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FUNDAMENTOS

SOCIOLÓGICOS E
ANTROPOLÓGICOS
DA EDUCAÇÃO

Professor Me. Gilson Aguiar

Graduação

Unicesumar
Reitor
Wilson de Matos Silva
Vice-Reitor
Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor de Administração
Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor de EAD
Willian Victor Kendrick de Matos Silva
Presidente da Mantenedora
Cláudio Ferdinandi

NEAD - Núcleo de Educação a Distância


Direção Comercial, de Expansão e
Novos Negócios
Marcos Gois
Direção de Operações
Chrystiano Mincoff
Coordenação de Sistemas
Fabrício Ricardo Lazilha
Coordenação de Polos
Reginaldo Carneiro
Coordenação de Pós-Graduação, Extensão
e Produção de Materiais
Renato Dutra
Coordenação de Graduação
Kátia Coelho
Coordenação Administrativa/Serviços
Compartilhados
Evandro Bolsoni
Gerência de Inteligência de Mercado/Digital
Bruno Jorge
Gerência de Marketing
Harrisson Brait
Supervisão do Núcleo de Produção de
Materiais
Nalva Aparecida da Rosa Moura
Supervisão de Materiais
Nádila de Almeida Toledo
Design Educacional
CENTRO UNIVERSITÁRIO DE MARINGÁ. Núcleo de Educação a Rossana Costa Giani
Distância:
Fernando Henrique Mendes
C397
Fundamentos sociológicos e antropológicos da educação / Projeto Gráfico
Gilson Aguiar Jaime de Marchi Junior
Reimpressão revista e atualizada, Maringá - PR, 2014. José Jhonny Coelho
187 p.
Editoração
“Graduação - EaD”. Daniel Fuverki Hey
Revisão Textual
1. Educação 2. Fundamentos sociológicos. 3. Antropológicos.
4.EaD. I. Título.
Jaquelina Kutsunugi
ISBN 978-85-8084-567-9 Keren Pardini
CDD - 22 ed. 370 Maria Fernanda Canova Vasconcelos
CIP - NBR 12899 - AACR/2 Nayara Valenciano
Rhaysa Ricci Correa
Susana Inácio
Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário Ilustração
João Vivaldo de Souza - CRB-8 - 6828 Thayla Daiany Guimarães Cripaldi
Viver e trabalhar em uma sociedade global é um
grande desafio para todos os cidadãos. A busca
por tecnologia, informação, conhecimento de
qualidade, novas habilidades para liderança e so-
lução de problemas com eficiência tornou-se uma
questão de sobrevivência no mundo do trabalho.
Cada um de nós tem uma grande responsabilida-
de: as escolhas que fizermos por nós e pelos nos-
sos fará grande diferença no futuro.
Com essa visão, o Centro Universitário Cesumar –
assume o compromisso de democratizar o conhe-
cimento por meio de alta tecnologia e contribuir
para o futuro dos brasileiros.
No cumprimento de sua missão – “promover a
educação de qualidade nas diferentes áreas do
conhecimento, formando profissionais cidadãos
que contribuam para o desenvolvimento de uma
sociedade justa e solidária” –, o Centro Universi-
tário Cesumar busca a integração do ensino-pes-
quisa-extensão com as demandas institucionais
e sociais; a realização de uma prática acadêmica
que contribua para o desenvolvimento da consci-
ência social e política e, por fim, a democratização
do conhecimento acadêmico com a articulação e
a integração com a sociedade.
Diante disso, o Centro Universitário Cesumar al-
meja ser reconhecida como uma instituição uni-
versitária de referência regional e nacional pela
qualidade e compromisso do corpo docente;
aquisição de competências institucionais para
o desenvolvimento de linhas de pesquisa; con-
solidação da extensão universitária; qualidade
da oferta dos ensinos presencial e a distância;
bem-estar e satisfação da comunidade interna;
qualidade da gestão acadêmica e administrati-
va; compromisso social de inclusão; processos de
cooperação e parceria com o mundo do trabalho,
como também pelo compromisso e relaciona-
mento permanente com os egressos, incentivan-
do a educação continuada.
Seja bem-vindo(a), caro(a) acadêmico(a)! Você está
iniciando um processo de transformação, pois quan-
do investimos em nossa formação, seja ela pessoal
ou profissional, nos transformamos e, consequente-
mente, transformamos também a sociedade na qual
estamos inseridos. De que forma o fazemos? Criando
oportunidades e/ou estabelecendo mudanças capa-
zes de alcançar um nível de desenvolvimento compa-
tível com os desafios que surgem no mundo contem-
porâneo.
O Centro Universitário Cesumar mediante o Núcleo de
Educação a Distância, o(a) acompanhará durante todo
este processo, pois conforme Freire (1996): “Os homens
se educam juntos, na transformação do mundo”.
Os materiais produzidos oferecem linguagem dialó-
gica e encontram-se integrados à proposta pedagó-
gica, contribuindo no processo educacional, comple-
mentando sua formação profissional, desenvolvendo
competências e habilidades, e aplicando conceitos
teóricos em situação de realidade, de maneira a inse-
ri-lo no mercado de trabalho. Ou seja, estes materiais
têm como principal objetivo “provocar uma aproxi-
mação entre você e o conteúdo”, desta forma possi-
bilita o desenvolvimento da autonomia em busca dos
conhecimentos necessários para a sua formação pes-
soal e profissional.
Portanto, nossa distância nesse processo de cres-
cimento e construção do conhecimento deve ser
apenas geográfica. Utilize os diversos recursos peda-
gógicos que o Centro Universitário Cesumar lhe possi-
bilita. Ou seja, acesse regularmente o AVA – Ambiente
Virtual de Aprendizagem, interaja nos fóruns e en-
quetes, assista às aulas ao vivo e participe das discus-
sões. Além disso, lembre-se que existe uma equipe de
professores e tutores que se encontra disponível para
sanar suas dúvidas e auxiliá-lo(a) em seu processo de
aprendizagem, possibilitando-lhe trilhar com tranqui-
lidade e segurança sua trajetória acadêmica.
autores

Professor Me. Gilson Aguiar


Graduado em História, na Universidade Estadual de Maringá e Mestre em
História e Sociedade pela Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Apresentação

FUNDAMENTOS SOCIOLÓGICOS E
ANTROPOLÓGICOS DA EDUCAÇÃO

Seja bem-vindo!
Prezado(a) acadêmico(a), apresento a você o resultado de um trabalho que nunca esta-
rá completo, mas intenta atender a necessidade de dar aos nossos alunos uma análise
crítica da sociedade que estamos vivendo. Uma sociedade em que o educador tem um
papel primordial. Ele está no centro da discussão do papel que a ciência exerce na so-
ciedade atual e o quanto ela foi fundamental para construirmos a civilização que temos.
Como professor da disciplina de Teoria das Ciências Sociais, no curso de Direito do Ce-
sumar, há mais de 20 anos, minha preocupação foi entender as mudanças da sociedade
atual e o quanto elas atingem nossas vidas. Nunca fui um defensor das teses e análises
que se distanciam do homem comum, de cada um de nós. A educação está no centro
desta discussão.
Tive a oportunidade de trabalhar durante três anos com alunos do curso presencial de
Pedagogia e desde 2011 ministro esta disciplina para os alunos do EAD do Cesumar. A
educação e o educador são necessários, nunca duvide da importância das instituições
de ensino na vida social. Mas o que nós não podemos menosprezar é o papel que a
ciência exerce e a condição do que ela permite. A sociedade que gerou a eficiência do
conhecimento precisa ser conhecida cientificamente e sofrer intervenções lógicas para
sua melhora.
A sociedade necessita ser conhecida para ser transformada, e a ciência é o nosso maior
instrumento para que isso ocorra. O educador é o propagador da ciência, é ele quem
instrumentaliza o ser humano para uma ação consciente e eficaz na vida social. Mas para
que isso ocorra e gere resultado é necessário entender em que sociedade os educadores
estão inseridos.
Vivemos o tempo do dia a dia, em que as preocupações com o imediato dominam nos-
sos interesses. Isto me parece pequeno para quem tem uma função de construir um ser
humano para uma vida toda. A sociedade que vivemos é uma construção que iniciou
sua jornada há mais de 500 anos. Somos o resultado de inúmeras transformações que
nos permitiu a construção de uma rede econômica complexa. Ela está a nossa volta, por
todos os lugares, temos que compreendê-la. Este é o objetivo deste trabalho.
Para isso dedico uma primeira parte para a análise da formação da sociedade atual,
como chegamos até aqui, o porquê nesta jornada a sociedade enfrentou contradições e
como as suas crises foram interpretadas pelos seus principais teóricos, o que chamo de
Clássicos. Inclusive, a eles, dedico duas unidades (II e III). Considero fundamental enten-
der os métodos que orientam ainda hoje o olhar dos cientistas sociais e devem orientar
o olhar dos educadores. Considero que a formação do educador é acompanhada de
um posicionamento diante da sociedade, temos uma busca e ela deve ser consciente,
independente da postura metodológica que se tome.
Vamos tratar ao longo deste trabalho das teses positivistas, do estruturalismo, do mate-
rialismo histórico e do funcionalismo histórico cultural. Vamos passar pela a análise dos
comportamentos sociais que preocupam a sociedade contemporânea. O elevado grau
Apresentação

de violência propagado, mas também o imediatismo que se tornou uma expressão no


mundo do consumo.
Outro elemento que nos preocupa que procuramos dar enfoque é sobre a liberdade vul-
garizada da sociedade atual. Nenhuma outra geração esteve diante da liberdade como a
atual. Mas o que tem sido feito com a possibilidade de escolha? A responsabilidade que
nos parece do indivíduo está cada vez mais transferida. Estamos vivendo a isenção do
ser humano as suas práticas. Em sala de aula é cada vez mais comum perceber que não
se quer o peso da educação, mas apenas os benefícios que ela gera. Todos querem ter o
diploma, mas poucos estão dispostos a enfrentar a jornada que leva até ele.
A reflexão sobre este homem contemporâneo é o centro de nosso trabalho, o fator que
nos fez dedicar a ele a maior parte das páginas que você terá como fonte de consul-
ta. Convido você, caro(a) aluno(a), a questionar e debater estes temas, a refletir sobre a
nossa vida social. Penso que este material não pode ficar isolado e relacionado exclu-
sivamente a uma disciplina de sua formação acadêmica, tentei traçar conteúdos que
permitam uma reflexão sobre o seu dia a dia. Temos que nos identificar e compreender o
que somos para aprendermos. Nunca acreditei na memorização como forma de adquirir
conhecimento nas ciências humanas. Acredito na crítica, mas principalmente na autocrí-
tica, o que poucos têm coragem de fazer. Espero que você seja um deles.
Dentro do ambiente educacional há discussões que merecem um olhar mais atento.
Temos que nos lembrar de que a vida em sociedade nos traz dilemas de difícil com-
preensão. Os debates acerca destes dilemas necessitam de um conteúdo aprofundado
para que os educadores se posicionem. Este é o espírito da Disciplina de Fundamentos
Sociológicos e Antropológicos da Educação. Queremos trazer elementos para que você
cumpra o papel de profissional do ensino, ter essência na formação humana.
Um dos temas que irá encontrar expresso neste material é sobre as cotas raciais. Este é
um exemplo da polêmica que tem tomado conta do debate acadêmico. As universida-
des públicas, principalmente as federais, já estão assumindo as cotas como forma de
seleção para o ingresso em seus cursos. Elas são justas? Tentaremos contribuir para este
debate.
Outro debate que consideramos importante é sobre a violência, dentro e fora da escola.
Nos países onde a violência é narrada pelos meios de comunicação como aquela que
vivenciamos nas grandes cidades brasileiras. A violência está por todos os lados. Está na
depredação da escola exatamente por aqueles que deveriam ser os beneficiados pela
estrutura de ensino. Logo, podemos considerar que estamos vivendo a autodestruição?
Esta é uma questão que necessita de resposta, procuramos contribuir com este trabalho
a ela.
Dessa forma, eu agradeço a oportunidade de ter produzido este material para você. Que
ele traga uma contribuição para sua formação e que lhe desperte o interesse pelos te-
mas relacionados neste livro. Ele é feito para ser a porta de entrada na análise da vida
social e não uma resposta definitiva.
Obrigado pela oportunidade e boa leitura!
Professor Gilson Aguiar
8-9

sumário

UNIDADE I

A COMPLEXA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

13 Introdução

14 O Homem Ocidental e sua Trajetória

27 Uma Breve História das Origens da “Era Planetária”

30 O Capitalismo, o Cristianismo e a Razão 

43 Considerações Finais

UNIDADE II

AS NOVAS SOCIEDADES E SEUS DILEMAS

49 Introdução

50 A Sociedade Urbana e a Crise de sua Origem

56 A Internacionalização da Produção e do Trabalho

71 A Educação e seus Dilemas na Trajetória Ocidental

74 Considerações Finais

UNIDADE III

PENSADORES CLÁSSICOS I

83 Introdução

84 A Sociedade, um “Objeto Estranho”

88 Augusto Comte
sumário

96 A Herança Positiva no Estruturalismo de Émilie Durkheim

108 Considerações Finais

UNIDADE IV

PENSADORES CLÁSSICOS II

117 Introdução

118 Karl Marx, o Materialismo Histórico Dialético

127 Weber e a Racionalidade Impura

142 Considerações Finais

UNIDADE V

OS DILEMAS DA ATUALIDADE

151 Introdução

152 Um Mundo em Crise

156 A Sociedade de Consumo

181 Considerações Finais

187 Conclusão
189 Referências
Professor Me. Gilson Aguiar

A COMPLEXA SOCIEDADE

I
UNIDADE
CONTEMPORÂNEA

Objetivos de Aprendizagem
■■ Conhecer o processo de formação da sociedade atual e as condições
nas quais ela se desenvolveu.
■■ Estabelecer a relação entre a crise de identificação do homem com a
sociedade na atualidade e sua rede de produção mundial.
■■ Compreender a importância da ciência e da tecnologia no
desenvolvimento da civilização ocidental.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Os problemas da atualidade
■■ A formação da civilização ocidental
■■ O desenvolvimento da ciência e da tecnologia
■■ A cultura da ocidentalização
12 - 13

Introdução

O que pretendemos nesta unidade é apresentar o homem contemporâneo por


meio do resgate de suas origens. Em um primeiro momento vamos analisar
algumas das condições que percebemos na atualidade. Um ponto de partida
apresentando alguns dos conflitos e dilemas do nosso dia a dia.
Esses dilemas estão na forma como nos relacionamos com a sociedade de
consumo, o mundo do mercado. A vida é construída dentro de um ambiente
social com características próprias, que nos ligam uns aos outros. Não percebe-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

mos estas ligações ou não as analisamos com o cuidado que devemos. Por isso,
buscamos aqui posicionar o leitor diante da vida em sociedade.
Em um segundo momento, analisamos as origens da sociedade ocidental,
como ela se constituiu e pode chegar até nossos dias. Como ela se organiza e o
histórico do que levou a esta organização. Uma verdadeira recapitulação da his-
tória de formação da conquista planetária ocidental, como retratamos.
Partimos das grandes navegações e avançamos sobre a forma de estabele-
cimento da economia mundial antes e depois da Revolução Industrial (1750).
Detivemo-nos sobre a análise da rede de produção econômica que foi gerada
no mundo a partir da Europa ocidental. Seu crescimento e aprimoramento, o
que chamamos de divisão internacional do trabalho e, depois, de nova divisão
internacional do trabalho.
Atemos-nos aqui a importância que a ciência e a tecnologia representaram
para o domínio do ocidente sobre o planeta. A construção de um império eco-
nômico que dominou diversas partes do mundo e ainda hoje demonstra sua
influência. É impossível descartar a capacidade de renovação do processo de
dominação ocidental. A renovação do controle e das condições de dominação
do ocidente. A ciência e a tecnologia têm um papel central neste processo.
Valorizamos o entendimento da dominação da civilização ocidental sobre
os demais povos. Como o controle de regiões distantes foi efetuada por tropas,
a submissão militar, mas também a imposição cultural. O eurocentrismo con-
tou como peça-chave na lógica de mundo implantada pelo ocidente.
Toda esta jornada de análise vai culminar com a formação da sociedade capi-
talista atual, o que já é objeto de análise de nossa segunda unidade. Nela a busca
pelo entendimento do homem ocidental se aprofunda.

Introdução
I

O Homem Ocidental e sua Trajetória

Nenhuma outra sociedade é tão complexa em sua organização quanto a nossa.


Organizada em uma ampla rede de relações de trabalho que geram em cadeia
mundial a nossa sobrevivência diária. Objetos simples a nossa volta, aos quais
damos pouca atenção, são formados em condições que vão muito além de nos-
sas fronteiras imediatas, muitos são frutos de uma produção internacional que
envolve pessoas que não conhecemos.
Do mais vulgar dos alimentos ao mais complexo e requintado dos auto-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
móveis, esses objetos estão ligados a uma relação de produção da qual fazemos
parte, mas não sabemos qual desta parte nos diz diretamente respeito. Se refletir
por alguns instantes no computador que estou utilizando neste momento para
produzir este livro, a sua construção é fruto de tecnologia, insumos (matéria
-prima), e mão de obra dos mais diferentes lugares. Cada um dos estágios que
produziu este computador pode estar afastado a milhares de quilômetros um do
outro. Contudo, enquanto um bem acabado está aqui e estou me relacionando
com ele a cada palavra que digito. Uma em tantas línguas que o computador
traz como escolha.
Se parto da lógica de que tudo com o qual me relaciono sou um elemento
ligado a sua existência, há uma condição que me une às pessoas que produzem
tudo o que necessito para viver, então estaria envolvido também a todas as outras
coisas que direta ou indiretamente me afetam. A violência, por exemplo, seria
uma destas produções a qual estou ligado. Posso não praticá-la, mas ela está
ligada diretamente à sociedade onde estou inserido e, de alguma forma, pode-
rei ser vítima dela, presenciá-la ou praticá-la. Ao pensar que existe um número
imenso de práticas de violência, haverá uma dessas práticas próximas a mim e
©shutterstock

A COMPLEXA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA


14 - 15

da qual não poderei evitá-la.


Só para entendermos melhor o que é viver nesta sociedade que pertence-
mos, podemos usar como exemplo o bullying, uma violência que toma conta do
ambiente escolar. A agressão física e moral que afeta a vida de todas as pessoas
que estão ligadas à educação. Não podemos negar que os fatores que levam este
fenômeno a existir são complexos, envolvem um número imenso de elementos
que estão muito além de estatísticas simplificadas que tenta relacionar a prá-
tica de violência a toda a criança que já foi agredida ou a um mero controle do
ambiente escolar.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Por mais que a violência dentro da escola sempre existiu, o que preocupa
é a peculiaridade que ela ganha na atualidade. Os elementos que a envolvem,
o planejamento da agressão e os elementos usados nela. O exibicionismo que
ela permite com uma parafernália imensa de meios de divulgar os insultos, o
espancamento, a depredação. A violência na escola estaria inspirada nos inú-
meros shows de agressão e depredação que assistimos nas salas de cinema, em
frente aos televisores, nos jogos de videogame, nos computadores ligados à inter-
net, nas histórias que recheiam as páginas dos jornais e revistas. Não podemos
negar que uma das formas de construir a fama é postar no “youtube” um vídeo
de milhões de acessos, os de agressão estão entre os mais vistos. Assim, e muito
mais que isto, o ambiente é propício para exaltar a violência e gerar uma propa-
gação de “socos” e “pontapés” no qual deveria reinar a boa educação.
Podemos fazer o mesmo exercício das relações que produzem fatos como
a violência para entendermos os produtos, seja ele associado ao bem ou o mal.
Um breve resgate do açúcar, o produto que adoça as nossas vidas, mas está na
lista dos que mais provocam o aumento de peso. Um dos vilões da obesidade
contemporânea foi o motivo pela ocupação e integração do território que viria
a ser o Brasil a uma economia mundial. A produção de açúcar foi fator decisivo
para a fundação do processo colonial português na América a mais de 500 anos.
Mas de onde vem o açúcar? O açúcar no Brasil é derivado da cana-de-açúcar,
mas pode ser extraído de outros produtos. Por exemplo, os ingleses o extraíam da
beterraba. Mas voltando a cana-de-açúcar, ela é uma planta originária da China1
1 Isto porque, se pensarmos qual o papel que os chineses desempenham em nossas vidas hoje, concluiría-
mos que eles são o nosso principal parceiro econômico. Compram commodities e fornecem produtos
industrializados. A China mudou, nós mudamos, o mundo mudou. Estamos mais perto dos chineses do

O Homem Ocidental e sua Trajetória


I

e para se transformar em açúcar foi necessário o desenvolvimento de técnicas


iniciadas pelos árabes, italianos, até chegar aos engenhos portugueses. Foram
esses engenhos que Portugal instalou em pontos do litoral brasileiro, em especial
no Nordeste, e fundou a empresa colonizadora que deu origem ao Brasil. Logo,
podemos concluir que o nosso país foi fundado por uma grande rede comer-
cial que integrou produtos, produção e homens vindos de diversas partes2. O
Brasil é fruto da expansão ocidental capitalista que iniciou uma poderosa “Era
Planetária” e a continua executando. Cada vez mais a dependência entre as diver-
sas partes do Mundo se intensifica.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Até aqui, o que procurei instigar em você, caro(a) aluno(a), é a necessidade
de entender o mundo por este olhar de busca pela origem dos elementos que nos
cercam. Entender o que está por trás de todo este mar de objetos que usamos
ou nos relacionamos cotidianamente. Esta procura pode nos dar a dimensão de
como estamos sujeitos a uma rede cada vez maior de meios de produção e pes-
soas que integram a geração da nossa existência em larga escala. Mas não é só a
geladeira, o automóvel, o computador, a roupa, os bens materiais de uma forma
geral, é também o produto cultural. O filme, a música, os eventos esportivos,
os livros, as revistas, os jornais, os sites, as páginas sociais na internet e os brin-
quedos e as brincadeiras oferecidas nas lojas especializadas são fruto, em grande
parte, de uma rede mundial de produção.
Para “apimentar” um pouco mais nossas indagações sobre os bens que nos
cercam e entender o que nos faz existir, podemos estabelecer a relação de sim-
bologia dos objetos, um dos temas que iremos tratar na terceira unidade com
mais intensidade. Quase todos os produtos que consumimos tem uma marca
que lhe dá significado, um símbolo que o coloca em uma escala de importância
que estávamos há 500 anos quando eles eram a “terra natal” da cana-de-açúcar. Podemos considerar que o
nosso contato com os chineses é mais intenso em nossos dias, mas também mais complexo. Nossa relação
de dependência econômica nos gera possibilidades e cria uma complexa rede de relações econômicas que
não se apresentam claramente em nossas vidas. Vale lembrar que os produtos desejados da Apple, como
os tablets, são fabricados por uma empresa chinesa, a Foxcom. O lançamento dos produtos da empresa
que continua com sua marca ligada aos Estados Unidos, foi mundial. O prazer de se ter um produto como
este é a busca de muitos, mas não se tem a ideia de que a produção de vários de seus componentes se dá
em condição análoga à escravidão.
2 Uma das curiosidades da integração do mundo comercial que levou a formação do Brasil está, também,
na composição da nossa sociedade. Além da chegada dos europeus e seu encontro com os nativos, os
negros africanos também vieram como mão de obra escrava para servirem à produção de açúcar estabe-
lecida pelos portugueses. Se a economia mundial integrou produtos, também pessoas. Plasmou culturas
e recriou novas formas de interpretação do homem. Tudo isto será revisto com mais detalhes na última
parte deste trabalho, na quinta unidade deste livro.

A COMPLEXA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA


16 - 17

nos valores estabelecidos para os homens e para as coisas.


Um exemplo, para que se possa entender a dimensão do valor dos símbo-
los, seria perguntar: qual o significado de ter nos pés um tênis Nike ou Adidas?
Para alguns jovens a resposta viria com a associação do produto a dignidade e
respeito. Uma valorização pessoal que muitos atos humanos de respeito não tra-
riam na mesma proporção. Para quem é um educador, a pergunta que poderia
comprovar o significado social do objeto seria comparar a satisfação diante de
seus pares entre a compra de um objeto de marca desejada ou o desempenho
escolar de qualidade. Uma nota acima da média não destaca um ser humano
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

socialmente como um tênis nos pés. O mais ignorante dos seres sabe onde está
o valor da existência, na marca do calçado e não em quem está calçando.
O que estamos colocando aqui, para iniciar nossa discussão sobre o estudo
das sociedades humanas, é uma forma de alertar para a complexidade das rela-
ções sociais na atualidade. Não é tarefa simples compreender as condições em
que o homem atual tem produzido sua vida e seus principais problemas. A
necessidade de ciências como a Sociologia e a Antropologia é anterior ao que
estamos vivendo. Contudo, mais do que nunca, estas ciências são necessárias
para termos uma visão mais consciente dos problemas que afetam a nossa exis-
tência na atualidade.
Na atualidade, o dia a dia tem sido carregado de simplificações perigosas
sobre as condições sociais e econômicas que nos cercam. As mensagens publicitá-
rias, os noticiários, os produtos da chamada industrial cultural3 tem generalizado
por demais a lógica dos fatores que determinam a existência dos seres humanos.
Nos discursos que se encontram nas propagandas e noticiários a vida se resume

3 Quando falamos em indústria cultural estamos nos referindo à produção em série de obras como a músi-
ca, os filmes e símbolos. Também estamos falando dos personagens que passaram a dominar o cotidiano
de nossas vidas, heróis de histórias em quadrinhos, filmes de aventura, romances, os grandes cantores e
compositores, a mulher que é o símbolo sexual. Não escapou desta indústria de valores o esporte e seus
heróis. Hoje os grandes eventos esportivos, os grandes espetáculos teatrais, o lançamento dos filmes, as
premiações dos artistas, atletas. Boa parte desta gama de elementos de valor cultural que são produzidos
em larga escala chega a nossas casas mediante às campanhas publicitárias que recheiam os filmes, telejor-
nais, séries e shows. Tudo é produzido para atingir um público em uma quantidade internacional. Com
o advento da internet estes elementos se multiplicaram, agora estão nas mãos de cada um de nós ligado
pessoalmente a uma rede mundial de computadores que nos permite acessar democraticamente uma
gama infinita de produtos massificados. Fazemos, também, este exercício nas prateleiras dos mercados.
Nunca antes, na história do consumo, os produtos dialogaram tanto com o consumidor. Caixas de leite,
sabão em pó, detergente, fraldas, roupas, sapatos, blusas, perfumes e tudo o que está à venda, conversa
sobre os temas mais diversos por meio da mídia. Hoje, no Twitter ou no Facebook podemos acompanhar
o que pensa a Coca-Cola, o McDonald’s, a Ford e a Microsoft. A indústria cultural nunca vendeu tanto,
como agora, objetos e ideias juntas, em forma de produtos.

O Homem Ocidental e sua Trajetória


I

em boas e más intenções, ou na aquisição de objetos mágicos que podem resol-


ver nossas vidas de um dia para o outro. Na maioria das campanhas publicitárias
todos são merecedores de tudo e a igualdade entre nós se dá pela condição de
consumir tudo o que se quer.
Perigosamente se difunde a ideia de que “não há o porquê entender a origem
do que nos cerca”. As mensagens simplificadas geram a falsa ideia de que o que
orienta nossas vidas são decisões particulares, de cada um, diante dos problemas
que envolvem todos. Na “indústria cultural” que falamos anteriormente, existe
uma relação entre o problema coletivo e a nossa particularidade. Tudo estimula

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
para que estejamos ligados à sociedade por uma vontade controlada a partir de
nossos interesses pessoais. Mudar é uma decisão que cabe a cada um e não há a
necessidade dos outros para que algo se realize. Se levarmos em consideração a
quantidade de livros de autoajuda que dominam os espaços nas livrarias, quase
sempre os de maior vendagem, nós estamos à procura de uma receita de felici-
dade fundada na particularidade, o que é racionalmente impossível.
As campanhas publicitárias dos cartões de crédito talvez seja as que mais
denunciam nossa simplificação da vida. Elas expressam o quanto o valor do que
adquirimos ou podemos adquirir orienta para o sentido da vida. Também reve-
lam o quanto viver é um dia atrás do outro. Frases de efeito ganharam destaque
e se descolaram de seu verdadeiro significado. Uma das que mais se deturpou na
atualidade é a afirmação do imediatismo na expressão: “viva hoje como se fosse
o último dia de sua vida”. Na sequência da negação do futuro vem a propaganda
do cartão de crédito e reafirma: “porque a vida é agora”. O que se expressa aqui
é: dane-se o antes e o depois, tudo se encerra em mim.
Este imediatismo na análise da vida social se constitui em uma ameaça a uma
sociedade que necessita superar seus problemas com racionalidade. A simplifi-
cação da vida social coloca o homem diante de opiniões limitadas e calcadas em
simplismo embalado em papel de presente do brilhantismo. Se voltarmos a falar
da violência esta afirmação fica mais clara. Nas mensagens sobre os crimes que
se propagam, principalmente os homicídios, como uma ameaça a todos nós, os
números sobre estes atos de violência poderiam ser reveladores.
Hoje, 80% dos crimes de homicídio estão ligados direta ou indiretamente
ao tráfico de drogas. Pessoas morrem ou matam por acertos de conta, overdose,

A COMPLEXA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA


18 - 19

crimes passionais envolvendo dependentes químicos. A maioria dos consumi-


dores de drogas são os filhos das classes de melhor potencial de consumo. Logo,
a violência é alimentada pela renda. Pessoas com maior poder aquisitivo ten-
dem a ter acesso mais fácil aos produtos, entre eles as drogas. Contudo, não são
os abastados que morrem pela violência promovida pelo tráfico, são os miserá-
veis. Há hoje uma quantidade imensa de pessoas disponíveis a servirem de mão
de obra ao comércio de narcóticos.
Se considerarmos os discursos da falta de mão de obra qualificada, o que é
uma realidade em países como o Brasil, onde constantemente ouvimos falar na
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

busca de trabalhadores com qualificação pelas empresas, os que estão aptos ao


trabalho são em um número menor do que os que estão disponíveis para traba-
lhar. Há um mar de desqualificados. Em 2012, há 20% dos jovens entre 19 e 25
anos sem qualquer atividade profissional ou educacional no Brasil. Eles estão
excluídos de qualquer possibilidade futura (escola) ou presente (trabalho). São
chamados de geração “nem-nem”, nem trabalho e nem educação. Para o que ser-
viriam estes seres humanos?
Esses seres sem perspectiva estão nas regiões mais pobres do país, o que
agrava ainda mais o problema. Não podemos deixar de considerar que o número
de filhos por mulher tem decaído nas regiões mais ricas e é, ainda, elevado nas
regiões mais pobres. Este dado nos faz compreender que a igualdade não virá tão
facilmente e nem nos próximos anos. Temos que compreender que o tráfico de
drogas cresce exatamente por encontrar um grande número de desiguais vivendo
em regiões relativamente próximas e passíveis de serem explorados dentro de
uma contradição, os que estão disponíveis para serem os produtores, “soldados”
e mercadores das drogas produtores e os que estão na condição de consumido-
res privilegiados do sonho imediato de ficar dopado.
Poderíamos considerar nesta mesma lógica a variedade de produtos que o
tráfico tem oferecido e o preço das drogas que caíram mais de 60% nos últimos
60 anos. Maconha, cocaína, LSD e heroína dividem o mercado com crack, ecs-
tasy e, agora, o oxi. Efeitos cada vez mais devastadores elas são a busca para uma
sensação de existência de satisfação que as relações sociais não são mais capa-
zes de oferecer. Como os celulares e refrigerantes, as drogas seguem a lógica de
cercar seus consumidores nos lugares que eles menos esperam. Encontraram-se

O Homem Ocidental e sua Trajetória


I

produtos em locais onde eles jamais estariam a 15 anos atrás, agora eles são ofe-
recidos sem culpa. A bebida alcoólica frequenta os postos de combustível, assim
como, a cocaína pode se encontrada na escola.
A iniciação ao consumo de bebidas alcoólicas se dá ainda na infância ou pré-
-adolescência dentro do ambiente familiar4. As drogas, também, são oferecidas
por pessoas do nosso círculo de amizade. Os mais próximos se tornaram os mais
perigosos. Os que deveriam nos proteger se traduzem hoje no canal de ligação
entre nós e nossos problemas. Este é outro tema que iremos desenvolver durante
este livro, a relação entre a individualidade exaltada como lógica e as condições

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que estamos organizando a coletividade de forma real. A família, por exemplo,
é uma instituição em mudança, um reflexo das novas relações econômicas,
principalmente da mulher no mercado de trabalho. Outra questão
que podemos refletir está ligada à sexualidade, presente e intensa
em diversos cantos da vida social, perigosamente exaltada pela
lógica instintiva do que civilizadora5.
A contradição maior, que queremos revelar com nossa expo-
sição até este momento, é que ao mesmo tempo em que o homem
se percebe senhor de seu próprio destino pelas mensagens que
recebe em todos os cantos, principalmente nas mensagens publi-
citárias de consumo, ele depende de uma rede cada vez mais
ampla e, em determinados momentos, mundial de produção da
sua vida. Somos o fruto de uma coletividade integrada pelo traba-
lho e nos percebemos como uma unidade autônoma que se liga
aos demais por iniciativa própria, o que é uma fantasia perigosa,
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4 O que muitas vezes não fazemos, e deveríamos como educadores, é procurar dados que possam elucidar
temas que são tão complexos e tratados de forma simplificada por alguns meios de comunicação. O
Ministério da Saúde, assim como o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) tem apresentado
dados importantes para o entendimento do consumo de drogas lícitas e ilícitas. Temos que desmistificar a
ideia de que a ameaça as nossas vidas vem de um elemento externo. Este perigo pode existir, mas dentro
do nosso ambiente doméstico há ameaças que tem de ser consideradas. Nosso círculo de amizade está,
assim como nós, dentro de uma relação social cada vez mais voltada ao desejo imediato de realizações
pessoais. Considerou-se em nossas relações que o caminho mais curto é o certo para se chegar onde se
quer, mesmo que contrariando a lógica de respeito e integridade, estamos transformando em regra a
violência generalizada.
5 Temas como família, sexualidade, violência e preconceito serão tratados ao longo deste trabalho, princi-
palmente em sua quarta unidade. Hoje, na preocupação expressa nos fatos que preocupam a vida social
eles ganham destaque. Por isso, quando organizamos este trabalho procuramos selecionar questões que
possam nos dar um olhar mais atento e qualitativo como educadores. A sociologia e a antropologia como
ciências que auxiliam a função da escola podem nos dar uma análise mais adequada a temas que estão
dentro do cotidiano educacional. Muitos destes temas são simplificados, alguns deturpados, o que leva a
condutas incorretas pelas autoridades e profissionais ligados à educação.

A COMPLEXA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA


20 - 21

mas tida como uma verdade absoluta. Não estaríamos pagando um preço ele-
vado por esta contradição?
Considero que se faz necessário retomarmos a origem da sociedade capitalista
ocidental que determinou esta integração que estamos vivendo. Uma integra-
ção planetária de produção de bens, de comercialização de objetos mundiais.
Também, de uma propagação da cultura industrializada associada ao consumo.
Em toda a história nunca consumimos tanto em tão pouco tempo tantos produ-
tos. A maioria destes bens tem uma validade curta. Nossa vida tem se resumido a
ver objetos que adquirimos passarem pela nossa frente em uma quantidade cada
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vez maior. Nossos lixos se acumulam como uma comprovação dos nossos exces-
sos como consumidores. Não é por acaso que a finalidade dos resíduos é um dos
grandes desafios da sociedade humana de nosso tempo em relação ao futuro.
Ao buscar a origem desta sociedade industrial não estamos afirmando que
ela é uma continuidade. Não queremos considerar que a história da civilização
ocidental nada mais é do que uma sequência de fatos que se desdobraram até
chegar a nós. Como uma relação causa-efeito contínua em que é possível enten-
der as consequências pela intenção dos agentes sociais. Fazendo desta lógica uma
verdade, afirmaríamos um determinismo, o que não pretendemos aqui.
Nossa intenção é compreender que as condições em que as relações sociais
se estabeleceram na Europa levaram à formação da economia de mercado que
gerou o capitalismo e sua posterior mundialização. Esta condição de internaciona-
lização é que permitiu os desdobramentos destas relações mundiais de produção
até nossos dias. Ou seja, nossa sociedade é um desdobramento da expansão que
a economia europeia viveu, em especial com a expansão marítima (Séculos XV
a XVI) e, posteriormente, com a Revolução Industrial (Séculos XVIII e XIX).
O que passaremos agora a tentar resgatar é exatamente esta condição pla-
netária. A construção de uma civilização que após 500 anos de sua aventura
planetária continua a se impor como civilização dominante. Não podemos
negar que a Civilização Ocidental foi bem-sucedida em sua disputa pela lide-
rança mundial.

O Homem Ocidental e sua Trajetória


I

A Longa Jornada da Civilização Ocidental

Nós somos uma civilização planetária mais que em qualquer outra época da
história humana. Estamos ligados a toda à humanidade por uma condição de
produção que gera nossas vidas em uma complexa rede de divisão de produção
em escala mundial. Estamos ligados por uma rede produtiva racional fundada em
uma lógica científica e técnica voltada à concentração de riqueza. Os empreen-
dimentos mundiais têm sua organização centrada em investimentos gerenciados
por centros financeiros que aplicam recursos em setores produtivos. O mundo

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parece ter se transformado em um cálculo voltado determinantemente ao lucro.
A vida vale na capacidade que tem de produzir riqueza ou consumir bens.
Seria uma generalização tola colocar nesta condição toda a humanidade,
mas a maioria dela com certeza. Pois, se há grupos humanos isolados, vivendo
distantes das condições que a economia mundial determina, são poucos, é exce-
ção e não regra. Esses grupos humanos isolados se encontram em uma condição
remota de existência, em uma lacuna que a economia mundial tende a preencher
ou desprezar pelo pouco interesse de integração financeira. Se não há retorno
destes elementos a opção de abandono é mais uma condenação do que um res-
peito à sobrevivência6.
Em sua maioria a sociedade mundial se integra, sente os efeitos desta integra-
ção das mais diferentes formas. As diversidades originárias deste encontro entre
o homem ocidental e as culturas nativas ainda está se processando. Mudanças
estão correndo nos conceitos que civilizações milenares construíram de sua pró-
pria origem. Algumas destas culturas nativas, ao se encontrarem com os modelos
ocidentais de racionalidade economia e, mesmo, de valor cultural, se reconsti-
tuem ou ganham um novo significado para o mundo.
Um exemplo destas mudanças culturais que marcam civilizações tradicionais,

6 Os elementos indígenas, por exemplo, que habitam as matas tropicais da América do Sul vivem em um
estágio de sobrevivência próximo às condições em que estavam quando os europeus chegaram. Se ainda
preservam sua cultura é por lutas constantes pela demarcação de terras e por meios de sobrevivência
que os afastam da convivência com o homem ocidental. Quanto tempo poderá permanecer assim? Esta
pergunta não é difícil de ser respondida, não por muito tempo. Eles poderão manter sua identidade tribal
e preservá-la por um período mais longo. Possivelmente manterão sua relação com a natureza, em alguns
aspectos, como seus ancestrais, mas sua sobrevivência será mais um souvenir do ocidente do que uma sól-
ida forma de organização social. Considero que, no primeiro encontro que se estabelece entre as culturas
nativas e o homem ocidental o efeito é devastador. Há uma mudança no conceito de existência de “si” ao
saber da existência do “outro”. Quando as relações se mantêm, este efeito é ainda pior.

A COMPLEXA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA


22 - 23

algumas milenares, é o que ocorre com o Japão e a Índia. Duas culturas que se
posicionam como um contraponto ao mundo ocidental. Os personagens desta
cultura, nipônica e indiana, são hoje propagados em embalagens de produtos
a venda no mercado mundial. O exótico se descobre atraente. Mas o persona-
gem indiano que chega até nós está desprendido de sua originalidade. Não seria
reconhecido pelo nativo que nós queremos indicar com a imagem massificada
da identidade cultura milenar. O indiano retratado na novela, no filme, ou na
música, raramente lembra ao nativo sua própria cultura. O habitante tradicional
da índia não se identificaria no personagem expresso mundialmente como um
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“cartão postal” de seu país. Construímos assim uma visão distorcida das civili-
zações não ocidentais, assim como, dos produtos que consumimos.
Temos que considerar que a expansão promovida pelo ocidente, a mais de
500 anos, foi devastadora para muitas culturas, alterou a própria cultura oci-
dental. A Europa ocidental colocou os povos dominados na condição de escala
de valor e os julgou inferiores, seja pelo primitivismo perigoso da selvageria ou
pela infantilidade de suas condutas diante de um europeu que se autointitulava
“racional” e “maduro”. Este encontro classificador e de imposição é relatado pelo
antropólogo francês Edgar Morin em sua obra “Terra Pátria”:
A mundialização se opera também no domínio das idéias. As religiões
universais, e seu princípio mesmo, já se abririam a todos os homens da
Terra. Desde os começos da era planetária os temas do “bom selva-
gem” e do “homem natural” foram antídotos, muito fracos, é verdade,
à arrogância e ao desprezo dos bárbaros civilizados. No século XVIII,
o humanismo das Luzes atribui a todo ser humano um espírito apto á
razão e lhe confere uma igualdade de direito. As idéias da Revolução
Francesa, ao se generalizarem, internacionalizam os princípios dos di-
reitos do homem e do direito dos povos. [...]

Se o direito dos povos é reconhecido, certas nações se julgam superiores


e se dão por missão guiar ou dominar toda a humanidade. Se todos os
humanos conhecem as mesmas necessidades e paixões primárias, os
teóricos das singularidades culturais vão insistir em suas diferenças ir-
redutíveis. Se o homem é em toda parte potencialmente Homo sapiens,
o ocidental-centrismo nega o estatuto de homem plenamente adulto
e racional ao “atrasado”, e a antropologia européia vê nos arcaicos não
“bons selvagens”, mas “primitivos” infantis (MORIN, 2002, p.26).

O Homem Ocidental e sua Trajetória


I

Na colocação de Edgar Morin está a forma como a antropologia foi concebida


como ciência, um instrumento de classificação dos povos dominados. A ciên-
cia vai servir ao homem ocidental, por inúmeras vezes, como meio de condenar
a uma condição de inferioridade todos aqueles que estavam e estão sob o julgo
da civilização ocidental. Não foi diferente para a geografia, literatura, ou para
arqueologia, ingressar no rol das áreas de conhecimento se prestando ao serviço
de inferiorizar culturais não ocidentais.
Durante a expansão promovida pelo ocidente, muitos campos de conheci-
mento surgirão na busca de entender e submeter outras civilizações. A conquista

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ocidental bem-sucedida é marcada pelo encontro e desencontro de interesses,
encontro na ciência e nas técnicas que dela derivaram meios fundamentais para
estabelecer a dominação. Das armas de fogo, a medicina, botânica, máquinas
agrícolas, engenharia de construção e produção, enfim, uma gama de meios
racionais para garantir a permanência e produtividade da ordem capitalista inte-
gradora. Mesmo os povos que resistiram a esta dominação, o fizeram usando os
meios que o ocidente gerou7.
Muitos dos que tentaram a resistência pelas suas próprias armas foram exter-
minados. Foi o caso dos Astecas e Incas, também dos chineses nas Guerras do
Ópio (1839 a 1842/1856 a 1860). As armas utilizadas pelo homem ocidental foram
as mais variadas possíveis. Desde as armas de fogo, o cavalo e a armadura que
encantaram e estimularam as crenças astecas e incas, à gripe que dizimou indíge-
nas na América do Sul8. Esta prática de uso do saber em forma de instrumento
7 Nos filmes de cowboy, nos anos de 1940 a 1970, a expressão mais viva da aculturação do ocidente entre os
povos nativos da América do Norte está no uso do cavalo e das armas como meio de conter o chamado
“homem branco”. A produção cultural dos ocidentais propagou aos quatro cantos do mundo os heróis
do extermínio dos indígenas como “selvagens” que necessitavam ser eliminados em nome da “civilização
moderna”. Nos últimos 20 anos resolvemos mudar o curso e abraçar a causa do homem que preserva
o “bom selvagem”. Retomamos as teses de Rousseau e do naturalismo em evidência. Agora temos que
aprender com os povos que destruímos, como se o Ocidente pedisse desculpas a todos os povos que ex-
terminou sem entendê-los em sua “rica cultural”. Vivemos um período em que o “bom ocidental” é aquele
que preserva e impede o extermínio, é aquele que mantém a cultura do “outro”. Na história mais recente
deste gênero cinematográfico, dois filmes merecem destaque: “Dança com Lobos”, dirigido por Kevin
Costner e estrelado por ele mesmo, resgata a mudança de comportamento de um soldado norte-ameri-
cano, durante a Guerra Civil, nos Estados Unidos, onde ao conviver com a cultura dos índios Sioux ele
sofre uma aculturação as avessas, acaba indo conviver com os indígenas e se torna um de seus líderes;
“O Último Samurai” é também uma história de aculturação as avessas, onde o ocidental que se acultura
se torna o melhor entre os povos que antes combatia. O Filme é estrelado por Tom Cruise, dirigido por
Edward Zwick, conta a história da resistência dos samurais no Japão a perda dos valores nipônicos diante
da presença de forças ocidentais no país. Cruise, que faz o papel um militar norte-americano, é capturado
e, posteriormente, é aceito pelos guerreiros samurais, se tornando um dos mais destacados defensores da
tradição japonesa.
8 Um dos episódios de destruição mais conhecidos na história brasileira foi a guerra travada entre os
quilombolas de Palmares, reduto de escravos fugidos e indígenas, em Alagoas, e os bandeirantes liderados

A COMPLEXA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA


24 - 25

de dominação se dá nos pequenos conflitos, mas também, nas grandes guerras


de dominação. São inúmeros os exemplos de como o conhecimento pode fazer
valer o interesse do ocidente diante dos povos que habitavam os territórios que
interessaram a expansão da economia ocidental.
O saber aqui não é o acadêmico, este que estamos agora exercitando den-
tro do conteúdo de um livro. Não é aquele que se aprende para construir uma
profissão que venha a se desenvolver dentro de um ambiente de trabalho pré-es-
tabelecido pela vida no interior da sociedade ocidental. A ciência que estamos
relatando aqui é aquela que vai mais além, que são herdeira e geradora desta
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que estamos praticando aqui, mas que construir em seu exercício prático o que
nossa civilização usufrui hoje. Esta construção de um conhecimento por vezes
contraditório entre o que desejaríamos ser e o que executamos para existir da
forma que somos.
Um exemplo típico de como somos contraditórios em nossa idealização e as
condições que fomos construídos, é a forma como abordamos o processo de con-
quista da América pelos europeus. Sempre consideramos a violência praticada
nas guerras de dominação dos territórios nativos como uma prática abominá-
vel. As guerras que os europeus travaram para a conquista e colonização dos
povos americanos, o número de seres humanos que foram exterminados, são
demonstrações de uma violência condenável. Professores de história, geografia
e literatura são os que mais exercitam a condenação do extermínio dos indíge-
nas. Mas não foi exatamente este extermínio que gerou o que somos? Não foram
estas práticas abomináveis que viabilizaram a construção de uma civilização que
hoje se faz planetária? Se há a condenação ela não deve estar com os olhos volta-
dos para o passado, mas sim para as possibilidades de uma sociedade que rompa
com este extermínio no presente e no futuro.
Se hoje percorremos os corredores dos mercados e suas prateleiras rechea-
das de produtos, se nos deliciamos com sabores que demonstram o encontro de
inúmeros lugares, se nos encantamos com as curiosidades culinárias que falam
sobre alimentos originários de diversas partes do Planeta, esta possibilidade está
diretamente ligada à ocidentalização. Foi ela, a economia capitalista fundada na

por Domingos Jorge Velho (1694). O uso de roupas e homens contaminados com gripe serviu para o
extermínio dos afroindígenas.

O Homem Ocidental e sua Trajetória


I

Europa e propagada pelo Mundo que fez circular e reorganizar a produção dos
alimentos. O mercado mundial fez, também, surgir e aprimorar a produção de
bens que atendem as necessidades básicas para parte considerável da espécie
humana, como também os nossos desejos mais fúteis9.
Quando iniciada, a mais de quinhentos anos, a conquista planetária iniciou
a circulação de produtos e seres humanos. Aquilo que era comum e típico de
determinados lugares se transformou íntimo de muitas pessoas em diversas par-
tes do Mundo. Ao mesmo tempo em que os produtos circulavam por diversas
partes, levavam consigo conceitos, formas de serem incorporados, se associa-

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vam a outros produtos e promoviam identificações diversas.
Se considerar que os engenhos de açúcar no Brasil, durante o Período Colonial
(1530-1808) foi uma empresa voltada ao mercado externo, uma unidade produ-
tiva para atender o mercado mundial, promoveram dentro do Brasil encontros
e reinterpretações de produtos e pessoas. Os escravos, em sua maioria africana,
reelaboraram seus hábitos alimentares, colaboraram para a construção de uma
cultura que se não sua exclusivamente, só pode ser feita no encontro com outros
elementos, no caso do Brasil com o português e o indígena. Podemos considerar
que as unidades de produção do açúcar geraram a possibilidade do surgimento
de uma nova identidade enquanto nação, o brasileiro. Em quantos lugares esta
possibilidade não se deu? Talvez não com a mesma intensidade e com os mes-
mos elementos. Contudo, foi uma condição que a expansão ocidental gerou.
Quando falamos do açúcar, anteriormente, poderíamos também falar das
especiarias, dos artigos vindos da Ásia, da África, das Américas e da Oceania.
Todos os cantos puderam ser reinventados na proporção em que o comércio
mundial centrado na Europa avançou sobre as mais remotas regiões do Planeta.
Também, quando a condição de produção desta gama de produtos voltados ao
comércio mundial foi alterada e intensificada em sua originalidade. A produção
de seda na China e de tecidos de algodão na Índia.

