. Contudo, eu diria que Dioniso sempre se manifesta de forma distor- cida, porque isto é parte de sua natureza. Se tentarmos idealizar Dioniso, estaremos percebendo-o pela perspec- tiva de um arquétipo diferente; de um ponto de vista apolineo, por exemplo. Isso provocaré uma indefinigao na imagem, consequéncia da confusao dos arquétipos. Em outras palavras, seria uma visdo que estaria fora dos limites arquetfpicos de Dioniso, que nao levaria em conta a distoreao natural do deus ao provocar uma distoreao de natureza diferente. Devemos nos manter dentro dos limites arquetipicos de Dioniso e prestar atencao a arte dionisiaca, para ver que a emogéio vem acompanhada pela * distoreao. Pensar na emogio per se é tolice. Dodds faz uma excelente argumentacao sobre Dioniso ‘compartimentalizado” que seria “o alegre Baco”; no en- tanto, de um ponto de vista arquetfpico, este Dioniso, na companhia de seu grupo de ninfas e satiros, tem uma exis- téncia valida e uma psicologia propria. Dioniso é 0 deus das festas; tradicionalmente, ele e Afrodite so os patronos dos banquetes e simpésios. Um Dioniso “compartimen- talizado” pode ser considerado também como uma forma indireta de repressdio, Quando se glorifiea Dioniso como ‘o alegre Baco”, as emocdes religiosas da orgia dionisiaca eo sentido tragico da vida sao reprimidos. A passagem de Dodds que citamos estimulou minhas ideias e me convida a revisar as imagens de Dioniso nas obras dos grandes mestres da pintura; tarefa que, sem dtivida alguma, ul- trapassa os limites deste livro. No momento, bastara d estacar que o interesse de Ticiano e de Rubens em Dioniso aconteceu, paradoxalmente, numa época em que houve uma reconexdo com as divindades pagas e, apesar disso — seguindo nossa linha de pensamento —, uma época 37 em que se reprimiram os aspectos misticos e trégicos de Dioniso ao retraté-lo como “o alegre Baco”. Parece que Ticiano, em sua juventude, foi impul- sionado por uma espécie de entusiasmo extrovertido em diregao ao tema baquico, Devemos recordar que foi um momento hist6rico no qual a psique ocidental comeca a sofrer a ansiedade cultural, que o conflito intimo en- tre o monotefsmo do cristianismo e 0 descobrimento do paganismo haviam engendrado. Rubens oferece uma aproximagao mais complexa dos temas dionisiacos, como © mostra a série de pinturas sobre Sileno, Sentimos que nos retratos desta figura dionisiaca ele tentava conectar- -se com algo que, para ele mesmo, era sumamente obs- curo. Parece que Dioniso representou um tema que era atraente para Ticiano, e para Rubens um tema em que projetou complexidades obscuras, Suas obras néo foram a expressio de naturezas predominantemente dionisiacas, mas a expresso de um conflito histérico. A hist6ria da arte teve de esperar até o séc. XX, pelo aparecimento de um pintor, talvez 0 tinico, cuja oeuvre essencialmente dionisiaca. Nao ha diivida de que a arte de Pablo Picasso nasce de uma natureza dionisfaca, independentemente de se 0 tema que esteja trabalhando tenha surgido de sua interioridade ou de um modelo externo, Com Pablo Picasso, temos, finalmente, um grande artista cuja viséio provém de uma consciéncia dionisfaca, Poderiamos dizer que Picasso foi uma necessidade histérica. Desde suas primeiras pinturas sobre tourada, quando menino, até 0 autorretrato feito no final de sua vida, no qual reflete sua prépria morte, sua obra encontra-se sob a égide de Dioniso. Creio que agora podemos perceber a diferenca entre pintar um tema dionisfaco e pintar a partir de uma natureza dionisfaca, assim como podemos perceber a di- ferenca entre escrever sobre Dioniso e um texto que leve Dioniso em seu coragao. 38 Estas diferencas nos ajudam a refletir sobre a pers- pectiva dos grandes estudiosos dos classicos, a respeito de Dioniso. Sem diivida alguma, seus estudos sobre este deus esto cheios de mérito e estamos em divida com seus ganhos. Os estudos destes homens abarcam a filologia, a filosofia, a hist6ria da cultura e da arte e a antropo- logia, sem contar o legado dos estudos anteriores sobre 0s classicos. Grande parte de nosso conhecimento sobre Dioniso deve-se a esses homens de formagiio racionalista e, portanto, distantes do Ambito arquetipico das emogdes dionisiacas e da irracionalidade. Fica assim evidente por que qualquer assunto que tenha relagdo com as emo- goes é colocado de lado"”, Para a maioria dos estudiosos, resultaria impossivel viver uma vida dionistaca, ou ter uma natureza dionisfaca como Picasso. Nesse sentido, * Ruth Padel (1995, 26, n.16) escreveu sobre Dodds: “Seu trabalho, uma das bases para a revalorizagdo moderna da cultura grega, leva Dioniso em seu coragao”. Os estudio- sos dao a impressao de que Dioniso s6 existe nos textos gregos que sobreviveram; enquanto para outros, como os psicoterapeutas, por exemplo, Dioniso é uma realidade viva, que oferece possibilidades e valores muito além dos estudos classicos sobre este deus. Com respeito & proposigao de Walter Otto na qual afirma que Dioniso 0 mais psiquidtrico dos deuses, podemos apreeiar que, de uma maneira ou de outra, ou através da repressao que lhe é prépria ou mediante suas muitas e extravagantes epifanias, Dioniso tem uma poderosa presenca na psique. Como viemos sugerindo, a psicologia dionisfaca nao tem sido estudada. Na lite- ratura psicolégica, as aluses a Dioniso se reduzem a vagas e breves referéncias, Produzem uma impressao As excogdes a0 caso so alguns estudiosos eomo E. R. Dodds, William B, Stanford, Ruth Padel e Peter Walcott 39 de desinteresse ou, o que inclusive é pior, de um ponto de vista titanico, que s6 pode funcionar reprimindo Dioniso. Muitos dos estudos de psicologia deste século tem sido realizados no norte da Europa e Estados Unidos. A majoria dos psicdlogos, especialmente os junguianos que herdaram 0 conceito de Jung sobre os arquétipos, sao principalmente protestantes e judeus, cujas reli- gides, educagao e modo de vida proporcionam uma for- magao ética e uma consciéncia inclinadas para reprimir ou interpretar de forma errada o aspecto dionistaco da vida, Trata-se de um mal entendido geogréfico, his- térico, étnico e religioso. Nao deve ser uma surpresa que os psicdlogos modernos achem dificil compreender a relevancia e a presenca de Dioniso na psique. Ar- quetipicamente, Dioniso representa uma psicologia e, se nao se percebe ou respeita sua presenga, 0 conflito psiquico que isso cria nao 6 detectado, Gostaria que o leitor entendesse que estou trazendo para discussao algumas das qualidades que Dioniso pode oferecer & psicoterapia. No geral, estamos tao distanciados das emogées que propiciam a presenca de Dioniso, que a consciéncia desta distancia poderia ser a tinica atitude dionisiaca possivel. Neste sentido, é dificil imaginar, hoje em dia, um psicoterapeuta sensivel A presenca de Dioniso que fosse capaz de responder a partir de um nivel dionisiaco da psique e assim propiciar um anti- go atributo do deus: a cura, A experiéncia da anélise pessoal do psicoterapeuta e dos estudos de psicotera- pia junguianos, hoje em dia, aparenta ser apenas 0 cumprimento de um requisito académico, De maneira nenhuma isso pode ser dionisiaco, Com a repressao do Dioniso emocional, aparece a repressao do corpo. Ivan Linforth (1973, 327) diz que 0 corpo € sempre dionisfaco; disso podemos deduzir que 40 Dioniso sempre é 0 corpo". Isto significa abandonar o intelecto e estar no corpo, sentir o corpo. Para mim, o tesouro mais valioso que se possa aleangar em psico- terapia 6 o corpo emocional ¢ isto, obviamente, esta relacionado com Dioniso. Poderiamos dizer que existe um Dioniso em nosso corpo, que esta esperando a fim de ser contatado e nos dar acesso a riqueza de suas emogées e sentimentos. Relacionado com minhas reflexdes sobre Dioniso e 0 corpo, existe um legado pictérico sobre os ritos de iniciagao dionisiaca, nas descrigdes que contém os afrescos da Villa dei Misteri em Pompeia, que tem um especial interesse. Os estudiosos se viram atraidos, na sua maioria, pela flage- lacdo representada em um dos afrescos, claramente como parte desses ritos de iniciagdo. I interessante notar que 0s misticos cristdos também praticaram a flagelacdo como uma etapa para a visio Dei. Os misticos cristaos mortifi- caram 0 corpo com a ideia de negar e reprimir os desejos da carne e do mundo material, para assim alcangar uma vida plenamente espiritual. Foi concebido como uma as- censdo e uma ascese espiritual. Contudo, eu me atreveria a sugerir que, vivendo em uma comunidade monéstica e ansiando estar a s6s com Deus, que era o propésito final do mistico segundo Sao Joao da Cruz, a mortificagao mistica foi, na realidade, uma ativacao do corpo emocio- nal inconsciente, o veiculo para a experincia mistica. A flagelacdo nas comunidades dionisfacas de Pompeia foi parte da iniciagaio em Dioniso e isto pode-se entender como ‘uma experiéncia interior do corpo emocional ao iniciar-se em Dioniso. Num sentido geral, a experiéncia interior do mfstico cristo apontou para a viséo contemplativa de ‘Sentimos que, apesar de serem cheios de entusiasma, os estudiosos sobre Dioniso tenclem a ser romanticos e intelectuais, a ponto de excluir 0 corpo. Por este motivo, a contribuicao de Linforth é tao importante, 41 Deus, mesmo que, provavelmente, tal contemplacdo tenha sido mais dionisiaca do que costumamos pensar. Pode- mos imaginar que, ao experimentar a flagelacdo, tanto 0 neéfito quanto o mistico eram induzidos a uma espécie de loucura, Poderiamos, inclusive, igualar a flagelacéo com 0 desmembramento e, nesse sentido, compreendé-la como a atualizagio do mito dionisiaco (sparagmos). Vista dessa maneira, a flagelacdo fica demarcada dentro da loucura divina de Dioniso. O homem ocidental, especialmente, tem tido muita dificuldade em assumir sua vida interior. Os estudos evolucionistas modernos proporcionam um retrato neo- -darwiniano tao convincente do modo como essa dificul- dade foi se manifestando: Entre as muitas coisas sfbias que Marvin Minsky diz em seu excelente livro The Society of the Mind (Simon & Schuster, New York, 1985), esta o fato de nosso cérebro ser um érgao, produto da evolugao, que foi selecionado para a observacdo e para a relacdo com o mundo exterior © que, seguramente, nao foi selecionado para o autoe- xame. Em resumo, somos, por condigéo inata, maus de introspecgaio, Nosso fracasso em perceber a natureza de nosso préprio pensamento, ou a natureza da consciéncia que nos permite concordar com esse pensamento, ou das palavras que outorgam uma ordem a essa consciéncia, é, sem dtivida alguma, uma manifestacao dessa incapacidade (Tudge,1995, 252). Por causa dos esforgos do homem para sobreviver, a extroversdo se desenvolveu em detrimento da intro- verso, que poderia ter-Ihe proporcionardo um maior conhecimento de si mesmo e uma visdo interior. Este enfoque evolucionista nos ajuda a perceber a torpeza e a deficiéncia de tudo o que est relacionado com a vida interior. Situando-os neste contexto evolutivo, os tipos psi- colégicos junguianos, extrovertido/introvertido, adquirem 42 uma nova dimensao. A tendéncia para a extroversao se converte numa necessidade compulsiva de sobrevivéncia. Isto pode ser conectado com o impulso exagerado do tita, Diante desta desvantagem evolutiva, nao devemos nos surpreender com 0 fato de que qualquer método seja vé- lido, inclusive a flagelagao, para introverter, para tentar entrar em contato com essa faisea divina de nosso interior. Cobra sentido que Jung tenha adotado a maxima dos al- quimistas sobre o opus como um trabalho contranaturam, para empregé-la como uma metéfora de sua concepgdo da psicologia. O ser humano nao se desenvolven em direcao a vida interior; por isso esta sempre ser a aventura de uns poucos, daqueles cuja extroversao prépria do ser humano 6, a0 mesmo tempo, um conflito e um desafio, Os estudos sobre a evolugio aos quais temos nos referido permitem-nos dar um enfoque mais amplo a re- pressio de Dioniso, levando em conta que a vida interior © 0 corpo emocional estao relacionados. De qualquer ma- neira, a partir de um ponto de vista neodarwinista, nossas especulagées sobre a repressao na natureza dionisiaca tornam-se quase superficiais, limitadas & nossa historia crista, ao relacioné-las com o impulso extrovertido que tem dominado na humanidade. Estes estudos nos ajudam a perceber melhor o fracasso frente a reflexiio; também nos ajudam a ver, com clareza, a quantidade de grupos e seitas que infestam esta ‘época de ansiedade’. As seitas prometem uma viséo interior, mas, na verdade, so ape- nas outra expresséio do mesmo impulso extrovertido que nos legou a evolucao humana na Terra, herdado hé cinco ou oito milhoes de anos, A teoria dos complexos de Jung diz que o tom emocio- nal de um complexo costuma indicar onde radica sua patologia