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F eminismo tinha sim : M illôr, humor e feminismo*

CRESCÊNCIO, Cintia Lima (mestranda)**


UFSC/Santa Catarina

Resumo: É recente a incorporação de mídias impressas no arcabouço de documentos da disciplina história. Passamos
muito tempo questionando a validade desse tipo de estudo, em função da parcialidade e subjetividade que esse meio de
pesquisa retém. Hoje, no entanto, ao encararmos a fonte também como construção do historiador, nos desapegamos
desse receio de escrever a história nos e por meio dos periódicos. Nesse sentido, na presente pesquisa, proponho a
exploração da revista Veja como objeto e fonte histórica, desde sua fundação em 1968 até 1984. Seguindo uma
perspectiva de gênero e levando em consideração o cenário de ditadura e de emergência da 2ª onda feminista, pretendo
perceber que modelos de feminismo foram propagados por Veja , mais especificamente na coluna de humor de Millôr
Fernandes que, com bastante freqüência, ao longo dos 16 anos que fez parte da equipe da revista, fez do feminismo um
objeto de riso e de crítica. Para isso farei uso do método da análise do discurso, tendo em vista a complexa e rica relação
que essa metodologia propõe para se pensar discurso e história. Aproprio-me de Tânia Regina de Luca para defender o
uso da imprensa como documento da disciplina história, com a proposta de que o pesquisador atente ao grupo
responsável pela publicação, identificando os colaboradores e fontes de receita, identificando o público alvo e diversos
outros fatores que compõem o discurso dos meios de comunicação impressos. Por esse viés, a escrita da história por
meio da mídia impressa, inclui a história da mídia impressa que está inegavelmente ligada a seus agentes e à história de
maneira geral.
Palav ras-chave: revista Veja, gênero, feminismo e humor.

Em tempos de discussão sobre o que deve ou não ser objeto de humor e comicidade, paralela
à preocupação com o uso dos “politicamente corretos”, vale o questionamento acerca dos limites da 
chacota, da piada e, até mesmo, do riso em temas que julgamos como intrinsecamente sérios e
dignos de um tratamento sóbrio e formal. A mídia impressa, como grande colaboradora na difusão
do humor, por meio de colunas, charges, tirinhas, encontra-se imersa nesse ramo da imprensa que
cede espaço a ironias de cunho político, social e cultural.
Dentro de uma perspectiva acadêmica no interior da disciplina história, trabalhar com
imprensa como fonte e objeto, já não é novidade, visto que, depois de décadas de debate acerca da
validade de jornais e revistas como documentos para o historiador, a exploração da imprensa pela
história parece ser apenas um problema metodológico que vem sendo sanado com competência por
pesquisadores que defendem o uso da imprensa como documento histórico. Já o tema humor, não
tem sido alvo de tantos estudos, seja por falta de interesse ou, talvez, por falta de credibilidade.
Nesse sentido, no presente artigo, pretendo reunir estes dois nichos, a imprensa, mais
especificamente a revista Veja, e o humor, mais especificamente a coluna de Millôr Fernandes que,
por 16 anos, começando no período da ditadura militar, recheou as páginas da revista com críticas
ácidas e, com freqüência, muito mal recebidas pela censura. Para isso não objetivo fazer uma

*
Trabalho apresentado no GT de História da Mídia Impressa, integrante do VIII Encontro Nacional de História da
Mídia, 2010.
**
Graduada em história bacharelado na Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Mestranda do Programa de Pós-
Graduação em História Cultural da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, sob a orientação da Profª. Drª,
Cristina Scheibe Wolff. Bolsista CNPQ. Endereço Eletrônico: cintialima23@gmail.com
2
análise global da produção do jornalista, mas uma análise bastante específica que, do ponto de vista
dos estudos de gênero, pode render bons frutos: a análise dos discursos sobre feminismo1
produzidos pelo desenhista, humorista, dramaturgo e escritor durante sua trajetória na revista Veja
entre 1968 e 19842, que, não raro, tratou de imortalizar o tema feminismo em suas colunas nos mais
variados jornais e revistas dos quais fez parte3.
Considerando a crescente importância das formações discursivas e o aumento significativo
de interesse da história pelos sentidos dos discursos, metodologicamente este trabalho respalda-se
na análise do discurso que tem como premissa a complexa e rica relação que, no processo de
interpretação, se dá entre o discurso e a história, respeitando a sugestão de Michel Pêcheux que na
década de 1980 apontava que a análise do discurso circula entre a análise como descrição e a
análise como interpretação4. Em uma perspectiva mais atualizada, Eni Orlandi afirma que:
A Análise de Discurso, como seu próprio nome indica, não trata da língua, não trata da gramática,
embora todas essas coisas lhe interessem. Ela trata do discurso. E a palavra discurso,
etimologicamente, tem em si a idéia de curso, de percurso, de correr por, de movimento. O
discurso é assim palavra em movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso observa-
se o homem falando5.

A análise do discurso, portanto, não visa uma análise lingüística puramente, em que os
termos sejam semanticamente analisados e compreendidos. Essa metodologia objetiva o discurso,
que implica o trabalho de explicitar, descrever e interpretar montagens sócio-históricas de sentidos.
O discurso não é estanque, ele é produzido por homens e mulheres a partir de suas subjetividades,
experiências, contextos, tempos. Nesse sentido, o analista de discurso prima pela observação das
redes com as quais os discursos se entremeiam. Por isso, pensar a figura de Millôr implica remontar
sua forma de pensar e agir em espaços determinados; explorar a revista Veja exige o mapeamento
das relações que ela estabelece com seu meio; refletir sobre o feminismo supõe compreendê-lo
como acontecimento, movimento; e pensar o discurso anuncia a necessidade de se compreender as
diferentes possibilidades de sentido que são múltiplas, mas estão limitadas pelas fontes, pela
bibliografia, pelo conhecimento do pesquisador.
Desse modo, ao atentar às referências ao feminismo feitas pelo colunista da Veja pretende-se
considerar um cenário de ditadura militar e de emergência da 2ª onda feminista que, no Brasil, foi
um grande alvo das críticas de Millôr Fernandes, como já foi analisado por Rachel Soihet, em