9 A comunicação talvez seja o meio que sofreu a maior revolução dentro das que o mundo integrado pelo
capitalismo promoveu. A relação do ser humano com espaço e tempo foi intensamente modificado. O que
antes era longe ficou perto. Com uma telefonia móvel que muda a geração de aparelhos celulares em uma
velocidade assustadora, nos comunicamos por fala, texto imagem, editamos páginas na internet, construí-
mos conceitos, multiplicamos conteúdos banais e significantes. Misturamos o necessário com o fútil. A
tecnologia de ponta se disponibiliza para salvar seres humanos em condições de risco, mas também pode
servir para planejar sua morte. Com um computador ligado a rede mundial eu posso me informar sobre o
tempo, fazer investimentos, complementar estudos para uma carreira profissional, agendar meu trabalho.
Contudo, também, planejar a morte de indivíduos, usurpar sexualmente de crianças, promover a discór-
dia, destruir imagens, propagar banalidades.

A COMPLEXA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA


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Uma Breve História das Origens da “Era


Planetária”

A história da economia mundial capitalista começou a ser desenhado na Europa


ocidental, especificamente no eixo comercial entre a Itália, o mundo germânico
e os países do norte da Europa, em especial a Holanda. A mercadoria passou a
ganhar significado em uma sociedade agrária de subsistência em crise, o feuda-
lismo. Fundado na subsistência, a economia feudal não pode ser mantida com
a movimentação de pessoas e mercadorias para fugir e atender as limitações de
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uma economia agrária limitada em diversas regiões da Europa.


O nascimento do comércio na Europa, que por um lado promoveu a desinte-
gração da economia agrária feudal e das relações que com ela conviviam, também
será o elemento de reintegração do continente sobre novas formas de expressão
cultural e de poder. O mundo religioso europeu sofreu rupturas com o desen-
volvimento das religiosidades “protestantes” e a própria reorganização da Igreja
Católica. O Renascimento Cultural, por sua vez, estará ligado às novas formas
de organização da vida urbana com o mundo do comércio e com o papel que
a racionalidade vai exercer no continente. A ciência e a inovação tecnológica
encontraram um campo fértil no mundo da mercadoria. O acúmulo de riqueza
passou pela ampliação de produção e produtos, mas também da reorganização
do homem e da forma que compreende e se relaciona com a natureza a sua volta.
Se analisarmos o Renascimento Cultural que se desenvolveu na Europa entre
os séculos XIV a XVI será mais fácil de você entender a trama que se desenro-
lou com o advento do comércio. Para isso, é preciso lembrar o papel que a Itália
(uma península apenas e não um país neste período)10 desempenhou na vida
comercial europeia. As cidades italianas mantiveram-se vivas comercialmente,
mesmo em plena Idade Média e no apogeu do feudalismo.
Ao mesmo tempo em que a Itália foi o berço da cultura romana e muito do
legado da antiguidade clássica ainda era preservado em suas cidades, tanto as

10 A Itália que conhecemos hoje como um país unificado, um Estado Nacional, surgiu em 1870. Antes
disso, o território passou por inúmeras invasões estrangeiras e foi centro de controle da Igreja Católica.
Dividida em principados e cidades-estado, a Itália foi o centro do comércio na Europa antes da expansão
marítima promovida pelos países ibéricos (Portugal e Espanha), a partir do Século XV. Com a expansão
marítima o eixo comercial ao qual a Europa dependia para o fornecimento e comercialização de produtos
se transferiu do Mediterrâneo para o Atlântico.

Uma Breve História das Origens da “Era Planetária”


I

obras arquitetônicas com literárias, o território italiano tinha contato, por meio do
Mediterrâneo, com povos do Oriente Médio, bizantinos e muçulmanos, os quais
preservaram e promoveram a cultura grega. Com o desenvolvimento do comér-
cio no interior da Europa a dinâmica cultural italiana também se intensificou.
A produção literária retomou o legado grego e romano como princípio para
repensar o ser humano em transformação na Europa. A liberdade de pensamento
é exaltada pela circulação de bens, serviços e pessoas. As ideias costumam seguir
o destino das trocas. Onde o desenvolvimento do mercado, troca de produtos, o
movimento de pessoas e ideias floresce. É difícil conter o pensamento quando a

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liberdade acompanha a circulação dos produtos. Contudo, esta liberdade não era
para todos, não atingia a maioria da população. A cultura e a reflexão, assim como
a mercadoria, tinham um limitador que era a capacidade de aquisição. Por isso,
os mestres, artistas e intelectuais da renascença foram sustentados por mecenas11,
que de uma forma geral transformaram a arte em mercadoria e o conhecimento
em algo restrito aos que podiam adquiri-lo ou saboreá-lo pelo consumo.
Assim, se com a arte o valor monetário lhe permitia o acesso, nos demais
produtos disponíveis no mercado europeu a regra de aquisição se fazia valer mais
intensamente. Conforme o fruto do trabalho se mercantilizava, a necessidade
de expandir a produção com o crescimento do consumo levaria a expansão dos
domínios europeus para outras regiões do Mundo. A Europa que dependia de
uma rota limitada pelo controle italiano e centrada no Mar Mediterrâneo supe-
rou esta condição com as navegações de Portugal e Espanha.
O pioneirismo ibérico foi fruto de uma condição inovadora na Europa, a
formação do Estado nacional absolutista. A centralização do poder nas mãos do
monarca seria uma tendência nos países da Europa ocidental. Um processo que
durou cerca de trezentos anos e só foi possível com a inversão de forças políti-
cas a favor do monarca e da demarcação do território nacional. A unidade do
território por meio da administração do monarca que usa de sua capacidade de
11 O financiamento da arte durante o período da renascença foi o primórdio do que conhecemos como a
condição em que a expressão cultura e intelectual está determinada ainda hoje. Por mais que procuramos
propagar a arte e o conhecimento como algo de todos e para todos, mesmo com o poder público investin-
do na cultura para as classes populares, na multiplicação de escolas públicas, o saber fazer e o produto
do que se faz se restringe na dimensão de sua importância a quem tem a condição de adquiri-lo. O que
pretendo discutir com isso é o discurso da educação para todos. Podemos ensinar o conhecimento funda-
mental para uma grande maioria dos indivíduos, mas o que resultará deste conhecimento ao se aprimorar
vai depender das condições que encontrará para o aperfeiçoamento do seu saber, a qual está diretamente a
sua capacidade de gerar riqueza.

A COMPLEXA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA


28 - 29

governar para direcionar recursos e pessoas para a expansão comercial. O fato


de ser uma nação periférica no comércio europeu permitiu a Portugal ter no
monarca um agente pioneiro como força coordenadora da dinâmica econômica
comercial sem a resistência de forças feudais. O que em alguns países centrais
da Europa só foi possível após longos períodos de guerras internas, parte consi-
derável delas religiosas e dinásticas.
As mudanças que fizeram surgir os Estados nacionais europeus estão intima-
mente ligadas à rentabilidade das empresas mercantis. São os lucros do comércio
monitorado e protegido pelas forças nacional a serviço do Estado monárquico
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que permite um projeto de expansão da economia comercial. Enquanto a econo-


mia mercantil se direcionar para a concentração de riqueza dentro do território
onde a arrecadação alfandegária é imposta, o erário tende a se expandir e permi-
tir ao monarca recurso para garantir a sua autoridade, cada vez mais computada
no preço das mercadorias12.
A civilização ocidental que se desenvolveu na Europa Moderna (Séculos XV
a XVIII) foi uma organização das forças que a antecederam, mas também dos
elementos que surgiram e reinventaram as instituições europeias. A expansão
marítima, a conquista planetária efetuada pelos europeus ocidentais, foi resultado
destes elementos: o capitalismo, a cultura cristã e o desenvolvimento científico e
tecnológico. Agrega-se a eles o papel que o Estado nacional desempenhou como
elemento de convergência destas forças direcionadas a dominação planetária.

12 O que se desvenda no início da economia mercantil na Europa Moderna é o papel que o estado exerce
no crescimento da economia de mercado. Se hoje se questiona o peso do Estado na vida da economia por
meio de sua carga tributária, na formação do capitalismo comercial, e depois com o advento da indústria,
seu papel é inquestionável como agente de crescimento e organizador dos meios pelo qual o capitalismo
se desenvolveu. Contudo, é sempre bom lembrar, o Estado é o resultado das forças que a sociedade lhe
empenha. A economia capitalista não se relaciona com o poder estatal da mesma forma ao longo da
expansão ocidental.

Uma Breve História das Origens da “Era Planetária”


I

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O Capitalismo, o Cristianismo e a Razão

Se nos perguntassem qual a função do dinheiro, sempre teríamos uma resposta


que dependeria da intenção de quem o tem ou o porquê deseja tê-lo. O dinheiro
é um meio de aquisição da riqueza ou da necessidade. A moeda é a condição
que nos permite intercambiar necessidades e produtos. Podemos suprir a fome
e adquirir o alimento, podemos trocar o valor de uma maçã por uma caneta, já
que os dois objetos podem ser medidos pelo valor. Trocamos o valor de nosso
trabalho pelos bens necessários a nossa sobrevivência diariamente. Recebemos

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mensalmente, uma quantia pelo nosso trabalho, o qual tem sua participação em
uma condição de produção de um bem determinado para vida social. E quando
este bem é vendido no mercado, nele se computa o custo de nosso trabalho13.
Se a economia capitalista tem na mercadoria seu germe de existência, ela
tomou muitas formas ao longo da história, mas também sua existência depen-
deu de condições de produção que se transformaram ao longo dela. Se voltarmos
a produção do açúcar no Brasil Colônia, quando o trabalho escravo predomi-
nou na confecção dos produtos que eram voltados ao mercado europeu, a vida
de cada trabalhador compulsório era calculada e se fazia presente nas cargas de
cacau, açúcar, algodão e tabaco que cruzaram o Atlântico.
Assim, a mercadoria e o trabalho humano se encontram no valor do pro-
duto, assim as vidas das pessoas passam a ser computadas nos bens que circulam
no mercado local e mundial. A racionalidade da produção passa a ter um papel
fundamental na busca de ampliar o capital e o número de consumidores de
mercadoria. Transformar toda a necessidade humana em um bem de compra e
venda é fundamental.
O aprimoramento dos meios produtivos, das rotas comerciais, as descober-
tas de novos produtos para o mercado, toda a logística que permitisse reduzir
custos e ampliar lucros disponibilizar para a compra um número cada vez maior
de produtos foram necessidades constantes para a manutenção da economia

13 Na história da análise do capitalismo não há dois autores que souberam de forma magistral marcar
o estudo das relações capitalistas como Adam Smith e Karl Marx. Duas visões distintas da produção
da mercadoria, mas que se complementam no desmembramento da lógica do capital. Enquanto Smith
busca na lei de mercado entender o desenvolvimento da produção industrial, o que relaciona a divisão de
trabalho e maquinofatura, Marx faz da mercadoria a porta de entrada para as entranhas do capitalismo e
desvenda o sentido da quantificação da vida material e intelectual.

A COMPLEXA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA


30 - 31

capitalista. Esta ampliação e desenvolvimento foi resultado que a ciência e os


meios técnicos permitiram. Após a Revolução Industrial (séculos XVIII e XIX)
esta necessidade ficou evidente, em nossa sociedade é inegável.
A ciência e a tecnologia são condutores fundamentais da economia, mas
também da vida em sociedade. Nossa organização coletiva foi sendo orientada
pelo conhecimento científico e pelos meios técnicos que temos acesso, seja por
meio da particularidade de um telefone celular ou micro-ondas, ou pelo trans-
porte coletivo, pela comunicação nas mídias eletrônicas e nos serviços de saúde
pública que hoje existem nas cidades modernas.
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A ciência se fez presente na formação do capitalismo por meio da política


econômica dos Estados monárquicos e seus ministros que tentavam orientar a
economia mercantil em desenvolvimento. Jean-Batiste Colbert14 na França foi
um destes exemplos ao orientar a agricultura e a manufatura para o mercado
externo. Exigiu tributos e monopolizou a produção e o comércio a empresários
ligados ao estado francês. Em uma tentativa de desenvolver a economia portu-
guesa, o Marquês de Pombal (1750-1777) praticou o despotismo esclarecido e
valorizou os produtos nacionais portugueses. Desejando a industrialização nas
terras portuguesas, o Estado passou a fortalecer setores manufatureiros e impe-
liu parte das importações inglesas. O sonho de fazer de Portugal uma grande
potência, o que não se realizou, partiu de uma política econômica racional e
orientada pelo Estado.
A própria Revolução Industrial inglesa, ocorrida em meados do século XVIII,
não foi diferente. A transformação da Inglaterra em uma potência econômica que
predominou no século XVII como a principal força naval e mercantil do mundo
gerou as possibilidades de concentração de riqueza em território britânico para
o desenvolvimento da maquinofatura. Foi a política econômica adotada pelo
Estado monárquico que criou o ambiente de deslocamento dos investimentos

14 O colbertismo foi a política do ministro Colbert na França monárquica de Luís XIV. O estado francês
detinha a maior extensão de terras cultiváveis da Europa. A saída para enfrentar o desenvolvimento
mercantil dos estados rivais e permitir a participação no comércio internacional era vender produtos
manufaturados e agrícolas para as nações vizinhas. A Espanha foi a maior cliente francesa. Incentivando
as exportações de produtos manufaturados de luxo, o governo francês tabelou o preço dos produtos e os
empresários que poderiam produzir e vender. As taxas para o comércio interno foram elevadas e para
o mercado externo reduzidas como forma de incentivo as exportações. A população francesa viveu a
miséria e a exploração ao mesmo tempo. O trabalho foi tabelado e reduzido as mínimas condições de
sobrevivência. Os produtos para a população ficaram caros (inflação quinhentista), propagando a fome.

O Capitalismo, o Cristianismo e a Razão


I

do comércio para a indústria. As Leis de Cercamento e a Lei dos Miseráveis15 de


Elizabeth I, em 1603, foram fundamentais para que isto ocorresse e fizesse da
Inglaterra o primeiro parque industrial da história.
A produção industrial se multiplicaria e se desenvolveria como uma cadeia de
fornecimento de matéria-prima e ampliação de mercados de consumo. Inaugurar-
se-ia por meio do modelo industrial uma nova forma de organização da produção
em escala planetária, o que se convencionou chamar de divisão internacional
do trabalho. Cada vez mais racionalizada, a produção da vida em escala mun-
dial e a vida em particular.

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Mas se até aqui a economia e a ciência mostraram sua afinidade para que
possamos entender o desenvolvimento do capitalismo e a expansão da civiliza-
ção ocidental, tendo o Estado como agente de integração entre as duas forças.
A cultura ocidental também teve um papel importante na submissão das civi-
lizações em todo o mundo. A identificação da cultura cristã como elemento de
unidade e direcionamento da dominação também deve ser considerada. O olhar
que se estabelece sobre o mundo e qual nosso papel diante dele pode parecer
uma retórica existencialista, mas em determinado momento se faz fundamen-
tal para entender o comportamento de uma civilização.

15 A Lei de Cercamento e Lei dos Miseráveis conjugaram dois interesses na economia britânica. A vitória
da empresa comercial e financeira sobre a permanência dos privilégios feudais dentro do território inglês
e a transformação do Estado em uma extensão da política burguesa disposta a ampliar a participação
da sociedade nas relações capitalistas. As decisões que a monarquia inglesa tomou desapropriando os
senhores feudais dos privilégios em relação às propriedades rurais, transformando-as em bem imóveis
passíveis de compra, venda e desapropriação por dívidas, forçou a transformação da terra em uma
propriedade capitalista, voltada a produção de bens para o mercado. Estas mudanças levaram a Lei dos
Miseráveis, visto a quantidade de trabalhadores rurais que foram expulsos da propriedade agrícola,
da condição de servidão para se transformarem em trabalhadores assalariados nas fábricas e minas de
carvão, sejam nas cidades ou nas áreas rurais, alimentando de trabalhadores assalariados as empresas em
desenvolvimento. A industrialização inglesa afetou não só as terras britânicas e suas colônias, mas todo
o mundo. De uma forma direta ou indireta, de imediato ou ao longo do desenvolvimento da economia
mundial. A sociedade industrial que foi inaugurada em terras britânicas está espalhada por diversos can-
tos do mundo, com suas diferenças regionais, mas interligada por uma economia mundial.

A COMPLEXA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA


32 - 33

As conduções dos empreendimentos de um único homem, como também de


uma civilização, não podem ser entendidas por uma conduta fundada em lógica
exclusivamente racional. Por mais que nossa civilização seja marcada pela busca
de um sentido racional para as ações e as buscas que ela deve estar relacionada,
o ocidente tem inúmeros valores que orientaram a sua condução além da busca
da lucratividade e da eficiência científica. Consideramos que aqui é importante
compreender a cultura como fator que orienta a ação. Os elementos que colo-
cam em escala os valores que serão os condutores da ação.
O que desejamos considerar aqui, e estas afirmações ficaram mais claras
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quando falarmos das teses de Max Weber em nosso segundo módulo, é que há
uma construção de sentidos na prática de uma ação pessoal ou coletiva. Todos
os indivíduos quando se encontram em uma relação social determinada busca
dar a si uma orientação, um posicionamento dentro da vida em sociedade.
Ao tentarmos entender o que fez os ocidentais promoverem uma navegação
que levou a conquista planetária, temos que considerar que o ímpeto de domi-
nar e estabelecer a cultura cristã sobre as demais civilizações foi fundamental.
Esta busca de se impor, de considerar que se está com a verdade universal e que
os opositores devem se submeter é construído em lógica cultural que valoriza o
direito universal a conquista. Aqui, a religiosidade cristã foi fundamental.
O cristianismo ocidental europeu se transformou em um elemento de uni-
dade durante a decadência romana e se consolidou no Período Medieval. O
feudalismo (Séculos V a XVIII) estabeleceu na Europa a consolidação do poder
da Igreja Católica associada à vida cotidiana. O poder dos senhores feudais, o
sentido da existência dos fenômenos naturais, a construção de uma identificação
com o passado e o sentido da vida futura, entre outros tantos elementos, passa-
ram a ser encharcados pelo sentido religioso.
Não podemos esquecer que o cristianismo tem como princípio a onipotên-
cia e onipresença divina, a criação universal, o determinismo da existência do
homem, o compromisso em defender a “verdade” religiosa. Os cristãos trans-
formam qualquer lugar em que estejam como uma extensão da “Terra Santa”,
uma conquista territorial não era o resultado dos investimentos econômicos e
resultado do conhecimento científico e da capacidade técnica, era a propagação
da religiosidade que deveria ser propagada e converter ou eliminar o descrente,

O Capitalismo, o Cristianismo e a Razão


I

o pagão, o herege, ou o infiel16.


Os inúmeros territórios conquistados pelas nações ocidentais acabaram por
receber a designação nominal da religiosidade. Se pegarmos como exemplo a
orla atlântica brasileira, as cidades fundadas pelos portugueses tiveram nomes
de santos ou dadas religiosas (São Vicente, Salvador, São Sebastião, São Mateus
etc.). Mesmo a chegada dos portugueses em Porto Seguro, Bahia, foi celebrada
com uma missa e nome dado ao território foi Ilha de Vera Cruz. A cruz estam-
pada nas velas das caravelas também servem para entender a importância da
religiosidade cristã como elemento de identificação e simbologia da “cruzada”

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que o europeu estava realizando no “além-mar”.
O Estado monárquico nacional era justificado pelo poder divino, obedecer
ao rei era obedecer a Deus. Por isso, quando falamos da importância do modelo
religioso que o cristianismo implantou na Europa não estamos nos referindo
exclusivamente ao entendimento do sentido da vida de cada um, mas da própria
existência do Estado. A obediência ao poder que determina uma função além da
vida racional em sociedade, mas do princípio moral a ser obedecido e seguido.
Para retomarmos uma das discussões mais comuns ao falarmos da forma-
ção do Brasil, sua ocupação e colonização, o papel dos jesuítas podem nos servir
como referência da importância da religiosidade como fator de conquista. Os
padres da Companhia de Jesus se deslocaram para o interior do território colo-
nial e se dispuseram a converter nos nativos à religiosidade cristã estabelecendo
uma lógica de conversão e educação. Seria impossível entender o empenho que o
jesuíta dava a sua empresa se não considerarmos a dimensão de sua fé. A empresa
racional jesuíta e toda a capacidade que ela demonstrou de dominação foi pos-
sível dentro de um sentido religioso da obra de colonização17.
16 O cristianismo foi um desdobramento do judaísmo. O monoteísmo cristão tem as bases na divindade
judaica e rompe com ela na figura de Cristo, o “filho de Deus”, o “Salvador”, que os judeus consideram não
ter vindo. Outro elemento importante e fundamental para entender a justificativa de imposição cristã,
está na universalização dos homens, todos os povos são os filhos de Deus. Para os judeus, eles são o povo
escolhido. Por mais que os demais povos reconheçam a existência Divina, são os hebreus que detêm a
preferência do elemento determinante. Por isso, a “Terra Santa” para o hebreu é a Palestina, para o cristão
é todo o território onde ele leva a “palavra” de Deus. Os Ocidentais europeus se colocam na condição de
propagadores da fé, da verdade religiosa. Os discursos religiosos passam a expressar o interesse do homem
europeu. Uma unidade fundamental entre a busca da riqueza, os aparatos técnicos e conhecimento
científico e a cultura cristão justificando a ação do homem europeu. O que vale relembrar é o papel do
Estado como ordenador desta unidade.
17 Se formos considerar o quanto a conversão foi um exercício de confronto e risco para os padres jesuítas,
podemos entender a dificuldade do empreendimento de propagação da religiosidade. O padre José de
Anchieta que foi um dos primeiros jesuítas no território colonial brasileiro se deixou capturar pelos
tupinambás para poder convertê-los. Muitos jesuítas não tiveram sucesso com Anchieta e foram mortos

A COMPLEXA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA


34 - 35

O conceito de homem e o sentido que se dava a suas práticas, seja na condi-


ção da riqueza e sua finalidade, como o papel que a escravidão exercia e quem
poderia ser escravizado ou não. O ideário cristão é fundamental para entender
a conduta ocidental tanto nas áreas dominadas como na própria Europa.
Max Weber, pensador social alemão, fez uma análise contundente sobre o
papel que a ética religiosa exerceu sobre as práticas econômicas. O quanto o con-
ceito moral da riqueza e do trabalho influenciaram a conduta dos seres humanos
em seus empreendimentos econômicos. O dinheiro é um valor aceito por vários,
mas o sentido que ele tem e o que dele pode ser feito se diferencia pelo sentido e
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interesse de quem o possui. Nossos interesses são estabelecidos por uma escala
de valores que os modelos culturais constituem.
Um dos exemplos que Weber dá é sobre o conceito de trabalho para o pro-
testante calvinista e o católico. Enquanto para o primeiro o trabalho enobrece e
eleva o homem no conceito divino, para o segundo o trabalho está associado ao
sofrimento e denuncia o pagamento dos pecados. Logo, o ímpeto do trabalho
para o protestante, a acumulação de riqueza, o sucesso material estavam associa-
dos ao prestígio religioso. Já, para o católico, a riqueza era um pecado, o trabalho
um sacrifício que o pecador deveria pagar.
A mentalidade cristã que orientou o processo de conquista ocidental manteve-
se e, de certa forma, se mantém ao longo da história de conquista estabelecida
sobre o mundo, que denominamos aqui, por influência da termologia de Edgar
Morin, de “era planetária”. Não com os mesmos princípios, não mais fundada
na religiosidade cristã que endossava a imposição da civilização ocidental, mas
em uma nova forma de conceber a superioridade por meio da racionalidade e
mesmo da ciência.
Não teve área de conhecimento que exerceu melhor esta tendência do que
a Antropologia. O seu nascimento teve como objeto de estudo “o homem não
europeu”. Ela debruçou-se sobre o comportamento de civilizações encontradas
pela expansão europeia e sua dominação nas mais diferentes partes do mundo.
Comparações, classificações, escalonamento mediante valores que o homem
pelos nativos. As técnicas de conversão eram obtidas com o uso de uma técnica de tradução da língua na-
tiva e estabelecimento de contato mediante a música. Depois de aceito pelos nativos, os padres inacianos
promoviam um eficiente método de organização dos nativos. Uma ação constante que envolvia paciência
e determinação. Quando o Estado português rompeu com o projeto catequético jesuítico este já tinha
aliciado mais de 150 mil nativos.

O Capitalismo, o Cristianismo e a Razão


I

ocidental impunha aos demais povos. Esta escala serviu para estabelecer a “linha
evolutiva” que tinha a “Europa civilizada”, como afirma Augusto Comte, no topo.
O pensador francês, fundador das teses positivistas, estabelecia no princípio da
evolução civilizadora as sociedades próximas ao comportamento dos primatas.
Tarde, Morgan e, mesmo, Hegel seguiram por caminhos diferentes o mesmo cri-
tério de colocar os ocidentais na cadeia evolutiva18.
Charles Darwin é o autor de maior lembrança quando falamos de “evolu-
ção”, por mais que suas colocações são interpretadas de forma equivocada como
uma justificativa de superioridade natural do homem europeu. O antropólogo

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francês considera que a lei do melhor adaptado reside mais na capacidade de
assimilação do ser vivo ao meio do que de sua competência mental para garan-
tir a permanência. Ou seja, nada garante que formas mais complexas de espécies
não podem ser eliminadas se determinadas mudanças no meio for de tal monta
que seja impossível assimilá-las19.
A literatura também foi uma expressão da superioridade ocidental. Romances
e aventuras fortaleceram o ideal do vitorioso “homem branco”. Nas páginas dos
livros que se transformaram em clássicos durante os séculos XIX e XX, os per-
sonagens vitoriosos eram os exemplares fiéis do corpo social do ocidente. Talvez,
nenhum romance de aventura expressou com maior intensidade esta ideia do
que a “Lenda de Tarzan” 20.
O homem branco está fadado, segundo a produção científica e literária
produzida pelo ocidente, que nos referimos, à conquista, à superioridade, à

18 As teses desenvolvidas a partir do Século XVIII foram formadas em bases eurocêntricas, mesmo aquelas
que tentaram uma conciliação entre o universalismo iluminista e o poder estabelecido pelo Ocidente
sobre o Planeta. Se para alguns teóricos como Voltaire a desigualdade se justifica pela capacidade racional
do homem bem-sucedido, para outros pensadores como Montesquieu, era preciso refletir sobre o relevo, a
geografia, os hábitos culturais. Já para Morgan, existe um elemento classificatório que permite enquadrar
as civilizações humanas em estágios. Grupos primários e desenvolvidos dentro de uma constituição que
leva em conta os aspectos biológicos e de racionalidade.
19 Vale a lembrança do que estamos vivendo. Hoje, promovemos um processo crescente de degradação
do meio ambiente. Não estou aqui afirmando que meio ambiente é a condição natural que o homem
encontra. A floresta intacta não é por si um meio de sobrevivência. Mas a destruição das condições de
produtividade do solo é. Vale lembrar que um elemento não está ligado diretamente ao outro. Nossa es-
pécie soube transformar a natureza para atender aos seus interesses. O que nos resta saber é o quanto esta
transformação foi além da manutenção das condições vitais para a manutenção da vida humana.
20 Escrito pelo norte-americano Edgar Rice Burroughs, a obra relata a aventura de Tarzan (pele clara para
os Gorilas), filho de pesquisadores e exploradores ingleses que morrem na África, deixando o recém-na-
scido. Este é criado por um gorila. Vivendo em meio aos macacos, o filho do homem branco, mesmo
assim, se tornará o “rei das selvas”. Uma forma de comprovar a lógica de que o branco vencerá, mesmo
criado em um ambiente inóspito, desfavorável ao intelecto. A natureza se encarregará de comprovar a
superioridade natural da espécie.

A COMPLEXA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA


36 - 37

responsabilidade de civilizar o mundo e, como um deus, recriá-lo a sua imagem


e semelhança. Na conquista estabelecida sobre diversos povos, o homem ociden-
tal julgou, absolveu e condenou. Sua sentença sempre está calcada na busca por
si mesmo, segundo François Laplantine. Por isso, os que lhe pareciam “conhe-
cidos” eram absolvidos, os que lhe causavam estranheza e o negavam deviam
ser exterminados.
Mas ainda continuamos a ver o homem ocidental julgar os demais povos do
Planeta. Condenar ou absolver não é o elementar, o julgamento é mais impor-
tante que a sentença. Subordinar, garantir a exploração e determinar que qualquer
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parte do Mundo seja uma extensão de seus interesses permitiu às nações euro-
peias estabelecerem uma rede mundial integrada de produtos.
Podemos então considerar que as conquistas do ocidente integraram elemen-
tos importantes. Relembrando o que já discutimos aqui: a economia ocidental, o
desenvolvimento científico e tecnológico e a cultura predadora do homem oci-
dental foram fundamentais para conduzir a história planetária ao que estamos
assistindo aos nossos dias. Estes elementos se integraram em um projeto desen-
volvido pelas nações europeias. Elas redesenharam toda a cartografia mundial,
refizeram as fronteiras de praticamente todas as demais civilizações do mundo.
Se considerarmos toda a expansão e os tratados que as nações europeias esta-
beleceram entre si e com outras nações do mundo, eles redefiniram as fronteiras,
colocaram novos nomes nas terras subordinadas e classificaram suas faunas e
floras. Quanto aos povos que habitavam as terras conquistadas, eles também pas-
sariam, em sua maioria, a serem identificados pelos nomes dados pelo ocidental21.
Em uma das fases determinantes do poder ocidental sobre o mundo está
o neocolonialismo. Estabelecido após o desenvolvimento industrial europeu,
marcado pela fase considerada imperialista das potências ocidentais. Tendo
seu apogeu entre 1870 a 1918, o imperialismo acabou por resultar em uma dis-
puta pelo domínio da economia mundial entre as potências. Principalmente
Inglaterra, Alemanha, França, Itália, Rússia, Bélgica, Estados Unidos e Japão
21 Desde o início da expansão marítima europeia a assinatura de tratados que dividiram os territórios em
todo o mundo foi uma demonstração da ambição e da forma como o ocidente passou a tratar suas con-
quistas. Entre as primeiras divisões estabelecidas sobre o mundo, nós podemos considerar o Tratado de
Tordesilhas (1494) assinado entre Portugal e Espanha. Ele estabeleceu os domínios dos países ibéricos no
Atlântico. No século XV, duas nações periféricas no contexto mundial definem por uma linha imaginária
uma fronteira, dividem povos e determinam seu futuro. O que o tratado definiu acabou por se tornar uma
realidade ao longo do tempo e promover novas expansões e o surgimento de novos limites e fronteiras.

O Capitalismo, o Cristianismo e a Razão


I

foram os principais protagonistas do redesenho da cartografia mundial.


Nenhum tratado marcou mais este período do que o assinado em Berlim
(1885). Nele participaram os países que detinham porções territoriais no con-
tinente africano, a Alemanha, sediando o conflito, acabou por receber áreas
territoriais de domínio no continente. Uma divisão marcada pelo interesse de
explorar o território e garantir o domínio europeu sobre regiões de interesse
dentro do continente africano.
Nenhum dos territórios da África ficou sem se transformar em uma posses-
são europeia, todos perderam sua autonomia e foram explorados intensamente.

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Para estabelecer este domínio os países europeus já tinham feito anteriormente
inúmeras pesquisas, conhecido os detalhes da ocupação do território pelas
populações nativas, muitas delas já tinham sofrido o confronto com as nações
ocidentais e se encontravam subordinadas deste o início da expansão marítima
(Séculos XV e XVI)22.
A princípio, os domínios que as nações europeias estabeleceram sobre o
território africano foi no litoral, não conheciam demasiadamente bem o inte-
rior para fazerem incursões de permanência, assim como, não tinham aparato
técnico capaz de estabelecer um enfrentamento eficiente aos povos nativos.
Contudo, com o passar do tempo, o conhecimento ocidental foi sendo cons-
truído. Expedições de cientistas ocidentais financiadas pelos governos ou por
empresas determinaram uma ação na busca de construir um conhecimento efi-
ciente, mesmo ciências nasceram desta busca como falamos anteriormente, que
permitisse uma ação precisa sobre o território.
A antropologia é a ciência, como já citamos anteriormente, que mais expressa
esta dominação. Ela foi sendo desenvolvida e ampliada com as informações que
eram trazidas das expedições. Inúmeras obras de viajantes foram publicadas retra-
tando estas viagens e suas descobertas. Os chamados “diários de viajantes” eram
experiências que traziam a aventura do homem ocidental em terras inóspitas e
recheado de descrições, muitas vezes mistificado, dos homens “não ocidentais”.

22 A expansão marítima portuguesa e espanhola se desdobrou sobre o território africano e fez dele um dos
principais objetos de interesse. No princípio da expansão lusitana, a conquista de Ceuta no Norte da Áfri-
ca foi fundamental para desencadear uma série de expedições direcionadas ao litoral do continente. Os
domínios sobre Guiné, Príncipe, São Tomé, Angola e, posteriormente, Moçambique, geraram um império
colonial português que seria cobiçado por outras nações europeias, além da Espanha. Inglaterra, Holanda
e França também se lançaram sobre o território africano a procura de seu “quinhão” de riqueza.

A COMPLEXA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA


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Muitas destas informações obtidas pelas expedições pesquisadoras darão a


vantagem ao ocidente na partilha dos territórios dominados. Na Conferência de
Berlim que falamos anteriormente, os países europeus colocaram sobre a mesa
um mapa da África e a dividiram como um bolo de recheios diversos, conheci-
dos minuciosamente e que representavam a possibilidade de exploração. Uma
parte considerável destas riquezas eram desconhecidas pelos próprios nativos.
Os riscos produzidos pela Conferência de Berlim repartiram a África em
porções territoriais que ainda hoje são as fronteiras das nações africanas. A
herança da colonização feita pelo ocidente é sentida no legado com o qual os
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povos afros têm que lidar nos dias atuais. Muitas destas nações vivem guerras
civis entre grupos tribais que reivindicam autonomia nas terras partilhadas pelos
europeus sem respeitar o povoamento nativo. Dividir territórios nunca levou
em conta os interesses de quem os habitava para as potências imperialistas da
Europa. Muitos povos nativos rivais ficaram sobre o mesmo comando quando
a África se viu dividida.
A exploração europeia sobre diversas partes dos continentes se estabeleceu
sobre bases das mais distintas. Desde a dominação pura e simples, impondo à
força o domínio sobre um determinado território, como pelas relações comer-
ciais que, aos poucos, vão subordinando os nativos das diversas regiões do
mundo. Foi assim, na própria África, quando do litoral, os portugueses, espa-
nhóis, ingleses e holandeses obtinham escravos por meio do escambo feito com
outros povos. Eles vendiam os inimigos para os europeus, no início, depois pas-
saram a caçá-los para atender as trocas e, ao final, acabaram se transformando
na própria caça dos “homens brancos”. A necessidade de escravos parecia não
ter fim para os ocidentais.
A persuasão sobre os nativos se deu por meio das trocas também, elas foram
elementos fundamentais para subordinar nações inteiras. Atender as necessida-
des dos povos que ocupavam os territórios em troca de algum interesse. Contudo,
essas trocas eram controladas pelos europeus e serviam de mecanismos para
manipular os nativos23. Levá-los a se submeterem pela necessidade dos produtos
23 Apenas como ilustração da prática de trocas estabelecida pelos homens europeus com os povos nativos,
uma delas foi efetuada pelos portugueses no litoral brasileiro. Denominado de escambo, a troca de
produtos com os indígenas, a prática em nosso litoral teve como interesse extrair o pau-brasil no litoral
brasileiro. Os portugueses fizeram contatos com os nativos e passaram a trocar bugigangas (bijuterias,
tecidos, espelhos, machados e serrotes). Com esta prática se estabeleceu uma dependência entre o nativo

O Capitalismo, o Cristianismo e a Razão


I

oferecidos. Em seu trabalho “O Espírito Ocidental Contra a Natureza”, Frederick


Turner analisa a intenção ocidental ao fazer o comércio de armas e outros pro-
dutos com os que habitavam o rio Missouri:
De logo o comércio se torna indispensável, pois as tribos das Gran-
des Planícies cedo adotaram o rifle e bem correlatos; acostumavam-se
também ao álcool, café, açúcar, cobertores e diversos tipos de enfeites.
O chefe Crow Plenty-Cups lembra que o seu povo demorou a adotar
os rifles carregados com cápsulas – que vieram depois dos que eram
carregados pela boca –, mas quando isso aconteceu eu não sosseguei
até conseguir um rifle desses, que me custou dez mantas muito boas.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Esse rifle podia ser recarregado num cavalo a galope. Abandonei para
sempre o meu arco. Alguns dos mais velhos, no entanto, continuaram
usando a sua arma familiar. Compreendia sua atitude antes da chegada
do rifle de cápsulas, mas agora o arco me parecia apenas um brinquedo.

William Bradford percebeu a mesma transformação, mais de dois sé-


culos antes, entre as tribos de Massachusetts; e é claro que a mudança
não se limitava às armas de fogo. Plenty-Coups, perguntado se algum
dia acendera uma fogueira atritando gravetos, respondeu que sim, mas
acrescentou que isso exigia mãos vigorosas e muito tempo. “O fósforo”,
disse, “é uma coisa maravilhosa. Sempre que acendo meu cachimbo ou
um fogo com um fósforo, me lembro de uma época em que a pedra de
fagulha e o aço eram as únicas formas de fazer fogo que conhecíamos.
Essas duas formas também foram nos ensinadas pelo homem branco.
Antes disso, acender um fogo era um trabalho árduo”. O Cheyenne
George Bent observou que o seu povo, com o cavalo e o rifle, foi no
mínimo tão confiante e independente quanto qualquer outro que tenha
vivido na terra. Mas não entendia por que os Cheyenne não sustenta-
ram aquela independência frágil sob a implacável pressão dos comer-
ciantes brancos, com seus bens comerciais brancos e com seus planos
brancos para a ocupação das terras.

Depois de 1850 essas pressões foram crescendo incrementalmente e


na década de 1860 as tribos das Grandes Planícies tinham se tornado
ásperas, hostis. Estavam também perplexas com sua nova dependência
em relação a esse povo inflexível, que lhes fornecia bens altamente va-
lorizados, mas que nunca se satisfazia com os termos simples das tro-
cas. Foi só quando tudo terminou que os nativos viram que os brancos
queriam não apenas o castor, o bisão, direitos de passagem, terras para
ampliar núcleos de colonização e fortalezas militares para proteger os
colonos. Os brancos sempre quiseram tudo. Tudo. E nem mesmo isso
bastaria (TURNER, 1990, pp.264-5).

e o ocidental. Enquanto o primeiro passava a ter contato com objetos que não sabia produzir, estranhos a
sua natureza, os europeus se apoderavam de uma madeira que conheciam bem, sabia de seu potencial de
exploração. Este detalhe foi fundamental para decretar o destino dos nativos.

A COMPLEXA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA


40 - 41

O que Turner trabalha de forma magistral são os meios pelos quais o homem
branco se impôs pelas trocas, pelas dependências, pela manipulação das neces-
sidades criadas junto aos nativos. Esta também será uma forma de dominação
eficiente, marcada por uma dependência tecnológica cruel que representa uma
das muitas etapas da conquista ocidental sobre mundo.
A exploração se intensificou à medida que o conhecimento sobre os demais
povos também avançou. Não podemos desassociar conhecimento científico e
tecnológico da capacidade de dominação estabelecida pelo ocidente. Como já
afirmamos anteriormente, ciência e tecnologia foram elementos importantes para
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

a conquista planetária. O enriquecimento das nações ocidentais está ligado dire-


tamente às empresas colonizadoras bem-sucedidas em diversas partes do mundo.
As empresas ocidentais se estabeleceram e geraram uma rede de exploração
de matéria-prima e de produtos para o mercado mundial, fazendo com que as
mercadorias chegassem aos diversos cantos do mundo. Esta rede se ampliou e
levou as mudanças nos cenários dos continentes e seus territórios conquistados.
A exploração e conquista contou com meios eficientes de deslocamento de tro-
pas e produtos. Ferrovias e transporte fluvial permitiram o aumento da rede de
integração de territórios a áreas portuárias. Possibilitou estabelecer uma dinâ-
mica ágil, acelerando a circulação de produtos, mas também de pessoas.
Em regiões onde a exploração de riqueza se tornava primordial, se iniciou
uma mudança na infraestrutura econômica. Esta mudança se processou de diver-
sas formas, mas sempre com a economia ocidental como principal elemento de
interesse. Seja buscando a construção de meios de transporte ou pela exploração
agrícola ou extrativista, a busca por riqueza mudou o cenário físico e humano.

O Capitalismo, o Cristianismo e a Razão


Nas descobertas feitas pelos ocidentais ao longo da história, as grandes navegações fo-
ram o marco mais importante. Os primeiros contatos do homem europeu com o que se
convencionou chamar à época de “Novo Mundo”. Um dos mais célebres conquistadores,
mais por exagero de seus escritos que se propagaram pela Europa do que pelos feitos
comandantes. Quando ainda era um marinheiro de prestígio médio e esteve no litoral
brasileiro no início do século XVI (1506), escreveu:
A terra daquelas é fértil e emana, de muitos montes, morros, infinitos
vales e regada por grandes rios e fontes. É coberta de extensos bosques,
densos e pouco penetráveis, e povoada copiosamente de feras de todos
os tipos. Nela nascem, sem cultura, grandes árvores, as quais produzem
frutos deleitosos, de proveito ao corpo e nada nocivos, e nenhum desses
frutos é parecido com os nossos. Produzem-se inumeráveis gêneros de
árvores e raízes, de que fabricam pão e ótimos mingaus, além de muitos
grãos ou sementes não semelhantes aos nossos.

Metal nenhum aí se encontra, exceto o ouro, do qual há abundância, se


bem que dessa viagem nenhum conosco trouxemos; mas dele tivemos
notícia por intermédio dos habitantes, que afirmaram que nos sertões
havia muito, mas que não o estimavam nem apreciavam (CALDIERA,
2008, pp.30 e 31).

Mas se o olhar de Vespúcio é sobre a riqueza e lhe encanta a natureza traduzindo para
o ocidental seus interesses de cobiça e a existência de um mundo diferente. O olhar da
cultura cristão, da religiosidade, capturou outra forma de ver o estranho, não tanto a
natureza, mas os seres humanos.
O capuchino francês Claude d’Abbeville esteve no Maranhão, em 1612, e retratou desta
forma os indígenas guarani:
Não há nação, por mais bárbara que seja, que não tenha procurado, em
dado momento, cobrir o corpo com vestimentas ou enfeites, a fim de
esconder a nudez. Pois os tupinambás, por mais estranho que pareçam,
andam sempre nus, como ao saírem do ventre materno, e não demons-
tram em absoluto a menor vergonha ou pudor.

Segundo as Escrituras, logo que os nossos primeiros pais comeram o fru-


to proibido, abriram-se os seus olhos, e eles perceberam que estavam
nus e lançaram mão de folhas de figueira para cobrir a nudez de se pe-
javam.

Como se explica que os tupinambás, compartilhando a culpa de Adão


e sendo herdeiros de seu pecado, não tenham herdado também a ver-
gonha, consequência do pecado, como ocorreu com todas as nações do
mundo?
42 - 43

Considerações Finais

O que temos que ressaltar nesta primeira unidade é a relação entre a formação
do ocidente enquanto civilização e sua conquista mundial. O quanto elemen-
tos como a ciência e a tecnologia permitiram ao homem ocidental a capacidade
de se impor. Esta imposição levou a integração de uma economia mundial que
se faz hoje cada vez mais eficiente. Ela está vinculada as nossas vidas e promove
nossa condição de existência onde cada um de nós estivermos.
O desenvolvimento da civilização ocidental passou por diversos estágios
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

e promoveu mudanças na composição das mais diversas regiões do mundo.


Nenhuma parte do planeta conseguiu ficar sem ter as consequências da domi-
nação planetária.
Esta dominação propagou não só a economia capitalista, mas um modelo de
sociedade, um princípio moral e uma determinação cultural. A forma como o
homem ocidental se impôs na ocidentalização, está expressa na produção artís-
tica, literária, na interpretação dos seres humanos em diversas regiões do mundo.
Hoje assistimos a alguns dos efeitos da dominação que o ocidente promoveu.
Tanto nas fronteiras e formações políticas, os Estados nacionais que foram cria-
dos com a expansão, assim como, a forma de dominação que ainda se expressa
nas forças de repressão e propagação cultural.

Considerações Finais
1. Um desafio para se fazer sobre a vida ocidental é uma prática simples,
aparentemente estranha. Veja uma lista de produtos que você tem
a sua volta, produtos mundiais, busque suas origens. Vá à internet e
reconstrua a trajetória do produto que está em sua sala o televisor, na
cozinha a geladeira e o computador no escritório. Analise o quanto o
mundo da globalização chega a nós.
2. Estabeleça a relação da ciência e da tecnologia no desenvolvimento de
nossa sociedade. Onde a ciência e a tecnologia estão? Como o conhe-
cimento nos permite o acesso às mínimas coisas e não as percebemos?
44 - 45

Material Complementar

MORIN, Edgar & KERN, Anne Brigitte. Terra Pátria. Tradução


de Paulo Azevedo Neves da Silva. Porto Alegre: Sulina, 2002.

TURNER, Frederick W. O espírito ocidental contra a natureza:


mito, história e as terras selvagens. Tradução de José Augusto
Drummond. Rio de Janeiro: Campus, 1990.

IANNI, Octávio. A era do globalismo. 4. ed. Rio de Janeiro: Civi-


lização Brasileira, 1999.

Aqui está um documentário sobre a globalização vista sobre a ótica dos que são chamados
de excluídos. Milton Santos, um dos maiores intelectuais das ciências humanas, um geógrafo
brasileiro, analisa o processo conquistador do ocidente. Vale a pena assistir!
<http://www.youtube.com/watch?v=-UUB5DW_mnM>.

Material Complementar
Professor Me. Gilson Aguiar

AS NOVAS SOCIEDADES E

II
UNIDADE
SEUS DILEMAS

Objetivos de Aprendizagem
■■ Descrever a formação da sociedade industrial e o seu
desenvolvimento. Principalmente o crescimento da sociedade
urbana.
■■ Estabelecer a integração entre a produção industrial desenvolvida
na Europa e a integração da economia mundial, destaque para a
formação da economia por meio de uma divisão internacional do
trabalho.
■■ Estudar as mudanças na produção mundial com o advento da Guerra
Fria (1945-1989) e o desaparecimento.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Formação da sociedade industrial urbana
■■ Crescimento do capital e a economia mundial
■■ Guerra Fria e mundialização do capital
48 - 49

Introdução

Caro(a) acadêmico(a), a maioria da população mundial vive nos centros urbanos.


Esta realidade é marcada por uma prosperidade que habita os espaços modernos
das cidades, mas também demonstra suas contradições se pensarmos nas peri-
ferias que se organizaram e marcam a marginalização social. Toda a vida urbana
parece se estabelecer diante desta contradição, a riqueza e a pobreza.
Esta formação social contraditória das cidades foi resultado do desenvolvi-
mento da própria economia capitalista. A qual implantou uma rede de produção
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

que teve nos espaços urbanos sua organização típica. Esta organização nem sem-
pre foi planejada. O que levou a organização de núcleos de tensão motivados
por diversos fatores associados à condição de miséria em que viveu as primei-
ras levas de trabalhadores.
Mas sociedade urbana que se iniciou na Europa se expandiu para outros paí-
ses. Algumas cidades com aspectos modernos nasceram em regiões tipicamente
agrícolas ou distantes dos centros das potências econômicas capitalistas. Com
o passar do tempo estes centros passariam a receber também indústrias e a se
integrar com a rede de produção mundial que estreitou seus laços.
A integração da economia mundial ocorreu ao longo de 500 anos, como fala-
mos anteriormente. Neste período ocorreu o deslocamento humano para diversas
partes do Planeta, assim como, de produtos. O afluxo de uma grande quantidade
de capital para a Europa levou a formação de um grupo de empresários que uti-
lizaram dos estados nacionais europeus para garantirem seus interesses fora da
Europa. O colonialismo que a Europa impôs sobre o mundo se multiplicou e
se refaz sobre novos moldes, o que se convencionou chamar de imperialismo.
Em conjunto com o imperialismo o discurso eurocêntrico também se esta-
beleceu. Isto fez emergir as ciências humanas que tiveram com objeto de estudo
o homem, a sociologia e a antropologia. No ambiente de superioridade ociden-
tal estas áreas de conhecimento se impuseram como necessidades, mas também
como formas de legitimar o poder ocidental.
Duas guerras foram travadas pelas potências ocidentais e movimentaram a
rede de produção mundial. Elas alteraram as condições de produção dos bens
industriais e levaram a uma nova organização do domínio do ocidente sobre o

Introdução
II

mundo. Seria a nova divisão internacional do trabalho.