e qual é a ferida forjada na histéria pessoal. No entanto, devemos diferenciar o tom emocional de um complexo, que nos permite fazer um diagndstico, da emo- 43 Go dionisfaca, que é arquetipica e faz a conexao entre a alma eo corpo’. Bem, Dioniso faz sua epifania no corpo nao s6 através das emog6es fortes, Suas vias séo também sutis; pode apresentar-se de uma forma que tem relacao com a intimidade de nossos prdprios sentimentos, Com grande discricao e sossegadamente, Dioniso nos faz saber que se encontra justo ali, no corpo Na tradi¢do oral da psicologia junguiana, as emogdes sao reconhecidas. Numa ocasido, quando se perguntou a Jung sobre a terapia de eletrochoque, ele respondeu que, pessoalmente, nao havia tido a necessidade de empregé-la porque descobrira que 0 choque provocado por uma emocdo produzia melhores efeitos, Com isso, Jung dé uma ideia viva do impacto da emogao na pré- tica psicoterapéutica. A primeira geracéo de analistas junguianos, como Irene Claremont de Castillejo e Bar- bara Hannah, estava consciente da caréncia de emocao na cultura moderna c pereebeu que sua expresso era sempre negativa, ofensiva e contaminada pela histeria, torpeza e ressentimento. Foi um ponto de vista histérico, baseado nos opostos negativo/positivo; uma perspectiva valida. Sua ideia consistia em que a exteriorizacao das emogdes negativas deveria ser vivida totalmente até converté-las em emogées positivas. Como alternativa, 0 método da imaginacao ativa de Jung oferecia uma técnica para relacionar-se com o inconsciente. Seu valor foi ter oferecido ao homem moderno uma via individual para ‘corrigir’ a brecha entre o consciente eo inconscien- te. Mas temos visto que, no contexto junguiano, Dioniso permite uma perspectiva arquetfpica para relacionar-se Um terapeuta experimentado esta a par dos muitos cazos em que o paciente nao € consciente de seu corpo ou, para dizer de uma maneira mais safc, de que 6 inconsciente inclusive da mais comum das enfermidades que poderia padecer 44 e para diferenciar nossas emogdes, como uma via de acesso a0 mundo interior. ‘Tradicionalmente, entre seus muitos atributos, Sile- no foi reconhecido como o tutor de Dioniso. Imaginamos que ele ensinou tudo quanto é préprio da configuracéio arquetfpica e do modo de vida dionisiacos, Isto 6, a natu- reza dionisfaca deve ser educada. Poderiamos especular que, se a natureza dionisiaca nao for educada, pode per- manecer ‘selvagem’ ¢ ‘demencial’, incapaz de conectar-se com o sentido da realidade imediata, A iconografia retrata Sileno como um homem de idade mediana, calvo e de nariz respingado, psiquicamente lento e grotesco, um bebedor de vinho. Sileno carrega aspectos muito obscuros da psi- cologia dionisfaca e personifica essa espécie de sombra que Rubens projetou nele. Uma imagem como esta nao tem beleza apolinea; é uma imagem que nos faz pensar na estética dionisiaca da distorcaio. No entanto, é uma imagem apropriada para o psicoterapeuta interessado em ter Dioniso sempre presente. A imagem que os terapeutas usualmente tém de si mesmos est imbuida de uma forte personalidade académica; ¢ dificil encontrar terapeutas que aceitem a depressiio, com sua lentidéo, no corpo e na psique. Vem-me a mente 0 Dr. Gaché, admiravelmente retratado por Van Gogh, como um doutor deprimido, capaz de apoiar e conter a depresstio de seu paciente, a fim de constelar, dessa maneira, um nivel mais profundo do inconsciente. Sinto que esta é uma reflexdo valida, pois aponta para a possibilidade de que se constele uma psicoterapia dionisiaca na atualidade. Em outro livro, trabalhei a imagem hermética do analista, capaz de constelar Hermes e de lidar com este aspecto nada digno da personalidade (Lépez-Pedraza, 1999, 19-20). Seguindo com esta linha de pensamento, Sileno oferece uma ima- gem arquetipica para que o psicoterapeuta possa conste- lar e ‘ensinar’ uma psicologia dionisiaca e, assim, ‘ler’ ¢ 45 diferenciar as emogdes. Se desejarmos nos aproximar da psicologia dionisfaca teremos de nos familiarizar com a imagética dionisiaca e com as emogdes que ela contém, Mais importante ainda, devemos desenvolver uma me- méria dessas emogbes, porque essa meméria é essencial para nossa aprendizagem. A psicologia dionisiaca é arraigada nas emocées no viver a vida como destino, Buripedes nos introduz na consciéncia deste estado em sua tragédia Alceste, quando 0 Coro diz: ‘Tenho procurado em muitos livros, Tenho estudado as teorias dos astronomos, ‘Tenho procurado inumeraveis argumentos. No entanto, nao tenho encontrado nada mais poderoso do que o destino, (Eurfpedes, 1953, 151). Acredito que estas palavras do Coro tém um grande valor, no sentido de que a psique é liberada de todo o lastro do conhecimento e das ideias quando nossos complexos — em outras palavras, nossa hist6ria — se transformam em consciéncia de nosso destino, Para mim, poder contemplar as grandes afligées da vida — os complexos paralisados — como destino dé lugar a uma ampliagéo da consciéncia, a uma maior tolerdncia. AO LONGO da histéria do Ocidente, tam existido muitas comunidades vinculadas & cultura dionisiaca. S6 temos de imaginar 0 grupo de ménades se dirigindo a montanha para celebrar o ritual dionisiaco como as integrantes de uma comunidade, de um thiasos. Este é 0 modelo classico de uma comunidade, sociedade ou clube do tipo dionisfaco, Os estudiosos modernos tém prestado atengao a este aspecto coletivo de Dioniso, tanto na épo- ca grega quanto na romana, Nilsson, em seu livro The 46 Dionysiac Mysteries of the Roman Age (1975), estuda o modo como pequenas comunidades conservaram viva a tradigao dionisfaca das iniciagdes rituais, adequando-as aos tempos que estavam vivendo. A ideia destas diversas comunidades dionisfacas nos tempos antigos desperta nossa imaginacdo. Uma via para aprender psicologia e modo de vida dionisiaco sao as descrigdes que os estudiosos clssicos fizeram dessas antigas comunidades dionisiacas. De es- pecial interesse 6 0 thiasos das ménades, porque 6 uma das mais arcaicas e porque podemos conhecé-lo, gracas 8 plasticidade com que Euripedes apresenta 0 Coro de ménades em As Bacantes. E importante recordar que eram comunidades religiosas, embora sua religiosidade nao esteja relacionada com as normas e formas do que temos chamado de ‘grandes’ religides e, menos ainda, com a psicologia do sectario. O culto a Dioniso requer um con- tinente, no qual a imaginagao possa expressar a si mesma plenamente; e esse continente apropriado foi encontrado no thiasos, Deve-se recordar que o culto a Dioniso e seus festivais eram celebrados, na sua maioria, como um ritual comunitério ou no teatro, Walter Burket (1987, 48) descreve como funcionavam os antigos cultos religiosos: A falta geral de organizagio, de solidariedade e de coe- réncia nos mistérios antigos, que poderia parecer uma deficiéncia de um ponto de vista judaico ou cristo, 6 mais que compensado por alguns aspectos positivos, com os quais poderiamos simpatizar de imediato. A falta de uma demarcaedo religiosa e de identificagao consciente com o grupo se traduz na auséncia de qualquer fronteira rigida frente aos cultos rivais, assim como na auséncia de qualquer nocdo sobre heresia e sobre excomunhao. Os deuses pagios, inclusive os deuses dos mistérios, nao sentiam citime dos outros; formavam, por assim dizer, uma sociedade aberta. 47 Esta é a passagem esclarecedora, que nos faz pensar nas possibilidades de uma liberdade imaginativa em tais comunidades religiosas. Passemos a considerar, através da conexao indireta das manifestacdes dionisfacas na arte e no sineretismo do cristianismo, como sobrevive o culto religioso dionisiaco no mundo atual. Tenho interesse em ver 0 modo como se vive a vida dionisfaca em pequenas comunidades de hoje, onde a psicologia do thiasos é uma realidade. Em Andaluzia, a regiao da Espanha culturalmente mais antiga, os andaluzes vivem 0 sincretismo de sua cultura e enriquecem suas vidas com duas poderosas formas de arte dionisiaca: o canto, o violdo, o baile flamen- cos ¢ a refinada ¢ emotiva arte da tourada, desenvolvida pacientemente ao longo dos séculos, a partir do ritual de sacrificio do touro, A morte mantém uma poderosa pre- senga em ambas as manifestagées artisticas. O thiasos associado & tourada sao as chamadas pe- nhas ¢ terttilias, nas quais um grupo de aficionados se retine sob 0 nome de seu toureiro favorito, Percebemos que existe algo do antigo culto do herdi como matador de touro, ou do saerificio arcaico; mas, ao mesmo tempo, ‘tem lugar ali uma grande quantidade de conversagdes culturais, discussées e colocagdes relacionadas com a historia da arte da tourada, Quando os aficionados fa- lam e discutem sobre a tourada e os toureiros em suas penhas e tertilias, estao fazendo uma conexao, indireta porém muito real, com a imagem primordial do sacrificio do touro, que vem acompanhada de uma forte imagética dionisfaca. Mediante essas conexées indiretas ¢ com a ajuda da forma artistica dionisiaca, os membros das pe- nhas e tertilias mantém viva sua imaginagéio: a emocdo que produz a beleza da tourada, os riscos constantes que corre o toureiro, a meméria das grandes fainas e a morte de toureiros famosos, 48 A origem historica do flamenco que conhecemos hoje 6 incerta. Os historiadores do flamenco mencionam os di- versos fios que formaram a trama desta arte: os lamentos dos antigos gregos, romanos e judeus; os elementos mou- riscos e, de maior importdncia, a contribuigéo dos ciganos. O flamenco integrou todos esses elementos e continua demonstrando sua capacidade dionisfaca de incorporar influéncias culturais diferentes. Essas variadas correntes revelam os diversos niveis que o inconsciente coletivo an- daluz abarea. J. M. Caballero Bonald (1975, 23) anota: “O andaluz possui uma assombrosa capacidade de assimilar as mais diversas influéncias externas, transformando-s, com o tempo, em auténticas manifestagoes de sua propria e ancestral encruzilhada de culturas”. J A juerga é a expresso mais dionisiaca de todas. Consiste num grupo (thiasos) de cantores de flamenco e de aficionados que cantam durante dias, esperando que o duende faca sua presengs, esperando pela emogao que a mitisica propicia. Isso acontece quando a qualidade miste- riosa de um canto comove ao mesmo tempo todo o grupo. Pode-se dizer que se trata de uma emocao que surge do mistério da estética dionisiaca, As emogdes expressas em todos os cantos flamencos vao desde as mais superficiais em aparéncia até as mais complexas e profundas. O catélogo dos diferentes estilos desenvolvidos por este género de misica é impressionan- te; inclui as ligeiras sevilhanas até as obscuras tonds, martinetes, seguiriyas, peteneras. Este amplo espectro que pereorre o flamenco mostra as riquezas das possibilidades de Dioniso e aponta para uma diferenciagio coribantica, na qual cada um encontra a musica de acordo com sua psicologia’®. "Sem chegar a considerar se os cantos so superficiais ou se a emogo do eanto ge eonstelou fund, a emopio ¢ um acontecimento. Arica variedade desta 49 ‘Um sentimento idéntico ao do grupo dionisfaco pode ser encontrado nas confrarias (confraternidades, associa- goes). Estas associacdes esto vinculadas as igrejas pa- roquiais de Andaluzia e sao devotas de uma imagem em particular, especialmente de uma das muitas virgens criadas pela imaginagao andaluz; ou melhor, devotas das imagens da Paixéo e Crucifixao de Jesus Cristo, Estas imagens sao 0 centro das procissées rituais da Igreja Catolica, durante a Semana Santa. Mas na Andaluzia podemos perceber que a tradigao crista se combinou com um ingrediente original do flamenco, a saeta, uma voz que canta sem a companhia de instrumentos, enquanto a procissao se detém para esperar que a cangao termine, ‘Temos aqui um sincretismo, no qual prevalece a poderosa emocdo dionisfaca. Com o cristianismo, este sincretismo ‘tem perdurado: em épocas relativamente recentes, a misa rociera ganhou muita popularidade na Espanha, Trata-se de um tipo de canto flamenco associado ao culto da Virgem do Rocio. Esses cantos outorgam ao ritual da missa uma emocdio que nos faz. recordar os spirituals da comunidade negra norte-americana, No flamenco e na tourada podemos pereeber formas muito poderosas da arte dionisiaca. Contudo, estou cons- ciente de que alguns de meus leitores podem ter dificul- dade de aceitar tais formas de arte. Nem todo mundo pode tolerar um canto flamenco, sem acompanhamento de instrumentos, como 0 martinete, como quem escuta miisica classica, Trata-se de uma experiéncia que me faz pensar naquela competigéo a que se refere a mitologia, entre Mérsias, 0 mtisico dionisiaco, e Apolo, para exem- plificar duas maneiras de sentir e expressar a musica. Da mesma forma que, no meio do colorido e da beleza de uma ‘masica me record o coribantismo a relagio de um estilo de musica com a psicologia de uma personalidade. 