1
Faço uso do termo feminismo para fins de fluência da escrita, no entanto ressalto a inviabilidade de se pensar em
feminismo e não em feminismos, não só em função da diversidade histórica do feminismo, mas também em função das
variadas frentes de luta. Isso porque, entendendo o feminismo enquanto teoria, prática, movimento, acontecimento real
e discursivo, podemos compreendê-lo enquanto imbricado nas próprias idas e vindas históricas.
2
Millôr Fernandes voltou a fazer parte da equipe de Veja em 2004, entretanto, deixou a revista no ano de 2009, quando
do lançamento do acervo da Veja online. O humorista estaria descontente por não ter autorizado a disponibilização de
sua coluna no acervo digital. Quando de sua saída em 1984, foi substituído por Luis Fernando Veríssimo.
3
Destaco que nessa análise não são contemplados os desenhos e charges produzidos por Millôr Fernandes.
4
PÊCHEUX, Michel. O Discurso: Estrutura ou Acontecimento. Campinas, SP: Pontes, 1990, p. 50.
5
ORLANDI, Eni. P. Análise de Discurso: Princípios e Procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 2009, p. 15.
3
pesquisa que apontou a imprensa libertária fazendo uso da chacota como arma anti-feminista. Nesse
trabalho a historiadora aponta o tratamento dispensado às feministas por Millôr Fernandes como
grosseiro e superficial, visto que simplificava a luta feminista a um desejo crescente de
promiscuidade sexual6.
Entretanto, Veja não pode ser apontada como parte integrante de uma imprensa libertária,
nem mesmo alternativa e, menos ainda, nanica7. De acordo com Maria Fernanda Lopes de Almeida,
a revista Veja foi fundada por Victor Civita, dono da Editora Abril e Roberto Civita, seu filho, no
dia 11 de setembro de 1968, sendo a primeira semanal a trazer o modelo Ti me ao Brasil. Mino
Carta, renomado jornalista, foi convidado a encabeçar o projeto e, ainda hoje, é um nome lembrado
quando se fala na história da referida revista8. Nascida durante a ditadura militar, Veja sobreviveu ao
período de arbítrio afirmando-se hoje como uma das revistas mais vendidas do país.
De acordo com Alexandre Rossato Augusti, foi Mino Carta quem melhor soube lidar com a
o lado burocrático da censura. Conforme o autor: “Mino Carta soube detectar jornalistas de talento e 
navegar entre as disputas militares. A cada reportagem, ampliou os limites do que a revista poderia
publicar sob a censura”9. Maria Fernanda Lopes de Almeida segue no mesmo sentido, ao afirmar,
por meio de sua pesquisa em arquivo e, principalmente, através dos relatos orais a que teve acesso,
que o corpo de jornalistas estava em um outro nível de produção, que não necessitava da relação
direta com o censor, relação esta que era estabelecida por Mino Carta com competência 10.
Entretanto, Anne-Marie Smith destaca que durante esse período a imprensa era organizada
verticalmente, tendo os proprietários a posse da última palavra, sendo assim, a autora salienta o
poderio de Roberto Civita, herdeiro da Editora Abril, responsável pela publicação da revista Veja11.
Segundo Tânia Regina de Luca, o trato da imprensa na sua conversão a documento e fonte
histórica, exige certos cuidados que, superficialmente, transformam o impresso em fonte e objeto de
pesquisa, na medida em que, ao assumir-se a imprensa como fonte, nesse caso a revista Veja , é
preciso todo um mapeamento do grupo responsável pela publicação, a identificação dos
colaboradores e fontes de receita, a localização do público alvo 12. A partir dessa perspectiva, o