Em nossa Unidade estes serão alguns dos pontos tratados.
Boa leitura!

A Sociedade Urbana e a Crise de sua Origem

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Com o desenvolvimento da indústria e da capacidade produtiva integrada a
uma cadeia mundial de produção, como falamos na primeira unidade, há uma
mudança nas condições de vida dos seres humanos. Esta mudança se fez sentir,
primeiramente, na Europa após a Revolução Industrial, e depois se propagou
para diversas regiões do Planeta.
A indústria sediada na Europa necessitou cada vez mais de matéria-prima
vinda de diversas partes do mundo, assim como o mundo passou a consumir em
uma escala crescente os produtos industriais. Nesta cadeia produtiva, nas áreas
industriais, centros econômicos nesta fase do capitalismo, ocorrem um cresci-
mento da população urbana. Uma realidade que trará impasses e incertezas no
decorrer dos Séculos XIX e XX. Levará um número crescente de pensadores
sociais à busca de entender qual será o futuro da sociedade diante de uma con-
centração populacional nunca vista na história humana. A cidade se tornou um
ambiente de tensão que exigiu preocupação por parte dos cientistas europeus.
Se a ciência foi um instrumento de dominação para a conquista de novos ter-
ritórios, para a expansão do capitalismo ocidental fundado na empresa mercantil
e, posteriormente, industrial, agora ela deveria atender a ordem social institu-
ída na própria Europa. Entender as relações sociais constituídas no ocidente se
tornou uma prioridade. Buscar uma ação para sua transformação será o objeto
de preocupação das forças políticas e também dos cientistas.
O crescimento urbano deste período pode ser medido pela vida em Londres,
a primeira grande cidade industrial do mundo, no centro de uma economia que
já foi por quatro séculos a maior do mundo, a inglesa. Londres praticamente tri-
plicou a sua população entre os séculos XVIII e XIX. A massa populacional que

AS NOVAS SOCIEDADES E SEUS DILEMAS


50 - 51

passou a migrar para a cidade, o chamado êxodo rural, fez crescer uma cidade
desconexa, desordenada.
Os operários se concentraram em torno das fábricas ou em cortiços. Sem
vias planejadas, as cidades concentravam problemas de ocupação. As moradias
mal ventiladas, muitas delas tinham apenas um cômodo onde se ajeitava toda
uma família de operários, falta de saneamento, exposição a um ambiente úmido
e insalubre que provocava doenças como tifo, cólera, varíola e escarlatina. Estas
epidemias passaram a preocupar o Estado. A busca de um saneamento básico
levará, entre outras atitudes, a promover o zoneamento urbano e as políticas de
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

saúde pública1.
A desigualdade de condições ficou expressa também na vida das classes mais
abastadas que tinham acesso aos benefícios dos produtos que a economia mun-
dial permitia. A elite londrina, por exemplo, consumia produtos de luxo vindos
das mais diversas partes e, também, aqueles que eram produzidos na indústria
do seu país. As classes populares, em sua grande maioria formada de operários,
não tinham acesso a estes bens.
Outros problemas também surgiram com a formação dos núcleos urbanos
industriais, com a concentração populacional. O alcoolismo, crescimento dos
homicídios, latrocínios e prostituição são alguns deles. Até mesmo os mani-
cômios começaram a se propagar como uma alternativa para o tratamento de
pessoas que demonstravam desequilíbrio de comportamento. O que não é difícil
de apresentar diante de uma condição de vida do operariado que trabalhava em
torno de 15 horas por dia, sem descanso. Até mesmo crianças de 10 anos eram
encontradas nas fábricas sujeitas a jornadas como os adultos.
A massa humana que veio do campo, onde trabalhava subordinada ao regime
feudal fundado na subsistência, agora se via em uma condição oposta. Inserida
em um regime frenético de trabalho em que nada lembrava as relações que

1 Limpeza pública, planejamento urbano, vacinação, enfim, toda a política de combate às doenças que
poderiam afetar a população passaram a serem práticas dos governos municipais. No Brasil, durante o II
Reinado (1840-1889) e a Primeira República (1889-1930) foram tomadas medidas para tentar reduzir os
casos de varíola no Rio de Janeiro, então capital do país. Uma das mais conhecidas foi a política de sanea-
mento de Oswaldo Cruz que ficou conhecida pelos seus desdobramentos, a “Revolta da Vacina” (1904).
Nela, a população urbana reagiu com revolta às medidas de vacinação. Uma guerra urbana marcada pela
ignorância da população em relação à vacinação, mas, também, uma ação agressiva do poder público in-
teressado em destruir cortiços para a construção de um espaço nobre para o mercado do Rio de Janeiro. A
especulação imobiliária será uma fonte de acumulação de riqueza com a crescente ocupação e valorização
dos espaços urbanos.

A Sociedade Urbana e a Crise de sua Origem


II

estabelecerá no mundo rural, o operariado viu desfazer os vínculos sociais que


foram a base de sua identificação. A economia capitalista fez emergir as rela-
ções centradas na racionalidade, na busca de orientar a convivência social pela
produtividade. A vida passou a valer na proporção em que gerava a riqueza e
na lógica de mercado.
Dentro desta lógica, a do mercado de trabalho, a quantidade de seres humanos
disponíveis para trabalharem nas fábricas apresentava uma qualificação básica.
A empresa capitalista estava ainda dando os seus primeiros passos, nos Séculos
XVIII e XIX, longe de uma complexa rede de produção com setores específicos

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
em um alto grau de qualificação como temos hoje. A sobrevivência passa a cus-
tar a sujeição a uma condição desumana de trabalho.
As condições de trabalho da classe operária durante a Revolução Industrial
e sua propagação pela Europa foi tema de análise de Eric Hobsbawm em sua
obra a “Era das Revoluções”. O historiador inglês estabelece uma relação direta
entre a quantidade de mão de obra ofertada para a produção, o nível de qualifi-
cação e as condições de trabalho:
Conseguir um número suficiente de trabalhadores era uma coisa; outra
coisa era conseguir um número suficiente de trabalhadores com as ne-
cessárias qualificações e habilidades. A experiência do século XX tem
demonstrado que este problema é tão crucial e mais difícil de resolver
do que o outro. Em primeiro lugar, todo operário tinha que aprender
a trabalhar de uma maneira adequada à indústria, ou seja, num ritmo
regular de trabalho diário ininterrupto, o que é inteiramente diferen-
te dos altos e baixos provocados pelas diferentes estações no trabalho
agrícola ou da intermitência autocontrolada do artesão independente.
A mão-de-obra tinha que aprender a responder aos incentivos monetá-
rios. Os empregadores britânicos daquela época, como os sul-africanos
de hoje em dia, constantemente reclamavam da “preguiça” do operário
ou de sua tendência para trabalhar até que tivesse ganhado um salário
tradicional de subsistência semanal, e então parar. A resposta foi encon-
trada numa draconiana disciplina da mão-de-obra (multas, um código
de “senhor e escravo” que mobilizava as leis em favor do empregador
etc.), mas acima de tudo, na prática, sempre que possível, de se pagar tão
pouco ao operário que ele tivesse que trabalhar incansavelmente duran-
te toda a semana para obter uma renda mínima [...]. Nas fábricas onde
a disciplina do operário era mais urgente, descobriu-se que era mais
conveniente empregar as dóceis (e mais baratas) mulheres e crianças:
de todos os trabalhadores nos engenhos de algodão ingleses em 1834-

AS NOVAS SOCIEDADES E SEUS DILEMAS


52 - 53

47, cerca de um quarto eram homens adultos, mais da metade eram


mulheres e meninas, e o restante de rapazes abaixo dos 18 anos. Outra
maneira comum de assegurar a disciplina da mão-de-obra, que refletia
o processo fragmentário e em pequena escala da industrialização nesta
fase inicial, era o subcontrato ou a prática de fazer dos trabalhadores
qualificados os verdadeiros empregadores de auxiliares sem experiência
(HOBSBAWM, 1982, pp. 66-67).

Em certa maneira, até nossos dias, a qualificação de mão de obra é um elemento


determinante para a forma como se estabelece a relação de trabalho e sua remu-
neração. Como Hobsbawm aponta, nos primeiros momentos da Revolução
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Industrial esta condição já se apresentava. Ela se agravou com a massa de pes-


soas que estão disponíveis para serem utilizadas pela produção capitalista, mas
o grau de qualificação se ampliou e aprofundou fazendo com que a maioria dos
seres humanos disponíveis hoje para o trabalho não fossem utilizados.
Nos primeiros tempos da Revolução Industrial, os trabalhadores eram recém-
chegados da zona rural, tinham uma padronização de qualificação, mas eram
utilizados em funções que exigiam um grau baixo de especialidade. As operações
de trabalho poderiam ser ensinadas sem dificuldade pelos empregadores par-
tindo de capacidades que os trabalhadores já tinham adquirido em sua vida rural.
Como afirma Hobsbawm, os menos qualificados eram, muitas vezes, entregue
ao comando de um trabalhador mais qualificado por meio de uma terceiriza-
ção das relações de produção2.
As relações de trabalho são marcadas pela violência sem nenhuma garantia.
Não há, nos primeiros tempos da indústria, legislação favorável aos operários.
A violência das relações no ambiente industrial se estende pela vida urbana e se
expressa no cotidiano das cidades europeias durante o nascimento da indústria.
Uma violência que terá formas distintas de ser compreendida e reagida.
Para o poder público, buscando atender ao interesse da empresa nascente,
será fundamental estabelecer mecanismos de controle social para garantir a

2 Hoje temos muitas empresas que optam por terceirizar a produção. Esta forma de organização se dá na
grande indústria capitalista, na maioria das vezes. Uma forma de baratear o custo de produção não tendo
que arcar com a arregimentação de trabalhadores de baixo grau de qualificação. Também as tensões das
relações de trabalho com este perfil de operário pode ser desgastante para a grande empresa. Por isso, boa
parte da produção de componentes primários para a produção, ou mesmo, a base material da produção
em larga escala fica por conta da empresa terceirizada. Se observarmos empresas com Apple ou Nike, gi-
gantes dos setores de informática e artigos esportivos respectivamente, elas já tem esta forma de produção
com um grau de sofisticação elevado em sua rede de produção mundial.

A Sociedade Urbana e a Crise de sua Origem


II

ordem nos espaços urbanos. Policiamento ostensivo nas ruas, instituições para
o aprisionamento e tratamento daqueles que não se adaptavam à vida urbana.
As escolas voltadas às classes populares e mantidas pelo poder público teriam
esta característica, retirar os ociosos do mundo urbano e preparar os cidadãos
para o trabalho. A educação, que sempre existiu como forma de organização da
vida social e preparação das futuras gerações para a necessidade coletiva, agora
deveria exercer esta função visando o mundo da empresa capitalista que se gene-
ralizava. Entre os movimentos operários que surgiram na Europa, alfabetizar os
filhos era uma garantia de não reproduzir a relação que os pais estavam sujei-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
tos para os filhos.
Outra forma em que se procurou enfrentar a violência que o mundo urbano
apresentava foi a da classe operária. Ela se organizou em associações e sindica-
tos. Enfrentou o ambiente de trabalho imposto pelas empresas e os empresários
capitalistas e se deu início aos confrontos em forma de “quebra de máquinas” e
paralisação de trabalhadores. As greves ocasionadas pela luta por melhores con-
dições de trabalho, como o Movimento Cartista3 na Inglaterra do século XIX.
Os problemas sociais urbanos chegaram a um determinado grau que até
mesmo as forças sociais e políticas opostas de trabalhadores e patrões passa-
ram a ter uma luta contra problemas comuns e se associar em campanhas para
romper comportamentos que se mostravam nocivas à sociedade. Um destes “ini-
migos comuns” foi o consumo de bebidas alcoólicas. Como afirma Hobsbawm:
Por outro lado, havia muito mais pobres que, diante da catástrofe social
que não conseguiam compreender, empobrecidos, explorados, jogados
em cortiços onde se misturavam o frio e a imundice, ou nos extensos
complexos de aldeias industriais de pequena escola, mergulhavam em
total desmoralização. Destituídos das tradicionais instituições e pa-
drões de comportamento, como poderiam muitos deles deixar de cair
no abismo dos recursos de sobrevivência, em que as famílias penhora-
vam a cada semana seus cobertores até o dia do pagamento, e em que
o álcool era “a maneira mais rápida para se sair de Manchester” (ou
de Lille ou de Borinage). O alcoolismo em massa, companheiro quase
invariável de uma industrialização e de uma urbanização brusca e in-
controláveis, disseminou “uma peste de embriaguez” em toda a Europa.
3 O Cartismo vem do documento produzido pelo movimento de associações e sindicatos de trabalhadores
ingleses, denominado “Carta do Povo”. Surgido em meados do século XIX, o movimento organizou
uma pauta de reivindicações que foram apresentadas ao governo britânico. Entre as reivindicações dos
trabalhadores estava a participação política dos operários no parlamento, eleições, voto secreto, igualdade
entre eleitores e o sufrágio eleitoral masculino.

AS NOVAS SOCIEDADES E SEUS DILEMAS


54 - 55

Talvez os inúmeros contemporâneos que deploravam o crescimento da


embriaguez, como da prostituição e de outras formas de promiscuidade
sexual, estivessem exagerando. Contudo, repentina aparição, até 1840,
de sistemáticas campanhas de agitação em prol da moderação, entre as
classes médias e trabalhadoras, na Inglaterra, Irlanda e Alemanha, mos-
tra que a preocupação com a desmoralização não era nem acadêmica
nem tampouco limitada a uma única classe. Seu sucesso imediato teve
pouca duração, mas durante o restante do século a hostilidade à em-
briaguez permaneceu como algo que tanto patrões quanto movimentos
trabalhistas tinham em comum (HOBSBAWM, 1982, pp.223-224).

Podemos considerar, então, que diante deste ambiente que trazia condições de
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

degradação para parte considerável dos trabalhadores e que, muitas destas con-
dições também ameaçavam a classe média e o patronato, a ação pública deveria
ser ao mesmo tempo em que pontual estar dentro de uma política geral de gover-
nabilidade da vida social urbana. O que queremos dizer com isto? Era preciso
uma ação dos governos municipais das cidades industrializadas. Eles necessi-
tavam ter a capacidade de colocar, diante dos conflitos que se intensificam e de
práticas que denegriam as forças sociais, mecanismos eficientes de ação.
Se a necessidade de racionalizar a vida social era uma emergência para o
poder público, ela estaria na pauta de discussão do mundo científico. As cor-
rentes de pensadores que se debruçaram sobre os problemas da vida urbana e
das condições humanas na sociedade industrial são sensíveis a partir do século
XVIII. Contudo, foi no século seguinte que esta preocupação se intensificou.
Das correntes liberais ao socialismo, as teses políticas emergiram a procura
de dar resposta ao contexto tenso que o mundo industrial urbano apresentava. Os
valores que orientavam o homem europeu tinha se alterado e seria um modelo
para as demais formas de compreensão que surgiram em diversas partes do
mundo. Se o movimento liberal e socialista surgiu na Europa, sua propagação
pela América, Ásia e África foi corrente. A influência da intelectualidade euro-
peia se demonstrou com o surgimento dos Estados nacionais em áreas antes
colonizadas pelos europeus.
Paralelo a estas correntes, e muitas vezes sendo um contraponto a elas, os
movimentos herdados das correntes naturais também emergiram. É o caso do
positivismo inaugurado por Comte na França. As teses do pensador francês
viriam a inspirar aqueles que consideravam que a análise da vida social deveria

A Sociedade Urbana e a Crise de sua Origem


II

estar fundada nos mesmos critérios dos fenômenos biológicos.


Os pensadores que denominamos clássicos das ciências sociais irão produ-
zir suas teses neste ambiente de confronto direto entre a massa de trabalhadores,
as empresas e os empresários capitalistas e o poder público. Os problemas emer-
gentes da vida urbana alimentaram as análises de pensadores como Durkheim,
Marx e Weber. Eles darão as diretrizes para a compreensão da vida social e os
meios para a organização das instituições e seu papel na construção da ordem
coletiva. O que podemos destacar, a princípio, e que será amplamente discutido
na próxima unidade, é a importância do trabalho como condição para a orien-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
tação do homem em sociedade.
Tanto para Marx como para Durkheim, por exemplo, a análise da vida social
e a forma de compreender sua dinâmica e superação da crise estão nas relações
de produção e trabalho. O que de certa forma desapareceu da análise de mui-
tos pensadores da atualidade. Um engano que não podemos aceitar. O trabalho
como principal fator de organização da vida social ainda existe e é necessário o
seu entendimento. É por isso que iniciamos esta unidade dando relativa impor-
tância à compreensão da vida econômica da sociedade ocidental, a forma como
ela se organizou ao longo da sua trajetória de conquista planetária por meio de
uma divisão internacional do trabalho.

A Internacionalização da Produção e do
Trabalho

Quando falamos de divisão internacional do trabalho, estamos falando da vida


social fundada na economia capitalista que passa a determinar as condições
humanas em diversas partes do mundo. A racionalidade da produção e sua inte-
gração com o mercado internacional se intensificam, exigindo cada vez mais a
organização da produção regional voltada aos interesses da economia mundial.
Em diversos momentos a organização internacional da produção e do mer-
cado sofreu alterações significativas. Partido de uma relação mercantil em sua

AS NOVAS SOCIEDADES E SEUS DILEMAS


56 - 57

origem para uma produção mundial integrada e de larga escala. Se no passado,


há cerca de 500 anos, as práticas mercantis eram determinantes para o sucesso
da empresa capitalista, a partir do século XVIII o fator determinante será a pro-
dução. Esta produção centrada na Europa e nos Estados Unidos até o século XX,
onde se concentrava o controle sobre a produção tendo dentro dos territórios
das chamadas nações desenvolvidas.
A ruptura do modelo industrial centrado nas nações desenvolvidas veio após
duas guerras mundiais na primeira metade do século XX. Conflitos que foram
o resultado de uma rivalidade entre as grandes potências econômicas, as quais
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

se comprimiram em uma disputa por um mercado fundamental para a sobrevi-


vência das empresas intercontinentais que se desenvolveram ao longo do século
XIX, mas que já demonstrava esgotamento por falta de espaço para se expandir.
Continentes como o africano e americano, eram mapeados por um jogo diplo-
mático tenso. Em muitos cantos do planeta as guerras que se desenrolaram já
mostravam as exigências de uma economia que influenciava as mais diferentes
formas de organização social, econômica e política nas diversas regiões do mundo.
Guerras como as do Ópio4 que envolveu a China e Inglaterra acabaram por
alterar a vida econômica e social do país asiático. Nela, o imperialismo inglês
saiu vitorioso e garantiu a ocupação de um território rico em produção agrícola,
um imenso mercado de consumo e produtor de uma diversidade de gêneros que
poderiam ser vendidos no mercado mundial. Os chineses saíram de uma condi-
ção de autonomia que preservava sua cultura original para uma total dependência
da economia internacional na condição de um protetorado submisso ao impe-
rialismo britânico.
A imposição dos impérios europeus, norte-americano e japonês se fez sen-
tir em diversas partes do mundo. Os Estados Unidos, por exemplo, se lançou
em uma política de dominação territorial desde sua independência (1776) e ao
longo do século XIX garantiu a anexação de um território nacional que ia do
4 As Guerras do Ópio aconteceram em duas fases, a primeira entre 1839 a 1842, quando os portos chineses
foram abertos aos interesses comerciais ingleses. O principal porto, Hong Kong foi anexado pela Ingla-
terra (1842) e ficou sob sua tutela por 150 anos, como determinou o Tratado de Nanquim. No segundo
conflito, marcado pela reação dos chineses a derrota na primeira guerra, a submissão se consolidou e
se ampliou, com a presença de outras nações europeias submetendo a China. O fator que determinou a
guerra e deu o nome a ela, o ópio, era contrabandeado por comerciantes ingleses e tinha nos chineses o
principal consumidor. A dependência da droga, derivada da papoula, era combatida pelo governo chinês
por denegrir a população e demonstrar comportamentos de desordem no país. Quando a comercialização
foi proibida e o ópio colocado na ilegalidade, a Inglaterra reagiu e invadiu a China.

A Internacionalização da Produção e do Trabalho


II

Atlântico ao Pacífico. Posteriormente, ampliou sua influência sobre a América


Central e as Ilhas do Caribe. O império norte-americano promoveu a indepen-
dência de Porto Rico, Guatemala, República Dominicana, Cuba e Panamá. Neste
último, além da independência, os norte-americanos retomaram a construção do
canal que liga o Atlântico ao Pacífico e que tinha sido iniciado pelos franceses.
Tecnologia e implantação de empresas de exploração transnacionais se esta-
belecem em empreendimentos que geraram viabilidade econômica a regiões
distantes de diversos continentes. A busca de matéria-prima para a indústria
se expandiu aceleradamente nos continentes distantes das áreas industriais. No

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Brasil há o exemplo das estradas de ferro instaladas ao longo do século XIX e pri-
meiras décadas do século XX. Alguns destes projetos ferroviários expressaram
a violência no confronto de interesses entre as populações nativas, o ambiente
inóspito e as empresas transnacionais.
A borracha na Amazônia foi um empreendimento que se valorizou e intensifi-
cou com o interesse das empresas industriais sediadas na Europa e, principalmente,
nos Estados Unidos. Os norte-americanos, na figura de Henry Ford, se aventu-
raram em um projeto de produção do látex para a produção de pneumáticos.
Uma empresa que exigiu ferrovias, hidrovias e unidades de tratamento da bor-
racha em plena floresta tropical5.
A empresa Brazil Railway Company, fundada em solo brasileiro em 1904,
foi a maior empresa ferroviária do país no início do século passado. Ela chegou
a controlar 47% das linhas férreas instaladas no país e ter parte considerável
do controle de produtos vitais da economia integrados ao mercado internacio-
nal como o Café e Algodão. Também foi ela que se aventurou na construção da
Ferrovia Madeira-Momoré no interior da floresta amazônica. O interesse era a
extração e comercialização da borracha. A construção deste trecho foi marcada

5 O que se convencionou chamar de Fordilândia e Belterra foram núcleos criados para abrigar empresas de
tratamento de látex para a produção de pneumáticos. A necessidade desta produção, para o fundador da
Ford, era o sucesso de seu invento automotivo, o veículo Ford T, um carro que bateu o recorde de venda
na história automobilística, só perdendo mais tarde este título para o fusca. A produção de automóveis
exigia uma quantidade significativa de peças de borracha, incluindo os pneus. Na época, a matéria-prima
era vegetal, vinda dos seringais. A maior produção era inglesa, na Ásia, e a busca de alternativa para fugir
do monopólio britânico sobre o produto fez com que Henry Ford se enfiasse na aventura mais desastrosa
da sua empresa, funda núcleos de produção de látex no Pará, as margens do Rio Tapajós. As unidades
foram instaladas e marcadas por fracassos. Desde o gerenciamento dos investimentos, problemas com a
plantação de seringueiras e revolta dos trabalhadores por causa do ritmo de trabalho estabelecido pela
empresa norte-americana. Uma das revoltas, por sinal a mais violenta, se deu pela alimentação oferecida
pela Ford, espinafre. Os caboclos contratados pela empresa queriam peixe e farofa.

AS NOVAS SOCIEDADES E SEUS DILEMAS


58 - 59

por violência entre os administradores da companhia norte-americana e os


trabalhadores imigrantes e nacionais utilizados como mão de obra. Fora esta
dificuldade, o ambiente na floresta se mostrou difícil. Uma epidemia de febre
amarela acabou atingindo os trabalhadores. Quando a ferrovia ficou pronta, não
era mais viável economicamente. Hoje ela se encontra abandonada.
Estes empreendimentos são apenas uma pequena demonstração do que foi a
necessidade de integração que o capital viveu ao longo de sua história e a expan-
são que promoveu alterando decisivamente a vida de inúmeras sociedades. Estas
alterações se demonstraram irreversíveis e passariam a necessitar uma política
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adequada por parte do poder público seja ele qual fosse e onde estivesse.
Estas disputas por áreas de exploração sejam como colônias, protetorados ou
influência, dividiram as potências industriais e acirrou uma rivalidade entre elas,
como já citamos antes. Desta rivalidade as guerras mundiais foram o resultado.
Uma polarização iniciada pela Inglaterra e Alemanha levou ao conflito mundial
que se desenrolou principalmente na Europa. Guerras modernas, marcada pela
destruição de cidades, pelo número significativo de civis mortos6.
Com final das guerras, a Europa, que até então era o centro econômico do
mundo, viu sua supremacia ser deslocada para os Estados Unidos. A Bolsa de
Valores de Nova York passou a concentrar a maior parte dos investimentos mun-
diais e das empresas capitalistas. O mercado de ações investiu em um ambiente
seguro para fugir da instabilidade provocada pela guerra. Junto com a trans-
ferência de capital, também se transferiram para a América o capital humano.
Empresários, cientistas, técnicos, artistas e intelectuais se retiraram de uma
Europa insegura e sem condições de crescimento de empreendimentos para uma
América do Norte promissora.
A diplomacia norte-americana durante o conflito foi fundamental para o
sucesso de sua economia. No início das duas guerras os Estados Unidos se man-
teve neutro e procurou não se envolver diretamente. Forneceu mantimentos e
equipamentos para a Inglaterra e seus aliados. Quando a guerra se encontrava
6 Na Primeira Guerra Mundial (1914-1918) o número de mortos chegou a 19 milhões de pessoas. O
desenvolvimento dos armamentos bélicos foram um dos fatores para o número de vítimas feitas pela
guerra. Mas, durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) o número de mortos se elevou em 60%, nela
40 milhões perderam a vida. O número também se elevou no segundo confronto mundial. Nessas guerras,
o mundo sentiu e ressentiu os resultados do confronto. A economia mundial se reorganizou sobre novos
moldes e demonstrou a capacidade de se refazer utilizando a cadeia mundial de produção aliada ao desen-
volvimento científico e tecnológico.

A Internacionalização da Produção e do Trabalho


II

com tendência a ameaçar os seus interesses, os norte-americanos decidiram pela


entrada ao lado dos aliados ingleses. A posição geográfica colaborou decisiva-
mente para o sucesso econômico e militar. Não sendo um campo de batalha, a
América do Norte se transformou em um refúgio para os que queriam escapar
dos combates, assim como, manteve os empreendimentos estruturais intactos.
Seria interessante lembrar que o sucesso norte-americano enquanto lide-
rança mundial se deu pelos resultados que as duas grandes guerras permitiram.
Um dos maiores aspectos deste sucesso está na produção científica e técnica
aliada ao desenvolvimento da economia. A aplicação de uma inteligência pro-

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dutiva que permitiu o crescimento acelerado da economia. Esta medida faz com
que se potencialize a utilização do dólar como moeda mundial,
o que se concretizou durante a Segunda Guerra
Mundial, o Tratado de Bretton Woolds7.

A Guerra Fria ©shutterstock

Outro aspecto que deve ser mencionado no mundo pós-guerra, foi a emergên-
cia da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), hoje a maior parte
deste território corresponde à Rússia. O regime socialista foi implantado no Leste
Europeu durante a Primeira Guerra Mundial como resultado do agravamento
da situação da Rússia, mergulhada em problemas econômicos e sociais, assim
como, desempenhando um papel secundário na corrida imperialista.
Diante de uma condição de exploração intensa dos trabalhadores agríco-
las, da revolta dos militares com a política do Império Russo com a guerra, e em
menor intensidade, a organização dos operários, o movimento social liderado
por Lênin e Trotsky foi bem-sucedido. O estado socialista se implantou em 1917
e passou a ser a primeira nação a ter uma revolução comunista bem-sucedida e
que se consolidava no comando do Estado.

7 Resultado da Conferência de Bretton Woolds que ocorreu nos Estados Unidos, ainda durante a Segunda
Guerra Mundial (1944), o encontro entre representantes de 44 nações estabeleceram regras monetárias e
financeiras para a reconstrução do capitalismo após a guerra. O sistema financeiro norte-americano teve
um papel central neste acordo e o dólar passou a ser a moeda internacional determinando o parâmetro
monetário para a recomposição dos investimentos mundiais. Também, nesta conferência, foram dadas as
bases para a criação do Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI).

AS NOVAS SOCIEDADES E SEUS DILEMAS


60 - 61

Na Primeira Guerra Mundial a liderança do estado soviético foi de Lênin,


mas na Segunda Guerra Mundial foi de Stalin. A Rússia passou a se chamar
União Soviética em 1919 e ampliou o socialismo para países vizinhos do Leste.
Mais tarde, a expansão do socialismo chegou às nações que foram libertadas da
Alemanha Nazista pelas tropas do “exército vermelho”. A economia planificada
e o sucesso militar na Segunda Guerra Mundial deram aos soviéticos a liderança
para polarizar as relações diplomáticas mundiais. Era o início da Guerra Fria.
Se o interesse em promover o capitalismo cresceu com a polarização ide-
ológica, cresceu também para os socialistas o desejo de expandir a revolução
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socialista. Desta forma, o mundo se transformaria em um grande tabuleiro de


xadrez, como dizia o ex-secretário norte-americano Henry Kissinger8. As duas
superpotências passaram a comandar o mundo e controlar sua diplomacia por
meio de um jogo de alianças e forças bélicas com bases em armamentos nucle-
ares de alta destruição.
A polarização ideológica marcou a produção cultural, científica e intelectual.
Filmes traduziam o contexto das duas propostas de sociedade. Heróis combatiam
o novo inimigo sobre diversas formas, seja nas tropas organizadas, na espionagem,
ou na ilusória luta nuclear que jamais se efetivou. Nas políticas governamentais,
dos dois lados, perseguir possibilidades de se desenvolver forças oposicionistas
foi uma prática constante. Nos Estados Unidos o período de “caça as bruxas” foi
uma demonstração da política anticomunista. Líderes políticos, intelectuais, artis-
tas e cientistas eram vigiados, interrogados, presos e executados. Foi o caso do
casal Rosemberg, cientistas executados nos Estados Unidos (1953) acusados de
terem colaborado com a União Soviética na produção de armamentos atômicos
fornecendo informações da produção norte-americana. O que mais tarde (2001
e 2005) se comprovou ser mentira. Por mais que envolvidos em espionagem, o
casal não contribuiu em nada para a transferência de informações que levas-
sem a produção do armamento atômico pela União Soviética. Sua condenação
8 Kissinger foi secretário de estado norte-americano na década de 1970, período áureo da Guerra Fria,
quando as forças diplomáticas e militares soviéticas e norte-americanas tinham bases em diversos lugares
do mundo. Além de uma pressão militar, as duas potências tinham sua rede de colaboração econômica e
ideológica. Em qualquer parte do mundo se fez sentir esta polarização. As questões sociais tinham sempre
uma perspectiva de confronto entre o projeto liberal capitalista de sociedade e o socialista. Por isso, o
ex-secretário considerava que o mundo tinha se transformado em um imenso tabuleiro de xadrez onde as
nações eram peças de um jogo entre os Estados Unidos e a União Soviética. Contudo, as duas superpotên-
cias jamais deixariam que se chegasse ao lance final, o xeque-mate. O preço seria a destruição do mundo
pelas armas nucleares.

A Internacionalização da Produção e do Trabalho


II

à morte é hoje aceita pelo governo norte-americano como um erro. Muitos des-
tes foram tomados durante o Macarthismo9 que entre as décadas de 1950 e 1960
inspirou uma política de perseguição aos comunistas.
Os estados nacionais passaram a ter um papel determinante no contexto
destas políticas influenciadas pela Guerra Fria. Tanto nas diretrizes econômicas
como nas políticas nacionais, havia a necessidade do controle, da interferência
pública para garantir a organização e o controle dos movimentos sociais. A cen-
sura, as políticas sociais intensas de interferência dos serviços públicos na vida
social, o poder dos meios de comunicação, foram características do mundo da

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Guerra Fria.
Um dos grandes avanços da comunicação que influenciou a vida de milhões
de pessoas no mundo foi o advento da televisão como meio de comunicação de
massa. Principalmente com as transmissões via satélite que permitiram uma inte-
gração maior das diversas regiões do mundo, mas filtradas pela força de empresa
televisiva. A imagem passou a falar mais que as palavras. O mundo iniciou sua
jornada na intimidade dos domicílios. Até hoje a televisão é considerada uma
ameaça aos interesses de homens públicos e de governos. O controle atual da
China e de países com ditaduras que se dizem socialistas, como Cuba, sobre os
meios de comunicação é intenso.
O período de polarização ideológica entre o Bloco Capitalista e Socialista
também foi marcado pelas economias planificadas e pelas políticas de cresci-
mento com o estabelecimento de metas. Seja para se alcançar uma recuperação da
economia ou para desenvolver o país. A reconstrução das nações desenvolvidas
mediante medidas econômicas estabelecidas pelo Estado serviu de inspiração para
os demais países do denominado “Terceiro Mundo”10. Carregados de problemas
9 A política macarthista está relacionada a Joseph McCarthy, senador norte-americano que estabeleceu a
política de combate ao comunismo por meio da perseguição de líderes políticos, intelectuais, artistas e
atores, ou seja, toda e qualquer personagem que se associasse ao comunismo. Era preciso destruir a infil-
tração do socialismo dentro da sociedade norte-americana. Outras nações, sob a influência norte-amer-
icana adotaram políticas parecidas. O Brasil, como veremos na unidade IV, também adotou esta política
que durou por décadas.
10 O que se convencionou chamar de “Terceiro Mundo” eram os países periféricos da economia mundial.
Aqueles que recebiam os efeitos de decisões dos centros econômicos desenvolvidos e sedes das grandes
empresas que tinham seus braços por todo o mundo. Os países pobres estavam marcados por uma
desigualdade endêmica herdada ou de suas origens coloniais ou de uma estrutura econômica perniciosa
mantida por grupos econômicos privilegiados que se aliaram a economia mundial. O Brasil fez parte das
nações do Terceiro Mundo. O empobrecimento do país ao longo de sua história contracenou com áreas
ricas que se estabeleceram integradas a economia mundial. Foi nesta desigualdade que o país viveu e
ainda vive que se denominava de Belíndia a realidade social e econômica brasileira. Algumas regiões com
a carga de impostos e a riqueza dos países europeus (Bélgica) e a pobreza semelhante a da Índia. O termo

AS NOVAS SOCIEDADES E SEUS DILEMAS


62 - 63

originados com as suas heranças coloniais ou com a formação de uma economia


fundada na exploração intensa de uma massa de trabalhadores em condição de
miséria, estes países serviram de peças no xadrez retratado por Kissinger.
Em muitos destes países pobres se desenvolveu uma economia contraditó-
ria, uma sociedade de riqueza e pobreza, um mundo de extremos. Em nações
onde o Estado desempenhou o papel de agente de desenvolvimento da infraes-
trutura de produção, organizando uma rede de transporte, energia e escoamento,
as empresas multinacionais se instalaram. Essas empresas típicas da economia
pós-guerra, a partir de 1945, foram denominadas de multinacionais.
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Essas empresas deslocaram parques industriais para nações do Terceiro


Mundo, que estavam na periferia do capitalismo. Países que antes eram apenas
consumidores de produtos industriais passaram a ter a presença de empresas
multinacionais. Essas empresas alteraram a organização econômica local e deram
um novo perfil as bases de sustentação das nações onde se instalaram. Algumas
dessas nações saíram da condição de consumidores de produtos industrializa-
dos e fornecedores de matéria-prima para a economia mista. Se considerarmos
o Brasil neste contexto, o da Guerra Fria, nós percebemos que foi a fase de maior
desenvolvimento do parque industrial brasileiro. Também foi a fase de maior
investimento do Estado na infraestrutura do país e na política de abertura da
economia nacional para a presença do capital multinacional11. As grandes cida-
des brasileiras cresceram neste contexto e passaram a vivenciar problemas que
a Europa já tinha vivenciado e outros novos que são típicos das economias que
tiveram a história de dependência que sempre tiveram. As cidades dos países
que vivenciaram esta industrialização, em sua maioria, foram a expressão des-
tes problemas.
Muitas destas cidades cresceram desordenadas e vivenciaram a falta de
infraestrutura. Contudo, elas contracenaram com um ambiente de progresso
foi do economista Edmar Bacha, em sua obra de ficção “O Rei da Belíndia”. Uma narrativa crítica sobre as
condições do Brasil na década de 1970.
11 No Brasil os anos de 1930 a 1985 foram marcados por uma política de intervenção do estado na econo-
mia e de crescimento sem igual do parque industrial brasileiro. Este crescimento só foi possível com uma
intervenção intensa do poder público na economia privada. Construção de usinas hidrelétricas, ferrovias,
portos, rodovias, siderúrgicas foram fundamentais para o desenvolvimento industrial. Esta política
conhecida como desenvolvimentista também foi chamada, durante o período da Ditadura Militar (1964
a 1985) de “milagre econômico”. Com a decadência desta política econômica de forte presença do Estado
se iniciou no Brasil o processo de privatização parcial da economia estrutural. Empresas estatais foram
vendidas a iniciativa privada e contribuíram para a retomada do crescimento sob novos moldes.

A Internacionalização da Produção e do Trabalho


II

e benefícios econômicos que atingiram poucos em uma sociedade de muitos.


O crescimento rápido fez mudar a paisagem urbana com a instalação de lojas
sofisticadas, fábricas, um número crescente de automóveis nas ruas e um hori-
zonte repleto de edifícios modernos, mas que, ao mesmo tempo, eram rodeados
de favelas, cortiços, bairros pobres com seus problemas de falta de saneamento
básico, energia, transporte, educação e saúde pública. Era a nova economia mun-
dial que se desenhava com seus efeitos.

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O fim da Guerra Fria – a perda ideológica – e o nascimento
da sociedade de consumo

As mudanças continuaram acontecendo na economia mundial mesmo depois


da Guerra Fria. O fim da União Soviética foi o marco de encerramento de mais
de quarenta anos de tensão entre as duas superpotências. Vários tratados colo-
caram fim a corrida armamentista entre norte-americanos e soviéticos, o perigo
de uma guerra nuclear entre as duas nações se encerrou. Contudo, países peri-
féricos e com governos radicais espalhados por todo o mundo buscam seus
armamentos nucleares, alguns até os tem como é o caso de Índia e Paquistão,
ou o perigoso caso de radicalismo diplomático da Coreia do Norte. Os impas-
ses com o programa nuclear iraniano representa também esta pulverização do
domínio da energia nuclear e das armas atômicas.
O desmonte do Bloco Socialista foi gradativo, mas podem ser resumidos na
ineficiência do regime de bases materialistas, fundado nas teses de Marx reinter-
pretada por uma série de teóricos, alguns ditadores, que tentaram dar justificativa
a práticas autoritárias em nome do socialismo. O discurso de defesa do proletá-
rio serviu para abonar ditadores e suas pretensões autoritárias de poder. Tanto
em Cuba, cada vez mais decadente economicamente, e na China, desenvolvida
e capitalista, o socialismo existe apenas na retórica e não na prática social, onde
ele já se mostrou ineficiente e incapaz de responder às necessidades humanas.
A decadência soviética deveria ser entendida mais pela mercadoria, pelos
produtos que penetraram na vida social e menos pela falência da ideologia de
forma consciente. A grande maioria da população que viveu sobre os regimes

AS NOVAS SOCIEDADES E SEUS DILEMAS


64 - 65

socialistas desejavam o consumo do mundo capitalista, e nada mais. Talvez por


isso a China tenha descolado as regras da revolução operária e camponesa das
práticas econômicas na atualidade. Por isso, os chineses conseguem manter a
cúpula do partido, uma casta de políticos beneficiados pelo controle do Estado,
e uma empresa capitalista de grande proporção, eficiente, e com um número
imenso de trabalhadores em condições de exploração extrema. A miséria foi
socializada e a riqueza restrita. Nas teses socialistas se desejava uma socializa-
ção das condições materiais e a China está alcançando este objetivo, só que na
relação inversa a proposta fundada por Karl Marx.
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A arma fundamental para a dissolvência da economia planificada e do con-


trole social nos países capitalistas foi, sem dúvida, o ambiente de integração
promovido pela circulação de produtos e pela mídia de massas. Os noticiários
geraram uma possibilidade de publicar em tempo real os acontecimentos que
atingiam a humanidade, onde quer que eles estejam, mas foram, também, acom-
panhados de uma campanha publicitária que se transformou em uma arma de
propagação de um modelo de vida, de sociedade e de interpretação da realidade
eficiente. O mundo refez a imagem que tinha do próprio mundo por meio de
uma “antena parabólica”.
Desta forma, as fronteiras se romperam, tanto na compreensão do Planeta
pela população mundial, como de considerar seus problemas e seus produtos.
As imagens vieram carregadas de conceitos sobre bens de consumo e suas sim-
bologias. As marcas mundiais foram estampadas na tela dos televisores, mas
também nos outdoors, nos jingles das rádios, nas páginas de revistas e jornais.
Mais que isso, a rede mundial de computadores abre um espaço imenso na influ-
ência dos conceitos e na propagação de valores. Contudo, permite integração,
comunicação e relação entre valores e comportamentos distantes fisicamente,
mas íntimos no mundo virtual.
Esta nova forma de ambiente, em que as empresas que produzem bens indus-
triais passaram a ter unidades produtivas em diversas partes do mundo deram
um passo a mais. Agora podem desmembrar as unidades produtivas em diver-
sas partes do processo de montagem. Elas podem adaptar a relação de produção
com as características regionais de interesse da empresa produtora, ou das con-
dições da população estabelecida em uma zona de interesse.

A Internacionalização da Produção e do Trabalho


II

Quem descreve esta condição é Octávio Ianni. O sociólogo brasileiro, autor


de “Era do Globalismo”, compreende a condição em que a economia mudou de
curso e abriu espaço para a cadeia mundial de produção:
De maneira lenta e imperceptível, ou de repente, desaparecem as fron-
teiras entre os três mundos, modificam-se os significados das nações de
países centrais e periféricos, do norte e sul, industrializados e agrários,
modernos e arcaicos, ocidentais e orientais. Literalmente, embaralha-se
o mapa do mundo, umas vezes parecendo reestruturar-se sob o signo
do neoliberalismo, outras parecendo desfazer-se no caos, mas também
prenunciando outros horizontes. Tudo se move. A história entra em

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movimento, em escala monumental, pondo em causa cartográficas ge-
opolíticas, blocos e alianças, polarizações ideológicas e interpretações
científicas (IANNI, 1999, p. 10).

Ianni vai mais longe em sua análise e complementa a questão sobre as mudan-
ças no mundo após a Guerra Fria. O desaparecimento de fronteiras, das alianças
e da lógica:
As noções de colonialismo, imperialismo, dependência e interdepen-
dência, assim como as de projeto nacional e outras, envelhecem, mu-
dam de significado, exigem novas formulações. Na medida em que se
desfazem as hegemonias construídas durante a Guerra Fria, declinam
as superpotências mundiais, envelhecem ou apagam-se as alianças e
acomodações estratégicas e táticas sob as quais desenhava-se o mapa do
mundo até 1989, quando caiu o Muro de Berlim, o emblema do mundo
biporalizado (IANNI, 1999, p. 12).

Estas mudanças é a que estamos vivendo, esta nova relação com as fronteiras que
agora se desfaz da relação ideológica e passa a se estabelecer com novos valores.
Um destes é o de acesso aos bens materiais oferecidos no mercado mundial e
os produtos que marcam as novas identidades. O que antes era considerado um
símbolo de um determinado país, ou uma identidade de um determinado povo
agora está acessível nas prateleiras no mercado mundial.
A nova forma de organização das empresas, dos produtos e da rede de produ-
ção internacional irá nos dar uma ideia das condições em que os seres humanos
estão sujeitos na sociedade atual. A produção regional, por exemplo, que muitas
vezes parece manter características típicas do localismo, mas é um engano, ela
está cada vez mais determinada pela economia mundial e pela tecnologia con-
trolada por grandes corporações. O caso da agricultura é emblemático. Ainda

AS NOVAS SOCIEDADES E SEUS DILEMAS


66 - 67

existem os pequenos produtores, alguns até com seu trabalho familiar, mas
eles estão cada vez mais subordinados a uma cadeia produtiva mundial. Roger
Burbach e Patrícia Flynn nos dão uma ideia desta dependência:
A moderna invernada, por exemplo, nenhuma semelhança tem com
os pastos antigos. A produção já não depende da terra e da natureza.
Quando os bezerros são levados para a invernada, para serem engorda-
dos, jamais vêem pastos verdes. Milhares de cabeças de gado são amon-
toadas nuns poucos metros quadrados, onde são alimentadas nuns pou-
cos metros quadrados, onde são alimentadas com rações programadas
por computadores. Para estimular a engorda e eliminar doenças, doses
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maciças de antibióticos e hormônios artificiais são colocadas nas ra-


ções ou injetadas nos animais. Milhares de bois passam diariamente
por currais especiais que funcionam com a eficiência de uma linha de
montagem. A produção avícola é hoje ainda mais semelhante a uma
operação fabril... Algumas das grandes empresas de alimentos, como
Ralston Purina, a Cargill e a Allied Mills, são responsáveis por gigan-
tescas instalações aviárias que processam dezenas de milhares de gali-
nhas por dia. Como na organização fabril, as chaves desta produção são
a procriação especial, a alimentação intensiva enriquecida, os estímulos
químicos (hormônios) e o controle de doenças... O alimento passa na
frente das galinhas imóveis, numa correia transportadora, enquanto os
ovos e excrementos são removidos em outras correias. A iluminação
supera o ciclo diário natural e mantém as galinhas em postura constan-
te... Também os laticínios estão sob a influência da industrialização...
Até mesmo a biologia da vaca leiteira foi alterada. Procriação especial
combinada com fórmulas de rações – hoje entregues por computadores
em doses “personalizadas” aos estábulos – levaram ao aparecimento de
vacas que produzem mais de 75% de leite do que há trinta anos atrás
(BURBACH; FLINN, 1982, pp. 30 e 31).

Esta cadeia de produção é a que nos alimenta hoje. Mas na paisagem de países
agrícolas como o Brasil esta realidade é evidente. O desenvolvimento da enge-
nharia genética, a capacidade dos insumos em alterar o destino da produção que
deixa de depender exclusivamente de fatores climáticos. Tudo se altera em uma
cadeia de produção que abastece de alimentos uma proporção cada vez maior de
habitantes em todo o mundo. Na prateleira dos mercados as embalagens colo-
ridas, com personagens de desenho animado como “garotos-propaganda” não
denunciam o que é o produto e de onde ele vem. Compramos a aparência, mas
a essência que determina a existência dos alimentos é complexa e foge a nossa
compreensão. A forma de apresentação destes produtos com suas mensagens e

A Internacionalização da Produção e do Trabalho


II

ambientação podem se transformar em um problema para a sociedade atual. O


trabalho que gera nossa sobrevivência desaparece de sua relação com que o con-
some. Parece que as pilhas de alimentos agroindustriais brotam como plantas e
não como um resultado da cadeia complexa de produção.
Mesmo nas produções familiares, em que aparentemente se mantém as rela-
ções da empresa familiar agrícola ou as práticas de uma agricultura bucólica, a
rede de dependência mundial existe. Para isso, vale resgatar novamente Ianni:
É verdade que subsiste e desenvolve-se a pequena produção. O peque-
no proprietário sobrevive e até mesmo se afirma. Nos mais diversos

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países e continentes, assim como nas mais diferentes atividades agrí-
colas, são numerosos ou mesmo inúmeros os pequenos produtores.
Trabalham a terra com a família e em certos casos assalariando alguns
trabalhadores em épocas de preparo da terra, plantio ou colheita. São
pequenos produtores autônomos, situados em posição especial, em face
do assalariado agrícola permanente ou temporário, e em face do grande
empresário. A pequena produção continua a ser importante no conjun-
to da vida socioeconômica no mundo agrário.

Entretanto, essa pequena produção encontra-se em geral determinada


pelas exigências da grande produção. De modo direto ou indireto, pode
estar satelizada pela dinâmica da grande empresa. Em muitos casos, o
pequeno produtor produz matéria-prima para a grande empresa, fa-
zenda, plantation, fábrica, agroindústria. Pode inclusive estar obtendo
assistência técnica, créditos e preços mínimos garantidos pela grande
empresa. No mais diversos setores da produção agropecuária, esse é
o procedimento freqüente, constante e generalizado. Em muitos ca-
sos, “as empresas industriais não se querem dar ao trabalho da produ-
ção agrícola direta. O grande capital... acha mais vantajoso, no caso
de certas culturas, contratar fornecimentos com pequenos agricultores
do que investir diretamente na produção... Na verdade, a razão pela
qual o sistema de propriedade familiar pôde sobreviver por tanto tem-
po, enquanto o número de agricultores familiares individuais diminui
constantemente, foi a incapacidade da agricultura dar o salto para uma
produção totalmente industrial... (IANNI, 1999, pp. 39 e 40).

Da mesma forma que a produção industrial urbana a agricultura está integrada


à indústria planetária. A relação entre a produção regional e mundial se dá de
forma cada vez mais intensa, como afirma Ianni. Esta relação passa a ser determi-
nante de toda a vida social e estabelece uma nova ordem mundial. Uma relação
entre a vida de cada um e a ordem mundial econômica.