50 tourada, nem todos podem tolerar a matanca do touro. Pode evocar repulsa, mesmo que essa repulsa faca parte da experiéncia dionisfaca, HA muito a dizer a respeito de Dioniso em relagao & misica”!, Na ampla iconografia dos satiros, essas estranhas criaturas com caracterfsticas animais, observa-se que quem forma a tropa de sdtiros usa mAscara e toca instrumentos musicais como a lira, a flautae a flauta-de-cana. A gente se pergunta que tipo de misica esto tocando; provavelmente despertava uma emogdo similar a que experimentamos ao escutar as flautas ¢ as flautas-de-cana do Mediterraneo, que so tocadas nos festivais de hoje. Aqui temos de nos referir a outra forma de misica, 0 jazz. Surgiu como expresso musical de uma minoria opri- mida, os descendentes dos escravos negros americanos e” desenvolveu sua forma basica em Nova Orleas. Era uma miisica improvisada, que se tocava depois de um funeral ¢ tinha um ritmo poderoso, para expressar emogio e criar uma consciéncia dionisfaca da morte. O jazz moderno tem esse principio dionisiaco; ele se desenvolveu e se manteve até aleangar reconhecimento universal. Para mim, 0 jazz tem sido a grande epifania de Dioniso neste século. Seus primérdios evocam a imagem da expressao moderna da musica satirica dionisfaca dos tempos antigos. O que os stiros representaram na imaginagio dioni- siaca grega se impde como um tipo de desafio tanto para 0s estudiosos como para os psicdlogos. Os estudos sobre os sdtiros so t&o esquematicos que oferecem pouco alimento As intuigdes psicoldgicas. Em contraste com as ménades, que também formavam parte da corte de Dioniso, os satiros sdo geralmente retratados todos com as mesmas 20s grogos exaltaram a musica coral das obras trdgicas como a maior expressao de sua arte, Desafortunadamente, sabemos pouco menos que nada acerea desta musica dionsiaca 51 caracteristicas: rostos semelhantes ao de Sileno, longa cabeleira, orelhas pontiagudas e rabo de cavalo; toeam seus instrumentos musicais, mostram conduta lasciva e estao embriagados de vinho. E obvio que representam a conexo com a esfera animal do homem e deveriam repre- sentar, deste modo, uma faceta importante de Dioniso, um aspecto animal que poderia ser vivido e adquirir signifi- cado dentro de seus limites arquetipicos”. O thiasos dos sdtiros nos faz pensar nos atuais grupos de carnaval, em que o traje e a maquiagem de todos os seus integrantes so idénticos, onde a individualidade da pessoa fica oculta por tras da mascara, e isso Ihe concede licenca para toda classe de comportamentos normalmente inaceitaveis. Atualmente a palavra ‘satirico’ é usada na literatura eno teatro para demonstrar a arte de degradar um tema, tornando-o objeto de ridiculo, provocando diversao, me- nosprezo e gozacéo. Nisto distingue-se da comédia, que desperta o riso simples. A sdtira 6 uma arte zombeteira e geralmente ¢ usada como arma, Dioniso 6 deus da comé- dia e também da tragédia. As pecas satfricas gregas nao sobreviveram; no entanto, existe um fragmento magnifico de Eurfpedes em sua obra Alceste que proporciona uma imagem da psicologia satfrica em agao. Héracles, em seu caminho até a Trécia, para onde se dirigia a fim de nego- ciar uns cavalos com Diomedes, chega & casa de Admeto, Numa combinagao de heréi com bufao satirico, Héracles, com certo descaramento, se dirige ao mundo dos mortos para devolver Aleeste a seu desgostoso esposo, Nesta peca Euripedes usa o tratamento satfrico da morte como um recurso da tragédia”. A forma como retrata Héracles, A faceta animal de Dioniso, exprossa nos sétires, deve ser vista como um contraste ao aspecto animal da loucura que trataremos na possessio de Agave, na diltima parte de As Bacantes, de Euripedes, Ver T. B. L. Webster, 1976, p. 5, onde escreve: ‘poga satiriea em 438 a.. leeste substituiy uma 52 tentando entender-se facilmente com o mundo dos mortos, 60 melhor exemplo que temos das possibilidades expres- sivas numa peca satirica grega. Podemos imaginar que a atitude em relagao a morte em obras satiricas expressava 0 aspecto bufonesco, fatuo e carieaturesco de Dioniso™. O tratamento satirico da morte através do heréi tonto poderia proporcionar uma imaginagao bastante ajustada para manter a morte perto do aqui-e-agora da vida. HA algo mais a considerar a respeito dos sAtiros. A natureza arquetipica de uma personalidade pode ser de- tectada na fisionomia da pessoa: um ‘filho’ de Artemis, de Héstia ou de Afrodite, por exemplo, tem uma fisionomia e uma maneira de ser especifica. Inclino-me a pensar que um grupo de ménades e sétiros que acompanham Dioniso pode ser considerado como a imagem arquetipica’ dos filhos do deus. Meu interesse no que acabei de dizer foi mostrar como a cultura dionisfaca é vivida e expressa em pequenas co- munidades, seja na Grécia, seja em Pompeia, Andaluzia ou Nova Orleas. Quis também propiciar uma aprendi- zagem indireta acerca da forma de expresso dionisiaca em diferentes culturas, pois, de outra maneira, poderiam passar despercebidas. A psicologia, dado seu interesse nas sociedades e instituigdes, deveria considerar as mil- tiplas possibilidades que oferece o agrupamento coletivo denominado thiasos. DIONISO foi venerado particularmente pelas mulheres. Seu culto parece ter sido uma experiéncia religiosa orgidstica, essa “comunhao com Deus” de que Dodds faz menedo. Se bem que realmente nao saibamos “*Poclemos achar uma analogia treita nessa cangao das comuni- dades negras em Cuba, que se intitula “El muerta se fue de rumba”, dando a ceatender que o homem morto se despede dancando. 53 © que significou o entusiasmo dionisfaco para as mulheres gregas, devemos nos perguntar de que forma esse culto, através do mistério e do éxtase, as alimentava e nutria, Podemos imaginar que as almas dessas mulheres estavam. generosamente satisfeitas com a experiéncia dionisiaca e, provavelmente, que essa experiéncia lhes proporcio- nava intuicdes, muito além do que hoje pode alcancar a nossa imaginagao. Os mistérios proveem a alma de uma dimenséo para viver a experiéncia religiosa que, no caso de Dioniso, significa sentir-se em seu proprio corpo, na emogiio particular do momento em que se esté vivendo. Podemos ter uma ideia do que Dioniso péde significar para as mulheres gregas quando observamos sua epifania na psique de uma mulher moderna. Permitam-me ilustrar essa epifania com dois sonhos de uma mulher venezuelana, de 52 anos de idade, casada, mae de trés filhos e cuja vida era dedicada ao lar. Em seu sonho inicial ela esté num deserto com um pequeno jarro, com Agua s6 até a metade; uma pequena poredo de agua que nao Ihe duraré muito. Este sonho mostra uma psique numa condi¢go bastante precaria, No segundo sonho a mulher est vestida de branco e danca descalga, em éx- tase, por quilémetros e quilémetros. Usta é uma imagem muito precisa de uma ménade. A palavra ‘ménade’ deriva de mania, que neste contexto remete a um estado de pos- sesso, Jane Ellen Harrison (1957, 388) diz: “Seu nome... representa um estado da mente e do corpo”. Entendo que a psique dessa mulher esta sedenta de Dioniso, De seu sofrimento produz-se uma experiéncia dionisiaca como remédio para sua secura e desolagao. Parece que, através de Dioniso, através dessa experiéncia corporal na qual o deus prové éxtase, a mulher se conecta com seu sofrimen- to. Creio que ha uma diferenca muito importante entre a experiéncia de conectar-se com o proprio sofrimento e simplesmente sofré-lo. 54 Costuma-se confundir a experiéncia dionisiaca com ahisteria. Por exemplo, Dodds, interessado nos estados de possessao, menciona, em Los Griegos y lo Irracional, dois inventarios sobre os estados de possessao na Anti- guidade: um de Hipéerates e outro de Euripedes. Deste modo, trabalha sobre os estados de possessio do coriban- tismo; mas, no apéndice que elabora sobre o menadismo, dé a impressao de que considera a possessio dionisiaca como um continente da histeria: “o que a tiopodoo de As Bacantes nos descreve é histeria submetida ao servico da religiéo” (op. cit., 254). Para mim esta 6 uma forma terapéutica de ver o menadismo, Canalizando a histeria para o continente de um rito religioso, 0 culto religioso mantinha a histeria, a cada dois anos, dentro dos limites e lhe proporcionava uma saida relativamente inofen” siva. No entanto, é necessério diferenciar a possessio dionisiaca da histeria, porque trata-se de dois estados diferentes. Uma ménade que danga esta possuida pela loucura divina de Dioniso e nao por uma histeria conta- giosa. Como mostra Niel Micklem em seu livro On the Nature of Hysteria (1996), a histeria esta relacionada a complexidades diferentes. De fato, supde uma auséncia de corpo psiquico, enquanto a possessaio dionisfaca é uma experiéncia genuina no corpo, como vimos no segundo sonho. Mas podemos acroscentar, seguindo Micklem, que a histeria, também sendo arquetipica, sempre est presente e disposta a se manifestar. A relagao entre Dioniso e Ariadne nos conta algo mais sobre o que o deus significou para as mulheres gre- gas. A imaginagdo grega aleancou seu mais alto nivel de projecao ao igualar o par Dioniso e Ariadne com Eros e Psique. Para entender as implicagées psicoldgicas desta relagéo, necessitamos rastrear as origens da familia de Ariadne. Sua mie foi Pasifae, a rainha de Minos; sua irma, Fedra, converteu-se em uma figura tragica. A 55 trdgica histéria familiar comeca com a bestial edpula de Pasifae com 0 touro, que deu lugar ao nascimento do Minotauro. Esta monstruosa descendéncia foi retida em Minos, dentro de um labirinto construido por Dédalo e onde, uma vez por ano, sacrificavam-se jovens de ambos 08 sexos ao Minotauro, Foi Ariadne quem deu a Teseu, 0 her6i que foi para matar o Minotauro, o fio para achar a saida do labirinto. Bem, 0 Minotauro no labirinto serve de analogia para as fantasias negativas que podem afligir emocionalmente a psique de forma destrutiva, Ariadne teve a sabedoria de usar o heréi para a tarefa de matar 0 seu meio-irmao, o Minotauro, Pode-se dizer que se trata de transformagao dos sentimentos negativos e das memérias de uma historia herdada (simbolizada pelo Minotauro no labirinto) para integr4-los A personalidade. Depois de matar o Minotauro, Teseu e Ariadne mar- cham em diregao a Atenas, detendo-se antes na ilha de Naxos. O que aconteceu ali tem servido de inspiragdo a poetas e muisicos. Ariadne cai numa espécie de transe na hora em que Teseu a abandona na praia e prossegue seu rumo para Atenas, Entao Dioniso apresenta-se diante de Ariadne e a torna sua esposa. Provavelmenteele 60 tinico deus que manteve uma relagdo monogamica; poder-se-ia dizer que assim imaginaram as mulheres gregas. Obser- vando esse matriménio mais de perto, podemos especular que Dioniso casou-se com uma mulher que havia integra- do seus sentimentos ¢ fantasias negativas, matando 0 ‘Minotauroe, desse modo, era a esposa adequada, Deveria- mos pressupor que uma relacao dionisfaca carrega tanto os sentimentos positives quanto os negativos ou, para colocar de outra maneira, a relagao contém a loucura ao assimilar tanto as atitudes negativas como as positivas, Os relatos sobre Ariadne dizem que ela morreu no parto, © que a aproxima do tragico ciclo dionisiaco. Talvez esta parte do relato tenha sido uma homenagem imaginativa 56 que as mulheres gregas da Antiguidade prestaram a todas as mulheres que morreram ao dar & luz. ‘Até onde tenho compreendido, a tinica novidade que realmente tem acontecido na historia da humanidade é o salto para diante, dado pelas mulheres recentemente, a0 se moverem rapidamente para campos que antes eram prerrogativas dos homens. Nas universidades de hoje 0 ntimero de mulheres é cada vez. maior do que o dos ho- mens, 0 que cria uma situagdo que era imprevista poucos anos atras. Contudo, ao conseguir aceitagioe éxito na vida académica, cientifica, politica e de negécios, as mulheres tam assumido o aspecto titdnico da histéria, com seu excesso caracteristico de facetas tecnologicas, politicas e empresariais no viver. Devemos nos perguntar sobre os tracos unilaterais que caracterizam essa mulher que obteve éxito recente- mente e é titania. Talvez a imagem de uma ménade de As Bacantes, adorando Dioniso nos tempos antigos e que tem sido deixada para tras pela histéria, ainda esteja latente em algum espago de sua psique inconsciente e merega reflexdo. E dificil imaginar como essa ménade reprimida, ou a psicologia que ela personifica, conduz-se no meio das complexidades da mulher moderna. Podemos observar que o instrumento que a mulher moderna utiliza para enfrentar o desafio de sua incursio atual 6 a aceleracdo titania. Termos como histeria e possessdes pelo animus vem & mente como