6
SOIHET, Rachel. Zombaria como arma anti-feminista: instrumento conservador entre libertários. In: Revista Estudos
Feministas, vol. 13, n; 3, setembro-dezembro, 2005, pp. 591-611. p. 597.
7
Conforme Anne_Marie Smith: “Grande  implica  ser  representativa  ou  majoritária,  embora  ela  pudesse  ser  apenas  a 
dominante ou a mais bem-sucedida comercialmente. Alternativa implica crítica, embora ela pudesse ser apenas não-
conformista  e  idiossincrática”. SMITH, Anne Marie. Um acordo Forçado: o consentimento da imprensa à censura no
Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2000, p. 49.
8
ALMEIDA, Maria Fernanda Lopes. Veja sob censura: 1968-1976. São Paulo, Jaboticaba, 2009, p. 23.
9
AUGUSTI, Alexandre Rossato. Jornalismo e Comportamento: os valores presentes no discurso da revista Veja .
Mestrado em Comunicação e Informação. Programação de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2005, p. 76. Mino Carta teria saído da revista em 1975 por discordar dos
rumos tomados pelo veículo.
10
ALMEIDA, Maria Fernanda Lopes. 2009, p. 139.
11
SMITH, Anne Marie. 2000, p. 55.
12
LUCA, Tânia Andrade de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org). Fontes
Históricas. São Paulo: Contexto, 2005.
4
pesquisador não pode eximir-se de lidar com a imprensa sempre como objeto, já que o rigor
metodológico que se preceitua na relação entre historiador e fonte, supõe o conhecimento amplo do
cenário de produção desse documento que está sendo apropriado à pesquisa. A mesma exigência é
feita para se aplicar a análise do discurso, na medida em que, conforme Eni Orlandi, é preciso
considerar a importância das condições de produção do discurso: contexto imediato e contexto
amplo13.
Nesse sentido, é importante localizar o espaço de produção de Veja , um espaço marcado por
um contexto de tensão, historicamente lembrado pela forte censura aos meios de comunicação. Mas
também, como um espaço de consentimento, termo muito bem empregado por Anne-Marie Smith
que aponta a inércia causada pela burocratização da censura, fazendo dela algo impessoal e de
difícil localização, o que, estrategicamente, causou a passividade de muitos órgãos de imprensa. A
mesma autora atenta a um fato bastante relevante, frequentemente esquecido pelos pesquisadores:
trata-se de uma empresa e, como empresa, representa interesses financeiros de grupos específicos14.
Nesse prisma, a autora aponta a censura como um acordo forçado, do qual a imprensa, incluindo
Veja, viu-se obrigada a consentir, tanto para manter-se financeiramente, visto que a publicidade
financiada pelo Estado não era irrisória; quanto como representante de determinados interesses de
uma classe média15, notadamente o público alvo da revista aqui analisada.
É relevante pontuar ainda a origem da receita de Veja e de boa parte da grande imprensa que,
segundo Anne-Marie Smith, é fruto da publicidade e não das vendas, como é característico da
imprensa alternativa16.  Segundo  pesquisa  da  referida  autora:  “A  grande  imprensa  gozava  de 
estabilidade financeira, se bem que estivesse bastante sujeita à pressão. Era tradicional,
convencional e dominante, mas não invunerável nem independente. A integridade profissional de
alguns  de  seus  atores  mais  importantes  reagia  a  múltiplas  investidas” 17. Assim, faz-se necessário
localizar a revista aqui analisada em um espaço bastante marcado pela circulação de capital que
cercava a Editora Abril, já consagrada como uma das maiores editoras do Brasil e que, no começo
conturbado de Veja, arcou com os prejuízos da revista com os lucros de suas outras publicações18.
Em meio a discussão sobre e resistência feita por Veja , muito lembrada por Maria Fernanda
Lopes de Almeida, e sobre o consentimento do qual Anne-Marie Smith acusa a imprensa brasileira
ter-se curvado, debate cercado pelo próprio cenário de atuação da revista, emerge um ponto de
difícil contestação: Millôr Fernandes foi um dos principais responsáveis pelos riscos raivosos dos

13
Contexto imediato é o que envolve o discurso, seu suporte, sua produção, sua assinatura. O contexto amplo é o que
traz para discussão os efeitos da sociedade, suas instituições, enquanto a memória atua como interdiscurso, ao acionar
dizeres e experiências. ORLANDI, Eni. P. 2009, p. 30-31.
14
SMITH, Anne Marie. 2000, p. 202.
15
AUGUSTI, Alexandre Rossato. 2005, p. 83.
16
SMITH, Anne Marie. 2000, p. 57.
17
SMITH, Anne Marie. 2000, p. 58-59.
18
ALMEIDA, Maria Fernanda Lopes. 2009, p.45.
5
censores e também pela chegada de bilhetinhos19 às redações de Veja . Em pesquisa que procurou
entender a organização e estrutura da censura, defendendo a idéia de que esta não era aleatória, a
historiadora e jornalista Maria Fernanda Lopes de Almeida nomeou Millôr como grande alvo de
censura durante sua estada na revista Veja . Conforme a pesquisadora: “A coluna de Millôr sempre 
foi um dos principais alvos do carimbo do censor: foram 505 linhas riscadas e 19 desenhos
proibidos”20. Pelos números, não é possível negar a difícil relação da censura com Millôr que,
conforme Almeida, foi um dos responsáveis pelo retorno da autocensura à Veja em 1974, além de
sua coluna ter de ser enviada por muito tempo a Polícia Federal em Brasília para receber
liberação21. Com críticas e ironias ácidas destinadas a situação econômica, social, política e cultural
brasileira, Millôr Fernandes esteve sujeito ao crivo da censura com atenção especial.
Não é possível nesse artigo, em função do objeto que me proponho a tratar, os discursos
sobre feminismo produzidos pelo colunista, afirmar se esse tema esteve dentre os temas censurados.
Entretanto, em função de uma pesquisa mais global sobre os discursos produzidos pela revista de
maneira geral sobre o assunto, supõe-se que o tema, pelo menos no caso de Veja , não incomodava a
censura, sendo que, talvez, fosse bastante interessante ao regime, a desmoralização e o descrédito
que causavam as palavras de Millôr. Afinal, o feminismo é também um movimento social que tem
por premissa a transformação de certas estruturas, mesmo que as críticas do próprio Millôr
Fernandes, recaíssem sobre o fato de considerar o feminismo como algo essencialmente burguês.
Millôr Fernandes, em livro dedicado a expressar suas considerações mais ácidas sobre os
mais variados assuntos, desde sua reflexão sobre bonecas infláveis, até seu conceito de liberdade de
expressão, traz uma breve e confusa reflexão sobre feminismo, o que é explicado pelo fato de ser
uma síntese de diferentes escritos.
Quer dizer que as mulheres queriam se liberar apenas para imitar os homens: beber mal, se
locupletar em ministérios e entrar pra Academia Brasileira de Letras? (1980) As mulheres, afinal,
já estão com tudo. Isto é – só falta um pedacinho. O movimento feminista, como tudo o mais, está
a reboque da tecnologia. Quando surgiu a construção vertical, o telefone e o automóvel, para dizer
só isso, o sistema já não conseguia mais controlar o comportamento sexual das pessoas. E as
mulheres começaram a se liberar, a partir do sexo. O bom pai zelozo não tinha mais como
controlar a “coisinha” da filhinha. Ela ia pro apartamento de baixo, ou o automóvel passava depois 
de uma conversa ao telefone e em 15  minutos o “mal” estava  feito. Depois a televisão. Depois a
pílula.  Só  depois  veio  o  “movimento”,  a  ideologia,  que,  como  todas,  serve  apenas  pra  dar  uma 
arrumada no avanço incontrolável. Basta olhar os adeptos de hoje para você ter certeza de que
Casanova, Jack, o Estripador, Landru e o estrangulador de Boston seriam todos fervorosos
feministas.  Está  bem  que  a  mulher  não  queira  mais  ser  o  “descanso  do  guerreiro”.  Mas  não 
precisava ser a aporrinhação do pacifista22.