AS NOVAS SOCIEDADES E SEUS DILEMAS


68 - 69

Na vida urbana, a relação econômica com a cadeia mundial se expressa no


ambiente das grandes cidades e seus símbolos mundiais. Em todos os cantos que
se percorre das cidades de médio e grande porte estão os emblemas das marcas
e suas mensagens publicitárias. Estes emblemas, símbolos associam-se a valo-
res da vida cotidiana na proporção em que os bens mundiais se aproximam de
nós e, até mesmo, de nosso consumo. Vamos entender, na quarta unidade, que
o ambiente de um supermercado é uma demonstração efetiva da mundializa-
ção de nossas vidas em forma de produtos e mensagens.
Se levarmos esta lógica para os meios de comunicação ela fica mais evi-
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dente ainda. A transformação das mensagens publicitárias está ganhando uma


conotação de videoclipe intenso. A forma como são produzidas e as associa-
ções alucinam para um mundo estético, aparente, que fala mais que o conteúdo
real de seus elementos. Quando ligamos os aparelhos de televisão e a internet,
podemos encontrar elementos de identificação nos produtos que nos remon-
tam aos sonhos mais íntimos e à magia de se transformar associando-se ao um
bem de consumo.
A aquisição de um bem não é mais o atendimento de uma necessidade, é um
ganho da personalidade, uma vitória saboreada com emoções associadas à digni-
dade. Muitas delas difíceis de serem conseguidas na relação com outras pessoas,
mas nas relações com os objetos de consumo ela é possível. Ao comprar a roupa
de grife, ao adquirir o automóvel, o tablet, o calçado e o relógio, entre tantos
outros objetos que colecionamos ou cobiçamos no mercado, nossa personali-
dade ganha novos ingredientes, se dignifica, somo pessoas melhores pelas coisas
e não pela qualidade que diz respeito as nossas experiências e valores humanos.
Precisamos compreender que a dependência de uma rede mundial de pro-
dução de bens, ou seja, a “nova divisão internacional do trabalho” refez nossa
identificação com o mundo material e humano. As pessoas e, principalmente,
os produtos ganharam significados distintos a sua condição na vida do traba-
lho. O mundo que produz a existência de forma racional agora é compreendido
por elementos que deslocam a condição humana da produção e desumanizam
a existência dos seres humanos e humanizam os objetos.
Para compreendermos melhor o significado da desumanização das pessoas e
a humanização dos objetos é só compararmos o grau de satisfação que sentimos

A Internacionalização da Produção e do Trabalho


II

em relação às coisas (objetos) e as pessoas. Em qual delas se carrega o sentimento


de completude de valorização da existência se traduz de forma intensa. Vamos
concluir que a apresentação dos bens de consumo na vida social está ganhando
o lugar dos valores constituídos pelas relações humanas. O maior legado que as
novas gerações desejam de seus antecessores é a liberdade da aquisição e as con-
dições para isso. É a inclusão pelo consumo.
No passado, a identificação com a civilização ocidental se dava pelos valo-
res ideológicos que se propagou a partir da Europa, ou mesmo da construção
de um conceito de liberdade que necessitava de uma proposta de convivência

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
com os demais elementos da sociedade. Construímos, durante a Guerra Fria,
por exemplo, uma forte identificação com o Estado de Bem-Estar. Ele era o ele-
mento que integraria o indivíduo à coletividade mediante suas ações traduzidas
em políticas sociais e econômicas. A cidadania era a condição, fictícia ou não,
para o ingresso do homem na coletividade. Hoje, quem nos integra e o consumo,
o mercado, o pertencimento a um mundo de universalidade de símbolos terri-
torializados e desterritorializados.
Quando falamos de territorializar e desterritorializar por meio dos símbolos
e dos bens de consumo associados a eles, percebemos o quanto a identidade dos
produtos se flexiona ao prazer do mercado ou dos consumidores que se interessa
seduzir. Um aparelho da Apple é fruto de uma produção planetária que envolve
centros de inteligência e controle de produção e um parque industrial. Estes
elementos estão desmembrados. Enquanto o controle de produção, o desenvol-
vimento técnico está concentrado nos Estados Unidos, onde técnicos das mais
diversas nacionalidades geram a inteligência do produto, sua confecção (fábrica)
está na China, a Foxcom. As condições de produção dos produtos da Apple são
opostas a humanização do produto, à forma como ele é apresentado no mercado.
Ao comprar um celular, um tablet, um notebook, uma filmadora digital, um
televisor de plasma, sua apresentação para o consumo esconde a vida material
e humana que o produz. Da mesma forma, o produto, resultado de uma cadeia
complexa de produção, está livre de suas condições de origem para se apresen-
tar da forma que melhor lhe convier. A magia quase sempre é a porta de entrada
da necessidade do consumo em nossas vidas. Não é por acaso que a ciência e a
tecnologia ligada ao estudo do comportamento social e individual relacionadas

AS NOVAS SOCIEDADES E SEUS DILEMAS


70 - 71

ao mercado crescem absurdamente. A psicologia, a sociologia, a antropologia,


a economia, a administração, a arquitetura, a engenharia, o designer, o marke-
ting, a publicidade e os cursos ligados à tecnologia da informação são algumas
das áreas que tem parte de sua produção, se não sua própria existência, ligadas
às estratégias de consumo.
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A Educação e seus Dilemas na Trajetória


Ocidental

Seria impossível avaliar aqui toda a trajetória da educação no ocidente e o seu


papel social. Não é este o nosso interesse, visto que a discussão sobre estas ques-
tões não são o objetivo deste trabalho. O que desejamos é apenas indagar sobre
as mudanças que a educação institucional acabou sofrendo dentro de uma socie-
dade ocidental com significativas transformações nos últimos 30 anos.
Sempre vale lembrar que a educação reflete e interage com a vida social. Ela
não é um determinante absoluto, mas também não é passiva. Sofre, contudo, os
efeitos das relações sociais e tem tido dificuldade de intervir nesta tendência de
individualização dos interesses sociais e da influência da sociedade de consumo.
Não podemos esquecer que a vida em sala de aula é construída por seres
humanos que têm uma vida de relações dentro
do mundo integrado pela economia mun-
dial. Não é difícil perceber esta integração se
considerarmos a parafernália de objetos que
invadiram a sala de aula e expressam a idolatria
pelo consumo. A quantidade de materiais esco-
lares com seus coloridos contrasta, nas carteiras
dos alunos, com os equipamentos da tecnologia
“moderna” como os celulares, tablets e computa-
dores. Quando estes equipamentos não existem
há uma tendência em defendê-los dentro do ©shutterstock

A Educação e seus Dilemas na Trajetória Ocidental


II

ambiente escolar. Hoje, é retórica nas campanhas de política social a chamada


“inclusão digital”. “Quem não tiver ao menos um e-mail não existe”.
Mas a inclusão não se dá exclusivamente pelos produtos de informática. Ela
se dá de todas as formas possíveis de aquisição em que ter um determinado objeto
o inclui em círculo de pessoas, de relações inclusivas que determinam nosso dia
a dia. Ser um deles é ter o que eles têm, é frequentar os lugares que frequentam
e viver as idolatrias que professam.
Dentro da escola, o grande desafio é colocar a produção científica como um
instrumento de formação de um ser humano que não se deixe seduzir exclusi-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
vamente por este imediatismo do consumo. O entendimento da vida mediante
à ciência, o que é uma das ações fundamentais da escola, tem se perdido. Ela
está isolada da condição de instrumento de compreensão e crítica da vida social.
Mesmo quando se trata das ciências exatas ou naturais, o conhecimento cientí-
fico se empobrece e não consegue desvendar as condições de materialidade que
existe nos produtos disponíveis no mercado12. Não podemos empobrecer a ciên-
cia e lhe dar apenas um papel decorativo ou de ritual sem sentido na vida do ser
humano, esteja ele em qualquer nível da educação que estiver.
Temos que considerar que a ciência é o instrumento fundamental para a
compreensão e superação dos dilemas humanos. Foi por meio do conhecimento
científico que a sociedade ocidental se fez e conseguiu atingir o grau de comple-
xidade que se apresenta em nossos dias. Estamos propagando a ideia de que o
conhecimento chegou até nós por “magia”, que tudo do que usufruímos é uma
mera contribuição de “gênios” e não de uma possibilidade humana, a escola, a
academia, tem que ser um instrumento de luta contra estes conceitos. Cabe a
nós, educadores, ou os que têm lucidez, romper com esta superficialidade que
domina os discursos sobre a vida social.
Foi dentro da construção de uma economia racional, fundada no poder do
estado e nas práticas de desenvolvimento do conhecimento científico para atender
necessidades humanas que o conhecimento que temos sobre a nossa existência
12Tornou-se distante de professores, e por consequência, dos alunos a relação entre bens materiais e
as áreas de Química, Física e Biologia. A matemática e sua lógica para as condições de existência mal
povoam os exercícios com suas exemplificações desconexas. Na literatura desumanizamos os autores e
descontextualizamos sua obra. Pior, não conseguimos transportar a lógica do texto para a vida contem-
porânea. O passado morreu no passado e o sentido de estudá-lo, o presente, ficou ausente de qualquer
tipo de questionamento, dúvida, revisão e crítica. Esta crítica vale para o professor de história e para o de
geografia.

AS NOVAS SOCIEDADES E SEUS DILEMAS


72 - 73

se fez. Não podemos desprezar séculos de história que colocou a produção cien-
tífica no centro das necessidades humanas como o principal instrumento da
superação de nossas dificuldades e na condição vital para a superação de nos-
sas necessidades.
Avançar neste sentido requer um comprometimento do educador em se posi-
cionar diante do mundo, ter uma análise sobre as condições em que vivemos
e agir no sentido de crítica. Mesmo que seja em defesa, mas de forma racional
sobre as relações sociais, econômicas e materiais. Não é só o profissional formado
nas ciências humanas, ou socioeconômicas que deve ter este posicionamento.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Ele passa por todo e qualquer produtor do conhecimento, por qualquer indiví-
duo que tenha como profissão o uso da ciência. Indo mais longe, de qualquer ser
humano que necessite superar sua condição de homem em sociedade. A ciência é
uma necessidade de todos, não é por acaso que a educação deve estar próxima de
todas as pessoas e se tornou um instrumento fundamental da vida humana. Ela,
a ciência, está por todos os lados e nós temos que perceber e despertarmos isto.
Desta forma, encerramos esta unidade para, na sequência trabalharmos
com os autores clássicos. Em nossa próxima unidade você vai conhecer as prin-
cipais correntes do pensamento social, as principais bases metodológicas da
sociologia e antropologia. Vamos fazer uma reflexão sobre os autores conside-
rados clássicos e o quanto suas teses ainda são válidas para o entendimento do
homem contemporâneo.
Muitos consideram desnecessário retomar uma produção científica quase
toda produzida no século XIX. Há sempre o questionamento que estes conheci-
mentos estão superados e seu entendimento não terá validade para quem quer
compreender os dilemas da sociedade atual. Mas é um engano este tipo de posicio-
namento. Necessitamos compreender a tendência dos pensadores da atualidade,
o que iremos fazer na terceira unidade deste livro, mas ainda é nos pensadores
clássicos que os contemporâneos buscam a sustentação de suas teses, se não na
totalidade, nas bases principais de sua lógica.
Outro fator que nos fazem considerar importante o estudo dos “clássicos”
das ciências sociais é o preparo que nos dá para a leitura de outros teóricos da
atualidade. Uma formação fundada no trabalho dos primeiros grandes cientistas
sociais e suas análises de uma sociedade que continua baseada nos elementos da

A Educação e seus Dilemas na Trajetória Ocidental


II

economia de mercado, industrial e financeira. Mas com um crescimento com-


plexo das relações de produção e de divisão do trabalho social.
Na próxima unidade analisaremos o desenvolvimento das teses de Comte,
Durkheim, Marx e Max Weber. Faremos uma análise do contexto em que cada
um destes autores estava inserido, mas também a contemporaneidade de seus
temas e a eficiência de suas contribuições teóricas na atualidade. Tentaremos
entender os pontos principais da construção de suas teses e as utilizaremos para
a análise de temas ligados à atualidade.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Considerações Finais

Na sociedade atual há uma relação direta entre a cadeia de produção mundial


e a vida em sociedade. Esta relação tem sido aprimorada com a diversidade de
produtos de alta tecnologia que ganha espaço no cotidiano das grandes cidades.
Esta condição urbana abriga hoje a maioria da população mundial.
O efeito desta sociedade que comunga com produtos mundiais de con-
sumo foi o elemento principal trabalhado nesta unidade. Estamos idolatrando
símbolos mundiais que se “territorializam” e se “desterritorializam”. Esta cadeia
de produção mundial e sua complexidade não são facilmente percebidas pela
sociedade. Os produtos ganham vida e não se tem noção de como ele é produ-
zido. Por isso, os símbolos, as marcas dos produtos estão se transformando em
um produto à parte. Hoje, em grandes empresas, as marcas que ela gera têm um
valor significativo.
Empresas e produtos acabam por se transformar em referência para a loca-
lização de pessoas e seu posicionamento social. Em algumas cidades são as
empresas mundiais que anunciam sua imagem e dão referência para o posicio-
namento no mundo urbano. Da mesma forma que nas prateleiras dos mercados
as marcas mundiais identificam o posicionamento de artigos e algumas acabam
por virar sinônimo do produto.
Nesta unidade discutimos a perda de consciência do homem diante da

AS NOVAS SOCIEDADES E SEUS DILEMAS


74 - 75

produção mundial. O quanto a economia organizada em uma cadeia internacio-


nal interfere na compreensão dos fatores determinantes da vida em sociedade.
Neste contexto a mídia publicitária ganha um peso de referência na origem dos
produtos. Esta condição interfere diretamente na relação que estabelecemos em
sociedade.
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Considerações Finais
FÁBRICA DE SUICÍDIOS: CONTRATO DE TRABALHO DA FOXCONN TEM
ITENS POLÊMICOS E INACREDITÁVEIS
Em 2010, quatorze funcionários da fábrica da Foxconn cometeram suicídio. Para a Apple,
é um lugar bem agradável
 Na carta de admissão, felicitações “por fazer parte da família Foxconn”. Mas entre o ca-
beçalho e a assinatura do contrato exigida de cada operário chinês da gigante fábrica de
montagem de iPhones e iPads, entre outros aparelhos, há ainda itens (inacreditáveis) a
destacar, que não foram modificados desde 2010, quando ocorreram numerosos casos
de suicídio nas instalações da Foxconn.
O segundo item: “Se eu tiver maiores dificuldades ou frustrações, procurarei meus fami-
liares ou o diretor da empresa [...]”. E ainda: “Não farei mal nem a mim mesmo nem aos
outros; a fim de permitir que a empresa proteja a mim mesmo e aos demais, confirmo
que posso ser mandado ao hospital caso venha a ter problemas físicos ou mentais”.
No mesmo tom, no item 3, a Foxconn compromete os próprios funcionários a algo mais:
“Em caso de infortúnios não acidentais (entre os quais suicídio e ferimentos autoprovo-
cados etc.), confirmo que a empresa seguiu as leis e regulamentos e me comprometo a
não processá-la, a não fazer exigências excessivas e não empreender ações drásticas que
possam prejudicar a reputação da companhia ou causar problemas à operação cotidia-
na”. A carta integral pode ser encontrada no site Shangailist (<www. shanghailist.com>).
As condições de trabalho na Foxconn sempre geraram muita da polêmica. Em 2010, 14
funcionários se suicidaram. A empresa, dirigida pelo empresário Terry Gou, aumentou
os salários e até a Apple se pronunciou sobre os suicídios. “Estamos em contato direto
com os diretores da Foxconn e acreditamos que esta questão esteja sendo levada a sé-
rio”.
O próprio Steve Jobs, polêmico cofundador da Apple, afirmou, em julho de 2010: “Che-
gando lá você encontra uma fábrica, mas também restaurantes, cinemas, hospitais e
piscinas. Para uma fábrica, é até um lugar bem agradável”. A companhia, que emprega
cerca de 600 mil pessoas e tem sua sede em Taipei, Taiwan, instalou redes de proteção
ao redor de suas instalações, como divulgado pela BBC. Também se comprometeu a
rever as horas de trabalho, os salários e as horas extras dos funcionários. Compromissos
estes que, segundo a Sacom (Students and Scholars Against Corporate Misbehavior),
não foram cumpridos.
A Sacom – fundada em Hong Kong em 2005 – é uma organização sem fins lucrativos
formada por estudantes, que trata de melhorar as condições gerais de trabalho.
O relatório mais recente da Sacom descreve essa situação nos três campi (assim defi-
nidos) da Foxconn: Shenzhen, Chengdu e Chongquing, que prestam serviços para a
Apple, HP, Nokia, Dell e outras empresas.
76 - 77

Foram realizadas cerca de 120 entrevistas com os trabalhadores, jovens de 16 a 30 anos,


todos protegidos pelo anonimato. As conclusões do estudo “são baseadas nas entrevis-
tas com os operários e nas observações dos pesquisadores”. Os trabalhadores, segundo
a ONG, continuam sendo obrigados a fazer hora-extra; e continua sendo praticado um
estilo militar de gerenciamento, sobretudo com relação aos novos funcionários.
Assim como há um ano, os compromissos assumidos pela Foxconn (e pela Apple), relata
a Sacom, permanecem letra morta. Os salários continuam sendo calculados erronea-
mente, e as horas extras, não pagas.
No total, as horas de trabalho extracontrato chegam a 80, 100 por mês. Faltaria também
proteção aos trabalhadores, e não haveria informação suficiente sobre os agentes quí-
micos envolvidos no manuseio dos componentes eletrônicos.
O empresário da Foxconn, Terry Gou, 117º lugar na lista de pessoas mais influentes do
mundo, segundo os leitores da revista Time, está afastando as atenções da empresa para
longe das instalações chinesas.
O investimento inicial no Brasil seria de 12 bilhões de dólares. Ainda em 2010, a Foxconn
realocou algumas instalações da faixa produtiva no Sul da China para o interior do país,
onde os salários são mais baixos.
Tradução: Carolina de Assis
Texto publicado originalmente em Linkiesta
1. A produção mundial é apresentada pela nova divisão internacional do
trabalho. Ou seja, a produção dos bens mundiais dividiu a produção
por meio de uma rede complexa onde se separou os centros financei-
ros e técnicos das unidades industriais. Um exemplo são os produtos
da Apple. Desenvolvidos nos Estados Unidos e fabricados pela Fox-
com na China. Faça uma redação sobre como os produtos da Apple
são fabricados e como eles são apresentados para os consumidores.

2. Na economia mundial há uma relação entre a realidade local e a cadeia


de produção internacional. Se formos considerar a forma como as dife-
rentes partes do mundo se integram nesta economia, vamos perceber
que as condições de miséria e riqueza podem se apresentar no mesmo
lugar. Cidades de grande porte é a maior expressão de riqueza e misé-
ria lado a lado. Como isto se explica?
78 - 79

Material Complementar

MÉSZÁROS, István. Para além do Capital. Tradução de Paulo


César Castanheira e Sérgio Lessa. São Paulo: Tempo Editoral;
Campinas: Editora da Unicamp, 2002.

HOBSBAWM, Eric J. Era dos Extremos: o breve século XX


– 1914-1991. Tradução de Marcos Santarrita. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.

O problema do consumo atinge as crianças e cerca o ser humano desde cedo.


Vamos trabalhar este tema na quinta unidade, mas aqui podemos ter uma prévia
do que representa a formação do homem consumidor.
<http://www.youtube.com/watch?v=3RFoCo_eOA8>.

Neste caso um vídeo que apresenta a sociedade de consumo. Como se organiza o


capitalismo e a organização da produção mundial. Ajuda a gerar reflexão sobre o
conteúdo desta unidade e sobre a formação da vida econômica mundial.
<http://www.youtube.com/watch?v=u92bKO6SCA4>.

Material Complementar
Professor Me. Gilson Aguiar

III
UNIDADE
PENSADORES CLÁSSICOS I

Objetivos de Aprendizagem
■■ Reconhecer o contexto do nascimento da antropologia e da
sociologia como ciência.
■■ Dominar a formação das teses positivistas e suas críticas ao
liberalismo e socialismo.
■■ Estudar a formação do estruturalismo como método de análise social.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Nascimento da sociologia
■■ Positivismo com método
■■ Estruturalismo como uma herança da análise objetiva dos fatos
sociais
82 - 83

Introdução

Prezado(a) aluno(a), o desenvolvimento da sociologia e da antropologia está


ligado diretamente ao desenvolvimento da sociedade ocidental capitalista. Nela
surgiu a necessidade de compreender as transformações que passou a Europa.
A formação de uma vida urbana tensa que gerou novos fatos sociais ainda des-
conhecidos para o mundo europeu.
As tensões sociais se agravaram com o desenvolvimento industrial. Homicídio,
alcoolismo e suicídio são alguns dos fatos que geraram preocupação para o des-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

tino da vida social na cidade. O crescimento urbano acarretou desordens e viu


surgir as revoltas operárias e as primeiras manifestações contrárias à sociedade
industrial nascente. Dos movimentos quebra-máquinas a formação do Partido
Social Democrata alemão, tendo como um de seus fundadores Karl Marx, a
cidade foi o palco da crise social.
Na crise os pensadores europeus passaram a se dedicar em entender os com-
portamentos sociais urbanos, suas razões. Quais fatores promoviam a violência,
o alcoolismo, o suicídio e os homicídios? Por que em tão grande escala a vida
social se degenerava?
Nesta unidade vamos sempre associar os métodos aos fenômenos sociais.
Não podemos abrir mão de uma análise dos clássicos sem entender os fenô-
menos que estimularam os pensadores europeus que fundaram a sociologia e
a antropologia.
Em uma sociedade em que se considerava perdida pelo caos instalado e
expresso no conflito entre os grupos humanos, outros acreditavam que a crise
passaria e que era necessário acomodar a ordem social ao desenvolvimento.
Augusto Comte e Émilie Durkheim são os nossos teóricos a serem analisados.
Pensadores que buscaram respostas para a sociedade de seu tempo e estabele-
ceram as bases de uma ciência que se desenvolveu e prosperou até nossos dias.
Se ainda continuamos a estudar os clássicos e considerar suas análises válidas,
é porque muitos dos problemas sobre os quais eles se debruçaram ainda conti-
nuam se apresentando, talvez com uma nova roupagem.

Introdução
III

A Sociedade, um “Objeto Estranho”

A análise da vida social foi preocupação para vários cientistas sociais. Em sua
maioria, a busca era de estabelecer princípios de moralidade e uma idealização de
conduta necessária. Buscar orientar a ação na vida social com elementos de ética
e moral que pudesse superar os atritos da vida coletiva. As instituições religio-
sas se dedicaram a compreender os males sociais como se fosse orientado pelas
tendências malignas que atentavam a vida humana. Enquanto que os homens
da racionalidade valorizavam a razão como forma de compreensão e ação, mas

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
sem o entendimento do fenômeno social. Partia-se do princípio de que o homem
deveria se orientar diante dos “outros”. E eram exatamente estes “outros” que se
colocavam desconhecidos da compreensão da ciência.
Um dos momentos de maior tensão social e que emergiu a necessidade de
uma compreensão científica da sociedade foi a industrialização e o crescimento
das cidades de forma desordenada. A vida urbana produziu fenômenos de ins-
tabilidade social em uma proporção nunca vista. O alcoolismo, por exemplo,
prostituição, homicídio, suicídio e latrocínio. Sem contar os distúrbios provo-
cados por manifestações coletivas que eram encarados por muitos intelectuais
e homens de Estado como um “problema”.
Nos séculos XVIII e XIX emergiu grandes cidades e seus bairros formados
sem planejamento, em muitos casos uma concentração desordenada de indivíduos.
Nestes ambientes periféricos, urbanos, se confrontavam as regras estabeleci-
das da vida rural, a qual não se podia mais reproduzir na cidade, e, ao mesmo
tempo, as condições de sobrevivência no mundo urbano que se mostravam vio-
lentas. Revoltas populares contra as máquinas no século XVIII, na Inglaterra, foi
uma expressão desta contradição. Os operários consideravam que os maus-tra-
tos impostos a eles era consequência da existência das máquinas e se elas fossem
destruídas a relação com a classe patronal seria mais humana. Ao longo da his-
tória, a luta contra o desenvolvimento tecnológico se mostrou em vão1.
Outras tendências se colocavam em oposição ao caos social resgatando as
1 No século XIX, os socialistas chamados de “utópicos”, destaque para Charles Fourier, acreditavam que o
desenvolvimento técnico na produção se traduzia em um mal. Se fazia necessário limitar o aprimoramen-
to das máquinas sob pena de gerar uma massa de trabalhadores rejeitados pela produção e colocados à
margem da sociedade. Uma das formas de harmonizar as relações de trabalho seria garantir aspectos do
trabalho artesanal no mundo industrial.

PENSADORES CLÁSSICOS I
84 - 85

“tradições” e considerando que a perda de um comportamento moral seria res-


ponsabilidade das transformações econômicas que a sociedade estava vivendo.
O regime de liberdade era questionado e colocado como o fator de permissivi-
dade para o que se chamava de “imoralidade”. O que se viu em alguns países,
como a França, logo após a derrota de Napoleão Bonaparte, em 1815, quando se
viveu a restauração do “antigo regime”, foi o retorno ilusório de uma sociedade
de ordens que prometeu resgatar o caos, mas apenas aprofundou a crise social.
Uma lição que se tirou da Europa no século XIX é que não há retorno quando
se tem mudança, principalmente uma revolução.
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A sociedade europeia não foi a mesma após a Revolução Industrial (1750) e


Revolução Francesa (1789). As correntes liberais ascenderam na vida pública e
passaram a dominar o cenário político no Continente. Fora da Europa, e como
um desdobramento dos seus movimentos liberais, os Estados Unidos foi a pri-
meira colônia a se tornar independência e iniciar a ruptura das colônias europeias
na América. Mas a implantação dos regimes liberais não foi compreendida como
a superação dos problemas sociais. As críticas às teses liberais e os governos que
ela respaldou, sejam monarquias ou repúblicas, se acentuaram.
Duas tendências cresceram no contexto de crítica aos problemas urbanos
nas cidades industrializadas da Europa. O primeiro foi o socialismo, inicialmente
utópico, que se propagou na França e Inglaterra. A tendência de crítica estabe-
lecida por esta corrente não refutava efetivamente a economia industrial, mas
considerava que a desigualdade deveria ser combatida pelo Estado. O governo
deveria se comprometer a intervir na vida social e econômica visando garantir
as condições mínimas para os indivíduos que se encontravam ameaçados pela
exploração econômica e pela miséria que a constituição do proletário estabeleceu.
Mais tarde, o socialismo enriqueceu suas teses e gerou uma crítica mais con-
tundente ao capitalismo em desenvolvimento. Com Karl Marx, teórico alemão,
o capitalismo foi estudado criteriosamente. Os estudos de Marx se iniciaram
pela mercadoria, a produção da vida material e as relações entre as classes for-
madas pela economia, os proprietários dos meios de produção (a burguesia) e a
força de trabalho (o proletário). A tese do materialismo histórico e dialético será
entendida ainda nesta unidade. Mas aqui, quero pontuar que no nascimento da
sociologia há um posicionamento à sociedade capitalista em formação, seja na

A Sociedade, um “Objeto Estranho”


III

crítica, como as teses de Marx, ou na defesa de uma reorganiza-


ção da vida em sociedade, como propôs Comte ou Durkheim,
os quais nós passaremos a analisar a partir de agora.
A preocupação com a organização da vida social foi cultu-

©shutterstock
ada por muitos pensadores. Podemos considerar que mesmo
entre os liberais havia a busca de estabelecer uma relação entre
a particularidade das sociedades e os problemas que elas atra-
vessavam, sejam eles comuns ou não2. A distinção de valores entre uma nação e
outra, afinal sempre foi perceptível ao homem que o comportamento de deter-

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minadas sociedades diante de problemas idênticos não era o mesmo. Mas seria
possível estabelecer um critério comum na análise de sociedades distintas?
A instalação do liberalismo na Europa gerou uma euforia nos países onde
ele foi instalado. Na França e Inglaterra, onde as ideias liberais se consolida-
ram, na primeira em forma de revolução e na segunda como reorganização do
poder, o liberalismo promoveu o expansionismo da empresa econômica asso-
ciada à ação militar.
Entre os ingleses, o desenvolvimento de uma indústria fundada na maquino-
fatura gerou a busca por novos mercados e a necessidade do Estado intervir na
vida social para adaptar a sociedade à empresa capitalista emergente. Não é por
acaso que os interesses do parlamento inglês estava voltado, ao mesmo tempo,
em criar um ambiente que facilitasse o desenvolvimento dos meios industriais
por meio de capitais que eram obtidos externamente para serem aplicados no
território britânico, como, por outro, também forçou a abertura de mercados em
todo o mundo para a compra de produtos ingleses, utilizando de todo o aparato
bélico, naval principalmente, necessário para este intento.
A contradição se estabeleceu no território britânico que passou a ter acesso
a uma quantidade imensa de produtos, uma quantidade de capitais nunca vis-
tos antes na história britânica migraram para o seu território, ao mesmo tempo
em que parte considerável da população de trabalhadores ingleses vivia em
2 Um dos pensadores que trabalhou com a relação comparativa das sociedades foi Montesquieu. O
pensador liberal, em sua obra “O espírito das leis”, tenta organizar a lógica da relação entre as condições
da natureza humana e da natureza que cerca o homem. Nesta relação, ele procura associar até mesmo o
ambiente natural em que cada sociedade está disposta para reconhecer em cada uma delas uma condição
distinta de desenvolvimento. Esta busca do pensador francês o coloca em uma condição de precursor
da sociologia. Contudo, a especulação de Montesquieu não lhe delegou nenhuma compreensão dos
fenômenos de forma sistemática, como no caso de Comte.

PENSADORES CLÁSSICOS I
86 - 87

condições de miséria extrema. A riqueza e a pobreza se apresentavam como con-


dições antagônicas de um mesmo sistema.
Na França, o processo revolucionário que se instalou com a “queda da Bastilha”
(1789) deu início a uma guerra civil e, posteriormente, a um confronto com os
países vizinhos. Uma sequência de conflitos que marcou a história da Europa e
se tornou o marco da passagem do Período Moderno para o Contemporâneo.
A população francesa não conheceu a paz ou a realização do ideal liberal ideali-
zado antes do processo revolucionário. O que os franceses tiveram que conviver
foi com uma sequência de regimes que se proclamavam liberais, mas não con-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

seguiam gerar a paz para estabilizar a vida social e econômica.


Quem acabaria por estabelecer a paz com durabilidade dentro do território
francês, mas também não por muito tempo, foi Napoleão Bonaparte. O general
que se fez imperador assumiu o governo da França em 1799, após um golpe de
estado, e foi derrubado por uma coligação de países que o depôs definitivamente
em 1815. Contudo, o período napoleônico significou uma mudança definitiva
na vida social e econômica francesa. Bonaparte inspirou músicos como Ludwik
van Beethoven e intelectuais como Augusto Comte. Enquanto o primeiro se
arrependeu de uma sinfonia dedicada a Bonaparte3, o segundo se inspirou para
desenvolver a defesa do governo da eficiência.

3 Beethoven admirou as ideias da Revolução francesa, que para ele eram a expressão de uma liberdade que
se instalaria por toda a Europa e promoveria uma nova era, até mesmo para a humanidade. Para celebrar
a liberdade que Napoleão representava, o compositor criou “Eroica”, a Sinfonia número 3. Muitos consid-
eram um marco da passagem para o Romantismo. Contudo, ao ver Bonaparte ascender na França como
imperador em 1804 e, posteriormente, promover a invasão da Áustria onde as tropas francesas promov-
eram atrocidades com a população, Beethoven tirou o nome de Bonaparte da partitura.

A Sociedade, um “Objeto Estranho”


III

Augusto Comte

Nascido em 1798, na França, em Montpellier, Augusto Comte


foi ainda muito jovem um especulador da vida social
e da dinâmica das ciências naturais. Dois interesses
que na maioria dos pensadores era uma contradição
inconciliável, mas para aquele que veio a ser um dos
fundadores da Sociologia, era uma possibilidade que
se mostraria inovadora, a busca de trazer as leis natu-
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rais para a análise da vida social.
Em 1814, já na decadência do Império Napoleônico, Comte ingressa na
Escola Politécnica de Paris. Um centro de formação de cadetes voltada ao desen-
volvimento do corpo intelectual do estado francês4. Uma carreira que Comte
pretendia manter. Contudo, foi levado a ingressar no movimento socialista fran-
cês, liderado por Saint-Simon, na busca de desenvolver um modelo ideológico
que influenciasse a administração francesa na busca de atender as melhorias da
vida da população. Uma ilusão que Comte em pouco tempo rompeu.
O rompimento entre Comte com Saint-Simon ocorreu por diversos fatores,
o mais conhecido foi a mania do mestre do socialismo utópico roubar as ideias
de seus discípulos. Simon não costumava ser muito original em suas ideias, mas
também por discordância teórica, já que os dois apresentavam análises opostas.
Enquanto Comte acreditava em uma interferência neutra do Estado, Saint-Simon
tendia a um acordo político de tendência pequeno burguesa. Comte chegou a
acusá-lo de se aproximar de empresários franceses e favorecê-los manipulando
os movimentos sociais franceses. Outra crítica foi a de intelectualizar o movi-
mento político e gerar uma casta intelectual beneficiária da liderança social.
Traçando um caminho próprio, Comte busca então uma análise mais obje-
tiva dos fenômenos sociais e passa a considerar o método das ciências naturais
como um instrumento fundamental na construção de princípios para entender

4 Criada dentro do processo revolucionário liberal, o interesse era trazer para dentro do corpo diplomático
um número de jovens que viessem a ser qualificados para alimentar a falta de profissionais de engenharia
e especialistas que pudessem atuar dentro da máquina pública francesa. Preparar tecnicamente para a
direção do Estado. Este modelo de educação inspirou Comte. Daí vem sua busca de construir um homem
público mediante uma compreensão da ciência com instrumento vital para a administração da máquina
pública.

PENSADORES CLÁSSICOS I
88 - 89

o desenvolvimento da sociedade humana. Para ele, a sociedade ocidental era o


cume de uma cadeia evolutiva do conhecimento desenvolvido pelas socieda-
des humanas. Nesta evolução as sociedades passaram por estágios semelhantes,
mas algumas ainda se encontram, segundo ele, em uma etapa mística do pen-
samento, a infância.
Para ele, a própria “físico-social”, nome dado a sociologia em sua origem,
estava ligada a este processo de desenvolvimento e deveria ter como objeto de
estudo a compreensão dos fenômenos sociais como resultado da evolução que
as diferentes civilizações viveram até chegar a “Europa civilizada”:
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Entendo por Física Social a ciência que tem por objeto próprio o estu-
do dos fenômenos sociais, considerados com o mesmo espírito que os
fenômenos astronômicos, físicos, químicos e fisiológicos, isto é, como
submetidos a leis naturais invariáveis, cuja descoberta é o objetivo es-
pecial de suas pesquisas. Propõe-se, assim, a explicar diretamente, com
a maior precisão possível, o grande fenômeno do desenvolvimento da
espécie humana, considerado em todas as suas partes essenciais; isto é,
a descobrir o encadeamento necessário de transformações sucessivas
pelo qual o gênero humano, partindo de um estado apenas superior ao
das sociedades dos grandes macacos, foi conduzido gradualmente ao
ponto em que se encontra hoje na Europa civilizada. O espírito desta
ciência consiste, sobretudo, em ver, no estudo aprofundado do passado,
a verdadeira explicação do presente e a manifestação geral do futuro
(COMTE, 1989, p.53).

É possível perceber que a ciência tem um papel fundamental na teoria de Comte,


mas não a ciência de uma forma geral. Para ele, as ciências naturais são as ver-
dadeiras ciências positivas, que se somam para a construção de superioridade
da civilização ocidental, para gerar a maturidade necessária para que o conhe-
cimento possa intervir na análise da vida social. Por isso, para ele, a ciência já
teria atingido este grau de maturidade no ocidente, no que ele chama de “Europa
civilizada”.
Na própria citação é possível compreender a evolução do conhecimento cien-
tífico e os seus estágios. Como a físico-social é fruto de um desdobramento das
ciências naturais. Este processo de evolução tem como princípio a Matemática,
desdobrando-se em sua evolução na Astronomia, Física, Química e Biologia
(Fisiologia para ele). A medicina seria para Comte a ciência que se aproxima-
ria no exercício da profissão do perfil de interferência do físico-social. Cabe-se

Augusto Comte
III

ao médico diagnosticar a doença diante dos dados levantados empiricamente,


cabe ao sociólogo a análise dos fatos sociais diagnosticados pelos mesmos cri-
térios da medicina, ou seja, a fisiologia.
Se considerarmos que seriam os precursores da ciência positiva, Comte
aponta Bacon, Galilei e Descartes. Para ele foram os que deslumbraram a capa-
cidade de ciência de compreender por meio dos fenômenos físicos as leis que
regem a natureza. Mais que isto, criar um método seguro que permite a acumu-
lação do conhecimento e seu desenvolvimento posterior.
Segundo o próprio Comte (1989):

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A época em que as ciências começaram a tornar-se verdadeiramente
positivas deve ser reportada a Bacon, que deu o primeiro sinal dessa
grande revolução; a Galileu, seu contemporâneo, que lhe deu o pri-
meiro exemplo, e, por fim, a Descartes, que destruiu irrevogavelmente
nos espíritos o jugo da autoridade em matéria científica. Foi então que
a filosofia natural nasceu e que a capacidade científica encontrou seu
verdadeiro caráter, como elemento espiritual de um novo sistema social.

A partir dessa época, as ciências tornaram-se sucessivamente positivas


na ordem natural que deviam seguir para tal fim, isto é, segundo o grau
maior ou menor de suas relações com o homem. Foi assim que a Astro-
nomia em primeiro lugar, em seguida a Física, mais tarde a Química, e,
enfim, nos nossos dias, a Fisiologia, constituíram-se em ciências posi-
tivas. Esta revolução está, portanto, plenamente efetuada em todos os
nossos conhecimentos particulares, e tende evidentemente a operar-se
hoje na Filosofia, na Moral e na Política, sobre as quais a influência das
doutrinas teológicas e da metafísica já foi destruída aos olhos de todos
os homens instruídos, sem que, contudo, estejam elas ainda fundas em
observações. É a única coisa que falta ao desenvolvimento do nosso
sistema social (p.55).

Nesta citação fica claro o papel das ciências naturais como também da ruptura
que pensadores como Bacon, Galileu e Descartes fizeram com a filosofia huma-
nista. Não podemos esquecer que o conhecimento científico que foi promovido
partindo da lógica da ciência moderna acabou por romper com a tradição filo-
sófica da racionalidade científica. Pensar o homem era pré-requisito para pensar
as “coisas”, em especial os elementos da natureza. O que Comte propõe é a razão
inversa, nós somos elementos dentro de uma lógica universal, obedecemos a leis
naturais dentro da vida social, assim como a astronomia e a física já demonstraram

PENSADORES CLÁSSICOS I
90 - 91

por meio da comprovação da existência empírica destas leis.


Vale ressaltar aqui que para Comte o único conhecimento que partindo da
abstração consegue se positivar por meio da experimentação é a Matemática.
Ela é a filosofia das ciências naturais. A lógica matemática se constitui na raiz
do pensamento positivo, das ciências que se positivaram. O avanço do conheci-
mento científico partindo da Matemática gerou a capacidade de dimensionar de
forma precisa a condição dos fenômenos físicos e compreender o seu movimento
lógico. Ou seja, se observarmos os fundamentos da Física, Química e Biologia,
nós vamos encontrar a Matemática lhe servindo como base.
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Quando Comte fala da positivação da política e da moral, ele acredita que a


maturidade do homem culto se libertou de princípios superficiais sobre a con-
duta social e seus fatores. Para ele, o comportamento dos homens em sociedade
deveria ser orientado pela racionalidade estabelecida mediante a compreen-
são dos fenômenos sociais fundados na condição coletiva da vida. Ou seja, não
se deve analisar e julgar um fenômeno social utilizando critérios teológicos ou
abstratos, mas sim dados científicos, elementos que comprovam a função e con-
dição de existência de tais fenômenos. Aqui, seria importante lembrarmos que
os fenômenos sociais estão, muitas vezes, carregados de um julgamento mís-
tico, religioso. Se considerarmos, por exemplo, a questão polêmica do aborto na
sociedade brasileira, ela é tratada mais pela mistificação do fenômeno do que
pela sua compreensão científica5.
Segundo a análise de Comte, deveríamos ter uma preocupação de trazer esta
questão para a lucidez dos fatos e para a necessidade de uma intervenção eficiente
do Estado. Não poderíamos mistificar a questão. Se há um número excessivo de
abortos é preciso ter o conhecimento da proporção do que ele ocasiona e os fato-
res que o determinam. Mas por não termos esta compreensão racional e positiva
dos fenômenos do aborto promovemos uma manutenção de uma prática que a
justiça condena, mas não contém. Ou seja, proibir não significa conter.
5 Segundo dados do SUS, divulgados em 2005, no Brasil, por ano, se faz 1,5 milhão de abortos. O levanta-
mento levou em conta atendimentos feito pelo Sistema Único de Saúde por complicações da prática de
aborto. Outro dado que merece ser considerado é sobre o procedimento de curetagem por causa de com-
plicações abortivas, é a segunda prática cirúrgica efetuada. Hoje, a morte de mulheres por causa da prática
do aborto é de 9,4 em 100 mil e que 10% das gestações acabam em aborto. Outro dado do Ministério da
Saúde é que 50% das gestações são indesejadas. Para a surpresa de muitos, as mulheres que mais praticam
aborto não são jovens, com pouco estudo e solteiras, mas sim mulheres com relacionamento estável, 70%,
e na faixa de idade entre 20 e 29 anos e que já tem pelo menos um filho. Estes dados são da pesquisa feita
pela antropóloga Débora Correa, da Universidade de Brasília.

Augusto Comte
III

Por isso, para Comte, a eficiência deveria ser o determinante no trato das
questões sociais e na superação dos problemas que a vida em sociedade gera. A
eficiência da ciência que se fundamenta na objetividade não está só em detec-
tar os conflitos, os impasses para o desenvolvimento, mas também preveni-los
e gerar a capacidade de antecipar crises. Para isso, se faz necessário a adminis-
tração tecnocrata, ou seja, especialistas nas áreas de governança. Para as mais
diferentes especialidades que o Estado atua deve haver um técnico, ou um cien-
tista, para conduzi-la.
Muitos governos se instituíram como voltados a este propósito. Na histó-

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ria brasileira, o princípio do positivismo inspirou principalmente os militares,
em especial do Exército. Crentes em um governo fundado na eficiência e na
meritocracia, os militares tomaram o poder diversas vezes na defesa de uma
modernização do Brasil por meio das teses positivas. Mesmo a Proclamação da
República (1889), feita pelos militares, foi inspirada na purificação do regime,
na moralização do Estado e na eficiência da máquina pública, ou seja, nas teses
positivistas. O lema expresso na bandeira brasileira é inspirado nas teses de
Comte: “Ordem e Progresso”. A ordem científica promove o progresso humano.
O método defendido por Comte sustenta-se nos mesmos critérios das ciên-
cias naturais. Para ele, o pesquisador dos fenômenos sociais deve se postar diante
de seu objeto da mesma forma que o físico, químico ou biólogo. Deve-se ater
aos fatos observáveis, mensuráveis e que necessitam ser comparados e classifica-
dos. A objetividade é um critério fundamental para o cientista social positivista.
Outro aspecto importante do método positivo e, costumeiramente, gera
polêmica, é sobre a neutralidade científica. Ou seja, que o pesquisador não
pode se deixar envolver pelos valores subjetivos, teológicos ou abstratos, que
deturpem a análise do fenômeno ou que lhe imponha um julgamento prévio. A
objetividade está aí ligada diretamente à neutralidade. Se ativer exclusivamente
aos fatos observáveis, passíveis de mensuração, de proporcionalidade e de cor-
relação objetiva com outros fenômenos a ele relacionados pela ligação direta e
objetiva, o pesquisador atingirá a verdade. Um exemplo a ser considerado aqui é
a prática do homicídio, por mais que haja repulsa moral a sua prática, ele existe
ao longo da história. Uma constante social. Segundo Enzensberger (1995), “os
animais lutam, mas não fazem guerra. O homem é o único primata que planeja

PENSADORES CLÁSSICOS I
92 - 93

o extermínio dentro de sua própria espécie e o executa entusiasticamente e em


grandes dimensões” (p.9).
Quantos fatos não são uma constante? O comportamento social se mantém
em algumas sociedades como uma necessidade da própria ordem. Um elemento
que garante a eficiência da vida social. Estes fenômenos merecem um destaque
maior na análise das diferentes sociedades. Se levarmos em consideração que o
trabalho desempenha um papel vital para a manutenção da vida coletiva, seja
em que período histórico ela esteja, ele é uma destas constantes. O engraçado
nos dias atuais é o quanto as pessoas desprezam a função do trabalho na cons-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

trução de um projeto de estabilidade futura.


Comte, quando analisou a ordem econômica, considerava que o trabalho em
uma sociedade complexa como a capitalista industrial, fundada em uma divisão
de trabalho, necessita preparar os seus membros para cumprirem as diferentes
funções que a vida social exige. Desta forma, para ele, cabe ao Estado orientar o
desenvolvimento de uma sociedade estimulando o trabalho especializado para
que cada um dos seus membros se adéque às necessidades que a sociedade exige.
Em uma sociedade como a nossa, em que discutimos a necessidade do tra-
balho técnico profissionalizante, as teses positivistas nos orientariam para o
investimento na qualificação. Promover um ensino voltado ao mercado de tra-
balho, nos mais diferentes níveis de conhecimento e grau de complexidade. Esta
necessidade deve estar, para o positivismo, acima dos desejos particulares. Os
cargos de comando social devem ser ocupados por quem tem uma qualifica-
ção de maior custo e tempo para o Estado, por isso, seria relegada a poucos. A
escolha dos que deveriam ascender às funções mais importantes deve privilegiar
o grau de eficiência com um critério de avaliação que priorize a competência
para o cargo. Devem-se priorizar os benefícios da ordem social e não os interes-
ses particulares, de setores determinados. Se determinados grupos estão sendo
marginalizados deve-se entender os fatores desta marginalização. Mas eles não
devem colocar em risco as prioridades da ordem. Não podemos estimular as
diferenças em detrimento da ordem social eficiente.
A maturidade social não é algo fácil dentro de uma sociedade onde as forças
são diversas. Para Comte, a conquista de um desenvolvimento econômico em
um grau mais elevado só pode ser alcançada em uma sociedade após a sociedade

Augusto Comte
III

atingir uma maturidade na capacidade de agir fundada na razão científica. Para


ele, o crescimento do capitalismo está relacionado diretamente a isto. A economia
só pode se desenvolver na condição da sociedade industrial após o aprimora-
mento científico e técnico dos meios de produção. Desta forma, o capitalismo
é um estágio superior do desenvolvimento econômico, em especial quando se
deixa levar pelas leis de mercado e orientada por uma racionalidade científica.

A Lei dos Três Estágios

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Um dos princípios fundamentais defendidos por Comte é a “lei dos três está-
gios”. Nela, o autor busca a compreensão do desenvolvimento social mediante
a presença do conhecimento científico na vida social. Como a ciência está pre-
sente nas relações entre o homem e as instituições que servem de orientação para
a ordem social. Também podemos considerar a própria explicação do homem
sobre a natureza e os elementos que atingem diretamente sua relação com as
leis naturais.
Por isso que, anteriormente, as leis naturais desvendadas nas teses de Galileu
e Bacon são elogiadas por Comte como uma conquista importante na busca de
compreender as leis universais e orientar o homem para o conhecimento cientí-
fico moderno, separando a ciência da filosofia. Esta maturidade do pensamento,
para ele, atingiu outros campos de conhecimento e hoje já estaria em seu grau
satisfatório para ser usada na análise do desenvolvimento social humano.
Mas quais seriam estes estágios de desenvolvimento? O primeiro é o estado
teológico, aquele em que os fenômenos naturais só podem ser compreendidos
com a crença em um elemento divino que oriente a vida dos homens e lhe pro-
mova as condições nas quais ele está inserido. Logo, o conhecimento que temos
da vida e das coisas que nos cercam é considerado, neste estágio de desen-
volvimento, como superficiais. Permite ao homem uma verdade carregada de
princípios sustentáveis apenas se admitirmos a existência de uma entidade que
estaria acima da capacidade de compreensão humana. Esta entidade seria o ver-
dadeiro condutor da vida.
O segundo estágio é o da abstração. Este, para Comte, desempenha o papel

PENSADORES CLÁSSICOS I
94 - 95

de passagem do estágio teológico para o físico, que veremos logo mais. Nele o
homem rompe com as explicações teológicas e estabelece uma relação racional
com o mundo. Tenta entendê-lo dentro de categorias lógicas e, de certa forma,
capaz de ser analisada pela cadeia de fenômenos observáveis, mas apenas de
forma superficial, ainda sem uma comprovação empírica e que siga a leis pre-
viamente estabelecidas pela observação.
O pensamento abstrato é resultado, ao mesmo tempo, das condições de
desenvolvimento da racionalidade científica fundada em leis naturais. Os dados
observáveis vêm daquilo que existe enquanto fenômeno, mas a compreensão de
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sua essência ainda não é entendida desta forma pelo pensamento abstrato. As
regras do conhecimento não estão estabelecidas a partir das leis observáveis e nela
se sustentam. Há leis naturais que regem os fenômenos para Comte, elas devem
ser os elementos que conduzem a observação. Contudo, as leis naturais resultam
da pesquisa constante de comprovação de sua existência, como as leis da Física
e da Química. Um avanço neste sentido só foi possível na sociedade atual. Nela,
o pensador considera que a maturidade atingida pela ciência já permite utili-
zar os métodos das ciências naturais para compreender os fenômenos sociais.
Por isso a compreensão sobre os fenômenos físicos, fundamentais para con-
solidar o desenvolvimento da ciência. Ele já atingiu todos os níveis necessários
nos demais campos dos conhecimentos, segundo Comte. Já se alcançou a matu-
ridade do pensamento na Astronomia, Física, Química e Biologia (nas ciências
naturais de uma forma geral), agora, o próximo passo, será o amadurecimento
dos demais campos do conhecimento. Logo, para ele, não só a Sociologia seria
o resultado do avanço das ciências naturais, mas também a economia, política
e, até mesmo, a ética poderiam ser conduzidas pelos mesmos critérios das ciên-
cias naturais.
Diante desta maturidade do pensamento físico, da possibilidade de um
estágio superior da organização da vida social, a sociedade poderia atingir um
progresso nunca visto antes. Este progresso resultaria de uma harmonia esta-
belecida entre os diferentes órgãos (funções) sociais. Integrados e na busca de
um mesmo sentido de ação, os organismos sociais resultariam então em uma
submissão ao órgão maior, o corpo social. Quem seria o condutor no sentido
de integrar e dar eficiência a sociedade seria o Estado. Este, administrado por

Augusto Comte
III

políticos que conduzissem a sociedade para a superação de seus problemas de


forma racional e objetiva. Por isso, como comentamos anteriormente, a neces-
sidade de positivar a política. O homem público deve ter uma ação fundada na
objetividade do conhecimento e sua escolha deve se pautar na eficiência.
As teses de Comte avançaram significativamente os critérios para o enten-
dimento da vida social. Deu a possibilidade de se formar um método de análise
criterioso e com meios de mensurar os fenômenos sociais na mesma condição
dos fenômenos naturais. Muitas destas teses positivistas serão questionadas, mas
também utilizadas ao longo do amadurecimento da ciência fundada pelo pen-

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sador francês. Mas não se pode negar a importância que tiveram as primeiras
bases de análise de Comte. Elas permitiram uma busca de delimitar um campo de
atuação para uma ciência que tivesse como foco a vida social e seus fenômenos.