complemen- tos dessa aceleracao”. O corpo desta mulher deve ter a condicao fisiea da virginal Artemis para poder continuar correndo, com as aerdbicas, a danga e tudo o mais. Mas, sob nenhuma circunstdncia, um corpo atlético de Artemis, pode ser confundido com o corpo emocional dionisiaco. Neste contexto, 0 animus signifiea que a mulher atua a partir do conhe- cimenta (logos) que os homens consoguiram acumular atraves da historia, 57 Discute-se muito nos encontros de ginecologistas, clinicos gerais, endocrinologistas ¢ psiquiatras sobre as tendéncias psicossométicas dessa mulher moderna, acelerada e cheia de tantas responsabilidades. Entre essas condigées psicossomaticas, para mencionar uma dessas doencas, os problemas tiredideos tém aleangado proporgdes epidémicas®®, Ninguém sabe com exatidao de que modo esto sofrendo as mulheres com sua incursiio hist6rica, pois, em psicoterapia, é comum encontrar mu- Iheres que esto, de fato, ‘desmembradas’ entre seu desejo de estudar, de competir no trabalho e o de ser mae de seus filhos. E vélido assumir um enfoque evolutivo e postular que a biologia da mulher nao est ‘programada’ para este modo de vida, Trata-se de uma enorme brecha bioldgica. ALENDA 6rfica na qual Dioniso é filho do deus olim- pico Zeus com Perséfone, a rainha do mundo subterraneo, provavelmente foi tomada do fragmento de Herdclito que diz: “Dioniso e Hades sao um e o mesmo” — uma afirma- ¢40 que Ihe atribui uma poderosa conexao com a morte. Podemos imaginar distintas concepgdes da morte de acor- do com os diferentes ambitos arquetipicos dos deuses e deusas. Diria que, no caso de Dioniso, a morte tem uma proximidade: é vivida no presente, no aqui-e-agora; sua presenca na imaginagao e nas emogées alimenta a alma. A morte é a emogéo mais forte e mais individual. Porém, gostaria de diferenciar a emocfio de afliedo e dor pela morte de um ente querido da emogdo de nossa prépria "Ds enfoquesjunguianos sobre as complexiddes dos “problemas tie dos” social and Payehatrie Dinos It Flr, 1097 Jungion Pghiatry Binsielden: Duimon Verlag. cap. Xp. 200; ¢ Hiorors Morbo Unt Diesen nage tng eed ler br 866 Prasengy he Ninth International Congres for Anasticl Payeology. Donal Einsiedeln: Daimon Verlag, oe ie ae em es 58 morte. Quisera que se entendesse que minha intengio aqui nfo é contradizer os estudiosos que tém trabalhado sobre os ritos dionisiacos da morte; sua evidéncia se ba- seia, na maioria dos casos, na cultura de saredfagos ena imagética de uma vida apés a morte. Eles nos dizem que, na época dos gregos e romanos, as sociedades dionisiacas de entao tinham um ritual para o sofrimento causado pela morte de seus membros. A partir da perspectiva da psicologia, podemos considerar essa imaginacao como uma maneira de propiciar a emocdo dionisfaca da morte: 0 aqui-e-agora da morte. Mas, como escreve Susan Guettel Cole: “Quando os adoradores rogam a Dioniso, pedindo-lhe seguranga e protecdo, sua stiplica refere-se a esta vida, ndo A seguinte””. Guettel analisa uma inseri¢do na qual aparece a palavra ‘salvacao’, com a conotacao de protegaio € preservacao, A salvagao na outra vida é um termo que pertence A retérica dos titas, uma retérica que trabalhei em Hermes e seus Filhos (1999, 179), em relagéo a Don Juan. A salvago também é um dogma do cristianismo e 0 atrativo fundamental das seitas modernas, algo que se deve considerar quando aparecem fantasias similares em psicoterapia. ‘No mundo de hoje € dbvio que a morte perdeu o lugar que antes tinha na cultura. A perplexidade diante da morte é um tema comum. 0s ritos dionisiacos de morte se perderam e cafram nas maos dos oponentes de Dio- niso: os titas. Recordemos que Prometeu se vangloria: “Sim, eu fiz com que os homens deixassem de prever sua morte” (Esquilo, 1961, 28). Desde a Idade Média 0 colorido que a morte outorgava a vida vem se desva- necendo. De maneira geral a morte tem se convertido numa palavra separada da imagem que lhe outorgava Yer Susan Guettel Cole. (1899). “Voices from the Grave: Dionysus and ‘the Dead”, Em: Carpenter, Thomas H. and Christophe A. Faraone, eds., 293. 59 emocao. Na tradicao catélica, conserva-se alguma ima- gética. Alfred Ziegler (1983, 53) menciona a imagética do barroco, quando relaciona a morte com a medicina psicossomatica e com psicoterapia, numa nota sobre as relfquias barrocas de San Félix: “A veneragao dos ossos dos mértires nao tem apenas importancia religiosa, mas esta relacionada com a teoria médica segundo a qual os sintomas so tratados com seus semelhantes, similis simile”, Ziegler viu na preservagdo das reliquias este tipo de relac&o com a morte; mas eu estabeleceria idén- tica relagao com as imagens das procissdes da paixao e agonia de Jesus Cristo. A imagem da agonia propicia um acesso A morte. A agonia 6 uma imagem interior presente na vida didria. Por ser uma imagem, néo se trata apenas de uma palavra, mas tem uma psicologia propria. A medicina moderna vem destruindo a possibi- lidade de que a agonia nutra nossa consciéncia, ao ndo reconhecé-la como uma realidade psicolégica, Quando um paciente comega a agonizar, o médico Ihe prescreve um remédio que suaviza esse momento. Com respeito a Dioniso e & morte, além do mencio- nado fragmento de Herdclito, conhecemos a imagética grega das principais deidades do reino dos mortos. Numa vasilha grega estao representados Deméter, Hermes, Perséfone e Dioniso (Kerényi, 1997, 249) ¢ podemos imaginar a trindade ctonica de Hades, Plutao e Dioniso como representagoes, respectivamente, da morte, da riqueza ¢ da tragédia e da cultura; representagoes que enriquecem nossa visto do mundo dos mortos na psi- que. Se Dioniso tem uma relacao estreita com a morte, disso se deduz que ele tem uma relagdo estreita com a *Creio que 0 barroco tem um poderoso ingredients dionisiaco; a saber, em sua conexdo com a morte e com a decadéncia e em seu respeito pelos rituais eas imagens. 60 depressao, Tradicionalmente, Saturno, o velho Cronos, 6 a figura que tem atraido a imaginagao relacionada com a depressio, A iconografia representa Saturno como um mutilado, com o corpo coberto de chagas. A sua imagem é associada com uma depressao fria, seca ¢ rigida; muitas vezes, sua cronicidade se manifesta fisicamente como uma enfermidade e, psiquicamente, com uma retérica repetitiva e pessimista. Walter Otto associa Dioniso a umidade”. Isto im- plica que a depressdo dionisfaca, por ser imida, pode compensar a secura e a rigidez. da depressao saturnina, Seria uma consciéncia dionisiaca cuja proximidade com a morte a associa A depressio; a umidade poderia ser senti- da nas lagrimas que acompanham a emogao. A medicina grega considerou que as lagrimas estavam relacionadas com o elemento agua®, A umidade, relacionada com a emocdio, aparece também na imaginagio alquimica das légrimas como aqua lacrimae. Ha muito a dizer sobre a relagdo entre Dioniso e a depressao. Os estudiosos sen- tem maior atragao pelos aspectos frenéticos e maniacos dos rituais dionisiacos, porém meu interesse esta em prestar atengo nos movimentos lentos e nas vivéncias que, com respeito ao corpo, propiciam esses rituais. Sio também atributos de Dioniso e proveem a psique de uma imaginagao que a aproxima muito mais da depressao. Com 0 movimento lento, Dioniso nos ajuda a aceitar a depressio, Existe uma imagem de Dioniso na qual ele esta reclinado sobre o lombo de um asno, bebendo vinho de um cintaro e olhando o que deixa para trés. 0 asno esta presente em todo cendrio mediterraneo. Sua lenti- dao proporciona a metéfora adequada para a lentidao Ver “Dionysus and the Element of Moisture”, Em: Walter Otio, 1965 Dionysus: Myth and Cult, eap. 14, 160 oss Ver “The Flux of Fecling”, Em: Ruth Padel, 1992. In and Out of the Mind, eap. 4 61 da depressao, e esta metafora propicia a incubacao, esse espaco tao basico para a arte da psicoterapia. Gostaria que a imagética dionisiaca sobre o corpo e a morte, que apresentamos a seguir e que tomamos de Niel Micklem (1996, 91), fosse lida com essa lentidao de corpo e de alma, tendo em mente a afirmagao de Heréclito de que Dioniso e Hades sao um e 0 mesmo: Hades introduz 0 motivo da morte. Nenhuma discusséo sobre 0 corpo estara completa sem ela. Hades e 0 corpo podem parecer, a primeira vista, muito distantes um do outro; no entanto, existe uma relacao essencial e, se isto necessitasse de confirmagdo, torna-se evidente em duas observagdes muito conhecidas: que Hades é 0 deus grego da morte e que a morte entra no mundo com o corpo e permanece como sua constante companheira ao longo do trajeto da vida. ANTES de nos aproximarmos de As Bacantes de Euripedes, gostaria de fazer algumas especulagées sobre a origem de Dioniso. Os estudiosos tém indagado sobre sua origem na Asia ou na Tracia, uma teoria que tem gerado muita controvérsia; esses estudos também tém sido muito literalizados. Na realidade, Dioniso 6 um deus definitivamente grego, pois aparece nas tabuas de escritura B, mais ou menos uns 1250 anos a.C., que sao © primeiro testemunho escrito dos gregos. Euripedes apresenta Dioniso como um deus que chega do estran- geiro, apesar de sua mie ter nascido em Tebas. Portanto, para Euripedes, Dioniso era um deus local e estrangeiro ao mesmo tempo, e é desta forma que se apresenta fre- quentemente nos sonhos: um estrangeiro que vem a ser familiar, paradoxo aparente que poderia contribuir para © movimento psiquico. Nos rituais, Dioniso é invocado como aquele que vem de fora: “Vem, vem, vem, Dioniso!”. Esse € 0 tipo de invocagao que pertence a maioria das 62 religides dionisiacas. Sempre é um estrangeiro por causa da repressdo natural, caracterfstica de sua configuracao arquetipica, que o apresenta como se viesse de fora. Creio que o leitor ndo encontrar dificuldade em avaliar como, psicologicamente falando, aquele que esta mais perto de nés (0 corpo com o qual nascemos) 6, ao mesmo tempo, o mais estranho a nés, ‘Ao longo desse trabalho venho me referindo ao corpo em relac&io com Dioniso. Aqui gostaria de repetir que viver no corpo 6 sumamente dificil e esta distante de 1nés, tao distante como a forma com que os gregos ima- ginaram a origem de Dioniso. Qualquer conexao facil com o corpo nao existe. Escrever sobre a possivel relagao entre 0 corpo psiquico e suas implicagbes psicossomé ticas encontra-se fora de nosso alcance; mas podemo’ comegar a ter uma consciéncia do corpo psiquico quando nos tornamos conscientes de nossa alienagdo diante do corpo, quando nos tornamos conscientes de como é facil perder nossa relac&o com ele. Mediante essa consciéncia poderemos, pacientemente, estabelecer uma relacéo com 0 corpo e talvez construir uma conexao psicolégica com ele. Na psicologia moderna, quando se trata de Dioniso, ha pouca discussao relacionada com o corpo psiquico e nossa conexao com ele. No contexto do corpo esté o espago apropriado para tratar sobre Dioniso eo teatro. A arte de Dioniso, par excellence, encontra-se no teatro. Nao pode- mos conceber um bom ator que nao tenha consciéncia do corpo. Nossos pensamentos se movem para o fascinante campo do treinamento teatral, uma disciplina na qual a psicologia do corpo torna-se uma realidade dolorosa ena qual as palavras e 0 corpo do ator devem se reunir em uma consciéncia dionisfaea. Esta combinagao de corpo e palavra constela os estados dionisiacos da psique nao s6 no ator, mas também no psicoterapeuta. 