19
Conforme Anne-Marie Smith os bilhetinhos eram uma forma da chamada autocensura. Neles constavam assuntos
proibidos. Não traziam origem ou timbre oficial, não eram entregues aos órgãos da imprensa, um funcionário do jornal
ou revista copiava seu conteúdo e assinava mostrando que fora informado. Já a censura prévia era realizada na Polícia
Federal ou nas próprias redações que contavam com a presença de um censor que controlava a escrita dos impressos.
SMITH, Anne Marie. 2000, p. 141.
20
ALMEIDA, Maria Fernanda Lopes. 2009, p.135.
21
ALMEIDA, Maria Fernanda Lopes. 2009, p.133-134.
22
MILLÔR, Fernandes. Millôr Definitivo: a bíblia do caos. Porto Alegre: L&PM, 2002, p. 231.
6
Logo após uma definição polêmica de feminino23, Millôr reproduz trechos de pensamentos e
elucubrações sobre feminismo que rechearam as mais variadas páginas da imprensa brasileira.
Inicio a imersão desse artigo com essa reflexão, que não foi retirada de Veja por pensar que ela, de
alguma maneira, engloba as percepções de Millôr Fernandes sobre feminismo, tão criticadas por
feministas de ontem e de hoje. A citação faz uma referência inicial a tal igualdade que seria
almejada pelas feministas, igualdade essa que seria alcançada, na visão do escritor, com a
exploração de uma vida boêmia, e com a inserção das mulheres em uma vida burocrática, já
vivenciada por homens. Segue o segundo tópico de crítica, o suposto desejo feminista de se liberar
sexualmente, o que seria atingido, com o auxílio da tecnologia, do telefone e do carro, como bem
descreve a citação. Nesse sentido, a ciência estaria colaborando para o alcance dos objetivos
feministas. Por último, Millôr destaca que o movimento, que ele aloca entre aspas, e a ideologia,
seriam um ato final, surgido atrasado para coroar o avanço dos tempos e fazer-se contextualizado.
Finalizando, Millôr ataca as feministas mais raivosas, ao destacar nomes um tanto singulares de
assassinos e psicopatas que, em sua visão, poderiam ser feministas na atualidade.
De fato, qualquer resquício de respeito ou mesmo de tolerância do escritor em relação ao
feminismo, não é expresso nesse trecho e, menos ainda, nos excertos extraídos de Veja que são foco
dessa análise. Rachel Soihet, em trabalho citado anteriormente já esmiuçou o tratamento dedicado
por Millôr, através do jornal O Pasqui m, ao tema feminismo, no entanto, cabe a pergunta: De que
feminismo fala Millôr? Trata-se de um movimento estrangeiro? Uma teoria? Um pensamento? Um
movimento burguês?
Para localizarmos essa discussão, pretendo antes refletir sobre a emergência do feminismo
no mundo e também no Brasil, visto que as didáticas ondas feministas24 que são corriqueiramente
lembradas, implicam no suposto mergulho brasileiro e latino-americano em águas barulhentas e
estridentes vindas dos oceanos gelados dos países considerados centrais. Conforme Clare
Hammings, a própria noção de onda feminista leva a uma noção de progresso e homogeneização,
fazendo com que se desconsiderem as especificidades do feminismo desenvolvido em cada região e
em distintos tempos25. No Brasil o feminismo surgiu em um cenário distinto, de ditadura e
repressão, muito diferente do contexto transformador que assolava Europa, e o pós-guerra pelo que

23
“ O melhor movimento feminino ainda é o dos quadris. (Esta frase, homenagem à mulher menina moça de Ipanema,
entre os treze e os dezoito anos, cujo balanço ao andar é uma glória que nenhuma ideologia feminista conseguirá
ofuscar, foi tomada pelas feministas – ai, meu saco! – como ‘machista’. Pra começo de conversa  trocaram, por pura
ignorância, a palavra feminino por feminista (a frase vira um trocadilho idiota), além de entenderem e divulgarem a
coisa como se eu, grosseiramente, estivesse falando de movimentos dos quadris na cama – não tenho nada contra.
1971)”. MILLÔR, Fernandes. 2002, p. 230-231.
24
A história do feminismo é habitualmente dividida em duas ondas: a primeira seria a do final do século XIX e início do
século XX e se caracteriza pela reivindicação das mulheres de votarem e serem votadas; a segunda é um acontecimento
do final da década de 1960 e começo da década de 1970 e está aliada à emergência da contracultura, com reivindicações
no que se refere à sexualidade e saúde, formação profissional e mercado de trabalho. Ver mais: ALVES & PITANGUY.
O que é feminismo. São Paulo, Brasiliense: 2006.
25
HAMMINGS, Clare. Contando estórias feministas. In: Revista Estudos Feministas, vol. 17. n. 1, 2009: 215.
7
passava os Estados Unidos.
Enquanto nos Estados Unidos e na Europa os negros e as mulheres começavam a expor com força
as especificidades de sua condição de dominação, no Brasil tanto o pensamento liberal como o
marxista revolucionário dividiam a luta em dois campos exclusivos: o primeiro, da democracia
contra a ditadura; o segundo, do proletariado contra a burguesia. Nesse cenário, as mulheres
entravam em contato com o feminismo internacional por meio de viagens ou pela literatura,
introduziam as questões, formavam grupos de reflexão, propunham encontros, mas tinham muito
pouco sucesso em transformar suas problemáticas em temas do debate público26.