A Herança Positiva no Estruturalismo de


Émilie Durkheim6

Também francês, o pensador Durkheim foi influenciado


das teses comtinianas. Contudo, não foi apenas um des-
dobramento ou aprimoramento, foi a superação das teses
positivas e a apresentação de novos ingredientes que deram
um salto qualitativo na análise da sociedade industrial.
Durkheim foi acadêmico e preocupado em dar ao seu
método um reconhecimento dos colegas de universidade. ©wikipedia

6 Nascido em Épinal, na Lorena, território na fronteira com a Alemanha e que será objeto de discórdia entre
franceses e germânicos, no século XIX e que levou a Primeira Guerra Mundial, Durkheim chegou a viver
na Alemanha durante sua juventude, mas foi na França que desenvolveu suas teses. Ele é considerado o
fundador da “escola francesa de sociologia”. Uma contradição na vida do pensador é sua relação com a
religiosidade, um dos seus objetos de pesquisa. Vindo de uma família de religiosidade judaica, Durkheim
não seguiu os princípios religiosos e submeteu à instituição a condição de fenômeno social e por ela
influenciada. Sua vida acadêmica foi na Escola Superior Normal, lá teve contato com as obras de Augusto
Comte e Hebert Spencer. Foi desta influência que vem o caráter geral de suas teses, sempre associando
a sociologia aos métodos das ciências naturais. Entre suas principais obras está a “Divisão do Trabalho
Social”; “O Suicídio”; “As regras do método sociológico” e “Educação e Sociologia”. Em 15 de novembro de
1917 o pensador francês morreu. Sua morte também está associada à depressão com a morte de um dos
filhos no campo de batalha, durante a Primeira Guerra Mundial (1914 a 1918).

PENSADORES CLÁSSICOS I
96 - 97

Para ele, era fundamental estabelecer um território reconhecido pelos demais


cientistas e ingressar a sociologia com disciplina dentro das instituições de
ensino. Ele conseguiu.
O reconhecimento da sociologia não foi tarefa fácil para o pensador que foi,
também, fundador da escola francesa. Ele influenciou os pensadores que vieram
depois dele a se aprofundarem na relação entre ciência e sociedade. O critério
científico ao conhecimento social foi a tônica da obra de Durkheim. Contudo,
este conhecimento deve traçar regras claras para a análise da vida social sem
deixar de levar em consideração as diferenças existentes em condições distin-
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tas de sociedade. Ou seja, não é possível uma generalização da ordem social


estabelecida, mas é possível entender a dinâmica de cada sociedade com suas
especificidades por meio do conjunto de relações solidárias e o grau de coerção
e coesão que ela promove.
Durkheim parte de um pressuposto fundamental, o tratamento do fato social
na mesma condição de “coisa material”. Desta forma, o cientista social deve sen-
tir-se com a mesma “estranheza” que o cientista natural diante de seu objeto.
Sentir-se diante do desconhecido, afirma Durkheim (1960):
Os fatos sociais devem ser tratados como coisas – eis a proposição fun-
damental de nosso método, e que mais tem provocado contradições.
Esta assimilação que fazemos, das realidades do mundo social às reali-
dades do mundo exterior, foi interpretada como paradoxal e escandalo-
sa. Estabeleceu-se singular confusão a respeito do sentido e da extensão
desta assimilação; seu objetivo não é rebaixar formas superiores às for-
mas inferiores do ser, e sim. Ao contrário, reivindicar para as primeiras
um grau de realidade pelo menos igual ao que todos reconhecem como
apanágio das segundas. Com efeito, não afirmamos que os fatos sociais
sejam coisas materiais, e sim que constituem coisas ao mesmo título
que as coisas materiais, embora de maneira diferente (p.52).

Quando falamos da estranheza que o pesquisador social deve ter diante do


objeto, ao tratá-lo na condição de “coisa material”, estamos levando em consi-
deração aquilo que Durkheim expressa em sua citação acima, “com efeito, não
afirmamos que os fatos sociais sejam coisas materiais, e sim que constituem coi-
sas ao mesmo título que as coisas materiais, embora de maneira diferente”. Isto
significa que os fenômenos sociais não podem ser considerados na mesma con-
dição por não poderem ser analisados com a mesma condição dos fenômenos

A Herança Positiva no Estruturalismo de Émilie Durkheim


III

materiais. Estes podem ser extraídos da sociedade e levados a um laboratório


para serem desmembrados, dessecados e estudados em suas partes decompostas
com a objetividade da observação descritiva e comparativa, o que seria impos-
sível aos fenômenos sociais.
Não podemos reproduzir os fenômenos sociais em laboratório. Seria impos-
sível isolá-lo de sua condição social em que se realiza. Estes fenômenos estão
presos à sociedade e somente nela é possível observá-los. Contudo, nem por isso,
nós devemos deixar de tratá-los na condição de coisa material. Para isso, deve-
mos quantificá-los e proporcioná-los dentro da ordem em que se estabelece. Com

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uma observação objetiva dos fenômenos sociais, podemos compreender os ele-
mentos que influenciam a sua condição. Para Dukheim, os fenômenos sociais
são uma condição coletiva que leva em consideração a coação e coesão social
dentro da condição solidária em que se realiza.
O que é importante definir neste momento é o que se define por “solidarie-
dade”. Ela é a condição em que os fenômenos ocorrem, ou seja, a cumplicidade
entre os agentes que proporcionam a existência dos fenômenos. O que não quer
aqui dizer que aqueles que contribuem para a realização destes fenômenos estão
conscientes do ato que praticam. Se pensarmos a educação, os elementos que
contribuem para que ela ocorra, nem todos têm a dimensão de que sua ação vai
se refletir na condição de educar.
As condições que se realizam a educação está nos fatos que interligados,
de alguma forma, vão gerar os fatores que permitem a educação ocorrer. Logo,
o ambiente de educar e os condicionantes da educação não são apenas os seus
agentes diretos (alunos, escola, professores, funcionários, currículo escolar etc.).
Muito mais que isso, a educação é resultado de uma complexidade social mais
intensa e ampla. Uma relação que vai além dos muros da escola, envolve a cons-
trução “solidária” de todos os elementos em que ela participa. Os seres humanos
que convivem dentro do ambiente escolar são resultado de outros fenômenos
que os produzem além do dia a dia de sala de aula.
Um aluno é filho ou pai, é jovem ou idoso, é casado ou solteiro, trabalha ou
não, se locomove mediante os meios de transportes dos mais variados. Todos
estes fatores, e muito o mais, os quais seriam impossíveis relacioná-los aqui, con-
tribui para o entendimento da educação como um fenômeno social. Podemos

PENSADORES CLÁSSICOS I
98 - 99

considerar pelos mesmos critérios a condição do professor, do diretor e de todos


que estão envolvidos com a educação. Logo, se formos dimensionar a comple-
xidade da construção da educação ela só seria possível diante de um estudo
profundo e demorado, por meio de uma observação minuciosa de todos os
elementos condicionantes da educação. Mas é sempre bom lembrar que os ele-
mentos condicionantes aqui considerados são fatos na condição de coisa material.
Outro elemento importante aqui a ser considerado é a condição em que
a sociedade organiza a sua vida material. No caso de Durkheim ele busca no
entendimento da divisão do trabalho social a premissa para a compreensão dos
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fenômenos que a sociedade produz. As sociedades, ao longo da história, promo-


veram um crescimento da divisão do trabalho, se organizaram de forma cada
vez mais complexa. Nas sociedades industriais, segundo o pensador francês, a
divisão do trabalho social atingiu um grau intenso e extenso, o que promoveu
uma tensão entre os elementos que a compõe. Contudo, e pela divisão social do
trabalho, não podemos considerar a particularidade, a individualidade, como
critério para o entendimento da ordem social e dos fatos que ela produz.
Quanto mais a sociedade divide suas funções, mais a particularidade perde
sentido como referência para o entendimento do corpo social. Ou seja, não está
no comportamento do indivíduo um padrão para o comportamento coletivo,
quando falamos de sociedades com um alto grau de divisão do trabalho social.
Na sociedade industrial a condição de vida para atender as necessidades dos
membros da sociedade é fruto de um número imenso de indivíduos e, por isso,
não é no olhar sobre este elemento particular que vamos entender a vida social.
Se abrirmos a geladeira em nossa casa e olharmos os produtos que estão a
nossa volta, dos mais elementares aos de uso fútil, iremos perceber que há uma
quantidade imensa de trabalho coletivo para a existência destes produtos. Seria
impossível quantificar o número de indivíduos que participam da produção diá-
ria de nossas vidas. Logo, nem nós, nem cada um destes indivíduos tem em seu
comportamento o padrão da vida social, ela é o encontro solidário de todos estes
elementos enquanto um organismo que gera as condições de todos e de cada um.

A Herança Positiva no Estruturalismo de Émilie Durkheim


III

As formas de solidariedade

A solidariedade é o conjunto dos agentes sociais que produzem a vida humana.


Esta solidariedade não é um encontro espontâneo e carregado de afetividade,
ela é uma condição típica das sociedades humanas é a organização física da vida
social. Ser solidário e estar ligado à sociedade diretamente ou integrado por uma
cadeia de relações estabelecidas entre as diferentes instituições sociais que a com-
põe. O homem é um ser social e está ligado à dependência dos membros de uma
coletividade, assim como constrói o sentido de sua existência dentro desta cole-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
tividade. Podemos considerar que a sociedade constrói e determina a condição
individual. O homem é uma concessão social.
Durkheim procura esclarecer que há uma diferença fundamental entre o
objeto de estudo da sociologia que é o fato social e a psicologia, esta voltada a
entender o comportamento individual. Durkheim estabelece um parâmetro para
diferenciar os dois campos de conhecimento:
A proposição que se apresenta os fenômenos sociais como exteriores
aos indivíduos não foi menos vivamente discutida do que a precedente.
Já nos concedem hoje, com assaz boa vontade, a existência de certo grau
de heterogeneidade entre os fatos da vida individual e os da vida cole-
tiva; pode-se mesmo dizer que um acordo, se não unânime, pelo menos
muito geral, está nesse ponto em vias de se conseguir. Não existem
mais quase sociólogos que neguem à Sociologia toda e qualquer espe-
cificidade. Mas, porque a sociedade é composta de indivíduos, parece
ao senso comum que a vida social não pode ter outro substrato senão a
consciência individual; caso contrário, como que ficaria no ar, planando
no vácuo.

Contudo, admite-se correntemente nos outros reinos da natureza aqui-


lo que com tanta facilidade julgamos inadmissível ao se tratar dos fatos
sociais. Todas as vezes que, ao se combinarem e devido à combinação,
quaisquer elementos desencadeiam fenômenos novos, não se pode dei-
xar de conceber que estes são contidos, não nos elementos, mas no todo
formado pela união. [...]

Ao aplicarmos ao mesmo princípio à Sociologia. Se a síntese sui ge-


neris que constitui toda sociedade desenvolve fenômenos novos, dife-
rentes daqueles que se passam nas consciências solitárias (ponto cuja
admissão já alcançamos), concorde-se também que a sede de tais fatos
específicos e a própria sociedade que os produz, e não as partes desta,
isto é, seus membros (DURKHEIM, 2002, pp.23-24).

PENSADORES CLÁSSICOS I
100 - 101

Logo, a sociedade é uma formação da coletividade estabelecida dentro de uma


relação entre instituições e indivíduos que provocam os fenômenos sociais ao
se encontrarem dentro de determinados ambientes, como agentes químicos que
se misturam em determinadas condições e provocam, por isso, reações que só
podem ser explicadas com aqueles elementos determinados e suas condições.
Por isso, os fenômenos sociais obedecem às mesmas leis dos fenômenos natu-
rais. É preciso compreender o ambiente e as relações que determinados agentes
propiciam e os fenômenos a elas relacionados.
Para compreendermos a complexidade destas relações temos que considerar
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

que há dois tipos de solidariedade estabelecida por Durkheim, a primeira liga


diretamente o indivíduo à sociedade, o que chamamos de “solidariedade orgâ-
nica”. A segunda, só pode ser entendida na complexidade das relações sociais
em sua divisão do trabalho social, na qual o indivíduo é apenas um componente
dentro da complexa cadeia de dependência. Nesta, o indivíduo exalta suas par-
ticularidades e parece negar sua relação com a sociedade.
Durkheim define assim as duas formas de solidariedade:
Como a solidariedade negativa não produz por mesma nenhuma in-
tegração e, além disso, não tem nada de específico, reconhecemos so-
mente duas espécies de solidariedade positiva, nas quais se notam as
seguintes características:

1) A primeira liga diretamente o indivíduo à sociedade, sem nenhum


intermediário. Na segunda, ele depende da sociedade porque depende
das partes que a compõem.

2) A sociedade não é vista sob o mesmo aspecto nos dois casos. No pri-
meiro, o que chamamos por esse nome é um conjunto mais ou menos
organizado de crenças e sentimentos comuns a todos os membros do
grupo: o tipo coletivo. No segundo caso, ao contrário, a sociedade na
qual somos solidários é um sistema de funções diferentes e especiais,
que unem relações definidas. Essas duas sociedades são apenas uma.
São duas faces de uma única e mesma realidade, mas nem por isso têm
menos necessidade de ser distinguidos (DURKHEIM, 2002, p.27).

Aqui Durkheim estabelece um paralelo entre as duas formas de solidariedade.


A primeira, mecânica, está ligando diretamente o indivíduo à sociedade por
apresentar uma baixa divisão social do trabalho. Ou seja, a dependência entre
os elementos sociais é pequena, desta forma, a individualidade não se exalta e

A Herança Positiva no Estruturalismo de Émilie Durkheim


III

não contraria as formas de identificação com a sociedade. Logo, o sentimento


de pertencimento e a fusão entre as crenças sociais e particulares são elevadas.
Esta forma de organização é típica das sociedades primitivas. Elas estão presen-
tes na vida social de cada um, mas também se expressa na coletividade.
Um dos exemplos usados pelo próprio Durkheim são as sociedades primi-
tivas. As organizações humanas que vivem em um sistema tribal no qual não há
uma complexa divisão do trabalho social. Nas sociedades, principalmente, que
prevalece a divisão natural do trabalho, ou seja, a divisão entre o trabalho mascu-
lino e feminino. Nestas sociedades, a condição de trabalho está ligada diretamente

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a todas as outras condições e instituições que a sociedade estabelece. A simpli-
cidade das relações condiciona o homem para uma vida particular em sintonia
constante com o interesse coletivo. O que uma mulher faz em uma coletividade
primitiva todas as outras fazem. Assim também os homens.
Nestas sociedades o pai é o chefe de família, também o líder religioso, o
orientador para a vida do trabalho, para a vida moral e sexual. Há uma repro-
dução constante das atividades que se simplificam em uma conduta única. Um
homem e uma mulher reproduzem em sua vida praticamente todas as funções
coletivas em sua vida privada. Se compararmos com nossa sociedade, nós não
produzimos em nossas vidas as funções vitais de nossa coletividade. Seria impos-
sível ser, ao mesmo tempo, o professor, o médico, o educador, o líder religioso,
o juiz, o policial, ser pai, o soldado etc.
Em nossa sociedade as atividades que nos sustentam estão divididas e não
reproduzimos em nossa vida os papéis necessários de nossa própria existência.
Não seria capaz de quantificar os indivíduos que participaram da produção do
computador que uso agora para poder produzir este livro. Talvez um número bem
maior que uma cidade de média proporção. Se pensar as condições que o fazem
ser usado neste momento, a energia elétrica, a mesa e cadeira que me servem
de suporte para este trabalho, os livros, a lâmpada, canetas, papel, a impressora,
enfim, uma imensidão de elementos que produzem diariamente a existência de
outros tantos. Por isso, nossa sociedade é orgânica, diferente das sociedades pri-
mitivas onde predomina a solidariedade mecânica.
Mas a esta dinâmica das sociedades, solidárias mecânicas e orgânicas tem
outros ingredientes a acrescentar, a coesão e coação. Unidade e condicionamento.

PENSADORES CLÁSSICOS I
102 - 103

Uma relação vital na formação do indivíduo dentro do corpo social para que
as funções necessárias à vida coletiva sejam produzidas. Nela se estabelece a
necessidade do todo e a de cada um. Em condições diferentes e, muitas vezes,
aparentemente antagônicas.
Para que você possa entender melhor como estes elementos se dão e o que
eles significam a coesão e a coação, podemos esclarecer que a coesão implica na
unidade de ação de diversos agentes em um mesmo sentido. Imagine o quanto
uma mesa tem uma matéria densa, o quanto é difícil romper sua unidade. Quebrar
uma mesa requer um grau elevado de força. Logo, se formos pensar o porquê
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a madeira é resistente, podemos concluir que há uma grande coesão (unidade)


entre suas moléculas. Logo, as moléculas de uma mesa são mais resistentes à
coação por serem mais coesas. Se pensarmos em uma folha de papel, chegare-
mos à conclusão oposta, ela é mais flexível por ter moléculas menos coesas e,
logo, resiste menos à coação. Basta uma pequena força e você pode rasgar uma
folha de papel.
Em um movimento grevista em que há um grau elevado de adesão de tra-
balhadores a uma paralisação, há um grau elevado de coesão. Logo, romper o
movimento, pressionar os trabalhadores a voltarem ao trabalho sem atender as
suas reivindicações seria difícil. Exigiria para isso um grau elevado de coação.
Um aparato policial dispersando manifestantes em uma passeata seria um bom
exemplo de coação. Por isso, imagine o papel do Estado como agente de coação
para garantir a “ordem social” e o quanto, também, pode ser uma expressão de
coesão. Ao executar uma sentença e promover a justiça sob um valor que une a
maioria dos elementos sociais que se sentem atingidos pelo crime cometido, e
reagem com a sentença aplicada, há uma coesão social.
Em sala de aula, a manutenção da disciplina para o desenvolvimento de um
conteúdo é, ao mesmo tempo, fruto das partes que executam a prática educa-
tiva, o professor e os alunos, como também, da unidade que eles estabelecem
para executar a função para quais as partes existem. Quanto mais coesos neste
sentido forem os membros que executam a educação, mais eficiente ela será e
menos espaço para ações contrárias. Quem tentar a indisciplina será coagido
tanto pelos iguais como pelos diferentes. Um aluno que tente promover a desor-
dem sofre a coação dos colegas (alunos) e, também, do contrário (professor).

A Herança Positiva no Estruturalismo de Émilie Durkheim


III

Aqui estamos usando o exemplo da escola, mas poderíamos estender esta


explicação para todas as instituições sociais. O funcionamento de uma socie-
dade complexa como a nossa é constituída de uma gama imensa de funções que
se estabelecem para poderem dar condições de funcionamento e atendimento
às necessidades coletivas e particulares. Por isso, para Durkheim, seria a divisão
de trabalho a mais importante solidariedade entre os elementos sociais. Ela deve
ser preservada e valorizada por todas as partes do corpo social.
Para Durkheim, a sociedade tem funções primordiais, como o trabalho que
comentamos anteriormente. Desta forma, existe uma gama de valores que estão

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escalonados moralmente e devem ser estimulados para todos os componentes
da sociedade. Estes comportamentos, valores, são passíveis de transformação e
podem mudar seu sentido. Mas há valores que devem ser preservados sob pena
de colocar a sociedade em risco. O trabalho, como falamos, é um deles.
Em nossa quarta unidade iremos discutir alguns temas polêmicos na socie-
dade atual. Um deles é a família. O quanto ela está sendo transformada pela
organização social. Transformações no trabalho, na emancipação da mulher, no
desenvolvimento da comunicação e nos
meios de relacionamento entre os indi-
víduos, o desenvolvimento tecnológico,
enfim, um número imenso de mudan-
ças que atingem a ordem familiar. Nós
iremos discutir sobre as transformações
que ela passa e perceber que está surgindo
diversos modelos de composição familiar
além da chamada família tradicional. Esta
mudança pode ser entendida, pela ótica
©photos

do estruturalismo de Durkheim. A reor-


ganização solidária da divisão do trabalho
social e suas relações com as instituições geram a mudança na ordem familiar.
Logo, esta mudança é irreversível.

PENSADORES CLÁSSICOS I
104 - 105

Anomia e patologia

Entre os trabalhos importantes de Durkheim estão a definição da anomia e pato-


logia, dois elementos diferentes da sociedade atual que merece um olhar mais
cauteloso em nossa sociedade. Faz-se necessário compreender que estes dois
fenômenos não cumprem a mesma função dentro do corpo social. Mais ainda,
as sociedades não apresentam o mesmo perfil médio de conduta. Ou seja, o que
pode ser considero patológico, anormal, para uma determinada sociedade, para
outro pode não ser.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Logo, o que temos que levar em conta neste momento, sobre anomia e a
patologia é a condição em que os dois elementos se dão em uma determinada
sociedade. Determinados fenômenos são naturais a determinados momen-
tos e tendem a se acomodar ao longo do tempo e desaparecer dentro da ordem
social ou estabelecer um novo comportamento, a este se chama de anomia. Ela
pode ser um fenômeno de transição ou só existir na condição de passagem para
outro estágio da vida social. Se pensarmos que certas condições tendem a pro-
mover um ambiente favorável a um comportamento anormal, temos então uma
patologia, um fator de desordem temporário. Um exemplo são mães que tem
depressão pós-parto e muitas vezes cometem o infanticídio, ou seja, matam os
próprios filhos. Esta é uma anomia, uma condição temporária que foge ao con-
trole da própria mãe.
Em momentos de revolução uma sociedade apresenta comportamentos que
fogem à normalidade. A desordem se estabelece pela falta de uma regulagem den-
tro da ordem social onde as diferentes funções que a sociedade necessita para sua
existência. As condições sociais neste ambiente de transição acabam por propi-
ciar, por exemplo, ações de violência ou de degradação moral. Não é por acaso
que se desenvolveu o alcoolismo e o homicídio durante a Revolução Industrial.
Logo, a anomia não é em si um problema a ser resolvido como uma ameaça
à sociedade, mas uma condição de sua reordenação seja de todo o corpo social
ou em alguma de suas partes. As mudanças são constantes e quando ela ocorre
em determinados pontos da sociedade pode promover uma acomodação que
envolva uma grande parte do corpo social. Logo, vai se estender para diversas
instituições até se estabilizar.

A Herança Positiva no Estruturalismo de Émilie Durkheim


III

Vamos analisar na quarta unidade o processo de emancipação da mulher.


Nela podemos considerar que o papel que a mulher passa a exercer em diver-
sas instituições sociais vai se refletir em todo o corpo social. Em alguns casos
de forma imediata no núcleo familiar, promovendo imediatamente uma desor-
dem e reações agressivas. A violência contra as mulheres, a crise de identificação
masculina, os problemas de convivência com os filhos, o processo de emanci-
pação política, são alguns destes dilemas. Estes problemas que estão ocorrendo
na sociedade é anomia.
Já a patologia é um fenômeno que se apresenta dentro de uma ordem estabe-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
lecida, com normas organizadas e que atendem a determinada condição social,
mas que apresente comportamento fora da normalidade. Este é um problema a
ser considerado como nocivo à sociedade. Se propagado em determinada dimen-
são pode desestabilizar a ordem e promover uma série de outros fenômenos
gerando, em cadeia, um grave problema social.
Se for considerar em nossos dias a violência promovida pelo tráfico de dro-
gas, o crime organizado, e sua capacidade de interferência na vida social, podem
considerar que ele gera uma série de patologias. Uma delas ocorreu em novembro
de 2012, quando uma série ações ligadas ao crime organizado começou a vingar
traficantes mortos, matando policiais, civis e promovendo ações de depredação
em transportes coletivos principalmente. Estas ações alteram, em cadeia, toda
a ordem social. Um bairro deixa de abrir as portas do comércio por causa de
um tiroteio, trabalhadores não chegam por causa de um incêndio no transporte
coletivo. Em cadeia os comportamentos nocivos coagem outros e desestabiliza
o funcionamento da ordem social.
Muitas vezes, confundimos a anomia com a patologia por apresentarem o
mesmo comportamento, mas elas têm funções distintas dentro do corpo social.
Um dos comportamentos que é considerado tanto uma anomia ou patologia
é o suicídio. Ele pode significar o reforço de um comportamento necessário,
uma falta de acomodação de um determinado segmento ou, até mesmo, subs-
trato social7. Já, em outros momentos, e em determinadas sociedades o suicídio
7 O substrato social é elemento importante dentro do corpo social. Podem ser considerados substratos os
comportamentos vitais para o funcionamento da sociedade e do qual se organizam as partes determi-
nantes da sociedade. Se considerarmos o trabalho e toda a cadeia econômica estamos falando do substrato
social. A importância de um fato social está na sua ação de coação sobre os demais fenômenos e a coesão
que ele promove.

PENSADORES CLÁSSICOS I
106 - 107

é uma demonstração de problema, de uma patologia. Uma falta de orientação


para os membros de uma determinada sociedade, que não consegue ser incor-
porada ao corpo social.
Entre jovens com uma renda elevada, um alto grau de ociosidade diária e
falta de laços afetivos familiares pode gerar um ambiente propício para o suicí-
dio. Também, pela falta de afetividade, ociosidade e rejeição funcional os idosos
tem mais propensão ao suicídio. Mulheres se suicidam menos que os homens.
Elas tendem a constituir vínculo intenso com as comunidades e promover efi-
ciência de função em instituições sociais.
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Segundo dados do Ministério da Saúde e da Associação Brasileira de


Psiquiatria, no Brasil ocorrem 9 mil casos de suicídio por ano, 24 por dia. A
maioria é de homens com mais de 65 anos. Em comparação com outros países,
a taxa brasileira é baixa, fica em 4,5 para cada 100 mil habitantes. Já em países
como a Rússia e a Ucrânia ela pode chegar a 30. Se pegarmos, no Brasil, os ido-
sos, este índice sobe para 17. Na maioria dos países são as pessoas da terceira
idade que apresentam o maior número de casos de suicídio. Uma alerta para a
forma que as condições sociais em que os idosos estão vivendo na sociedade.
Temos que lembrar que o suicídio para Durkheim é um fato social. Ele é
analisado pela condição coletiva do fenômeno e não na sua particularidade. Não
interessa quem cometeu suicídio, mas quais os fatores que fazem o fato ocor-
rer em determinada proporção e com um perfil que se destaca na ordem social.
Desta forma, por mais que o suicídio pareça, a uma primeira vista, uma deci-
são do indivíduo, ele é visto pela sociologia como uma condição construída pela
sociedade, um ambiente fértil para o autoextermínio8.

A consolidação de Durkheim
Com o pensador francês, fundador da escola francesa de sociologia, a análise
da sociedade como um objeto de estudo da ciência acadêmica foi reconhe-
cido. A capacidade de compreensão do mecanismo social e a influência que isto
8 Um exemplo que pode nos ajudar a entender o suicídio dentro de um contexto de estímulo a ordem social
é o Japão. Após reprovarem nas provas do que seria o vestibular, o que só pode ser feito uma única vez,
jovens não suportam a pressão e cometem suicídio. Esta prática é, em uma análise sociológica, um dos
fatores que estimula a educação e a dedicação dos jovens para passarem no vestibular. Também demonstra
a importância do estudo, da educação, para se garantir o futuro social. Lembrando sempre que por mais
que haja uma condenação moral do fato, o que estamos analisando aqui é a sua função dentro da ordem,
de forma objetiva, sem qualquer valor que possa deturpar a função dos fatos dentro do corpo social.

A Herança Positiva no Estruturalismo de Émilie Durkheim


III

representa na vida dos componentes da sociedade foram estabelecidas de forma


magistral por Émilie Durkheim.
Na educação, ele chegou a desenvolver uma análise exclusiva sobre a impor-
tância da instituição de ensino na formação do homem moderno. Durkheim
considera que a consciência dos diversos campos do conhecimento e dos profis-
sionais que exercem uma atividade prática na vida social sobre a solidariedade
orgânica traria o respeito à vida profissional.
Defensor da organização das corporações profissionais, ele afirmava que
as associações profissionais podem exercer um papel importante na preserva-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
ção da sociedade naquilo que ela tem de mais elementar, a divisão do trabalho
social. Para ele, se a divisão de funções separou o homem da relação direta com
a sociedade, a dependência que se construiu entre as diversas partes do corpo
social deve ser fator de aproximação consciente e de preservação da unidade por
meio do respeito as mais variadas profissões.

Considerações Finais

Comte e Durkheim foram os fundadores da sociologia de duas formas diferentes.


Enquanto o primeiro conseguiu estabelecer um campo de investigação e gerar os
primeiros critérios de análise sobre os fatos sociais; Durkheim teve o reconheci-
mento das demais ciências sobre a existência da sociologia. Ela entrou no mundo
acadêmico e está até hoje, caso isto não acontecesse este texto não estaria aqui.
A principal característica destes dois autores que são uma continuidade é a
herança metodológica das ciências naturais. Eles se espelharam no desenvolvi-
mento do conhecimento físico, químico e biológico para organizar os critérios
necessários da sociologia. Neste aspecto, mais Comte do que Durkheim. O campo
do conhecimento que se estabeleceu com esses dois autores prosperou e gerou a
possibilidade de um olhar científico e objetivo para uma sociedade que era vista
pelo particularismo moral.
Hoje temos a construção de um aparato significativo de mecanismos de

PENSADORES CLÁSSICOS I
108 - 109

monitoramento da sociedade que serve para dar subsídios às pesquisas nos


campos da sociologia e antropologia. A preocupação com a análise dos fenô-
menos sociais chegou à Medicina e ao Direito, a Pedagogia e à Administração,
à Psicologia e à História.
O que Comte considerava como uma ciência que ainda estava dando os seus
primeiros passos, mas que já se fazia necessária pelo grau de maturidade que a
sociedade tinha alcançado era correto. A sociologia surge para cumprir o papel
de engajamento pela mudança ou melhora da sociedade. Independente de qual
postura, uma ciência para o entendimento do fenômeno social com a responsa-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

bilidade científica. E isto, os pensadores franceses clássicos cumpriram seu papel.

Considerações Finais
O suicídio foi um dos objetos de estudo de Émilie Durkheim. O pensador francês consi-
derava que o fenômeno era um sinal de desagregação dos elementos que se autoexter-
minavam em relação ao corpo social. Para ele existiam diversas formas de suicídio. Aqui,
a reportagem da Agência Brasil apresenta a preocupação com um grande número de
suicídios, principalmente em idosos. Uma questão para se refletir é: “Qual é o fator que
leva ao suicídio no caso apresentado nesta reportagem?”.

Psiquiatra afirma que as políticas nacionais de prevenção do


suicídio “não saíram do papel”

Aline Leal Valcarenghi

Repórter da Agência Brasil

Brasília – O Ministério da Saúde lançou em ao Suicídio da Diretoria de Saúde Mental,


2006 as Diretrizes Nacionais para Preven- Beatriz Montenegro, o DF é a primeira uni-
ção do Suicídio recomendando que cada dade federativa a desenvolver uma política
estado elaborasse suas estratégias nessa pública voltada para a prevenção do sui-
área. Depois de seis anos, no entanto, cídio.
pouca coisa mudou, segundo Alexandrina
Meleiro, médica filiada à Associação Brasi- A psiquiatra acredita que o primeiro passo
leira de Psiquiatria. para uma prevenção eficiente é a orien-
tação. Na opinião dela, líderes de grupos
“Faz tempo que todas as coisas ligadas ao como escolas e igreja deveriam ser direta-
suicídio não ficam mais do que no papel. mente orientados pelo serviço de saúde
Reúnem-se grandes nomes, celebridades pública a reconhecerem os sinais que as
e não sai nada do papel”, afirmou. No Dia pessoas dão de que estão pensando em
Mundial de Prevenção ao Suicídio, lem- suicídio.
brado hoje (10), a especialista dá sugestões
do que pode ser feito para mudar esse qua- “Eu instruiria professores e esses professores
dro. instruiriam pais. Eu instruiria representantes
de todos os credos religiosos, seja padre,
Para incentivar políticas públicas voltadas pastor, rabino, de tudo quanto é religião.
para a prevenção do suicídio em todo o Instruiria também comunidades como
mundo, a Organização Mundial da Saúde Lions, Rotary, e todas as comunidades que
cobrou em documento mais ações rela- fazem serviços voluntários”, explica Alexan-
tivas à questão. O Distrito Federal (DF) drina Meleiro.
também lançou hoje um programa de polí-
ticas públicas para prevenir o suicídio. De Abandono de amigos e de atividades
acordo com a coordenadora de Prevenção sociais, perda de interesse em atividades
110 - 111

que antes traziam prazer, estado emocional to-socorro ele vai pra casa. Nada é feito”,
instável e conversas sobre a morte podem explica.
ser sinais de que algo está errado e de que
a pessoa com esses sinais pode, num futuro O Ministério da Saúde foi procurado
próximo, cometer suicídio. De acordo a psi- pela Agência Brasil em duas oportunida-
quiatra, diante dessas evidências, pessoas des para comentar o tema, mas a assessoria
mais próximas devem procurar profissio- de imprensa não tinha informação sobre o
nais especializados no assunto. desenvolvimento de ações previstas pelas
Diretrizes Nacionais para Prevenção do
Outra atitude a ser tomada na prevenção Suicídio de 2006. De acordo com a porta-
do suicídio, de acordo com Alexandrina, ria que estabelece as diretrizes, a Secretaria
seriam programas de treinamento das pes- de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde
soas que trabalham nas emergências e nos teria atribuição de regulamentar o docu-
serviços de qualidade mental, compostos mento em 120 dias.
por psicólogos, psiquiatras e terapeutas
de família. Entre as determinações do documento, está
a de desenvolver estratégicas de informa-
”Quando há uma tentativa [de suicídio], a ção, de comunicação e de sensibilização da
pessoa vai para um serviço de emergência. sociedade “de que o suicídio é um problema
Nele, não há pessoas qualificadas para o de saúde pública que pode ser prevenido”.
tratamento. O primeiro tratamento médico- Página da Estratégia Nacional de Prevenção
cirúrgico é feito como se fosse um trauma do Suicídio do Ministério da Saúde prevê
qualquer. Mas, dali, o paciente precisaria a elaboração do Plano Nacional para Pre-
de um encaminhamento para internação, venção do Suicídio e do Plano Plurianual
para um psiquiatra ou psicólogo. Do pron- 2008-2011.
Edição: Davi Oliveira//Matéria alterada para correção de informação no primeiro parágrafo –
a psiquiatra Alexandrina Meleiro não é integrante do Centro de Valorização da Vida (CVV).
1. Há uma relação direta entre o pensamento de Comte e Durkheim. Os
dois pensadores franceses sustentam as bases de seu pensamento nas
ciências naturais. Para Comte as ciências naturais deram as bases para
o aparecimento da sociologia, chamada de “físico-social”. Para ele, há
uma maturidade social que permite o aparecimento da sociologia na
sociedade ocidental. Em uma escala da evolução do pensamento ele
faz uma linha evolutiva. Qual é esta linha evolutiva?
2. Durkheim considera que a sociedade se estabelece em torno de uma
relação solidária. Esta solidariedade tem uma relação direta com a
organização da vida, com a produção social. Para ele, dois tipos de
solidariedade se encontram dentro do corpo social. Uma é típica das
sociedades primitivas, a outra é fruto de sociedades mais complexas.
Defina as duas formas de solidariedade e estabeleça as diferenças
entre elas.
112 - 113

Material Complementar

Neste trabalho Comte apresenta as diretrizes do método positivista, os elementos


que orientam o olhar do investigador que se dispõe a ingressar na análise da socie-
dade tendo como referência as ciências naturais. Por sinal, na primeira parte da obra
ele apresenta a origem do método da “Físico-Social” (Sociologia).

COMTE, Augusto. O discurso sobre o espírito positivo.


Tradução de Renato Barbosa Rodriguez Pereira. São Paulo:
Martins Fontes, 1978.

DURKHEIM, Émile. O suicídio. São Paulo: Martin Claret,


2008.
Neste trabalho Durkheim estabelece a relação entre o suicídio
e o corpo social. O autoextermínio é fruto das relações sociais.
Um fenômeno promovido pela ordem social e não pelo drama
particular.

Aqui Gabriel Cohn dá uma apresentação das teses de Durkheim. O papel da educação
e o que os fenômenos sociais apresentam. Neste trabalho uma discussão sobre os
valores que se elevam à sociedade.
<http://www.youtube.com/watch?v=LJENpHfaS_k>.

Material Complementar
Professor Me. Gilson Aguiar

IV
UNIDADE
PENSADORES CLÁSSICOS II

Objetivos de Aprendizagem
■■ Entender a crítica ao capitalismo feita pelo materialismo histórico e
dialético.
■■ Estabelecer a relação entre a classe dominante e o Estado para o
materialismo histórico.
■■ Entender a lógica dos modelos de ação social em Weber e as
categorias destes modelos.
■■ Compreender o desenvolvimento da economia em relação à ética
religiosa em Max Weber.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ O materialismo histórico e dialético
■■ A questão da mercadoria
■■ A construção dos modelos de ação social
■■ Os modelos ideais de ação
116 - 117

Introdução

A crítica ao capitalismo teve nas teses de Karl Marx a sua principal expressão.
Construída ao longo do século XIX, quando o processo revolucionário capita-
lista ainda se encontrava em fase de consolidação, Marx desenvolveu uma análise
da política econômica burguesa. Por meio dela analisou as relações sociais vin-
culadas à economia capitalista e que desenvolvia a teoria socialista.
O pensador alemão foi um marco na defesa da implantação do socialismo
científico, o qual considerava que se realizaria a partir do momento em que a
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

classe operária tivesse consciência de seu papel revolucionário e destituição o


modo de produção capitalista.
Max influenciou uma geração de pensadores e passou a ser uma referência
na academia. As teses materialistas influenciam até hoje um vasto número de
campos de conhecimento, entre eles a Pedagogia. Suas teses consideram que as
relações de produção implantadas pela classe burguesa determinam uma limita-
ção à grande massa de trabalhadores e promove a desigualdade em seu sentido
mais amplo.
Ter consciência das relações de produção seria a forma de iniciar a jornada
de libertação da classe operária que, paralelamente, deveria agir para a conquista
do poder e promover a expansão das ideias socialistas. Nesta unidade buscamos
desvendar a mercadoria, entender a luta de classes e a forma como a ideologia
dominante (burguesa) se impõe sobre a sociedade.
No contraponto ao materialismo histórico dialético apresentamos as teses
de Max Weber. Também alemão, como Marx, mas de uma orientação intelectual
diferente e em alguns pontos divergente, Weber irá estabelecer uma relação entre
a economia e a cultura. Promover o entendimento entre as condições racionais
da vida e o sentido que estas condições são interpretadas dentro da vida humana.
Os modelos de ação que são conjunto de valores que orientam o compor-
tamento do indivíduo e buscam lhe dar sentido, é o objeto de estudo de Max
Weber. O pensador alemão foge à concepção positivista da observação ou ao
mecanismo de funcionamento social do estruturalismo. Também, Weber, pro-
cura romper com o determinismo histórico e econômico que Marx estabelece.
Para Weber a economia pode ser entendida pela materialidade e racionalidade,

Introdução
IV

mas também pelo sentido ético que os indivíduos atribuem às atividades pro-
dutivas. O conceito de trabalho, sua associação com a religiosidade cristã, são
alguns dos elementos que permitem a Weber darem um enfoque significativo
na busca de entender o fenômeno social.

Karl Marx, o Materialismo Histórico Dialético

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A crítica ao capitalismo é a característica mais forte
do alemão Karl Marx. Ele foi um herdeiro da escola
idealista que teve em Hegel sua maior expressão.
Marx não poupou a sociedade capitalista de sua
forma irônica de tratar temas caros ao interesse do
liberalismo. Em outros momentos ele enfatizou
as contradições que a sociedade industrial apre-
sentou em seu tempo e ainda hoje expressa. De
suas teses, e por ele mesmo, nasceu a defesa do
socialismo científico e a idealização da sociedade ©wikipedia

comunista. O socialismo deve ser, para ele, uma


busca da classe operária que vive uma luta de classes como em nenhuma outra
sociedade que a antecedeu. O proletário deve ser a classe revolucionária sob a
pena de perder o bonde da história.
Claro que iniciamos nossa discussão falando de um Marx “panfletário”,
engajado na defesa de um projeto político e ideológico, ele é parcial. Esta é uma
diferença do autor que analisamos anteriormente, Émilie Durkheim. A parcia-
lidade é inerente ao cientista social, diferente dos pesquisadores das ciências
naturais. Este é um ponto importante nas teses do materialismo histórico e
dialético, a imparcialidade do pesquisador. Para Marx as ciências naturais têm
um método incompatível com o das ciências sociais e humanas. O homem que
analisa a sociedade está inserido nela, ele tem em si os seus valores. O olhar do
pesquisador carrega inerentemente um posicionamento político e ideológico.

PENSADORES CLÁSSICOS II
118 - 119

Marx nasceu em Tréveris, na Alemanha, em 1818 e faleceu em Londres (In-


glaterra) em 1883. Sua vida foi marcada por uma militância constante na
busca de transformar suas teses em um projeto político que se implantasse
na Europa e se espalhasse por todo o mundo. Formado pela Universidade
de Berlim, tendo iniciado sua vida acadêmica no direito, mas seguido para a
filosofia ao longo de seus estudos e sob a influência de Hegel e Bruno Bauer,
Marx passou a fazer críticas constantes ao modelo estabelecido pelo libera-
lismo na Alemanha e Inglaterra. Depois de formado, se lançou à militância e
passou a escrever no jornal Gazeta Renana, nele conheceu seu parceiro de
produção intelectual e amigo Friedrich Engels.
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O casamento de Marx com Jenny Von Westphalen é um capítulo a parte em


sua história pessoal. Ela, filha de nobres, se afastou da família para viver com
o líder socialista. Passou fome, perdeu filhos e ainda teve que conviver com
uma traição e um filho bastardo. Mas ela jamais o deixou. Um policial in-
glês que foi incumbido de fazer o despejo de Marx por não pagar o aluguel
em Londres, escreveu no relatório que não conseguiu expulsar a mulher e
as crianças da casa, um cubículo, por perceber que se tratava de uma bela
senhora de requintes apurados, uma nobre. Ele se perguntava: o que ela
estava fazendo ali?
Voltando a falar da carreira de Marx, ele manteve sua militância na Alema-
nha, mas acabou sendo expulso por seu posicionamento contra o Estado e
sua militância socialista. Foi para a Inglaterra, onde passou a maior parte de
sua vida, mas também perseguido passou pela França, Bélgica e em tenta-
tiva de se manter em um país com liberdade de expressão foi para a Suíça,
mas também de lá foi expulso.
Em 1848 produziu o Manifesto Comunista, uma de suas obras de maior
impacto. Nela a defesa do socialismo científico. Uma distinção dos proje-
tos ideológicos de esquerda produzidos até então na Europa. “O Capital” é
sem dúvida a sua principal obra, publicado o primeiro livro em 1867, acabou
sendo Engels que faria a publicação do restante do livro. Nele, o pensador
alemão faz críticas ao capitalismo com uma eficiência e detalhes. Apesar de
ser uma obra de ciência política, ela desdobra o material em temas que vão
desde a educação, a cultura, política, sociologia, história, mas também de
inúmeras áreas de conhecimento que transformaram “O Capital” em uma
referência de análise.

O próprio Marx jamais fugiu da parcialidade em sua análise e na busca de


implantar uma sociedade socialista. Ele considerava que diante do posiciona-
mento ideológico que o pensador social traz consigo, este pensamento deve ser

Karl Marx, o Materialismo Histórico Dialético


IV

direcionado para uma luta política fundada em um projeto científico de sociedade.


Este projeto deve partir de uma análise crítica ao capitalismo, análise fundada
no conhecimento científico. Da crítica que se faz deve-se elaborar um projeto
de sociedade para a superação dos problemas que o capitalismo apresenta. Por
isso, que para ele, a economia e a história têm destaque como instrumento de
análise. Estes dois campos do conhecimento são capazes de dar subsídios para a
compreensão das transformações que os homens promoveram em si e na natu-
reza mediante os meios de produção.
Para Marx, a sociedade capitalista foi resultado das transformações que ocor-

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reram na Europa com o advento das práticas mercantis. Neste contexto, a classe
burguesa organizou o seu projeto de sociedade e estabeleceu o seu poder sobre a
economia e o Estado. A burguesia se constituiu como classe dominante na socie-
dade capitalista após tomar o poder e destituir o sistema feudal. As teses liberais,
para Marx, seriam a expressão ideológica da burguesia, seu instrumento de expli-
cação do mundo. Esta ideologia foi imposta aos demais membros da sociedade
e serve para legitimar os interesses da dominação.
O proletário deve se libertar desta dominação ideológica, mas para isto, deve
compreender cientificamente como a sociedade capitalista se sustenta. Quais são
as condições em que o capitalismo constrói a vida humana, as formas de domi-
nação e, principalmente, de exploração que isto implica. Por isso, a necessidade
de entender o modo de produção da vida material no capitalismo e desvendar
as condições em que se dá o acesso dos seres humanos as suas necessidades. É
aqui que se destaca o papel da mercadoria, a condição única em que se adqui-
rem as necessidades humanas. Tudo o que necessitamos só pode chegar até nós
em forma de mercadoria na sociedade capitalista.
Em sua maior obra, “O Capital”, Marx faz uma crítica à economia política e
desvenda as condições em que a sociedade capitalista se organiza. Ele parte da
mercadoria para entender a relação dos homens com a natureza, a transforma-
ção desta nos bens necessários para a produção de outros bens ou para atender
as necessidades humanas. De um alimento a uma máquina industrial, a mer-
cadoria é a condição em que os dois objetos se transformam e cumprem o seu
destino de atender a vida material e imaterial1 do homem.
1 Quando falamos de vida imaterial estamos nos referindo as coisas que temos como serviços e habilidades

PENSADORES CLÁSSICOS II
120 - 121

Contudo, com o desenvolvimento da divisão do trabalho associada à maqui-


nofatura, o capitalismo aprimorou as técnicas de produção da vida material e
rompeu a consciência do homem de seu papel na produção do que necessita.
O ser humano da sociedade industrial já não consegue perceber a importância
do seu trabalho na produção de sua existência e dos demais seres que com ele
compartilham os interesses de consumo dos bens industriais. A complexa rede
de produção industrial fez com que os trabalhadores não fossem mais capazes
de entender como estes bens foram gerados. Por isso, e aí, a burguesia utiliza
dos meios imateriais mediante a ideologia para incutir na classe operária a falsa
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ideia das condições e das relações sociais.

necessárias para tender a necessidades específicas de nossas vidas. A educação, por exemplo, é um serviço
prestado tendo como mercadoria a imaterialidade muitas vezes. Não podemos comprar o conhecimento
em forma material. O saber não é um produto que se adquire na prateleira de mercado, são habilidades
que se constroem em relações específicas, desenvolvidas em nossa sociedade por meio da instituciona-
lização da escola. Os centros de educação, estes materializados, só tem sentido cumprindo a função de
educar. Assim, educar é imaterial, mas a condição que para isto se realize necessita de uma materialidade
gerada dentro dos interesses estabelecidos pela burguesia, a escola e a mercadoria que produz e possibilita
o consumo.