63, EURIPEDES escreveu As Bacantes em sua velhice, quando estava exilado voluntariamente na Macedénia, num lugar em que os ritos dionisfacos haviam con- servado, sem diivida, tracos mais arcaicos do que em Atenas, onde as emogdes dionisiacas estavam contidas pelo teatro e seu ritual. A base para a concepgaio que Euripedes teve do deus esta na segunda parte do mito Grfico que mencionamos, em que Dioniso aparece como filho de Zeus e Sémele. As Bacantes comeca com a entrada de Dioniso. A diregao de cena o descreve levando uma coroa de hera, um thyrsus na mao e vestido com uma pele de veado. Tem uma cabeleira longa e solta e sua beleza é juvenil, quase feminina. Sua androginia chama a atencéo. A di- reco de cena de Eurfpedes, que se traduz numa imagem andrégina de Dioniso, existe em grande quantidade nas complexidades da psicologia dionisfaca, Devemos recordar que o ator tinha uma méseara que representava a beleza juvenil, feminina, fluida, de Dioniso —o que o forcava a se expressar através de seu corpo. Dioniso apresenta a si mesmo: Sou Dioniso, filho de Zeus. Minha mae foi Semele, filha de Cadmo. Fez de parteiro 0 fogo do relampago. Vim aqui, em Tebas, a dos dois rios, Dirce e Iameno, para revelar minha divindade tomando forma humana... (Euripedes, 1954, 91). Jé foi escrita muita coisa sobre esta primeira apa- rigdio de Dioniso em cena e, em particular, sobre os dois niveis, o humano e o divino, na presenca e nas palavras de Dioniso, Suas palavras transmitem 0 paradoxo de que © ator 6 Dioniso e, ao mesmo tempo, nao é. Em outras palavras, nos introduz no segredo da psicologia dionisfaca a0 ensinar como representar Dioniso sem se identificar 64 com ele. O paradoxo é expressdo favorita de Hermes; ela transmite consciéncia e inconsciéneia, simultaneamente, Certamente Eurfpedes foi um homem de teatro e esta obra ensina ao ator como interpretar um papel sem se identificar com seus contetidos psfquicos; nesse caso, © papel de Dioniso. Através da obra, Euripedes insiste neste ensinamento basico. Mais adiante, na mesma fala, Dioniso diz: “Mudei minha forma e adotei a figura de homem” (Tbid., 193). Parece que esta linha expressa uma atitude muito importante da psicologia dionis‘aca. Se nos identificamos com o papel que interpretamos na vida, tornamo-nos titdnicos, porque a identificagao 6 a esséneia do titanismo, Em outra parte da obra Wuripedes volta a tocar no mesmo tema, quando Dioniso responde a uma pergunta de Penteu: ‘ Penteu: ‘De modo que trouxeste estes rituais para Hellas? Dioniso: proprio Dioniso, filho de Zeus me iniciou neles. Ee Ubid., 206). Estas linhas tém uma ampla conotagao, se nao redu- zirmos o ritual dionisfaco as ménades na montanha, mas 0 considerarmos como a esséncia de um modo de vida, 0 dionisiaco. Com respeito @ aparéncia andrégina de Dioniso, Thomas Carpenter trabalha a transicao do Dioniso barbado para o Dioniso imberbe que Euripedes retrata. Parece que dai em diante o jovem Dioniso predominou na iconografia®”. Sente-se que deve ter-se produzido um movimento psicoldgico ao longo da histéria da poesia tragica que culminou com o aparecimento do Dioniso de Ver Thomas H. Carpenter. (1999). "On the Beardless Dionysus”. Em: Carpenter, Thomas H. and Christophe A. Faraone, eds., 185, 20 65 As Bacantes. Michael Jamesson (1993) diz que Esquilo apresenta em Licurgo um Dioniso andrégino, como um personagem secundario. No entanto, podemos assumir que se produziu um proceso coletivo que conduziu a concepeao de Euripedes sobre 0 deus. Colocou o deus do teatro em cena e 0 apresentou como androgino. Nesta transformagao de Dioniso imagina-se a in- tervencao de complexos histéricos. Euripedes deve ter percebido um grande sofrimento coletivo por trds dessa Tepresentagao que fez do deus. E quase um desafio ima- ginar a reagao da audiéncia ateniense diante do deus do teatro numa imagem andrégina. Sentiram por acaso a repugnancia que essa imagem geralmente provoca? A aparicdo do hermafrodita nos sonhos quase sempre pode ser repugnante para quem sonha. As imagens alquimicas do hermafrodita também séio sumamente repulsivas e dementes, mesmo que a imagem repulsiva possa ser vista como um ingrediente dionisiaco que contém a loucura. Ajmagem que Euripedes faz de Dioniso coloca o deus no lugar mais distante da tradigaio heroica grega, que era exemplificada pelos homens que lutaram na Guerra de Troia. As obras do ciclo troiano, as quais devemos conceder ‘o crédito de ter mostrado, pela primeira vez na histéria, a psicologia psicopatica dos herdis, estavam respaldando Euripedes, quando escreveu suas duas tiltimas tragédias, As Bacantes e Ifigénia em Aulis®. Haver colocado Dioniso em oposigéio a Penteu, um heréi politico, um psicopata ansioso de poder, parece re- fletir o que levou Euripedes para fora de Atenas e para o exilio na Macedénia. A maneira como faz com que Dioniso destrua Penteu em As Bacantes nos obriga a considerar inte © cino séulos mais tande, Jang refletia sobre hers como um pata em sus ora “Tes ental sce ato contemporinco” Bm: CW lizagdo em Transigao. i 66 dois niveis psicolégicos: um nivel interior da personalida- de, que reprimin a piedade e a forma de vida dionisiaca, onde tem lugar a vinganga dionisfaca que a conduz para a loucura e destruigao, e um nivel exterior, vivido na Atenas dominada pelo titanismo politico e psicopatico durante a Guerra do Peloponeso, que acabou sendo o capitulo final da grande poesia tragica. Euripedes esteve no exilio por causa do poder politico titénico que dominava a sua que- rida Atenas. Dodds (1980, 180-81) descreve a repressio politica e a perseguigio dessa época em Atenas: Porém, a prova mais impressionante da reagdo contra a Tlustragao pode-se ver no éxito dos processos sucessivos contra intelectuais por motivos religiosos que tiveram lu- gar em Atenas no tiltimo tergo do séc. V. Por volta do ano 432 a.C., um ou dois anos depois, foram declarados eémo delitos denuncigveis nao crer no sobrenatural e ensinar astronomia, Os trinta anos seguintes, aproximadamente, foram testemunhos de uma série de juizos por heresia, iinicos na histéria ateniense. Entre as vitimas esta a maioria dos chefes da ideologia progressista de Atenas: Anaxdgoras, Didgoras, Sécrates, quase seguramente Pi- tagoras e possivelmente Euripedes. Em todos estes casos, salvo otitimo, triunfou a acusagdo: Anaxagoras foi prova- velmente multado e exilado; Diagoras salvou-se fugindo; © mesmo, provavelmente, fez Protégoras; Séerates, que poderia ter feito o mesmo, ou poderia ter pedido para ser exilado, preforiu ficar e beber cicuta. Todos eram homens famosos. Nao sabemos quantas pessoas, menos conhecidas, sofreram por suas ideias. Porém, as provas que temos so mais do que suficientes para demonstrar que a Grande Epoca da Tlustragao grega foi ao mesmo tempo, como a nossa, uma época de perseguicio, de exilio de estudiosos, de entraves para o pensamento, e inclusive (se podemos crer na tradigéo sobre Pitagoras) de queima de livros. ‘A descrigao de Dodds nos demonstra, com exatidao, o quanto Eurfpedes deve ter sofrido em Atenas, antes de ir para o exilio. 67 No principio Zeus teve a intengéio de que Dioniso dominasse 0 mundo (Nilsson, 1949, 216), inteneao essa que nos mostra como funcionava a imaginaeao grega. A relago pai/filho chama nossa atengao. Apolo foi conhecido como a conseiéneia de Zeus, uma relacdo em que o filho incorpora uma nova consciéncia histérica e intelectual 4 assimilada pelo pai. A relacao entre Zeus e Dioniso foi muito diferente: o pai aceita a escuridao, a androginia e a embriaguez de seu filho, que é também o deus do tea- tro, da tragédia, assim como das mulheres. Um enfoque psicol6gico do mito veria no dominio do mundo 0 dominio sobre a paique, e isso dé o que pensar, No entanto, meu proprio enfoque seria conceber a intencdo de Zeus em relagao a Dioniso, em termos de uma personalidade que se reconhece arquetipicamente governada por uma cons- ciéncia trégica. Se seguimos esta linha de pensamento, seria a consciéneia de um conflito natural, personificado por Dioniso e os titas; uma consciéncia trégica na qual uma imagem conflitiva da equilibrio & personalidade, ou na qual Dioniso foi assimilado junto com suas complexidades arquetfpicas. Em qualquer caso, trata-se de uma imagem sumamente complexa que forma parte de nosso ser. Mesmo assim devemos reconhecer que, para os gregos, Dioniso e seu conflito tragic representam um momento culminante da cultura: “Nao hé divida de que Zeus levou a cabo o desempenho do divino, mas foi Dioniso quem o completou ou, para usar uma expresséio moderna, ‘que coroou a criagéio do mundo’ ” (Kerényi, 1997, 251-2) Esta projecaio pode ser uma metéfora da possibilidade de um equilibrio psiquico num mundo obviamente governado pelos tits, Outro aspecto da relagao pai/filho encontra-se no fato de que Zeus é 0 fazedor de imagens e Dioniso, seu filho, a encarnago da imagem da androginia no corpo. Para ampliar estes dois aspectos da psicologia dionisiaca, deve-se de novo fazer mengao da tradic&o que igualava 68 Dioniso e Ariadne a Eros e Psique e, deste modo, conceber que o Dioniso andrégino contém em si mesmoo dinamismo de Eros e Psique. A androginia de Dioniso nos leva a psicologia profun- da, Jung trabalhou exaustivamente sobre a androginia, deu-lhe uma grande importancia. Estabeleceu uma solida equivaléncia entre 0 Self, que regula o equilfbrio da per- sonalidade, e o hermafrodita, que sintetiza a unido dos copostos homem/mulher. Isto nos permite especular que 0 Dioniso retratado por Eurfpedes foi uma personifica- cao do Self. Devemos recordar que o rebis, assim como 0 hhermafrodita, era o produto final do proceso alquimico. Talvez fosze uma associacao atrevida conceber a aparicao de Dioniso andrégino, na tragédia, como resultado de um proceso similar ao alquimico. 7 Em Hermes e seus Filhos, falei sobre o hermafrodita como um produto da tensdo psicoldgica criada pelo desejo e repulsao, e sobre a maneira como a tensio dessa dina- mica da lugar & unio dos opostos, expressa pela uniéo do homem e da mulher na imagem do hermafrodita®. 5 possivel imaginar um processo similar entre os poetas tragicos gregos até que o Dioniso andrégino de Euripedes entrou em cena. No mesmo livro também fago referéncia a ‘debilidade’ do hermafrodita, pois considero que é um aspecto importante da consciéneia dionisfaca, Qualquer aproximagao a Dioniso deve levar em conta essa debili- dade. Seria absurdo abordar este deus sob a base de um ego intelectual. Essa debilidade desempenha um papel importante na formacao do psicoterapeuta. O terapeuta que possui um ego poderoso polariza 0 inconsciente. ‘A primeira entrada de Dioniso pode ser vista como a imagem de um sonho; para aproximar-se dela, a cons- ‘Ver “Hermes-Psicoterapia-Hermafrodita’. Em: Rafael Loper-Pedraza, 1999, capt, 69 ciéncia deve situar-se num nivel de simetria com ela. Um nivel que associo com a media natura alquimica, uma consciéncia que se ajusta as demandas dionisiacas do teatro e & visio dionisiaca do mundo. Os sonhos em que aparecem o teatro tém a conotagao de ser o despertar de uma consciéncia e reflexao dionisfacas. Por exemplo, nao posso conceber 0 All the world’s a estage de Shakespeare, ou El gran teatro del mundo de Calderén, sem essa cons- ciéncia ou sem uma viséo dionisfaca do mundo. Dioniso apresenta-se no cendrio cheio de citime e desejos de vinganca. Veio para se vingar das irmas de sua mie porque elas negaram sua divindade. Prossegue dizendo-nos que as enlouqueceu porque, por conta de sua inveja, distorceram a verdade sobre 0 seu nascimento, dizendo que nao era filho de Zeus. A inveja 6 uma emogao, de maneira que, desde o principio da obra, estamos no Ambito das emogies e da loucura. Na obra, Sémele tem trés irmas: Agave, Auténoe e Ino. Este é um motivo conhecido na literatura dos contos de fada, onde a inveja costuma aparecer. Um modelo de conto de fada é 0 mito de Eros e Psique. Uma das pri- meiras tarefas de Psique é libertar-se de suas trés irmas invejosas. A genialidade de Euripedes traz este motivo & tragédia, em justa oposigao a psicologia do conto de fada. Em ver de livrar-se de suas irmas de uma forma magica, Eurfpedes faz com que Dioniso as enlouqueca, uma loucura tragica: Por isso, enlouqueci suas irmas, todas delirantes abandonaram suas casas; agora, fizeram do monte seu lar; suas mentes estdo extraviadas. Obriguei-as a usar 05 emblemas préprios de meus mistérios, (Burfpedes,1954, 192). Em seu livro Envy and the Greeks, Peter Walcott (1958, 53 ess.) assinala a importancia da inveja entre os 70 gregos. Por exemplo, a inveja foi o objeto de atengao para avida em comunidade: o grego sabia que, se chegasse a causar inveja na comunidade, deveria pagar por isso com o ostracismo, Walcott nota como a inveja se apresenta, sobretudo, entre as pessoas intimamente vinculadas: entre os membros de uma familia e os amigos. Walcott, faz uma excelente descrigao da inveja nos tempos pagaos, antes do cristianismo converté-la em pecado capital, reprimindo assim a consciéncia dela. Mais importante ainda, Walcott nos faz pensar em como diferenciar a inveja do citime, duas emogdes que, frequentemente, se confundem e criam confusdo na cultura ocidental (ibid., 1), A inveja é uma emogdo mais comum do que acredi- tamos, Quando ela nos domina, ficamos cegos diante de todas as emogées. Para mim, invejar a riqueza de alguém 6 uma questao secundaria, Meu interesse maior 6 deci- frar a loucura que acontece quando nos comparamos com alguém e ficamos distantes de nés mesmos. Assim como a inveja esta presente no relato de Eros e Psique ou em As Bacantes, também aparece em psico terapia; as vezes, revelando-se como um aspecto da per- sonalidade, Outras vezes, é um componente dominante de uma psicose ou de uma doenga psicossomatiea. A inveja aparece quando uma pessoa é incapaz de aceitar sua personalidade ou suas limitagdes, podendo converter-se em um complexo dissociado, que atua de modo auténomo e torna dificil, se nao impossivel, a reflexdo. Para que 0 psicoterapeuta possa detectar a presenca da inveja na psique, deve estar familiarizado com essa emogao e tam- bém ter sorte, porque a inveja, frequentemente, costuma estar muito escondida. Contudo, na tragédia de Euri- pedes, é dbvio que Agave, Io e Auténoe foram possuidas pela loucura de Dioniso porque sentem inveja de Sémele, a mae de Dioniso. 