De acordo com Céli Regina Jardim Pinto, no livro uma Breve História do Feminismo no
Brasil , obra que deve ser lembrada pela competente tentativa de síntese da história do feminismo
brasileiro, o desenvolvimento de um feminismo em terras tupiniquins está profundamente marcado
por esse cenário de censura e ditadura em que as lutas se polarizam, primeiro, no combate à
ditadura, segundo, na tentativa de enfraquecimento da burguesia em defesa do proletariado. Em
função disso, a historiadora aponta que o feminismo brasileiro, mesmo que não obedecesse a
tradicional noção de onda, teria sido motivado por esse cenário externo, visto que exiladas,
estudantes e viajantes entraram em contato com o pensamento feminista durante sua estadia em
países como Paris e Estados Unidos. Esse determinismo precisa ser relativizado, mas podemos
continuar a considerar a importância dessa conexão.
O encontro do feminismo à moda do Primeiro Mundo com a realidade brasileira daquela época
promoveu situações tão complicadas quanto criativas: as mulheres de classe média,
intelectualizadas, que estiveram nos Estados Unidos ou na Europa como exiladas, estudantes ou
simples viajantes em busca de novas experiências, voltavam para o Brasil trazendo uma nova
forma de pensar sua condição de mulher, em que o antigo papel de mãe, companheira, esposa, não
mais servia27.

O feminismo que marcaria a história brasileira ao longo da década de 1970, portanto, teria
sido gestado através de experiências de mulheres nesses países em que as lutas feministas
avançavam. Entretanto, não se trata de uma simples onda na qual mergulhou o Brasil, mas um
processo de troca de idéias e experiências aos quais essas mulheres foram submetidas. Ao
retornarem ao país o contexto mostra-se totalmente outro, o que faz do feminismo brasileiro um
tipo específico de feminismo, fato demonstrado com sua tentativa de infiltração em sindicatos e
organizações de mulheres trabalhadoras. Conforme Céli Pinto, a organização dessas mulheres
intelectualizadas e de classe média, não foi tarefa fácil, até pelo fato de menosprezarem sua própria
causa, considerada por vezes menor diante de um país sujeito a tantas desigualdades. No retorno à
terra natal, depois de um rico contato com idéias inovadoras e revolucionárias:
...o Brasil que encontravam era um país dominado por uma ditadura militar sangrenta, na qual
todas as frestas de expressão que sobraram deviam ser ocupadas pela luta pró-democratização,
pelo fim da censura, pela anistia aos presos políticos e exilados. Somava-se a isso uma tradição
marxista ortodoxa muito arraigada, que via esse tipo de luta como um desvio em relação à luta
fundamental do proletariado contra a burguesia28.

26
PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo,
2003, p. 61
27
PINTO, Céli Regina Jardim. 2003, p. 65.
28
PINTO, Céli Regina Jardim. 2003, p. 65.
8

Nesse cenário descrito por Céli Regina Jardim Pinto, em que o contexto de ditadura
exigia uma luta a favor da democratização, da liberdade de imprensa e da anistia, mulheres com
idéias feministas tinham sua causa quase automaticamente dispensada. Nesse sentido, elas não
cooptavam nem o apoio conservador e, nem mesmo, o apoio da esquerda, que concedia primazia a
luta de classes que segundo o pensamento marxista ortodoxo, deveria ser a luta primordial, sem
desvios de ordem feminista.
... o feminismo era mal visto no Brasil, pelos militares, pela esquerda, por uma sociedade
culturalmente atrasada e sexista que se expressava tanto entre os generais de plantão como em uma
esquerda intelectualizada cujo melhor representante era justamente o jornal Pasquim, que
associava uma liberalização dos costumes a uma vulgarização na forma de tratar a mulher e a um
constante deboche em relação a tudo que fosse ligado ao feminismo 29.

Como demonstra a citação as feministas brasileiras não encontraram o melhor cenário


para lutarem por suas causas. Tanto militares como militantes da esquerda menosprezavam suas
bandeiras de luta, sendo o movimento feminista criado dentro de um espaço de embates políticos
em que a questão das mulheres não tinha vez. A historiadora lembra ainda do jornal de esquerda O
Pasqui m, muito citado e constantemente pesquisado por estudiosos que desejam mostrar como esse
órgão de imprensa mostrou seu descontentamento com o regime. De acordo com Rachel Soihet:
Dentre as várias modalidades de luta contra o regime, destacou-se o empenho de alguns em opor-
se a ele, através da ridicularização, como, por exemplo, o jornal alternativo O Pasquim, publicado
semanalmente naqueles “anos de chumbo”. Boa parte de seus membros, inspirada na cultura norte-
americana, afastava-se do dogmatismo de muitos marxistas, caracterizando uma pluralidade
suprapartidária, voltando-se para o combate ao autoritarismo e à crítica de costumes30.

O Pasqui m, nessa perspectiva, apresenta-se como um instrumento de negação e oposição


ao regime ditatorial, afirmando-se como contestador e proponente de novos costumes que
contrariavam o autoritarismo então vigente. Apesar da autora o afirmar como um órgão
suprapartidário, é importante destacar que ele foi fundado por nomes historicamente associados à
esquerda brasileira e, não surpreendentemente, o nome de Millôr Fernandes reina como um de seus
mais célebres fundadores. De acordo com Paolo Marconi, juntamente com Ziraldo, Tarso de Castro,
Henfil e Jaguar, Millôr funda o semanário O Pasqui m em 196931. Dessa forma, Millôr Fernandes
tem seu nome vinculado à esquerda brasileira, mesma esquerda que Céli Pinto aponta como
resistente às causas feministas, em função de essas serem fragmentadoras da luta que, do ponto de
vista esquerdista, deveria levar em consideração a luta de classes e a exploração do proletariado em
benefício da burguesia.
Millôr, portanto, está identificado a uma esquerda que considerava as lutas feministas um
desvio da verdadeira causa revolucionária, o que seria um desvio tipicamente pequeno-burguês