Karl Marx, o Materialismo Histórico Dialético


IV

Ao definir a mercadoria, em “O Capital”, Marx afirma:

A mercadoria é, antes de mais nada, um objeto externo, uma coisa que,


por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a
natureza, a origem delas, provenham do estômago ou da fantasia. Não
importa a maneira como a coisa satisfaz a necessidade humana, se di-
retamente, como meio de subsistência, objeto de consumo, ou indireta-
mente com meio de produção. [...]

A primeira vista a mercadoria pode parecer coisa trivial, imediatamen-


te compreensível. Analisando-a, vê-se que ela é algo muito estranho,
cheia de sutilezas metafísicas e argúcias teológicas. Como valor-de-uso,
nada há de misterioso nela, quer a observamos sob o aspecto de que se

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destina a satisfazer necessidades humanas, com suas propriedades, quer
sob o ângulo de que só adquire essas propriedades em consequência
do trabalho humano. É evidente que o ser humano, por sua atividade,
modifica do modo que lhe é útil a forma dos elementos naturais. Mo-
difica, por exemplo, a forma da madeira, quando dela faz uma mesa.
Não obstante a mesa ainda é madeira, coisa prosaica, material. Mas,
logo que se revela mercadoria, transforma-se em algo ao mesmo tempo
perceptível e impalpável. Além de estar com os pés no chão, firma sua
posição perante outras mercadorias e expandem as idéias fixas de sua
cabeça de madeira, fenômeno mais fantástico do que se dançasse por
iniciativa própria (MARX, 2002, pp. 46 e 56-7).

Esta forma como a mercadoria que Marx expõe é o fetiche. Ele se constitui como
o valor estabelecido pela burguesia para o produto, onde a mercadoria encobre
a condição material, real, de produção e passa a ser propagada como fruto de
uma idealização do homem. A vida se justifica da imagem fantástica dos objetos
produzidos pela sociedade industrial. Este preenchimento que a mesa produz
com seu encantamento em forma de mercadoria, um objeto que só falta “dançar
por conta própria”, preenche o vazio entre as condições de produção e a consci-
ência do homem. Um ser humano que perdeu a compreensão das relações que
produzem sua vida.
Se considerarmos as condições em que vivemos na sociedade atual, levando-
se em consideração as teses de Marx, o fetiche está propagado. Nossa relação
com os objetos de consumo são marcadas por um mundo de fantasias, mais
irreal que um “conto de fadas”. Tudo porque a divisão do trabalho se ampliou e se
transformou em uma cadeia mundial de produção. O bem de consumo pronto,
ao alcance de nossas mãos, melhor, de nosso bolso, próximo fisicamente, está

PENSADORES CLÁSSICOS II
122 - 123

distante de ser compreendido por nós em sua cadeia complexa de produção. A


campanha publicitária apresenta o que para nós é aquilo que irá ser incorpo-
rado como o sentido real da existência dos bens de consumo. Como viver sem
a sensação que os bens de consumo nos proporcionam?
Mas voltando as teses de Marx, quanto mais a sociedade capitalista viu
expandir a divisão do trabalho promovida pela maquinofatura, quanto mais a
mercadoria passou a envolver um maior número de indivíduos em suas rela-
ções de produção e de consumo, o poder de determinação da burguesia sobre
a sociedade se intensificou na mesma proporção. O ideário burguês se alastrou
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

por meio do liberalismo e se impôs como condição de poder em quase todos


os cantos do mundo.
Esta condição capitalista é o fator determinante das instituições que temos
hoje em nossa sociedade. Independente de qual seja a proposta de ação e atua-
ção promovidas pelas mais diversas instituições sociais, dando sempre este ar de
aparência democrática, ela está subordinada às condições capitalistas de produ-
ção e, por isso, reproduz seus interesses. A escola é um bom exemplo desta falsa
ideia de liberdade de pensamento que o liberalismo induz. Segundo Marx, a edu-
cação está instituída dentro das relações capitalistas e o conteúdo apresentado
aos alunos, a forma como é organizado os conteúdos e as disciplinas, acabam
por favorecer a compreensão burguesa de mundo2.
A burguesia se utiliza de todos os meios para justificar o seu poder, mas prin-
cipalmente justificar a propriedade privada dos meios de produção. Os meios
que permitem a ela dominar as relações que produzem a vida material. Desde
que a maquinofatura se estabeleceu como principal meio de transformação da
natureza em produto, a classe burguesa passou a ampliar a capacidade produ-
tiva das máquinas. Desta forma, a dominação se torna mais intensa na medida
em que os trabalhadores se transformam apenas em uma extensão das máqui-
nas que detém a inteligência produtiva. Tendo a propriedade das máquinas, a
2 Apenas como mais um exemplo, seguindo a lógica do materialismo histórico dialético, para que se possa
entender a falsa ideia de liberdade, é a imprensa. Ela, por vezes, promove denúncias e corre todos os riscos
de enfrentar o poder constituído. Em muitos relatos da história contemporânea se sabe do papel que os
meios de comunicação tiveram ao enfrentar o aparato público e de denunciar práticas ilícitas. Mas em
momento algum os meios de comunicação se colocam contra a sociedade capitalista ou denunciam as
relações de produção dominante. A própria imprensa é uma empresa capitalista que sobrevive transfor-
mando o serviço de comunicação em uma mercadoria. A empresa que patrocina e aqueles que desejam
ser informado devem pagar pelo produto. Uma empresa que vive do lucro não daria um “tiro no próprio
pé”.

Karl Marx, o Materialismo Histórico Dialético


IV

classe burguesa detém o controle sobre a produção da vida.


Para que possa entender melhor esta relação entre meios de produção, bur-
guesia e classe operária é bom esclarecer as condições em que a nossa vida é
mantida por meio da aquisição da mercadoria, o que já falamos anteriormente.
Perceba que tudo o que nos rodeia, sem tirar qualquer elemento, só é possível
atender as nossas necessidades se for adquirido em forma de mercadoria. Da luz
que se dá com o apertar de um botão ao alimento que adquirimos nas gôndo-
las dos mercados, enfim, qualquer produto que sofra a transformação humana
só pode ser adquirido em forma de mercadoria.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Se a mercadoria atende as necessidades da vida humana, então podemos
medir o valor da existência de um indivíduo por meio da mercadoria e da sua
capacidade de adquiri-la. Como isto pode ocorrer? É só entendermos que para
adquirirmos as condições necessárias para suprir as nossas necessidades temos
que consumir mercadorias, logo, o nosso salário é a proporção de vida que pode-
mos adquirir. O salário é, então, a proporção mensal que a existência humana
pode merecer.
Mas é bom fundamentar que o salário nada mais é que a quantia paga pela
venda de nosso trabalho. Se vendemos o nosso trabalho por um determinado
valor, o que determina o quanto vale o trabalho? Se formos entender o mercado de
trabalho, ele vale a proporção de riqueza que é capaz de produzir e a quantidade
de pessoas habilitadas para realizá-lo. Quanto mais indivíduos aptos à realização
de uma determinada tarefa, mais baixo será o salário – lei da oferta e procura.
Para poder obter uma maior produtividade sem depender da força de tra-
balho, a classe burguesa desenvolve tecnicamente os meios de produção. Desta
forma, aprimorando o maquinário industrial, a burguesia reduz a necessidade
de trabalhadores e, por consequência, o número de operários dos quais depende.
Os que são menos necessários como força de trabalho tendem a ganhar cada vez
menos, ou serem excluídos da condição de força produtiva3.
Mas o cálculo do salário do trabalhador também deve ser considerado no
valor da mercadoria. O preço do produto tem nele a quantia de trabalho exercida

3 Interessante perceber o quanto a nossa sociedade assiste à concentração de pessoas desqualificadas na


fila do desemprego. É imensa a multidão que busca trabalho, mas não tem habilidade profissional para
ocupar as vagas oferecidas para os menores salários. Desta forma, segundo Marx, uma leva imensa de
trabalhadores fica alijada das condições de vida por não poderem vender a sua força de trabalho.

PENSADORES CLÁSSICOS II
124 - 125

pelo operário. Contudo, a remuneração dada ao trabalhador não é na proporção


da riqueza que ele produz. A porcentagem do trabalho que o trabalhador aplica
para a produção de uma mercadoria é remunerada por um valor menor. Se um
operário imprime R$ 20,00 no valor de cada produto em forma de trabalho, vai
receber pelo trabalho aplicado R$ 5,00. Esta é a mais valia absoluta.
Existe também a mais valia relativa, segundo Marx. A qual é as mudan-
ças efetuadas nas técnicas de produção que reduzem o custo final do produto.
Equipamentos novos, formas de organização espacial do maquinário, terceiri-
zação de etapas da produção, enfim, tudo o que permite reduzir os custos de
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produção. Hoje vivemos um investimento acentuado nas inovações técnicas da


produção. O principal motivo é garantir uma maior lucratividade das empresas
capitalistas nos custos finais dos seus produtos.
As relações que produzem a vida
Para o filósofo e pensador ativista alemão, a sociedade se organiza nas con-
dições de produção que estabelecemos anteriormente. A vida social se constrói
dentro da lógica da mercadoria, da busca da acumulação de riqueza e da manuten-
ção dos interesses da classe dominante, a burguesia. Vale lembrar, como falamos
anteriormente, que a classe burguesa utiliza de todos os meios para garantir a
permanência das condições de acumulação. O Estado desempenha, nesta lógica,
um papel central. É mediante o controle do Estado, da política, pela classe bur-
guesa que se atende aos interesses da economia capitalista.
O Estado então representa um dos instrumentos principais da vida social.
Nele se busca a legitimação da propriedade e das relações de produção. O poder
público assume para si a condição de manter os interesses da classe dominante
por meio das garantias das relações monetárias, da compra da mercadoria, do
controle sobre a classe trabalhadora e sua qualificação, assim como, a manuten-
ção da propriedade privada sobre os meios de produção.
O próprio Estado para manter sua máquina pública é um consumidor das
mercadorias burguesas. Se formos considerar as teses de Marx para analisar o
papel que o poder público desempenha como consumidor de produtos e servi-
ços, podemos notar que ele é o maior cliente das mercadorias burguesas. Ele, o
Estado, consome mercadorias utilizando os impostos arrecadados, parte dele, dos
trabalhadores e da própria classe burguesa. Enquanto que para os trabalhadores

Karl Marx, o Materialismo Histórico Dialético


IV

os impostos não retornam, para a burguesia retornam em forma de consumo de


suas mercadorias. Desta forma, os burgueses de maior poder de produção e que
detém a fabricação dos produtos mais importantes para a manutenção da vida
acabam por ficar com uma fatia da arrecadação pública.
Não é por acaso que as grandes empresas se interessam em processos eleito-
rais que determinam os líderes políticos, chamados de “representantes públicos”.
As empresas de grande poder de capital e que se beneficiam das obras públicas
se empenham em investir em campanhas políticas a procura de fazer valer seus
interesses por meio dos candidatos que apoiam seus projetos. Ao serem eleitos,

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estes que receberam o financiamento burguês de campanha, passam a defender
a busca de lucro das empresas patrocinadoras da sua campanha4.
Na educação esta dependência ocorre da mesma forma, segundo as teses de
Marx, em qualquer instituição pública a finalidade é a manutenção da ordem
social e a garantia de sua permanência. Para que isto ocorra, atendendo aos inte-
resses da classe dominante, o Estado promove práticas que legitimem as relações
de mercado, ou seja, o consumo da mercadoria, a preparação da mão de obra
para se submeter à economia burguesa, mas também à idolatria, ao sucesso dos
personagens que a burguesia se espelha. Os ídolos da história, os grandes cien-
tistas, o importante literário, todos são fruto de sua competência e nunca do
meio onde vivem e das condições sociais que os geraram. Para Marx, a burgue-
sia esconde por trás da idolatria ao líder, ao personagem de destaque, todas as
relações sociais de produção que o geraram. Fantasiosamente, tudo se resume
na competência de um homem só.
Esta lógica que estabelecemos anteriormente serve também para entendermos
a cultura propagada pela burguesia. Ela defende a competência particular acima
da coletividade. As condições humanas que são geradas por toda uma relação de
produção em que se apresenta a desigualdade entre os homens é encoberta pela
personificação, pela idolatria a particularidade, pelo heroísmo egocêntrico e auto-
nomista estabelecido nas obras típicas do capitalismo, segundo as teses de Marx.
A ciência deve fazer a crítica
4 Vale lembrar que no Brasil um dos setores que apoia por meio de financiamento de campanha com mais
peso de “investimento” são as empreiteiras, ou seja, as construtoras. O poder público é o maior consum-
idor da construção civil. Obras de grande envergadura são hoje disputadas por empresas da construção
civil. Contratos de longa duração que permitem uma arrecadação constante de lucratividade gerando uma
dependência do Estado à empresa capitalista.

PENSADORES CLÁSSICOS II
126 - 127

Para Marx, a ciência tem um papel fundamental na crítica à sociedade.


Somente com o conhecimento científico que denuncie as relações e condições
que a vida humana é produzida é que se pode organizar uma proposta racional
de libertação da maioria da sociedade das condições de exploração estabelecidas
pelo capitalismo. Diante disso, os que defendem uma “escola libertadora” par-
tem deste princípio. É dentro do ambiente educacional que é possível fazer esta
crítica e compreender as verdadeiras relações sociais. Por isso, o cientista social,
para Marx, deve ser um teórico engajado. Tem que estar militando em defesa da
classe operária. Deve usar de seu conhecimento para desvendar as relações de
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opressão e lutar pela libertação mediante um projeto socialista.


Na educação, Demerval Saviani é uma das maiores expressões nesta linha
de defesa com base no materialismo histórico, é a “educação histórico-crítica”.
Nela Saviani defende o papel político do educador. Sua capacidade de introdu-
zir dentro da sala de aula, no exercício de sua atividade pedagógica a consciência
crítica e a compreensão das relações sociais. A escola, para ele, é uma expressão
das relações sociais, nela se percebe as contradições que as relações de produ-
ção estabelecem.
O papel do conhecimento dentro das instituições de ensino
tem trazido controvérsias no debate sobre o papel que a educa-
ção deve exercer na vida social. Os que consideram a educação
um meio de preparar o indivíduo para a sociedade não con-
cordam com as teses histórico-críticas. Para eles, a educação
deve estar mais voltada à adequação do indivíduo do que
lhe dar conteúdos de questionamento sem o devido pre-
paro para a vida em sociedade. Mas aí, cabe ao educador
se posicionar, colocar em questão qual o papel que ele
considera exercer em sociedade. Por isso, a importân-
cia em se definir um método, uma postura política.
Mas sobre isto vamos tratar ao final desta unidade, em
nossas conclusões. ©wikipedia

Karl Marx, o Materialismo Histórico Dialético


IV

Max Weber nasceu em Erfurt (1864) na Alemanha e faleceu em Munique, em


1920. Seus trabalhos estão ligados à economia política, uma das áreas nas
quais se graduou na Universidade de Heidelberg, mas trabalhou em diver-
sas universidades de prestígio na Alemanha. Sua carreira acadêmica é mar-
cada por instabilidade emocional, mas uma produtividade avassaladora.
Filho de um empresário bem-sucedido e de uma mãe de origem nobre e de
formação religiosa conservadora, Weber teve em seu irmão outro pensador
de sucesso, Alfred Weber. A esposa de Max, Marianne Weber, foi sua mais im-
portante auxiliar e biógrafa. Suas teses se direcionaram para o entendimen-
to dos aspectos culturais na vida econômica. A obra em que Weber coroa
suas teses é “A Ética Protestante e o Espírito Capitalista”.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Homem de uma influência política de respeito na Alemanha de sua épo-
ca, Weber tentou a carreira política e um cargo no alto escalão do gover-
no alemão, mas suas posturas de crítica ao Kaiser Guilherme II acabaram
por condenar suas intenções. Contudo, após a Primeira Guerra Mundial ele
foi convidado a ser um dos representantes alemães no Congresso de Viena
(1919) que selou a paz na Europa após o conflito. Ele também foi responsá-
vel pela elaboração da Constituição de Weimar, instalada na Alemanha após
a Primeira Guerra Mundial.
Quando estava fazendo estudos sobre as religiões em diversas civilizações
não europeias, ele acabou falecendo de gripe espanhola, com apenas 56
anos. Para quem era filho de uma família abastada e tinha uma boa condi-
ção econômica, morreu cedo.

Weber e a Racionalidade Impura

De todos os teóricos que vimos até agora, Max Weber é o que ocasiona um sen-
tido importante de reflexão sobre as contradições humanas. Ele coloca uma
questão vital em sua obra: “Seria o homem um ser puramente racional e capaz
de direcionar sua vida pela razão?” Este é um tema central no trabalho do pensa-
dor alemão e um dos precursores do existencialismo. Weber representa o resgate
da individualidade não como conceito filosófico, mas como condição de aná-
lise social. Não significa que todos os indivíduos são um objeto de estudo da
sociologia, mas em cada um há o sentido que uma coletividade apresenta sobre
a vida social. Em cada um de nós há elementos que nos colocam na condição de
civilização e que se expressa em nossas ações. Somos ocidentais, e isso significa

PENSADORES CLÁSSICOS II
128 - 129

que há elementos comuns em nossa construção de modelos de ação, nos valo-


res que cultuamos e nas ações que praticamos. São nas ações que se denunciam
nossos valores.
Mas o que quer dizer a sociedade está em nós? Se colocarmos em evidência
os momentos em que a história denunciou as contradições entre a lógica racio-
nal que deveria apontar a ação para uma determinada direção e o que assistimos
enquanto fato, vamos entender que o que foi determinante ao comportamento não
é a razão lógica e objetiva, outros fatores deram um direcionamento ao compor-
tamento social. Muitas vezes, o peso de um comportamento arraigado ao longo
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

da história pode ser determinante para dar sentido a uma ação social. Um dos
exemplos que podemos estabelecer sobre este tema coloca Weber na crítica às
teses de Marx, da capacidade da consciência de si e para si.
Quando observamos o comportamento da classe operária alemão entre 1870
a 1914, período que vai da unificação do Estado nacional alemão a Primeira
Guerra Mundial, percebemos que foi também o momento em que Marx cons-
truiu suas teses e elas foram propagadas para a classe operária na Alemanha. Se
havia um operário que tinha tido contato com as teses marxistas era o trabalha-
dor germânico. Considerado por muitos adeptos do socialismo científico o mais
preparado para um posicionamento de crítica ao Estado capitalista e, por con-
sequência, engajado na proposta de uma sociedade comunista. Mas este mesmo
operário acabou sendo seduzido pelo nacionalismo que formou a Alemanha,
lutou pela sua formação em 1871.
Depois, quando o estado alemão iniciou sua política imperialista e procurou
estabelecer colônias e iniciar uma corrida armamentista na Europa, desafiando
o poder inglês, o operário alemão apoiou e se alistou. Ele foi a Primeira Guerra
Mundial (1914-1918). Ele perdeu o conflito e se engajou novamente em mais
uma guerra, a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Ou seja, por mais que a
guerra era considerada uma expressão do imperialismo capitalista, uma ação de
interesse da burguesia alemã, o proletário é mais germânico do que socialista.
Ele preferiu morrer pela Alemanha.
Por isso, diante deste exemplo, podemos começar a entender as teses de
Weber. Para ele, a racionalidade não significa uma ação consciente. Não existe
na ação social que promovemos um sentido lógico e objetivo exclusivamente.

Weber e a Racionalidade Impura


IV

Não quer dizer que todo o comportamento é irracional, não. Há uma intenção
racional de quem pratica determinado ato, mas nunca esta razão será pura para
quem pratica a ação. As relações que os homens estabelecem em sociedade têm
uma gama de intenções subjetivas, que são construídas em grau de importância
diferente para cada indivíduo, assim também, para cada coletividade.
Um indiano está mais apto a certos comportamentos por ter uma cultura
que o predispõe a isto. Há uma herança cultural que permite que certos tipos de
ação se potencializem em determinadas sociedades mais que outras. Usamos aqui
os indianos como exemplo, mas poderíamos nos referir a outros povos. Porém,

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
voltando à questão da Índia, se observar a paciência que os indianos têm em
ficarem horas na fila para assistirem uma sessão de cinema, podemos conside-
rar seu gosto pelos filmes, o que é óbvio, mas ao mesmo tempo o quanto eles se
sujeitam a esperar horas para assisti-los, o que só pode ser entendido pela sua
cultura contemplativa. Diante do desejo, a paciência para buscá-lo5. Não quer
dizer que eles sejam passivos, mas que para determinados fins é possível ter par-
cimônia, o que em determinadas sociedades seria impossível. Mesmo naquelas
que se gosta de uma produção cinematográfica.
Por isso, temos que considerar que para Weber não seria possível ter uma
análise puramente racional de um determinado fenômeno pela análise objetiva
dos fatos (Durkheim) ou pela consciência das relações racionais da economia,
da história da produção da vida material dominada por uma determinada classe
(Marx). Ao mesmo tempo em que não se podem desprezar os fatos sociais, eles
devem ser entendidos pelo sentido que os sujeitos, agentes da ação, dão a ela.
Este sentido não é de quem observa, do cientista, mas sim de quem é observado,
daquele que pratica o comportamento.
Se considerarmos a própria vida de Marx sob o olhar de Weber, o pensa-
dor socialista viveu a crítica à sociedade capitalista, passou por diversos países,
sua família viveu todas as consequências de ter que fugir e não ter condições

A independência da Índia é talvez um exemplo significativo na busca de entender as teses de Max Weber.
5

Liderada por Gandhi e Neru, o movimento de independência indiano se caracterizou por uma luta
pacífica, sem violência por parte da população indiana. Enquanto as tropas inglesas tentavam minar o
movimento de independência com ações de violência, o líder, Gandhi, pregava a “resistência pacífica”, não
reagir, mas, também, não obedecer. O movimento obteve sucesso, Gandhi se transformou em um ícone
mundial. Seu rosto aparece em camisetas e livros de autoajuda. Contudo, Gandhi só teve eficiência em
suas ideias porque é indiano e estava na Índia. Seria impossível reproduzir o mesmo movimento em outra
civilização e em outro momento. Talvez, a Índia de hoje não faria a mesma coisa.

PENSADORES CLÁSSICOS II
130 - 131

econômicas para se sustentar. Contudo, Marx fazia questão que suas filhas tives-
sem aulas de canto, poesia, piano como toda a jovem a aristocracia ou da burguesia
emergente. Marx era conservador em relação à vida amorosa de suas filhas, con-
trolava seus relacionamentos e influenciava a escolha de seus maridos. Marx é
um homem como pensador e outro como um ser que age dentro das relações
sociais. O que ele preservava em suas relações domésticas não serve para legiti-
mar seu pensamento. Não podemos desprezar as teses do materialismo histórico
e dialético, mas não podemos considerar que nelas está expresso o ser humano
Marx. É sobre esta condição humana que Max Weber se debruça em seus estudos.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Nas teses de Weber se destaca a teoria dos modelos de ação. Onde ele busca
uma compreensão dos sentidos das ações sociais pelos agentes que a praticam. Para
isso, ele considera que os modelos, valores subjetivos dados ao comportamento
social, são carregados de uma escala de valor. Uma cadeia de entendimentos e de
interesses que se elaboram subjetivamente e se expressa no comportamento. Por
isso, para ele, nem todo o comportamento praticado pelos indivíduos é social.
Só o é quando está direcionada a outra pessoa, envolve o interesse de reação de
outro ou busca uma resposta em outra pessoa. Esta pessoa com quem se rela-
ciona pode ser um conhecido, imediato, ou um ser construído, fictício, ou mesmo
um princípio a que se obedece, uma regra moral religiosa que se traduz em um
comportamento “ético” esperado.
Se não quero pecar não pratico “tal ato” por que temos as consequências no
“juízo final”. Este comportamento pode não ser ilegal, não ter qualquer tipo de
restrição jurídica e nem provocar uma reação social que o condene, mas mui-
tas pessoas não o praticam temendo uma suposta punição em uma “existência
pós-morte”. Este é um exemplo de um fato social inspirado em modelo. Nela, a
ética religiosa determina uma ação.
Os modelos, para Weber, são construídos nas relações sociais. Nelas somos
orientados pelas tradições das relações sociais que nos antecederam, as heran-
ças passadas. Onde os comportamentos e valores que nos identificam foram
construídos ao longo do tempo e passados pelas gerações. Esta herança se dá
nos ensinamentos religiosos, nas práticas do folclore, na educação de história,
nos valores passados no ambiente doméstico em que nossos pais reforçam valo-
res morais.

Weber e a Racionalidade Impura


IV

Também temos modelos construídos nas condições presentes, na vida que


levamos nas relações que estabelecemos. Aprendemos na busca de resolver pro-
blemas atuais a construção de sentidos a valores que herdamos, mas também
valores novos que incorporamos nas práticas diárias. Ao passar por uma difi-
culdade econômica tenho uma herança de valores que me fará lidar com esta
condição de uma determinada forma ou de outra. Dependendo das condições
que passe e como tenho que agir para superá-la pode reforçar os valores que
tenho ou modificá-los, até mesmo, rompê-los.
Há também a construção futura dos modelos de ação, são aquelas que se

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estabelece o sentido por meio do interesse de um resultado que virá depois da
ação praticada. Uma ação preventiva é, também, uma ação fundada no modelo
futuro. Um pai preocupado com seu filho pode abrir uma caderneta de poupança,
este é um exemplo de uma ação futura. Em algumas civilizações, já que falamos
do ato de poupar, a preocupação em prevenir uma possibilidade de crise pode
ter uma consequência direta em uma política econômica. Os japoneses têm, por
tradição, poupar. Logo, em alguns casos, aquecer a economia nipônica dá um
relativo trabalho, fazer os japoneses irem às compras não é uma tarefa fácil, já
que eles têm a tradição de economizar. No Brasil, pelo resultado do endivida-
mento das famílias brasileiras pelo crédito fácil, o modelo econômico é oposto.
Estes modelos se interagem dentro dos indivíduos, ao longo do tempo e
podem ganhar interpretações novas com as mudanças das condições presen-
tes. O que é uma tradição ligada a um ritual moral de responsabilidade pode
se associar apenas a comercialização de uma festa, um momento de êxtase sem
compromisso futuro. Se usarmos o casamento como um fenômeno social, sua
permanência com ritual de associação a união conjugal está perdendo importân-
cia. Hoje, mais de 50% dos casais, segundo dados do IBGE, do Censo de 2010,
não se casaram no civil ou religioso. Ou seja, a maioria dos casais não adota o
ritual do casamento, a cerimônia. Porém, as festas de casamento são cada vez
mais um espetáculo. Sua idolatria está na aparência requintada da cerimônia e
não na permanência da união. Se casar é uma festa, o casamento, para alguns,
é uma prisão.
Logo, muitos dos comportamentos que temos em nossa sociedade têm um
sentido diferente do que há décadas. O que antes poderia ser associado a um

PENSADORES CLÁSSICOS II
132 - 133

ritual de importância para a coletividade, hoje pode estar associado apenas a


uma superficialidade momentânea. A família está em constante transformação,
contudo ainda se preserva o modelo tradicional de família – patriarcal monogâ-
mica e consanguínea – ainda predomina como a busca de constituir uma união
estável. Porém, estatisticamente, segundo o Censo de 2010, novos modelos fami-
liares estão surgindo. A família tradicional está em decadência.
Se os modelos de ação são construídos nas relações sociais mediante as
heranças das gerações passadas, das condições presentes e do sentido futuro, os
modelos foram classificados por Weber em quatro características ideais: Racional
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lógico a fins ou finalidades; Lógico em relação a valores; tradicional e emocional.


Estes modelos serão explicados aqui separadamente, mas apenas como
uma forma didática para facilitar a compreensão, eles, na vida social, se dão em
conjunto. Jamais encontraremos um modelo agindo de forma pura. Por mui-
tas vezes, a existência de um determinado modelo está associado a outro. Um
exemplo, que veremos a seguir, é a tradição e a emoção. Estes modelos tendem
a se complementar.

Racional lógico a fins ou finalidade

Weber considera que a civilização ocidental tem sua organização fundada na


racionalidade lógica. Nossa forma de compreender as instituições, suas funções
e nossas relações com elas é toda orientada pela razão. Se levarmos em conside-
ração a legislação que o ocidente criou para orientar sua conduta em sociedade
ela é racional lógica. Há uma intenção racional na forma como nos organiza-
mos e buscamos manter nossas instituições.
Consideramos que a racionalidade é o condutor para o progresso humano e
que a vida em sociedade deve ser pautada na compreensão dos fenômenos sociais
pela racionalidade científica. É por meio dela que orientamos nossa ação para a
superação de problemas. Estes problemas podem ser de ordem coletiva ou par-
ticular. Se estivermos doentes devemos procurar um médico, se uma sociedade
tem uma epidemia, o Estado deve tomar atitudes racionais para tentar sanar o
problema, tanto de prevenção e cura.

Weber e a Racionalidade Impura


IV

A racionalidade lógica está sustentada na busca de atender interesses uti-


lizando uma ação fundada na razão objetiva. Uma busca determinada sempre
necessita de ações lógicas para que seja executada. Um dos exemplos utilizados
por Weber é o engenheiro que constrói uma ponte porque tem que estabelecer
uma ligação nas duas margens do rio. Outro exemplo é o aluno, se quer fazer um
determinado curso, matricula-se em uma universidade. Se uma mulher deseja
evitar ter filhos ela toma anticoncepcional, se deseja chegar a um determinado
lugar vê o caminho mais eficiente, seguro.
Quando observamos o comportamento social, podemos concluir que pela

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ação poderíamos deduzir a intenção de quem a pratica. Em uma sociedade
capitalista, na qual a economia exerce um papel fundamental em nossas vidas,
nosso comportamento com o dinheiro deveria ser racional lógico. Ele é apenas
um meio, o dinheiro, de atender as nossas necessidades. E se tenho necessidades
vitais para me manter e garantir a minha sobrevivência, eu devo fazer com que
o dinheiro cumpra esta função. Logo, deveria investir em atividades de qualifi-
cação ou aplicar em bens que me permitiram obter mais dinheiro para minha
segurança futura e melhora da minha qualidade de vida. Se não tenho qualifica-
ção e necessito melhorar minha condição de vida, posso investir em um curso
técnico ou superior e jamais utilizar de meu dinheiro para comprar um auto-
móvel diante desta necessidade racional e lógica.
Uma das preocupações que as famílias devem ter com o futuro de seus filhos
é a educação. Logo, o investimento em uma boa escola é uma ação racional
lógica. A consequência de investimento em educação não ocorre de imediato,
mas ao longo do tempo demonstra eficiência e gera resultados seguros. Segundo
dados na CNC (Confederação Nacional do Comércio), de 2006, as famílias que
são chamadas de emergentes (classe C) não tinham como preocupação vital a
educação dos filhos. Já, segundo o Ministério do Trabalho, em conjunto com a
Previdência e Educação, levantou que um em cada cinco jovens, entre 19 e 29
anos, não estão nem trabalhando ou estudando, é os chamados “nem-nem”. Em
um futuro próximo isto pode se transformar em um problema.
Se pensarmos no programa governamental Bolsa Família, um dos crité-
rios para receber o benefício é ter os filhos matriculados nas escolas e com a
vacinação em dia. Veja, eu tenho que associar um ato que deveria ser racional

PENSADORES CLÁSSICOS II
134 - 135

lógico dos pais, cuidarem da saúde e educação dos filhos, a um valor econômico
para poder ter a ação necessária atendida. A racionalidade lógica não seria um
determinante neste caso. Contudo, o governo, quando associa a atitude de res-
ponsabilidade com a educação e saúde ao recebimento de recursos financeiros,
está agindo de forma racional lógica, quem executa a conduta, as famílias que
recebem o benefício, não. O Estado e as famílias se relacionam, mas com mode-
los de ação diferentes, um racional e o outro não.
A economia, por exemplo, é em sua essência racional lógica a fins. Como
falamos anteriormente, a aquisição de um determinado bem implica na obten-
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ção de um determinado valor em dinheiro para poder adquiri-lo. Em uma


sociedade como a nossa, onde tudo se estabelece por uma relação econômica,
está verdade, o valor monetário do que está a nossa volta não deveria ser des-
prezado em momento algum. Marx acreditava que isto seria uma forma de dar
ao homem uma consciência das suas relações sociais, percebendo a dinâmica
da sociedade capitalista. Para Weber, esta concepção puramente racional lógica
não existe de forma pura e não é determinante única das atividades econômicas.
Quando falamos de economia, da vida cotidiana permeada pelas condições
econômicas, temos que entender outro modelo de ação, o lógico em relação a
valores. E é sobre ele que vamos tratar a partir de agora.

Lógico em relação a valores

Uma crença, um valor moral, um sentido emocional que exija um ritual asso-
ciado a um comportamento esperado. A racionalidade é uma exigência aparente
da forma como avaliamos o comportamento do outro, mas o valor a ela associado
pode ser um determinante para o comportamento que nossa busca de raciona-
lizar não consegue compreender de imediato, a não ser quando analisamos com
mais cuidado. Por isso, há uma associação de um determinado valor a um com-
portamento que se pratica. Uma necessidade de se cumprir um ritual para atingir
um benefício que nem sempre está denunciado diretamente ao comportamento.
Pelo senso comum, afirmamos que os alemães são orgulhosos, assim como
os japoneses. Comentamos do nacionalismo norte-americano e do bom humor

Weber e a Racionalidade Impura


IV

italiano, a hospitalidade brasileira como características de determinados povos.


Estas características são esperadas quando nos relacionamos com alguém que
tenha como identidade uma destas nacionalidades e sua característica especí-
fica. Não espero de um italiano a mesma passividade de um nipônico diante de
uma mesma situação.
Estes valores podem ser apenas fantasiosos, não se comprovam em sua maio-
ria, mas pode ter uma expressão de verdade diante de determinadas condições
em que se exija um comportamento mais adequado para um do que para outro.
Podemos considerar, por exemplo, a destruição de um país, como aconteceu

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com os japoneses quando aconteceu o tsunami em 2011. Assolado, o país preci-
sou agir rápido e teve que se organizar para superar problemas ocasionados pela
catástrofe. A procura de sobreviventes, a restauração da rede de energia, recu-
peração de estradas, tratamento de doentes e abastecimento de água e alimento
para a população, entre outras tantas necessidades. O mundo assistiu a orga-
nização da sociedade no dia a dia, sua capacidade de cooperar em momentos
críticos, esperar na fila para obter água, alimento, pegar um transporte coletivo,
abastecer um veículo, usar um telefone. Esta prática coletiva está além da racio-
nalidade, está ligada ao valor moral que atinge o conjunto social.
Esta condição que se estende por um número de indivíduos e que os iden-
tifica por um comportamento comum é que chamamos de valor associado. Os
japoneses foram racionais ao se comportarem de forma organizada, mas tam-
bém tinha um sentido comum de valor ao considerarem que esta prática levaria
ao restabelecimento de seu país, de sua nacionalidade que lhe é tão cara. A honra
é para algumas comunidades algo “caro”, que deve ser preservado e estar pre-
sente diante de situações em que aquilo que se deseja preservar está
ameaçado. Colocamos no início desta exposição sobre os
indianos e sua organização, o quanto eles se com-
portam em determinado momento associados
a um valor que não existiria em outra civi-
lização, é disto que estamos falando aqui,
neste parágrafo.
A economia tem em seu desenvol-
vimento inúmeros casos que podem nos
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PENSADORES CLÁSSICOS II
136 - 137

servir para falarmos sobre o comportamento lógico em relação a valores. O


dinheiro, como falamos, é um meio, mas onde ele é aplicado depende da inten-
ção de quem o tem. Desta forma, o investimento ou o consumo, usar o dinheiro
para aplicar e obter mais ou gastar para adquirir objetos de prazer imediato é
uma definição de quem tem o dinheiro, irá depender dos valores do ser humano
diante da condição econômica. Pessoas com a mesma quantidade de dinheiro,
tendo a mesma escolaridade e acesso as mesmas informações sobre objetos de
consumo e possibilidades de aplicação financeira podem não ter o mesmo com-
portamento. Na maioria de uma sociedade este pode ser um comportamento
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comum, como falamos dos japoneses anteriormente.


Outro comportamento envolvendo a economia e que podemos analisar é
o conceito de trabalho. A dedicação a uma determinada atividade. Em deter-
minado ambiente e ao longo de gerações o trabalho pode ter sido considerado
um elemento vital para o sucesso. Podemos aprender em nossa infância que
foi mediante o trabalho que nossos antepassados construíram a possibilidade
do presente. Que a riqueza que usufruímos é fruto de uma dedicação ao labor.
Diante disso, estaremos mais propensos a nos realizarmos no trabalho. A ati-
vidade profissional pode ser buscada ainda na juventude pelo prestígio que ela
apresenta junto aos demais membros de uma comunidade.
Mas se pensarmos no sentido inverso, podemos chegar a um estímulo con-
trário, a negação ao trabalho. Em sociedades onde existiu a escravidão sobre
um grande número de indivíduos, onde o trabalho é considerado uma atividade
exclusiva daqueles que não merecem respeito, a dedicação ao trabalho pode ser
um desestímulo, uma rejeição. Se a escravidão foi abolida, o preconceito em rela-
ção ao trabalho continua, ou acaba por se associar a uma determinada casta ou
raça considerada inferior.
No Brasil, o processo de abolição da escravidão não conseguiu superar a asso-
ciação dos negros a uma condição de trabalho inferior. Contudo, se rompeu a
escravidão e o ex-escravo acabou por herdar a rejeição ao trabalho. A violência
praticada na escravidão também foi uma forma de educar para a negação da ati-
vidade laboral. Durante décadas após a escravidão, com a chegada do imigrante
europeu principalmente, a desvalorização dos afrodescendentes no ambiente
de trabalho foi uma herança do modelo escravocrata. Se alguém foi convencido

Weber e a Racionalidade Impura


IV

durante sua vida de que o trabalho não é sinônimo de dignidade, este alguém é o
ex-escravo. Seus filhos puderam herdar este sentido e sofrer suas consequências,
na atualidade, se há uma herança é a da memória e da superficialidade da relação
da cor com o trabalho. Afinal, estamos vivendo a sociedade que nega a existência
do trabalho como condição para a obtenção de qualquer necessidade material6.
Logo, o trabalho é uma atividade racional, mas a dedicação a ele, ou a valo-
rização social de sua prática deve ser considerada em relação ao valor que ele
estabelece. Em um de seus trabalhos, “a ética protestante e o espírito capitalista”,
Max Weber analisa o trabalho de operárias protestantes, pietista que se concen-

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tram de forma singular em relação ao trabalho, quase não cometem acidentes,
se igualando às operárias conservadoras:
Uma imagem retrógrada da forma tradicional do trabalho é atualmente
apresentada muitas vezes por operárias, especialmente pelas que não
são casadas. [...] O contrário se dá geralmente e este não é um ponto
insignificante de acordo com a nossa visão, apenas com moças com uma
formação especificamente religiosa, em especial a pietista. Ouve-se fre-
quentemente, e confirma-o a investigação estatística, que de longe, as
melhores oportunidades de uma educação econômica são inegavel-
mente encontradas neste grupo. A capacidade de concentração mental,
tanto quanto o sentimento de obrigação absolutamente essencial para
com o próprio trabalho, estão aqui combinados com uma economia
estrita que calcula a possibilidade de altos vencimentos, um autocon-
trole e uma frugalidade que enormemente aumentam a capacidade de
produção (WEBER, 1980, p. 193).

Logo, pela colocação de Weber, a formação religiosa influencia o desempenho no


trabalho e determina um ritmo à atividade econômica. Investir no trabalho para
obter um determinado interesse atendido, buscar realizar pela atividade profis-
sional um reconhecimento religioso. O sucesso profissional é então uma fusão
da dádiva divina e o resultado de uma disciplina que se associa à ética religiosa.
Em nossa sociedade, onde associamos a atividade econômica apenas à aqui-
sição de bens e não compreendemos a lógica racional da economia, estamos
6 Na próxima unidade nós vamos analisar as condições em que a sociedade atual compreende a existên-
cia social. Vamos detectar que aquilo que foi considerado uma unanimidade para os pensadores sociais
clássicos, o trabalho, agora desaparece da compreensão do homem contemporâneo como uma condição
vital de existência. Estamos vivendo o mundo do “não trabalho”. Nunca se propagou tanto a ideia de que
o acesso aos bens de consumo, que a capacidade de exercer certas funções, não estão relacionadas à ativi-
dade laboral. Nos filmes, novelas e seriados na TV ninguém mais trabalha, apenas vive a vida que parece
ser fruto de um encantamento, uma magia. Será que isto já está fazendo efeito na sociedade atual?

PENSADORES CLÁSSICOS II
138 - 139

gerando uma problemática entre o desejo de ter pela simples emotividade, e


sem um valor associado que gera o merecimento, o valor social do consumo
não estabelece associado a ele um comportamento de produtividade laboral, ou
seja, o trabalho.
Vale lembrar que a educação deve ser analisada por este aspecto do valor
associado à dedicação do conhecimento. A busca de compreender racionalmente
o mundo a nossa volta tem que ter um sentido que vá além da objetividade de
estudar. A razão lógica que justifica o estudo já é conhecida e por muitas vezes
vira apenas retórica. Agora, compreender os benefícios culturais que a educação
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gera está associado a valores agregados a busca do saber. Enquanto estivermos


valorizando os que não têm uma dedicação ao estudo, estimularmos os benefí-
cios aos que se desviam da conduta do conhecimento, vamos colher problemas.
As relações que estabelecemos na vida profissional, no ambiente familiar e
nas atividades de lazer tem pouco sentido de reconhecimento à educação como
ato de valor. Deveríamos reverter este aspecto. O estímulo à educação deve com-
preender não só as associações racionais, mas as demais atividades do cotidiano.
Os méritos dos mais dedicados devem associar as posições sociais de maior rele-
vância. Se tivermos os nossos expoentes sociais associados ao conhecimento, a
busca de competência intelectual, científica e técnica levaríamos os demais ele-
mentos sociais a perceber a associação do sucesso à educação.
Mas agora vamos tratar dos demais modelos de ação que ainda restam abor-
dar aqui, o emocional e tradicional, os modelos que se completam e, também,
determinar as ações sociais, segundo Weber.

Emocional

O modelo emocional é aquele no qual o comportamento é movido por um sen-


timento, seja ele de afetividade ou de rejeição, de sedução ou ódio. A vingança
também pode ser considerada um modelo determinante da ação social. Vivendo
um momento de êxtase coletivo, uma paixão por determinado evento político,
o comportamento da sociedade pode ser alterado. A associação da emotividade
à tradição pode ser um exemplo desta intenção.

Weber e a Racionalidade Impura


IV

Na Alemanha, o que levou o país à Segunda Guerra Mundial (1939-1945)


foi o sentimento de vingança do povo alemão, a busca de um revanchismo pela
humilhação sofrida no final da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Este
mesmo sentimento foi um campo fértil para o surgimento do nazismo fundado
em uma exaltação do germanismo7. Weber considera que lideranças políticas
que ascendem com um sentimento de identificação com o líder como uma rela-
ção de emotividade carismática.
Em uma sociedade pode ocorrer uma emotividade associada a fatos que aba-
lam o sentimento de unidade coletiva. Como já vimos o exemplo da Alemanha

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entre as duas guerras mundiais. Mas há a emotividade que pode levar a depres-
são e descrença na unidade. Em alguns países o sentimento de depressão gerou
comportamentos preocupantes. Se pensarmos na grande crise econômica durante
a quebra da Bolsa de Nova Iorque, em 1929, o número de suicídios cresceu
significativamente. Não podemos negar o sentimento de desespero que levou
uma parte dos suicidas a colocarem fim em suas vidas por terem perdido todo
o seu patrimônio. Em outros países, a falência não traria este desespero, prin-
cipalmente naqueles em que a oportunidade econômica não é vista com uma
condição para todos.
No extremo oposto da emotividade que leva ao suicídio vale descrever os
kamikazes na Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Eles morriam pela pátria
em um sentimento de nacionalidade. A vida pela glória do japonês. No Brasil,
vale ressaltar, imigrantes japoneses não aceitaram a derrota na Segunda Guerra
Mundial e considerava uma desonra quem a admitisse. Uma série de ações de
vingança e luta entre os membros da comunidade nipônica demonstra o senti-
mento patriótico mesmo não vivendo no Japão.
Nas relações individuais, o modelo emotivo é facilmente percebido. Quantas
vezes não praticamos o sentimento de vingança ou por paixão promovemos
ações irracionais. Em diversos momentos é a emotividade que, junto com outros

7 O sentimento germanista acompanha a história alemã em diversos momentos. Entre eles o da unifi-
cação em 1871, chamado de II Reich. O orgulho germânico foi também o que levou a Primeira Guerra
Mundial (1914-1918) quando os germânicos consideravam que estava realizando o apogeu de sua glória, a
supremacia sobre o mundo. Contudo, a derrota na guerra levou ao extremo da indignação e humilhação.
Principalmente, se levarmos em consideração o acordo feito entre a Alemanha e as nações vencedoras no
Tratado de Versalhes. A Alemanha foi obrigada a passar recursos financeiros, territórios e ser desarmada,
além de ter sido considerada a única culpada pela guerra. O sentimento de revanche se propagou entre os
germânicos e acabou por gerar um ambiente favorável para a ascensão do nazismo.

PENSADORES CLÁSSICOS II
140 - 141

modelos, impulsiona a nossa relação com outras pessoas. Quando observamos


a sedução fica mais nítido o sentido emocional. Agimos para atrair a atenção,
ter o reconhecimento, se destacar em meio a uma multidão. Em empresas se
utiliza da emotividade para incentivar determinados tipos de comportamento
no trabalho. Na escola, a emotividade pode ser um grande aliado na busca de
melhorar o desempenho dos alunos, mas também, por ela, se pode prejudicar o
desempenho escolar. Em diversos ambientes de ensino é o aluno com um mau
comportamento que é retratado como o destaque entre os colegas8.
Mas a tradição também é um dos modelos de ação trabalhados por Weber
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e é o que esclareceremos agora.

Tradição

A tradição é um modelo de repetição associado a um valor que permanece. Muitas


vezes o comportamento permanece, mas o valor acaba se desassociando a ele.
Uma tradição é a condição em que se mantém um determinado comportamento
arraigado em uma sociedade e que gera um sentimento (modelo emocional)
muitas vezes de segurança. A permanência de um regime de governo, um ritual
religioso, uma comida típica e uma tradição de liderança são alguns dos exemplos.
O comportamento tradicional, em sua origem, poderia estar associado a uma
razão lógica ou a um valor, mas com o passar do tempo, sua permanência ganha
um sentido próprio e se perpetua relacionado a um número significativo de ele-
mentos, muito além do que lhe deu origem. O casamento pode ser considerado
uma tradição, mas nem por isso associado à manutenção de um casamento com
a construção de uma relação duradoura. Nas comidas típicas, a permanência
pode ser uma associação de valores comerciais, ou mesmo de identidade social
com um passado sem que o alimento continue sendo uma expressão lógica. Na
origem da comida típica há uma condição de ambiente, clima, disponibilidade
de ingredientes que podem não existir mais, mas o alimento ainda é produzido.
8 É comum que alunos que têm um comportamento agressivo sejam admirados dentro do ambiente escolar.
Considerados um objeto de desejo já que nos programas de televisão, seriados e filmes, eles são vistos
como os heróis, elementos de caráter forte. Uma associação ridícula que pode ter consequências desastro-
sas. Um massacre no cinema durante o lançamento do filme “Batman” foi uma demonstração do culto a
violência e de quanto ela pode ter um preço alto.

Weber e a Racionalidade Impura


IV

Na política podemos exemplificar a condição do mando, da associação do


poder com determinados grupos sociais. Ao se repetir o mando ao longo de
gerações, se associa o poder a determinados personagens e sua hereditariedade.
Nos países onde a monarquia se mantém, pode-se dizer que é fruto de uma tra-
dição que não encontra respaldo racional lógico. O modelo monárquico inglês,
com seu parlamento, é um bom exemplo. O império japonês também poderia
ser colocado como uma manutenção tradicional. No Brasil, a política coronelista,
o mando de determinadas famílias em regiões de predomínio agrário ainda se
mantém. Por mais que os coronéis tiveram sua origem em uma sociedade agrá-

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ria exportadora durante a primeira república, e o mando do proprietário de terra
remonte o período colonial, as oligarquias agrárias ainda continuam tendo uma
forte influência sobre o poder no país.
A tradição deve ser entendida como uma condição importante para que cer-
tos comportamentos se realizem e acabem por valorizar a prática necessária em
uma sociedade. Hábitos repetidos ao longo do tempo e que demonstram civili-
dade, acabam por valorizar uma relação estável. A preservação da democracia
como um ambiente político é uma racionalidade, mas também pode ser uma
expressão de tradição ao longo do tempo.

Considerações Finais

O estudo dos clássicos é fundamental para podermos alicerçar qualquer análise


dos fenômenos contemporâneos. Por mais que adotemos posturas de autores da
atualidade, o conhecimento das teses contemporâneas é fundamental. Ela permite
um embasamento teórico coerente que garante uma base sólida de análise para o
enriquecimento de informações e possibilidades de compreensão da vida social.
Os clássicos como Marx e Weber são autores que mudaram a estratégia de
ação sobre a sociedade. Em Marx se compreendeu não só uma forma crítica de
entender a sociedade capitalista, como também, um projeto de sociedade que
se propôs superar as relações capitalistas de produção.