71 Em trés linhas que formam uma imagem, Dioniso apresenta 0 protagonista da tragédia, Penteu, um ser mortal, filho de Agave, a irma mais velha: Agora Cadmo cedeu seu trono e honra como um rei aPenteu, filho de sua filha mais velha, Agave. Ele (Penteu) se rebela diante dos deuses, me desafia, me exclui de suas libagées, jamais me cita em suas oragdes. Por isso me revelarei, diante dele e diante de todos os tebanos, como um deus, (Buripedes, 1954, 193). Com estas linhas, Dioniso entra em cena e, cheio de emocao, expressa abertamente seu civime — o antigo citi- me dos deuses. Assim como a inveja, o citime dos deuses requer alguma diferenciagao. Falando em termos mito- logicos, pode-se imaginar que cada deus ou deusa mostra seu citime de maneira diferente. Podemos ver também que 0 diseurso de Dioniso em relacao a Penteu se refere na linguagem da psicologia junguiana, aos complexos dionisiacos que Penteu reprimiu e, portanto, nao viveu, Dentro da grande tradicdo literéria da cultura oci- dental, Shakespeare refere-se ao citime de Otelo como citime sexual; converte-se num estado de possessio que o conduz a destruigao tragica. Em Shakespeare, o citime se cexpressa de forma direta e é motivado pela sexualidade, 0 que o distingue da visdo que Euripedes tem do citime de um deus. Em La Guitanilla, Cervantes escreve sobre 0 ciime, porém, em contraste com o Otelo de Shakespeare, a ‘guitanilla’ é apresentada como uma sébia, porque ela conhece o citime, sabe sobre essa sombra da qual provém grandes conhecimentos, O citime pode dominar qualquer um de nés, em qualquer momento, O citime de um deus, por outro lado, é causado pelo rechago a esse deus ou pelo desconhecimento da forma arquetipica de vida re- presentada pela deidade, tal e qual Burfpedes descreveu em relacao a Dioniso, 72 Mesmo que as atitudes desses dois escritores diante do citime sejam classicas, a de Eurfpedes merece maior atengao dos estudantes de psicologia porque oferece a pos- sibilidade de se entender exatamente o que a repressdo de um deus como Dioniso, com todas as suas complexidades arquetipicas, significa psicodinamicamente. A emogao do citime aparece em psicoterapia numa faixa de atuacéo que vai desde a negacio até a possessao. Sendo uma das ‘emogdes mais humanas, conecta-nos com 0 reino animal dos instintos. Ha situagoes de citime que terminam numa destruigao completa. Blas so abundantes nas noticias de crimes dos jornais. Hé casamentos dominados pelo citime. ‘Tive a experiéncia pessoal de uma mulher, tio possuida pelo citime, que sentiu um grande alivio quando seu ma- rido morreu; ¢ sei de um casamento que durava vinte e- oito anos, no qual a base da rela¢do era o citime obsessivo. Pergunto-me se este tipo de citime nao é, simplesmente, a carapaga ou o continente de uma loucura maior. A genialidade de Burfpedes estava no auge no mo- mento em que expds 0 citime dos deuses. Em Hipdlito, mostra como Afrodite vinga-se de Hipdlito, porque este nao adorava sua divindade. 8 impecavel a deserigéo que faz do estado de possessao de Fedra por Afrodite, junto com uma série de sintomas; essa possessdo é que gera toda a trama da tragédia, Em As Bacantes, mostra Dioniso vingando-se de Penteu, porque este nao Ihe rende culto. Ambas as tragédias dao uma li¢do sobre a represséo, que produz 0 citime nos deuses: no caso de Hipélito, sua rigidez em adorar apenas Artemis, 0 que o leva areprimir Afrodite e sua carnalidade; enquanto no caso de Penteu trata-se de sua brutal repressao de Dioniso. DIONISO abandonaa cena ¢ entra o Coro composto pelas bacantes, ou ménades, as mulheres cuja forma de 13 vida centra-se e adquire significado no culto a Dioniso. Com respeito as ménades, Kerényi (1997, 257) escreve: Aquele que as observasse de longe veria nelas as formas variadas e pouco diferentes da ‘mania’: talvez seja esta a melhor tradugdo da palavra mania, porém temos de compreendé-la levando em conta todos os seus sentidos ao mesmo tempo: o do amor veemente ¢ o da raiva colérica. Por isso as mulheres ao redor de Dioniso foram chamadas mainades, ‘Ménades’, e ao préprio deus se chamou mai- nomenos ou mainoles, significando ‘irritado’, ‘possesso’, ‘frenético’, no sentido amplo da palavra. Deverfamos comegar a estabelecer uma diferenga entre a loucura ritual das ménades, causada e ‘curada’ pelo deus, ¢ a loucura como produto da vinganca dos deuses, por citime, na qual o deus conduz o possuido a destruicdo. A tragédia mostra estas duas formas de loucura. E muito importante levar em conta esta dife- renciacéo, j4 que é basica para que possamos entender a psicologia dionisiaca. ‘As ménades entram em cena dangando, movendo-se aoritmo das fiautas e dos tambores. Usam coroas de hera, tinicas braneas ¢ levam tirsos. Imagino que avangam pelo cenério, dangando suavemente e movendo seus corpos com lentidao. Na primeira estrofe, 0 Coro canta que vem de longe, desde a montanha sagrad: Corremos atras do deus do riso; o trabalho ¢ alegria e a fadiga, prazerosa, nossa cangio celebra Baco. (Buripedes, 1954, 193). Evidentemente, elas ndo se sentem cansadas. Dangar sem sentir fadiga 6 0 motivo que também aparece no sonho da mulher venezuelana. O verso “O trabalho ¢ alegria e a fadiga, prazerosa” transmite-nos um ganho psiquico 14 da mulher dionisfaca e pertence a alquimia de sua alma. Este paradoxo é similar ao que George Ripley nos fala como a meta final da alquimia: “Uma ferida doce, um mal suave”, A alquimia pode nos ajudar a ler esta imagem com profundidade. Trato de assimilar esta “ferida doce” auma consciéncia que, de certo modo, é capaz de integrar ¢ transformar o sofrimento em experiéncia da alma. A imagem das ménades revela mais sobre a psicologia dio- nisfaca do que qualquer especulacao que possamos fazer. Retornando aos titas por um momento, a “ferida doce” esta em contraste com o sofrimento titénico, que é vazio, existencial, repetitivo e carente de qualquer possibilidade de reflexdo e de consciéncia. Percebe-se a alegria, esse sentimento tao poderoso € genuino, como atributo de Dioniso. Trata-se de uma * emogao que acompanha outros tipos de sofrimento, como exemplifica Euripedes. 0 Coro prossegue, na segunda estrofe: Bem aventurado é 0 homem alegre, iniciado nos mistérios que os deuses institufram; santifica sua vida e reine alma com alma numa mistica unio, e, purificado pelo ritual forgado, entra no éxtase da solidao da montanha. (Op. cit., 194), A partir destas linhas, podemos assumir que Eurt- pedes conheceu a experiéncia mistica de Dioniso. Con- sidero uma estrofe muito importante porque mostra a solid&o nao apenas como uma experiéncia individual, mas também como algo que pode acontecer dentro de um grupo. As frases “a mistica unidio” e “purificado pelo ritual” talvez apontem para um misticismo que nao necessita ser forgado por nenhuma ascese. Mais adiante, numa cena comovente, Tirésias, 0 ve- Iho adivinho, faz sua entrada no cenério e, mesmo cego, 75 Phas kat 2 SPT percorre seu caminho até a entrada do palacio de Penteu bate na porta. Chegou em busca de seu velho amigo Cadmo e pergunta por ele, dizend .. eu sou um yelho, ¢ ele, mais velho ainda, ‘mas concordamos que pegariamos os tirsos, vestiriamos as peles de veado, © coroariamos nossas cabecas com brotos de hera. (Ibid., 197). Os velhos amigos vestiram-se para assistir a uma orgia. Tirésias representa a sabedoria interior e a arte da adivinhagao, enquanto Cadmo, o pai de Sémele, a mae de Dioniso, representa a tradi¢ao, Reuniram-se para celebrar Dioniso nas montanhas. Estes dois anciaos representam a psicologia de uma velhice que se rende diante de Dioniso e 6 meu grande interesse abordar a da velhice a partir do ambito arquetipico de Dioniso, Cadmo disse: “Poderia golpear a terra com o tirso durante toda a noite/e tam- bém durante todo o dia, sem me sentir cansado” (Ibid., 197). Sua deciséo de caminhar até a montanha, a pé, demonstra a energia dionisiaca na velhice. As palavras de Cadmo representam a imagem que ilustra do que se trata a danea dionisiaca: uma danga onde qualquer rigidez do corpo do anciao desaparece. A danca no sd é uma das mais antigas expressdes do ser humano, mas também dos animais. Nos sonhos, a danga sugere que quem sonha esta se conectando com uma expressdo do corpo muito areaica, instintiva e emocional; pode ser interpretada como a imagética dionisfaca interior da alma e do corpo. A qualquer momento podemos estar acompanhados por essa imagem da danga. Ao comentar sobre Teoria e Jogo do Duende de Federico Garcia Lorca,* mencionei uma aneia que ganhou um concurso de flamenco apenas se Ver “Reflexdes sobre o Duendo”. Em: Rofael Lépez-Pedyaza, 1997. 76 colocando de pé no tablado e dando um giro com 0 corpo. Nesta arte tdo dionisiaca como é 0 flamenco, a velhice significa sabedoria e maturidade. Quando os adultos cantam e dangam flamenco é intensamente comovedor, porque dangam de acordo com sua idade. A danga dio- nisfaca tem uma qualidade atemporal, por isso pode ser dangada em todas as idades, por uma crianga ou por um adulto, Nao existe uma idade ideal para o estilo de vida dionisfaco, O baile flamenco incentiva a imaginagao e nos proporciona uma ideia do que foi a danga das ménades nos tempos antigos. Vivemos num mundo em que o modelo de vida pre- dominante é 0 da juventude, Deste modo, vemos hoje adultos na triste condigao de serem incapazes de viver 0 aqui-e-agora da velhice; pessoas que, aos setenta anos, ainda se agarram pateticamente a sua juventude, aparen- temente sem consciéncia dos anos por vir. Até onde tenho conhecimento, a psicologia moderna nao tem estudado nem explorado as possibilidades de Dioniso na velhice. Na psicologia junguiana, a velhice é refletida através do arquétipo de duas caras puer/senex, 0 arquétipo que envia, principalmente, para a consciéncia ao longo da vida, um registro do calendario, tanto cronolégico quan- to psicolégico, por assim dizer. Os grandes pioneiros da psicologia moderna escreveram muito pouco a respeito de suas proprias psiques na velhice. Diante desta circuns- téncia, é compreensivel que os psicoterapeutas estejam predispostos pela tendéncia coletiva a reprimir tudo quanto esteja relacionado com a psicologia da velhice. No entanto, chama a atengiio que haja pessoas com oitenta anos que continuam discutindo com veeméncia suas teo- rias a respeito da infancia, sem dar testemunho de sua vida emocional durante a velhice, O fato é que a opressiva forea do drama da velhice faz de sua psicologia uma ta- refa muito dificil, muito distante das palavras faceis. As TT emog6es que engendram as imagens que se apresentam nesta idade permanecem como experiéncias interiores, da alma, e dao lugar ao desespero pela incapacidade de dar-lhes expresso através das palavras. Devemos notar que a abordagem da velhice é suma- mente racional ¢ unilateral, dominada pela concepeao atual de prover certa qualidade de vida mediante uma bateria de medicamentos. Assim, a idade fica cireunscri- ta as definigdes médicas em termos de normalidade. A vida emocional, as memoérias e a alma ficam excluidas. A insisténcia numa imagem idealizada da juventude s6 exacerba a ansiedade na velhice e bloqueia a aceitacao de uma depressdo lenta, tao necessaria nessa época da vida; justamente na velhice, quando o corpo se converte numa vivéneia incomparavel e adquire uma realidade quase esmagadora, a presenca do corpo é percebida cons- tantemente e, as vezes, como se fosse uma armadilha. E momento em que o corpo exerce sua autoridade e impoe uma consciéncia diferente. Sabemos muito pouco sobre a psicologia do corpo; no entanto, Dioniso poderia ser to- mado como um vefculo metaférico para conectar-se com 0 corpo. As limitacées fisicas da velhice proporcionam um ‘campo propicio para vivenciar o corpo psfquico emocional. A vvelhice é uma época em que Dioniso esta presente com mais frequéncia do que acreditamos: presente no corpo e nas emogées que surgem diante da doenga e da morte. A velhice reclama uma consciéncia tragica. Tem-se discutido pouco sobre o sofrimento da psi- que durante a velhice; sobre a maneira como as forcas naturais da ansiedade e da depressdo, que nos acompa- nharam ao longo da vida, cobram nesse momento um novo status e requerem uma nova iniciagdo e entendi- mento. Durante esses anos, a ansiedade apresenta-se com méscaras diferentes ¢ extravagantes. Imaginemos a ansiedade que se produz quando tentamos recordar 78 o nome de alguém que conhecemos de passagem ou do qual apenas ouvimos falar. Mas somente através de tal méscara podemos detectar a presenga inequivoca da ansiedade. Para mim, a importancia reside nao tanto na