29
PINTO, Céli Regina Jardim. 2003, p. 64.
30
SOIHET, Rachel. 2005, p. 594.
31
MARCONI, Paolo. A censura política na imprensa brasileira (1968-1978). São Paulo: Global editora, 1980, p. 308.
9
diante de um país com problemas considerados maiores. Dessa maneira, apesar de compreender a
seriedade da postura de Millôr em relação às mulheres e a causa feminista em O Pasqui m, postura
que é muito mais amena em sua coluna na Veja, não por acaso, afinal, não podemos desconsiderar
que os leitores da revista estão muito longe da realidade, mesmo que virtual, das vilas operárias e
dos corredores de fábricas; precisamos localizar o desenhista, escritor, dramaturgo e humorista em
uma corrente de pensamento bastante específica. É fato que Millôr Fernandes leva a perseguição ao
feminismo e às feministas ao extremo, contudo, sua postura é explicada, datada e localizada, mesmo
não sendo justificada. Nesse sentido, ao apontar e explorar por meio de sua coluna em Veja o lado
estereotipado do feminismo e das feministas, Millôr Fernandes está também marcando seu lugar de
fala, o da esquerda, um lugar sexista, misógino e debochado, mas ainda assim um lugar político e
defensor de uma causa.
Em coluna de 12 de abril de 1972, intitulada O Seqüestro, Millôr destaca, ora com clareza,
ora com discrição, algumas características desse feminismo que vinha assolando diferentes países
ao redor do mundo. Ao narrar um suposto seqüestro sofrido por um homem, paralelo a um esforço
mais que humano de sua esposa para libertá-lo com o pagamento do resgate, o escritor finaliza seu
conto da seguinte maneira:
Mas ai, ao que parece, o esforço terrível de lutar contra o destino já a tinha tirado de sua
submissão, do seu conformismo de mulher-objeto. Ela tinha amadurecido tanto, que pensou
bastante e decidiu: “Ora, depois desse esforço todo eu sou, naturalmente, uma líder feminista; não 
dependo, nem posso depender, de um único homem para sobreviver nesta sociedade patriarcal,
cheia de porcos chovinistas. A essa altura meu marido deve estar um monstro, sem nem sequer o
encanto do seu machismo. Sabe o que é?, vou guardar o dinheiro, comprar ações do Banco do
Brasil preferenciais ao portador, entrar prum desses Movimentos de Libertação da Mulher e
arranjar um outro marido inteirinho. Falei et dix”32.

Pierre Bourdieu há bastante tempo nos instiga a compreender que as palavras não são
inocentes33 e o texto de Millôr só confirma essa hipótese. Podemos começar destacando a expressão
“lutar  contra  o  destino”.  Simone  de  Beauvoir,  autora  da  obra  considerada  ícone do movimento
feminista de segunda onda, O Segundo Sexo, faz uso da palavra destino inúmeras vezes para
argumentar contra o destino biológico ao qual às mulheres estão sujeitas. Em um ataque à
perspectiva de Freud, que afirma ser a anatomia o destino, Beauvoir contesta o fator biológico desse
destino feminino, afirmando-o como fruto do social34. Millôr, portanto, se apropria de uma
expressão  símbolo  do  feminismo  para  demonstrar  a  “superação”  da  mulher,  o  que  a  torna  uma 
“líder feminista”, segundo ele. O uso dessa expressão também é bastante simbólica, visto que no
Brasil o movimento feminista acaba emergindo vinculado a nomes específicos que, dentro de
possibilidades marcadas, conseguiram encabeçar as idéias feministas. Em seguida o escritor aponta