PENSADORES CLÁSSICOS II
142 - 143

Já para Max Weber, em sua análise cultural, quando traz a compreensão da


economia com sua relação com a ética religiosa, ele avança sobre um campo ino-
vador em sua época. Entender o efeito das culturas sobre a vida material, sobre
o comportamento concreto. Em sua principal obra “A ética protestante e o espí-
rito capitalista” a história da civilização ocidental ganha um contorno novo, a
contribuição econômica para o sentido da lucratividade e da materialidade do
capitalismo.
Max Weber vai além da perspectiva meramente objetiva da análise social. Ele
quer entender os sentidos que os sujeitos que praticam a ação dão a ela. Qual é a
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orientação do comportamento que será relacionado a outro. O legado cultural de


uma nação pode influenciar seu destino econômico, pode potencializar momen-
tos que se tornam únicos e promovem guinadas significativas na vida social.
A realidade econômica para sociedades que construíram um legado cultural
distinto sobre o enriquecimento pode ter influências diferentes para as práticas
econômicas. Para Weber, sociedades protestantes, principalmente puritanas, e
católicas dão um significado diferente ao enriquecimento.
Estas diferentes análises serão fundamentais para a compreensão dos temas
que seguem em nossa última unidade.

Considerações Finais
As piadas envolvendo afrodescendentes podem ser consideradas um ato de preconcei-
to? Para pesquisadores que levantaram o conteúdo de piadas que envolvem os negros
(pretos e mulatos) elas são uma expressão do preconceito, de uma desvalorização do
descendente afro. A questão do preconceito está ligada diretamente a discussão sobre
as cotas raciais, como ela pode superar o preconceito. Leia:

Isabela Vieira

Repórter da Agência Brasil

Rio de Janeiro – Piadas sobre negros ótipos.


ainda são usadas para desqualificar e
marginalizar essa parcela da população, É o caso da personagem Adelaide, do pro-
critica o professor da Universidade Esta- grama Zorra Total, da TV Globo. No quadro,
dual Paulista (Unesp) Dagoberto José da ela é uma mulher negra, pobre, sem dentes,
Fonseca, que pesquisa o tema desde a que se refere aos cabelos da própria filha
década de 1980. “Esse tipo de piada, de como “palha de aço”. As aparições da per-
brincadeira, que não é nada inocente, tem sonagem estão sob análise no Ministério
o objetivo de rebaixar, de inferiorizar, de Público do Rio de Janeiro, que vai avaliar se
desqualificar o negro, de mostrá-lo como há racismo no programa, a pedido da Secre-
um animal, incompetente ou estigmatizar taria de Igualdade Racial (Seppir).
uma situação de pobreza pela qual passa
boa parte dessa população”. “A personagem Adelaide está colocada
dentro dos marcos do passado. Havia
Doutor em Ciência Sociais, ele come- uma leitura nas piadas de que os negros
çou a pesquisar o tema depois de ouvir eram pobres, desdentados e feios. Ela [a
de um amigo uma piada racista ainda na personagem] não rompe com o passado,
faculdade. A anedota deu origem a uma como Mussum, Grande Otelo e Chocolate.
tese de mestrado que, engavetada desde Adelaide tem o nariz e os lábios exagerada-
então, foi resumida e será publicada no mente alargados e o cabelo despenteado,
livro Você Conhece Aquela? A Piada, o Riso em um clichê, que, no final, a compara a
e o Racismo à Brasileira, com previsão de um gorila”, criticou.
lançamento em dezembro.
Sobre o tema da sexualidade, em um dos
Em 133 páginas, o professor da Faculdade quatro capítulos da obra, Fonseca tam-
de Ciências e Letras da Unesp reúne piadas bém critica o mito da potência sexual, no
em que os protagonistas são negros e apa- caso dos homens, ou de lascívia, no caso
recem como “vadios, malandros, ladrões”. das mulheres. Segundo o professor, essas
Em algumas dessas anedotas são compara- ideias surgem na colonização tanto no Bra-
dos a doenças degenerativas, como câncer, sil quanto na África e refletem teorias de
ou têm características físicas, como o nariz um momento histórico em que o negro
e a boca, exageradas, reforçando estere- era tido como inferior.
144 - 145

“Quando a gente pensa em um negro bru- e tenham mais dificuldade para aprender.
tamonte, está associando o negro a um
tarado, a um cavalo, a um touro, ou seja, Em relação à personagem Adelaide, a Cen-
voltamos para a questão da animalização”, tral Globo de Comunicação informou que o
ressaltou. “Do outro lado, quando se remete humorístico “é notadamente uma obra de
à mulher negra, há ideia de lascividade, ficção, cuja criação artística está amparada
de promiscuidade. Tudo vinculado ao pro- na liberdade de expressão”. A nota acres-
cesso colonial, em que o dono do corpo era centa ainda que a personagem foi inspirada
quem escravizava”, acrescenta. na avó de seu intérprete e criador, o ator
Rodrigo Sant’anna.
Para o professor, por trás das piadas racistas
há uma intenção de buscar a “padroni- Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.
zação” do corpo, da beleza, por meio da com.br/noticia/2012-11-20/pesquisador-
valorização de um “ideal branco”, o que tem da-unesp-diz-que-piadas-racistas-refor-
impactos negativos, especialmente, entre cam-padrao-colonialista-e-estereotipos>.
as crianças negras. A tendência, explica o Acesso em: 10 dez. 2012.
pesquisador, é que elas se sintam inferiores

No Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), mais da metade dos inscritos se declara-
ram afrodescendentes. Uma demonstração de que a consciência afra está crescendo ou
a condição está sendo usada para uma entrada mais fácil nas universidades públicas.
Leia a reportagem abaixo e reflita:

Mais da metade dos inscritos para o Enem 2012 são negros

Carolina Gonçalves

Repórter da Agência Brasil


30/10/2012 - 8h09
Educação

Brasília – Dos mais de 5,7 milhões de par- Nacional de Estudos e Pesquisas Educa-
ticipantes da edição deste ano do Exame cionais Anísio Teixeira (Inep), órgão do
Nacional do Ensino Médio (Enem), 2,4 Ministério da Educação (MEC) responsá-
milhões se declararam pardos; 694 mil, pre- vel pelo exame.
tos e 35 mil, indígenas. Os dados fazem
parte de balanço divulgado pelo Instituto A distribuição por raças é um dos recor-
tes previstos na Lei de Cotas, publicada há A receita de quem já foi beneficiado pelo
duas semanas. Os novos critérios terão de exame parece coincidir com as impressões
ser incluídos nas regras de seleção para de quem vai enfrentar a prova pela primeira
universidades públicas por meio do Enem. vez. Aluna do último ano do ensino médio
no Colégio Setor Oeste, escola pública de
A nova lei obriga instituições federais de Brasília, Hyasmin Stephanye Leite se pre-
ensino superior a destinar progressiva- para para a prova desde janeiro. “Busco
mente uma parte das vagas para estudantes métodos na internet, em apostilas. Tenho
que frequentaram todo o ensino médio em estudado três horas por dia. Poderia ser
escolas públicas. O objetivo do governo é mais, mas tenho inglês à tarde”, contou.
atingir o índice de 50% das vagas em quatro
anos. Um dos fatores a serem considerados Para Hyasmin, o colégio oferece a estru-
é a raça declarada pelo candidato. tura de que ela precisa. “Depende mais do
aluno do que da escola. Não podemos nos
As provas do Enem serão realizadas em 1,6 comparar a alunos de escolas particulares,
mil municípios de todo o país no próximo temos que nos comparar a nossa dedica-
fim de semana (3 e 4 de novembro). ção. Se você estuda, não é a escola que faz
diferença, é o aluno que faz”.
A estudante Fernanda Brito Félix, 19 anos,
conseguiu, no Enem de 2011, a vaga que Os números do Inep também revelam
buscava na Universidade de Brasília (UnB). que a maioria dos participantes do Enem
Mas o curso possível não era o sonhado. 2012, que tem recorde de inscrições e
Com o primeiro semestre de pedagogia participações confirmadas, é composta
garantido, a aluna decidiu participar, nova- por mulheres. As brasileiras respondem
mente, do Enem este ano, para tentar a por 59% das inscrições, com 3,4 milhões,
transferência para o curso de direito. enquanto os homens somam 2,3 milhões
(41%).
“Só estudei em escola pública e as esco-
las públicas não têm capacidade alguma O estado de São Paulo tem o maior número
de preparar um aluno para um vestibular de inscritos, com 932,4 mil, seguido de
de [universidade] federal”, disse Fernanda. Minas Gerais (653.074), da Bahia (421.731)
Para ela, o Enem “acaba sendo uma chance”, e do Rio de Janeiro (408.902).
mas há dificuldades como a falta de pre-
paro dos alunos no ensino médio. “A prova Do total de inscritos, 4 milhões foram isen-
é cansativa e o aluno não tem essa prepa- tos da taxa de R$ 35 por serem alunos de
ração na escola ou conteúdo. O segredo é escolas públicas ou pertencerem a famílias
estudar muito”. de baixa renda.

Edição: Juliana Andrade e Lílian Beraldo


146 - 147

1. Uma das discussões importantes em relação as contas raciais que


divide os dois teóricos que vimos nesta unidade, Marx e Weber, pode
ser seu ponto de partida para tentar entender o problema do precon-
ceito e das cotas sociais. Os afrodescendentes estão na faixa de renda
mais baixa do país. As mulheres negras são a maioria dos que não tem
trabalho e nem estão estudando. O problema é do preconceito racial
que mantém a miséria econômica, ou é a miséria que determina o pre-
conceito racial? (Ouça as reportagens contidas no “aprofundamento
da questão”, o conteúdo da unidade e responda).
2. Uma das formas de fixar o conteúdo sobre Marx e Weber é buscar
neles a compreensão diferenciada sobre os fatores que determinam
o comportamento social. Descreva as bases de análise dos dois auto-
res e suas diferenças.
Material Complementar

MARX, Karl. Sociologia. Tradução Maria Elisa Mascarenhas e


Fausto N. Pellegrini. (Coleção Grandes Cientistas Sociais) São
Paulo: Ática, 1988.

WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalis-


mo. In: WEBER, M. 1864-1920. Textos selecionados. (Coleção
Os Pensadores). Seleção e tradução de Mauricio Tragtenberg.
São Paulo: Abril Cultural, 1980.

Para você se aprofundar


Antropóloga Marivânia Araújo fala sobre a questão racial e defende política de cotas
nas universidades públicas:
<http://www.cbnmaringa.com.br/noticias/216666-Cotas-raciais-representa-vitoria-
para-os-negros.html>.

Já a doutora em Educação Rachel Brotherhood critica o sistema de cotas e considera


que o sistema discrimina e não privilegia competência, meritocracia:
<http://www.cbnmaringa.com.br/noticias/196886-Cotas-raciais-expressam-
preconceito-mas-nao-se-pode-negar-o-bom-desempenho-de-alunos-cotistas-e-o-
que-afirma-a-pedagoga-e-doutora-em-Educacao-Rachel-Maya-Brotherhood.html>.

PENSADORES CLÁSSICOS II
Professor Me. Gilson Aguiar

OS DILEMAS DA

V
UNIDADE
ATUALIDADE

Objetivos de Aprendizagem
■■ Permitir a noção da organização da sociedade atual estabelecendo
a relação entre a nova ordem da produção mundial e as condições
estabelecidas pela sociedade de consumo.
■■ Demonstrar a tendência dos fenômenos sociais em serem tratados
pela particularidade. O quanto estamos perdendo a noção das
condições que geram a vida social.
■■ Detectar e analisar os discursos de infantilização do homem
contemporâneo, a perda da compreensão lógica e a propagação de
conflitos sem ideologia.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Sociedade de consumo e a lógica dos ambientes voltados à aquisição
dos objetos
■■ Perda de ideologia e os conflitos sociais propagados
■■ A decadência da liberdade e a lógica da individualidade
150 - 151

Introdução

Caro(a) acadêmico(a), pretendemos fazer uma análise rápida das condições em


que as relações sociais estão se apresentando na atualidade. Uma série de confli-
tos está em andamento, grande parte deles sem lógica. Apenas acompanhamos,
como espectadores, a violência transmitida pelos meios de comunicação sem
nos sentirmos participantes, mas talvez ela esteja mais perto do que pensamos,
nós mesmos construímos nossa forma de violência.
O ambiente de violência está sendo construído em nosso dia a dia e tem
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

tomado dimensões preocupantes. Desde o criminoso que planeja o extermí-


nio por vingança própria à violência do crime organizado, estamos vivendo um
período em que a promoção da guerra generalizada parte de um único “comba-
tente” a uma tropa treinada de terroristas.
Em ambos os casos o alvo é sempre um civil desprotegido. Aquele que pro-
cura a agressão não quer correr o risco de combater com alguém a sua altura.
Ele prefere vítimas fáceis. No fundo, os agressores de hoje são covardes e temem
a morte que se propõe a propagar. Este egoísta agressor não é um anormal, ele
está entre nós, pior, é um de nós.
Nesta unidade quero demonstrar que o maior problema que atravessamos não
é conter os mal intencionados que espreita de um lugar “maldito”, aquela fantasia
que carregamos de que o criminoso tem endereço certo. O nosso “elemento” peri-
goso tem uma aparência normal e frequenta os lugares que consideramos seguros.
Vamos compreender com nossa análise que a sociedade de consumo tem
construído um ambiente educativo, mas que não gera consciência e sim reafirma
o desejo e o coloca acima de qualquer coisa. Não há a convivência do homem
com outros homens, estamos agora buscando desesperadamente o convívio
com os objetos, eles nos dão sensações que nenhum outro ser humano nos dá.
Por isso, nossa agressividade vem do mundo centrado nos desejos individuais.
Vivemos em uma sociedade onde os seres humanos têm pouca tolerância à frus-
tração. Nos ambientes de consumo ele é estimulado a ter sem contenção tudo o
que quer. Os produtos agora estão expostos ao alcance das mãos, depois de tocá
-lo quem poderá tirá-lo das mãos.

Introdução
V

Um Mundo em Crise

O que estamos pretendendo nesta unidade é a compreensão


de que o mundo atual vive um impasse. Uma busca de compre-
ender qual o sentido da vida em sociedade e qual será o futuro
da humanidade nos próximos trinta anos. E talvez aqui haja uma
curiosidade, parece que trinta anos virou muito tempo, quase um
futuro longínquo para muitos. O tempo do agora nunca ficou tão

©shutterstock
efervescente com a busca de uma realização imediata. Queremos

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
tudo o que desejamos e não temos a menor noção do que somos.
Queremos nos fazer por meio de uma coleção de imagens asso-
ciadas aos bens de consumo. Imagens que estão por todos os cantos e sempre
disponibilizando a venda de algum produto.
Por isso, vamos começar esta unidade retratando uma imagem disponível em
diversos magazines, shoppings, enfim lojas de roupas nas mais diversas cidades
do mundo. Che Guevara, o líder revolucionário argentino, conhecido por sua
atuação na Revolução Cubana (1959)1, um ícone do século XX, estampado em
uma camiseta a venda em uma loja de grife internacional. Este produto comum,
que muitos que estão lendo este texto já devem ter visto, pode estar sendo ofere-
cido ao lado de uma loja de bebidas com um emblema da Coca-Cola estampado
na entrada. Pode-se ver um jovem em uma das lanchonetes do McDonald’s ves-
tindo esta camiseta e saboreando um lanche, um BigMac, por exemplo. Claro
que Coca-Cola, McDonald’s, Che Guevara e BigMac são tão populares quanto
Adidas, Nike, Hering, Apple, Microsoft e Pepsi, estas são apenas algumas das
marcas mundiais que dominam nosso dia a dia. Estampadas por todos os luga-
res são símbolos. O que aconteceu com Che Guevara que passou a povoar o
mundo dos produtos e das grifes?
O revolucionário, crítico da sociedade capitalista, se perdeu no mundo do
1 Seduzido pelo projeto revolucionário defendido por Fidel Castro, o jovem médico argentino se encontrou
com o advogado cubano no México, onde traçou os planos para a ação revolucionária em Cuba. O movi-
mento bem-sucedido implantou o regime socialista na ilha do Caribe, por mais que não tenha sido esta a
intenção inicial dos revolucionários. O movimento nacionalista, inicialmente, acabou por adotar o regime
socialista, o qual persiste até hoje no território cubano. Ernesto Che Guevara se tornou um dos líderes da
revolução, entre suas maiores defesas estava a resistência ao americanismo e a luta contra a influência dos
Estados Unidos na América Latina. Na luta contra a influência norte-americana e desejando propagar
o movimento para outros países, passou a liderar uma guerrilha na Bolívia. Acabou morto por tropas
bolivianas em 1967.

OS DILEMAS DA ATUALIDADE
152 - 153

consumo. Ele se transformou em um objeto de colecionadores de sentidos con-


traditórios, mas que se sentem coerentes independentes de onde estejam. Estamos
vivendo em um mundo recheado de símbolos, como pequenas peças, passíveis
de serem dispostas em um mosaico cuja mensagem só é coerente para quem o
organiza. Vale lembrar que o organizador carece de profundidade para entender
o mundo que o cerca, por isso, sua obra de união simbólica é pobre.
Nossa compreensão está carregada de informações como em nenhuma outra
sociedade. Nunca estivemos tão perto de tanto símbolos e significados. A socie-
dade atual está propagando imagens e mensagens em um turbilhão difícil de ser
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

assimilado, diria que impossível. Recebemos a todo o momento inúmeros ele-


mentos que nos chegam prontos ou associados a valores que desconhecemos ou
desassociamos de sua origem. A família tradicional, por exemplo, virou “garota
propaganda” de seguro de vida, viagens de fim de ano, automóveis, margarina e
produto de limpeza, mas estatisticamente está decadente e cada vez mais perde
seu lugar como família predominante.
Assistimos a debates sobre temas superficiais se transformarem em polê-
mica e envolverem sociedades em discussões sem fim. Muitos são chamados a
se posicionar, tomar partido sobre temas que dizem respeito à vida privada. O
dilema particular vira um espetáculo onde o que está sendo discutido é apenas
um pretexto para gerarmos a sensação de inteligência.
Recentemente, na Assembleia Legislativa do Paraná, um deputado defen-
deu a implantação de lei estadual que proibisse colocar tatuagem em menores
de 18 anos. Segundo ele, os jovens podem se arrepender e ficarão marcados
para sempre. Em Nova Iorque, a prefeitura proibiu a venda de refrigerantes em
embalagens maiores que 500 ml. Nestas duas medidas há um ponto em comum,
estamos transformando a representatividade coletiva no campo de discussão de
decisões pessoais. A tatuagem ou o copo de refrigerante passa pela competência
de um indivíduo desejá-los ou não. Se o consumo de ambos trará um prejuízo a
quem fez a escolha por que a sociedade deverá intervir? Por que estamos assu-
mindo o dilema pessoal como um problema social?
Discussões intermináveis sobre aborto, inclusão social, deficiência, emprego,
dependência química e muito mais, que deveriam estar sendo tratados com luci-
dez, fundados em levantamentos estatísticos e com posições ideológicas definidas,

Um Mundo em Crise
V

são tratados no calor da hora, pela especulação emotiva ou o sensacionalismo


de notícias distorcidas ao prazer da alucinação que exalta a emotividade des-
necessária. Os homicídios nunca são discutidos dentro de um contexto social.
Sempre estamos à volta com o drama familiar, com o dilema de quem sofre a
violência e a recebe como consequência.
Nada estampa melhor o raciocínio raso do que a lógica propagada da “justiça
pelas próprias mãos”. Os apresentadores de televisão que vive do sensacionalismo
gritam aos quatro cantos: “bandido bom é bandido morto”. Nosso herói cine-
matográfico é o justiceiro que extermina o malfeitor, mas nunca explica como

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
produzimos os delinquentes e os corruptos exterminados em uma proporção tão
intensa. Por mais que se eliminem, eles voltam cada vez mais fortes e armados.
A indústria do crime só apresenta o criminoso, ele como uma alma condenada
pela natureza do crime ou por um drama particular. Reportagens que tratam
da violência e tentam entendê-la nos bastidores costumam ter conclusões tolas.
O bandido é fruto de um ambiente nocivo ou da falta de oportunidades. Um
drama particular explica a dedicação à violência e sempre se tem uma desculpa
imediata para o mal praticado. Como afirma Enzensberger (1995), construí-
mos a inocência:
[...] A idéia de que o homem seja naturalmente bom encontra seu úl-
timo reduto na assistência social. Estranhamente, motivos pastorais
misturam-se a envelhecidas teorias da sociedade e a uma desnaturada
versão da psicanálise. Em sua bondade ilimitada, esses tutores isentam
os confusos militantes de qualquer responsabilidade sobre suas atitudes.
A culpa jamais recai sobre o criminoso, e sim sobre o meio em que vive:
família, a sociedade, o consumo, a mídia, os maus modelos. De certa
maneira, a cada assassino estende-se um questionário de múltiplas al-
ternativas, que ele pode preencher como melhor lhe aprouver:

“Mamãe não me queria; tive professores demasiadamente autoritários/


antiautoritários; papai chegava bêbado/ nunca chegava em casa; o ban-
co encerrou minha conta/ deu me crédito demais; meus pais se supe-
raram muito cedo/ muito tarde; onde vivia havia muito/ pouco tempo
de lazer”.

“Por isso não restou outra opção senão cometer um atentado/ um rou-
bo/ um assassinato/ dar início a um incêndio” (pp. 27 e 28).

O crime real, a conduta preocupante, a necessidade de entendimento dos fatos

OS DILEMAS DA ATUALIDADE
154 - 155

sociais mais relevantes, agora estão mergulhados na simplificação, no imedia-


tismo. Quando falamos do tráfico de drogas, por exemplo, associamos aos dramas
familiares, as perdas de vidas que o crime organizado promove. Assistimos nos
meios de comunicação o grito desesperado das mães que perdem seus filhos
mortos por uma bala perdida disparada no confronto entre gangs, ou porque seu
rebento fazia parte de uma delas. Outros choram pela dependência química que
destrói lares, promove agressões domésticas e mutila dependentes. Mas quando
vamos discutir a capacidade de organização internacional do comércio de dro-
gas, quando vamos conseguir comparar o consumo das drogas ao de celulares.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Como um produto as drogas se multiplicaram e atingiram as mais diferentes


relações da vida social. A venda de drogas já não é mais uma prática de locali-
dades específicas, marcadas pela miséria ou em grandes centros. As drogas estão
nas pequenas cidades, arregimentam trabalhadores entre aposentados, mães,
filhos, avós. A oferta das drogas está em ambientes jamais pensados há 30 anos.
Quando falamos de drogas, falamos da eficiência do crime organizado e sua
internacionalização. Mas sempre consideramos que a prisão do chefe do trá-
fico no morro ocasionará uma perda irreparável. Outro, na mesma velocidade
assume o seu lugar. Lembro-me do dia em que o chefe do Cartel de Medelín,
Pablo Escobar2 foi morto, o discurso era que o tráfico de drogas tinha sofrido
uma perda irreparável, ele era a encarnação do mal a ser combatido. Agora, virou
apenas mais um, talvez o primeiro, de uma lista de chefes do tráfico que mor-
reu e que foram substituídos com a mesma eficiência. Quando vamos perceber
que a eficiência do crime organizado não será entendida e combatida pela dra-
matização de suas consequências, mas pelo entendimento de sua complexidade?
Mas como abordamos anteriormente, estamos particularizando a violência e
não a entendendo de forma racional. Estamos perdendo a oportunidade de com-
preender a complexidade da vida contemporânea, a qual é apresentada com uma
lógica simplificada pelos meios de comunicação com suas reportagens estanques
2 Escobar foi o mais famoso chefe do tráfico de drogas, calcula-se que comandou cerca de 80% do tráfico
para os Estados Unidos em México. Sua capacidade de ação envolvia uma rede organizada de violência
que integrava desde produtores de coca ao fornecimento aos consumidores. Um dos lemas de Escobar
era “dinheiro ou chumbo”, ou as pessoas aceitavam o seu suborno ou eram eliminados. A ele se deve
ações ousadas de extermínio de presidentes colombianos, juízes e destruição de prédios públicos. Em
seus rituais de extermínio estava enviar uma carta a suas vítimas às convidando para o próprio enterro,
com dia marcado. Os seus capangas executavam as vítimas na data determinada pela correspondência.
Requintes de ousadia e crueldade comuns ao crime organizado de hoje. Escobar foi morto em uma caçada
cinematográfica na sua cidade Medelín, em 1993.

Um Mundo em Crise
V

e rasas. É preciso vender nos noticiários informações rápidas que se acumulem


ao olhar e ouvidos com lógicas próprias e que não exijam um raciocínio com-
plexo, não há tempo para isso. Precisamos esgotar as nossas informações em si
mesmo. Estamos à procura de receitas prontas, seja para o almoço de domingo,
para a violência cometida ou para o resto de nossas vidas.
Tratamos aqui da violência, mas o que nos interessa neste primeiro momento
é tratar de como a sociedade passou a incorporar de forma tão simplificada pro-
blemas tão complexos. Por que estamos perdendo a noção da construção dos
fatos aos quais estamos relacionados? Por que estamos particularizando o que

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
deveria ser um resultado de uma análise mais ampla?

A Sociedade de Consumo

Para compreendermos a organização da sociedade contemporânea se faz necessá-


rio relembrarmos a unidade I, quando falamos da sociedade mundial, da “fábrica
mundo”. Falamos da cadeia de produção internacional de bens que envolvem um
grande número de unidades produtivas espalhadas por todo o Planeta. A com-
plexa relação que as empresas vivem nos dias atuais. Esta produção gera uma
parte considerável dos bens de consumo que são
ofertados em nossas vidas. Também influenciam
as produções regionais, sejam elas integradas à
cadeia mundial de produção, ou que atendam a
mercados locais. Estamos ligados às condições
econômicas mundiais, mas não percebemos isto.
Se observarmos a nossa volta, há uma grande
quantidade de bens de consumo que só poderiam
ser produzidos por esta integração mundial, o
que Octávio Ianni denomina de “nova divisão
internacional do trabalho”. A fragmentação da
produção atingiu um grau elevado e especializou
©shutterstock

OS DILEMAS DA ATUALIDADE
156 - 157

determinadas economias. Hoje, se observarmos, determinadas regiões se trans-


formaram em produtoras exclusivas de bens específicos. A maioria do que se
consome nestas regiões vem de outros lugares, ou do comércio nacional ou
internacional. Contudo, a fronteira entre os produtos, sua origem e identidade
também estão alterados. O que, voltando a lembrar de Octávio Ianni, é a terri-
torialização e desterritorialização dos produtos e de seus símbolos.
Nesta cadeia de produção mundial os produtos que consumimos, as condi-
ções de vida que estamos estabelecendo, nos selecionam também pelos bens de
consumo. Hoje nos integramos ao mundo pela internet, ela nos inclui, muitas
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

vezes, mais do que o lugar onde vivemos e as pessoas com quem convivemos.
Nosso círculo virtual de amigos nos permitem sentimentos empolgantes de per-
tencimento que não encontramos em nossa vizinhança. Mentir e ser enganado
na rede mundial de computadores é um ritual estimulante para os internautas.
Nela podemos ser o que queremos sem ter que assumir o peso de uma escolha
que a vida real exige.
Vivemos duas vidas e nos sentimos um único ser. Posso ter que me incomo-
dar com o meu trabalho, com as atividades reais que exerço para sobreviver, mas
também posso construir um círculo de amizades que me desloquem para uma
condição oposta a minha vida do trabalho. Meu laço de amizade, de convívio
social pode gerar um agrupamento com rituais próprios e vestimentas especí-
ficas. Tribalizamos o mundo urbano e constituímos identificações que a moda
fornece os objetos sagrados. Emo, dark, skinhead, se quiser reeditar o movi-
mento hippie também é possível.
Toda uma identidade está à venda no mercado, como a estampa do Che
Guevara que falamos no começo desta unidade. Os ecologistas estão se transfor-
mando também em uma tribo, o engajamento nas questões ambientais ganha,
muitas vezes, o aspecto de uma marca de um bem de consumo. Fica mais fácil
de propagar quando a campanha publicitária é a linguagem de comunicação. A
camiseta com o símbolo da campanha de combate ao câncer é mais conhecida
do que a causa, já virou grife. O que acontecerá se um dia a causa pela qual se
luta atingir seu objetivo e o inimigo a ser combatido for vencido? Teremos que
gerar uma nova luta para manter o símbolo vivo, ele é o elemento mais impor-
tante. O que se tem não é uma defesa racional de uma causa necessária, mas sim

A Sociedade de Consumo
V

uma religiosidade, uma crença em um deus simbólico.


Um dos lugares onde se pode entender a eficiência que os símbolos atingi-
ram em nossas vidas é a sala de aula. Nossos alunos se encantam pelos objetos
colecionáveis. Eles se submetem passivamente a idolatria de marcas que lhes dão
sentido e lhe possibilitam uma vida de magia que a realidade lhe nega. O não
ser nada se modifica com a obtenção de um bem cobiçado. Ter determinado
produto faz de um ser insignificante uma celebridade em questão de segundos.
Por isso, o esforço em desenvolver a ciência, a tecnologia, a busca de compreen-
são do mundo pela razão é ineficaz diante da mágica que os bens de consumo

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
promovem3.
Estamos nos rodeando dos bens de consumo, eles estão por todos os luga-
res e é com eles que construímos uma convivência íntima. Eles nos identificam
e nos colocam no centro de um mundo aparente de movimento. Tudo a nossa
volta parece se movimentar, parece estar agindo com uma dinâmica que nos
agrada, pois estamos no comando com nossos “controles remotos” e botões digi-
tais dando movimento e parando uma parafernália eletrônica que se movimenta
ao nosso prazer. Mas se formos entender as condições em que este convívio
ocorre, vamos perceber que estamos parados, estáticos, enquanto as coisas se
movimentam a nossa volta. Nossos filhos falam do cansaço do dia marcado por
horas a frente do computador, navegando na internet, conversando pelo celular
mediante mensagens que não tem fim. Estamos exaustos de não fazer nada e de
dialogar com “coisas” e não com pessoas.
Jean Baudrillard, cientista social francês, filósofo e fotógrafo, têm como um
dos seus principais temas a “sociedade de consumo”. Ele considera que esta-
mos vivendo a vida dos objetos, estamos cada vez mais rodeados destes bens
eletrônicos:
À nossa volta, existe hoje uma espécie de evidência fantástica do consu-
mo e da abundância, criada pela multiplicação dos objetos, dos serviços,
dos bens materiais, originando como que uma categoria de mutação
fundamental da ecologia da espécie humana. Para falar com proprieda-
3 Quando assisti pela primeira vez ao filme “O homem invisível”, personagem de literatura de Hebert Wells,
que foi eternizado nas telas da televisão por David McCallun, encarnando o personagem David, um médi-
co que após uma experiência bem-sucedida se transforma em um homem invisível. O seriado foi exibido
em 1976 no Brasil, pela Rede Globo. Em diversas cenas o médico tirava a roupa e a máscara, suas luvas de
cor da nele e desapareceria. Hoje, alguns dos consumidores ávidos por produtos de grife e que propagam
valores associados aos produtos, se os tirassem se separasse deles, com certeza, desapareceriam, afinal está
estabelecida a regra de que, “um homem sem os objetos que lhe dão vida não existe”.

OS DILEMAS DA ATUALIDADE
158 - 159

de, os homens da opulência não se encontram rodeados, como sempre


acontecera, por outros homens, mas mais por objetos. O conjunto das
suas relações e a manipulação de bens e de mensagens, desde a organi-
zação doméstica muito complexa e com suas dezenas de escravos técni-
cos até ao “mobiliário urbano” e toda a maquinaria material das comu-
nicações e das atividades profissionais, até ao espetáculo permanente da
celebração do objeto na publicidade e as centenas de mensagens diárias
emitidas pela “mídia de massas”; desde o formigueiro mais reduzido
de quinquilharias vagamente obsessivas até aos psicodramas simbólicos
alimentados pelos objetos noturnos, que vêm a invadir-nos no próprio
sono (BAUDRILLARD, 1995, p.15).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

O que deve ser lembrado é que o consumo se transformou no desejo implacável


de todos os homens. Uma condição que nos coloca na inclusão com os demais. Se
não consumirmos, não somos nada. Necessitamos estar incluídos na vida social
pela aquisição. Só ela poderá nos dar o sentimento de pertencimento. A igual-
dade buscada pelas teses liberais por meio da racionalidade do convívio social
agora está traduzida na coleção de objetos disponíveis no mercado. A demo-
cracia, a república, a liberdade, conceitos fundamentais da vida humana têm na
aquisição de bens no mercado o meio mais eficiente de se fazer sentir cidadão.
Não se quer o direito à defesa de uma sociedade para todos, se quer o direito de
poder de consumo para cada um. As teses educacionais, as propostas de pro-
grama de saúde, a necessidade de organização da vida pública e do planejamento
urbano estão colocados em segundo plano diante da necessidade de consumir.
Baudrillard acredita que a sociedade de consumo está realizando de forma
superficial a grande busca de igualdade que se defende nas teses liberais e que
inspirou as revoluções burguesas nos séculos XVII e XIX. O Estado de Bem-Estar
que foi uma das promessas do liberalismo ao tentar garantir aos indivíduos uma
condição mínima de existência está incorporado no mundo do objeto:
A “Revolução do Bem-Estar” é a herdeira, a testamenteira da Revolu-
ção Burguesa ou simplesmente de toda a revolução que erige em prin-
cípio a igualdade dos homens sem a poder (ou sem conseguir) realizar
a fundo. O princípio democrático acha-se então transferido de uma
igualdade real, das capacidades, responsabilidades e possibilidades so-
ciais, da felicidade (no sentido pleno da palavra) para a igualdade diante
do objeto e outros signos evidentes do êxito social e da felicidade. É a
democracia do “standing” [estar de pé], a democracia da TV, do auto-
móvel e da instalação estereofônica, democracia aparentemente con-

A Sociedade de Consumo
V

creta, mas também inteiramente formal, correspondendo para lá das


contradições e desigualdades sociais à democracia formal inscrita na
constituição. Servindo uma à outra de mútuo álibi, ambas se conjugam
numa ideologia democrática global, que mascara a democracia ausente
e a igualdade impossível de achar (BAUDRILLAR, 1995, p.48).

Esta falsa busca de igualdade pelo consumo encanta até mesmo nas políticas gover-
namentais. Se formos considerar o interesse do Estado em promover o acesso
da população a bens por meio de crédito nos permite concluir que se transfor-
mou em programa social a inclusão da cidadania na condição de consumidor.
Se considerarmos os programas sociais que ganham destaque na sociedade atual,

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entre eles o Programa Bolsa Família, o Estado está remunerando pais para leva-
rem seus filhos à escola e ao posto de saúde. O que é obrigação da cidadania
agora exige remuneração. Quando falamos da moradia como qualidade de vida,
estimulamos o crédito com financiamentos de 30 anos e uma campanha pública
de propaganda fantasiosa com o título “Minha Casa Minha Vida”. Nada do que
é pago nos pertence. O financiamento de um imóvel nada mais é do que pegar
dinheiro a empréstimo. Enquanto não se paga a dívida nada se tem.
Neste mesmo sentido se exalta os programas de inclusão digital que pro-
move à informatização das escolas e o acesso dos alunos à internet. Como se o
objeto propagado pudesse dar habilidade ao usuário apenas por existir. Estamos
distantes de uma alfabetização adequada, já não conseguimos estabelecer uma
relação lógica entre a mensagem e seus interlocutores em sala de aula, agora con-
sideramos que a presença do computador realizará a competência de quem o
manipula. Isto não irá ocorrer. Mas não é difícil perceber de onde surge a ideia
de eficiência com a aquisição. Parte considerável dos celulares que estão nas mãos
dos cidadãos não estão executando a função de comunicar, mas estão promo-
vendo atividades para preencher a ociosidade4. A aula passa mais rápido com
um computador ou celular nas mãos.

A ambientação inteligente do consumo


4 Como afirmamos anteriormente, hoje os objetos dão aos seus usuários tarefas a serem cumpridas. Muitos
dos que têm telefones móveis passam boa parte do dia manipulando aparelhos e cumprindo uma jornada
de existência como um autista, fechado em um mundo de diálogo com o objeto. Hipnotizado, sem poder
se movimentar, mas ao final exausto por ter cumprido inúmeras tarefas que o ser inteligente que manipu-
lou durante todo o dia exigiu, o telefone celular.

OS DILEMAS DA ATUALIDADE
160 - 161

Contudo, o que expomos até agora não é fruto do acaso. O que assistimos na atu-
alidade é a eficiência de uma gama de elementos integrados a favor da sedução
para o consumo. Estamos vivendo a proliferação de campos de conhecimento
voltados ao estímulo do desejo da aquisição. Este estímulo está sendo promo-
vido pelo mercado para ampliar as vendas de bens em larga escala e propagar a
imagem de inclusão social.
Áreas de conhecimento surgiram nos últimos trinta anos com a especiali-
dade de entender e manipular o comportamento humano a favor do consumo.
Do marketing, publicidade, designer, estética, arquitetura, logística, artes visuais,
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moda a consultores de estilo, o que assistimos é uma “inteligência” que demonstra


toda a sua eficiência dentro do espaço urbano e, principalmente, nos ambientes
de compra. Um hipermercado é talvez a tradução desta genialidade. As prate-
leiras são recheadas de produtos estrategicamente organizados. O caminho que
elas estabelecem é um labirinto em que o consumidor percorre o colorido dos
produtos ordenados caprichosamente para induzir ao consumo.
Engano ver empilhado um grande número de produtos, como se fossem
colocados ao acaso. Eles cumprem um ritual estético de associar-se a abundân-
cia. Sua disposição gera a sensação de que a quantidade de bens para o consumo
é interminável, que nossa capacidade de compra jamais poderá levar o todo, por
isso, compramos na nossa parte, muitas vezes, mais do que necessitamos. Uma
abundância estética enganosa. Uma demonstração de excesso que nos induz a
considerar que há uma fartura a disposição de todos. Nada nos impede de tocar
os objetos de consumo. Podemos até experimentá-los. Em muitos casos nos
sentimos fazendo uma colheita em um pomar farto do que compras em uma
empresa mercantil na qual teremos que pagar por cada bem que consumimos.
Até mesmo o dinheiro em espécie desapareceu. O surgimento dos cartões
de crédito e os de desconto decretou a invisibilidade do dinheiro. Contudo, ele
continua lá, se transformando em uma dívida que será cobrada em questão de
dias ou meses, ou uma transferência automática de dinheiro de nossa conta para
a da empresa onde estamos adquirindo os produtos. Este “desaparecimento” do
dinheiro gera a ilusão de que não há perda. Cria-se a sensação de um infinito
de recursos. Não percebemos o limite de nossa capacidade de aquisição, o que é
fundamental para um planejamento em longo prazo. O sentimento de frustração

A Sociedade de Consumo
V

que também educa se torna proibido quando se fala de consumidor.


Nunca se desenvolveu estratégias tão elaboradas, com uma competência
indiscutível, para fazer com que os consumidores se sintam inocentes diante da
compra. Há sempre uma justificativa para a aquisição de qualquer bem. Os trei-
namentos feitos nas empresas para seus vendedores divulgam estratégias eficazes
no convencimento ao consumo. Chegam algumas das técnicas de vendas a tratar
o cliente (consumidor) como uma criança, uma lógica de “conto de fadas” onde
o encontro com o objeto de consumo é o momento de maior “encantamento”.
Não é por acaso que as instituições de ensino vendem sonhos também.

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Algumas valorizam o ambiente, geram sensações de grandeza, colocam alunos
diante de uma realização para quem se quer começou a vida escolar. Tanto ins-
tituições de ensino fundamental ao nível superior propagam o ambiente como
um argumento maior na educação. Ele fala mais que a proposta educacional. A
beleza do lugar, o parquinho de diversões, os laboratórios, o conforto das salas,
a estética dos prédios, as festas de teatro, coral, formatura, Dias dos Pais, das
Mães, das Crianças, o Natal e o Final do ano, eventos para se comemorar a con-
cretização do que não existe de real, a escola. As formaturas são intermináveis,
são celebradas uma a uma. Nas escolas sempre está se fechando um ciclo, pode
ser um passo, mas deve se sentir como se fosse uma longa jornada5.
Hoje, as instituições de ensino, fundamental principalmente, estão preocu-
padas em convencerem os pais de que há aprendizado. Para isso, se releva o mau
desempenho ou se manipula as avaliações. Busca-se de alguma forma enquadrar
o mau comportamento como um desvio de conduta temporário, uma fase, uma
questão pontual. Não se pode colocar na família consumidora a responsabili-
dade que lhe cabe na formação dos filhos. Para isso, as escolas estão assumindo
funções do ambiente familiar. Ela está inocentando a todos os consumidores da
educação, pais e filhos (alunos) e sobrecarregando, principalmente, os professo-
res que devem deixar atraente o ambiente escolar, eles devem ser uma extensão

5 Como professor universitário me incomoda profundamente o comportamento dos alunos no primeiro


ano do ensino superior. Dois momentos de alunos que acabaram de ingressar em um curso superior, a
comissão de formatura e o churrasco de confraternização. Em um caminho de quatro ou cinco anos o que
se deseja é ter a sensação de permanência de missão cumprida. A angústia de uma jornada que está em
seu princípio faz com que muitos desistam. Hoje, metade dos alunos abandona o curso superior, 30% de-
les no primeiro ano. A maioria não consegue manter-se por diversos fatores, falta de recursos ou trabalho,
mas principalmente comprometimento com o que escolheram fazer. Mas todos irão ao churrasco e se
inscreveram na festa de formatura.

OS DILEMAS DA ATUALIDADE
162 - 163

da arquitetura, do designer dos computadores, da decoração da sala de aula, do


parquinho de diversões. Por isso, a competência educacional de um docente já
não é mais um critério para sua escolha, mas sim ser uma extensão do ambiente
de consumo escolar.
Se a ambientação se transformou em um instrumento de sedução, constru-
ído com eficiência pelas diversas áreas de conhecimento, o ser humano começa
a ser educado por este ambiente. Ele começa a ter os primeiros momentos de
sua vida rodeados desta gama de objetos oferecidos para seu entretenimento e se
afastando do convívio humano. Desde os primeiros anos de vida, as crianças ini-
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ciam sua trajetória nesta ambientação egocêntrica, quase um autismo induzido.


O quarto decorado, os brinquedos que se movimentam sozinhos, a quanti-
dade de objetos que lhe servem de mamadeiras, chocalhos, babás “inteligentes”,
adornos e móbile. As mães, por sua vez, preparam seus filhos para a exibi-
ção coletiva com uma gama de objetos de decoração para o pequeno humano
transformar-se em uma extensão dos bens admirados. Do carrinho de bebê a
roupa que veste a criança, tudo deve combinar como em um conto de fadas. O
“pequeno” deve lembrar a infância na forma de brinquedos, por sinal há bone-
cas no mercado que passam tranquilamente por bebês de verdade. Há crianças
que brincam com eles e adultos que fazem dos seus filhos um deles.
Mas o contrapeso da maternidade e da paternidade é o exercício da criação,
o comprometimento com a responsabilidade de dar condições de vida e educa-
ção ao ser humano que se chama de “filho”. Todo o ato de criar estará marcado
pela relação conflituosa dos pais terem que negar sua existência em prol do ser
humano que geraram. Não é por acaso que se propagaram os berçários e se mul-
tiplicam as avós que cumprem uma nova jornada de criação, a dos netos.
Na ambientação, um dos pontos centrais está o shopping center. Não há um
lugar onde o planejamento para o consumo expresse com tanta intensidade a
eficiência da sedução do objeto. Climatizado e ambientado, um ar de frescor e
conforto que se mantém de forma perpétua em um ambiente decorado de forma
aconchegante mais vívida, os centros de consumo são considerados por muitos
o “paraíso terreno”. Se há inspiração para um lugar onde se possa passar a eter-
nidade ele seria um shopping. Nele há diferenças, mas não discriminação, há o
convívio aparente com a diversidade que se une em um encontro possível graças

A Sociedade de Consumo
V

à idolatria do poder ser tudo sem perder nada e nada escolher definitivamente.
Nos centros de consumo se atingiu o que a democracia jamais conseguiu em
sua prática política, superar os confrontos que as diferenças geram quando se faz
escolhas ou se privilegia uns em detrimentos de outros. Na democracia do con-
sumo o todo é possível por se tratar de uma igualdade acessível pela escolha de
adquirir e não pelo compromisso de construir. Não é preciso ser um executivo
ou um intelectual para adquirir os objetos que me associam a eles. Da mesma
forma que vendo o terno, possibilito o livro e os óculos que identificam a inte-
ligência. Também estão disponíveis no mercado o carro, o relógio, a pasta e os

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trejeitos aprendidos nos filmes disponíveis na sala de cinema. A sensação não
precisa de comprovação, não podemos esquecer que o consumidor não pode
ser frustrado, jogado à realidade.
Nas salas de aulas das universidades está uma parte considerável dos alu-
nos buscando a sensação de fazerem um curso superior. Parte considerável deles
não tem qualquer comprometimento ou esforço para o aprendizado. Se formos
racionais e avaliarmos de uma forma fria e objetiva, seus destinos estão traça-
dos, o fracasso. Mas quem pode contrariá-los? Eles são consumidores de uma
sensação, de um sentimento que não pode ser rompido ou frustrado. Aos inú-
teis se vende a utilidade, assim como os celulares ocupam o tempo dos que não
tem com quem se comunicar. Por isso, estamos dispostos a consumir uma vida
em vez de vivê-la.
Toda esta construção inteligente da ambientação do consumo é o que move
a economia contemporânea. Ela é que determina o enriquecimento de empresas
mundiais que acumulam o capital com a comercialização desmedida de produ-
tos. O consumidor destes bens é um ser humano ávido de se completar pelo valor
simbólico das coisas. A busca de existir no mundo em que os objetos têm vida.
O que necessitamos compreender é a cadeia econômica e social que esta
sociedade de consumo movimenta. Os recursos gastos com a multiplicação da
aquisição de bens que atendem a interesses particulares e, muitos, superficiais
recaem nas contas do poder público. Se considerarmos o excesso de automóveis
que ingressam no trânsito das grandes cidades diariamente podemos perceber
que o crescimento da violência no trânsito é proporcional. Além do que a polui-
ção ambiental também se agrava, o lixo se acumula, assim como os gastos dos

OS DILEMAS DA ATUALIDADE
164 - 165

hospitais públicos com o tratamento de vítimas, as perdas de vidas produtivas


para a sociedade com os acidentes.
Outro dado a se refletir é a condição em que objetos eletroeletrônicos ingres-
sam no mercado e fazem aumentar o consumo de energia. Hoje, os gastos
domésticos com energia já representam 30% do consumo do Brasil. No mundo,
a energia elétrica está se tornando escassa e tem forçado os governos a exigirem
a produção de aparelhos eletrônicos que tenham um menor consumo. Mesmo
assim eles se multiplicam em uma proporção maior do que a geração de energia.
Mas quem deseja ter um produto não está preocupado com seus custos adicio-
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nais, ainda mais quando ele recai sob o poder público. Contudo, não se percebe
que os gastos são repassados para o mercado e para os produtos.
Na inteligência da ambientação está também a ausência desta consciência
que estabelecemos anteriormente. Ou seja, não percebemos que as ações indivi-
duais geram um efeito na vida coletiva. O comportamento voltado ao consumo
atinge em larga escala uma porção significativa da vida social. Hoje, o que vive-
mos como os principais dilemas coletivos são fruto do ambiente de consumo no
qual estamos inseridos. Este ambiente gera efeitos desastrosos no sentido que os
seres humanos dão para as instituições nas quais participam em sua vida coti-
diana. Estamos tentando e tentados a transformar todos os lugares que vivemos
em uma extensão da lógica do consumo.
Um dos exemplos do poder da ambientação mágica do consumo está expresso
em alguns templos religiosos. O conforto, a climatização, as poltronas almofa-
dadas, os telões e o desempenho do líder religioso devem dar a sensação de um
grande espetáculo. A emoção do pertencimento se confunde com o ato de fé.
Não se sabe se a religiosidade é uma expressão da crença ou se o ambiente é a
prova miraculosa da força mágica dos objetos sobre o ser humano. Contudo, e
por precaução, não se separa o conforto do templo do sentimento do fiel, sob
a pena de ver revelado o verdadeiro sentido de algumas instituições religiosas.
Logo, em todos estes lugares que se frequenta e se depara com o estímulo ao
desejo imediato de ter e se confunde com o sentido de ser, o homem contempo-
râneo está desenvolvendo uma doença social que se expressa em dois sentidos,
a vitimização e a infantilização, as quais nós vamos tratar a seguir.

A Sociedade de Consumo
V

A eterna infância da indiscutível vítima

Estamos vivendo a propagação do ambiente de consumo, estamos também


desenvolvendo uma educação do sentido de vida para os seres humanos e esta-
belecendo em nossas relações uma orientação para a convivência em sociedade.
Nesta orientação propaga-se a inocência inconteste do homem diante de seus
atos. Ao mesmo tempo se infantiliza a condição humana e se simplifica a lógica
de nossa condição social, se permite ao ser humano atender aos seus interesses
mais fúteis e instintivos.