perda da meméria em si, mas na ansiedade oculta que acompanha esta perda. Diria que a imagem esté intacta, mas perde-se 0 acesso a ela, Nisto percebemos que é mais terapéutico aceitar a realidade da ansiedade, que pode mover a psique, do que cair no engano de ten- tar ‘curar’ a perda da meméria. Nao s6 os nomes criam confusao e ansiedade, mas também o esquecimento de acontecimentos, os acontecimentos sem imagens, Creio que estes truques da meméria, que esté tao perto da alma, no foram avaliados suficientemente®, Sente-se a forga da depressao, dolorosamente, na repentina diminuicao da atividade fisica, na lentidao dos movimentos e na perda da flexibilidade. Também devemos compreender que as enfermidades, padecidas durante anos, devem ser carregadas e contidas por um corpo fisico em decadéncia, e esta nova realidade alimenta a depressdo. Uma possivel resposta a este desafio poderia ser o dionisfaco como ‘corpo psicolégico’, assumindo e compensando 0 novo estado de coisas, Em outras palavras, a vida requer que se dé uma resposta mais psiquica ao desafio que significa um corpo em de- cadéncia, Poderia-se dizer que a consciéncia do modo como os dois opostos, ansiedade e depressao, fazem sentir sua presenca nesta época da vida serd a base do que considero a iniciacao na velhice. Uma das minhas intengGes ¢ olhar por trés das ima- gens distorcidas de Dioniso, como 0 Baco bebedor e sexual que Dodds menciona em sua passagem, para resgatar Estes truques da meméria sio bastante ficeis de distinguirda perda real dde meméria, no estrito sentido médice, 79 esses elementos que considero valiosos para a psicologia profunda, O verso de Eliot que diz “Os velhos deveriam ser exploradores”,”" deve ser lido pensando na psicologia dionisiaca da velhice. E a repressao da imagem da velhice oque torna a vida tao dificil para uma pessoa adulta, justo no momento em que novas limitacdes e afligoes devem ser aceitas, quando mais se necessita de uma auténtica imagé- tica dionisiaca. Em outras palavras, a realidade psicolégica de ter reprimido durante toda uma vida 0 que poderia trazer, nesse momento, alguma satisfagdo. A plenitude da velhice costuma ser encontrada em coisas simples: a0 derramar duas légrimas no teatro, quando a miisica dio- nisiaca toca as emogdes, conversar com um amigo junto a uma garrafa de vinho, e na aparigao, depois de uma noite cheia de ansiedade e depressao, de uma imagem da alma que estremece 0 corpo com emogao e dé sentido & solidéo da velhice. A psique se sustenta e alimenta a si mesma com as emogdes que nascem do interior ou do exterior. Nao ¢ dificil reconhecé-las como dionisfacas, porque vem acompanhadas por imagens trégicas ou estéticas. Na velhice, as emogées sao uma fonte de vida; senti- das como nunca antes, com uma consciéncia mais préxima a essas fontes desconhecidas da qual nascem os sonhos, Sabemos que os sonhos esto na base da sobrevivéncia do homem primitivo e no aparecimento da religiao; também asseguram nossa satide psiquica. Essa consciéncia na velhice, préxima de uma parte desconhecida da natureza, humana, tem sido vista, tradicional e historicamente, nas figuras do velho homem sabio e do velho bufao. Também devemos ver que essa consciéncia, de qualidade onirica, de media natura, ao ser dionisiaca, pode resultar confu- sa e bastante distanciada das certezas dos enfoques da psicologia geridtrica. Ver “Hast Coker". Bm: 7 8. Bliot, 1991, p. 43. 80 ‘Meu ponto de vista consiste em valorizar a autoridade do corpo durante a velhice, central para as complexidades da psique. Eu me atreveria a dizer que a velhice é a ‘idade de ouro' para Dioniso: época para estar a sés com 0 corpo, a 86s com Dioniso. Hsta é uma realidade que me levou a conceber a velhice como a idade que esta concentrada no corpo. Permitam-me ilustrar isto com a distingao que se faz na lingua espanhola de dois verbos relacionados como viver: ser e estar. Ser relaciona-se com a condigéo perma- nente do viver, enquanto estar refere-se a circunstancia em que se vive. Para viver a velhice, dentro dos termos que descrevi, deve-se outorgar prioridade & condigéio de estar, isto 6, ao aqui-e-agora, ao estar no corpo e senti-lo. Todas as especulagies filosoficas e metafisicas, todas as teorias psicolégicas que temos aprendido e que se funda- mentam no verbo ser — todas essas perguntas e especu- lagdes sobre “o ser” —, todas elas devem se submeter ao estar. No entanto, viver no estar nao é tao facil porque 6 uma condi¢ao complexa e poueas vezes comoda. Pertence & faceta mais subjetiva da psique e a uma consciéncia dionisiaca da velhice. Compreender que nossa loucura é diferente em cada etapa da vida e que a velhice demanda uma profunda familiaridade com a loucura é uma propos- ta, em si, dionisiaca. PENTEU faz agora sua primeira aparicéo em cena, acompanhadbo de seus guardas. Dé a impressao de ser um tirano que governa com mao militar e possui pronunciados tragos titanicos, como se tornara evidente. Vejo Penteu como a personificacdo daqueles titas atenienses da pol{- tica, cuja avidez de poder provocou a safda de Euripedes para o exilio. Essa combinagao de titanismo e de tirania conduz a repressdo das formas de vida dionisfaca. Penteu acaba de ouvir que as mulheres de Tebas, inclusive sua 81 mAe e suas tias, esto dangando em honra de Dioniso nas montanhas. Suas primeiras palavras siio: “Blas dizom que sao ménades sacerdotisas, com tua permissao!/Mas Afrodite suplanta Baco em seus rituais” (Euripedes, 1965, 198). Essa confusio ¢ importante de ser discutida, consi derando que Penteu nao pode respeitar nem diferenciar 0s tragos dionisfacos, e cai na tfpica confusdo de misturar os arquétipos. Penteu representa a parte titanica da natureza humana em oposicao a Dioniso, e as forcas de um poder e governo repressivos. Quando ouve que as ménades se encontram nas montanhas, confunde o culto dionisfaco com o de Afrodite, deusa a quem também se atribuiu a loucura divina. Devemos conceder a Euripedes nosso reco- nhecimento por apresentar-nos, uns vinte e cinco séculos atrds, esta confuséo que se repetiu, reiteradamente, ao longo da histéria. Durante o século XIX, no final da época vitoriana, quando os pioneiros da psicologia moderna estavam explo- rando a neurose e a psicose, encontraram na sexualidade a causa desses males, Hoje podemos conjecturar que todo 0 alarido que a psicologia fez em torno da sexualidade, assim como sua fixacdo nela, foi uma maneira inconsciente de reprimir Dioniso. Nisto Euripedes pode nos ajudar: em sua tragédia Hipélito, descreve 0 estado de Fedra, possuida pela sexualidade de Afrodite. Fedra sofre uma condicao psicossomatica complexa, criada pelo conflito entre 0 estado de possessao induzido por Afrodite e seus complexos morais — 0 aidos de Fedra (Stanford, 1983, 35-36), Mesmo que a descricaio seja trégica, é por isso mes- mo ‘civilizada’; teve lugar em Troezen, perto de Atenas, enquanto a possessfo dionisfaca de Agave é, em compa- ragdo, genuinamente arcaica e ocorre nas montanhas, perto de Tebas. A possessao de Agave parecia resultar do conflito entre duas forgas em oposi¢sio, Dioniso e os tits. 82 Aimagem dessa possessio nos conecta com o inconsciente ecom niveis da natureza humana sumamente complexes. Os Ambitos arquetipicos de Dioniso e de Afrodite reque- rem ser diferenciados, apesar de Euripedes mostrar que podem ser representados juntos, quando, durante sua segunda entrada, o Coro de ménades canta em honra de Afrodite uma cangao que nasce de seus corpos e emocoes dionisiacas: Oh, pisar a ilha de Afrodite, em Chipre, .. Leva-me ali, Bromio, leva-me e inspira o riso e a veneracdo! Ali nosso sagrado feitico ‘e nosso éxtase so bem-vindos; ali tém seu lar as Gragas, ¢ o doce desejo. (Eurfpedes, 1954, 204). Aqui, através deste canto das ménades, Euripedes descreve uma qualidade da sexualidade de Afrodite, que se entende como uma sexualidade que ¢ vivida e desfru- tada num corpo dionisfaco. Uma sexualidade experimen- tada como um sacramento, As palavras “sagrado feitig e “éxtase” evocam a imagem de uma sexualidade seme- Ihante a experiéncia mistica atribuida a Dioniso, que j discutimos. 0 Coro canta para a unido de duas divindades: Dioniso, com o atributo de Bromio, e Afrodite, a senhora de Chipre. Esta comunhao oferece uma mistica exaltagio sexual, vivida num instante; oferece um breve instante de resplendor. Esta imagética de As Bacantes lanca algu- ma luz na confusdo relacionada com a sexualidade; uma confusao que existiu, evidentemente, nos tempos pagaos e que pertence, como vimos, a repressiio de Dioniso. Nao creio estar equivocado ao dizer que na psicologia moderna asexualidade tem sido tratada a partir de um ego titanico, que nos distancia muito mais da imagem de Eurfpedes: aménade ansiosa de sua sexualidade e experimentando-a no seu corpo dionisiaco. 83 A comunhio de Afrodite e Dioniso, na sexualidade, poderia ser vista como uma via para uma consciéncia dionisfaca. A sexualidade, em si mesma, sem o corpo de Dioniso, converte-se numa frustracao simplesmente infantil e histérica. Outra possibilidade dessa comunhéo seria vé-la como uma iniciagdo na loucura dionisfaca; em outras palavras, seria aceitar a sexualidade como um vefculo imaginativo e erdtico que conecta com a lou- cura dionisfaca, Este seria o enfoque adulto, mesmo que distante dos esquemas da psiquiatria e da psicoterapia modernas. Afrodite e Dioniso oferecem o Ambito arque- tipico adequado para o funcionamento desse instinto, com todas as suas amplas possibilidades e com sua forte presenea na psique. Penteu jura destruir Dioniso. Entao se dé conta da presenga de Tirésias e Cadmo e lhes grita, de forma gozadora: Mas, olhem! Outro milagre! Vejo Tirésias — 0 adivinho — vestido com pele de veado; e 0 pai de minha mae, como uma bacante com seu tirso! Bem, é um espetaculo tao ridiculo que causa risos! E assim prossegue insultando os dois ancidos. Tiré- sias Ihe responde: ~~. Teu falar fecundo promete sabedoria; mas nao ha inteligéncia em tuas palavras. O poder e a eloquéncia num homem obstinado traduzem-se em loucura; um homem assim é um perigo para o Estado. (Op. cit., 199-200). Estas linhas reforcam a ideia de que Penteu pode ser considerado como modelo do politico ateniense, Tirésias tenta sem éxito algum fazer com que Penteu abandone seu propésito de destruir Dioniso e, num longo 84 discurso para acalmar o Animo de Penteu, toca a origem da cultura ocidental: Porque existem duas coisas, nos assuntos humanos. A primeira; Deméter — a deusa que também é a Terra, chame-a com 0 nome que queira —, gue nutre os homens com 0 alimento seco. Depois dela, veio Dioniso, o filho de Sémele. A bendigao que ele buscou e outorgou aos homens 60 complemento do pao: 0 didfano suco da uva. Quando os mortais bebem sua cota de vinho, os sofrimentos de nossa raga infelia desaparecem, os males cotidianos sio esquecidos com 0 sonho. Nao existe outra cura para a dor. (Idem, 200), Tirésias expds a verdade terrena do pio e do vinho atribufdos, respectivamente, a Deméter e a Dioniso. Trata-se de uma verdade de tal magnitude que o cristia- nismo usou 0 pao e o vinho para expressar 0 mistério da Eucaristia. Em outro nivel e recordando a ambivaléncia inata a Dioniso, notamos que o que para Tirésias 6 uma bén¢ao, para outros é uma maldig&o, Com isto entramos no terreno da loucura por adigao ao alcool. Um dos nomes de Dioniso 6 oinos, vinho’; o vinho em si é 0 nome de um deus e nao hé diwvida de que, ao beber um copo de vinho, tem-se acesso mais imediato a Dioniso no corpo. Estas linhas prévias devem ser lidas dentro de um contexto geografico e racial: 0 pio do trigo e o vinho das uvas foram ganhos culturais, de origem mediterranea. Hesfodo alertava, reiteradamente, sobre as pessoas que nAo comiam pao; isto 6, sobre os barbaros™. Profiro ver Dioniso como o deus da embriaguez e da intoxicacao (es- * Quando os jesuttas foram para a China, no séeulo XVI, e falaram sobre .mistério ds Bucaristia, relacionande-o com v pio © 0 vinho, os ehineses nao ‘tinham ideia do que estavam dizendo a cles, 85 tados que acontecem em todas as culturas) dentro desse contexto geogréfico, e deixar fora qualquer outra conexao que possa ter com divindades similares nos estudos de religiées comparadas. Em seus livros Greek Piety (1969) e Greek Folk Reli- gion (1961), Nilsson chama a atengao para a importancia das libagdes na vida didria familiar, nos simpésios e nos rituais religiosos. Na vida doméstica, o dia comecava com uma libag&o em honra a Héstia, a deusa do lar, ou em honra doagathos daimon, e ao longo do dia faziam-se liba- des a outras deidades. & digno de atengao o fato de que, com o vinho de Dioniso, num ritual religioso altamente individual, fazia-se a conexao com outros deuses e deusas, isto 6, com diferentes