32
Revista Veja. Millôr Fernandes - O Seqüestro. Dia 12 de abril de 1972. Edição 188, p. 10.
33
BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Lingüísticas – o que falar quer dizer. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2008, p. 27.
34
BEAUVOIR, Simonde de. O Segundo Sexo. Rio de janeiro, Nova Fronteira, 2009, p. 66.
10
a esposa contestando a necessidade de depender de um único homem, fazendo referência a tal
promiscuidade sexual que seria o objetivo feminista. Finalizando, a esposa consciente de sua
submissão resolve adquirir ações do Banco do Brasil, instituição então dirigida pelo regime militar,
e deixa seu marido a mercê de seqüestradores. Nessa leitura, esta mulher feminista, além de
colaborar com o regime, mesmo que indiretamente, ainda comprova-se egoísta e egocêntrica, uma
alegoria ao feminismo como um todo que, ao invés de dar foco a uma luta considerada mais global,
contra a ditadura, a censura, estaria preocupada com seu próprio bem estar, no caso, o bem estar das
mulheres. Destaco que a proposta não é revelar uma verdade oculta atrás do texto, mas sim buscar
um sentido para ele35.
Na coluna de 28 de julho de 1976, em uma frase curta no topo da página, Millôr afirma que
“O Movimento Feminista Brasileiro está com tal ímpeto que vai acabar arrombando todas as portas 
abertas”36. A partir da citação, infere-se que o movimento feminista brasileiro estava fazendo uso de
toda sua disposição para derrubar portas já abertas, ou seja, estaria brigando em casa que, com
“todas as  portas abertas”, o estava acolhendo. Millôr pode estar referindo-se ao fortalecimento do
feminismo no Brasil um ano antes, 1975, que é um momento inaugural do feminismo brasileiro.
É importante destacar que, até então: “As feministas brasileiras em Paris faziam um trabalho 
de proselitismo, mandavam material para o Brasil, entravam em contato com outros grupos
feministas, buscavam aumentar o número de participantes, organizavam seu movimento em
diferentes  instâncias,  por  meio  de  comissões  e  assembléias”37. Enquanto isso as feministas
brasileiras estavam restritas as suas reuniões mais íntimas e privadas, isso em função da censura e
da opressão que ocorria no Brasil. De acordo com Céli Regina Jardim Pinto, 1975 marca a história
do feminismo brasileiro em função da ONU o ter definido como o Ano Internacional da Mulher e o
primeiro ano da década da mulher. Com esse marco a questão da mulher ganha um novo status,
diante de governos autoritários e também diante de projetos progressistas que encaravam o
feminismo com desconfiança38. Millôr, portanto, pode estar referindo-se, tanto às exiladas
feministas, quanto às feministas que se reuniam privadamente no Brasil, visto que os espaços de
expressão e, até mesmo, de consideração, estariam aumentando para o movimento. Além disso, não
se pode esquecer da fundação do Movimento Feminino pela Anistia que ocorre exatamente no ano
de 1975. De acordo com a fundadora, Terezinha Zerbini, o movimento surgiu e esteve ligado ao
Ano Internacional da Mulher, caracterizando seu “vínculo” com o movimento feminista39.
Destaco aqui o tom relativamente contido de Millôr Fernandes em relação ao tema
feminismo, muito diferente do nível de declarações que ele reserva ao jornal O Pasqui m.
35
ORLANDI, Eni. P. 2009, p. 26.
36
Revista Veja. Millôr. Dia 28 de julho de 1976. Edição 412, p. 14.
37
PINTO, Céli Regina Jardim. 2003, p. 55.
38
PINTO, Céli Regina Jardim. 2003, p. 56.
39
Anos depois a fundadora negou esse vínculo de forma estratégica. PINTO, Céli Regina Jardim. 2003, p. 63.
11
Certamente, essas diferenças no tratamento ao tema não são acidentais. O Pasqui m, um jornal
alternativo, é produzido por intelectuais esclarecidos de esquerda, para um público também de
esquerda que compartilha do pensamento libertário, pelo menos no sentido da luta de classes. Como
jornal alternativo, sua maior fonte de receita vem da venda e não dos anunciantes. A Veja é uma
revista integrante da grande imprensa, produzida por uma grande editora, comandada por homens
ricos, cuja verba é fruto, em sua maioria, de anúncios publicitários, muitos deles financiados pelo
governo, sendo que seu público alvo é a classe média, a chamada pequena-burguesia. Além disso,
em Veja , Millôr está submetido a uma hierarquia, enquanto n’ O Pasqui m o escritor e humorista faz
parte do topo da hierarquia. Por isso que, em análise de discurso, devemos relacionar a linguagem a
sua exterioridade, tanto no que se refere à atribuição de sentido, quanto ao seu contexto e suporte.
Demonstrando novamente sua intimidade com o assunto, Millôr Fernandes, em coluna de 8
de  setembro  de  1976  questiona:  “E  se,  de  repente,  nós  provarmos  que  o  feminismo  faz  parte  do 
eterno feminino?”40. Forçando uma relação bastante problemática entre o feminismo e o eterno
feminino, categoria muito criticada pelas feministas por vincular a figura da mulher, à figura de
mãe, santa, em um sentido naturalista e essencialista, perspectiva profundamente recusada pelas
teóricas do feminismo, Millôr levanta a possibilidade de o feminismo fazer parte da natureza das
mulheres, causando arrepios nas feministas, uma nítida tentativa de provocação. O escritor, assim,
buscou biologizar o feminismo, como resposta a tentativa das mulheres de não-biologizar o sexo
feminino.
Muitas edições depois, em coluna dedicada a dar uma versão muito própria para a história
da abertura da caixa de Pandora, Millôr salienta:
A terra ainda estava vazia de mulheres. Não estou dizendo que isso fosse bom ou ruim, mas
feminismo não tinha não. Pensando bem, até que podia ser bom porque hoje, depois do feminismo,
tem muito home ai já jogando as muié pra escanteio e muita muié também fazendo o mesmo com
os home, e deve ser porque isso é bom, não é mesmo?41.

Em coluna de 30 de abril de 1980 o humorista reconstrói a história de Pandora, para afirmar


que naquela época não havia feminismo o  que  “até  podia  ser  bom”,  em  função  de  homens  e 
mulheres estarem se dispensando mutuamente. O trecho aponta o feminismo como um movimento
típico daquele momento. A constatação de que “feminismo não tinha não”, leva a presentificação do
feminismo, ou seja, se antes não tinha, é porque agora o feminismo faz-se presente, caso contrário,
a expressão não estaria no passado e poderia ser facilmente extraída do texto. Entretanto, o
feminismo existe no plano do acontecimento e, por isso, existe também no discurso do humorista e
escritor. Saliento que, de acordo com o pensamento de Michel Pêcheux, são nessas lacunas que age
o analista do discurso, visto que, todo enunciado, ou toda série de enunciados, oferece um lugar de