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Uma contradição que se percebe em diversos lugares está na mudança dos
papéis sociais ou mesmo a sua violação. Um exemplo são os pais que colocam
seus filhos, ainda na primeira infância ou na pré-adolescência, a participarem
de concursos de beleza ou a trajarem a estética do adulto. Eles transformam
crianças em pequenos adultos, reeditam uma forma de tratamento que se tinha
na Europa, entre os séculos VII a XIV, onde as crianças serviam aos adultos em
atos de sexualidade e de mutilações do corpo para atender aos desejos bizar-
ros. Agora, nós introduzimos as crianças ao mundo do adulto e lhe damos uma
imensa quantidade de acessórios de beleza. Introduzimos a sedução no mundo
infantil. Contudo, diferente do mundo medieval, condenamos o abuso sexual,
mas criamos um ambiente propício para isso. Queremos o prazer, mas não dese-
jamos a culpa.
A contradição está na outra ponta da relação com as crianças. Hoje criamos
estatutos e defendemos a infância da ação perniciosa dos adultos. Geramos um
Estatuto da Criança e do Adolescente para defender a infância que idealizamos
como merecedora de respeito. Valorizamos a pureza e inocência que lutamos
para romper. Ao final, o que gostaríamos era de ser tratados como crianças tam-
bém. Cobramos nossa dose de infantilidade. A infância nos cai bem diante do
desejo de termos tudo e não respondermos por nada. Como adultos, buscamos
uma solução simples para a vida que é não questioná-la e não ser obrigado a se
responsabilizar ou ser punido pelos atos. Abusamos de todos e não colocamos
em ninguém a culpa.
Uma discussão no mínimo irônica, e que já nos referimos anteriormente, é
sobre a prática do aborto no Brasil. Quem o faz, na maioria dos casos, é a mãe

OS DILEMAS DA ATUALIDADE
166 - 167

que já tem filhos. Quem é marcada por fazer é a mulher, menor de idade e sol-
teira. Consideramos que a gravidez indesejada é uma prática de quem não tem
maturidade. Agimos como os bandidos do crime organizado que para fugir da
punição colocam a culpa do homicídio sempre em um menor. Somos idênticos
aos que combatemos. Ficamos livres para praticar o ato que nós mesmos con-
denamos e transferimos a “culpa” para aquele que juramos proteger.
Mas se tentarmos entender a infantilização do homem com mais intensidade,
promovida pelo mundo do consumo, podemos considerar o mercado da beleza e
a indústria da estética. O ser “belo” é uma busca que todos se empenham em ter
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e os que negam usam do argumento da inveja como condenação. A mulher feia


chama a beleza de fútil, mas sua busca é superar o estado de rejeição, ela está à
espera de um milagre feito por um “deus” chamado cirurgião plástico. Hoje, os
programas de televisão que mostram indivíduos “degradados” que são “concer-
tados” esteticamente têm uma grande audiência. Todos querem ver a emoção
profunda de fazer renascer o ser “condenado”. Aquele que a vida já havia deli-
mitado ao esquecimento ressurge com seu novo visual. Pode ser a roupa e/ou
um tratamento estético. Em alguns programas se avança sobre os dentes e, até
mesmo, cirurgias plásticas. O que está garantido é a emoção ao final. Mulher,
marido, filhos, amigos e, claro, o próprio “ressuscitado” chorando por uma emo-
ção profunda de voltar à vida, ser um outro alguém.
Não queremos envelhecer, nos negamos à aparência do final. Podemos
recomeçar eternamente, não há mais idade para mudar. Atrás de frases de boa
intenção há também o direito a não ter maturidade. Se chegar aos 60 anos é ape-
nas estar na “metade da vida”, para alguns é ter a irresponsabilidade dos 15 anos
mesmo apresentando algumas rugas na testa. Elas serão tiradas de lá por um
tratamento de beleza e com elas sairá também o juízo. Os eternos jovens não se
resumem em ter uma qualidade de vida saudável e poder ter movimentos físi-
cos que antes eram impensados para alguém da terceira idade, nós queremos o
tratamento completo6, a infância com direitos de adulto e a maturidade com a
irresponsabilidade infantil.
6 A cinematografia produziu “O Curioso Caso de Benjamin Botton”, estrelado por Brad Pitt e Cate Blanch-
ett, produzido em 2008, ele relata o nascimento de um bebê com uma aparência de 80 anos e que, ao lon-
go de sua vida, vai rejuvenescendo. Esta seria a história que uma multidão adoraria viver. A infantilidade
em seus melhores momentos, ser um adulto com os desejos plenos na idade da inocência e ter a condição
da criança diante da maturidade necessária.

A Sociedade de Consumo
V

Pascal Brukner, o cientista social francês que polemiza com a infantilidade


do homem adulto afirma:
Ora, o primeiro direito que a criança deveria ter é o de ser protegi-
da contra a violência, a arbitrariedade e às vezes a crueldade dos mais
velhos. Mas é também o direito contraditório de ser respeitada em
sua natureza e sua despreocupação e de ser dotada de meios para sair
progressivamente de sua condição à medida que cresce. Se quisermos
“amadurecê-lo para a liberdade”, como dizia Kant a respeito do povo,
é preciso esclarecê-lo e instruí-lo e não abandoná-lo a uma esplêndi-
da indolência. Portanto, é perigoso destruir os abrigos (escola, família,
instituições) por meio dos quais ele domina lentamente o caos da vida

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e indispensável condicioná-lo à responsabilidade, oferecendo-lhe ta-
refas ao seu alcance, dando-lhe domínio gradual de esferas cada vez
mais amplas. (E não pedindo-lhe que parodie os adultos, por exemplo,
e se reúna em conclave para imitar a vida parlamentar ou se fantasie
de jornalista para entrevistar uma personalidade. Nossa época prestigia
uma única relação entra as idades: o pastiche recíproco. Nós imitamos
nossas crianças, que nos copiam) (BRUCKNER, 1997, pp. 93 e 94).

Esta idolatria da juventude chega ao ponto de ser estampada em todos os luga-


res, associadas a produtos e rituais mágicos. O ser perfeito é divulgado como
uma possibilidade. Ele está em todos os lugares e pode ser visto como um ser
possível, mas ele é apenas fantasia. Contudo, todos o cobram e exigem a sua pre-
sença comparando quem está ao lado e cobrando do próximo real a perfeição
do “super-humano”. Os filmes dos super-heróis que podiam sair das situações
de risco da forma inusitada, que tinham fórmulas mágicas e inesperadas para
escapar do perigo, povoavam apenas a imaginação, não se cobrava a sua existên-
cia, agora eles se transformaram em um modelo de comparação e se exige a sua
presença. O resultado disso é que ninguém mais é o suficiente para ninguém,
todos cobram o direito a terem o melhor. O ser humano real já não se percebe
como um imperfeito a ser tolerado.
As parafernálias disponíveis no mercado nos oferecem o começo do sucesso
precoce ou do rejuvenescimento necessário. Associamos-nos a uma gama de
produtos que podem nos dar o reconhecimento sensitivo da perfeição. As moto-
cicletas fazem os anos diminuírem e os brinquedos que imitam o adulto, fazem
a criança sentir-se emancipada. Não é por acaso que temos uma imensidão de
vídeos na internet de crianças prodígio. O que no passado era uma raridade

OS DILEMAS DA ATUALIDADE
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agora virou uma indústria de jovens talentos. Pais desejosos de fazerem seus
filhos se transformarem em uma estrela investem na apresentação do bebê can-
tor, da criança mágica, do precoce violinista, do humorista da primeira idade e,
até mesmo, do pastor de berçário, há líderes religiosos de frauda.
De outro lado estamos infantilizando a vida dos adultos e transformando
a realidade que deve ser encarada com maturidade como uma prática da ino-
cência. Comentamos anteriormente das leis que agora regem a vida privada, a
escolha particular. Limitamos os horários dos bares abrirem, das doses de bebi-
das alcoólicas e dos refrigerantes. Queremos proibir as tatuagens para menores
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e distribuir Viagra aos mais velhos. Concedemos o transporte coletivo às gestan-


tes, ao aluno do pré-vestibular, ao aposentado, ao desempregado, ao estudante, à
mãe de família, enfim, todos merecem um tratamento especial, afinal são vulne-
ráveis como uma criança. Estamos vivendo o abuso do excesso e transformando
isto em regra.
Ainda, segundo Bruckner:
Em nossas sociedades múltiplos são os sinais mais visíveis de um desejo
geral de rejuvenescimento, de uma tendência coletiva para o berço e os
chocalhos: inúmeros são os filmes de sucesso cujos heróis são lactentes,
prodígios pré-dentes-de-leite, bebês manequins, jovens ídolos multi-
milionários aos sete anos, caprichosos e cabotinos como as velhas es-
trelas (sabemos quanto o cinema americano, de Shirley Temple a Judy
Foster, é prodígio em vedetes mirins, que se exibem na tela na idade que
outros chupam pirulitos), cantor miniatura de quatro anos, homúnculo
afônico que se tornou a coqueluche das multidões balbuciando seu mal
de viver: “É duro, é muito duro ser bebê” (BRUKNER, 1997, p.95).

A perda ideológica

O resultado do mundo de fantasia não pode ser outro, as relações que esta-
belecemos agora perderam seu sentido lógico. Não há a necessidade de uma
compreensão organizada do mundo, no mosaico que falamos anteriormente,
cada um constrói seu próprio desenho do mundo, a sua ordem simbólica. Não
há o compromisso com uma racionalidade coletiva que exija de cada um de
nós o cumprimento de uma tarefa necessária para o conjunto social. Não temos

A Sociedade de Consumo
V

mais a percepção de que ao estarmos diante de uma ação, estamos diante de


uma condição que não diz respeito exclusivamente a nós. Mesmo a condição
que vivemos é uma construção coletiva e devemos nos ater a esta responsabili-
dade. Contudo, não é isso que nos é cobrado, enfim, nada nos é exigido. Estamos
vivendo a perda ideológica, o desaparecimento da educação do sentido geral
para justificar o ato particular.
Toda a discussão que estamos travando aqui e que se apresenta nos fatos que
acompanhamos no dia a dia, está na lógica publicitária. Ela permite ao homem
contemporâneo se colocar na condição de um consumidor eterno. Ele terá a razão

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que sua singularidade exige, por sinal nunca produzimos e reproduzimos tanto
o discurso da identidade única. Há uma necessidade premente de que todos se
sintam especiais. Ninguém pode ser colocado na condição de comum. Sempre
haverá um diferencial que permite ao indivíduo fugir da vulgaridade e se esta-
belecer com um ser especial. A mesma lógica que se produz nos ambientes de
consumo deve estar divulgado em todos os lugares da vida. Valorizar a particu-
laridade é um direito de cada um.
Nas escolas esta prática é visível. Ninguém pode estar sujeito a regras que
massificam a existência. Professores são instruídos a tratarem seus alunos pela
“singularidade” a que tem “direito”. Por isso, na conversa com os pais quando é
feita a avaliação do desempenho do filho na escola é sempre lembrado ao pro-
fessor que ele comece com um elogio, fale de uma faceta “positiva” do aluno.
Mas se ele não tiver? Invente. Ninguém pode ser contrariado. Em algumas esco-
las se instrui os professores a não corrigirem as avaliações com caneta vermelha,
isto agride. O vermelho da caneta pode traumatizar, mas as imagens de violên-
cia saboreada nas telas do televisor ou no cinema não.
Todo o esforço da sociedade é para garantir a sensação de realização que não
ocorre, não existe e não está sendo feito. Uma estética de bem-estar que se torna
uma imposição para todos e em qualquer lugar. A aparência se transformou em
essência. Caprichamos na estética das relações, na cordialidade dos movimentos,
a perfeição do corpo exposto. Valorizamos todos os meios possíveis para que o
impacto do pertencimento não questione a qualidade essencial do envolvimento.
Estar em um determinado local não exige a capacidade de exercer as funções
que ele exige. Não será cobrado o comportamento do aluno na sala e não será

OS DILEMAS DA ATUALIDADE
170 - 171

lembrada a responsabilidade do motorista no trânsito. Na venda da escola e do


automóvel as funções que eles exercem na sociedade não é o pré-requisito para
adquiri-los. No banco da escola ou no acento do automóvel o que vale é a sen-
sação do lugar e o sentimento de estar executando uma função para o qual não
estou qualificado. Da mesma forma que os produtos não têm preconceito de cor
e credo, os lugares não têm mais o comprometimento com a função. Ficou fácil
resolver o preconceito, é só perceber que os diferentes tomam Coca-Cola e fre-
quentam a mesma escola. Afinal, todos merecem sua porção de sonho.
Por isso, para que se realize o desejo de todos e sem o compromisso de
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alguém, a ideologia foi destituída de sua condição necessária para o entendi-


mento da vida social e, por consequência, da existência particular dentro da
coletividade. A preocupação com uma política social coerente com os interes-
ses da maioria foi substituída pela particularidade como tema coletivo. Como
falamos anteriormente, os poderes legislativos estão repletos de medidas e pro-
jetos de lei que tem como foco o interesse privado. Até mesmo nos debates que
assistimos nos meios de comunicação é a vida privada que ganha destaque para
se apresentar uma questão ou tentar resolvê-la.
Esta compreensão parcial, particular, da vida faz emergir os microditadores.
Eles estão presentes em nossa vida privada, mas também ameaçam a existên-
cia coletiva. Nas fileiras dos insatisfeitos surgem os que resolvem fazer a “justiça
pelas próprias mãos” ou eleger os culpados por sua frustração pessoal. O assas-
sino que invadiu a escola no Realengo não tinha outro interesse se não fazer a
sua vingança. Ele julgou e condenou jovens que morreram por terem sido sen-
tenciados pela sua particularidade. Esta mesma lógica do microditador faz surgir
dento do ambiente doméstico o exterminador familiar. O crime de vingança é
o principal motivo para exterminar inocentes. O assassino em série sempre eli-
mina os que não podem se defender, ele jamais irá procurar um adversário à
altura e que necessite de um esforço a mais para ser vencido.
Gangs nas ruas praticam com uma eficiência milimétrica a destruição do
que funciona. Com o mesmo sentido do assassino que retratamos anteriormente,
os grupos de delinquentes organizados ataca os estabelecimentos que atendem
a sua comunidade, ele destrói as suas possibilidades. Os que precisam do posto
de saúde, da escola pública, do transporte coletivo, da iluminação pública são

A Sociedade de Consumo
V

os alvos mais comuns das gangs, elas destroem exatamente o que permite a sua
possibilidade de existir, os meios que dariam uma saída para a miséria que tanto
reclamam como motivo de sua destruição.
Enzensberger trata destes conflitos generalizados como uma “guerra civil”
que se processa em diversos lugares, e ao mesmo tempo. Parecem estar desco-
nectados de um motivador geral. Os conflitos estão sempre associados a uma
lógica superficial. No fundo, os que promovem a destruição tem o desejo de des-
truir o que funciona pelo prazer de ver virem abaixo todas as possibilidades, é
a busca da igualdade pela propagação da miséria, da mediocridade. Os violen-

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tos grupos armados que promovem a violência urbana são em regra covardes:
Os protagonistas são quase exclusivamente jovens. Seu comportamento
mostra a força do processo de degradação do patriciado. Entre suas
tradições estavam as confrarias masculinas. Elas tinham a tarefa de ca-
nalizar mediante rituais de iniciação a concentração de energia própria
à juventude, originada pelo excesso de testosterona, e sua sede de crime
e sangue. Exigia-se do macho emergente provas de coragem e exibição
de força física. Um código de honra era mantido estritamente. A regra
fundamental era de que o desafiante, fosse ele samurai ou mocinho de
faroeste, bandido ou rebelde, se medisse com alguém forte e perigoso,
no mínimo, em relação de igualdade. Essa concepção é desconheci-
da dos criminosos de hoje. Revela-se um novo tipo de masculinida-
de. Poder-se-ia chamar sua honra de covardia, embora isso seja uma
superestimação. A mera distinção entre a coragem e covardia já lhes
é incompreensível – um sinal de autismo e perda de convicção (EN-
ZENSBERGER, 1995, p.17).

A prática da violência desmedida se propaga em diversas partes do mundo.


Os que promovem a agressão sem sentido estão por todos os lugares e não se
diferenciam mais por lado lógico como renda ou tradição cultural. Muitos dos
violentos que assistimos depredando patrimônio público ou praticando violên-
cia com alguém desarmado e sem condições de defesa pode estar vinculado a
qualquer classe econômica. Muitos se disfarçam durante o dia de pessoas nor-
mais para liberarem a prática instintiva da violência à noite.
Mas a violência praticada de forma generalizada em diversos pontos do
Planeta tem traços comuns. Em praticamente todas elas há um microditador e
seus interesses pessoais. Seja na ação individual que determina os interesses de
um só sobre a maioria, ou nos grupos organizados que promovem o terror por

OS DILEMAS DA ATUALIDADE
172 - 173

meio, até mesmo, de guerras que se intitulam revolucionárias. Hoje, a maio-


ria dos grupos que militam em seus discursos por uma causa ideológica está
se valendo de seu poder militar para extorquir a população que ele diz defen-
der. Um dos exemplos desta prática é a Farc (Frente Armada Revolucionária da
Colômbia). Quando fundada e durante a Guerra Fria (1945-1989) o grupo se
intitulava socialista de caráter marxista e se dizia seguido do projeto revolucio-
nário cubano. A guerrilha se colocava contra o imperialismo norte-americano
e se propunha a defender os interesses da população camponesa explorada pelo
tráfico de drogas. Hoje, o grupo que ainda se intitula de “revolucionário” uti-
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liza suas forças para atender ao interesse do tráfico internacional de drogas que
jurou combater, pior, explora os camponeses e os extermina, os mesmos que se
propuseram a defender em sua tese original.
O preço em que as comunidades das periferias urbanas subordinadas ao
tráfico pagam é o mesmo que os camponeses pagam a guerrilha. Os comandos
organizados nas áreas periféricas das grandes cidades controlam a vida cotidiana
utilizando todo o aparato de repressão sobre a comunidade local. O poder para-
lelo constituído em periferias de cidades brasileiras e que tem mostrado eficiência
na luta contra o aparato de segurança do Estado, tem em suas comunidades um
refúgio dominado que se submete pelo medo.
Não há quem queira viver sob o signo do medo. Todos os que se veem forçado
a aceitar o poder do ditador imediato se subordina as suas regras que atendem ao
seu humor pessoal. A defesa de leis universais, que sejam para todos, que esta-
beleça uma relação de respeito entre os membros de uma comunidade e garante
um objetivo comum de convivência pacífica é cada vez mais raro nos espaços
em que o Estado está ausente ou limitado.
Nas periferias urbanas, o que estamos assistindo diariamente, é a prevalência
de um poder paralelo que se impõe e garante os interesses de um micropoder,
contudo integrado a uma rede até mesmo internacional de relações ligadas ao
crime organizado. O comando na favela tem seus interesses imediatos e esta-
belece regras próprias sobre a comunidade que governa. Mas também substitui
serviços que o Estado não consegue estabelecer. Cada elemento subordinado à
condição de submissão na periferia urbana se vê obrigado a compactuar com a
violência exercida para poder ter o mínimo de condições de convivência atendido.

A Sociedade de Consumo
V

Não há uma proposta de futuro dentro de núcleos de violência, não existe


um projeto social quer irá prevalecer na guerra urbana. Os lados em conflito não
têm como meta a instalação de um projeto de organização social e econômica.
A guerra não é entre lados que disputam um território para colocar sobre ele
um governo fundado em regras de racionalidade. Estamos vivendo uma guerra
generalizada e sustentada em interesses imediatos dos que atuam tanto como
combatentes como no comando dos movimentos. Tanto os guerrilheiros como
seu comando são pobres de uma proposta social mais elevada.
Há uma diferença fundamental nos que se dedicavam às guerras no passado,

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mesmo às civis, e os que se dedicam às guerras hoje. Por mais que os combaten-
tes do passado eram “animais instintivos”, saboreavam a violência por considerar
que ela lhes dava prazer, eles estavam subordinados a um comando lógico que
utilizada de seus atos raivosos para um fim maior. Os combatentes de hoje são
um espelho de seus governantes, quando não, muitas vezes são governantes de
si mesmo. Em muitos combates em andamento não há civilidade, há apenas o
prazer do extermínio.
Em muitas escolas a destruição da estrutura que atende aos alunos, carteira,
porta, quadro-negro, iluminação, a biblioteca, o banheiro, as janelas e as pare-
des são promovidas pelos próprios usuários. Eles destroem com uma riqueza de
atos e detalhes sem deixar nada intacto. Se perguntados do por que promove a
destruição, a resposta é o ódio que tem pelo lugar. Eles não veem ali uma pos-
sibilidade, apenas considera que suas vidas se ambientam mais em cultuar um
problema e nivelar o todo pela propagação da desgraça. São inimigos de si mes-
mos e isto lhes basta, isto lhes dá o motivo para existir. Um ideal maior lhes
exigiria esforço que sua dignidade não comporta. Ninguém em uma comuni-
dade cultuada pela violência foi feito para durar. O futuro é obscuro e distante,
mesmo que seja a semana que vem.
Perdemos a perspectiva do que virá como uma condição construída hoje. A
possibilidade de um futuro e a construção de uma condição melhor não nos atinge
como necessidade. Hoje temos a idolatria do imediato, o prazer pelo que esta-
mos vivendo com o sabor da chegada a um paraíso tão desejado. Toda a emoção
está em celebrar as pequenas coisas por mais medíocres que elas sejam no con-
texto de toda uma vida. Estamos sempre sendo convidados a uma homenagem

OS DILEMAS DA ATUALIDADE
174 - 175

ao óbvio, a divulgar como conquista o que é apenas uma etapa da vida. Como
falamos anteriormente, não é por acaso que as escolas estão cheia de festas em
seus calendários e formaturas em suas séries. A competição se perde diante da
festa que será a entrega dos troféus, onde todos serão premiados, até mesmo os
derrotados7.
A particularização dos problemas sociais e a transformação do drama par-
ticular em um problema social
Após a Guerra Fria (1945-1989) o mundo viveu a derrotada do socialismo
e uma sobrevivência do capitalismo sobre novos moldes. Nasceu a individuali-
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zação das questões sociais. O que foi no passado uma busca de construir uma
proposta de sociedade mediante uma base ideológica, hoje se traduz no projeto
pessoal de felicidade ou na discussão de questões relevantes a todos dentro de
uma dramatização pessoal.
A literatura sempre teve esta capacidade de colocar uma trajetória de vida
dentro de um contexto de dificuldades. Romances, aventuras ou ficção, inúmeras
obras foram produzidas tendo como principal foco o cotidiano de um persona-
gem ligado a uma problemática coletiva. O personagem deveria lidar com sua
individualidade em uma lógica de muitos outros. Mas o romance clássico nunca
traiu o contexto em benefício do indivíduo. Mesmo que fosse uma obra de fic-
ção, sem qualquer compromisso com uma condição coletiva, a relação entre
indivíduo e contexto era lógica. Nossos livros de hoje favorecem o personagem
e submetem todos a sua volta à realização dos seus desejos.
O mundo só pode ser compreendido nas obras atuais a partir do particular.
Mas isto não está só nos livros, está no filme, está no discurso político, está nos
programas “sociais” de ajuda. Sempre o drama particular deve ser o princípio
para raciocinar toda a questão social. Não se pode afastar o indivíduo do centro
do universo a que se propõe entender. Em uma reportagem sobre os problemas
ocasionados sobre a guerra civil na África, toda a lógica do combate recai sobre

7 Não há momento que denuncia o que é o resultado de um ciclo educacional do que as formaturas do ensi-
no superior. Na massa de alunos que festejam o final da formação está em uma estética de igualdade o alu-
no que se esforçou para construir sua qualificação e, logo ao lado, o que apenas esteve presente. Existem
inúmeros alunos que se formam sem qualquer merecimento. Ele já está acostumado a “ser levado em
frente”. Por isso, não há com que se preocupar. Ao olharmos na arquibancada, onde as famílias festejam,
são as do descomprometido formando levado pela correnteza dos anos e do acaso os que mais comemo-
ram. A faixa diz: “Parabéns pela sua conquista!”. A lógica é simples, uma festa é uma festa, independente
do que se comemore, de nosso sonho não queremos acordar e é possível, agora, sonhar uma vida inteira.

A Sociedade de Consumo
V

o drama de uma família que sofre com os combates. Os fatores que levam a vio-
lência não serão discutidos, o que é apresentado é apenas a particularização da
dor. Livrar aquela família do caos não significa acabar com a guerra, mas para
os milhões de espectadores é a única coisa a fazer.
Os programas de televisão tem nos dado uma lição da particularização dos
problemas sociais. A falta de moradia, o afastamento dos membros familiares,
a degradação do corpo e a falta de um relacionamento. Tudo pode ser resolvido
diante dos olhos de milhões. Os indivíduos que sofrem de males de sua par-
ticularidade, ou que tem um problema que atinge uma multidão, agora serão

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atendidos e nós resolveremos esteticamente o “todo” pela “parte”.
O homem esteticamente desarranjado é concertado diante das câmeras. Em
uma expectativa trabalhada dentro de um show os familiares esperam ansiosos
para ver a transformação do ser humano que foi entregue a uma produção em
condições de abandono e é entregue com um novo visual. O espanto do que se
vê diante do que se viu é geral. Filhos, esposa, mãe, amigos, e o próprio trans-
formado choram de emoção. As primeiras palavras ditas pelo que foi reciclado
esteticamente é: “sou um novo homem”. Quem pode duvidar? O sentimento de
pertencimento o atinge profundamente. Sua inclusão social é algo incontestável
diante do espetáculo que denuncia a transformação do sentimento dos outros
em relação a ele, da rejeição a sedução, o sonho se realiza8.
Pode-se considerar que a busca pelo reconhecimento faz parte dos rituais
da vida em sociedade. Já está entre nós há muito tempo esta meta. Mas ela vinha
acompanhada de merecimento, do cumprimento do dever, da ação que represen-
tava um valor maior. Todos que tinham direito a uma premiação era um exemplo
a ser seguido. O herói traduzia em seus atos o que se espera do homem comum,
dignidade. A luta por uma causa maior faz com que reconhecemos o valor de
determinadas pessoas e as premiamos para que todos não se esqueçam dos que
merecem valor. O grande problema da atualidade é quem estamos premiando.
8 Uma dica de leitura para entender a busca de ser desejado é o romance de Patrick Süskind, “O Perfume”.
Ele conta a história de um jovem abandonado pela mãe após ter o corpo impregnado pelo mau cheiro
das vísceras dos peixes que o deixaram sem odor, Grenouille, o protagonista, cresce sob a desconfiança de
todos. Devido a sua natureza sem cheiro, ele passa despercebido por todos. Seu grande dom é a capaci-
dade de sentir cheiros e de gravá-los. Acaba por se transformar em um grande perfumista, mas sempre a
procura de um cheiro que viesse a ser irresistível. Para atingir a perfeição ele mata jovens que tem cheiros
sedutores, 26 ao todo. Ele consegue e, ao final, é literalmente comido. Seu sonho, simbolicamente, é o
de muitos: ser notado, ser desejado ao máximo e ser (simbolicamente de alguma forma) saboreado até a
exaustão.

OS DILEMAS DA ATUALIDADE
176 - 177

O que fizeram para merecer? Nas propagandas está uma afirmação no mínimo
ilógica: “Compre, porque você merece!”.
Este indivíduo colocado no centro da coletividade acredita que sua existên-
cia é especial e que ele merece o que jamais fez por merecer. Ele foi convencido
pelos inúmeros lugares por onde passou de que o seu destino é ser a preocupação
de todos, e se isso não ocorrer ele fará, de alguma forma, uma ação na busca do
que considera “seu de direito”. Das frases publicitárias, as reportagens, aos seria-
dos na televisão, as obras literárias, as mensagens na internet em suas páginas
pessoais, tudo indica que ele é “o escolhido”, se não for tratado como merece fará
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todos a sua volta sentir sua ira de rejeição. Nunca construímos uma multidão de
mimados e tantos adultos que reivindicam um tratamento infantil. Aprendemos
na psicologia que as crianças têm sua fase egocêntrica, mas que ela deve passar.
Em alguns ela permanece e deve acompanhá-lo até a morte.
Todas as personalidades parecem querer o reconhecimento, querem ser
astro, nem que por um dia. Esforçamos-nos para não propagar o sentimento
de frustração e para divulgar a particularidade. Seja nas campanhas publicitá-
rias, nos cursos de vendas, nas lógicas de marketing e nas propostas pedagógicas
que agora se multiplicam, o pequeno rei egocêntrico se transformou no centro
das atenções. Nas escolas se defende que há qualidade em todos, que devemos
despertar a competência nata de cada um9. Trata-se o medíocre e o eficiente, o
qualitativo e o desprezível, com o mesmo valor. A escola já não valoriza o his-
tórico do bom desempenho e tenta desesperadamente aproximar o rejeito da
essência. Tudo para não fazer despertar a frustração tão necessária à educação
do homem. A vida é feita de não e sim. Carregar a existência de “sim” não é esti-
mular, é criar um conto de fadas para gerar no futuro um bruto adulto bebê, um
ser que se nega a amadurecer.
Estamos construindo diariamente os “adultos infantilizados”. Eles se mul-
tiplicam por todos os lados por não termos valorizado uma discussão lógica e
ideológica sobre a vida em sociedade. Falhamos por não submeter nossas ações a
um projeto mais amplo de vida, onde cada um desempenha um papel vinculado a
9 É como se retomássemos Sócrates, o filósofo grego, com propriedade, o que não é verdade. Tudo pela sua
frase de que o papel da filosofia é fazer parir ideias, promover o questionamento e despertar a sabedoria.
Mas nem todos têm esta competência em um mundo que não é uma expressão dos valores da Grécia An-
tiga. Desconectamos o pensador grego de seu tempo, usamos suas frases recortadas e consideramos estar
falando a verdade.

A Sociedade de Consumo
V

uma proposta coletiva de existência. Valorizamos a particularidade sem entender


que ela está sujeita a uma coletividade. A vida social é a única forma de termos
nossos interesses privados realizados. Se destruirmos a vida social estaremos
condenando a liberdade da qual muitos abusam. Se a democracia nos foi tão
cara, tão difícil de conquistar, o que assistimos hoje é um ser humano disposto
a trocá-la pelos benefícios pequenos. A grande aventura humana de construir
a liberdade junto com a maturidade está se perdendo com a propagação de um
homem pequeno com uma liberdade imensa. Não somos mais cobrados pela
responsabilidade de nossos atos.

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Estamos ludibriados por um mundo que expressa os excessos e nos gera a
falsa imagem de abundância. Estamos considerando que a vida já é feita de uma
produção em larga escala de tudo o que o homem necessita. Nossas metas se
transformaram em coisas materiais que desejamos para cumprir uma vida de
colecionador de objetos. Eles vão desfilar em nossa frente, vão nascer e mor-
rer sem que nós deixemos algum legado para as gerações que virão. A data de
validade dos produtos é cada vez mais curta, mas nossa vida se alonga. Nossa
longevidade é, infelizmente, conduzida por pequenas conquistas, imediatas, de
detalhes buscados em metas que percorrem toda uma existência sem deixar ras-
tro. Nosso olhar é sempre para frente. Nada resume mais nossa vida atual do que
o sentimento de abundância e de confusão que os excessos de um ambiente de
consumo nos apresentam, como descreve Bruckner:
Entremos num supermercado, no shopping, percorramos as ruas co-
merciais de uma cidade: logo compreendemos que estamos entrando
no Jardim das Delícias, no Paraíso Terrestre. Todos os sonhos da Idade
de Ouro, outrora acalentado pelos homens, estão aqui agrupados. A
imensidão dos locais, a extraordinária variedade de produtos expos-
tos, a luz que jorra, os quilômetros de corredores, a engenhosidade das
vitrines são os de uma utopia viva. Se alguma profecia tivesse de ser
realizada, seria esta [...]. Esses templos do mercado cantam a vitória da
sociedade capitalista moderna sobre a carência. [...]

Em uma célebre gravura, o Luikkerland, a terra da Promissão flamen-


ga, Bruegel, o Velho, representa três personagens empanturrados, las-
samente deitados ao pé de uma árvore com expressão de absoluta bea-
titude. Perto dali um leitão passeia, com uma faca enterrada no lombo,
pronto para ser cortado e comido, um ganso deitado numa bandeja
de prata espera para ser devorado, as cercas do recinto são salsichas e

OS DILEMAS DA ATUALIDADE
178 - 179

um ovo aberto, dotado de duas patas, com um talher no pescoço, pe-


rambulando entre os dorminhocos. Uma montanha de pudim separa
o Luikkerland do mundo real. Toda essa cena campestre respira socie-
dade, contentamento, natureza generosa, que supre as necessidades dos
homens e os dispensa do trabalho. Imaginemos nossos três dorminho-
cos arrancados ao sono e brutalmente transplantados para este final de
século, nas seções de alimentos de um hipermercado: provavelmente
seriam sufocados pela diversidade, compreenderiam com terror que os
homens das sociedades de penúria só têm sonhos pobres, sonhos ridí-
culos. Que reformador social, em seus devaneios mais loucos, poderia
imaginar tal profusão? (BRUCKNER, 1997, pp.48 e 49).
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Para muitos, este sonho louco seria capaz de se realizar. Ele é palpável e pode ser
considerado uma condição que está disponível a todos. Temos a falsa ideia de que
a abundância nos centros de consumo é uma condição natural e que se estende
por toda a humanidade. É neste momento que a vida real vira ficção para mui-
tos. Uma ilusão que terá um preço alto a ser pago. Estamos produzindo um ser
banhado por fantasia aparente que não consegue desvendar as verdadeiras con-
dições que produzem sua vida. Ele está concentrado demais neste mar de delícias
que deseja e considera como seu. Ele apenas não percebe que os problemas mais
importantes de sua vida não estão fundados na sua existência imediata, mas em
uma condição que envolve uma parte considerável da sociedade. Na educação
necessitamos acordar este ser humano do sonho e lhe dar um sentido mais pro-
fundo, racional e concreto de sua existência.

O combate do todo pela parte

Aqui vamos fechar esta unidade com uma relação entre o Estado e o indivíduo,
por fim a coletividade, de forma preocupante. A resolução dos problemas sociais
com saídas particulares que são oferecidas no mundo da mercadoria, pela socie-
dade de consumo.
São muitas as questões apresentadas ao homem comum, em seu dia a dia,
como uma necessidade de todos. Contudo, a forma de ter este problema resol-
vido se coloca na atitude de cada um. Estamos buscando saídas pessoais para
questões que envolvem um grande número de indivíduos e cuja lógica para a

A Sociedade de Consumo
V

sua solução deveria passar por uma política pública. A venda da água mineral
é a denúncia de que não confiamos na água que chega até nós pela torneira. O
saneamento público é inconfiável e a nossa resposta é gerar em nosso ambiente
particular uma solução.
Fazemos do automóvel o nosso principal meio de transporte e abandonamos
a estratégia de ver implantar um transporte coletivo. Desobrigamos-nos de cobrar
um meio de deslocamento menos poluente e que não coloque em risco parte
considerável da população. Pior do que isso, nós ocupamos as cidades com um
número imenso de veículos que não cabem ao mesmo tempo nas vias públicas.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Não é por acaso que criamos um ambiente propício para o surgimento dos flane-
linhas, dos assaltantes, da especulação dos postos de combustíveis e da venda de
autopeças. Criamos problemas que consideramos de cunho social, o flanelinha,
por exemplo, mas que são apenas sintomas de nossa incapacidade de entender
o verdadeiro fator que nos leva a uma vida agressiva nos espaços urbanos.
Mobilizamo-nos para resolver a vida de um dia e, por consequência, acu-
mulamos problemas para uma vida toda. Nossos números preocupantes de
homicídios, de dependência química, alcoolismo, saneamento básico, nunca são
pensados com coerência de uma sociedade integral, vinculada por uma economia
que envolve a humanidade em uma lógica de dependência em massa. Queremos
resolver o que nos cabe se entender que o que diz respeito a nós está dentro de
uma condição coletiva de vida.
Na prática educativa temos que estar dispostos a desvendarmos esta socie-
dade, a trabalharmos estas relações e procurarmos denunciar os vínculos entre
a particularidade e a coletividade. Não existe um ser isolado, mas um homem
livre e responsável pelos seus atos. A ciência ainda é a nossa maior resposta, é
ela que nos apontou ao longo da trajetória ocidental o caminho para a superação
de inúmeros problemas. Mas esta ciência tem que ser acompanhada da consci-
ência, da capacidade de discernimento. O sobrevivente do caos será aquele que
entender os fatores que o determinam e souber se posicionar para transformá-lo.

OS DILEMAS DA ATUALIDADE
180 - 181

Considerações Finais

Se ainda há uma esperança para tirarmos parte da sociedade de sua hipnose


do consumo, esta saída é a crítica e a exposição científica das relações que nos
cerca. Temos que denunciar esta falsa ideia de prosperidade que parece pairar no
mundo fantasioso construído pela mídia de massas e pelos centros de consumo.
Contudo, não podemos inocentar o indivíduo, ele é responsável pelos seus
atos. Ele sabe que tem que tomar a atitude como um ato de escolha e arcar com
as consequências. Exatamente o que o homem contemporâneo se nega a fazer,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

assumir a sua responsabilidade diante da escolha que toma.


A liberdade é uma prerrogativa do homem contemporâneo que a tem sem
perceber sua importância. Em muitos casos ele a despreza. Por isso, decidir e
arcar com as decisões tem sido um peso. Nesta unidade vimos que em órgãos de
representação pública está se assumindo por lei o que é de obrigação dos indi-
víduos. Nós não podemos transformar o Estado em uma babá para o cidadão.
Como educadores temos que ensinar que a frustração é uma condição social. E
que ninguém está livre de tê-la e de ser obrigado a se educar por ela. No ambiente
de ensino percebemos o quanto alunos e professores querem o tratamento pri-
vilegiado que no passado era exclusivamente das crianças.
Os falsos inocentes adultos estão por todos os lados, vivendo a “zona de
conforto” de não ter que agir porque não são cobrados a terem responsabilidade
pelos seus atos. Cabe à ciência dar a dimensão dos nossos atos e as consequên-
cias de nossa liberdade de escolha.

Considerações Finais
Comentamos de como a substituição do de marcar 9,2% em julho daquele ano. Os
dinheiro de papel pelo cartão de crédito mais ou menos endividados em julho deste
ou débito estimula o consumo e levam ao ano somam 18,8% e os poucos endivida-
endividamento das famílias. Leia este texto dos, 18%.
e pense nisso:
Segundo a presidenta do Ipea, Vanessa
Levantamento  divulgado nesta sex- Petrelli Corrêa, a série mostra uma virada
ta-feira pelo Instituto de Pesquisa da situação econômica das famílias, com
Econômica e Aplicada (Ipea) indica que dívidas caindo e aumento da capacidade
o nível de endividamento das famílias bra- de pagamento. Segundo ela, os números
sileiras vem caindo no país. Entre junho e refletem “estabilidade no emprego e o fato
julho, a pesquisa mostra que passou de de que famílias estão pagando um ciclo
46,6% para 43,9% o percentual de entre- de endividamento”. Vanessa acrescenta,
vistados com dívidas. Em julho de 2011, o porém, que só uma trajetória mais longa
índice de endividados era 47,9% das famí- pode comprovar a guinada.
lias.
O levantamento mostra ainda aumento
Os dados compõem o Índice de Expecta- de 14,5% para 17,9% das famílias que afir-
tiva das Famílias, que mede a percepção mam ter condições de pagar totalmente
dos brasileiros sobre a economia e caiu de suas dívidas, entre junho e julho, e queda
68,5 pontos, em junho, para 68,2 pontos, do percentual das que dizem poder pagar
em julho. Os indicadores foram apurados somente parte das dívidas (de 51,2% para
em pesquisa mensal do Ipea com 3,8 mil 46,8%). O número das que não têm condi-
domicílios em 200 municípios do país. ções de pagar o saldo de débitos, por outro
lado, subiu de 33% para 33,3% no período.
O levantamento também aponta mudan-
ças no perfil de endividados no país com Na comparação do endividamento entre as
a diminuição do percentual de famílias regiões, famílias com menos dívidas são do
muito endividadas, de 9,1% para 7,1%, Centro-Oeste (92,6%) seguida pelo Sudeste
entre junho e julho. O índice tinha che- (61%) e pelo Sul (59,8%). Já no Nordeste, o
gado a 9,7% em agosto de 2011, depois índice cai para 39,9% e para 26% no Norte
- que tem o maior percentual de famílias
muito endividadas, 9%. Por faixa de renda,
as famílias “muito endividadas” recebem até
um salário mínimo (10,2%).

O Ipea não calculou a relação entre com-


prometimento da renda domiciliar com as
dívidas, que são R$ 4, 5 mil por família, em
média, descontando o financiamento da
casa própria.

A maioria das famílias consultadas na pes-


©shutterstock
182 - 183

quisa disse não ter dívidas (55,8%) e, entre índice tenha diminuído em relação a junho
aquelas com saldo de débitos, 17,9% dis- (60,2%).
seram que têm condições de quitá-los
completamente, embora uma em cada três Em relação ao futuro, as famílias brasileiras
famílias entrevistadas não tenham condi- são otimistas. Para 2013, 65% esperam que
ções de fazer o mesmo. a situação econômica melhore, enquanto
21,3% “esperam piores momentos”. Nas
Com relação ao emprego, 80,8% das famí- regiões Centro-Oeste e Sudeste as esti-
lias se sentem seguras com a ocupação do mativas são as mais elevadas, de 83,5% e
responsável pela casa e 41,1% acreditam na 67,5%, respectivamente.
melhoria profissional dos chefes de famí-
lias. A expectativa é mais alta entre aquelas As taxas são quase as mesmas em relação as
com renda de um a quatro salários mínimos expectativas para os próximos cinco anos.
e com mais de dez salários.
Para a presidenta do IPEA, mesmo que as
Na avaliação da maioria (77%), segundo famílias brasileiras estejam mais cautelosas
o Ipea, a situação financeira em 2012 é no momento atual, elas confiam na estabi-
melhor que a de 2011. Boa parte (58,3%) lidade do emprego e acreditam que mais
considera o momento bom para com- para frente será possível retomar as com-
prar bens de consumo duráveis, embora o pras.
Edição: Fábio Massalli
1. Na economia mundial há um apelo ao consumo. Ele está em todos
os lugares. A busca de atrair o consumidor e estimular necessida-
des das mais variadas e supérfluas destrói a lógica da relação entre o
homem e os bens de aquisição, a mercadoria. No apelo ao consumo
foi abandonada a lógica entre a função dos bens e sua necessidade.
Na educação perdemos a relação entre a ciência e os fenômenos que
nos cercam. Se resgatássemos o conhecimento científico, podería-
mos ter uma compreensão lógica das relações que estabelecemos.
Determine a relação entre a perda da lógica na publicidade na socie-
dade atual e os valores que os bens de consumo adquiriram e estabeleça
uma explicação científica para este fenômeno.
2. As marcas se transformaram em valores que estão acima, muitas vezes,
dos produtos com os quais estão relacionados. Elas se transformaram
em bens a parte. O valor de uma marca pode ser incalculável. Muitos
são os símbolos que percorrem o mundo e estão associados à sofis-
ticação, inteligência e beleza. Nesta reportagem, se fala do valor de
uma marca, por isso convido você a lê-la e ao final dela responder o
que estou propondo como discussão.

Apple é a marca mais valiosa do mundo, diz pesquisa


Empresa teve crescimento de 84%, diz agência Millward Brown.
Google, em segundo lugar, teve queda de 2% no valor de marca.
Sucesso do iPad ajudou Apple a ser a marca mais valiosa do mundo
Uma pesquisa realizada pela agência de pesquisa Millward Brown nos Estados Uni-
dos afirma que a Apple é a marca mais valiosa do
mundo em 2011. A companhia dona do iPhone e
do tablet iPad cresceu 84% no período de um ano
e passou empresas como Google, IBM, Microsoft,
McDonald’s e Coca-Cola, que integram as cinco
primeiras posições.
O estudo afirma que a marca Apple vale mais de
US$ 153 bilhões. O Google, em segundo lugar na
pesquisa, teve queda de 2%, com sua marca va-
lendo US$ 111 bilhões. A marca IBM, em terceiro
lugar, vale mais de US$ 100 bilhões, e Microsoft,
na quinta posição, cresceu 2% e vale mais de US$
78 bilhões. (Foto: Daigo Oliva/G1)
184 - 185

Por que, na sociedade de consumo, a marca vale tanto?


O Facebook foi a empresa que mais teve sua marca valorizada. Embora esteja na 35ª
posição, a rede social teve um crescimento de 246%. segundo a pesquisa, com sua
marca valendo mais de US$ 19 bilhões. O Baidu, maior site de buscas na China, foi o
segundo que teve o maior crescimento na valorização da marca, com 141% na 29ª
colocação, segundo a pesquisa.
De acordo com a Millward Brown, o valor das marcas são medidos por uma série de
fatores como previsão de lucros e pesquisas feitas com consumidores.
A pesquisa completa, em inglês, pode ser acessada em <http://adage.com/article/
news/apple-ends-google-s-year-run-valuable-brand/227443/>.
Questão: 
Com a valorização das marcas e o quanto elas representam na sociedade atual, po-
demos considerar que vivemos a valorização da imagem. A mensagem publicitária
passa a ser uma forma de compreender a realidade e distancia a lógica entre os
produtos e sua funcionalidade. No caso da marca Apple, ela representa um valor em
si, independente dos produtos aos quais ela está associada. Quais os efeitos que a
valorização das marcas gera na consciência dos indivíduos em relação ao papel da
ciência e da educação, por consequência, na sociedade?
Material Complementar

BAUDRILLARD, Jean. A Sociedade de Consumo. Tradução


de Artur Morão. Rio de Janeiro, Elfos Editora; Lisboa: Edições
70, 1995.
A obra “Sociedade de Consumo” é um detalhamento da lógica do
incentivo ao consumo e suas consequências, entre elas os custos
que gera para a sociedade, para o Estado.

BRUCKNER, Pascal. A tentação da Inocência: ensaio. Tradução


de Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
Pascal Bruckner revoluciona o conceito de liberdade e questiona a
maturidade humana. Ele considera que o regresso está surgindo,
queremos retomar uma sociedade de privilégios.

Para aprofundar o conteúdo!


As marcas se transformaram em um instrumento social, mas também merecem uma
reflexão. Neste vídeo a exposição do que elas significam.
<http://www.youtube.com/watch?v=k9jGVGBil8Q>.

OS DILEMAS DA ATUALIDADE
186 - 187

Conclusão

Prezado(a) aluno(a), chegamos ao final do nosso livro. Nele vimos que autores como
Pascal Brukner demonstra a condição em que o homem contemporâneo está se
deteriorando e permitindo a sua infantilização. Esta condição está se transforman-
do em prerrogativa para se viver no mundo contemporâneo e passamos a evitar o
embate com a própria existência e seu peso.
Esta luta constante que estamos travando tem se encontrado em dilemas cada vez
maiores em quase todas as instituições que frequentamos ou estamos inseridos, é o
nosso grande desafio contemporâneo. Seria a falência de uma consciência racional
do que somos?
Contudo, a liberdade e a individualidade que deveria nos dar um grau imenso de
comprometimento com nossos atos estão desviadas para os sentimentos delirantes
de particularidades dramáticas e que só fazem sentido na lógica do “cada um”. Seria
impossível recorrer à liberdade em todo o seu projeto que o Estado liberal criou ao
longo do tempo. Falimos na vida e vamos continuar falindo na existência particular
até nos isolarmos de forma absoluta na maximização do particular angustiante e do
individualismo sedutor.
O contraditório é que, no mundo de ser eu mesmo nos cansamos de nós. No mundo
da indústria cultural e da cultura de massas onde a industrial elevou a produção do
bem a massa humana, mas rebaixou grande parte da humanidade à condição de
massa homogênea. Eis nosso desespero, suportar a mesmice de nós mesmos.
Desta forma, estamos ressuscitando o romantismo do consumo e da falsa poesia
dos objetos que nada tem de humano. Criamos sobre nós uma falsa ideia que os
produtos permitem, mas nós mesmos não temos consciência. É esta consciência
que precisamos resgatar.
O consumo destruiu a lógica e nos permitiu o autismo social e idiotizado como a
sensação de intensidade dos bens que adquirimos e sua pouca durabilidade. Reno-
vamos a nós mesmos na compra das coisas a nossa volta. Ficamos a mercê do ciclo
curto do uso dos bens e na eternidade que se desmancha como resto. Nesta socie-
dade estamos perdendo a noção de que a vida é o risco que se corre, perdemos a
capacidade de promover a nossa vida em um sentido lógico que exija uma ação
para construir o que virá depois. Não podemos considerar que tudo o que somos é
fruto de um imediatismo sem finalidade. Não podemos viver um dia atrás do outro.
O desafio é este, o de construir um projeto de futuro fundado na racionalidade. Se
quisermos acreditar em algo, temos que construir um projeto de futuro, sem ele,
não há nada no que acreditar.
Espero que ao chegar aqui você tenha compreendido nosso propósito para a disci-
plina de Fundamentos Sociológicos e Antropológicos da Educação. Muito sucesso!
Professor Gilson Aguiar
188 - 189

Referências

BAURDRILLARD, Jean. A Sociedade de Consumo. Tradução de Artur Morão. Rio de


Janeiro, Elfos Editora; Lisboa: Edições 70, 1995.
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