formas e estilos de vida. No entanto, Eurfpedes, no primeiro coléquio de As Bacantes, mostra que um dos motivos da fiiria de Dioniso é que Penteu 0 tenha excluido de suas libagdes. Quando Tirésias fala dos “sofrimentos de nossa raga infeliz”, est se referindo, provavelmente, ao sofrimento dos titas. Considero que a cultura dionisiaca compensa com 0 vinho esse sofrimento titanico, diario e repetitivo. ‘As linhas poéticas de Euripedes e dos estudiosos sobre as libagoes falam das rafzes dionisfacas dos povos medi- terraneos. Em seu livro Dionysos (1976, 154-55), Kerényi tra- balhou sobre os relatos que contam a origem do vinho, dentro do mito da chegada de Dioniso: Teério ia concedendo o dom do vinho. Numa carreta de bois, com odres repletos de vinho, ia pereorrendo as mon- tanhosas regides da Atica, entao habitadas por pastores riisticos. Os pastores embriagaram-se e pensaram que haviam sido envenenadbos... e assassinaram Iedrio... N&o 6 possivel conceber que o deus do vinho, que chegava do estrangeiro, apresentou-se cindido em duas pessoas, 0 dous eo heréi, Dioniso ¢ lear. 86 ‘Nao podemos relegar esta histéria aos tempos classi- cos. Continua vigente no excesso de bebida que acontece hoje. Durante minha infancia, escutei relatos sobre festas de camponeses, nas quais se bebia e dangava e que ter- minavam com camponeses manejando um sabre e com a morte. Isto me recorda o pandeménio e a chacina na taberna, no final de um filme de vaqueiros, No entanto, sem chegar a essas epifanias extremas e tragicas de Dioniso, pode-se falar de uma iniciagéo na bebida, e os relatos sobre Icdrio poderiam ter tido o propésito de ser um alerta e uma iniciagdo ao mesmo tempo; sobre essa iniciacdo, em como beber vinho misturando-o com agua. Muitos de nés somos capazes de recordar essa timida ini- ciagao na adolescéncia, quando nao sabiamos como beber ce acabavamos com uma forte ressaca; também, quanto nos custou aprender a beber adequadamente, 0 que poderia ser chamado de hébito cultural, ¢ assim evitar o perigo de enlouquecer com a bebida. Irwin Rhode, em seu livro Psyche (1948, 149 n. 125), estabelece a conexdo de Dioniso com o uso ritual da maco- nha, Trata-se de uma droga suave, que tem sido utilizada nos ritos iniciditicos dos povos primitivos, Durante os anos 60, escutamos muitas historias sobre as emogdes que acompanhavam o fumar ‘a erva’ e, por outro lado, sobre a chamada ‘viagem ruim’, na qual Dioniso provoca uma espécie de loucura paranoia. Mesmo que a maconha dé prazer a alguns de seus consumidores, eu acrescentaria que Dioniso faz sua epifania na viagem ruim, quando se experimenta a loucura. Aqui podemos diferenciar dois aspectos de Dioniso: brindar um estimulo para os senti- dos e induzir a uma loucura transitéria que pode ensinar alguma liggo a psique. A viagem ruim, com suas fantasias e emogdes negativas e paranoicas, seria de maior proveito para 0 amadurecimento de uma personalidade do que a ‘viagem boa’, com o prazer dos sentidos e 0 éxtase. 87 Kerényi, em seu livro Dionysos, que antes mencio- namos, trabalha a relacdo entre Dioniso e a papoula, ¢ conclui que os seguidores de Dioniso tinham a ideia de que fumando 6pio, uma droga que causa forte dependén- cia, poderiam aleangar uma experiéncia mistica; porém, distinta da experiéncia ‘pura’ e mistica que celebra 0 Coro, ‘Nao podemos escapar ao fato de que Dioniso poderia ser. © deus das fortes dependéncias, seja a do alcool seja a de um nareético, Basicamente, a dependéncia se traduz numa necessidade urgente de vinho, de licores fortes ou de drogas. Deve-se notar que os alcodlatras e os adictos As drogas nao comem, como se a relacao entre Deméter e Dioniso tivesse se quebrado. Na estrofe de Euripedes, 0 vinho e 0 pao séo apresentados juntos, complementando- -se. As duas deidades contribuem para uma estrutura arquetipica de cultura: pao e vinho, Aqui podemos come- gar a refletir sobre a psicologia dessas pessoas que ndo tiveram éxito na iniciagdo dionisfaca por meio do vinho e das drogas e, por isso, permaneceram presos & loucura da dependéncia. _ Nao estou interessado aqui em ver como a psi- quiatria moderna tem trabalhado com a dependéncia Porém, gostaria que a psicologia da dependéncia fosse totalmente assumida como prépria do ambito arquetfpi- co de Dioniso, o deus do vinho e dos nareéticos, porque deste modo pode-se perceber que hé af um componente trégico. A dependéncia é, na realidade, a tragédia de uma pessoa que busca sua prépria destruigao: trata-se de uma condi¢do trégica mais do que um vieio, como foi tradicionalmente enfocado, ou mais do que uma enfermi- dade, como é vista a partir da perspectiva da medicina ¢ da psiquiatria contemporaneas. Os efeitos benéficos do vinho passaram a fazer parte da obsessio com as dietas e com o colesterol dos meios médicos e cientfficos, mais do que a continuagao de uma 88 tradigao cultural que enriquece a vida. Com um pouco de imaginacdo, podemos ver que esta retérica participa da mesma batalha entre Dioniso e os titas: a perigosa aceleragao da mentalidade titdnica de hoje pode ser dimi- nufda ingerindo-se um ou dois copos de vinho durante 0 almoco. Vejo nisso a domesticacdo dos acelerados impulsos titdnicos. Inclusive, recentemente, fomos informados de que a casca da uva é um preventivo contra 0 infarto e 0 cdncer. No entanto, a profissao médica, na sua ansiedade de prevenir 0 alcoolismo e a dependéncia, concentra-se em produzir uma pilula que apresente as mesmas pro- priedades da casca da uva. A cultura dionisiaca do vinho foi reprimida mais uma vez. A ciéncia titanica carece de imaginagao para apreciar que um copo de um bom vinho fala ao coragao e, 86 com isso, pode curé-lo, . ‘Talvez seja relevante recordar um caso muito especial de repressao histérica e coletiva de Dioniso em relacao com acultura do vinho, Na metade do século XIX, um gru- po de politicos norte-americanos visitou algumas regides vinicolas da Franca. Vindo de uma sociedade progressista e orientada pelo dinheiro, ficaram impressionados com 0 atrasoe a pobreza dessas regides e foram incapazes de ver a cultura na vida das pessoas que ali viviam, Regressando para os Estados Unidos, aprovaram uma lei que proibia a produgao de vinho, pois estavam eonvencidos de que o vinho e a pobreza se davam a mao e ndo perceberam a conexao entre o vinho e a cultura. Mais tarde, durante os primeiros anos do século XX, depois da aprovacdo da Lei Seca que proibiu as bebidas, Dioniso se vingou através do contrabando, dos gangste- res e da violéncia, Inclusive hoje, no final do sécula XX e mesmo que os Estados Unidos atualmente seja um pais produtor de vinho, essas repressdes da cultura dionisiaca do vinho deixaram cicatrizes que perduram na sociedade norte-americana, Mais ainda, por causa da continua re- 89 Pressio, parece impossivel que essa sociedade encontre Sua cura. Os Estados Unidos apesar de sua renomada guerra contra a droga’, é 0 maior consumidor de drogas aditivas do mundo. DEPOIS que Penteu abandona a cena, Tirésias faz um diagnéstico preciso de sua condi¢o mental: Desgracado! Nao sabes o que dizes. Se antes estavas desequilibrado, agora estas louco. (Euripedes, 1954, 203), Os dois anciaos se dispoem a “pagar o servico devido 8 Dioniso, filho de Zeus”. Antes de ir embora, Tirésias reza uma espécie de oracdo profética: Cadmo, o nome Penteu significa dor. Conceda-te Deus que ele nao traga alguma léstima para tua casa. Nao tomes isto como uma profecia, Julguei seus atos. Palavras tdo tolas 56 revelam um tolo, bid., 203), Com esta intervengio de Tirésias, temos um diagnés- tica do estado mental de Penteu em primeiro lugar e, em segundo lugar, um prognéstico em forma de profecia, No entanto, devemos entender que este prognéstico baseia-se na conduta e no discurso de Penteu; isto 6, de toda sua retérica. Este tipo de prognéstico constitui o trabalho. -padrao da psicologia moderna. ‘Tirésias e Cadmo abandonam a cena, em diregio & montanha, e 0 Coro responde a discussao de Penteu contra Dioniso: Escutaste sua blasfémia? Penteu se atreve — escutaste? — a injuriar o deus da alegria, 90 Ao filho de Sémele que, ao comecar a festa coroada de alegria, 6 cleito como lider entre todos os deuses; Pois sous dons sdo a alegria e a unido da alma na danga, (Ibid., 204). Novamente aqui, observamos esse dom importante de Dioniso— alegria ao dancar, a alegria como experiéncia da alma, A “anido da alma na danca” encontra-se na base da experiéncia mistica de todas as religides dionisfacas. Partindo de fontes antropoldgicas e da histdria da reli- gido, Dodds (1980, 252) apresenta abundantes exemplos dessa “unio” e gostaria de me referir a citagiio que ele faz. de Aldous Huxley com respeito a essa gente de muitas sociedades para quem “as dangas rituais subministram uma experiéncia religiosa que parece mais satisfatoria € convincente do que nenhuma outra. Assim, [algumas pessoas] com seus mtisculos, é a maneira mais facil de obter um conhecimento divino”. Agora chegamos a parte final de As Bacantes. Os guardas que foram enviados para prender Dioniso entram em cena com seu prisioneiro. Ao mesmo tempo, Penteu chega do palécio. Comega a interrogar Dioniso, como se fosse um chefe de seguranca que interroga um terrorista; depois disso, envia Dioniso preso para os estdbulos. Entéo, ouve-se a voz de Dioniso, entre bastidores, chamando suas ménades: Io, Io! Reconhecem minha voz? Me eseutam? Seguidoras de Bac (Euripedes, 1954, 210). Mas ocorre um milagre: um terremoto destroi o palacio de Penteu e Dioniso fica livre. Entra de novo em cena e conta ao Coro como enganou Penteu e escapou de 91 suas ataduras. Descreve 0 estado mental de Penteu no momento em que tentava prendé-lo nos estdbulos: Entéo, zombei dele! Acreditando acorrentar-me, nem sequer chegou a me tocar ou a me prender, a ndo ser em sua mente alucinada. Perto dos comedouros, onde ele tentava me amarrar, viu um touro; eaeste amarrou com sua corda ao redor das patas ¢ unhas, ofegando com raiva, destilando suor mordendo os labios; enquanto eu permanecia placidamente sentado e o observava. (bia. 212). Ruth Padel (1995, 142) escreve: A loucura tem causa e efeitos que no sao humanos. Nem pessoa enlouquecida, nem o daimon que causa a loucura sao humanos. As causas demoniacas da loucura podem ser, em parte, animais. E loucas, como Dioniso. E, igual- mente, suas vitimas. Quando enlouqueces, tu te tornas (como) um animal. As linhas de Euripedes mostram com clareza 0 en- contro entre esse daimon que induz @ loucura e Penteu, a pessoa enlouquecida que, em sua alucinagao, confunde Dioniso com o touro. Este animal esté intimamente re- lacionado com Dioniso: o sacrificio do touro, do que nao é humano, como um ato religioso. Portanto, podemos ver a tourada como o encontro da arte com o que “no é huma- no”. Seguindo Ruth Padel, Penteu “padece de phantas- mata (aparigoes, visdes)” (idem). Em seguida, Dioniso narra como produziu essa apa- rigdo que Penteu esforgou-se para prender, pensando que era Dioniso, e como destruiu os estabulos deixando Penteu aflito e aturdido. Penteu regressa ao cendrio e, ao ver Dioniso, dé um grito violento. Entra um boiadeiro e da noticias sobre 0 que acontece nas montanhas: 92 E elas (as ménades) usam coroas de hera, de carvalho ou flores de briénia. ‘Uma pegou em sua mao um tirso e golpeou a rocha, de onde surgiu um riacho cristalino. Outra afundou seu tirso na terra uma fonte de vinho fez. brotar para ela o deus, As que desejavam beber o branco leite 86 tinham que escavar a terra com as pontas de seus dedos, ¢ entdo uma torrente esbranquicada fluia para que elas Debessem, f aaa ‘enquanto que dos tirsos pingavam doces rios de mel. eet pee panfpedes, 1954, 216) Esta 6 uma evocacdo imaginativa da joie de vivre dos rituais dionisiacos nas montanhas, uma imagem que inspirou muitos artistas e que poderia ser um componen- te da fantasia do “alegre Baco”, No entanto, justamente depois desta narracao arcédica, o boiadeiro descreve 0 outro lado da moeda: 0s touros, que, momentos antes, sentiam a raiva orgulhosa da investida de seus cornos, deixavam cair seu corpo no chao, arrastados por miriades de maos femininas, e eram esfolados com mais rapidez do que demoram em pestanejar teus reais olhos. (bid., 217), Este 6 um relato espantoso dos rituais dionisfacos mais arcaicos e parece pertencer & matanga ritual do deus com aparéncia de touro; mesmo que dizer isso seja insuficiente a respeito do que a imagem possa transmitir. Na verdade, nao podemos lé-la Depois de escutar o boiadeiro, Penteu quer orga- nizar uma operagdo militar para cercar ¢ aprisionar as mulheres que esto na montanha, Grita suas ordens aos guardas. Mas Dioniso o alerta: .. ndo é ieito que levante tuas armas contra o deus. Dioniso nao toleraré que 93

Вам также может понравиться