40
Revista Veja. Millôr. Livre-pensar: É só pensar. Dia 08 de setembro de 1976. Edição 418, p. 15.
41
Revista Veja. Millôr. A caixa (ou lá que outro nome tenha) de Pandora. Dia 30 de abril de 1980. Edição 608, p. 10.
12
interpretação42. Millôr, mesmo que negue a importância do movimento feminista, ao fazer dele um
movimento presente, confirma sua existência e repercussão. Além disso, da citação, podemos
extrair que o feminismo  é  destacado  como  “coisa  de  mulher”,  visto  que,  ao  relacionar  a  não-
existência de mulheres à não-existência do feminismo, Millôr Fernandes o vincula a algo
tipicamente “feminino”, o que estabelece uma relação com a citação anterior, em que se articula o
feminismo e o eterno feminino. Isso confirma a constatação de Orlandi: os discursos relacionam-
se43.
Em 26 de novembro de 1980, listando uma série de pensamentos que Millôr intitula
Reflexões sem dor, o escritor e humorista afirma: “Todo mundo com tanto medo de ser chamado de
machão que tem até feminista fingindo feminilidade”44. Saliento primeiramente a expressão “medo 
de  ser  chamado  de  machão”,  medo  que,  provavelmente,  está  vinculado  a  uma  disseminação  do 
feminismo a ponto de instigar  homens  e mulheres a  conterem  seus comportamentos  de  “macho”, 
figura nitidamente associada ao sexo masculino, à idéia de másculo e viril. Para finalizar Millôr
Fernandes ressalta que “tem até feminista fingindo feminilidade”. Primeiro o verbo fingir  remete a
dissimulação, fazer-se passar por outro. Assim, feministas fingiriam feminilidade, algo que seria
típico do sexo feminino, uma atitude feminina. Nesse excerto podemos extrair dois sentidos não
opostos, mas complementares: o primeiro é que feministas seriam automaticamente “machões” no 
que se refere à construção histórica da palavra; e o segundo, o mais importante e opaco, é que
feministas buscavam velar a identificação com o feminismo por medo de represálias, ou seja, o
medo mesmo de ser taxada de “machão”. Nesse trecho Millôr lembra muito sua versão em O
Pasqui m, em que piadas das mais primárias sobre feministas tinham lugar de destaque. Entretanto,
nesse último texto o que gostaria de salientar é a questão da negação de uma identificação com o
feminismo, negação que, não podemos recusar, não é rara, seja no sentido estratégico, seja na falta
de tato para lidar com preconceitos e estereótipos que assolam a profundamente lembrada
“identidade feminista”.
Finalizando esta análise, trago uma última asserção de Millôr Fernandes que, se não toca
pelo  humor,  toca  pelo  apoio  fonético  recorrente:  “Feminista  é  uma  mulher  que  só  pensa  em  ser 
chofer”45. Nesse discurso a feminista já se torna mulher, não estando citada sua posição de
“macho”, no entanto, ela “só pensa em ser chofer”, isto é, deseja guiar o automóvel, a vida, a casa, a 
política, o mundo e, para não escapar do senso comum, o homem. Trazendo a tona a versão mais
simplificada de feminismo, Millôr, com sua rima mulher-chofer, define a feminista como uma
desejosa figura almejando o comando de seja lá o que for, desde que seja o comando. Até mesmo o

42
PÊCHEUX, Michel. 1990, p. 53.
43
ORLANDI, Eni. P. 2009, p. 89.
44
Revista Veja. Millôr. Reflexões sem dor. Dia 26 de novembro de 1980. Edição 638, p. 11
45
Revista Veja. Millôr. Sacadas Rimadas. Dia 20 de janeiro de 1981. Edição 698, p. 14
13
dicionário concede uma definição mais elaborada e acertada de feminismo: “Teoria que sustenta a 
igualdade política, social e econômica de ambos os sexos”46, e isso, independente de quem guie o
carro.
Em meio a referências irônicas e debochadas sobre a luta contra o destino empregada pelas
mulheres, imerso em um discurso essencialista que determina uma forma específica de ser mulher,
passando pela inevitável constatação de que o feminismo existe enquanto movimento, finalizando
com  um  modelo  bastante  específico  de  feminismo  marcado  pela  idéia  de  “macho-comandante”; 
Millôr Fernandes, escritor, humorista e dramaturgo, traça linhas que, na revista Veja divulgam uma
idéia sobre o feminismo. Uma idéia que está longe de ser a proposta pelas feministas que em 1970
buscam espaço para divulgar sua luta e, também, espaço para contestar um cenário que se apresenta,
de ditadura, de censura, de falta de liberdade, de exploração dos mais pobres. Enquanto Millôr
afiava suas palavras e lançava suas farpas contra o movimento feminista 47, ele buscava se organizar
em um contexto pouco propício a emergência de movimentos sociais, mesmo que se tratasse de um
movimento que não era popular, mas que, efetivamente, buscava e ainda busca representar todas as
mulheres, independente de classe, raça/etnia, profissão.
Millôr Fernandes, com seus discursos sobre feminismo, não apenas transmitiu
informação, mas formou opinião e ajudou a construir estereótipos e modelos dos assuntos que
foram alvo de suas reflexões. De acordo com Eni Orlandi “... no funcionamento da linguagem, que 
põe em relação sujeitos e sentidos afetados pela língua e pela história, temos um complexo processo
de constituição desses sujeitos e produção de sentidos e não meramente transmissão de
informação”48. Dessa maneira, discursos sobre feminismo produzidos por Millôr Fernandes, não
desaparecem no ar, nem ficam presos às páginas da revista Veja que já estão empoeiradas e
amareladas pelo tempo. Eles continuam circulando, tendo seus sentidos mantidos e resignificados,
comprovando, ou melhor, reforçando a noção de que as palavras, a linguagem, o discurso, afetam o
mundo que vivemos, vemos, falamos e sentimos.

46
DICIONÁRIO ELETRÔNICO HOUAISS 3. Versão monousuário 3.0. Junho de 2009. Instituto Antônio Houaiss.
Produzido e distribuído por Editora Objetiva LTDA. Programa.
47
Em reportagem especial comemorando as 500 semanas de Millôr em Veja destaca-se que o principal alvo de críticas
do colunista são temas como dinheiro, feminismo, psiquiatria, poluição, exploração imobiliária, burocracia, enfim, tudo
que some pretensão com incompetência, poder e arbítrio. Revista Veja. Especial. 500 semanas de Millôr. Dia 28 de
junho de 1978. Edição 512, p. 112.
48
ORLANDI, Eni. P. 2009, p. 21.
14
R E F E R Ê N C I AS B I B L I O G R Á F I C AS:

ALMEIDA, Maria Fernanda Lopes. Veja sob censura: 1968-1976. São Paulo, Jaboticaba, 2009.

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Revista Veja. Millôr Fernandes - O Seqüestro. Dia 12 de abril de 1972. Edição 188
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15

Revista Veja. Millôr. A caixa (ou lá que outro nome tenha) de Pandora. Dia 30 de abril de 1980.
Edição 608.

Revista Veja. Millôr. Reflexões sem dor. Dia 26 de novembro de 1980. Edição 638.

Revista Veja. Millôr. Sacadas Rimadas. Dia 20 de janeiro de 1981. Edição 698.

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